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UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE MEDICINA VETERINÁRIA E ZOOTECNIA
RAIVA URBANA: EPIDEMIOLOGIA E CONTROLE
TAMARA LEITE CORTEZ
BOTUCATU – SP
Agosto 2006
UNIVERSIDADE ESTADUAL PAULISTA
FACULDADE DE MEDICINA VETERINÁRIA E ZOOTECNIA
RAIVA URBANA: EPIDEMIOLOGIA E CONTROLE
TAMARA LEITE CORTEZ
Dissertação apresentada junto ao Programa de
Pós-Graduação em Medicina Veterinária para
obtenção do título de Mestre
Orientador: Prof. Dr. José Rafael Modolo
BOTUCATU – SP
Agosto 2006
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA SEÇÃO TÉCNICA DE AQUISIÇÃO E TRATAMENTO
DA INFORMAÇÃO
DIVISÃO TÉCNICA DE BIBLIOTECA E DOCUMENTAÇÃO - CAMPUS DE BOTUCATU - UNESP
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL: Selma Maria de Jesus
Cortez, Tamara Leite.
Raiva urbana: epidemiologia e controle / Tamara Leite Cortez. – 2006.
Dissertação (mestrado) – Universidade Estadual Paulista, Faculdade de
Medicina Veterinária e Zootecnia, Botucatu, 2006.
Orientador: José Rafael Modolo
Assunto CAPES: 50502018
1. Raiva - Epidemiologia
3. Saúde pública
2. Hidrofobia - Prevenção e controle
CDD 614.563
Palavras-chave: Imunização; Programa nacional de profilaxia da raiva; Raiva;
Saúde pública veterinária
ii
TAMARA LEITE CORTEZ
RAIVA URBANA: EPIDEMIOLOGIA E CONTROLE
Data da defesa: 25 de agosto de 2006
Banca examinadora
____________________________
Prof. Adj. José Rafael Modolo
____________________________
Prof. Adj. Hélio Langoni
_____________________________
Prof. Adj. Silvio Arruda Vasconcelos
iii
Dedicatória
Aos meus pais Armando e Mara, minhas
irmãs – Talita, Tiana e Tainá – e meu
irmão Tasso.
Aos meus anjos “Poti” e “Lu”.
iv
Agradecimentos
A todos os que contribuíram ao longo desses anos de mestrado, em especial:
Aos irmãos postiços Henrique Rodrigues pela tradução para o inglês, e a
professora Geovana Veronese pelos acertos da língua no artigo;
Aos professores Maurílio Camello por verificar a metodologia e Ricardo Dias
pela colaboração, mesmo sem terem nada a ver com a dissertação (e mal me
conhecerem);
Aos professores Walter Maurício Corrêa, Célia Nogueira Maurício Corrêa e
Arnold Gottschalk, por iniciarem essa jornada, e especialmente ao prof. Arnold
por relembrar em detalhes essa história;
Ao professor Arnaldo José Ganc pela opinião sincera sobre o texto e pela
valorosa ajuda (e dicas) para enfrentar a banca!!!
Aos membros da banca, em especial os professores Hélio Langoni e Silvio
Vasconcelos, pela contribuição acadêmica que valeram mais que os anos de
mestrado;
Aos colegas de disciplinas pelos longos seminários (e muitos churrascos!),
principalmente aos queridos doutorandos Roger, Liguito e Van e aos
mestrandos Rodrigo, André, Walkíria e Veruska;
Ao pessoal da Equipe de Controle de Zoonoses de Botucatu, em especial ao
Jonas Brant e a Laura Domenico, por participarem dessa teoria na prática;
À querida amiga Evelyn Sue (Monga) por quase me fazer ser expulsa da
UNESP (no mestrado!) e por quem eu perderia inúmeros mestrados;
Aos meus grandes amores (pais e irmãos) por nunca faltar uma palavra de
incentivo e carinho (mesmo quando eu já estava me descabelando!);
Ao querido Paulo Potiara que, com sua paciência e dedicação, me permitiu
escrever essa dissertação...
v
Lista de Figuras
Figura 1. Casos de raiva humana no Brasil de 1990 a 2004
11
Figura 2. Ciclos epidemiológicos da raiva
17
Figura 3. Distribuição mundial da raiva, 2003
42
Figura 4. Casos de Raiva humana por tipo de animal
agressor, 1980-1990
47
Figura 5. Taxa de mortalidade pela raiva humana e reta de regressão. Brasil, 1980 – 1990
50
vi
Lista de Abreviações
CST
Coordenadoria de Serviços Técnicos Especializados
CVE
Centro de Vigilância Epidemiológica
CVS
Challenge Virus Standard
EUA
Estados Unidos da América
FCMBB
Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu
FMVZ
Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia
FUNASA
Fundação Nacional da Saúde
IBGE
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística
OMS
Organização Mundial da Saúde
OPAS
Organização Pan-americana de Saúde
PNPR
Programa Nacional de Profilaxia da Raiva
RNA
Ácido ribonucléico
SP
Estado de São Paulo
UNESP
Universidade Estadual Paulista
SUMÁRIO
RESUMO......................................................................................................................... 1
ABSTRACT..................................................................................................................... 2
1. INTRODUÇÃO........................................................................................................... 3
2. REVISÃO DE LITERATURA.................................................................................. 4
2.1 H ISTÓRICO DA RAIVA ................................................................................................................. 4
2.2 D ISTRIBUIÇÃO DA RAIVA .............................................................................................................. 6
2.2.1 Américas ............................................................................................................................... 7
2.2.2 Brasil ...................................................................................................................................... 9
2.2.2.1 Situação no Estado de São Paulo ...................................................................................... 11
2.3 O QUE É A RAIVA? ...................................................................................................................... 13
2.3.1 Etiologia .............................................................................................................................. 14
2.3.1.1 Tipos de vírus ........................................................................................................................... 14
2.3.2 Epidemiologia.................................................................................................................... 16
2.3.3 Transmissão e patogenia............................................................................................... 18
2.3.4 Clínica e diagnóstico da doença.................................................................................. 20
2.3.5 Tratamento ......................................................................................................................... 21
2.4 I MPORTÂNCIA DE QUIRÓPTEROS EM ÁREA URBANA .............................................................. 22
2.5 Ô NUS SOCIOECONÔMICO DA RAIVA .......................................................................................... 24
2.6 C ARACTERÍSTICAS GERAIS DO PROGRAMA DE CONTROLE DA RAIVA ................................. 25
2.6.1 Campanhas de vacinação contra raiva animal........................................................ 26
2.6.2 Tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica........................... 29
2.6.3 Vigilância epidemiológica .............................................................................................. 30
2.6.4 Educação em saúde ........................................................................................................ 31
2.6.5 Divulgação.......................................................................................................................... 31
2.6.6 Treinamento de capacitação de recursos humanos .............................................. 32
3. TRABALHO CIENTÍFICO .................................................................................... 34
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................... 56
5. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................... 57
Resumo
Tamara Leite Cortez, Raiva urbana: epidemiologia e controle, Botucatu, 2006,
68p., mestrado, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina
Veterinária e Zootecnia
Apesar de ser conhecida desde a antiguidade, ainda hoje, a raiva é uma
doença de distribuição mundial e que causa grande impacto na saúde pública,
principalmente nos países em desenvolvimento que apresentam o cão como
reservatório urbano, sendo o principal transmissor da doença para o homem.
Como conseqüência tem-se um elevado número de mortes humanas ao redor
do planeta, com gastos de recurso público que poderiam ser direcionados para
atividades de prevenção da raiva, uma vez que esta possui alta letalidade.
Desta forma, como ocorreu na maioria dos países da América Latina, o Brasil
criou em 1973 o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva que auxiliou
sobremaneira no controle da enfermidade em todo território nacional.
Palavras-chave: raiva; programa nacional de profilaxia da raiva; imunização;
saúde pública veterinária
Abstract
Tamara Leite Cortez, Human rabies: epidemiology and control, Botucatu, 2006,
68p., masters, Universidade Estadual Paulista, Faculdade de Medicina
Veterinária e Zootecnia
Despite of being known since the antiquity, even today the rabies is a disease
of worldwide distribution that causes big impact in public health, especially at
development countries that have the dog as an urban reservoir, being the
principal transmitter of the disease to the man. As a consequence, the number
of human deaths has increased around the globe, spending public resources
that could be directed to rabies prevention activities, considering the disease
has a high mortality level.
As occurred in most of the countries in Latin
America, Brazil created in 1973 the National Rabies Prophylaxis Program that
helped controlling the disease in the national territory.
Keywords: Rabies, National Rabies Prophylaxis Program, immunization,
veterinary public health.
1. Introdução
Sabe-se, hoje, que a prevenção da raiva humana está diretamente
relacionada ao controle da enfermidade na população animal. Face à ampla
distribuição do vírus no globo e à variedade de espécies que podem funcionar
como reservatório, seu controle exige a aplicação de medidas dirigidas às
espécies de maior relevância epidemiológica na transmissão da doença ao
homem.
Além disso, a raiva pode ser considerada uma das principais epizootias
conhecidas e ainda hoje gera uma grande movimentação político-financeira ao
redor do mundo, com a finalidade de financiar pesquisas científicas, melhora de
infra-estrutura em saúde e principalmente, programas gerais de controle da
doença, como é o caso, no Brasil, do Programa Nacional de Profilaxia da Raiva
(PNPR).
No entanto, observa-se que a criação desses programas, principalmente
em se tratando de América Latina, é recente, remontando à década de 1970. E,
é a partir dessa época que se observa, no Brasil, a estruturação da grande
maioria dos programas estaduais e municipais de controle e profilaxia da
doença e o início do efetivo controle da raiva e conseqüente declínio dos seus
dados históricos.
O trabalho pretende trazer uma revisão bibliográfica ampla e acessível
sobre a raiva, visando contextualizar a leitura e promover a difusão do
conhecimento, dirigida não só a profissionais da área de saúde.
4
2. Revisão de Literatura
2.1 Histórico da raiva
A raiva é uma das doenças mais antigas conhecida pelo homem. Os
primeiros registros encontrados datam do século XXIII a.C. na Mesopotâmia,
citada no Código de Eshnunna como uma doença de grande importância
(BAER, 1991; OPAS, 2004a), que provocava o pagamento de indenização pelo
dono de cachorro “louco” que matasse alguém como conseqüência de sua
mordedura1. Aparentemente era uma doença comum e bastante disseminada,
conhecida por diversas civilizações, sendo que se pode encontrar registros por
toda a história, em relatos políticos, médicos, religiosos, astrológicos, em
desenhos e em textos literários, a exemplo dos Lusíadas de Luis de Camões
(BAER, 1991).
Os estudos sobre a doença também são descritos desde a antiguidade e
por ser uma doença que causava a morte de animais e humanos que tinham
contato com cães “loucos”, muitas especulações sobre tratamentos foram feitas
ao longo dos séculos e nas diversas civilizações (BAER, 1991).
A primeira epizootia de raiva foi descrita em 1271 na região da Francônia
(Europa), onde lobos raivosos atacaram um vilarejo, causando pelo menos 30
mortes humanas (BAER, 1991). Nas Américas, o primeiro relato da doença
ocorreu em 1709, no México, sendo seguido pela introdução da doença em
1741 no Caribe (Barbados). A primeira epizootia na América ocorreu de 1768 a
1771, em Boston (EUA), transmitida pelos cães e raposas. A raiva foi descrita
no Peru em 1803 e apareceu no sul das Américas (Argentina) em 1806, trazida
pelos cães de caça ingleses (BAER, 1991; OPAS, 2004a).
Zinke, em 1804, consegue a transmissão da raiva inoculando saliva de
animais doentes em escoriações feitas em membros anteriores de cães
saudáveis, fazendo com que estes desenvolvessem a doença (BAER, 1991).
1
“Se um cachorro é louco, e as autoridades alertaram o dono; se ele não mantém o cão preso
e este morde um homem e causa sua morte, o proprietário deve pagar dois terços de uma
mina em prata. Se ele morde um escravo e causa sua morte, deve pagar quinze shekels de
prata”. Código de Eshnunna, século 23 a.C.
5
Por sua vez, Galtier faz, em 1879, os primeiros estudos sobre a raiva em
Lion, na França, onde consegue bons resultados em suas pesquisas utilizando
coelhos como animais de experimentação (BAER, 1991).
Estimulado pelos estudos iniciais de Galtier, Louis Pasteur inicia suas
pesquisas sobre a raiva em 1880 (OPAS, 2004a). Ele demonstra que a doença
é transmitida por um vírus, conseguindo, posteriormente, a manutenção de
uma estirpe do agente em laboratório, com período de incubação fixo quando
inoculada intracerebralmente em animais de experimentação (BAER, 1991).
