Anais do 6º Encontro Celsul - Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul PROBLEMAS NA CARACTERIZAÇÃO DA “CLASSE” DOS ADVÉRBIOS Márcio Renato GUIMARÃES (UFPR) ABSTRACT: The aim of my work is to construct a better situation of the discussion about the parts of speech, with some considerations about the nature of a (im)probable class of the adverbs. KEYWORDS: adverbs; word classes; parts of speech. 0. Introdução. O conjunto1 de palavras a que a gramática tradicional convencionou chamar advérbios parece ser bastante refratário a classificações e, certamente, não se submetem na mesma medida que nomes, verbos e adjetivos (ao menos em português) a uma classificação mais ou menos bem definida. Pelo contrário, o trabalho de Ilari et alii (1993) embora pareça sugerir que as subclasses (ou ao menos algumas delas) são mais ou menos “naturais”, quase nada diz a respeito da classe dos advérbios como um todo, sobretudo se existe alguma razão para que nós a consideremos uma classe de palavras ao lado dos nomes, verbos, adjetivos, etc, ou que, antes, ela parece ser mais um amontoado heterogêneo de palavras (ou de classes menores) que apresentam alguma vaga similaridade no que diz respeito ao comportamento sintático-semântico. A questão seria decidir se esse amontoamento que tem sido feito pelas diversas tradições de gramática representa algum tipo de relação entre essas classes de maneira que elas possam ser agrupadas em uma superclasse, ou se a classe dos advérbios é antes uma espécie de asylum ignorantiarum, em que têm se colocado coisas que não cabiam nas outras classes melhor definidas. Nessa situação dos fatos, existe o perigo de se partir para as duas posições mais extremas possíveis. A primeira seria a de afirmar que o parentesco entre essas subclasses é suficiente para a delimitação de uma classe dos advérbios. Tal versão só se sustentaria através do atropelamento das enorme dificuldades que uma tal classificação teria para se sustentar, caso a caso. No outro extremo estaria a posição de que não existe no português (para não dizer em nenhuma língua) um conjunto que possa ser caracterizado como “a classe dos advérbios”. Essa posição só se sustentaria, também, através de outro atropelamento: o do fato de que existem algumas propriedades compartilhadas por pelo menos algumas dessas classes, entre elas a possibilidade de ocuparem as posições mais canonicamente atribuídas aos advérbios, quais sejam as de modificadores de verbos, adjetivos e de modificadores de outros modificadores de verbos e adjetivos. Há mais propriedades: a) modificadores de construções endocêntricas com a característica de não ser [+NOME]. A discussão da exata caracterização dos advérbios como classe é uma questão ambígua. Pode significar a) dar à classe dos advérbios uma exata caracterização com relação a uma propriedade ou conjunto de propriedades estruturais compartilhados por todos eles e b) dar uma exata caracterização às palavras e/ou conjuntos de palavras que têm sido, tradicionalmente, classificadas como advérbios. Não acredito, sinceramente, que a seja possível, ao menos em termos muito simples. E b, que acho que mais o caso, pode implicar em, de alguma medida, implodir uma classe unificada dos advérbios em diversas subclasses que, embora seja o caso de manterem algum parentesco do ponto de vista do comportamento sintático e (menos) do ponto de vista nocional, não podem ser justificadamente classificadas sob uma mesma classe (mesmo porque o parentesco entre algumas dessas “subclasses” dos advérbios é mais nítido, muitas vezes, com outras classes, como os determinantes e os adjetivos, do que com os outros advérbios. Na esteira do desatamento desse nó está a discussão acerca da natureza das classes de palavras, e de quais são os critérios utilizáveis para proceder a essa classificação. Discorrerei largamente sobre isso, na seção 2. 1. A Crítica de Ilari sobre a classificação dos advérbios. A crítica feita por Ilari, como já ressaltei acima, diz respeito à impropriedade das definições utilizadas, não ao uso de um ou outro critério. Nesse aspecto, é importante ressaltar que Ilari faz uso de O uso de conjunto, ao invés de classe, denota que eu não estou assumindo, de partida, que essas palavras constituam uma classe de palavras com base em elas compartilharem uma ou mais propriedades características. Para colocar a questão em termos de conjuntística, estou fazendo referência a um conjunto extensionalmente (e não intensionalmente) ou, talvez, ao conjunto de palavras que tem a característica “a que a gramática tem tradicionalmente caracterizado como ‘advérbios’” sem assumir que elas formam uma classe de palavras. Por classe de palavras entendo conjuntos de palavras definidas por propriedades centrais e características. 