UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão Magno Paganelli de Souza São Paulo 2014 Magno Paganelli de Souza A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, como requisito para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun São Paulo 2014 P128r Paganelli, Magno A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão / Magno Paganelli de Souza – 2014. 205 f. : il. ; 30 cm Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014. Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun Bibliografia: f. 185-192 1. Corão 2. Terrorismo 3. Hamas 4. Islamismo 5. Violência I. Título LC BP161 RESUMO Neste trabalho, procurarei investigar influências e tendências na interpretação do Corão sobre o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas, desde a sua formação, em 1986, até a sua eleição em 2006. Sendo o movimento denominado “de resistência”, pressupõe a resistência a ações de ocupação israelenses. Mas o movimento é também de resistência “islâmica”, incorporando motivações religiosas e respostas de cunho religioso a questões políticas e sociais. Assim, procuro desdobramentos práticos dessa resistência as quais tenham caráter violento e sejam inspirados por alguma interpretação do Corão. Como referencial teórico, a pesquisa será apoiada na obra de René Girard, A violência e o sagrado, núcleo da teoria mimética, uma explicação da violência no comportamento humano e da violência na cultura humana. Entendo que tal referencial faz importantes considerações para estudos no campo da violência sem deixar de observar a organização social que a religião provê em determinadas culturas, como é o caso do nosso objeto de pesquisa. A metodologia empregada é a revisão bibliográfica de obras, ensaios e artigos científicos, produzidos por especialistas, no Brasil e fora dele; além de obras de pensadores de considerável importância dentro do Islã. PLAVRAS-CHAVE: Corão, violência, terrorismo, Palestina, Hamas, islamismo. ABSTRACT This work will seek to investigate influences and trends in the interpretation of the Koran that had influenced the Islamic Resistance Movement, Hamas, of its formation in 1986 until his election in 2006. As the movement called “resistance” is assumed to be the resistance actions of Israeli occupation. But the movement is also “Islamic” resistance, incorporating religious motivations and religious responses to political and social issues. Thus, we look for practical consequences of this resistance that have violent nature and are inspired by an interpretation of the Koran. The theoretical research will be supported in the work of René Girard, A Violência e o Sagrado core of mimetic theory, an explanation of violence in human behavior and violence in human culture. I understand that this framework raises important considerations for studies in the field of violence that takes into account the social organization that religion provides in certain cultures, such as the case of our research object . The methodology is a literature review of articles, essays and scientific articles produced by experts in Brazil and abroad, as well as works of thinkers of considerable importance within Islam. KEY-WORDS: Koran, violence, terrorism, Palestine, Hamas, Islam. SUMÁRIO INTRODUÇÃO....................................................................................................5 1. A VIOLÊNCIA..............................................................................................36 1.1 Qual é o nosso cenário?.......................................................................36 1.1.1 A Guerra da Independência........................................................38 1.1.2 A Guerra dos Seis Dias (1967)................................................39 1.1.3 Interlúdio........................................................................................42 1.2 A violência ontem...................................................................................45 1.3 A violência hoje......................................................................................60 1.4 Terrorismo ou pedido de socorro?.........................................................72 1.5 O Islã condena conflitos.........................................................................82 2. O CORÃO E OS PERÍODOS MEQUENSE E MEDINENSE.......................86 2.1 A formação do Alcorão..........................................................................86 2.2 A construção da sociedade islâmica em Medina................................103 2.3 Uma fé, um domínio............................................................................113 2.4 Uma vez dominados bastava avançar?..............................................120 2.5 As releituras da História......................................................................126 2.6 O conceito de Islamuflagem................................................................129 3. O HAMAS: A AÇÃO SOCIAL E A VIOLÊNCIA........................................136 3.1 Leituras do Corão a partir do século XIX.............................................138 3.2 A Irmandade Muçulmana....................................................................142 3.3 Da Irmandade Muçulmana ao Hamas: pensamento e ação social....150 3.4 Mais um lado cruel..............................................................................160 3.4.1 Mais entrevistas...........................................................................167 3.5 O Hamas na fase e na função política................................................171 3.6 O Estatuto do Hamas: Corão, violência e os novos tempos..............173 CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................182 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................185 Anexo 1: Porções do Estatuto do Hamas.......................................................192 Anexo 2: Símbolos do Hamas........................................................................197 Mapa 1: Imagem de satélite do território da Faixa de Gaza...........................153 Quadro 1: Ataques do Hamas de 1990 a 2006..............................................155 Quadro 2: Perfil Sociocultural dos Voluntários ao Martírio.............................163 AGRADECIMENTOS Se há guerras religiosas e, sendo elas indesejáveis, o mal que nelas reside não vem de Deus, mas de nossas próprias deficiências. Portanto, agradeço primeiramente a Deus, a razão e a essência da religião. Agradeço a meus pais, que desde cedo incutiram em mim a importância dos estudos e esta pesquisa não é senão reflexo dessa insistência. Agradeço a minha amada Roseli. Sem ao seu sacrifício, eu não chegaria até aqui. Incluo aqui o meu filho, o Magninho, um presente de Deus para a minha vida. Vocês são o meu porto seguro, não me cansarei de repetir isso. Agradeço aos “Brunelli”, Walter e Marcia, pelo incentivo inicial e apoio constante, para que eu avançasse neste