A manutenção de uma estirpe de vírus fixo (CVS) permitiu iniciar os
estudos sobre o desenvolvimento de uma vacina contra a raiva. Louis Pasteur
conseguiu a passagem do vírus em cérebro de coelho e utilizava como vacina
as medulas desses animais, secas em ambiente livre de ar, cada uma com um
período de incubação do vírus (BAER, 1991).
A vacinação era realizada aplicando-se quinze doses da vacina. Como
este esquema mostrou-se efetivo em estudos com cães, Pasteur, em 1885,
aplicou sua vacina no menino Joseph Meister, que nunca chegou a
desenvolver a doença (BAER, 1991; OPAS, 2004a). Nos meses seguintes,
Pasteur tratou diversas pessoas agredidas por animais raivosos, obtendo
sucesso com sua vacina e em 1886 propôs a criação de um instituto destinado
ao estudo da raiva e ao tratamento de pessoas expostas, o Instituto Pasteur de
Paris (BAER, 1991).
O pesquisador argentino Davel trouxe a cepa Pasteur do vírus rábico de
Paris a Buenos Aires de navio, fazendo repasses em coelhos, e após quatorze
meses da primeira vacinação humana realizada por Pasteur, três crianças
uruguaias mordidas pelos cães raivosos foram imunizadas com a vacina
produzida por Davel na América do Sul (LARGHI, 2000).
Em 1903, Remliger demonstra a filtrabilidade do vírus e Negri descreve
corpúsculos de inclusão em células nervosas de cães raivosos (posteriormente
chamados de Corpúsculos de Negri) (OPAS, 2004a).
Em 1911, durante uma epidemia de raiva em animais de produção em
Santa Catarina - Brasil, o pesquisador Antonio Carini sugere a transmissão da
raiva por morcegos hematófagos, hipótese confirmada em 1925 pelos
6
pesquisadores alemães Haupt & Rehaag, ao isolarem o vírus desta espécie,
demonstrando a importância dos quirópteros na cadeia epidemiológica da
transmissão da doença (UIEDA et al., 1996).
Webster e Dawson desenvolvem, em 1939, a prova de inoculação em
camundongos, contribuindo para o diagnóstico da doença, (OPAS, 2004a) e no
Instituto de Bacteriologia do Chile os pesquisadores chilenos Fuenzalida e
Palácios desenvolvem, em 1955, a vacina de cérebro de camundongo lactente,
possibilitando a utilização de um produto mais inócuo e potente em relação aos
que eram usados (LARGHI, 2000).
Mesmo sendo conhecida desde a antiguidade, a raiva representa ainda,
em pleno século XXI, um sério problema em alguns países ao redor do mundo,
especialmente nos que apresentam menor grau de desenvolvimento e onde há
a manutenção do ciclo de transmissão animal doméstico/homem (FUNASA,
2002).
2.2 Distribuição da raiva
A doença se disseminou pelos continentes seguindo as guerras e a
colonização, sendo impulsionada pelo adensamento populacional humano,
aumento da mobilidade humana e animal (OMS, 1984), convívio estreito com
animais de companhia e pelo desequilíbrio ecológico causado pelo homem.
Em 1992 a OMS (OMS, 1992) estimava que: i) a raiva estava presente
nos cães em mais de 80 países; ii) anualmente 4 milhões de pessoas recebiam
tratamento pós-exposição e; iii) mais de 30 mil pessoas morriam após terem
sido mordidas por animais raivosos. Em 99% dos casos de raiva humana o
vírus era transmitido pelos cães e mais de 90% das pessoas que recebiam
tratamento pós-exposição viviam em áreas endêmicas para raiva canina (OMS,
1992).
Estimativas de 2001 sugerem: i) a existência de cerca de três milhões de
pessoas vivendo em áreas de risco de raiva; ii) a ocorrência de uma morte
humana pela doença a cada 10 ou 15 minutos e; iii) a execução de milhares de
tratamentos anti-rábicos pós-exposição a cada hora (SIMPÓSIO, 2001;
BELOTTO, 2000). O número de mortes pela raiva em todo o mundo, estaria
7
situado entre 40.000 e mais de 70.000, sendo que, cerca de 10 milhões de
pessoas receberiam tratamento pós-exposição a cada ano, após serem
expostas a animais suspeitos de raiva (OMS, 2005).
Além disso, os casos de raiva humana são distribuídos de maneira
desigual ao redor do globo. No continente asiático, calcula-se a ocorrência de
35.000 a 55.000 casos humanos de raiva por ano e aproximadamente sete
milhões de pessoas recebendo tratamento anti-rábico com vacina. Na África o
número de mortes humanas pela raiva é estimado entre 5.000 a 15.000 por
ano e cerca de 500.000 pessoas vacinadas contra a doença. Na América
Latina o número de casos de raiva humana se limita a menos de 100 por ano e
a média anual de tratamentos anti-rábicos é de 500.000 pessoas. Na América
do Norte e Europa o número de casos humanos é inferior a 50 e
aproximadamente 100.000 pessoas recebem tratamento anti-rábico pósexposição (BELOTTO, 2000).
Dados confiáveis referentes aos casos de raiva em muitas partes do
mundo são escassos, dificultando conhecer seu impacto real na saúde de
humanos e animais (BELOTTO, 2000; OMS, 2005). Sabe-se que a dimensão
do problema referente ao estabelecimento da enfermidade depende das
relações que existem entre a população humana e seu principal reservatório
animal (OMS, 1984).
De acordo com Belloto (2000), o cão é responsável por mordeduras que
resultam em tratamentos pós-exposição, tanto em países em desenvolvimento
como nos países mais desenvolvidos. Os vírus associados com epidemias em
caninos são importantes em termos de saúde pública (NEL, 2003).
Em países como os da África, as tentativas de controlar a raiva foram
muito menos bem sucedidas. Economias pobres, falta de infra-estrutura,
acesso limitado a imunobiológicos preventivos e a falta de prioridade dada à
raiva em face da AIDS, malária, tuberculose, são algumas razões para a
inabilidade de um melhor controle da raiva neste continente (NEL, 2003).
2.2.1 Américas
8
De maneira geral, o norte do continente Americano (EUA e Canadá)
apresenta a raiva transmitida por animais silvestres, mas parte dos países da
América Latina ainda apresenta a raiva no seu ciclo urbano, sendo o cão, o
principal transmissor da doença para os seres humanos (SCHENEIDER et al.,
1996).
Na América Latina ocorreram, em 1980, 340 casos de raiva humana e
25.586 casos de raiva canina (BELOTTO, 2000). Na década seguinte, de 1989
a 1998, foram relatados 1904 casos de raiva humana, sendo 782 casos
ocorridos (41,1%) na área Andina, 459 (24,1%) no Brasil, 369 (19,4%) no
México, 200 (10,5%) na América Central, 49 (2,6%) no Caribe Latino e 45
(2,4%) no Cone Sul (Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai). Neste mesmo
período foram registrados 81.630 casos de raiva canina (OPAS, 2004c). Em
1999 foram registrados 62 casos humanos e 2.383 casos de raiva canina,
apresentando redução de 86% do número de casos em relação a 1989 (OPAS,
2004c; BELOTTO, 2000).
A Organização Pan-Americana da Saúde, por meio do Centro Panamericano de Zoonoses, implantou em 1969 o primeiro sistema de informação
sobre raiva, que possibilitou a caracterização de áreas de risco, por análise
retrospectiva dos dados e subsidiou as ações de controle e situações
epidemiológicas da doença (OPAS, 2004b).
A partir de 1983, os países da região adotaram uma ação conjunta para
eliminar a raiva canina, colocada em prática pelo estabelecimento do Programa
Regional de Eliminação da Raiva Transmitida pelo Cão nas Américas
(Encontro de Guayaquil) (OPAS, 2004b; SCHENEIDER et al., 2003; BELOTTO,
2000). Como resultado desses esforços, a maioria das grandes cidades e
países, estados ou províncias da América Latina, conseguiu eliminar ou reduzir
significativamente a incidência da raiva transmitida pelo cão (BELOTTO, 2000).
Em 1992, o plano de 1993 – 2000, para Consolidação da Fase de Ataque
Final para Eliminação da Raiva, traçou estratégias e delineou ações que
permitiram o controle da raiva em diversos países Latino-americanos (OPAS,
2004b). No período de 1992 a 2001, o número de casos de raiva humana
apresentou uma importante redução (74%), decrescendo de 227 para 60
casos, respectivamente. O número de casos de raiva humana transmitidos pelo
9
cão, reduziu-se em 73% neste período, decrescendo de 153 casos em 1992
para 41 em 2001 (SCHENEIDER et al., 2003).
Em 2001 ocorreram casos humanos de raiva em apenas sete dos 48
países das Américas. A metade dos casos ocorreu no Brasil (17) e no México
(2), geralmente em áreas com menor desenvolvimento socioeconômico
(SCHENEIDER et al., 2003).
A exemplo da Venezuela, em alguns países a raiva é essencialmente
urbana e sua difusão é favorecida pelo desenvolvimento de novos pólos de
expansão econômica e populacional (ORTIZ, 2003). Esses casos estão
associados: i) a baixas coberturas vacinais canina contra raiva, em áreas
consideradas de alto risco; ii) à falta de vigilância epidemiológica; iii) à ausência
de programas de educação em saúde com falhas no sistema de notificação de
pessoas mordidas, no esclarecimento da importância de vacinar animais de
estimação e na falta de posse responsável; iv) ao atraso na concessão de
verba para executar as intervenções específicas; v) às deficiências nas
atividades de prevenção e controle em níveis regionais (ORTIZ, 2003).
2.2.2 Brasil
No Brasil, a raiva é considerada uma doença endêmica, com distribuição
epidemiológica bastante heterogênea, diretamente relacionada com as
condições socioeconômicas e culturais, com incidência em alguns Estados da
região Sudeste e da região Centro-Oeste, com predominância dos casos nas
regiões Norte e Nordeste, áreas de raiva não controlada2 (ALMEIDA, 1997;
SCHENEIDER et al., 1996; LAZARINI, 2003) e ausência de casos na região
Sul, considerada área de raiva controlada3 (REICHMANN, 2000). Por suas
características continentais e sua diversidade de fauna, o Brasil é um exemplo
da dificuldade de erradicação do vírus rábico, o que se dá, principalmente, pela
2
Área de raiva não controlada: áreas onde o risco de transmissão de raiva pelos cães e gatos
é conhecido e alto (áreas produtivas), ou mais comumente, áreas onde a situação
epidemiológica é desconhecida (área silenciosa). Geralmente não são realizadas atividades de
vigilância, limitando-se basicamente à realização das campanhas anuais de vacinação
(PASTEUR, 2000b).
3
Área de raiva controlada: áreas onde existem serviços de controle da raiva animal que, além
das campanhas anuais de vacinação, desenvolvem atividades de vigilância e observação de
cães e gatos agressores. Nestas áreas o risco de transmissão de raiva pelos cães e gatos é
baixo e conhecido (PASTEUR, 2000b).
10
diversidade de espécies-reservatório e pela adaptação do vírus a novos
hospedeiros dentro de uma área geográfica (REICHMANN, 2000, 2003;
BELOTTO, 2001b).
Com o objetivo de combater a raiva humana pela aplicação de medidas
sistemáticas de controle da doença em animais domésticos e tratamento de
pessoas expostas ao risco de contrair a doença, foi criado, em 1973, o
Programa Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR) (SIMPÓSIO, 2001;
SCHENEIDER et al., 1996). O programa foi estabelecido gradualmente em
todo país, começando suas atividades pelas zonas urbanas das capitais e
regiões metropolitanas, e estendendo-se, posteriormente, às cidades do interior
e à zona rural, abrangendo todos os Estados em 1977 (SCHENEIDER et al.,
1996).
De 1980 a 1990, o PNPR foi devidamente estruturado e em metade deste
período houve uma redução importante nos casos humanos (78%) e caninos
(90%). Neste período o programa atendeu 350.000 pessoas agredidas por
animais e vacinou cerca de 9.000.000 de cães e gatos por ano (SCHENEIDER
et al., 1996).
Em 1995, o Ministério da Saúde foi notificado de 31 casos de raiva
humana e 1035 casos de raiva canina, sendo que os cães estiveram
envolvidos em 83,87% dos casos humanos (ALMEIDA, 1997). De 1996 a 1999,
a média anual de casos de raiva humana foi de 26 casos (ARAÚJO, 2000).
O número de casos notificados de raiva humana no país diminuiu
consideravelmente (figura 1) desde a estruturação do PNPR, observando-se
melhorias no controle da raiva, face ao desencadeamento e direcionamento de
ações como as atividades de eliminação da raiva humana (ARAÚJO, 2000).