1 caracterizações tanto de caráter sintático (= distribucional), como de caráter semântico (= nocional), sugerindo que uma análise consistente da classe dos advérbios precisaria abordar critérios dos dois tipos. Este é também o ponto de vista defendido nessa tese. No estudo das definições até então encontradas para advérbios, Ilari et alii (1993) dividem os critérios em três níveis (morfológico, sintático e semântico). (1) Critérios tradicionalmente utilizados para a delimitação da classe dos advérbios 1. Morfológico: a) palavra invariável a1) palavra terminada em -mente b) modificador de não substantivos (morfossintático) 2. Sintático: a) modificador de adjetivos, verbos e advérbios 3. Semântico: a) palavra que indica “circunstância” b) palavra que modifica o sentido de outra palavra c) termo não-essencial, ou acessório Em primeiro lugar, apesar de reconhecer que os critérios apontados por Ilari em (1) acima reproduzem a caracterização dada pelas gramáticas tradicionais aos advérbios, acho necessário, primeiro, elimin ar a redundância que existe entre 1b e 2a, que são idênticos (embora 1b seja mais abrangente). Em segundo lugar, dado que se usa os termos modificar/modificador no âmbito sintático e no semântico, seria interessante tentar definir se se tratam de duas propriedades (uma sintática, outra semântica), ou se é apenas uma. Mais adiante a noção de modificador será melhor caracterizada. Mais coisa poderia ter sido dita acerca dessa fantasmática noção de “circunstância”. Os autores apontam para o fato de que essa noção tem um âmbito bastante variável, ora apontando para as circunstâncias daquilo que é dito, ora para as circunstâncias da enunciação: (1) Os dois estão na escola (porque eu trabalho de manhã... Então, eu os levo para a escola... e vou trabalhar... Depois, saio na hora de buscá-los... aí depois tem natação segunda, quarta e sexta... (...) Depois, terça e quinta a menina faz fonoaudiologia.... (1993: 68) as duas primeiras ocorrências de depois se referem à situação descrita pelas sentenças, enquanto a terceira se refere não às circunstâncias da ação “mas à organização do fluxo de informações”. Embora essa observação seja importante e rica em conseqüências, não responde à questão de como se definem essa noção de circunstância, se essa noção se aplica à todos os advérbios (ou, de uma maneira mais desdobrada – se todas as noções significadas pelas diferentes subclasses dos advérbios podem ser reunidas nessa “supernoção” de circunstância). Na seqüência, sobretudo no momento da exposição da sua classificação dos advérbios, os autores deixam de fazer referência a essa noção de circunstância (embora na página 68 eles tenham sugerido que ela pode ser aplicada, ao menos para os “dêiticos” de tempo, os quais, aliás, foram excluídos da análise). Os autores partem, na seqüência, para a listagem de exemplos que não cabem nas definições tradicionais, sem abordar a propriedade de cada definição, em si. Sua argumentação mostra que algumas ocorrências de termos que são tradicionalmente caracterizados como advérbios violam as definições dadas para a classe em (2) e (3). Assim, há vários termos que violam a definição de advérbios como modificadores, pois apresentam-se numa posição argumental: (2) (3) Aqui tem brisa marinha. Eu pensei que ela fosse ter problemas [na escola] porque ela não fala muito ela fala muito pouco. Não pretendo me alongar na enumeração de exemplos; remeto ao texto em discussão para outros casos. Os autores não propõem o abandono total das definições da gramática tradicional. Apesar de nenhuma resposta mais definida ser dada às questões acima (na verdade, elas nem mesmo são formuladas), alguma coisa pode ser deduzida da análise que eles propõem. Em primeiro lugar, a afirmação explícita de que os advérbios não constituem uma classe de palavras com características morfossintáticas uniformes (1993: 80), sugere que as propriedades não devem ser levadas em termos gerais. Em segundo lugar, o recurso a diversas noções (inclusão/exclusão, intensidade, negação, etc.) revela, no mínimo, que a propriedade de circunstância deve ser melhor redefinida, ou, no limite, completamente abandonada. Em terceiro lugar, os autores fazem uso de critérios de distribuição sintática e de critérios