projeto que agora está concluído. Quero lembrar, ainda, os amigos que me incentivaram: Prs. Milton Rodrigues e Sérgio Bezerra. Também ao Dr. Gedeon Alencar, que abriu as portas da Academia para mim. Vocês foram muito importantes. Obrigado. Agradeço à CAPES “pela graça alcançada”. Igualmente à Universidade Presbiteriana Mackenzie, pelo apoio. Finalmente, aos colegas da minha turma, sempre muito amigos, e aos professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, com lembrança ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Bitun. Vocês são os gigantes sobre os ombros de quem subi para ver mais longe. Incluo aqui o prof. Dr. Peter Robert Demant, por quem tenho admiração especial, como já expressei antes, pela seriedade, clareza e conhecimento. O meu mais sincero agradecimento a todos vocês. INTRODUÇÃO Aquele que busca terroristas exultará ao encontrar na estante de um estudante de engenharia um livro com o título Manual de Fabricação de Bombas. Essa evidência lhe basta – ainda que sejam bombas de irrigação... Rubem Alves Os atentados de 11 de setembro deram ocasião à farta produção de documentação pela mídia a respeito do Islã, insuflando no senso comum a imagem de uma religião violenta. Desde então, fazer associações do Islã com a violência não foi atitude elegante ou respeitosa. Hoje, distanciados daquele momento fatídico, se desfruta maior liberdade para aproximar a observação de algum fenômeno que dispara a violência dentro do ambiente de onde se espera o cultivo da paz: a religião. Há instituições que procuram o diálogo amistoso e de conciliação; sejam instituições político-governamentais, sejam religiosas, acadêmicas, nas ONGs e no Terceiro Setor. Aumenta o fato ouvirmos o tom do discurso das grandes religiões, que se pautam pela convergência de temas que promovam a paz, a convivência pacífica e harmoniosa (e até mesmo o ecumenismo), a promoção do entendimento entre os povos e a justiça social para todos. Todas as religiões pregam isso. Como exemplo de esforço neste sentido, dentro da promoção do diálogo no grupo monoteísta, que envolve as três religiões, judaísmo, cristianismo e islamismo, a Universidade de Harvard vem desenvolvendo um projeto de entendimento, cooperação e diálogo para os três ramos, chamado Abraham Path (Caminho de Abraão), reunindo líderes dos 5 três grupos para atividades conjuntas e desenvolvimento do diálogo, 1 além da Muslim Jewish Conference, 2 da mesma Universidade. Embora a preocupação com a piedade, a espiritualidade e com as demandas por justiça social estejam presentes na tradição islâmica, os elementos da contemporaneidade (ou modernidade, depende do autor) 3 penetraram, em certa medida, esta tradição religiosa e interferiram (ou reorientaram) no seu discurso, positiva ou negativamente. Entre outros, Kamel 4 (2007, p. 163), por exemplo, faz esta afirmação. Todas as três religiões comportam grupos que se adaptaram bem a esta agenda da contemporaneidade. O mesmo não parece ter ocorrido com grupos chamados fundamentalistas, existentes nas três tradições: “No século XX algumas das pessoas que vivenciaram a modernidade basicamente como um ataque se tornariam fundamentalistas” (ARMSTRONG, 2009, pp. 21,57,231). Nessas minorias fundamentalistas a modernidade provocou uma reação contrária. Martha Crenshaw 5 afirma que a modernidade mudou inclusive o modo padrão das ações terroristas (CRENSHAW, 2007, p. 31). As chamadas “modernidade” 1 Ver http://www.abrahampath.org/; http://www.abrahamspathturkey.org/ e http://www.pon.harvard.edu/category/research_projects/meni/abrahamspath/, todos acessados e disponíveis em 15.02.2014. 2 Ver www.mjconference.org acessado em 28.05.2014. 3 Refiro-me, grosso modo, a segunda metade do século 20 até os nossos dias e as implicações econômicas liberais, democráticas e culturais próprias. Estou chamando “contemporaneidade” ao que alguns autores que constarão desta pesquisa nomearão “pós-modernidade”. Quando usarem o termo, evidentemente, ele será mantido. Em linhas gerais, todos eles usam pós-modernidade como indicação de elementos do liberalismo econômico, político e cultural, o que caracteriza, na visão do Islã, a sociedade influenciada pela cultura Europeia em certa medida e mais intensamente pela influência dos Estados Unidos. 4 Ali Kamel é sociólogo e jornalista, filho de pai e avô sírios e casado com uma judia. 5 Martha Crenshaw é membro sênior do Centro para a Segurança e Cooperação Internacional (CISAC) e do Instituto Spogli Freeman de Estudos Internacionais, bem como professora de Ciência Política na Universidade de Stanford. De 1974 a 2007 ela lecionou no Departamento de Governo da Wesleyan University e de 2002 a 2007 foi professora de questões globais e pensamento democrático no Colin e Nancy Campbell. Ela é ex-Presidente e Conselheira da Sociedade Internacional de Psicologia Política (ISPP). Recebeu diversos prêmio por seu trabalho e em 2009 ela recebeu o prêmio da National Science Foundation por um projeto sobre "Mapeamento de organizações terroristas". 6 e “pós-modernidade”, aqui nomeadas simplesmente contemporaneidade, não afetaram positivamente nem “atualizaram” o discurso religioso de grupos fundamentalistas (de dentro do Islã e dos outros monoteísmos também), no que toca o conteúdo que deveria promover e fazer convergir a paz e o entendimento. Dentro do importante grupo político-religioso que é o Hamas 6 isso também é notável. A percepção que ora aponto é reforçada pelo conteúdo das obras de teóricos e mesmo nos discursos emitidos por seus líderes de grande projeção, que rapidamente entram em cena para digerir “o espetáculo da morte com palavras” e dessa forma transformarem “o camicase em mártir, o assassino em freedom fighter. São elas, as palavras, que tornam doce o paraíso dos suicidas, e um inferno o mundo alarmado em sobre vida” (WEINBERG, 2007, p. 35, ênfases no original). Os resultados da manutenção e recorrência desse discurso, que pode ser remontado à fundação do Islã na Península arábica, 7 aos conflitos tribais entre nômades e caravaneiros, nós os vemos hoje constante e insistentemente em diferentes pontos do planeta, tanto no Ocidente (que tem sido declarado “o inimigo a ser batido” pelos fundamentalistas) quanto no próprio Oriente Médio. Na virada do século XX para o século XXI, o projeto “islamista” 8 tem proposto um modelo radical religioso já superado. Grupos fundamentalistas não acompanharam essa tendência global, antes, reagem a ela (mesmo inseridos no contexto ocidental e talvez até por isso), impondo um modelo de fé, sociedade e política que se arroga o direito de ditar formas de governo (DEMANT, 2004, pp. 210,211), interfere na economia e se faz presente na sociedade, extrapolando as já estabelecidas convenções humanas de bom convívio e desajustando até mesmo relações diplomáticas. 6 Sigla árabe de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de Resistência. Grupo que atua na Palestina com o objetivo de resistir a ocupação israelense. 