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DIREITO E MATEMÁTICA: UMA
ABORDAGEM INTERDISCIPLINAR
Autores:
Eduardo Luiz Santos Cabette, Delegado de Polícia,
Mestre em Direito Social, Pós – graduado com
especialização em Direito Penal e Criminologia e
Professor de Direito Penal, Processo Penal e
Legislação Penal e Processual Penal Especial na
Unisal e Membro do Grupo de Pesquisa de Bioética
e Biodireito da Unisal;
Marcius Tadeu Maciel Nahur, Delegado de Polícia,
Mestre em Direito e Professor de Filosofia do
Direito no Curso de Direito e de Filosofia Antiga no
Curso de Filosofia da Unisal e Membro do Grupo
de Pesquisa de Bioética e Biodireito da Unisal;
Regina Elaine Santos Cabette, Doutora e Pós Doutorada em Engenharia e Tecnologia
Aeroespacial pelo INPE de São José dos Campos –
SP, Mestre em Física na área de Dinâmica Orbital
e Planetologia pela Unesp e Professora de Física e
Matemática do Curso Lex Center de
Guaratinguetá – SP.
1 – INTRODUÇÃO
O título deste trabalho pode aparentar absurdo ou
induzir a uma relação por demais simples e óbvia.
Absurdo porque pode-se indagar o que teriam em
comum áreas de conhecimento tão heterogêneas? Já a
obviedade encontrar-se-ia na primeira idéia relacional
que vem à mente
entre os dois campos do
conhecimento, qual seja, a Matemática como ciência
auxiliar ou instrumental para o Direito, como nos
exemplos de cálculos trabalhistas, previdenciários,
indenizatórios ou de aplicação e cumprimento de
penas na seara criminal.
Mas, o objetivo é justamente demonstrar que não
é absurdo algum relacionar Direito e Matemática e que
também o contato entre esses campos do
conhecimento pode ir bem adiante da relação auxiliar
ou instrumental sobredita. Há problemas comuns que
atingem de forma muito semelhante aqueles que
pretendem pensar a Matemática e o Direito, o que
justifica o esforço de aproximação desses ramos do
saber sob um enfoque interdisciplinar, explorando um
desses aspectos comuns, que é a questão de estabelecer
se a Matemática e também o Direito são uma realidade
descoberta pelo homem ou um produto, um constructo
da humanidade, do intelecto humano e de suas
relações sociais.
O tema será desenvolvido, iniciando pela
exposição de como se tem manifestado a mesma
indagação em ambas as áreas do saber, bem como as
respostas que vêm sendo apresentadas. Nessa trilha
será possível constatar o quão semelhantes são os
caminhos por que passam as indagações e as soluções
nos dois casos.
Ao final, proceder-se-á a uma retomada das
principais idéias desenvolvidas ao longo do trabalho,
formulando-se as respectivas conclusões.
2 – MATEMÁTICA: DESCOBERTA OU PRODUTO
DA HUMANIDADE?
Conta a história 1 que a Matemática surgiu com a
necessidade dos homens de contar. Na época em que
os agrupamentos humanos retiravam tudo de que
necessitavam diretamente da natureza por meio da
caça, da pesca e da coleta não havia necessidade de
contar, fato este que se alterou quando o homem
passou a fixar-se em territórios, dedicando-se à
agricultura, produção de alimentos, construção de
abrigos, domesticação de animais etc.
Datam de cerca de dez mil anos, na região que
hoje leva o nome de Oriente Médio, as primeiras
formas de agricultura, que passaram a exigir o
conhecimento sobre o clima, as estações, as fases da
Lua, ensejando a criação dos primeiros calendários.
Um dos primeiros processos de contagem foi
aplicado no pastoreio. Os pastores precisavam conferir
seus rebanhos quando do recolhimento após a soltura
1
O INÍCIO do processo de contagem. Disponível em www.pessoal.sercomtel.com.br , acesso em 20/06/2008.
na pastagem. Então desenvolveram um método,
utilizando uma correspondência
entre pequenas
pedras colocadas num saco e cada rês. Quando do
retorno, para cada rês uma pedra era retirada do saco,
podendo o pastor constatar se faltavam cabeças ou se
alguma rês de outro rebanho se agregara ao seu. Por
isso é que a palavra com a qual designamos operações
matemáticas é “cálculo”, derivada do latim “calculus”,
que significa “pedrinha”. Mas, a correspondência de
unidades não era feita somente por meio de pedras.
Também eram utilizados “nós em cordas, marcas nas
paredes, talhes em ossos, desenhos nas cavernas e
outros tipos de marcação”.
Esse embrião primitivo da Matemática surgido da
necessidade humana da contagem pode ser um ponto
de partida para o questionamento que permeia este
trabalho. Afinal, a Matemática, os números, as
contagens, tudo isso e o que mais se seguiu nessa fértil
área do conhecimento, constitui uma descoberta ou
uma criação da humanidade?
Aqueles que se debruçaram sobre o tema enfocado
chegaram a duas conclusões básicas divergentes: 2
1)Para alguns a Matemática é “obra da
humanidade”, uma vez que se assenta na intuição do
homem. Portanto, não passa de uma nossa
“construção” ou “invenção”. A esse pensamento tem2
POPPER, Karl Raimund. Em busca de um mundo melhor. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Martins
Fontes, 2006, p. 44.
se dado os nomes de “intuicionismo, construtivismo
ou convencionalismo”.