nocionais. Os critérios morfológicos de palavra invariável e de termo terminado em –mente são, em si, pouco produtivos, aparentemente não definindo nenhuma propriedade a ser confirmada por outros critérios, ao menos nenhuma propriedade que seja suficiente para definir esta classe ou qualquer outra. Na verdade, talvez o critério de invariabilidade não seja em si um critério definidor de classe de palavras, mas de âmbito sintático. Alguns intensificadores são sempre invariáveis, mas muito e pouco são variáveis nos âmbitos em que se faz a concordância. E o critério de palavra terminada em –mente antes de um critério é a constatação de um processo de produção de palavras na língua. Proponho, na seqüência, um estudo dos critérios de classificação, não apenas como meros critérios de classificação de palavras, mas como definidores de propriedades importantes das seqüências portadoras de significado da língua natural. A divisão em três tipos de critério não é invenção de Ilari. Ela é absolutamente generalizada na análise lingüística do século XX (cf. Lyons, 1979; Kim, 2001; Câmara Jr., 1973). O questionamento dos critérios utilizados pelas gramáticas tradicionais de recorte escolar2 também não é privilégio de Ilari. Há duas maneiras de se fazer essa crítica. Em primeiro lugar, pode-se questionar problemas de alcance das definições feitas, como Ilari critica. Em segundo lugar, pode-se questionar o recurso a algum dos critérios. Mais tradicionalmente, têm-se questionado, sobretudo dentro dos estruturalismos, o recurso a critérios semânticos. Câmara Jr., ao vincular o critério semântico ao mórfico, já reflete a tendência dominante numa certa tradição gramatical do século XX de ignorar o critérios semântico, restringindo-o à consideração de noções específicas trazidas por desinências nominais e verbais. 2. Dos problemas da classificação de palavras A questão do que são as classes de palavras está no cerne de toda teoria gramatical. Toda teoria gramatical pode ser entendida como uma teoria que reconheça como diferentes os pedaços de uma sentença. Porém, nem toda teoria gramatical provê as classes de palavras de uma caracterização exata. Isso não é um problema só da gramática tradicional. Muito pelo contrário: a maior parte das teorias gramaticais contemporâneas trabalha alienando a discussão sobre o que são as classes de palavras e quais são as suas propriedades definidoras. Mesmo teorias bem aparelhadas para resolver a esta questão como as gramáticas categoriais, trabalham assim. Meu objetivo neste artigo é revisar as dificuldades das definições de classe de palavras nas gramáticas tradicionais, mas sobretudo as críticas que se fazem. Tradicionalmente essas críticas identificam o problema das definições em: a) falta de explicitude; b) incompletude; c) critérios ambíguos e/ou díspares (algumas classes definidas com uns critérios, outras com outro); d) predomínio do critério semântico; e) falta de universalidade e ou generalização. Da aceitação de a), b) e c) se tira que o critério (ou os critérios) ideal deve ser o mais explícito possível; o mais completo possível (ou seja, deve dar conta das generalizações que se propõem) e c) não-ambíguo. A solução que entrevejo é trabalhar com os três critérios, mas com articulação. Como essa articulação pode ser feita: a) articulando morfologia com sintaxe; b) articulando o funcional (morfossintático) Uma nota sobre a Gramática Tradicional e a Tradição Gramatical. Durante um certo período da história da sua ciência, os lingüistas investiram contra uma série de conceitos cristalizados que acompanharam um determinado conjunto de práticas escolares de ensino de línguas alicerçado (ao menos em tese) em concepções daquilo que se convencionou, pejorativamente, chamar de Gram ática Tradicional. Nessa empreita, muitas vezes deixaram de fazer justiça a um período importantíssimo da aventura humana do conhecimento que é o da Tradição Gramatical Ocidental, sobretudo a sua vertente lógico -especulativa, iniciada com os gregos, na Antigüidade Clássica, e continuada ao longo dos séculos. Em alguns textos2, a rejeição da postura lógico -especulativa confunde-se a si mesma investindo contra as pobres (em mais de um sentido) definições das gramáticas escolares, como se isso bastasse para descartar de uma vez essa tradição, já presente no início da história dos estudos sobre os fenômenos da linguagem no Ocidente, e que continua subsistindo, apesar do esforço de seus adversários. 