11
80 73
70
70
60
60
50
50
40
31
30
22
29*
28 26 26
25 25
21
17
20
2004
2003
2001
2000
1999
1998
1997
1996
1995
1993
1994
1992
1991
0
1990
10
2002
10
Fonte: Adaptado de Instituto Pasteur (2005)
* Dados de 2004 até 05/10
Figura 1. Casos de raiva humana no Brasil de 1990 a 2004
Contudo, apesar dos esforços dispensados com o programa e da
melhoria palpável dos níveis da doença, até o ano de 2003, as estatísticas
apontavam o cão como o principal transmissor da raiva para humanos no
Brasil, seguido pelo morcego e pelo gato (REICHMANN, 2000).
2.2.2.1 Situação no Estado de São Paulo
Face à criação do Instituto Pasteur de São Paulo pelos “Barões do Café”,
em 1903, e sua posterior doação ao Governo do Estado em 1916, São Paulo
foi um dos primeiros Estados a criar um Programa Estadual de Controle da
Raiva em 1975 4. Nesta época o coeficiente anual de incidência da doença era
maior na capital que no interior, demonstrando que a raiva era um problema
nos grandes centros urbanos (TAKAOKA, 2000, 2003).
Nesse contexto, analisando-se a evolução histórica da doença, verifica-se
que antes da década de 40 ocorriam menos de 10 casos de raiva humana por
ano. Entre 1943 e 1947, os casos passaram para aproximadamente 15
casos/ano, com aumento de cerca de 30 casos anuais médios, no período de
4
Inicialmente o Programa de Controle da Raiva do Estado de São Paulo era de
responsabilidade da Coordenadoria de Serviços Técnicos Especializados (CST), passando
para o Centro de Vigilância Epidemiológica (CVE) em 1987 e, a partir de 1996, a coordenação
do Programa passou a ser do Instituto Pasteur de São Paulo (SIMPÓSIO, 2001).
12
1963 a 1967. Nos 15 anos seguintes os casos humanos permaneceram entre
15 e 20 casos anuais (TAKAOKA, 2000), sendo que esse período compreende
a criação do Programa Estadual de Controle da Raiva (1975).
Apesar dos casos de raiva humana apresentarem um aumento
significativo no período em questão, verifica-se, por meio de uma comparação
entre a média anual com os coeficientes de incidência médios por 100.000
habitantes, que os casos anteriores a década de 40 (de 1903 a 1942) não eram
tão baixos, pois a população da época era proporcionalmente menor
(TAKAOKA, 2000).
A partir de 1981, considerando-se a população canina como sendo 10%
da população humana, o Estado atinge cobertura vacinal de 70% e, em 1983,
todos os municípios passam a realizar a campanha anual de vacinação contra
raiva animal (TAKAOKA, 2000). Desta forma verifica-se um expressivo controle
da doença a partir de 1983, apresentando 16 casos humanos entre 1983 e
1992, e quatro casos entre 1993 a 2003 (TAKAOKA, 2003).
Mesmo com a vacinação animal ocorrendo em todos os municípios de
São Paulo, dos 20 casos de raiva humana registrados entre 1983 e 2003, o cão
foi responsável por 79% (15 casos) deles. O último caso de raiva humana
registrado no Estado de São Paulo, no ano de 2001, ocorreu no município de
Dracena, sendo transmitido por um felino. Porém, a variante do vírus
encontrada foi a de morcego (TAKAOKA, 2003).
O Comitê de Coordenação do Programa de Controle da Raiva em São
Paulo não determina o período de vacinação dos municípios, sugerindo apenas
que as campanhas sejam realizadas entre os meses de julho e setembro, a fim
de preservar altos níveis de imunidade na população canina do Estado como
um todo. Como grande parte dos municípios realiza apenas a campanha anual
de vacinação, negligenciando as demais ações previstas no Programa, o
Comitê responsável recomenda que a meta de vacinação canina seja, de no
mínimo, 80% (PASTEUR, 1999).
Corrêa et al. (1972) publicaram o planejamento da campanha de
vacinação anti-rábica em cães para a cidade de Botucatu, SP, considerando: 1)
a estimativa de cães existente no município. 2) a utilização do mapa da cidade
13
– para estabelecer os locais de vacinação. 3) a realização da “Campanha
Publicitária Preparativa” – para a divulgação das datas e locais de vacinação
dos cães.
A experiência descrita por Corrêa et al. (1972), aduz que com este
planejamento foi possível detectar um declínio no número de casos de raiva em
cães e a diminuição de notícias sobre a doença nesses animais em Botucatu.
Nesse sentido verificou-se que, durante um surto da doença ocorrido na cidade
em 1971, cerca de 87% da população canina estimada foi vacinada contra a
raiva e dois meses após a vacinação, o número de cães raivosos levados à
Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu para observação
clínica caiu de um a sete animais por dia, para praticamente zero
De acordo com Arnold (2006), a primeira campanha realizada no
município de Botucatu ocorreu no ano de 1968. Este evento, que se repetiu
anualmente, subsidiou o programa de controle da raiva descrito por Correa et
al., (1972), o que, segundo a literatura consultada, sugere que o município de
Botucatu tenha sido o primeiro do Estado de São Paulo a iniciar uma estrutura
de programa de controle da raiva e a realizar campanha anual de vacinação
contra raiva em cães, que perdura ininterruptamente até hoje.
2.3 O que é a raiva?
A raiva é uma doença viral, infecto-contagiosa, causada por vírus da
família Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus, que acomete todos os mamíferos,
inclusive o homem (antropozoonose). É transmitida pelo contato com a saliva
de animais infectados e pelo caráter neurotrópico do vírus, apresenta um
quadro de encefalite aguda (OMS, 2005; KING, 1998; RENGELL, 1985).
A doença apresenta grande importância epidemiológica, sendo uma das
zoonoses de maior impacto em saúde pública face a sua alta letalidade, pois
ocasiona a morte em praticamente 100% dos casos após o início dos sintomas,
tanto em animais quanto em seres humanos (OMS, 2005). Apresenta alto custo
social e financeiro, seja no tratamento das vítimas ou na manutenção das
medidas de controle (DEL CIAMPO et al., 2000; PASSOS, 1998; BELOTTO,
14
2001b) e dispõe de medidas eficientes de prevenção, tanto em relação ao
homem e quanto à fonte de infecção animal (FUNASA, 2002).
2.3.1 Etiologia
Trata-se de um vírus envelopado, com aspecto de projétil e genoma
constituído por uma fita simples de RNA (TORDO, 1996). Apresenta dois
antígenos principais: um de superfície, glicoproteico, responsável pela
formação de anticorpos neutralizantes e pela adsorção vírus-célula, e outro
interno, nucleoproteico, que é grupo específico (FUNASA, 2002). É pouco
resistente fora do organismo animal, sendo rapidamente inativado por raios
ultravioletas, por dessecação e por solventes orgânicos, como sabão e
detergente (PASTEUR, 2000).
2.3.1.1 Tipos de vírus
O grupo rábico pode ser classificado em sorotipos, utilizando-se técnicas
de biologia molecular, tais como a de anticorpos monoclonais (OMS, 1984). A
implementação destas técnicas permite determinar a origem de amostras
víricas com identificação dos reservatórios animais dos vírus isolados (ITO et
al., 2003) e permite também conhecer a epidemiologia da doença na região,
sendo uma ferramenta importante no delineamento do programa de prevenção
e controle da raiva (CORTÉS, 2003).
Sorotipo 1: cepa padrão (Challenge Virus Standard – CVS). É o vírus
clássico, tem distribuição mundial, sendo encontrada em quase todos os
continentes (exceto na Oceania). Inclui a maior parte dos vírus de campo e das
cepas de laboratório dos distintos países, sendo utilizada na produção de
vacinas (OMS, 1984).
Sorotipo 2: cepa de morcegos de Lagos, na Nigéria, África (Lagos Bat).
Foi isolado pela primeira vez, no ano de 1956, a partir de uma mescla de
encéfalo de morcegos frugívoros em Lagos, e no ano de 1974, a partir de
morcegos frugívoros na Republica da África Central (OMS, 1984). Esses vírus
parecem estar mais relacionados com o vírus Mokola (genótipo 3), porém não
15
tão distantes do vírus da raiva quanto esse. É o único vírus relacionado à raiva
que não foi isolado de humanos (NEL, 2003).
Sorotipo 3: cepa de Mokola, isolada pela primeira vez em musaranhos na
Nigéria. Foi isolado em diversos hospedeiros (homem, animais selvagens e
domésticos) de vários países africanos (OMS, 1984), sendo o único lyssavírus
nunca isolado de morcegos. Possui, porém, um pequeno número de
isolamentos, e dentre todos os genótipos de lyssavírus, é o mais distante da
raiva. Apresenta variação genética entre os Mokolas, semelhante à variação
encontrada entre os isolamentos de vírus de raiva clássica nas diferentes
espécies de hospedeiros (NEL, 2003).
Sorotipo 4: cepa Duvenhage, isolada pela primeira vez em um homem da
África do Sul e posteriormente em morcegos no Zimbábue e no Senegal (OMS,
1984). Este sorotipo parece ser o mais raro dos lyssavírus africanos. Tem-se
relato de apenas três isolamentos e o vírus parece estar mais intimamente
relacionado com o lyssavírus European Bat 1 (genótipo 5) (NEL, 2003).
Sorotipo 5: European Bat 1. Cepa européia isolada a partir de morcegos
insetívoros (provavelmente Eptesicus serotinus). Apesar de já terem sido
descritos em 1954, a identificação do vírus só ocorreu em 1985, quando cem
casos em morcegos foram registrados na Dinamarca e na Alemanha.
Apresenta um caso humano confirmado em 1985 e outro suspeito em 1977. A
vacina de raiva promove imunização marginal a este sorotipo (RUPPRECHT,
1995).
Sorotipo 6: European Bat 2. Cepa também européia, foi isolada pela
primeira vez quando um biólogo suíço, especialista em morcegos, morreu pela
raiva, na Finlândia. Foi isolada mais cinco vezes, em morcegos insetívoros
europeus (Myotis dasycneme) e possui imunização marginal pela vacina de
raiva (RUPPRECHT, 1995).
Sorotipo 7: Australian Bat, formalmente denominado Pteropid bat vírus.
Cepa australiana isolada pela primeira vez em 1996, sendo encontrado em
diversas
espécies
de
morcegos
australianos
(macroquirópteros
e
microquirópteros), causando a morte de duas pessoas. Foram encontradas
duas variantes do vírus sendo que são intimamente relacionados ao vírus
16
clássico. Até então a Austrália era considerada zona livre de raiva
(AUSTRÁLIA, 2006).
Sorotipo 8: Aravan, cepa asiática, isolada em um morcego (Myotis blythi),
em 1991, durante procedimentos de vigilância em quirópteros coletados na
região de Osho, Quirguízia (ou Quirguistão), ocorridos entre os anos de 1988 e
1992. Resultados de pesquisas nos Estados Unidos e na Inglaterra
demonstraram que o Aravan difere de todas as outras estirpes. Análises
filogenéticas indicam que essa cepa não pertence ao grupo do vírus da raiva
(ARAY et al., 2003).
A epidemiologia molecular demonstra que na África, a raiva associada a
espécies caninas, tanto selvagens quanto domésticas, está intimamente
relacionada com as linhagens de vírus européias ou cosmopolitas (NEL, 2003).
Como este Continente apresenta grande diversidade de lyssavírus, com
grandes variações biológicas e abundância de vírus de raiva clássica
associados com a vida selvagem, animais domésticos e homem, pesquisas de
vírus relacionados ao rábico acabam ficando em segundo plano (NEL, 2003).
As técnicas de identificação viral estão encontrando variantes do vírus
rábico e vírus relacionados a ele não previamente identificados e em diversas
espécies animais. A imunização com vacinas de vírus padrão rábico protege o
homem e os animais contra distintas cepas de vírus da raiva, entretanto, a
diferença entre os vírus da raiva clássica e dos relacionados a ele, sorotipos 2,
3 e 4, faz com que as vacinas comuns não protejam contra uma infecção por
esses últimos (OMS, 1984; NEL, 2003).
No Brasil, o exame de 50 amostras de diversas espécies animais,
procedentes dos Estados de Goiás, São Paulo, Minas Gerais, Tocantins, Mato
Grosso, entre os anos de 1987 e 1999, apontaram o genótipo 1 do gênero
Lyssavirus, demonstrando que as amostras brasileiras estão agrupadas em
dois tipos de reservatórios: cães e morcegos hematófagos (ITO et al., 2003).
2.3.2 Epidemiologia
Por ser uma doença transmitida por qualquer mamífero, a raiva tem
distribuição mundial, sendo que apenas países insulares (Japão e Inglaterra)
17
conseguiram sua erradicação com medidas severas de vigilância e quarentena
(FUNASA, 2002).
A raiva varia em termos geográficos e de espécies afetadas, de acordo
com países e regiões. Face a sua distribuição desigual, em um mesmo país
podem existir áreas livres e outras endêmicas, apresentando eventuais
epizootias. No Brasil a raiva é endêmica, apresentando variações de acordo
com a região geográfica e com grande importância dos quirópteros na
manutenção da cadeia de transmissão selvagem (FUNASA, 2002).