2)Para outros a Matemática “é um campo objetivo
existente por si mesmo”. Trata-se de uma área
infinitamente prenhe de “verdades objetivas que não
criamos, mas que nos confrontam objetivamente”,
podendo ser descobertas. A essa concepção da
Matemática tem se conferido a nomenclatura de
“platonismo”.
O debate sobre a questão vem tendendo a
apresentar as duas concepções acima mencionadas
como antagônicas e inconciliáveis. Não obstante, Karl
Popper apresenta uma interpretação conciliadora ou
eclética que nos parece bastante adequada.
O autor em destaque aponta, por exemplo, a
“seqüência infinita dos números naturais”. Ela é
realmente uma nossa “invenção lingüística; nossa
convenção; nossa construção”. Mas, isso não é
inconciliável com o fato de que ela reflita uma
realidade que passou pelo intelecto humano para ser
manifestada. 3 Observe-se
que o processo de
“contagem” é produto exclusivo humano, mas o
chamado “senso numérico”, ou seja, a percepção de
falta ou acréscimo de elementos em um conjunto, está
presente mesmo entre os chamados “seres irracionais”,
3
Op. Cit., p. 44.
conforme demonstram fartamente os estudos de
etologia. 4
Assim sendo, os números não são criados sem
assento em uma realidade, ou seja, sem
correspondência com fatos. 5 Tanto isso é verdade que
no desenvolvimento da Matemática surgem inúmeros
problemas que emergem em um “mundo objetivo”,
sem nem mesmo precisarem do concurso da vontade
humana. Eles não são criados, mas efetivamente
descobertos no seio de “um mundo objetivo, que, de
fato, inventamos ou criamos, mas que (como toda
invenção) se objetiva, se liberta de seus criadores e se
torna independente de sua vontade”. 6
Retomando a série infinita de números naturais,
podemos com Popper constatar que ela é “um produto
da linguagem e do pensamento humano”. Mas, ao
mesmo tempo é fato que existe um infinito de números
inteiros que supera em muito, muitíssimo, aquilo que
um dia poderia ser sequer pronunciado por um homem
ou mesmo utilizado através dos recursos da
informática mais avançada. Também há um infinito de
equações e relações verdadeiras e falsas entre esses
números e elas são muito mais do que podemos ou
poderemos “designar como verdadeiro ou falso”.
Surgem, independentemente do concurso da criação
humana, “problemas novos e inesperados, como, por
4
O INÍCIO do processo de contagem. Disponível em www.pessoal.sercomtel.com.br , acesso em 20/06/2008.
POPPER, Karl Raimund. Op. Cit., p. 108.
6
Op. Cit., p. 44.
5
exemplo, os problemas sem solução da Teoria dos
Números Primos”. São problemas “autônomos”,
independentes da criação humana, mas descobertos
pelos homens. Esses problemas existem ocultos antes
que os matemáticos os descubram e podem ser não
somente “não - solucionados”, mas até mesmo
“insolúveis”. 7
Euclides, por meio de seu conhecido Teorema,
demonstrou que “existe uma quantidade infinita de
números primos”. Por outro lado, a chamada
“Conjectura
de
Goldbach”
permanece
não
comprovada, não demonstrada de forma cabal.
Em 07 de Julho de 1742, Christian Goldbach
enviou uma carta ao matemático suíço Leonard Eüler,
onde propunha a seguinte questão: “qualquer número
inteiro maior do que seis é a soma de três números
primos”? Eüler, por seu turno, verificou que tal
afirmação deveria ser decomposta em outras duas:
“todo número par, maior que dois, é a soma de dois
primos” e “todo número ímpar é a soma de três
primos” 8. Embora em meados dos anos 1930
Vinogradov tenha conseguido comprovar a segunda
afirmativa para números ímpares suficientemente
grandes, a primeira segue ainda por demonstrar. O
melhor resultado até hoje obtido ocorreu em 1995 por
Olivier Ramaré, que conseguiu demonstrar que “todo
7
8
Op. Cit., p. 209.
Destaque-se a ironia de que Eüler expressou a forma final da conjectura, mas ela leva o nome de Goldbach.
número par é a soma de até 6 números primos”. 9
Portanto, a primeira questão, formulada no decorrer do
século XVIII, permanece indemonstrada, embora sua
procedência tenha sido verificada para números da
ordem de 4 x 1014. Também se indaga se seriam
infinitos os números primos que terminam com o
dígito 7 e se há infinitos pares de números chamados
“primos gêmeos”, ou seja, números primos que se
distanciam uns dos outros por apenas duas unidades,
como, por exemplo, (3; 5), (71;73) ou (1000000007;
1000000009). Nenhum desses problemas foi
solucionado. 10
Outro problema refere-se ao “zero”, “número que
precede o inteiro positivo um, e todos os números
positivos, e sucessor do um negativo (-1), e todos os
números negativos”, sendo “definido como a
cardinalidade de um conjunto vazio”. A descoberta do
“zero” tem sua ancestralidade nos povos babilônicos,
hindus e maias. Sua incorporação na Europa, na Idade
Média, se deu pela introdução dos algarismos arábicos,
desenvolvidos pelos matemáticos árabes. 11
A descoberta do “zero” representou “o maior
avanço no sistema de numeração decimal”, mas trazia
consigo uma perplexidade, pois “era difícil imaginar a
9
A CONJECTURA de Goldbach. Disponível em www.educ.fc.ul.pt , acesso em 22/06/2008.