7 Não será objeto desta pesquisa, mas autores como Don Richardson, Bernard Lewis e outros têm feito. 8 Usando “islamista” no sentido de DEMANT (2004, p. 14), como definição do movimento religioso radical do Islã político. 7 Delimitação da pesquisa Uma distinção metodológica é necessária quanto aos termos adotados “islâmicos” e “islamistas”. Com islâmico, esta pesquisa fará referência ao fiel e piedoso do Islã; com islamista, a pesquisa se referirá aqui especificamente aos grupos radicais que se nomeiam fiéis do Islã. Eles serão usados sem qualquer tom pejorativo, pois já são de uso corrente (dentro da academia). Isso deve ficar claro, a fim de evitar qualquer associação indevida. Procurarei demonstrar as hipóteses desta pesquisa a partir dos discursos de autoridades “no” Islã e “do” Islã. Como esta pesquisa não tem caráter exegético, não caberá a mim fazer a interpretação dos textos do Corão; antes, valendo-me da metodologia da revisão bibliográfica (melhor detalhada à frente), recolherei depoimentos e declarações de pesquisadores, especialistas, autoridades e pensadores de dentro do Islã. Estes últimos poderão indicar a interpretação que adotam, a visão de mundo própria daqueles que olham a sua religião desde dentro. Eles são os portadores da tradição (específica ou não) e detêm o conhecimento dos mecanismos pelos quais passam as interpretações e desdobramentos da reflexão teológica da sua própria religião. Lembro que este é um trabalho de “Ciências da Religião”. Inserem-se aqui as considerações de Filoramo & Prandi (1999). Este trabalho se serve das ciências que julgar adequadas para o estudo do comportamento das hipóteses, dentro de determinada teoria apresentada a seguir. Neste sentido, considerando ser ciências “da religião”, a atenção será dada a este campo, não no sentido de fazer exegese (repito), mas respeitando o objeto que está no campo religioso. 9 É preciso encarar a religião, porque ela está presente nas sociedades. Mas, para além disso, é necessário levantar a lona da tenda e enxergar o ser humano coberto por ela, judeu ou palestino, como é o caso. O Islã, e certamente outras tradições religiosas, negociam com a Política, a Economia, a Cultura, a sociedade em seu entorno ou com a força ao seu redor, a qual Durkheim dirá que é o próprio Deus: 9 Neste sentido, Crenshaw pergunta: “Por que o Hamas é considerado um grupo nacionalista quando se apela à criação de um Estado Islâmico?” (2007, p. 7). Penso que a pergunta é pertinente dentro do recorte cronológico da pesquisa. 8 [...] a sociedade só vive nos e pelos indivíduos. [...] ela só tem realidade à medida que ocupa espaço nas consciências humanas, e esse espaço, somos nós que lho damos. [...] é que a sociedade, da qual os deuses não são senão a expressão simbólica. [...] Ora, esse ser existe: é a sociedade (DURKHEIM, 1989, p. 417; tbm. p. 281). Do mesmo modo, Bourdieu interpretou a dinâmica dos campos religioso e intelectual, educacional e artístico, cultural e social, como ocorrendo à base de “trocas”, numa dialética de afirmação e reafirmação entre produtores de serviços e consumidores. É weberiano neste sentido e logicamente segue Durkheim quando vê na sociedade o que a religião vê no sagrado (BOURDIEU, 2011, p. ex. pp. 52,53). O universo muçulmano (como fenômeno sociológico, DEMANT, 2004, p. 14) é amplo. Em termos numéricos Demant sinaliza com 1,3 bilhão no planeta (DEMANT, 2004, p. 13); o PEW, 10 em 2013, estimou em 1,6 bilhão. 11 A presença do muçulmano é notável em todos os continentes, estando as maiores concentrações, em números de adeptos, no Oriente Médio, seguido pela Ásia, África, Europa e Américas. As maiores facções são, grosso modo, a sunita, 12 seguido pelos xiitas. 13 Reside aqui outra ressalva a ser feita. Os vários grupos de fieis seguidores dividem-se em sunitas, xiitas, sufis etc., e interpretam determinados pontos da doutrina, da tradição e da lei diferentemente. Como foi dito na banca de qualificação, trata-se “de um campo minado”. Estou ciente, mas preciso avançar. Portanto, esta pesquisa não pretende mapear todos os campos, nem catalogá-los, nem dialogar com todos eles, nem mesmo compreender todas as 10 O Pew Research Center é um think tank localizado em Washington DC que fornece informações sobre questões, atitudes e tendências que estão moldando os EUA e o mundo. 11 Disponível em http://www.pewresearch.org/fact-tank/2013/06/07/worlds-muslim-population- more-widespread-than-you-might-think/ acessado em 1º de maio de 2014. 12 Sunita: seguidores da sunah. Grupo majoritário no Islã. 13 Xiita: literalmente “partidário”, como referência ao partido de Ali (o quarto imame) que lutou pela herança na sucessão de Muhammad. 9 tradições dentro do Islã. Nisso, fará uma concentração bastante limitada e específica, qual seja, a busca por um raciocínio que conduz à violência (se ele existe) e, se isso é iniciativa de palestinos ou revide à ação israelense. Será verificado se há esse raciocínio e se ele move o Movimento Hamas. É possível, penso eu, que este Movimento reúna membros inclinados a mais de uma maneira de interpretar a religião. Embora seja um movimento com teor pronunciadamente religioso (Hamas significa Movimento Islâmico de Resistência), pode, mesmo assim, agregar, em torno de seus objetivos, pessoas com pensamentos díspares. Não procurarei compreender essas variações, mas sim, insisto, identificar uma possível relação da violência (sem fazer juízo de valor, se justificada ou não) com alguma interpretação do Corão ou se ela é exclusiva e essencialmente laica, secularista. É notável em publicações jornalísticas, como concordam os autores que têm lidado com o tema, que os movimentos radicais têm origem em ambos os ramos, sunita e xiita. “O martírio pelo suicídio é uma das poucas coisas que unem xiitas e sunitas ao longo da história” (KAMEL, 2007, p. 219). “A pesquisa sobre o suicídio como um ato político” foi revivida recentemente, mas “encontramos exemplos anteriores deste no Islã medieval, especialmente entre os Assassinos” (KEPEL, 2003, p. 105), uma seita ou grupo sectário dos xiitas ismaelitas 14 que surgiu cerca de 5 séculos após o início do Islã. No corte geográfico contemplado nesta pesquisa, também bastante específico, temos o território palestino, onde há pelo menos 85% de população muçulmana, “quase todos sunitas” (DEMANT, 2004, p. 273). 15 A concentração das operações na faixa de Gaza, de população majoritariamente muçulmana, que ocupa a Palestina, está sob o controle político do Hamas (sigla de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de Resistência). É nesse Movimento que a pesquisa fará a sua 14 Os ismailitas ou sétimos, que aceitam uma outra sucessão de sete imãs [...] seguem Isma’il ibn Ja’far, o filho do sexto imã, que morreu antes de seu pai. Deste grupo se desenvolveram seitas tais como os drusos, os naziris, os nusairis e outras ainda mais heterodoxas. Algumas delas por fim se tornariam comunidades fechadas (por causa da perseguição) e quase etnias, como os alawitas na Síria e alewis na Turquia. (DEMANT, 2004, p. 223, ênfase no original). 