Apresenta quatro ciclos de transmissão: 1) o urbano, que ocorre
principalmente entre cães e gatos; 2) o silvestre, ocorrendo em animais da
fauna local; 3) o rural, em animais de produção e; 4) o aéreo, ocorrendo entre
quirópteros (FUNASA, 2002; LANGONI, 2003) (ver figura 2).
Fonte: adaptado de FUNASA (2002)
FIGURA 2. Ciclos Epidemiológicos da Raiva
18
Em países de regiões desenvolvidas, como a Europa e América do Norte,
o vírus da raiva é mantido principalmente por animais silvestres, geralmente
carnívoros, a partir dos quais a doença é transmitida para animais domésticos
e para o homem. Em contraste, em alguns países da América Latina, Ásia e
África os cães continuam sendo os principais responsáveis pela transmissão do
vírus para outros animais domésticos e para o homem (OMS, 1984, 1992,
1998, 2005; BELOTTO, 2000, 2001a; PASSOS, 1998; REICHMANN, 2000).
Em áreas urbanas de países em desenvolvimento, o cão ainda é referido
como principal elo da cadeia epidemiológica, transmitindo a raiva ao homem
em cerca de 70% dos casos notificados. Além disso, face ao convívio de cães
e gatos em ecossistemas urbanos, a raiva felina pode apresentar aumentos
significativos, com maior importância epidemiológica em algumas regiões
(PASTEUR, 1999).
2.3.3 Transmissão e patogenia
A transmissão da doença se dá pela inoculação do vírus contido na saliva
de um animal infectado em células teciduais de outro saudável, por mordedura,
arranhadura ou lambedura5 (PASTEUR, 2000; OMS, 2005; FUNASA, 2002;
REICHMANN, 2000; KING, 1998; RENGELL, 1985). Quando íntegra, a pele é
uma barreira importante ao vírus, porém as mucosas são permeáveis a este,
mesmo quando intactas (PASTEUR, 2000).
Após penetrar no organismo, o vírus multiplica-se no ponto de inoculação
e atinge o sistema nervoso periférico, realizando migração centrípeta até o
sistema nervoso central. Neste, replica-se, causando encefalite e, a partir daí,
se dissemina por migração centrífuga para vários órgãos, momento em que
atinge as glândulas salivares, onde também se replica e é eliminado pela saliva
(FUNASA, 2002).
A encefalite apresenta degeneração neuronal da medula espinhal e do
cérebro, tendo como característica mais marcante no sistema nervoso central a
5
Mordedura: penetração dos dentes do animal na pele; arranhadura; ferimento causado pelas
unhas ou dentes de animais; Lambedura: quando ocorre o contato da língua do animal com
áreas da pele recentemente escoriadas ou com mucosas íntegras (PASTEUR, 2000b).
19
formação de corpúsculos de inclusão no citoplasma das células neuronais,
conhecidas como corpúsculos de Negri6 (ANDRADE et al., 1999).
Seres humanos geralmente se infectam por contato com cachorros,
gatos, carnívoros selvagens e quirópteros infectados. Animais de produção e
outros herbívoros, quando infectados, também podem transmitir o vírus, o que
acontece mais raramente (OMS, 2005). A literatura cita casos de transmissão
inter-humana ocorrendo por transplante de córnea. Outras formas de
transmissão por vias respiratória, digestiva (em animais) e vertical podem
ocorrer, porém com possibilidade remota (PASTEUR, 2000) (FUNASA, 2002).
Face ao seu neurotropismo, o vírus rábico consegue evadir às defesas do
hospedeiro por um longo período. Sua amplificação no local de inoculação
produz quantidade de vírus suficiente para chegar às terminações nervosas,
porém insuficiente para ser antigênica. No sistema nervoso ultrapassa a
barreira hemato-encefálica, ficando protegido do sistema imune. A produção de
anticorpos neutralizantes se dá somente após a infecção do sistema nervoso
central, em resposta à quantidade maciça de antígeno viral, atingindo seu pico
na fase terminal da doença, próximo da morte do paciente (ZANETTI, 2003).
A doença pode manifestar-se em alguns dias ou até mesmo anos após o
contato com o animal raivoso, porém, com período de incubação médio, de 45
dias em humanos e de dez dias a dois meses em cães (PASTEUR, 2000;
FUNASA, 2002). Essa variação se deve a fatores como: inoculação do vírus
próximo a troncos nervosos, em áreas do corpo com alta densidade de
terminações nervosas; concentração das partículas virais inoculadas; linhagem
do vírus; espécie agressora; idade e estado imunológico da vítima (FUNASA,
2002; ANDRADE et al., 1999).
Os ferimentos são avaliados quanto à profundidade, número e extensão,
e classificados como leves ou graves de acordo com a probabilidade do vírus
entrar em contato com as terminações nervosas da vítima, determinando a
profilaxia a ser adotada (PASTEUR, 2000).
6
Matriz reticulogranular que consiste em estruturas tubulares contínuas com partículas virais
em maturação e apresentam-se como massas eosinofílicas medindo 1-3µ de diâmetro.
Aparecem principalmente em células de Purkinje do cérebro e células piramidais do corno de
Ammon. Surgem também em neurônios do córtex, da medula e de outros centros; assim como
em células de regiões medulares da suprarenal e células nervosas das glândulas salivares
(ANDRADE et al., 1999).
20
A eliminação do vírus pela saliva, em cães e gatos, ocorre de dois a cinco
dias antes da manifestação dos sinais clínicos, persistindo durante toda a
evolução da doença. Na maioria das vezes, o óbito acontece entre quatro e
sete dias após o início dos sintomas (PASTEUR, 2000; REICHMANN, 2000;
FUNASA, 2002), por isso observam-se cães e gatos por dez dias a contar da
data de agressão. Em outros animais este período é desconhecido (FUNASA,
2002), não sendo válido observá-los por dez dias (PASTEUR, 2000).
2.3.4 Clínica e diagnóstico da doença
Em humanos, os sinais inespecíficos duram de dois a quatro dias.
Posteriormente, a infecção progride, com manifestações de ansiedade e
hiperexcitabilidade crescentes, febre, desorientação, delírios, espasmos
musculares involuntários generalizados e/ou convulsões. Há preservação da
consciência alternada com períodos de inconsciência, até a instalação do coma
e evolução para óbito, frequentemente relacionado à falência respiratória
(PASTEUR, 2000; OMS, 2005; FUNASA, 2002).
Em animais, a doença pode apresentar diferentes manifestações clínicas,
variando com a espécie, podendo, no entanto, apresentar-se de todas as
formas independentemente do animal acometido. De maneira geral, pode-se
considerar duas apresentações da raiva em animais: furiosa e paralítica
(FUNASA, 2002).
Em cães e gatos a fase prodrômica dura, em média, três dias e ocorrem
alterações sutis de comportamento. Na maioria das vezes, a raiva em
carnívoros apresenta-se da forma furiosa. Geralmente, o óbito ocorre por
parada das funções cárdio-respiratórias, com paralisia dos músculos
respiratórios e diafragma. A raiva paralítica acomete, de maneira geral, animais
de produção (herbívoros) (FUNASA, 2002; REICHMANN, 2000).
Nos casos clássicos, pode-se fazer um diagnóstico sugestivo para raiva,
combinando sinais clínicos ao curso agudo, com progressão contínua da
doença e morte do paciente entre cinco e dez dias. No entanto, o diagnóstico
final deve ser laboratorial (LANGONI, 2003).
21
Ainda hoje, as principais técnicas para diagnosticar a doença são: i)
pesquisa de antígeno rábico realizada pela prova de imunofluorescência
direta7, apresentando alta sensibilidade, especificidade (FUNASA, 2002) e
diagnóstico rápido; ii) busca de corpúsculos de Negri por exame microscópico
de tecido encefálico; iii) isolamento do vírus da raiva em amostras de tecido ou
por inoculação intracerebral em ratos (OMS, 1984).
As provas podem ser utilizadas isoladas ou concomitantemente, para
evitar resultados equivocados e mais seguros. Vale lembrar ainda que um
resultado positivo indica a presença do vírus, porém um resultado negativo não
exclui totalmente a existência da infecção (OMS, 1984).
Além disso, salienta-se que a utilização de anticorpos monoclonais
permite identificar os vírus e suas variantes, e desta forma classificá-los em
diferentes grupos e relacioná-los às espécies hospedeiras e a sua localização
geográfica (OMS, 1984).
Quanto ao diagnóstico diferencial,
indica-se
que
não
apresenta
dificuldade quando o paciente apresentar sintomas característicos de raiva e
for precedido de contato com animais raivosos, morcegos ou animais
silvestres. Em cães, deve-se diferenciar o diagnóstico com cinomose,
encefalites não-específicas, infestações por helmintos (migração para o
cérebro), intoxicação por estricnina, atropina, doença de Aujeszky, eclampsia e
ingestão de corpos estranhos. Nos felinos o diagnóstico diferencial deve ser
feito com encefalites, intoxicações e traumatismo crânio-encefálico (FUNASA,
2002).
2.3.5 Tratamento
Uma vez que não existe tratamento específico para a raiva, e
considerando sua elevada mortalidade, a prevenção em humanos é
direcionada para o tratamento profilático, sempre que houver suspeita de
exposição ao vírus (FUNASA, 2002). Nestes casos é imprescindível a limpeza
7
Essa prova é realizada pelo exame microscópico, com luz ultravioleta, de amostras de tecidos
postas em contato com um soro anti-rábico marcado com corante fluorescente. Geralmente
são utilizados soros preparados contra antígenos de nucleoproteínas víricas, de especificidade
e título extremamente elevados e demonstra visivelmente a reação antígeno-anticorpo (OMS,
1984)
22
do ferimento com água corrente e sabão ou detergente, seguida da aplicação
de etanol, tintura ou solução aquosa de iodo, visando diminuir o risco de
infecção (FUNASA, 2002; OMS, 2005; OMS, 1984).
Assim que possível, a vítima deve ser encaminhada ao serviço de saúde
para avaliação do ferimento e realização do tratamento pós-exposição, se
necessário, e terapia com antibióticos ou procedimentos antitetânicos (OMS,
1984). É importante avaliar, no momento da agressão, as condições de saúde
do animal agressor, a possibilidade de observá-lo por dez dias (se for cão ou
gato), sua procedência e seus hábitos (FUNASA, 2002).
Após a instalação do quadro clínico, as condutas se limitam a reduzir o
sofrimento do paciente com terapia de suporte até que venha a óbito, o que na
ausência de cuidado intensivo, geralmente ocorre durante os primeiros sete
dias (FUNASA, 2002; OMS, 2005). Deve-se manter o enfermo em quarto
isolado, com pouca luminosidade, evitando ruídos e a formação de correntes
de ar (FUNASA, 2002).
Não existem relatos de casos de imunidade natural em humanos
(FUNASA, 2002). Em apenas alguns casos raros pacientes com quadros
confirmados de raiva não evoluíram para óbito (ESTADOS UNIDOS, 2004;
OMS, 1984). Por esse motivo a doença é considerada grave e a profilaxia em
humanos
potencialmente
infectados
deve
ser
rigorosamente
efetuada
(FUNASA, 2002; PASTEUR, 2000).
2.4 Importância de quirópteros em área urbana
O programa de eliminação da raiva humana, na maioria dos países, está
voltado para o controle da enfermidade no cão (SCHENEIDER et al., 2003),
entretanto, os quirópteros ocupavam, até 2003, no Brasil, o segundo lugar na
transmissão da enfermidade ao homem. A ordem Chiroptera é constituída por
cerca de 950 espécies espalhados por quase todo o globo (TADDEI, 1996).
São os únicos mamíferos que voam, possuindo hábitos crepusculares ou
noturnos e são divididos de acordo com seu hábito alimentar8 (REICHMANN,
8
Podem ser classificados, como: frugívoros, alimentam-se de frutos; nectarívoros, alimentamse de néctar e pólen de plantas noturnas; insetívoros, alimentam-se de insetos; carnívoros,
23
2000). Caracterizam-se por grande mobilidade e encontram condições
favoráveis de alimentação e alojamento em meio urbano (HARMANI, 1996;
PASTEUR, 1999; UIEDA et al., 1996).
Os quirópteros são os principais reservatórios da raiva no meio silvestre, e
por isso apresentam grande importância epidemiológica na cadeia de
transmissão da doença (OMS, 2005; UIEDA et al., 1996), estabelecendo-se,
dessa forma, o risco potencial de reintrodução do vírus rábico em áreas
aparentemente controladas (CORTÉS, 2003; PASTEUR, 1999). Representa
um problema emergente de saúde pública face à expansão das áreas de
ocorrência da doença (BELOTTO, 2000), sendo que todas as espécies de
morcegos podem apresentar infecções rábicas (OMS, 1984).