TEORIA dos números. Disponível em www.wikipedia.org , acesso em 18/06/2008.
11
ZERO. Disponível em www.wikipedia.org , acesso em 18/06/2008. Ver também menção sobre o tema em:
FARAH, Paulo Daniel. O Islã. São Paulo: Publifolha, 2001, p. 49.
10
quantificação e a representação do nada, do
inexistente”. 12
Será que isso tornaria o “zero” mero produto de
uma convenção? Uma criação do gênio humano
apartada da realidade, mera abstração?
Na verdade o “zero” se impôs na Matemática,
assim como o “nada” não pôde passar despercebido na
Filosofia. Como aduz Sartre, citando Hegel, “não há
nada no céu e na terra que não contenha em si o ser e o
nada”. 13
Mas, o “nada” tem sido um problema filosófico,
chegando a ser negada sua existência como uma
grande contradição. Dentre os chamados “naturalistas”
ou “filósofos da phisis”, Parmênides, por exemplo,
afirmava que “o ser existe e não pode não ser e o não –
ser não existe e não pode ser”. 14
Por seu turno o existencialista Sartre concebe o
“nada” em indissolúvel conjunção com o “ser”. Para
ele “o nada, não sustentado pelo ser, dissipa-se
enquanto nada, e recaímos no ser. O nada não pode
nadificar-se a não ser sobre um fundo de ser: se um
nada pode existir, não é antes ou depois do ser, mas no
bojo do ser, em seu coração, como um verme”. 15
Note-se que por controversa que seja a existência
do “nada”, assumindo que ele exista, de qualquer
12
ZERO. Disponível em www.wikipedia.org , acesso em 18/06/2008.
SARTRE, Jean – Paul. O Ser e o Nada. Trad. Paulo Perdigão. Petrópolis: Vozes, 1997, p. 54.
14
REALE, Giovanni, ANTISERI, Dario. História da Filosofia – Filosofia Pagã Antiga. Volume 1. Trad. Ivo
Storniolo. São Paulo: Paulus, 2003, p. 59.
15
SARTRE, Jean – Paul. Op. Cit., p. 64.
13
forma razão assiste à afirmação de que “o homem é o
ser pelo qual o nada vem ao mundo”. 16 E vem com ele
sua representação matemática, o “zero”, descoberto
pelo homem no bojo do “ser” da matemática. O fato
de que o homem descobre o “zero” em um “ser” que é
em parte produto de sua formulação lingüística, não
torna o “nada” inexistente e nem o “zero” um mero
símbolo matemático sem correspondência com a
realidade.
O homem não é um espectador passivo que se
deixa levar pelas regras da natureza, apenas
observando-as e compilando-as. Deve-se ter em mente
que o homem se apercebe sensorial e intelectualmente
das coisas e suas relações, impondo a elas uma ordem
e uma normatização de acordo com o seu próprio
entendimento, pois “nosso cosmos traz o selo de nosso
intelecto”. 17
Se pretendermos considerar como “realidade
objetiva existente por si mesma” somente aquilo que
independa de qualquer interferência humana,
chegaremos à conclusão de que nada pode satisfazer a
essa condição. No ato do conhecimento o homem
fatalmente se apropria da realidade, a interpreta, traduz
e molda de acordo com sua percepção. Por isso
Heisenberg alegava que não há nada que se possa, por
exemplo, designar como “ciência da natureza”. Há sim
16
17
Op. Cit., p. 67.
POPPER, Karl Raimund. Op. Cit., p. 169.
“uma ciência do conhecimento do homem sobre a
natureza”, pois “não vivemos numa realidade, vivemos
numa série de descrições de realidade”. 18
O homem descobre a Matemática, se apropria
dela, a traduz e expressa em sua linguagem e, nessa
medida também a cria, mas ela não perde sua
característica de autonomia, a qual se apresenta
claramente nos desenvolvimentos subseqüentes de
novas descobertas de problemas, soluções e de
problemas não – solucionados e até mesmo insolúveis.
3 – DIREITO: DESCOBERTA OU PRODUTO DA
HUMANIDADE?
De forma semelhante ao que ocorre com a
Matemática, surge quanto ao Direito o questionamento
acerca de tratar-se de uma descoberta pelo homem de
normas pré – existentes ou de uma convenção que cria
regras de conduta no seio da sociedade.
Neste campo trata-se basicamente de determinar
se há um chamado “Direito Natural” e, em havendo,
descrever suas relações como o “Direito Positivo”.
Mas, com o surgimento do “Positivismo Jurídico”
em contraposição ao “Jusnaturalismo”, o conceito de
“Direito Natural” é rechaçado como falso e ilusório.
18
HEISENBERG, Werner, apud, THOMPSON, Willian Irwing. As implicações culturais da nova biologia.
In: IDEM (org.). Gaia uma teoria do conhecimento. 3ª ed. Trad. Silvio Cerqueira Leite. São Paulo: Gaia,
2001, p. 21.