15 1,3 milhão de árabes israelenses, 2 milhões de árabes da Cisjordânia e 1 a 1,5 milhão na Faixa de Gaza (MORRIS, 2014, p. 233). 10 concentração, haja vista ser um grupo com forte expressão na região e também no cenário internacional, em função do êxito alcançado no cenário político palestino, nas recentes eleições em 2006, suplantando o predomínio do Fatah, outro grupo com características bastante parecidas o qual liderava o cenário político e o controle da Autoridade Palestina (AP) 16 até recentemente. Tendo em vista essa expressão, a pesquisa fará também um recorte temporal. Não abordarei as mudanças ocorridas no perfil do Movimento, após a sua eleição em 2006 para ocupar e integrar o governo da Autoridade Palestina (AP). Segundo Hroub, 17 “até a formação do governo do Hamas, em 2006, não havia porta-voz oficial ou endereço do Hamas em qualquer país ocidental” (HROUB, 2009, p. 135). Assim, o recorte cobrirá a situação e o comportamento do Hamas desde a sua fundação, em 1986 18 até a sua eleição em 2006, portanto, vinte anos. O Hamas, em certo sentido, é expressão bastante precisa de determinados aspectos da religião, uma vez que ela compreende os setores político, religioso, social e até mesmo econômico e familiar das relações humanas. No Islã não há compartimentação da vida, ou seja, não há o aspecto religioso restrito ao âmbito pessoal, ao foro íntimo; ao passo que a esfera política pode sofrer um “descolamento” do perfil religioso, como ocorre com outras tradições religiosas, ainda que não estejamos advogando uma total imparcialidade ou autonomia na atuação política de um personagem religioso, nem vice-versa. A atuação religiosa na esfera pública é vista como dever, prescrito no texto fundante, o Corão. 19 16 A Autoridade Palestina foi estabelecida segundo o Acordo de Gaza-Jericó, assinado no Cairo, em 4 de maio de 1994 (STERN, 2004, p. 32). 17 Khaled Hroub nasceu num campo de refugiados em Belém. É professor residente na Faculdade de Artes liberais da Northwestern University, no Qatar, com foco nos estudos de mídias Árabes e Oriente Médio. É diretor do Projeto de Mídia Árabe da Universidade de Cambridge onde também é pesquisador sênior. Apresenta semanalmente um programa de crítica de livros na TV Al-Jazeera. É uma voz do Islã moderado. 18 O ano de fundação do Hamas é corrigido por YOUSEF (2012, p. 35, nota 1) para o final de 1986, e não 1987, contrariando fontes como MidWest, a Wikipedia e o próprio Hroub. 19 Citando dois colunistas que dizem não haver “moderação no Islã político” (Said-al-Hamd, do Al- Ayyam do Bahrein e o iraquiano Azziz Al-Hajj, do site Elaph), Weinberg chama a atenção para “a tensão 11 Objetivos da pesquisa A bibliografia produzida ou publicada no Brasil sobre o Islã integra-se em dois eixos de abordagem. Um desses eixos é composto por obras publicadas por pesquisadores especialistas, cujo perfil é notadamente regido pelas Ciências Sociais, carecendo de um aprofundamento no discurso propriamente teológico-religioso. Integram esse corpus, livros e dissertações de orientação histórico-sociológica com notável atenção à cultura e à política. O outro eixo traz as obras produzidas pelos próprios teóricos e teólogos e, evidentemente, arrastam após si as razões e justificativas de sua teologia e crença, exaltam o mito fundante do profeta Mohammad, 20 sua obra prima, o Corão, e os ahadith, que são a coleção de ditos registrados por seus companheiros, obra que regula praticamente toda a vida do fiel. Diante disto, a pesquisa aprofundará a análise das obras que apontam o caminho pelo qual o ideário da violência e do terrorismo 21 chegou ao Hamas e, paralelamente a isso, procurará uma vinculação desse ideário com o Corão. Sei que reduzir a discussão a simples questão de “terrorismo” é um reducionismo imperdoável, e, como tal, é cometer injustiça e deixar de perceber fatores outros que serão dispostos nos Capítulos 2 e 3. O ideário a que me refiro é a interpretação do Corão a qual destoa do uso corrente. A região da Palestina comportava várias etnias e seguidores de outros credos religiosos em harmonia, como aponta Edward Said, 22 entre outros: “Todos existente entre tais correntes, a moderada, disposta a compromissos, acordos, tratados e convivência, e a mais extremada, indisposta e missionária”. Esta dialética é interna a toda a comunidade muçulmana e é necessário prestar “atenção ao que dizem os teólogos, pois em grande medida depende destes provedores de pistas o destino do pensamento e a direção do comportamento de grande parte destas populações” (WEINBERG, 2007, p. 162). 20 Estou usando “mito” no sentido sociológico ou ainda psicológico junguiano, que não vê como “ficção”, mas como elaboração complexa da realidade, ou como Girard, que diz que “os mitos são formas de organização do conhecimento” (GIRARD, 2011, p. 86). 21 Por “terrorismo”, estou me apropriando do termo já corrente, como por exemplo, em PAPE, 2003. 22 Edward W. Said (1935-2003), palestino de nascimento, foi um dos mais notáveis críticos culturais do século XX. Professor de Literatura Comparada da Universidade Columbia, lecionou também em Harvard, John Hopkins e Yale. 12 falavam árabe, eram muçulmanos sunitas em sua maioria e conviviam com uma minoria formada por cristãos, drusos e muçulmanos xiitas” (SAID, 2012, p. 14). Sendo o Hamas um movimento surgido na década de 1980, portanto recente, será necessário identificar as principais ênfases que predominam no trabalho realizado pelos intérpretes do Corão e teólogos islamistas sobre o pensamento original de Mohammad. Quem são e o que ensinam esses teóricos sobre o papel e a missão da comunidade e do indivíduo frente à ocupação israelense na Palestina? Que expectativas religiosas têm nutrido essa tradição? Isto posto, a pesquisa traçará paralelos entre o discurso do Hamas e o conteúdo de determinada intepretação do Corão no qual se apoia, conforme indicado no próprio Estatuto oficial do Movimento (ver Anexo 1). O Islã avança em passos largos pelo planeta (vide a citação do número de adeptos), portanto, merece atenção. Assim, esta pesquisa supre lacuna na pesquisa atual, à medida que olha para essa religião e para a ocorrência de um pensamento e postura pública que destoam de toda uma tradição já estabelecida de que, segundo Nasr, “o Islã é uma religião da paz”. 23 Não são poucos os autores que desdenham essa definição. O Islã apregoa a paz, mas os radicais islamistas fazem o mesmo? Até onde isto é verdadeiro no contexto pesquisado e corresponde à verdade? A pesquisa deverá dar pistas. Problematização Como foi dito, estimativas dão conta de que a população muçulmana já soma pelo menos 1,6 bilhão de seguidores presentes em todos os continentes. Esta presença maciça tem remodelado a geopolítica internacional. 