2 com o semântico. Existe m exemplos de que essa articulação se dá nas línguas naturais. Uma mesma classe de palavras definida funcionalmente costuma corresponder a uma mesma classe semântica, não apenas do ponto de vista nocional, mas também semântico. É assim, por exemplo, para as classes dos nomes e dos verbos, no português (esta última é mais convenientemente definida desta forma). Essa possibilidade de articulação só se coloca dependendo de determinadas escolhas com relação a modelos teóricos. Numa teoria que coloque a sintaxe como “central” ou “autônoma” (seja lá o que isso queira dizer) há que se perguntar se é possível tal articulação, e se há alguma necessidade de postulá-la. Embora eu não vá aprofundar a questão da escolha do modelo teórico, adianto que a presente discussão faz parte de uma pesquisa muito maior, que tem como objetivo mais distante propor uma caracterização da classe (ou das classes) que reunam as palavras tradicionalmente caracterizadas com advérbios dentro de uma conjugação entre teorias de gramática categorial e de semântica de modelos. Com relação a que tipo de classificação que este trabalho que ora proponho vai chegar é uma questão que eu faço questão de deixar em aberto. Não há espaço disponível para discutir exaustivamente isso num texto do tamanho deste. 2.1. Sobre os problemas no uso de critérios nocionais Creio que a primeira questão que deve ser abordada é a da validade do uso do critério semântico, ou, mais propriamente, da necessidade desse critério. Essa validade tem sido questionada em muitas análises, que têm preferido trabalhar sem o critério nocional (cf. Lyons, 1979) O problema essencial dos critérios semânticos para algumas propostas reside na sua base referencial. Consiste na afirmação de que as relações referenciais utilizadas como critério para a delimitação de classes de palavras pelas classificações que fazem uso desse critério não são válidas, ou não são eficientes em classificar as palavras a que se propõem classificar. Um exemplo dessa ineficiência é a que pesa sobre a afirmação de que verbos são palavras que designam ação. Há uma série de palavras que designam ação que não são verbos, mas substantivos. Por outro lado, há uma série de verbos que designam situações que não são ações, mas acontecimentos, estados, entre outras coisas. Em que pese o fato de que a definição apresentada é bastante caricatural, ela sobrevive, em versões mais sofisticadas, em algumas definições ainda hoje utilizadas na literatura semântica. Uma definição mais contemporânea não caracterizaria os verbos como referenciais de ações, mas como peça central de sentenças, elas sim designadoras de ação. E, se é verdade que outras palavras designam ação, é também verdade que não são quaisquer outras palavras que designam ações, mas mais especificamente apenas os nomes, e não os advérbios, ou os adjetivos, ou as conjunções. Além disso, já se apontou o parentesco de sentenças como César conquistou as Gálias com sintagmas nominais do tipo a conquista das Gálias por César, em que existe uma relação óbvia entre o verbo conquistar e o nome conquista. A permanência de explicações de base referencial no seio de teorias do significado talvez seja um indício bastante forte de que é muito difícil fugir a ela. Talvez se deva avaliar o fato de que muitos dos que fogem desse tipo de explicação, fogem também muito obviamente de qualquer tipo de gramática (ou de qualquer tipo de explicação objetiva sobre a realidade das coisas). Rejeitaremos ir atrás de quem foge porque, se a fuga é uma das artes mais fáceis, ir atrás de quem foge é tão fácil que chega a ser covardia. As teorias semânticas de base lógicas continuam a construir explicações fortemente referenciais para as classes de palavras, nos mesmos moldes em que tais explicações têm sido elaboradas ao longo dos séculos na tradição lógico-especulativa do estudo da linguagem no Ocidente. Os modelos de interpretação das semânticas formais são um exemplo extremo de organização no que diz respeito às qualidades referenciais da linguagem. As classes de palavras são organizadas, nesses modelos, de acordo com o tipo específico de “coisa” que designam (objetos, conjuntos, operações, etc.). Não é objetivo deste trabalho discutir os fundamentos das teorias semânticas de base lógica. No entanto, farei algumas considerações sobre a impropriedade das classificações feitas a partir de um único critério (sintático, ou melhor, sintático-distribucional) e a necessidade de se utilizarem os critérios semânticos. A principal tônica da argumentação utilizada nesta tese