Busca-se agora uma “Teoria Pura do Direito”, diga-se
do “Direito Positivo”. É uma ciência do Direito que
pretende tão somente conhecer o seu objeto, dizendo
“o que é e como é o Direito”, não perquirindo “como
deve ser o Direito”. A proposta é a de “garantir um
conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir
desse conhecimento tudo quanto não pertença ao seu
objeto, tudo quando não se possa, rigorosamente,
determinar como Direito”. Busca-se uma libertação da
ciência jurídica de tudo quanto lhe seja estranho. Esse
é o “princípio metodológico fundamental” do
Positivismo Jurídico, 19 que reduz a descoberta do
Direito ao estudo das normas jurídicas produzidas pela
sociedade, não admitindo a possibilidade da existência
do Direito como uma realidade objetiva antecedente e
superior ao trabalho de normatização positiva do
homem, o qual inclusive deveria ser guiado por certos
preceitos reitores antecedentes, independentes e
supremos, a serem descobertos. De acordo com o
Positivismo Jurídico esse conceito de um “Direito
Natural” a ser pesquisado para refletir-se no sistema
jurídico positivo não passa de mistificação. Para o
Positivismo Jurídico “não existe outro Direito senão o
positivo” 20 e as normas jurídicas assim produzidas são
produto da criação humana e não resultado de um
19
KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. 6ª ed. Trad. João Baptista Machado. São Paulo: Martins Fontes,
1998, p. 1.
20
BOBBIO, Norberto. O Positivismo Jurídico. Trad. Marcio Pugliesi, Edson Bini e Carlos E. Rodrigues. São
Paulo: Ícone, 1995, p. 26.
suposto desvendamento de uma ordem ou justiça
natural.
Esse embate de idéias não é produto inovador do
século XIX, com o surgimento do Movimento
Positivista preconizado por Augusto Comte e nem
mesmo data do pensamento medieval, com as teses
jusnaturalistas dos grandes filósofos da Igreja Católica
(Santo Agostinho, São Tomás de Aquino). O cerne da
questão acha-se bem antes já na Filosofia Pagã Antiga,
com a formulação dos conceitos de “physis” e
“nomos”, em que já se vislumbra um confronto entre
as leis naturais e as leis humanas, buscando-se na
suposta harmonia do “cosmos” um modelo para a
harmonia e a justiça humana. O debate entre o
acatamento dessa busca de um Direito e de uma Ética
espelhados na ordem natural ou a negação desse
paradigma, apontando para uma normatização humana
independente tem polarizado ao longo dos séculos as
concepções de um Direito e de uma Ética ora
concebidos de forma “heterônoma” (o homem é
guiado por normas que lhe são naturalmente impostas)
ou “autônoma” (o homem cria seu mundo normativo
ético e jurídico de forma independente).
Essa questão remete ao tema do desenvolvimento
da racionalidade do “ethos”. O surgimento dela, nas
origens da cultura ocidental, entre os séculos VII e VI
a. C., é tido como um dos marcos mais destacáveis e
de grande significado em termos de uma profunda
transformação do mundo helênico.
A formação de um “logos” (razão), que
exprimisse a ordem do mundo, dentro de uma
dimensão racional, repercutiu sobre os vários tipos de
“ethos” relativos à conduta na vida e ao próprio
sentido das ações humanas.
A chamada filosofia pré – socrática, como se sabe,
foi dominada pela questão cosmológica. Não significa
que ela tenha excluído o ser humano de suas
considerações. Considerava-o tão somente como parte
do cosmo, como um ente integrante de um todo
cósmico. Anaximandro foi o filósofo da escola jônica
que, inspirado por essa concepção, já buscava refletir
sobre uma racionalidade do “ethos”, a qual ficou
marcada em seu fragmento 1 : “Todos os seres têm de
pagar uns aos outros o castigo de sua injustiça,
segundo a ordem do tempo”. 21
A formação de uma idéia organizadora perpassou
as reflexões de Anaximandro, para quem ser e ordem
seriam indistintos, algo que já se fixava, então como
um pensamento fundamental dos mais antigos para o
mundo ocidental. 22
Da mesma escola jônica, o filósofo pré – socrático
Heráclito, em sua profunda especulação racional,
21
Apud, ABBAGNANO, Nicola. História da Filosofia. Volume I. Trad. Antonio Borges Coelho, Francisco
de Sousa e Manuel Patrício. 5ª ed. Lisboa: Presença, 1991, p36.
22
KAUFMAN, Arthur. A problemática da filosofia do direito ao longo da história. Trad. Marcos Keel. In:
KAUFMAN, Arthur, HASSEMER, Winfried (orgs.). Introdução à filosofia do direito e à teoria do direito
contemporâneas. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 2002, p. 61.
considerava que o “logos” (razão) era determinante
para a “índole do homem, o ‘ethos’, que é o seu
próprio destino (fr. 119)”. 23
Pode-se entender o pensamento de Anaximandro
como uma racionalidade de equivalência. 24 Quanto ao
pensamento de Heráclito, diz-se que ele julgava,
realmente, insondável os limites do espírito humano,
dada a profundidade de sua razão. 25
Quer parecer que não foi por outro motivo que
esse modelo cósmico pré – socrático presidiu os
passos iniciais de uma racionalidade do “ethos”, na
qual se estabeleceu a idéia nuclear da equivalência
extraída do fragmento 1 de Anaximandro, bem como a
destacada fundamentação de Heráclito da ordem do
mundo e da conduta da vida humana na unidade do
“logos” (razão). 26
Uma fenomenologia do “ethos” também colocou,
especificamente, o pensamento heraclitiano como
básico para a construção da Ética, na arena ocidental,
considerando que foi no espaço do “ethos” que o
“logos” (razão) exprimiu o ser do homem e lhe trouxe
a exigência do dever – ser ou do bem em si.
