Todos aqueles que não se alistaram em guerras santas tem como

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Texto de Joseph Campbell em "O herói de mil faces” (Ed.
Cultrix/Pensamento) – pgs. 251 a 255. Tradução de Adail Ubirajara Sobral.
As notas ao final são minhas.
O intelectual moderno não encontra dificuldades em admitir que o
simbolismo da mitologia se reveste de um significado psicológico. [...] Com
a descoberta de que os padrões e a lógica do conto de fadas e do mito
correspondem aos do sonho, feita pelos grandes psicanalistas [1], as
quimeras há muito desacreditadas do homem arcaico voltaram, de modo
dramático, ao plano principal da consciência moderna [2].
Nos termos dessa concepção, há razões para crer que, através dos contos
maravilhosos – cuja pretensão é descrever a vida dos heróis lendários, os
poderes das divindades da natureza, os espíritos dos mortos e os ancestrais
totêmicos do grupo –, é dada uma expressão simbólica dos desejos,
temores e tensões inconscientes que se acham subjacentes aos padrões
conscientes do comportamento humano. Em outras palavras, a mitologia é
psicologia confundida com biografia, história e cosmologia [3]. O psicólogo
moderno tem condições de retraduzi-la em suas denotações próprias e,
desse modo, recuperar para o mundo contemporâneo um rico e eloquente
documento das camadas mais profundas do caráter humano.
[...] Devemos notar que os mitos não são passíveis de uma comparação
exata com os sonhos. As figuras dos mitos dos sonhos têm as mesmas
fontes de origem – os poções inconscientes da fantasia –, assim como a
mesma gramática; contudo, os mitos não são produtos espontâneos do
sono. Pelo contrário, seus padrões são conscientemente controlados. E sua
função conhecida consiste em servir como poderosa linguagem pictorial
para fins de comunicação da sabedoria tradicional. Isso já se aplica,
inclusive, às chamadas mitologias folclóricas primitivas. O xamã suscetível
ao transe e o sacerdote-antílope iniciado não carecem de sofisticação em
seu conhecimento do mundo, nem são inábeis na utilização dos princípios
da comunicação por meio a analogia [4]. As metáforas pelas quais vivem e
por meio das quais operam foram objeto de longa meditação, de pesquisas
e de discussão ao longo de séculos – ou mesmo milênios [5]; além disso,
serviram a sociedades inteiras como as principais bases do pensamento e
da vida.
Os padrões culturais foram moldados a elas. Os jovens foram educados, e
os anciãos se tornaram sábios, por intermédio do estudo, da experiência e
da compreensão de suas efetivas formas iniciatórias [6]. Pois essas
metáforas na realidade tocam e põem em jogo as energias vitais de toda a
psique humana. [...] Onde os símbolos herdados receberam o toque de um
Lao-tsé, de um Buda, de um Zoroastro, de um Cristo ou de um Maomé –
empregados, por um mestre consumado do espírito, como veículo da mais
profunda instrução moral e metafísica –, estamos, evidentemente, na
presença de uma imensa consciência, e não diante das trevas.
Por conseguinte, para perceber o pleno valor de que se revestem as figuras
mitológicas que chegaram até nós, faz-se necessário compreender que elas
não são, tão somente, sintomas do inconsciente (como o são efetivamente
todos os pensamentos e atos humanos), mas também declarações
controladas e intencionais de determinados princípios de cunho espiritual,
que permaneceram constantes ao longo do curso da história humana, como
a forma e a estrutura nevrálgica da própria psique humana.
Em termos sucintos: a doutrina universal ensina que todas as estruturas
visíveis do mundo – todas as coisas e seres – são o efeito de uma força
ubíqua de que emergem, força essa que os sustenta e preenche no decorrer
do período de sua manifestação e para qual eles devem retornar quando de
sua dissolução última. Trata-se da força que a ciência conhece como
energia [7], os melanésios como mana, os índios sioux como wakonda, os
hindus como shakti e os cristãos como o poder de Deus. Sua manifestação
na psique é denominada, na psicanálise, libido. E sua manifestação no
cosmo constitui a estrutura e o fluxo do próprio universo.
» A seguir, a fórmula do ciclo cosmogônico...
***
[1] Campbell cita alguns: Sigmund Freud, Carl G. Jung, Wilhelm Stekel,
Otto Rank e Karl Abraham.
[2] Primeiro o racionalismo relegou toda mitologia arcaica há mera
superstição, porém, ao se deparar com os mistérios da mente humana, foi
obrigado a elaborar teorias acerca não somente da origem dos mitos na
pré-história, como da razão de eles permanecerem “vivos” até os dias
atuais. Enquanto o próprio Campbell, com sua teoria do Monomito, teoriza
que toda a mitologia humana se concentra em ideias universais da psique,
Jung fala em um Inconsciente Coletivo, e mesmo Dawkins elaborou o
conceito dos Memes. Nenhuma dessas teorias é “comprovada”, mas alguns
dos materialistas eliminativos, a despeito de sequer acreditarem na
existência de uma mente humana, curiosamente adotaram os Memes como
uma “teoria quente”.
[3] Os heróis lendários de outrora hoje nada mais são do que os superheróis e “jovens bruxos” da mitologia moderna, que embora movimente
muito dinheiro na indústria do entretenimento mundial, nada mais são do
que mitos “diluídos”, para que a sociedade “racionalista” os possa “apreciar”
sem pensar muito acerca da própria existência – ou, talvez fosse possível
resumir: sem pensar quase nada, sem refletir.
[4] Por serem incapazes de compreender metáforas, alguns ditos
“racionalistas” prontamente classificaram as pinturas rupestres como “arte
primitiva, sem grande significado”. Mas, como alguns antropólogos
modernos têm descoberto, em realidade as pinturas nas cavernas eram
plenas de significados que, a despeito de terem permanecido ocultos para
nós por praticamente um século (desde a descoberta das cavernas), não
significa, obviamente, que eram incompreensíveis para nossos ancestrais.
Sobre o assunto, recomendo o monumental Sobrenatural, de Graham
Hancock (Nova Era).
[5] Existem registros de pinturas rupestres com pelo menos 32 mil anos de
idade (vide nota acima).
[6] Hoje em dia é muito simples armazenar e divulgar informações, mas na
pré-história nossos sábios ancestrais eram obrigados a confiar apenas na
memória, na tradição oral e em alguns parcos registros pictóricos em
cavernas guardadas aos iniciados. Não porque se tratasse de uma “elite”
que queria guardar o conhecimento para si, mas exatamente o oposto: por
se tratar de seres que tanto valorizavam o conhecimento, que os “inseriam”
na mitologia, pois que sabiam que apenas a mitologia iria sobreviver
àqueles tempos inóspitos (inclusive antes da invenção da escrita).
[7] No princípio era tudo energia, se existe um conceito em que tanto a
cosmologia moderna quanto a religião concordam é que tudo o que há
surgiu nalgum tempo muito longínquo de uma singularidade misteriosa – de
fato, fez-se a luz!
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