é a de que os critérios semânticos (= referenciais) conseguem apreender características essenciais das línguas naturais, que não são apreendidas por meros critérios distribucionais. E, além disso, que critérios mórficos e/ou funcionais -distribucionais (sintáticos) não são suficientes para proverem classificações lexicais seguras. Em primeiro lugar, existe uma confusão no que diz respeito às noções representadas na língua natural. Uma coisa é a classificação de noções. A classificação em termos de eventos é uma delas. Também a classificação em termos de propriedade é enganosa. Seria possível, por exemplo, fixar os adjetivos como termos que indicam qualidades. No entanto, predicados inteiros no presente do indicativo indicam qualidades, as well. Essa similaridade já foi apontada por Port Royal. O principal argumento a favor de que existe uma correspondência entre qualidades semânticas e sintáticas é a observação de que termos que apresentam propriedades semânticas e/ou nocionais semelhantes (ou de uma mesma natureza) apresentam também propriedades sintáticas muito semelhantes. 2.2. O problema da universalidade Uma seguinte dificuldade levantada pelos adversários das classificações de palavras baseadas na tradição lógico especulativa diz respeito à questão da universalidade. Uma teoria consistente de descrição das línguas naturais, baseada em uma teoria universalista da linguagem, tem que dar conta das classes das palavras nas diferentes línguas. Há duas maneiras de se encarar este problema: a primeira, que quer negar o universalismo, define que as classes de palavras de uma língua não vão coincidir nunca com as classes de uma outra língua porque não existe nada de universal na linguagem. No fim das contas, essas teorias decidem a priori que não existe nada de universal nas diversas línguas, bloqueando qualquer possibilidade de que se possa encontrar qualquer similaridade entre as diferentes línguas da terra. No entanto, qualquer teoria, inclusive as funcionalistas, vão fazer uso de certas categorias, como ergatividade, tempo, verbo, que vão aplicar nas mais diferentes línguas. Se o que se quer não é negar a hipótese universalista, mas trabalhar com essa hipótese em perspectiva, que é o que se quer aqui, vai se colocar a questão de uma outra forma. Em primeiro lugar, é importante reconhecer que as definições de classes de palavras herdadas da gramática tradicional não são universalmente aplicável. Que numa certa medida a asserção de que as diferentes línguas naturais não possuem exatamente as mesmas classes é verdadeira. O que não significa que não se podem achar parentescos entre as diferentes classes gramaticais das diferentes línguas. A própria constatação de que as classes de palavras são mais diferentes em algumas línguas do que em outras é motivo para que não se abandone a busca por classificações mais generalizantes, ou, melhor colocando, aquilo que existe de comum entre as classes de palavras das diversas línguas naturais. Assim, por exemplo, entre o português e as outras línguas indo -européias da Europa é possível (seria melhor colocar a questão do ponto de vista empírico) que haja menos diferença em termos de classes de palavras do que com línguas de outros grupos. Tomemos o caso dos adjetivos. Em português, ao contrário do que acontece em alemão e em inglês, um adjetivo é muito facilmente convertido em substantivo e vice-versa. Em tupi, os adjetivos funcionam efetivamente como verbos, recebendo inclusive marcas da pessoa do sujeito. Ikatu, em (4), pode ser traduzido por é bonita , que é um complexo formado por verbo (de ligação) mais adjetivo, mas, funcionalmente falando, não se pode segmentar essa palavra em pedaços que correspondam ao verbo cópula e ao adjetivo – e devemos nos perguntar seriamente se há mesmo que se postular uma tal divisão no nível da forma lógica (seja lá o que isso quer dizer). (4) A’e kunhã i-katu esta mulher 3sg-boa “esta mulher é boa” Kim (2001: 11) apresenta alguns exemplos interessantes a esse respeito, do chinês antigo: (5) (6) (7) (8) sou bù yuan qian li le velho não distante mil “milha li” “My honourable Lord, you did not consider a thousand li mile too far away and have come” nàn màn zhi yuan bárbaros (chamados) man marcador de genitivo distante “The distance from the Southern barbarian called man” yuan den ze distante bandidos ladrões “Keep away from bandits and thiefs yuan fang zhi rou distante país marcador de genitivo homem “Someone form a distant country” A questão nos exemplos de Kim não é como