“O ‘ethos’ é, na concepção heraclítica, regido pelo
‘logos’, e é nessa obediência ao ‘logos’ que se dão os
primeiros passos em direção à Ética como saber
23
Apud, ABBAGNANO, Nicola. Op. Cit., 36.
BARNES, Jonathan. The presocratic philosophers. Londres: Routledge and Kegan Paul, 1979, p. 87.
25
Op. Cit., p. 117 – 146.
26
VAZ, Henrique Claudio de Lima. Escritos de Filosofia, Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 44 –
45.
24
racional do ‘ethos’, assim como irá entendê-la a
tradição filosófica do Ocidente”. 27
Além disso, essa racionalidade do “ethos”
emergiu no vasto contexto de uma transformação
radical no estatuto social da vida, a qual assinalaria
uma transição gradativa do mito (“mytho”) à razão
(“logos”), marcando o ritmo histórico do
desenvolvimento dessa racionalidade na cultura
ocidental. 28
A transformação profunda no estatuto social desse
“logos” (razão), iniciada ainda naqueles tempos
helênicos mais remotos, poderia ser designada como
uma espécie de laicização racionalizadora
da
fundamentação discursiva sobre o “ethos”. 29
As vicissitudes que acompanharam o desenvolver
dessa racionalidade do “ethos”, já nos séculos
seguintes – V e IV a.C -, levariam-na a perseguir uma
matriz antropológica bem mais acentuada e destacada,
vale dizer, “necessariamente no âmbito de uma
conceptualidade filosófica”. 30 Isso lhe conferiria um
grau elevado de racionalidade, no plano da
organização da vida humana, ao qual não se havia
chegado até então. Em lugar das tradições, as quais
conduzem à diferenciação cultural e, no limite, até a
eventual rivalidade entre os povos, “a razão humana –
27
Op. Cit., p. 13.
IDEM. Escritos de Filosofia V. Introdução à ética filosófica 2. São Paulo: Loyola, 2000, p. 43 – 44.
29
DÉTIENNE, Marcel. Les maitres de verité dans la Grèce archaïque. Paris: Máspero, 1967, p. 91 – 93.
30
VAZ, Henrique Claudio de Lima. Escritos de Filosofia IV. Introdução à Ética Filosófica 1. São Paulo:
Loyola, 1999, p. 19.
28
pedra angular da filosofia – foi reconhecida desde o
século V a.C. como denominador comum da
humanidade”. O cenário agora é o da chamada
filosofia clássica ou socrática, em que a temática
antropológica e as discussões dela derivadas, entre
elas, a ética e a jurídica, ganharam cuidadosa atenção.
Os helenos acrescentaram uma nova dimensão à
própria história do pensamento humano. Buscando
dirimir muitas de suas dificuldades teóricas
emergentes do próprio avançar civilizacional, o
pensamento filosófico grego teve de forjar para si uma
linguagem, elaborar seus conceitos, enfim, construir
sua própria racionalidade. 31
A formação de um “logos” (razão), capaz de
exprimir a ordem do mundo na ordem da razão, que
parte de um “arche” (princípio) e que é levado a
elaborar uma noção racional da “phisis” (natureza),
repercutiu também sobre vários tipos de discurso a
respeito do sentido da ação humana.
A analogia entre a “physis” (natureza) e o “ethos”
(costume) seria, assim, o plano primeiro sobre o qual
se edificaria uma aprofundada racionalidade do
“ethos” (costume), acompanhando o desenvolvimento
da especulação sobre a “physis” (natureza), que
marcou aquele período axial do pensamento helênico.
Essa analogia foi estimulada pelo fato de que a
VERNANT, Jean – Pierre. As origens do pensamento grego. Trad. Ísis Borges da Fonseca. 14 ª ed. Rio de
Janeiro: Difel, 2004, p. 143.
31
formação do léxico ético obedeceu à transposição
metafórica das propriedades físicas do homem para as
suas qualidades éticas, tornando-se a analogia, desse
modo, o esquema básico do próprio pensar ético. A
correspondência analógica entre “physis” (natureza) e
“ethos” - costume agora suprassumido como “etos” –
atendia à objetividade da eticidade helênica, na qual a
primazia do fim da conduta implicaria uma estrutura
hierárquica das ações humanas. Isso permitia pensar o
mundo do “ethos” (“etos”) de acordo com o modelo de
“Kosmos” (cosmo) ou ordem da natureza. Na
realidade, a analogia entre “physis” (natureza) e
“ethos” (“etos”), tornando a natureza, por excelência,
o objeto de uma refinada racionalidade, trouxe consigo
uma reviravolta conceitual na noção de “ethos”, que
passava de costume em si para um “etos”
suprassumido
pela
razão,
derivando
disso
conseqüências decisivas para o estatuto filosófico da
Ética e do Direito.
O “ethos” (“etos”) real passava a ser, então, aquilo
que estaria de acordo com a razão e que seria
conhecido e entendido, como tal, pelo cultor de uma
reflexão racional.
Os grandes temas sobre os quais incidiria,
diretamente, esse tipo de reflexão, dentro de uma visão
sintética, seriam os seguintes: a lei e o bem, a virtude
ou a existência segundo o bem e o sujeito da ação
ética. 32 Essa demarcação não deixa de ser
emblemática, diante de sua atualidade e dos
problemas, sempre delicados, que tais temas ainda
continuam suscitando.