23 “Para compreender a natureza do Islã e da verdade sobre a afirmação muitas vezes feita de que o Islã adota a violência é importante analisar esta questão claramente lembrando que a própria palavra Islã significa paz e que a história do Islã certamente não foi testemunha de mais violência do a que se encontra em outras civilizações, particularmente a do Ocidente”. In NASR, S. H., Islam and the question of violence, in Journal, vol. 13, nº 2. Al-Islam.org, publicado por Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project. Acessado http://www.al-islam.org/al-serat/vol-13-no-2/islam-and-question-violence-seyyed-hossein- nasr no dia 04.02.2014. 13 O investimento em ações para estabelecer-se em sociedades nas quais é minoria é a preocupação das lideranças religiosas, em países onde a comunidade é minoria. Pipes, 24 por exemplo, menciona as atividades do Council on American-Islamic Relations (CAIR), 25 instituição com sede em Washington, fundada em 1994, cujo objetivo é (ou ao menos é assim que CAIR se apresenta) “promover o interesse e o entendimento entre o público em geral no que diz respeito ao Islã e os muçulmanos na América do Norte e realizar serviços educacionais” (PIPES, 1999). No entanto, ele adverte: Mas essas ocasionais boas obras servem principalmente como uma cobertura para agenda real do CAIR, que parece ser dupla: ajudar a organização radical Hamas na sua campanha de terror contra Israel e promover o programa islâmico nos Estados Unidos (Ibidem). No Oriente Médio, ambiente dos principais grupos radicais fundamentalistas islamistas, a reação não foi a mesma dos grupos nos EUA. Ao contrário, os ataques de 11/9 parecem ter servido de estopim para que as propostas nos âmbitos já mencionados aqui (política, econômica, social e religiosa) fossem acentuadas. Houve um reflorescimento do sentimento religioso radical, o maior engajamento de facções militantes e notoriamente das principais autoridades de projeção internacional e simpatizantes. Pinker 26 defende que “Estados islâmicos como a Arábia Saudita e a Indonésia, que já 24 Daniel Pipes é diretor do Middle East Forum e colunista premiado dos jornais New York Sun e The Jerusalem Post. Seu website, DanielPipes.org, é a fonte de informação especializada em Oriente Médio e Islã com o maior número de acessos registrados na Internet. Pipes obteve sua Licenciatura (1971) e Doutorado (1978) em História pela Universidade de Harvard. Estudou no exterior por seis anos, três dos quais no Egito. Lecionou nas universidades de Chicago e de Harvard e ainda no U.S. Naval War College. 25 Disponível em http://www.danielpipes.org/321/how-dare-you-defame-islam, acessado em 06.05.2014. 26 Steven Arthur Pinker é psicólogo e linguista canadense. Ele é professor no Harvard College e no Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard. Até 2003, ele ensinou no Departamento de Cérebro e Ciências cognitivas do MIT. Ele realiza pesquisas sobre linguagem e cognição, escreve para publicações como o New York Times, Time e The New Republic e é autor de sete livros. 14 foram indulgentes para com os extremistas islamistas, decidiram que agora basta e começaram a reprimir” (PINKER, 2012, pp. 490,1) enquanto que Weinberg cita pesquisa PEW de 2004 dizendo, por exemplo, que em 2004 “Bin Laden era simpático aos olhos dos paquistaneses (65%), dos jordanianos (55%) e dos marroquinos (45%)” (WEINBERG, 2007, p. 144). A pesquisa de Weinberg está dentro do arco de tempo coberto pela pesquisa. Com o recorte da pesquisa no período 1986-2006, temos um período que comporta a ocorrência mais acentuada de violência, mesmo diante desses dois autores. Sendo o Islã uma religião da paz e, se isso está claro para seus adeptos, como compreender que recorram a atos terroristas e a violência expressa nas operações do Hamas? Como podem apoiar-se em premissas religiosas como justificativa para a violência? Esta é uma hipótese sustentável? A pergunta central que se coloca é “há uma interpretação do Corão que estimula a violência e o terrorismo do Movimento Islâmico de Resistência, o Hamas?”. Hipótese São vários os teóricos e pesquisadores que têm apontado para as causas do estranhamento entre o Ocidente e o Islã. Isso tem sido chamado de Orientalismo, 27 tendo inclusive a obra de Said título homônimo. Há quem alegue que isso se dá pelo predomínio ou colonialismo norte-americano e pela interferência ocidental nos países onde o Islã é a religião predominante, e.g., GARAUDY (1998). Outra área apontada como responsável pelo quadro pintado aqui é a visão ocidental divergente dos valores distintos. Seyyed Hossein Nasr (s/d) faz defesa nesta linha. Muçulmanos e ocidentais não compartilham o mesmo sistema de valores e – aqui entra outro agente – a mídia, que parece não entender a dinâmica entre essas populações e reproduz os fatos pela sua ótica, distorcendo-os em relação ao que realmente ocorre. É o que se chama 27 O termo ou a “denúncia” do orientalismo indica uma reação daqueles que veem o Ocidente com o seu capitalismo e colonialismo como “a raiz do mal, de todo o mal” (WEINBERG, 2007, p. 67). 15 orientalismo. Weinberg 28 (2007) apresenta e aprofunda o outro lado do problema, o que já indica na seguinte afirmação: [...] a denúncia do orientalismo ocidental caiu ao gosto dos que veem no colonialismo e no capitalismo a raiz do mal, de todo o mal. Mas há também quem denuncia a estereotipia inversa, a do Ocidente pelos orientais, e tente alertar a opinião pública contra a indisposição de muitos pensadores do Ocidente de ver o fundamentalismo islâmico como uma ameaça similar ao nazismo (WEINBERG, 2007, pp. 67,68). A hipótese de partida da pesquisa trabalha com a possibilidade de que exista uma linha de interpretação do Corão e da tradição, os ahadith, usada como modo de interpretá-los a qual apoia a violência e os atos terroristas promovidos pelo Hamas, ao menos nos vinte anos de existência do movimento cobertos pela pesquisa. O Corão e os ahadith formaram no pensamento dos islamistas atraídos para esta corrente uma caricatura do chamado “infiel”, seja ele judeu sionista, cristão ou simplesmente infiel. Nessa caricatura, aqueles que não creem e não professam a mesma fé no profeta e no seu deus (bem como no seu livro) são inferiores, traidores; embora a possibilidade de coexistência exista. Peter Berger (1985, pp. 36,57,58) aponta esse comportamento, citando explicitamente o islamismo como exemplo. Justificativa e relevância Essas questões parecem fazer parte de um cenário longínquo, distante, mas ganham relevância e devem interessar-nos diretamente, ainda mais em tempos quando a globalização não somente aproxima os povos e culturas, mas interfere nas suas relações, na economia, na educação, na cultura como um todo. É na fronteira dos assentamentos que reside o núcleo ou estopim do 28 Jacques Alkalai Weinberg é professor titular de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É doutor em Ciências da Comunicação pela USP, pós-doutor na Universidade do Texas e autor de diversas obras. 