Quando acometidos pela raiva, os morcegos adoecem e morrem,
apresentando como principais sintomas, vôos diurnos e incapacidade de se
desviar de obstáculos (REICHMANN, 2000). O hábito de farejar animais caídos
e de caçar expõe cães e, principalmente gatos, ao risco de contato com
animais doentes, compondo um elo importante entre os ciclos epidemiológicos
da raiva, tanto para animais de companhia como para o homem (KOTAIT,
1998; PASTEUR, 2000; REICHMANN, 2000).
O risco de transmissão da raiva por morcegos é sempre elevado,
independente da espécie e da gravidade do ferimento (FUNASA, 2002;
PASTEUR, 2000). Quirópteros com alteração de comportamento são suspeitos
de raiva e não devem ser manipulados (HARMANI, 1996; OMS, 1984; UIEDA
et al., 1996). A infecção humana pode ocorrer pela mordedura do animal ao se
defender, pela alimentação dos hematófagos ou pela manipulação dos
morcegos infectados, mesmo sem lesão aparente (REICHMANN, 2000).
Existem três espécies de morcegos hematófagos ou vampiros, sendo o
Desmodus rotundus o principal transmissor da raiva aos mamíferos. Essas
espécies se alimentam de uma ampla gama de animais (OMS, 1984) e só são
encontrados na América Latina e Caribe, do norte do México ao norte da
Argentina e na Ilha de Trinidad (BELOTTO, 2000; OMS, 1984).
alimentam-se de pequenos animais; hematófagos, alimentam-se de sangue (REICHMANN,
2000).
24
Os morcegos hematófagos apresentam importância crescente como
transmissores da raiva ao homem, já que o grande número de animais de
produção propicia um aumento da população de morcegos hematófagos e da
circulação do vírus (TAMOYO et al., 2003) sendo que esses podem utilizar a
espécie humana como fonte de alimento quando há escassez de animais para
alimentação (REICHMANN, 2000).
Isso é comprovado quando se verifica que os casos de raiva advinda de
morcegos têm aumentado em zonas de devastação ambiental e criação de
gado, como a região da Amazônia brasileira. Nos meses de outubro e
novembro de 2005, no estado do Maranhão houve 23 óbitos humanos, como
conseqüência de ataques de morcegos hematófagos (GIBB, 2005).
Morcegos não hematófagos apresentam baixa prevalência de raiva e são
benéficos para o equilíbrio ecológico, auxiliando na dispersão de sementes,
controle de insetos e de animais daninhos à saúde (REICHMANN, 2000). É
imprescindível, portanto, que a população conheça o papel ecológico dos
quirópteros tanto na manutenção do ecossistema quanto na transmissão de
zoonoses (HARMANI, 1996).
2.5 Ônus socioeconômico da raiva
Um único caso de raiva humana representa a falência de um sistema de
saúde (FUNASA, 2002; PASTEUR, 2000). Face a suas características, a raiva
é um importante problema de saúde pública, principalmente por: sua letalidade;
elevado número de casos humanos ao redor do mundo; índice de indivíduos
submetidos a tratamento profilático; alto custo social e financeiro e; quantidade
de pessoas expostas ao risco de adoecer e morrer (BELOTTO, 2000; SÃO
PAULO, 1983).
A maioria dos tratamentos anti-rábicos pós-exposição ocorre em áreas
desfavorecidas de países em desenvolvimento, onde há subnotificação de
casos de raiva humana, falta de diagnóstico e negligência de tratamento. Essas
áreas
além
de
se
caracterizarem
por
um
menor
desenvolvimento
socioeconômico, apresentam o cão como principal transmissor para o homem
25
(SCHENEIDER et al., 2003), sendo o gato um potencial transmissor
(PASTEUR, 2000).
A raiva apresenta um elevado custo social, com grave repercussão em
uma comunidade. (REICHMANN, 2000). Schneider et al. (1996) demonstram
que há maior incidência de casos de raiva nas regiões com maiores
dificuldades socioeconômicas (região Nordeste) e que o controle da doença
ocorreu primeiro em áreas com melhores indicadores sociais (região Sul),
apresentando, além disso, a ausência de casos em pessoas com altos graus
de escolaridade. Desta forma, sugere-se que a raiva ocorra com maior
freqüência em áreas mais carentes e que acomete principalmente pessoas de
nível socioeconômico mais baixo (SCHENEIDER et al., 1996).
Dentre os casos de agressão pelos cães, as crianças são, em geral, as
mais afetadas (DEL CIAMPO et al., 2000). No Brasil o número de agressões de
seres humanos por animais é elevado e a taxa de abandono de tratamentos
anti-rábicos,
preocupante
(ARAÚJO,
2000),
demonstrando
descaso
e
desinformação da população em relação à doença.
Os gastos financeiros são altos, decorrentes dos custos diretos e indiretos
com tratamentos médicos, medicação utilizada e perda de horas de trabalho da
vítima, e consomem recursos públicos que poderiam ser aplicados em
programas de promoção à saúde, o que abrangeria um maior número de
cidadãos (DEL CIAMPO et al., 2000).
2.6 Características gerais do programa de controle da raiva
Para que se realize satisfatoriamente o controle da raiva em um
município, é necessário contar, dentre outros: i) com uma infra-estrutura
operativa; ii) com condições de mobilizar os recursos necessários; iii) possuir
leis que estejam de acordo com as atividades do programa, permitindo a
adoção dos procedimentos previstos e garantindo a gestão dos recursos
obtidos (OMS, 1984).
Além disso, é importante não se esquecer que, a coordenação e a
supervisão de programas ligados ao controle de zoonoses é atribuição de
26
médicos veterinários (BRASIL, 1968) e Pasteur (1999) recomenda que a
coordenação geral do processo também esteja a cargo deste profissional.
O programa deve ser formulado de maneira clara e incluir informações
sobre os objetivos do projeto, bases administrativas e técnicas, plano de
trabalho, organização e gestão do projeto, seu orçamento e financiamento,
evolução e perspectivas e incluir, além disso, um elemento de autoavaliação. É
importante conhecer o risco de exposição e as possibilidades de disseminação
da doença, além de utilizar técnicas eficazes e que sejam aceitas pela
população local e de custo ao alcance da comunidade (OMS, 1984).
Além disso, o PNPR, preconiza como atividades básicas: i) vacinação
canina; ii) tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica; iii)
atividades de vigilância; iv) educação em saúde (CALDAS, 2003; FUNASA,
2002). E pode-se depreender outras atividades de importância no Programa,
como a divulgação da campanha de vacinação animal e a formação e
capacitação de recursos humanos (SCHNEIDER et al.,1996).
E, dentro dessas bases, é importante assinalar, conforme Borges (1998),
que a epidemiologia da raiva está diretamente associada à ecologia das
populações canina e felina e sua compreensão propicia o estabelecimento de
medidas para o planejamento e execução dos programas de controle da raiva.
Essas medidas devem interromper a cadeia de transmissão do vírus, sendo a
vacinação em massa de cães e gatos a principal estratégia para o controle da
raiva urbana em todo o mundo (BELOTTO, 2001b; KING, 1998; PASSOS,
1998), e é o que se passa a observar.
2.6.1 Campanhas de vacinação contra raiva animal
De maneira geral, as medidas de controle da raiva são simples e estão
voltadas para os mamíferos que compõem os ciclos de sua cadeia
epidemiológica. Quando corretamente implementado, o controle é dirigido às
espécies animais e os seres humanos não devem apresentar a doença.
(REICHMANN, 2000). A vacinação como medida de controle da doença
depende do delineamento de um programa de vacinação que considere as
características da vacina, sua atuação no hospedeiro e a epidemiologia da
27
doença, determinando as espécies a serem vacinadas, a proporção da
população imunizada, idade da primeira vacinação, intervalos entre vacinações
e estratégias a serem utilizadas para mobilizar e conscientizar a população
(WOOLHOUSE et al., 1997).
Assim, como parte dos programas de controle da raiva sugeridos pelos
órgãos internacionalmente conhecidos, a campanha de vacinação contra raiva
de cães e gatos é um dos pontos principais para o controle da enfermidade no
Brasil (ALBAS, 2001; SCHENEIDER et al., 1996). Este procedimento é mais
efetivo quando se compara o alto custo de controle da doença nas populações
humanas ao custo do controle no reservatório animal (OMS, 1984). Tem como
objetivo estabelecer uma barreira imunológica que interrompe a transmissão do
vírus na população animal, dificultando sua disseminação, devendo ser
realizada em um curto espaço de tempo e abranger o maior número de cães e
gatos (PASTEUR, 1999).
Sabe-se também que a vacinação maciça de cães e gatos permite a
redução da doença, principalmente quando a cobertura vacinal se mantém
próximo de 80% da população canina existente (BELOTTO, 2000; ORTIZ,
2003). Para diminuir os riscos de introdução da raiva, a vacinação de animais
deve ser realizada em intervalos regulares, que variam de acordo com a vacina
utilizada, sendo que, em campanhas, este intervalo deve considerar a
imunidade efetiva da vacina e o tempo de reposição da população canina e
felina (OMS, 1984).
Nesse aspecto, conhecer a magnitude e distribuição das populações
animais e sua acessibilidade são requisitos essenciais para o planejamento e
avaliação dos programas de vacinação. Quanto maior for a adaptação às
condições sociais e ecológicas do local, maior será a chance de sucesso
(OMS, 1984).
De acordo com a relação estabelecida com a sociedade, os cães e gatos
podem ser classificados como: domiciliados9; semi-domiciliados10; comunitários
9
Domiciliado: animal que pertence a um proprietário e possui mobilidade vigiada (só sai de
casa acompanhado e contido) (OMS, 1984; PASTEUR, 2000b);
10
Semi-domiciliado: pertence a um proprietário, mas permanece fora do domicílio,
desacompanhado, por períodos indeterminados (OMS, 1984; PASTEUR, 2000b);
ou de vizinhança
11
28
e errantes . Em face de sua forma de criação, cães e gatos
12
semi-domiciliados, comunitários e errantes assumem grande importância
epidemiológica, por possuir maior mobilidade e, assim, apresentar maior
dificuldade no controle da vacinação (quando não a sua impossibilidade) (OMS,
1984; PASTEUR, 2000), mantendo os ciclos de diferentes zoonoses e podendo
transmiti-las às pessoas com que têm contato (REICHMANN, 2000).
A estimativa da população animal é um fator fundamental, pois influencia
diretamente os dados de cobertura vacinal (ARAÚJO, 2000) e a campanha
como um todo (PASTEUR, 1999). Conhecendo-se a estimativa de animais a
serem vacinados será efetuado o cálculo dos recursos e a previsão das doses
de vacina necessárias. Desta forma, recomenda-se ainda o acréscimo de 15%
da quantidade de recursos previstos para evitar a falta de material com fatores
como perda, vacinação de felinos, erros de cálculo da população canina,
vacinação de focos de raiva e atividades de rotina (PASTEUR, 1999).
Conhecer os recursos disponíveis, adequando-os às necessidades do
programa, é outro ponto importante para a organização da campanha. Neste
sentido, deve-se preparar uma lista com itens necessários, indicando
quantidades, custos e prazos de entrega (OMS, 1984).
Importa salientar que o sucesso e o planejamento de campanhas
posteriores dependem do procedimento de avaliação. Todos os níveis
envolvidos no planejamento e no desenvolvimento devem participar dela,
visando realizar ajustes e correções. Este momento é propício para se adequar
datas e planejar novos postos de vacinação e a avaliação deve ser divulgada a
todos os interessados, principalmente para a comunidade (PASTEUR, 1999).
Assim, a maioria das cidades do país obteve um declínio significativo na
incidência da raiva canina e humana ao longo do tempo, porém sem
estabelecer o controle da doença (PASTEUR, 1999). Isso se deveu em grande
parte a vacinação em massa de animais que propiciou a quebra do elo
epidemiológico da doença, diminuindo a transmissão de raiva ao homem
11
Comunitário ou de vizinhança: animal aceito por moradores de uma comunidade como
pertencente a esta e dela obtém alimento e moradia, mas permanecem soltos nas ruas (OMS,
1984; PASTEUR, 2000b) e não possui um responsável;
12
Errantes: animais sem dono que permanecem soltos na rua, vivem isolados ou em grupos
(OMS, 1984; PASTEUR, 2000b).
29
(WOOLHOUSE et al., 1997). Portanto, é extremamente importante que a
campanha de vacinação seja realizada de forma criteriosa (PASTEUR, 1999)
2.6.2 Tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica
O tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica visa evitar
que o vírus atinja as terminações nervosas da vítima, uma vez que após o
início dos sintomas a profilaxia não é mais possível (PASTEUR, 2000), sendo
que ela pode ser realizada antes ou após a exposição ao vírus, reduzindo a
mortalidade humana pela doença sem, contudo, interferir diretamente no
processo de transmissão da raiva (SCHENEIDER et al., 1996).