A querela mais veemente, ao que tudo indica, era
(e ainda é) aquela que se reporta à oposição
inaugurada entre a natureza (“physis”) e a lei
(“nomos”). O seu aspecto dilemático adveio do fato de
que o entrechoque passou a incidir no próprio campo
da analogia entre a natureza (“physis”) e o “etos”
(“ethos”), âmbito em que se buscava, até então,
identificar o caminho para a justificação racional desse
“ethos”.
Os avanços iniciais rumo a toda essa especulação
seriam verificados na seara do processo reflexivo
sobre a lei (“nomos”). Ela passou a ser o foco de toda
uma reflexão deflagrada no sentido de estabelecer uma
investigação racional bastante elaborada sobre o
próprio “ethos” (“etos”). Pode-se dizer que os passos
inaugurais em direção à racionalidade do “ethos” –
“etos” - foram dados no âmbito do “nomos” – lei -,
enquanto justa ordenação da conduta humana. A
respeito da lei, percebe-se o quanto ela passaria a ser
entendida como uma referência basilar para o
comportamento humano, já que a própria evolução do
vocábulo é característica da “indicação de um caminho
que leve a uma fundamentação racional do agir
32
ROBIN, Léon. La morale antique.Paris: Presses Universitaires de France, 1947, p. 1 – 178.
humano, como é fácil observar a propósito dos termos
‘themis’ e ‘dike’”. 33
Desde os tempos helênicos mais remotos, já se
começa a formar o conceito de justiça elaborado com
base na noção de ordem, que dava origem a princípios
e normas de conduta. “Themis” trazia um sentido
diretor de ordenação com um viés ainda bastante
voluntarista. Contudo, progressivamente, “Dike” vai
substituindo “Themis”. “Dike” passava a indicar, sob
um aspecto mais racional, as condutas tidas como
ordenadas e desordenadas, ou seja, justas e injustas.
34
Já se percebia a importância de um ajuste intelectual,
de raiz humana, no próprio plano da vida, o que
implicava a originalidade dessa ordenação descoberta
(não apenas inventada!) chamada Justiça (“dike”). 35
Com as transformações sócio – culturais ocorridas
com a formação da “polis” (cidade – estado), impôs-se
a exigência de uma explicitação do “ethos” (“etos”)
como lei, segundo os atributos ordenadores da
“isonomia” (igualdade) e da “eunomia” (eqüidade –
correspondência com a ordem das coisas).
O objeto de interesse daqueles que, de modo
geral, foram apontados como grandes legisladores
helênicos era a “politeia”, um termo que comportava,
em grego antigo, múltiplas acepções, entre outras,
33
VAZ, Claudio Henrique de Lima. Escritos de Filosofia, Ética e Cultura. São Paulo: Loyola, 1993, p. 48.
AGUIAR, Roberto Armando Ramos de. O que é Justiça: uma abordagem dialética. 2ª ed. São Paulo: Alfa
– Ômega, 1987, p. 27 – 28.
35
TELLES JÚNIOR, Alcides. Discurso, Linguagem e Justiça. São Paulo: RT, 1986, p. 29 – 35.
34
organização política, constituição política, política da
cidade e, ainda, direito da cidade. 36
Um
direito
ordenador
e
equilibrado,
fundamentado na noção primordial de justiça, marcaria
a exigência organizadora da vida gregária, a qual
reclamava uma boa legislação, elaborada com
qualidade mensurante
e com o propósito de
resistência contra todas as formas de “hybris”, uma
espécie de desmesura representativa de uma real
ofensa à ordem das coisas.
Percebe-se que há um processo de formação de
uma noção geral e antiga da justiça como “ordem das
relações humanas ou a conduta de quem se ajusta a
essa ordem”. 37Essa percepção aguçava-se na medida
em que se sentia que estava faltando à organização da
vida social da “polis” (cidade – estado) aquela noção
da medida natural do justo. A “dike” (justiça) aparecia,
então, como mensura fundamental, moderação
legitimadora da lei (“nomos”) porque é natural que
essa mesma lei (“nomos”) seja justa. E ela é justa
enquanto descoberta na ordem natural, ou seja, na
própria natureza (“physis”). A partir disso, o justo
(“dikaion”) passou a ser definido, do mesmo modo,
como predicado do legislador (“nomoteta”), enquanto
BILLIER, Jean – Cassien, MARYIOLI, Aglaé. História da Filosofia do Direito. Trad. Mário de Andrade.
Barueri: Manole, 2005, p. 53.
37
ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. Trad. Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins
Fontes, 2000, p. 593.
36
alguém comprometido com a realização desse justo na
vida gregária.
É preciso dizer que não deixou de existir, por
conta dessa percepção toda, a preocupação constante
com aquela sempre recorrente desordenadora
(“hybris”) (desmesura), a qual se nutria e caracterizava
pela ambição do poder (“pleonexia”), do ter
(“phylargiria”) e do aparecer (“hyperephania”).
Estava aberta a interminável
questão da
manutenção da ordem natural e justa. Foi na passagem
da chamada teoria da virtude – razão para a ontologia
do bem que essa questão ganhou níveis mais
acentuados de preocupação. Significa dizer que estava
em jogo a constituição de uma profunda racionalidade
do “ethos” (“etos”), que se tornaria possível analisar a
analogia entre a ordem da natureza (“physis”) e a
ordem da cidade (“polis”), segundo a categoria da lei
(“nomos”). 38 Lei essa que asseguraria à vida social
uma ordenação sempre mais equilibrada, evitando-se
uma
convivência
humana
conflitiva
e
desestabilizadora da própria coletividade.