16 problema (PAPE, 2003, pp. 354-356), ao menos, é como entendo a questão. O Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) só deveria encontrar razão para organizar-se fundamentado nesse conflito que se tem agravado pelo aumento do número dos assentamentos (FLINT, 2009, pp. 56,138,407,412,438). O Islã, em si, não produz conflitos em suas fronteiras, como demonstra o caso da Índia. “O país possui uma população muçulmana superior a do Paquistão, mas não tem em suas fronteiras um movimento islâmico fundamentalista” (WEINBERG, 2007, pp. 179,179). Por quê? Weinberg suspeita que seja porque há participação da população na vida política do país, e isso serve de antídoto ao fundamentalismo (Ibidem). Daí a relevância desta pesquisa, que poderá tocar ao menos, num dos cernes do problema (pelo campo religioso, insisto), questão que fica aberta desde já. Será a ocupação israelense a única questão na pauta do Hamas ou o único motivo para a sua resistência? Não são poucos os que têm se debruçado sobre a questão do conflito entre palestinos e israelenses para estudá-la. Para tanto há estudos, grupos de pesquisas, frentes acadêmicas de diálogo, instâncias governamentais, locais e internacionais. Enfim, há uma polifonia envolvida no problema e muitas são as abordagens feitas na tentativa de equacioná-la. Mas, eventualmente os aparentes avanços se convertem em retrocesso. Israelenses e palestinos têm sofrido baixas entre famílias inocentes, sem ver lançada qualquer luz para a solução do conflito. Os judeus sionistas são apontados como vilões dissimulados, em cujo território também há famílias inocentes vivendo alguma incerteza e insegurança (SAID, 2012, pp. XXVIII,XXXI,XXXIII,7,9). A questão permanece atual e complexa, e a sua discussão é necessária, ainda mais considerando que o Brasil tem estreitado relações econômicas, políticas e culturais com palestinos e países árabes muçulmanos, além de servir de abrigo para algumas comunidades que para cá têm enviado seus filhos e refugiados. A pesquisa também é relevante para a academia no Brasil por conta da escassez de estudos neste campo e, praticamente a inexistência de um trabalho voltado especificamente ao Hamas. Busca no banco de teses e dissertações dessa Instituição (U. P. Mackenzie) no início desta pesquisa, mostrou não haver um único trabalho sobre o Hamas. Busca realizada no projeto Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), que integra os 17 sistemas de informações de teses e dissertações existentes nas instituições de ensino superior (IES) brasileiras também não identificou um único registro. O mesmo pode ser dito do banco de teses da CAPES. Também quero destacar a relevância da pesquisa para a Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma vez que a temática está enquadrada em uma das linhas contempladas pelo Programa, relacionada à área de concentração “Ciências Sociais, Religião e Sociedade”, que estuda “Religião e Violência”. Este trabalho pretende contribuir para o avanço nos estudos e pesquisas que têm sido feitos por especialistas de outras áreas, os quais procuram meios para promover o entendimento dos grupos alocados nos grandes centros, em regiões de fronteira, e o desdobramento disso; além dos estudos sobre a violência e sua natureza, com vistas à promoção da paz e do entendimento entre povos, etnias e confissões religiosas. O estudo das Ciências da Religião tem esse compromisso e tal compromisso deverá ser o nosso fio condutor independentemente do resultado a que cheguemos. Desenvolvimento da pesquisa Citando Girard, “como todos os cientistas, estou em busca do fator comum, do padrão, não da diferença” (GIRARD et. al., 2011) dentro do Islã, até deparar-me com o modo de interpretar o Corão, utilizado pelos grupos fundamentalistas, para apoiar a violência que praticam e, se eles veem isso como violência. Minha hipótese é que esse modo de interpretar o livro passe pela construção de uma identidade própria e da identidade do outro. O Islã nasceu na Península Arábica, no século VII da presente Era e cresceu no meio da movimentada e politeísta península dos mercadores, dos caravaneiros e das pilhagens de caravanas. Quando surgiu, o helenismo já havia sido difundido, o judaísmo tinha colônias na Europa, Ásia Menor e na própria Arábia enquanto o Cristianismo tendo pensadores de expressão estava consolidado como religião oficial no Império Romano. Alguns elementos dos cultos judaico e cristão foram incorporados por Muhammad, o profeta fundador do Islã, na composição do texto do Corão; uma simples leitura demonstra isso. A revelação registrada no Corão anuncia como uma de suas propostas 18 “atualizar” e “substituir” os conteúdos das revelações anteriores, dos judeus e dos cristãos, contidos na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento (KAMEL, 2007, p. 77). Essa revelação que Muhammad anunciou ter recebido teria sido dada a ele, um comerciante reconhecidamente analfabeto, que se tornou o maior fenômeno religioso em alguns períodos nos últimos 1400 anos, estendendo-se ao nosso tempo. Que espécie de motivação ou força há subjacente a esse enérgico ímpeto para a expansão subsequente que a levou aos quatro cantos do planeta? O que move os suicidas em troca da própria vida? Isso é uma obrigação para todos os fieis? Vamos atrás de pistas. A primeira fase da pesquisa será realizada por meio de revisão na literatura produzida pela Academia, à procura de informações e pistas relevantes. Isso inclui um estudo preliminar da História do Islã escrita por autores favoráveis ou contrários, participação em aulas e congressos, leitura de textos de cunho teológico produzidos pelas associações e centros de divulgação e promoção do Islã o Brasil além de leitura livre do próprio Corão. 29 Na segunda fase da revisão da literatura serão vistas as obras publicadas recentemente por especialistas. O resultado será demonstrado especialmente no capítulo 1, conforme proposto no Sumário. A revisão bibliográfica tem contemplado algumas das seguintes obras que tratam do tema, ainda que com perspectivas e hipóteses distintas, na tentativa de aprofundar a compreensão do tema da violência em diferentes campos, dentro do seguinte quadro. À medida que o Estado assumiu o papel da regulação da sociedade pelo aparato jurídico, que veio substituir o papel da religião (como veremos no Referencial Teórico), menos o indivíduo pode vingar os danos sofridos e mais o Estado ou a polícia assumiram a responsabilidade de fazê-lo. 30 Após o Renascimento, surgiram leis que dispuseram os instrumentos para mediar e defender os direitos dos cidadãos em dada sociedade. A proposta de 29 Foram feitas duas leituras completas em duas versões diferentes (ver nas Referências Bibliográficas) e a terceira está em andamento, sendo a versão comentada pelo Dr. Helmi Nasr (USP). 