traduzir o chinês yuan, mas a interpretação estrutural a ser dada para ele. Em (5) e (7) eles podem ser descritos como elementos centrais dentro de uma “oração” (verbos?), em (6) ele pode ser considerado um “nome”, em (8), um “adjetivo”. Ou, ainda, as classes de palavras tais como as conhecemos podem não fazer muito sentido quando aplicadas ao chinês, e talvez o máximo que possamos ter é critérios mais ou menos rigorosos para a definição de classes de palavras nas mais diversas linguas naturais. Um caso mais clássico na literatura é representado pelas as línguas wakashan, que são famosas por apresentarem contra-evidências para a mais grata das distinções gramáticas do ocidente: a que existiria entre nomes e verbos (dados do Lilloet, em Eijk e Hess, 1986: 323): (9) (10) (11) (12) sqáyxw -kan homem-1.sg. “eu sou um homem” nk’yáp-kan coiote-1.sg. “eu sou um coiote” λ’ák-kan ir-1.sg. “eu vou” q w \nq wánt-kan pobre-1.sg. “eu sou pobre” Estruturalmente falando, os correspondentes aproximados para “homem”, “coiote” e “pobre” comportam-se como “verbos”, em Lilloet, recebendo a mesma terminação de pessoa dos “verbos de verdade”, como “ir” (λ’ák -). Quer dizer, as traduções literais de (9, 10 e12) não seriam as apresentadas acima, mas eu homo, eu coioto e eu pobro (seguindo o raciocínio de Sapir, 1949). Sob esse ponto de vista, parece-me que a discussão a ser levada em questão é a da definição de critérios para classificação de palavras, não a definição de uma classificação de palavras. Quer dizer, não existe um sistema de classes de palavras universalmente adaptável a toda e qualquer língua natural. As classes de palavras das diferentes línguas não se comportam da mesma forma. O que uma teoria da gramática das línguas naturais poderia (e deveria) se propor é um conjunto de critérios gerais de descrição que pudesse dar conta das classes de palavras das diversas línguas naturais atendendo a um mesmo conjunto básico de postulados. 2.3. O problema dos limites das classes de palavras Uma outra dificuldade é o fato de que algumas palavras resistem a uma classificação mais rigorosa por exibirem comportamento correspondente a mais de uma classe. Em português, por exemplo, pode ocorrer de um adjetivo aparecer desempenhando a função de substantivo e vice-versa, como já foi citado acima. Mas o mais abominável problema é o de certos grupos de palavras que apresentam tal comportamento distribucional que dificulta muito sua classificação com relação às classes de palavras mais tradicionais. Provavelmente, a maior parte delas têm sido tradicionalmente classificada como “advérbios”. Dentre os numerosos exemplos, tomarei três. Em primeiro lugar, temos aquele conjunto que foi definido, por Ilari et alii (1993) como intensificadores (muito, pouco, mais, menos, demais, bastante, tão). Eles apresentam-se em construções típicas de advérbios como em (13-16), devendo-se notar que pouquíssimos outros advérbios (bem, quase, meio, extremamente, e uns outros poucos a mais) modificam também advérbios. Além disso, eles modificam raízes nominais, ao contrário da grande maioria dos outros advérbios. E, mesmo comparandose com outros advérbios que aparecem em tal posição (como mesmo, também, só) eles apresentam um comportamento muito típico dos determinantes (17, 18), o que leva, por exemplo, as gramáticas tradicionais classificarem-nos como “pronomes indefinidos”. Além disso, aparece um terceiro uso, que é denominado, por Ilari et alii, de indefinidos absolutos (19, 20), posição em que eles têm que ser interpretados como elementos argumentais, solapando a proposta desses autores de uma análise dos advérbios como modificadores em construções endocêntricas: (13) (14) (15) (16) (17) (18) (19) (20) Pedro trabalha demais. Esta calça está muito rasgada. Eles ganham muito pouco por mês. Eu não sei muito exatamente o que ele quer. Mais gente apareceu hoje. Camila trouxe muitos brinquedos João disse pouco. Eles são pobres, não têm muito para dar. O segundo caso é representado pelo assim, tratado por Valenza (2004). Como expressão (cata)fórica, assim aparece ocupando a posição sintática da sua âncora referencial (o “antecedente”), como se vê em (21 -). E, se a âncora referencial for um advérbio (como em 22, 23) ele pode, excepcionalmente aparecer em posição “adverbial”: (21) (22) (23) São muito acomodadas...ainda não começaram assim... aquela fase chamada de mais difícil, de crítica. (Ilari et alii, 1993: 71) Eles não trabalham assim... muito. – e gosta de piano? – gosta assim... para acompanhar