“O ‘nomoteta’ e a lei que ele promulga são em si a
expressão (...) dessa ‘média proporcional’, que dará à
cidade seu ponto de equilíbrio (...). Às relações de
força tentar-se-á substituir relações de ‘tipo racional’,
estabelecendo em todos os domínios uma
38
JAEGER, Werner. Praise of Law: the origins of law philosophy and the greeks. London: Routledge and
Kegan Paul, 1960, p. 319 – 351.
regulamentação baseada na medida e visando
proporcionar, ‘igualar’ os diversos tipos de
intercâmbio que formam o tecido social”. 39
Desse
modo,
torna-se
inquietante
e
incompreensível uma coletividade de seres racionais
orientar-se pelo desmedido convencionado e não pelo
naturalmente “justo descoberto” ou pelo “justo
inventado” a partir dessa própria descoberta.
“O justo como mediador entre o bem e seus
beneficiários passa a ser então a forma do ‘ethos’ na
sua transposição aos códigos da razão. Submetido ao
critério do justo, o ‘ethos’, (...) assume a forma estável
da instituição ordenada ao bem da comunidade e que
encontrará sua realização mais elevada na instituição
da sociedade política”. 40
Toda essa preocupação helênica, em outras
palavras, remete à discussão sobre uma radical
oposição entre a lei da natureza (“physis”) e a lei
convencionada do homem (“nomos”), lei esta que
seria artificial e não raras vezes atentatória à própria
ordem natural das coisas. Esse é o universo em
questão. E a inteligibilidade desse universo desafia a
razão. A razão de que trata a Matemática, como uma
categoria fundamental dessa ciência que se faz
presente nos mais incontáveis segmentos da vida
humana. Razão que desafia o Direito, enquanto um
39
40
VERNANT, Jean – Pierre. Op. Cit., p. 99.
Op. Cit., p. 137.
referencial ordenador das igualmente incontáveis
relações intersubjetivas.
“A atividade do homem, quer considerada do
ponto de vista individual, quer do ponto de vista
social, exige um conhecimento tão completo quanto
possível, do mundo que o rodeia. Não basta conhecer
os fenômenos; importa compreender os fenômenos,
determinar as razões de sua produção, descortinar as
ligações de uns com os outros. (...) Quanto mais alto
for o grau de compreensão dos fenômenos naturais e
sociais, tanto melhor o homem se poderá defender dos
perigos que o rodeiam, tanto maior será o seu domínio
sobre a Natureza e as suas forças hostis, tanto mais
facilmente ele poderá realizar aquele conjunto de atos
que concorrem para a segurança e para o
desenvolvimento da sua personalidade, tanto maior,
enfim, será a sua liberdade. A inteligibilidade do
universo, considerado o universo no seu significado
mais geral – mundo cósmico e mundo social – é por
conseqüência, uma condição necessária da vida
humana. Compreende-se, portanto que, desde há
muitos séculos, tenham sido realizados notáveis
esforços no sentido de atingir uma parcela de verdade
sobre a realidade”. 41
Os cultores intransigentes do movimento sofístico
sustentam a idéia de que há um antagonismo intrínseco
entre a lei da natureza – para os quais eqüivale dizer o
41
CARAÇA, Bento de Jesus. Conceitos fundamentais da matemática. 5ª ed. São Paulo: Gradiva, 2003, p. 62.
império da “lei do mais forte sobre o mais fraco” – e a
lei convencionada pelo homem, capaz de escapar a
essa determinação. Seria isso verdade? Nem sempre.
Não há nada que garanta que o homem é capaz de
produzir leis que não reforcem ou até mesmo
intensifiquem a “forçosa força dos mais fortes”.
“No campo do direito e da justiça, a sofística
mobilizou conceitos no sentido de afastar todo tipo de
ontologia ou mesmo todo tipo de metafísica (...) em
torno dos valores sociais. (...) somente os homens
podem fazer regras para o convívio social. (...). De
fato, o que há de comum entre os sofistas é o fato de,
em sua generalidade, apontarem para a identidade
entre os conceitos de legalidade e de justiça, de modo
a favorecer o desenvolvimento de idéias que
associavam à inconstância da lei a inconstância do
justo”. 42
Contudo,
a
cara
noção
de
ordem,
inexoravelmente, reclama a estabilidade, a constância,
por mais difícil e desafiadora que ela seja. É na
incerteza que se navega. 43 Disso já se tem “alguma
certeza”. Se há alguma certeza nesse debate é a de que
nem um naturalismo determinista, nem um
convencionalismo arbitrário trouxeram os melhores
fundamentos ordenadores, mais equilibrados e
42
BITTAR, Eduardo Carlos Bianca, ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. São
Paulo: Atlas, 2001, p. 57.