30 “O papel da religião é prover a “moral” que mantem o proletário, no capitalismo, sujeito, submisso. Os intelectuais admitem a religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a religião e dê condições iguais a todos por meio do Estado” (SOREL, 1992, p. 265, ênfase acrescentada). 19 pacificação pelo Estado reforçou a consciência sobre limites, fazendo com que a violência se tornasse estranha no relacionamento cotidiano, embora não a tenha exterminado como germe da natureza humana (BUORO, 1999, pp. 1531). Para fundamentar o entendimento da violência inerente à natureza humana, recorro a Buoro et. al. (1999), Violência urbana: dilemas e desafios. As autoras da Universidade de São Paulo, são especialistas no estudo da violência. As conclusões a que chegam convergem para a teoria utilizada na presente pesquisa. Ainda dentro da definição de termos no campo da violência, utilizei Violência urbana, de Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme Assis de Almeida, ambos especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEVUSP) e com larga experiência reconhecida no assunto. Da obra de Pinheiro interessa-me o Capítulo 1, O que é a violência?, onde os autores pontuam uma definição do que é a violência no modo básico e dão uma definição ampla de violência, cobrindo outros níveis que não os mais visíveis pelo observador comum. Em seguida, relatam a violência em nível mundial, a importância de se considerar o contexto social onde ela ocorre, apontando para valores culturais que podem ser considerados violentos em uma cultura, mas não necessariamente em outras; essas distinções, segundo os autores, precisam ser levadas em consideração antes de quaisquer determinações e definições sobre violência. Segue esse primeiro capítulo da obra fazendo a “tipologia da violência”, em que comparte a violência em três grandes categorias: violência auto-infligida, violência interpessoal e violência coletiva. Deste capítulo 1, o que mais nos interessa para a pesquisa será essa última categoria: Violência Coletiva, que está diretamente ligada ao nosso objeto de estudo. Um olhar, de dentro do Islã, sobre a violência será extraído de Islam and the question of violence, de Seyyed Hossein Nasr 31 que dispõe o discurso sobre os variados meios de como a violência e o uso da força são vistos. 31 Seyyed Hossein Nasr é professor de Estudos Islâmicos na Universidade George Washington. É um importante estudioso religião e estudos comparativos do mundo islâmico. Autor de mais de cinquenta livros e quinhentos artigos que foram traduzidos para idiomas no mundo islâmico, europeu e asiático, o 20 O mundo muçulmano, de Peter Demant é outra obra considerada. O autor é historiador, professor-doutor no Departamento de História na USP, 32 especialista em questões de Oriente Médio, tendo dissertado sobre a colonização israelense dos territórios palestinos, entre 1967 e 1977, e esteve ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e palestinos. Da obra, interessa para a pesquisa da Parte 2 – HOJE, onde, depois de ter demonstrado historicamente o desenvolvimento das correntes dentro do islã em diferentes culturas e sob variados governos, situa o momento mais recente quando ocorreu e ocorre a influência da modernidade e da globalização na estrutura social muçulmana. Como desdobramento desse encontro de ideias e ideologias, o autor trata especificamente das ondas fundamentalistas, dividindo-as em três: a primeira de 1967-1981; a segunda ocorrida nos anos 1980; a terceira onda islamista de 1991-2001. A obra de Demant será útil, ainda, pelo fato de ser robusta em informações históricas que servirão de parâmetro para esta pesquisa. No tratamento do Islã e do terrorismo, serão considerados ensaios, papers e artigos produzidos por especialistas em Oriente Médio e em terrorismo. Dentre eles dou destaque para: All Kind of Terrorists, de Uri Avnery, Terrorism in historical perspective e The Crisis of Universalism: America and Radical Islam after 9/11, de Fred Halliday, 33 The Strategic Logic of Suicide Terrorism, de Robert Pape, entre outros. Outra obra considerada é O guia árabe contemporâneo sobre o islã político, uma coletânea organizada pelo professor Ibrahim M. Abu-Rabi’, que reúne textos escritos por autores de dentro do Islã, sendo eles pensadores, acadêmicos e militantes. Abu-Rabi’ é professor da cadeira de Estudos Islâmicos do Conselho “Edmonton” de Comunidades Muçulmanas da Universidade de Alberta. A obra reúne interpretações árabes do Islã e do professor Nasr é uma figura intelectual bem conhecida e altamente respeitada no Ocidente e no mundo islâmico. 32 Professor no Instituto de Relações Internacionais, o IRI. 33 Fred Halliday (1946-2010) foi pesquisador do Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats (ICREA) e professor pesquisador no Institut Barcelona d'Estudis Internacionals. De 1985-2008 foi professor de Relações Internacionais na London School of Economics (LSE) e em seguida professor emérito na mesma instituição. 21 islamismo, sobre temas como jihad, Israel e Palestina, o pensamento político moderno no Islã, entre outras. A obra traz indicações dos campos político e teológico sobre a posição a respeito da Palestina, especialmente o capítulo escrito por Abu Sway que demonstra a impossibilidade de entregar territórios, total ou parcialmente, em um acordo com Israel. Entre os autores dos capítulos que compõem a obra constam nomes como Abdullah Azzam, palestino, um dos fundadores do Hamas; Sayyid Muhammad Hussain Fadlallah, possui título de Grande Aiatolá, pensador islamita xiita libanês, considerado o pai espiritual do Hezbollah libanês e Muhammad al-Ghazali, apresentado na obra como “importante pensador islamita [...] que buscou interpretar o Islã e o Alcorão sob uma luz moderna”. A medida que forem citados no corpo da pesquisa tais autores serão mais adequadamente apresentados. Outra obra é Hamas, um guia para iniciantes, de Khaled Hroub. Ele nasceu num campo de refugiados em Belém. É professor e diretor do Projeto de Mídia Árabe da Universidade de Cambridge, onde também é pesquisador. É uma voz do Islã moderado. A obra “se propõe a relatar a história do ‘verdadeiro Hamas’, não aquele que tem sido mal compreendido ou distorcido” (HROUB, 2009, p. 8). Hroub vê o Hamas “como uma consequência natural de uma condição de ocupação brutal e não natural”, e considera que o ímpeto radical do Movimento “deveria ser visto como um resultado completamente previsível do projeto colonial israelense em andamento na Palestina” (Ibidem, p. 9). O autor nos apresenta vasta cobertura do perfil e atuação do Hamas na região. Filho do Hamas, de Yousef & Brackin (2010) é uma obra escrita em coautoria. Seu “mentor” mais importante, Mosab Hassan Yousef, foi membro e principal sucessor de um dos fundadores do Hamas. A obra é uma narrativa a respeito de como o autor saiu do Movimento, após atuar por 10 diretamente anos ligado a ele, e atuando secretamente como espião