o bailado porque ela toca dançando. (Ilari et alii, 1993: 71) O terceiro caso é o dos chamados advérbios de inclusão/exclusão. Destes, é apenas artificialmente que se poderia considerar que o só adjetivo (cf. 24) e o só “advérbio” não são a mesma palavra. Também ele apresenta uma gama considerável de contextos mais ou menos díspares, difíceis de serem entendidos de acordo com as mais diferentes análises, embora se acomode melhor na definição de modificador em construção endocêntrica: (24) (25) (26) (27) (28) Eu estou me sentindo muito só. Ele não pode ir aí fora porque está só de meia. Ele guia a bicicleta só com os pés, sem as mãos. Só a filha mais velha sabe onde ele guarda o dinheiro. Ela só estuda, não trabalha. Existem duas saídas para essas dificuldades. A primeira, mais fácil, é implodir o conceito de classe de palavras. A segunda é pacientemente estudar os casos de dificuldades em direção à construção de uma teoria mais geral das classes de palavras. Em direção a um modelo que encare o fenômeno das classes de palavras como mais complexo do que tem sido encarado aqui. A questão a se colocar é o que existe de universal nas diferentes classes de palavras das diferentes línguas naturais. Seria interessante preceder essa questão de uma outra: as classes de palavras existem3 . Ou, colocando em outras palavras: as palavras das línguas naturais são passíveis de uma classificação? Na base de todos os problemas das definições utilizadas nas gramáticas escolares vai se encontrar não a afirmação de que elas não correspondem às classes de palavras que pretendem designar, mas que designam a classe a partir de determinadas ocorrências de determinados itens lexicais pertencentes a essas classes. Ou, ainda, que capturam mais coisas do que deveriam capturar enquanto coisas que deveriam capturar deixam de sê-lo. Apesar de você ter coisas diferentes que ocupam o mesmo lugar, elas não se comportam absolutamente do mesmo jeito. Assim, em inglês, alguns substantivos podem ocupar a posição de adjetivo, como ocorre com car em (29): (29) the car salesman E, antecipando-se a essa questão, poderia se fazer esta outra: existem as palavras? O que são? A delimitação das palavras é assunto que ainda desafia a análise lingüística. Existem fortes evidências de que as palavras são unidades efetivas das línguas naturais, embora nenhuma teoria lingüística tenha conseguido elaborar um conjunto de critérios absolutamente coerente com seus pressupostos teórico -metodológicos para definir no que consiste uma palavra. 3 Mas, como Kim (2001:14) observa, car não compartilha de todas as propriedades combinatórias dos adjetivos. Em primeiro lugar, car não pode ser modificado por advérbios (como se vê em (30)), nem ser utilizado como predicativo (como se vê em (31)): (30) *the extremely car salesman (31) *the salesman is car Aparentemente, essa situação se repete com os substantivos e adjetivos em português. O famoso exemplo da ambigüidade do velho palhaço aparentemente demonstraria, inclusive, que essa conversibilidade é mais universal do que no português. Assim, ambos os itens lexicais admitem serem modificados por advérbios, e ambos podem aparecer como predicativo: (32) (33) mas: (34) (35) (36) velho incrivelmente palhaço palhaço incrivelmente velho ?incrivelmente velho palhaço o palhaço é velho o velho é palhaço mas existem mais ingredientes nesse caso do que a simples conversibilidade de substantivos em adjetivos e vice-versa em português. O clássico exemplo é exatamente isso: clássico demais. Ele se prende ao fato de que velho é um adjetivo que apresenta grande freqüência de uso à esquerda do substantivo modificado, o que é atípico para a maior parte dos adjetivos, mas aparece como norma ou possibilidade para alguns adjetivos específicos do português (com casos de alteração do significado, cf. mero, bom etc.). Além disso, nem todos os substantivos têm a mesma possibilidade de conversão em adjetivos, com a compulsória absorção de todas as possibilidades combinatórias de um adjetivo. Observe-se que outros substantivos não se comportam como palhaço nos casos acima: Pode-se dizer que diretor e palhaço assumem, alternadamente, o papel de adjetivo em palhaço diretor e diretor palhaço. No entanto diretor em palhaço diretor parece se comportar mais como car em the car salesman. Ele não aceita advérbios modificando-o ?um palhaço incrivelmente diretor. Além disso, nem todos os adjetivos aceitam tão tranqüilamente advérbios modificando-os: (37) (38) incrivelmente mero professor