Indivíduos com risco maior ou permanente de exposição ao vírus, por
conta de suas atividades profissionais ou de lazer, devem receber imunização
prévia – esquema de pré-exposição, que é realizado com vacinas (FUNASA,
2002; OMS, 1984; PASTEUR, 2000). Essas pessoas devem fazer controle
sorológico anual e receber uma dose de reforço sempre que os títulos forem
inferiores a 0,5 UI/ml (FUNASA, 2002; PASTEUR, 2000).
Quando uma pessoa acidentalmente se expõe ao risco de contrair a raiva,
indica-se o esquema pós-exposição, que combina a limpeza criteriosa da lesão
com a administração da vacina, associada ou não ao soro ou a imunoglobulina
humana anti-rábica (PASTEUR, 2000). Sempre que possível deve-se
identificar, capturar, observar ou eutanasiar o animal agressor, encaminhandoo para diagnóstico de raiva (OMS, 2005).
Em casos com alto risco de contrair a doença, aplica-se o soro ou a
imunoglobulina anti-rábica humana, infiltrando-se nas lesões a maior
quantidade possível da dose. Ambos são soluções concentradas e purificadas
de anticorpos contra raiva, entretanto o soro anti-rábico é preparado em
eqüídeos (FUNASA, 2002; OMS, 1984; PASTEUR, 2000) e a imunoglobulina
humana hiperimune anti-rábica é preparada a partir de hemoderivados de
indivíduos imunizados (FUNASA, 2002; PASTEUR, 2000).
A imunoglobulina humana é mais segura, porém possui produção
limitada, com baixa disponibilidade e alto custo, o que inviabiliza sua utilização
em larga escala, principalmente em paises endêmicos para raiva canina
30
(FUNASA, 2002; OMS, 2005; PASTEUR, 2000). O soro eqüino é uma
alternativa disponível com menor custo (OMS, 2005), apresentando contudo a
mesma freqüência de reações adversas provocadas por outros soros de
origem animal (OMS, 1984).
Após a criação do PNPR o número de pessoas submetidas a tratamento
anti-rábico
pós-exposição
cresceu
consideravelmente,
passando
de
aproximadamente 103.000 pessoas para 350.000, anualmente (SCHNEIDER
ET AL, 1996).
2.6.3 Vigilância epidemiológica
Existem muitas interfaces entre a raiva animal e humana. A vigilância
epidemiológica permite a detecção de áreas onde há circulação do vírus em
animais (domésticos e silvestres) para evitar a ocorrência de casos humanos e
consubstanciar as medidas de prevenção e controle, auxiliando a tomada de
decisão de médicos, para que seja realizado o tratamento pós-exposição, e a
de veterinários, que devem adotar medidas relativas à observação do animal
envolvido (no caso de cão ou gato) (FUNASA, 2002; PASTEUR, 2000).
Essa atividade permite ainda identificar as fontes de infecção em casos
da doença e as áreas de risco, buscando fatores como: baixa cobertura
vacinal; presença de animais errantes; regime de criação de cães; presença de
casos suspeitos ou confirmados de raiva animal (FUNASA, 2002; OMS, 1984).
O envio de, no mínimo, 0,2% da população canina estimada para exame
laboratorial é importante para a comprovação da circulação viral (FUNASA,
2002; REICHMANN, 2003), e a sua classificação em local de área controlada
ou não para raiva.
A remoção de cães visa diminuir o extrato da população animal que atua
como transmissor de doenças, entretanto, a simples captura destes animais
não apresenta eficiência no controle da raiva muito em face da resistência da
comunidade local e da renovação da população canina da região. Para que
haja contribuição no controle da doença deve-se remover entre 1 e 5% da
população estimada nas áreas de foco de raiva (OMS, 1984; PASTEUR, 2000).
31
2.6.4 Educação em saúde
As atividades de Educação e Promoção da Saúde orientam o processo
educativo que é fundamental para a eliminação da raiva humana e controle da
raiva animal, baseando-se na participação e comunicação social, envolvendo
serviços e profissionais da saúde, escolas, proprietários de animais e a
população em geral (FUNASA, 2002).
Desta forma procura-se estimular a posse responsável de animais e sua
imunização contra raiva, bem como: incentivar a castração; orientar a
população sobre agravos causados por animais e as medidas a serem
adotadas; não valorizar a proteção de animais errantes; identificar animais
suspeitos, divulgar os serviços existentes; estimular o cumprimento do
tratamento profilático anti-rábico humano, evitando o seu abandono e; diminuir
o risco de ocorrência de casos de raiva (FUNASA, 2002).
De maneira geral, todas as atividades de controle de zoonoses se
interligam às atividades de educação em saúde (REICHMANN, 2000), sendo a
divulgação da Campanha Anual de Vacinação Animal um de seus instrumentos
(PASTEUR, 1999).
2.6.5 Divulgação
Nesse sentido, verifica-se que a divulgação é um dos pontos mais
importantes para o sucesso de um programa, contribuindo para o aumento da
cobertura vacinal quando se intensifica a divulgação da campanha de
vacinação antes do início desta. Ela pode ser feita utilizando-se diversos meios
de comunicação, tais como rádios, TV, carro de som, panfletos entre outros
(ARAÚJO, 2000; SCHENEIDER et al., 1996), lembrando que a simples
distribuição de material não garante a difusão e incorporação de conhecimento
por parte da população, sendo importante planejar esta atividade e oferecer à
imprensa material básico para divulgação, além da listagem dos endereços e
datas dos postos (PASTEUR, 1999).
Todas as informações a serem divulgadas devem ser expressas de forma
precisa, com linguagem acessível e compatível à do público alvo. O material
32
deve conter informações relativas à doença, métodos de controle, prevenção
da raiva humana, importância da participação da comunidade e de proprietários
de animais e tópicos referentes à posse responsável de animais de estimação
(PASTEUR, 1999).
2.6.6 Treinamento de capacitação de recursos humanos
Fundamental para o sucesso de uma campanha de vacinação é o
treinamento dos vacinadores, que deve ser realizado de forma consistente,
garantindo que estes entendam sua importância na campanha de vacinação,
estimulem a posse responsável, conheçam as técnicas de vacinação e
conservação de vacinas e orientem adequadamente os munícipes sobre a
doença e a importância de vacinar animais de compania (PASTEUR, 1999).
Dentro desse parâmetro, devem estar incluídos cursos, reuniões técnicas,
atualização de pessoal, que atendam adequadamente à realidade vivenciada
durante o planejamento, execução e avaliação da campanha, bem como sua
operacionalização técnica. Nesse ínterim, o trabalho conjunto das Secretarias
Estaduais de Saúde e Instituições de ensino e pesquisa contribui para a
formação anual de número expressivo de técnicos, que segundo Schneider et
al. (SCHENEIDER et al., 1996) beneficiou, no Brasil, cerca de 400 profissionais
anualmente, entre os anos de 1980 e 1990.
Durante esta etapa, devem ser abordados tópicos sobre a doença, bem
como, sua forma de transmissão; período de incubação; principais animais
envolvidos na cadeia epidemiológica; forma de controlar a raiva em animais de
estimação visando evitar sua disseminação, além de discutir posse
responsável e controle das populações animais. Vale ressaltar a estrutura da
campanha, o tipo de vacina utilizada, importância da manutenção da cadeia de
frio, técnicas de vacinação e contenção de animais, utilização de equipamentos
e produtos, descarte do material utilizado (PASTEUR, 1999).
Os vacinadores devem ser preparados para desempenhar as funções de
contenção, vacinação e registro dos animais vacinados em um posto de
vacinação, conhecendo suas responsabilidades e atribuições. Devem ser
33
submetidos ao esquema de pré-exposição para raiva, sendo cada equipe
composta por, no mínimo, dois vacinadores. (PASTEUR, 1999).
3. Trabalho Científico
ESTRUTURA DE UM PROGRAMA DE CONTROLE DA RAIVA ANIMAL
ANIMAL RABIES CONTROL PROGRAM STRUCTURE
“Estrutura de um programa de controle da raiva animal”
Autora: Tamara Leite Cortez
Mestranda em Medicina Veterinária pela Faculdade de Medicina Veterinária e
Zootecnia – FMVZ/UNESP-Botucatu
End.: Rua Monte Alegre, 1582 – Perdizes, São Paulo-SP CEP: 05014-002
35
ESTRUTURA DE UM PROGRAMA DE CONTROLE DA RAIVA ANIMAL
Resumo
Apesar de ser conhecida desde a antiguidade, ainda hoje, a raiva é uma doença de
distribuição mundial e que causa grande impacto na saúde pública, principalmente nos
países em desenvolvimento que apresentam o cão como reservatório urbano, sendo o
principal transmissor da doença para o homem. Como conseqüência tem-se um elevado
número de mortes humanas ao redor do planeta, com gastos de recurso público que
poderiam ser direcionados para atividades de prevenção da raiva, uma vez que esta
possui alta letalidade. Desta forma, como ocorreu na maioria dos países da América
Latina, o Brasil criou em 1973 o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva que auxiliou
sobremaneira no controle da enfermidade em todo território nacional.
Palavras-chave: raiva; programa nacional de profilaxia da raiva; imunização; saúde
pública veterinária
Abstract
Despite of being known since the antiquity, even today the rabies is a disease of
worldwide distribution that causes big impact in public health, especially at
development countries that have the dog as an urban reservoir, being the principal
transmitter of the disease to the man. As a consequence, the number of human deaths
has increased around the globe, spending public resources that could be directed to
rabies prevention activities, considering the disease has a high mortality level. As
occurred in most of the countries in Latin America, Brazil created in 1973 the National
Rabies Prophylaxis Program that helped controlling the disease in the national territory.
36
Keywords: rabies, national rabies prophylaxis program, immunization, veterinary public
health.
Introdução
A raiva pode ser considerada uma das principais epizootias conhecidas e ainda hoje gera
uma grande movimentação político-financeira ao redor do mundo, com a finalidade de
financiar pesquisas científicas, melhora de infra-estrutura em saúde e principalmente,
programas gerais de controle da doença, como é o caso, no Brasil, do Programa
Nacional de Profilaxia da Raiva (PNPR).
No entanto, observa-se que a criação desses programas, principalmente em se
tratando de América Latina, é recente, remontando à década de 1970. E, é a partir dessa
época que se observa, no Brasil, a estruturação da grande maioria dos programas
estaduais e municipais de controle e profilaxia da doença e o início do efetivo controle
da raiva e conseqüente declínio dos seus dados históricos.
Nesse sentido, o PNPR foi essencial para se atingir hoje, o controle da raiva
em várias regiões e municípios do País, como observado em Curitiba, Florianópolis,
Brasília1. Iniciar-se-á, portanto, com um breve resumo histórico da doença, sua
distribuição mundial e brasileira, para então, abordar o PNPR.
1. Histórico
A raiva é uma das doenças mais antigas conhecida pelo homem. Os primeiros registros
encontrados datam do século XXIII a.C. na Mesopotâmia, citada no Código de
Eshnunna2,3. Aparentemente era uma doença comum e bastante disseminada, conhecida
por diversas civilizações, sendo que se pode encontrar registros por toda a história, em
relatos políticos, médicos, religiosos, astrológicos, em desenhos e em textos literários2.
37
A primeira epizootia de raiva foi descrita em 1271 na região da Francônia
(Europa), onde lobos raivosos atacaram um vilarejo, causando pelo menos 30 mortes
humanas2. Nas Américas, o primeiro relato da doença ocorreu em 1709, no México,
sendo seguido pela introdução da doença em 1741 no Caribe (Barbados). A primeira
epizootia na América ocorreu de 1768 a 1771, em Boston (EUA), transmitida por cães e
raposas. A raiva foi descrita no Peru em 1803 e apareceu no sul das Américas
(Argentina) em 1806, trazida por cães de caça ingleses2,3.
Os estudos sobre a raiva também são descritos desde a antiguidade e por ser
uma doença que causava a morte de animais e humanos que tinham contato com cães
“loucos”, muitas especulações sobre tratamentos foram feitas ao longo dos séculos e nas
diversas civilizações2.
Zinke, em 1804, consegue a transmissão da raiva inoculando saliva de animais
doentes em escoriações feitas em membros anteriores de cães saudáveis, fazendo com
que estes desenvolvessem a doença2. Por sua vez, Galtier, em 1879, faz os primeiros
estudos sobre a raiva em Lion, na França, onde consegue bons resultados em suas
pesquisas utilizando coelhos como animais de experimentação2.
Estimulado pelos estudos iniciais de Galtier, Louis Pasteur inicia seus estudos
sobre a raiva em 18803. Ele demonstra que a doença é transmitida por um vírus,
conseguindo, posteriormente, a manutenção de uma cepa do agente em laboratório, com
período de incubação fixo quando inoculada intracerebralmente em animais de
experimentação2.