43
PRIGOGINE, Ilya. O fim das certezas: tempo, caos e as leis da natureza. Trad. Roberto Leal Teixeira. São
Paulo: Unesp, 1996, p. 9.
harmoniosos para as relações humanas. Foi desses
extremos desmedidos que os helênicos quiseram
escapar, em busca de uma onto – antropo – axiologia,
vale dizer, no esforço de constituição de uma ordem
principiológica
e teleológica fundada no ser e
orientada pelo e para o bem que a todos aproveita, já
que seria a expressão mais apropriada de uma reta
razão ordenadora (“orthos logos”). É essa noção de
ordem que sempre foi tão cara tanto à Matemática,
quanto ao Direito e que, ao mesmo tempo, aproxima
essas duas dimensões do saber humano aparentemente
tão distanciadas entre si. Entretanto, é só uma questão
de aparência, e não propriamente de essência. Quando
falta essa percepção é que, invariavelmente, pode se
deixar de ver o que há em comum entre esses
universos com seus propósitos ordenadores, o
matemático e o jurídico, por mais que seus esforços
sejam, a todo tempo, desafiados pelas insondáveis
forças desordenadoras. É a face inquietante da velha,
mas, não envelhecida, especulação em torno das forças
do caos e do cosmo, que assombram e desafiam a
sempre limitada capacidade de compreensão do
intelecto humano.
Aqui, como no caso da Matemática, parece que o
melhor caminho também não é o de uma postura
extremada em qualquer dos pólos antagônicos.
Apregoando a liberdade do homem, não pelo fato
de haver nascido livre, mas por ser portador do ônus
da “responsabilidade” por suas decisões livres, Kant
erige uma “doutrina da autonomia” que humaniza a
Ética sem necessariamente negar a existência de
normas objetivas que devem ser descobertas pelo
homem, guiando seu comportamento moral. 44
Mais
proximamente,
Bobbio
acata um
“Positivismo Jurídico Moderado ou Fraco”, afastando
a tese de que o Direito tem valor “enquanto tal”
porque é “sempre por si mesmo justo”, na medida em
que é produto independente da obra humana. A versão
moderada do Positivismo Jurídico reconhece que o
Direito é sim um valor em si mesmo, mas porque visa
um fim que é um valor, o valor da “ordem”. O Direito
tem, portanto, um valor “instrumental”, o que lhe
confere a condição de criação humana, mas uma
criação que se destina à busca de um certo bem que é
desvelado enquanto tal, o bem da ordem que
certamente só pode ser também uma ordem justa. 45
No setor do Direito Penal, é interessante citar o
caso da conceituação do crime como um “ente natural”
ou como produto da legislação penal, um “ente
normativo” de caráter formal e não material. Embora a
chamada “Criminologia Crítica” tenha se encarregado
de demonstrar que o crime não é um “ente natural”,
mas um produto normativo, não se deve olvidar o fato
da real existência de condutas conflituosas inaceitáveis
44
45
POPPER, Karl Raimund. Op. Cit., p. 170 – 172.
BOBBIO, Norberto. Op. Cit., p. 230 – 238.
e destruidoras do sadio convívio social, para as quais
necessariamente deve haver mecanismos de controle.
A avaliação da criminalidade e do desvio tão somente
como resultados de um procedimento de definições
legais, sem o reconhecimento da existência de
condutas materialmente negativas, produz uma
indesejável ocultação
de “situações socialmente
negativas e de sofrimento reais” que são, em verdade,
pontos de referência objetivos das definições legais de
crimes. 46
Portanto, é impositivo reconhecer que o Direito é
sim um produto da atividade humana, construído no
bojo da sociedade e consistente em convenções
pactuadas por meio de processos sociais e legislativos.
Mas, isso não exclui o fato de que essa atividade
humana tem como substrato a referência a valores e
fins que não são produzidos subjetivamente (de forma
individual ou coletiva), mas que são descobertos pelo
homem e traduzidos e expressos nas fórmulas legais
positivadas e em suas interpretações e aplicações
concretas.
4 – CONCLUSÃO
46
BARATTA, Alessandro. Criminologia Crítica e Crítica do Direito Penal. 2ª ed. Trad. Juarez Cirino dos
Santos. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1999, p. 211.
Intentou-se, no presente trabalho, produzir uma
aproximação interdisciplinar entre uma ciência exata
(Matemática) e uma ciência normativa (Direito). Para
tanto abordou-se uma questão de fundo comum a
ambos os ramos do saber enfocados, qual seja, a de
questionar e definir se tais ciências constituem
realidades descobertas pelo homem ou se são meros
produtos, convenções, criações ou construções do
engenho humano.
Foram expostas duas teses antagônicas nos dois
casos. Na Matemática, sua concepção como “obra da
humanidade” ou como “um campo objetivo existente
em si mesmo”. No Direito, o tradicional embate entre
o “Jusnaturalismo” e o “Juspositivismo”, derivados do
antigo problema filosófico entre “phisis” e “nomos”.
Uma posição conciliadora ou de síntese foi
igualmente apresentada como a melhor resposta aos
questionamentos comuns nesse aspecto da Matemática
e do Direito. Nos dois casos, o antagonismo de
posições extremadas conduz a uma visão reducionista
e simplista, que não é capaz de abarcar a
complexidade e a riqueza das relações entre o objetivo
e o subjetivo; entre a criação e a descoberta, que
caracterizam tanto a Matemática como o Direito.
Oportuno, portanto, encerrar com a observação de
Heisenberg:
“Sob um ponto de vista bastante geral, é
provavelmente verdadeiro que, na história do
pensamento humano, os desenvolvimentos, os mais
fecundos, freqüentemente tiveram lugar naqueles
pontos onde ocorreram convergências de duas linhas
de pensamento distintas”. 47
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Crítica do Direito Penal. 2ª ed. Trad. Juarez Cirino dos
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47
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