incrivelmente bom amigo Os casos do português estão sugerindo, na minha opinião, duas coisas. Em primeiro lugar, é possível que tenhamos não um fenômeno generalizado de conversão entre substantivos e adjetivos, e vice-versa, mas fenômenos lexicalmente localizados. Assim parece acontecer com os adjetivos que podem aparecer em função de advérbio (como rápido e só). Nem todo adjetivo aparece como advérbio, ou é reinterpretado com advérbio: (39) (40) (41) ?ele trabalha bom ele trabalha satisfeito ?ele trabalha satisfatório Em segundo lugar, talvez tenhamos, mais do que uma peculiaridade de itens isolados, evidências para uma subclassificação dos adjetivos e dos substantivos em português com base na propriedade de ser conversível na outra classe. Conversões do tipo de velho e de palhaço são, talvez, mais freqüentes em português por conta das semelhanças morfológicas que as duas classes têm em português. Nas línguas da família tupi-guarani, em que os adjetivos se parecem mais com os verbos, provavelmente tais conversões não sejam tão comuns (embora, alternativamente, qualquer verbo tupi pode se transformar em nome através do sufixo –a). E em inglês, por outro lado, a inexistência de morfologia de tipo nominal nos adjetivos talvez bloqueie mais conversões do tipo das de velho e palhaço, embora não bloqueie as do tipo car e diretor. Por outro lado, a exigüidade de flexões morfológicas em inglês talvez explique a relativa facilidade de adjetivos e nomes aparecerem como verbos. Em chinês, onde a eliminação da morfologia atingiu um ponto ainda mais avançado do que em inglês, essa possibilidade é ainda mais extrema. Finalmente, não é o caso de que itens de qualquer classe podem aparecer em qualquer função (ao menos em português). Pelo contrário, as conversões seguem padrões bem específicos. Adjetivos podem aparecer como advérbios; substantivos e adjetivos são mutuamente conversíveis (a questão é saber qual sentido é mais comum); particípios/adjetivos em –nte aparecem como preposições (durante, perante); verbos no infinitivo aparecem como substantivos (estar, andar). A assunção de que não existem, ou não precisamos reconhecer classes de palavras nas línguas naturais desviam o curso da análise que poderia se colocar a rastrear essas conversões, ver onde elas são possíveis (ou mais freqüentes) e o que está por trás dessas possibilidades e freqüência. Talvez essas conversões não denotem exatamente a inexistência de classes de palavras. Antes, o seu comportamento está sugerindo que elas demonstram relações de parentesco entre as classes. Sugerem, também, que o modelo de classificação tradicional de dez classes “singulares” talvez seja muito tosco para dar conta da natureza das línguas naturais. Talvez essas relações entre as classes denotem a existência de uma hierarquia de superclasses (assim como poderíamos entrever uma hierarquia de subclasses). A distinção categoremático versus sincategoremático (e os critérios derivados da conexidade das gramáticas categoriais) pode ser a base de uma classificação desse tipo. Mas o modelo de estrutura de hierarquias não necessariamente precisa ser o modelo em árvore, de uso tão difundido seja na classificação genética, seja na análise de estruturas de sentenças. Em certa medida, esse modelo de classificação pode compartilhar propriedades com o modelo de classificação chomskyano, que utiliza os traços [+NOME] e [+VERBO]. Mas o modelo de Chomsky, além de ser igualmente tosco, não possibilita a possibilidade de uma hierarquia. RESUMO: O objetivo do presente trabalho é resituar a discussão acerca dos critérios de delimitação das classes de palavras, com especial atenção em uma caracterização de uma (im)provável classe dos advérbios. PALAVRAS-CHAVE: chave; chave; chave; chave; chave. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CÂMARA JÚNIOR, Joaquim Mattoso. Estrutura da língua portuguesa . 7.ed. Petrópolis: Vozes, 1976. EIJK, J. P. van; HESS, T. Nouns and verbs in Salish. Lingua 69 : 319-331, 1986. ILA RI, R. et alii Considerações sobre a posição dos advérbios. In: CASTILHO, A. F. (org.) Gramática do Português falado I: a ordem. Campinas: FAPESP/Editora da Unicamp, 1993. p. 63-141. KIM, J i-yung. The parts of speech. Ms. 2001. LYONS, John. Introdução à lingüística teórica. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979. SAPIR, Edward. Language. New York: Harper, 1949. VALENZA, Giovanna Mazaro. Problemas na caracterização da classe dos advérbios: o caso do assim. Comunicação apresentada no VI Seminário do CELSUL.