A manutenção de uma cepa de vírus fixo (CVS) permitiu iniciar os estudos
sobre o desenvolvimento de uma vacina contra a raiva. Louis Pasteur conseguiu a
passagem do vírus em cérebro de coelho, posteriormente utilizando como vacina a
38
medula desses animais, seca em ambiente livre de ar, cada uma com um período de
incubação do vírus2.
A vacinação era realizada aplicando-se quinze doses da vacina. Como este
esquema mostrou-se efetivo em estudos com cães, em 1885, Pasteur aplicou sua vacina
no menino Joseph Meister, que nunca chegou a desenvolver a doença2,3. Nos meses
seguintes, Pasteur tratou diversas pessoas agredidas por animais raivosos, obtendo
sucesso com sua vacina e em 1886 propôs a criação de um instituto destinado ao estudo
da raiva e ao tratamento de pessoas expostas, o Instituto Pasteur de Paris2.
O pesquisador argentino Davel trouxe, de Paris a Buenos Aires, a cepa Pasteur
do vírus rábico, fazendo repasses em coelhos, e após quatorze meses da primeira
vacinação humana realizada por Pasteur, três crianças uruguaias mordidas por cães
raivosos foram imunizadas com a vacina produzida por Davel na América do Sul4.
Após o sucesso de Pasteur, diversos pesquisadores contribuíram para a
evolução dos conhecimentos sobre a doença. Em 1903 Remliger demonstra a
filtrabilidade do vírus e Negri descreve corpúsculos de inclusão em células nervosas de
cães raivosos (posteriormente chamados de Corpúsculos de Negri)3.
Em 1911, durante uma epidemia de raiva em animais de produção em Santa
Catarina - Brasil, o pesquisador Antonio Carini sugere a transmissão da raiva por
morcegos hematófagos, hipótese confirmada em 1925 pelos pesquisadores alemães
Haupt & Rehaag, ao isolarem o vírus desta espécie, demonstrando a importância dos
quirópteros na cadeia epidemiológica de transmissão da doença5.
Webster e Dawson em 1939 desenvolvem a prova de inoculação em
camundongos e contribuem para o diagnóstico da doença3. No Instituto de Bacteriologia
do Chile, os pesquisadores chilenos Fuenzalida e Palácios, em 1955, desenvolvem a
39
vacina de cérebro de camundongo lactente, possibilitando a utilização de um produto
mais inócuo e potente em relação aos que eram usados4.
Porém, mesmo sendo conhecida desde a antiguidade, a raiva representa ainda,
em pleno século XXI, um sério problema em alguns países ao redor do mundo,
especialmente nos que apresentam menor grau de desenvolvimento e onde há a
manutenção do ciclo de transmissão animal doméstico/homem6. Assim, a atualidade e
importância dos programas de profilaxia da doença são indiscutíveis, sendo que da sua
correta estruturação e implementação depende o sucesso no combate à raiva. E é isso
que se passa a descrever, iniciando-se, portanto, por uma breve explanação sobre a
doença e suas características.
2. O vírus rábico
A raiva é uma doença infecto-contagiosa, viral, causada por vírus da família
Rhabdoviridae, gênero Lyssavirus, que acomete todos os mamíferos, inclusive o homem
(antropozoonose) e pelo caráter neurotrópico do vírus, apresenta um quadro de
encefalite aguda7,8,9.
A doença representa grande importância epidemiológica sendo uma das
zoonoses de maior impacto em saúde pública em face de sua alta letalidade,
ocasionando a morte em praticamente 100% dos casos, após o início dos sintomas, tanto
em animais quanto em seres humanos7. Apresenta alto custo social e financeiro no
tratamento das vítimas e na manutenção das medidas de controle10,11,12 e dispõe de
medidas eficientes de prevenção, tanto em relação ao homem e quanto à fonte de
infecção animal6.
2.1 Etiologia
Trata-se de um vírus envelopado, com aspecto de projétil e genoma constituído por uma
fita simples de RNA13. Apresenta dois antígenos principais: um de superfície,
40
glicoprotéico, responsável pela formação de anticorpos neutralizantes e pela adsorção
vírus-célula, e outro interno, nucleoprotéico, que é grupo específico6. É pouco resistente
fora do organismo animal, sendo inativado rapidamente por raios ultravioletas, por
dessecação e por solventes orgânicos, como sabão e detergente14.
A encefalite apresenta degeneração neuronal da medula espinhal e do cérebro,
tendo como característica mais marcante no sistema nervoso central a formação de
corpúsculos de inclusão no citoplasma das células neuronais, conhecidas como
corpúsculos de Negri15.
2.2 Tipos de vírus
O grupo rábico pode ser classificado em sorotipos utilizando-se técnicas de biologia
molecular, tais como a de anticorpos monoclonais16. A implementação destas técnicas
permite determinar a origem de amostras víricas com identificação dos reservatórios
animais dos vírus isolados17 e conhecer a epidemiologia da doença na região, sendo uma
ferramenta importante no delineamento do programa de prevenção e controle da raiva18.
São conhecidos até o momento oito sorotipos, sendo o principal o sorotipo 1
(Challenge Virus Standard - CVS), que por ser o vírus clássico e ter distribuição
mundial é utilizado na produção de vacinas16. Os demais sorotipos apresentam menor
incidência, sendo eles os sorotipos: 2 (Lagos Bat); 3 (Mokola); 4 (Duvenhage); 5
(Eropean Bat 1); 6 (Eropean Bat 2); 7 (Australian Bat) e; 8 (Aravan)16,19,20,21.
As técnicas de identificação viral encontram variantes do vírus rábico e vírus
relacionados a ele não previamente identificados e em diversas espécies animais. A
imunização com vacinas de vírus padrão rábico protege o homem e os animais contra
distintas cepas de vírus da raiva, entretanto, a diferença entre os vírus da raiva clássica e
dos relacionados a ele, sorotipos 2, 3 e 4, faz com que as vacinas comuns não protejam
contra uma infecção ocasionada por esses agentes16,19.
41
Estudos no Brasil realizados entre os anos de 1987 e 1999 avaliando 50
amostras de diversas espécies animais, procedentes de vários Estados, demonstraram
que as amostras brasileiras pertencem ao sorotipo 1 e estão agrupadas em dois tipos de
reservatórios: cães e morcegos hematófagos17.
2.3 Epidemiologia
A transmissão da doença dá-se pela inoculação do vírus contido na saliva de um animal
infectado em células teciduais de outro saudável, por mordedura, arranhadura ou
lambedura6,7,8,9,14,22. Quando íntegra, a pele é uma barreira importante ao vírus, porém
as mucosas são permeáveis a este, mesmo quando intactas14.
Seres humanos geralmente se infectam por contato com cachorros, gatos,
carnívoros selvagens e quirópteros infectados. Animais de produção e outros herbívoros
quando infectados também podem transmitir o vírus, o que acontece mais raramente7.
De maneira geral, as medidas de controle da raiva são simples e estão voltadas
aos mamíferos que compõem os ciclos de sua cadeia epidemiológica. Quando
corretamente implementado, o controle é dirigido às espécies animais e os seres
humanos não devem apresentar a doença22.
Em áreas urbanas de países em desenvolvimento o cão ainda é referido como
principal elo da cadeia epidemiológica, transmitindo a raiva ao homem em cerca de
70% dos casos notificados. Pelo convívio de cães e gatos em ecossistemas urbanos, a
raiva felina pode apresentar importância epidemiológica em algumas regiões16,23.
A vacinação periódica de animais de estimação representa um ponto
importante dentre as medidas de controle previstas no PNPR24. Enquanto o tratamento
de indivíduos expostos visa reduzir a mortalidade humana pela doença1, a imunização
em massa de cães e gatos interrompe o ciclo de transmissão da raiva pela manutenção
42
de índices imunogênicos protetores, diminuindo o número de animais suscetíveis e sua
conseqüente transmissão ao homem7,16,23,25,26.
3. Distribuição da raiva
Por ser uma doença transmitida por qualquer mamífero, a raiva tem distribuição
mundial (conforme figura I abaixo), sendo que apenas países insulares (Japão e
Inglaterra) conseguiram sua erradicação com medidas severas de vigilância e
quarentena. A doença se disseminou pelos continentes seguindo as guerras e a
colonização, sendo impulsionada por vários motivos, dentre eles, principalmente:
adensamento populacional humano; aumento da mobilidade humana e animal16;
convívio estreito com animais de companhia e; desequilíbrio ecológico causado pelo
homem.
Fonte: Adaptado de OMS27
Figura 3. Distribuição mundial da raiva, 2003
43
Estimativas de 2001 sugerem: i) a existência de cerca de três milhões de
pessoas vivendo em áreas de risco de raiva; ii) a ocorrência de uma morte humana pela
doença a cada 10 ou 15 minutos e; iii) a execução de milhares de tratamentos antirábicos pós-exposição a cada hora28,29. Segundo a OMS7, o número de mortes humanas
por raiva em todo o mundo, estaria situado entre 40.000 e mais de 70.000, sendo que,
cerca de 10 milhões de pessoas receberiam tratamento pós-exposição a animais
suspeitos de raiva a cada ano7.
Além disso, os casos de raiva humana são distribuídos de maneira desigual ao
redor do globo. No continente asiático, calcula-se a ocorrência de 35.000 a 55.000
mortes humanas pela raiva por ano e aproximadamente sete milhões de pessoas
recebendo tratamento anti-rábico com vacina. Na África, esse número é estimado entre
5.000 a 15.000 por ano e cerca de 500.000 pessoas vacinadas contra a doença. Na
América Latina o número de casos de raiva humana tem-se limitado a menos de 100 por
ano e a média anual de tratamentos anti-rábicos é de 500.000 pessoas. Na América do
Norte e Europa o número de casos humanos é inferior a 50 e aproximadamente 100.000
pessoas recebem tratamento anti-rábico pós-exposição29.
A raiva animal também varia em termos geográficos e de espécies afetadas, de
acordo com países e regiões. Em países de regiões desenvolvidas, como a Europa e a
América do Norte, o vírus da raiva é mantido principalmente por animais silvestres,
geralmente carnívoros, pelos quais a doença é transmitida para animais domésticos e
para o homem. Em contraste, em alguns países da América Latina, Ásia e África, os
cães continuam sendo os principais responsáveis pela transmissão do vírus a outros
animais domésticos e ao homem7,11,16,22,29,30,31. Nesse sentido, Belloto29 indica que o cão
é responsável por mordeduras que resultam em tratamentos pós-exposição, tanto em
44
países em desenvolvimento como nos países mais desenvolvidos. Os vírus associados
com epidemias em caninos são importantes em termos de saúde pública19.
3.1 Américas
De maneira geral, o norte do continente Americano (EUA e Canadá) apresenta a raiva
transmitida por animais silvestres, mas parte dos países da América Latina ainda
apresenta a raiva no seu ciclo urbano, sendo o cão, o principal transmissor da
enfermidade aos seres humanos1.
A Organização Pan-Americana da Saúde pelo Centro Pan-americano de
Zoonoses implantou em 1969 o primeiro sistema de informação sobre raiva, que
possibilitou a caracterização de áreas de risco, por análise retrospectiva dos dados e
subsidiou as ações de controle e situações epidemiológicas da doença32.
A partir de 1983, os países do continente americano determinaram adotar uma
ação conjunta para eliminar a raiva canina, colocada em prática pelo estabelecimento do
Programa Regional de Eliminação da Raiva Transmitida pelo Cão nas Américas
(Encontro de Guayaquil)29,32,33. Como resultado desses esforços, a maioria das grandes
cidades e países, estados ou províncias da América Latina conseguiu eliminar ou reduzir
significativamente a incidência da raiva transmitida pelo cão29.
Em 1992, o plano de 1993 – 2000, para Consolidação da Fase de Ataque Final
para Eliminação da Raiva, traçou estratégias e delineou ações que permitiram o controle
da raiva em diversos países Latinos Americanos32. O número de casos de raiva humana
apresentou uma importante redução (74%), de 1992 a 2001, decrescendo de 227 casos
para 60 casos, respectivamente. O número de casos de raiva humana transmitidos por
cão, reduziu-se em 73% neste período, decrescendo de 153 casos em 1992 para 41 em
200133.
45
Em 2001 ocorreram casos humanos de raiva em apenas sete países dos 48 das
Américas. A metade dos casos ocorreu no Brasil (17) e no México (2), em geral em
áreas com menor desenvolvimento socioeconômico33.
4. O Brasil e o PNPR
No Brasil a raiva é considerada uma doença endêmica, com distribuição epidemiológica
bastante heterogênea, diretamente relacionada com as condições socioeconômicas e
culturais, com incidência em alguns Estados da região Sudeste e da região CentroOeste, com predominância dos casos nas regiões Norte e Nordeste, consideradas áreas
de raiva não controlada1,25,34 e ausência de casos na região Sul, considerada área de
raiva controlada22. Por suas características continentais e sua diversidade de fauna, o
Brasil é um exemplo da dificuldade de erradicação do vírus rábico, o que se dá,
principalmente, pela diversidade de espécies reservatório e pela adaptação do vírus a
novos hospedeiros dentro de uma área geográfica12, 22,35.
Com o objetivo de combater a raiva humana pela aplicação de medidas
sistemáticas de controle da doença em animais domésticos e tratamento de pessoas
expostas ao risco de contrair a doença, foi criado em 1973, a partir de um convênio
firmado entre o Ministério da Saúde, o da Agricultura, a Central de Medicamentos e a
Organizarão Pan-americana de Saúde, o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva
(PNPR)1,28. O Programa foi estabelecido de forma gradual em todo território nacional,
iniciando suas atividades pelas zonas urbanas das capitais e regiões metropolitanas, e
passando a abranger, posteriormente, as cidades do interior e a zona rural, estendendose a todos os Estados em 19771.
O PNPR vinha a estabelecer, como objetivo, o combate da enfermidade em
seres humanos por meio de atividades sistemáticas, sendo o controle da raiva em
animais domésticos e o tratamento de pessoas agredidas ou com risco de contrair a
46
doença, suas principais características. Como necessidade advinda destas atividades, o
PNPR possibilitou a elaboração e implementação de normas técnicas para o controle da
raiva, a expansão da rede de laboratórios para diagnóstico, bem como a instituição de
um sistema específico de vigilância epidemiológica1.
Dentro desses objetivos centrais, é possível delinear o que se pode chamar de
atividades básicas do Programa, preconizadas pelo PNPR, que são: i) vacinação canina;
ii) tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica; iii) atividades de
vigilância; iv) educação em saúde23. Além disso, conforme estabelecem Schneider et
al.1, pode-se depreender outras atividades de importância no Programa, como a
divulgação da campanha de vacinação animal e a formação e capacitação de recursos
humanos.
De acordo com esse modelo, observa-se que, de 1980 a 1990, o PNPR foi
devidamente estruturado e em metade deste período houve uma redução importante nos
casos de raiva humanos (78%) e caninos (90%)1.
Em 1995 o Ministério da Saúde foi notificado de 31 casos de raiva humana e
1035 casos de raiva canina, sendo que os cães estiveram envolvidos em 83,87% dos
casos humanos25. De 1996 a 1999, a média anual de casos de raiva humana foi de 26
casos36. Até o ano de 2003, as estatísticas apontavam o cão como o principal
transmissor da raiva para humanos no Brasil, seguido pelo morcego e pelo gato14,22.
47
Fonte: Schneider et al.1
Figura 4. Casos de Raiva humana por tipo de animal agressor, 1980-1990
Sendo a vacinação periódica de animais de estimação importante dentre as
medidas de controle da doença24, elevados índices humanos de raiva fizeram com que se
estimulasse uma política de vacinação em massa de cães, que por sua vez acarretou o
decréscimo do número de casos humanos da doença à medida que a cobertura vacinal
canina aumentava26. Isso se dava em decorrência da quebra do elo epidemiológico de
transmissão da doença causado pela imunização em massa de cães e gatos7,16,23,25,26.
Neste sentido, observa-se que desde 1997 não há relato de casos de raiva humana
transmitidos pela variante canina no Estado de São Paulo37, o que, segundo
Reichmann35, reflete o controle epidemiológico da doença em animais de estimação.
No que tange ao tratamento de pessoas expostas ao risco de infecção rábica,
Schneider et al.1 indicam que após a criação do Programa o número de pessoas
atendidas cresceu consideravelmente, passando de aproximadamente 103.000 pessoas
para 350.000 anualmente. Com essa atividade busca-se reduzir a mortalidade humana
pela doença sem, contudo, interferir diretamente no processo de transmissão da raiva1.
Outro fator essencial dentro do PNPR é a atividade de vigilância. A vigilância
epidemiológica permite a detecção de áreas onde há circulação do vírus em animais
48
(domésticos e silvestres), visando evitar a ocorrência de casos humanos e
consubstanciar as medidas de prevenção e controle6,14, e identificar as fontes de
infecção em casos da doença e as áreas de risco, buscando fatores como: baixa
cobertura vacinal; presença de animais errantes; regime de criação de cães; presença de
casos suspeitos ou confirmados de raiva animal6.
Além disso, o envio de amostras de animais para diagnóstico é importante para
a comprovação da circulação viral6, permitindo classificar o local como área controlada
ou não para raiva. Assim com a observação de cães e gatos agressores por 10 dias,
permite-se evitar que pacientes agredidos por esses animais não infectados pelo vírus
sejam submetidos desnecessariamente aos tratamentos pós-exposição6,14.
Oficialmente a educação em saúde faz parte do PNPR, entretanto até o fim da
década de 90 esta ação não possuía um programa, sendo realizado apenas em locais
específicos e ficando restrito à elaboração de material para divulgação das atividades
preventivas1. De maneira geral as atividades de educação e promoção da saúde orientam
o processo educativo que é fundamental para a eliminação da raiva humana e controle
da raiva animal6. Desta forma procura estimular a posse responsável de animais e sua
imunização contra raiva, bem como, incentivar a castração, orientar a população sobre
agravos causados por animais e as medidas a serem adotadas, não valorizar a proteção
de animais errantes, identificar animais suspeitos, divulgar os serviços existentes,
estimular o cumprimento do tratamento profilático anti-rábico humano e evitar seu
abandono e diminuir o risco de ocorrência de casos de raiva6.
Considerando a divulgação da campanha um dos instrumentos de educação em
saúde23, é importante salientar, conforme Schneider et al.1, que este ponto foi essencial
para se atingir uma cobertura vacinal satisfatória, utilizando-se meios de comunicação
como rádio, televisão e sistemas de alto-falantes, procurando envolver toda a população,
49
principalmente as crianças. Além disso, a realização da campanha em agosto aproveita a
crendice popular de este ser o mês do cachorro louco, o que acaba por auxiliar a fixação
do período da campanha pela comunidade1.
A formação de recursos humanos também se constitui em um relevante
aspecto do PNPR. Dentro deste parâmetro, devem estar incluídos cursos, reuniões
técnicas, atualização de pessoal e que atendam adequadamente a realidade vivenciada
durante o planejamento, execução e avaliação da campanha, bem como sua
operacionalização técnica. Nesse ínterim o trabalho conjunto das Secretarias Estaduais
de Saúde e Instituições de ensino e pesquisa contribui para a formação anual de número
expressivo de técnicos, que segundo Schneider et al.1 beneficiou cerca de 400
profissionais anualmente, entre os anos de 1980 e 1990.
Além
disso,
esta
atualização
profissional
atende
as
exigências
e
recomendações trazidas por órgãos internacionais de combate à raiva, como a OMS, que
incluem dentro deste escopo o intercâmbio de dados e a formação profissional sobre a
raiva16.
Especificamente, em se tratando do Estado de São Paulo, pode-se dizer que muito em face da existência do Instituto Pasteur de São Paulo, criado em 1903 pelos
“Barões do Café” e posteriormente doado ao governo do Estado em 1916, - ele foi uma
das primeiras unidades da federação a criar um Programa Estadual de Controle da
Raiva, o que ocorreu em 197526,37.
Nesse contexto, analisando a evolução histórica da doença, verifica-se que
antes da década de 40 ocorriam menos de 10 casos de raiva humana por ano. Entre 1943
e 1947 os casos passaram para aproximadamente 15 casos/ano, apresentando um
importante aumento para cerca de 30 casos anuais médios, nos anos de 1963 a 1967.
Nos 15 anos seguintes os casos humanos mantiveram-se entre 15 e 20 casos anuais26,
50
sendo que esse período compreende a criação do Programa Estadual de Controle da
Raiva (1975).
Apesar de, aparentemente, os casos de raiva humana apresentarem um
aumento significativo, verifica-se, por meio de uma comparação entre a média anual
com os coeficientes de incidência médios por 100.000 habitantes, que os casos
anteriores à década de 40 (de 1903 a 1942) não eram tão baixos, face ao fato da
população da época ser proporcionalmente menor26, conforme demonstra o gráfico
abaixo:
Fonte: Schneider et al.1
Figura 5. Taxa de mortalidade por raiva humana e reta de regressão. Brasil,
1980 – 1990
A partir de 1981, considerando-se a população canina como sendo 10% da
população humana, o Estado atinge cobertura vacinal de 70% e em 1983 todos os
municípios passam a realizar a campanha anual de vacinação contra raiva animal26.
Desta forma verifica-se um expressivo controle da doença no Estado de São Paulo a
51
partir de 1983, apresentando 16 casos humanos entre 1983 e 1992 e quatro casos entre
1993 a 200337.
Corrêa et al.38, publicaram o planejamento da campanha de vacinação antirábica em cães para a cidade de Botucatu, SP, considerando: 1) a estimativa de cães
existente no município. 2) a utilização do mapa da cidade – para estabelecer os locais de
vacinação. 3) a realização da “Campanha Publicitária Preparativa” – para a divulgação
das datas e locais de vacinação dos cães.
A experiência descrita por Corrêa et al.38, aduz que com este planejamento
foi possível detectar um declínio no número de casos de raiva em cães e a diminuição de
notícias sobre animais com a doença em Botucatu. Nesse sentido verificou-se que,
durante um surto da doença ocorrido na cidade em 1971, cerca de 87% da população
canina estimada foi vacinada contra a raiva e dois meses após a vacinação, o número de
cães raivosos levados à Faculdade de Ciências Médicas e Biológicas de Botucatu para
observação clínica caiu de um a sete animais por dia, para praticamente zero
De acordo com Arnold39, a primeira campanha realizada no município de
Botucatu ocorreu no ano de 1968. Este evento, que se repetiu anualmente, subsidiou o
programa de controle da raiva descrito por Correa et al.38, o que, segundo a literatura
consultada, sugere que o município de Botucatu tenha sido o primeiro do Estado de São
Paulo a iniciar uma estrutura de programa de controle da raiva e a realizar campanha
anual de vacinação contra raiva em cães, que perdura ininterruptamente até hoje.
Considerações finais
Segundo seu histórico, a raiva é uma doença de importância mundial, principalmente
em países em desenvolvimento e em locais com baixos níveis socioeconômicos. A
ocorrência de casos humanos demonstra falha nos sistemas de saúde, onerando os cofres
públicos e com grande impacto na saúde da população. Por isso é uma doença de
52
destaque e deve ser combatida em todos os países, principalmente nos que ainda
apresentam casos humanos.
Conforme descreve a OMS os programas de controle da raiva devem conter
alguns princípios básicos que precisam ser voltados para a realidade das sociedades em
que serão executados, o que em suma denota que apenas a vacinação em massa de
animais não é suficiente para o controle da doença, devendo-se para tanto desenvolver
as outras atividades previstas.
Somando-se a isso, pode-se dizer com grande margem de acerto, que mesmo
cidades que não possuam o programa de controle da raiva estruturado podem traçar
ações de relativo baixo custo financeiro, mas que, porém, gerem efeitos positivos dentro
das exigências que esse programa impõe. Dentre essas atividades a educação em saúde
– principalmente o trabalho com crianças dentro das escolas – e a divulgação da
campanha favorecem que se atinja as coberturas vacinais desejadas. Além de serem
ações de baixa vinculação financeira, promovem a conscientização da população,
garantindo o êxito do programa a longo prazo.
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39. Gottschalk AF. Comunicação pessoal, realizada em 19/05/2006.
56
4. Considerações finais
Segundo seu histórico, a raiva é uma doença de importância mundial,
principalmente em países em desenvolvimento e em locais com baixos níveis
socioeconômicos. A ocorrência de casos humanos demonstra falha nos
sistemas de saúde, onerando os cofres públicos e com grande impacto na
saúde da população. Por isso é uma doença de destaque e deve ser combatida
em todos os países, principalmente nos que ainda apresentam casos humanos.
Os programas de controle da raiva devem conter alguns princípios
básicos que precisam ser voltados para a realidade das sociedades em que
serão executados, o que em suma denota que apenas a vacinação em massa
de animais não é suficiente para o controle da doença, devendo-se para tanto
desenvolver as outras atividades previstas.
Somando-se a isso, pode-se dizer com grande margem de acerto, que
mesmo cidades que não possuam o programa de controle da raiva estruturado
podem traçar ações de relativo baixo custo financeiro, mas que, porém, gerem
efeitos positivos dentro das exigências que esse programa impõe. Dentre
essas atividades a educação em saúde – principalmente o trabalho com
crianças dentro das escolas – e a divulgação da campanha favorecem que se
atinja as coberturas vacinais desejadas. Além de serem ações de baixa
vinculação financeira, promovem a conscientização da população, garantindo o
êxito do programa a longo prazo.
57
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