do serviço de inteligência de Israel. Yousef tem contribuições sobre o modo como os militantes pensam, o raciocínio que seguem, os interesses que demonstram, a ideologia na qual se apoiam e estruturam sua política nos territórios palestinos e como planejam os ataques que fazem, alguns dos quais tendo sido realizados com a participação 22 do próprio autor. A obra de Yousef tem importância dentro do escopo da pesquisa, por adicionar informações vindas do núcleo do Movimento. Há, no Brasil, as fontes primárias mais relevantes para o estudo do Islã, que são: o Corão (dentre os quais se destaca a versão produzida pelo Dr. Helmi Nasr, chamada Alcorão na Tradução do Sentido, publicação patrocinada pela Liga Islâmica Mundial, Makka) e a obra traduzida pelo Dr. Samir Hayek. Dou destaque para uma versão do Alcorão Sagrado traduzido por este último, versão que tem sido recomendada pela comunidade islâmica no Brasil, cuja fluidez literária é bastante agradável. A mesma poderá ser utilizada em cotejo com a versão do professor Nasr. Outro grupo de obras que poderão ser consideradas serão as publicações de teóricos islâmicos (fontes primárias), obras publicadas por órgãos oficiais da própria religião. Trata-se de historiografia e teologia, entre as quais se destacam obras publicadas pelo Centro Islâmico do Brasil. Neste grupo de obras encontramos o modo como os teóricos (e teólogos) interpretam e formulam a religião e como se dá o comportamento islâmico “recomendado”: pelas vias da tradição, pela lei própria (sharia) e pela teologia. Referencial teórico Penso que a escolha de um bom referencial teórico pode ser feita em função da preferência por este ou aquele campo de estudo ou pela adequação ao próprio objeto do estudo. Nesta pesquisa, a opção pelo referencial teórico adotado se justifica pelo fato de o objeto (o Hamas) é pesquisado na perspectiva do campo religioso (ou por ser um movimento com este perfil também, e é o que interessa aqui). Embora seja possível estudar o Hamas da perspectiva sociológica, histórica, política ou outras, não posso perder de vista o locus da pesquisa, no caso, o campo religioso. Portanto, como referencial teórico, a pesquisa será apoiada na obra de René Girard, A violência e o sagrado (GIRARD, 1990), núcleo da teoria mimética desenvolvida pelo autor. Segundo o próprio autor, a teoria mimética 23 ou teoria imitativa é uma explicação da violência no comportamento humano e da violência na cultura humana. 34 Em A violência e o sagrado, Girard constrói a compreensão do sacrifício como ritual que procura apaziguar a violência interior ao ser. O sacrifício afasta a violência latente. Nossa sociedade, no entanto, compreende mal os motivos que levavam ao sacrifício. A lógica adotada no mecanismo do sacrifício, no entanto, é diferente da lógica moderna. Girard cita o caso dos chukchi (GIRARD, 1990, p. 29), povo nômade da Sibéria, que, ao primeiro ato de violência, propunha a cessação disso, sacrificando um dos seus membros, não o culpado, pois se assim o fizesse, estaria promovendo o revide, dando continuidade à violência primeira. Tal mecanismo, neste sentido, é semelhante ao adotado nos sacrifícios de mártires por grupos terroristas. O sacrifício dos chukchi funcionava como uma crítica ao culpado que efetuou o primeiro ato de violência (levando o culpado e a sua sociedade a uma reflexão crítica) e visava à pacificação por meio do rompimento do ciclo de violência, não a vingança que a eternizaria; “a vingança constitui, portanto, um processo infinito, interminável” (Ibidem, pp. 27,35). Para evitar a vingança perpetuada, as sociedades religiosas, no passado, instituíram o mecanismo do sacrifício; as mais recentes adotaram o poder do Estado. “É o sistema judiciário que afasta a ameaça da vingança” (Ibidem, p. 28). “Fazer violência ao violento significa deixar-se contaminar por sua violência” (GIRARD, 1990, pp. 40,41). Esta é uma das teses centrais de Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal (1999), onde Hannah Arendt advoga não ser coerente repetir o mal que se pretende expiar. São três as perguntas que movem o trabalho acadêmico de René Girard: “O que une as sociedades? O que faz com que, pelo contrário, desmoronem? 34 Conforme Aula 1 [http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014] do prof. Dr. João Cezar de Castro Rocha, especialista em Teoria Mimética, sendo coautor de uma obra sobre o tema com o próprio R. Girard. Dr. João Cezar de Castro Rocha é graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Completou dois cursos de doutorado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Literatura Comparada, pela Stanford University. Em 2005-2006 realizou pós-doutorado na Freie Universität, Berlim, orientado pelo Prof. Dr. Joachim Küpper. Atualmente é assessor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo e participa do Conselho Consultivo de várias revistas especializadas no Brasil e no exterior. 24 E, junto a tantos outros teóricos contemporâneos, Girard pergunta: qual a contribuição da religião nesse processo?” (GIRARD, 2011, p. 21). Neste sentido, Girard está em consonância com outros pesquisadores como Durkheim e Bourdieu (citados anteriormente), entre outros, que entenderam o papel primaz da religião na organização da sociedade. “O que Girard propõe é uma forma atualizada de antropologia comparativa e de história comparada das religiões e da cultura” (GIRARD, 2011 p. 36), utilizando “dados antropológicos e etnológicos, incluindo mitos e ritos” e análise de mitologias gregas, criando assim um “tipo de metodologia [com] o uso particular de fontes textuais ‘como dados’ [...] e a própria literatura como se fossem ‘remanescências’, indícios” (Ibidem, p. 35, ênfases no original). Mito, portanto, associa-se a mais uma disciplina porque “é um fragmento de história humana [que] transfigurado pelo pensamento primitivo, transforma-se naturalmente em representação do futuro, ou seja, em imagem mobilizadora” (SOREL, 1992, p. 8. Ver também nota 12 da mesma obra). 35 A teoria imitativa comporta quatro passos subentendidos na expressão “mecanismo mimético” (GIRARD, 2011, p. 79). O mecanismo mimético abrange uma sequência fenomenológica que é bem ampla. Descreve todo o processo, começando pelo desejo mimético, que depois se torna rivalidade mimética, com possível escalada até o estágio de uma crise mimética e, por fim, terminando com a solução do bode expiatório (Ibidem, ênfases acrescentadas). Girard define o desejo como “aquilo que é mais distintamente humano” e o desejo humano é fundamentalmente mimético ou imitativo (GIRARD, 2011 p. 31). Ninguém deseja por iniciativa própria; desejamos especificamente o mesmo objeto desejado por aquele a quem elegemos como nosso modelo. 35 Girard defende sua teoria recorrendo aos inúmeros sucessos obtidos em sua aplicação: “Do que se trata, na verdade? De aplicar a textos, aos quais ninguém ainda havia tido a ideia de aplicar, um procedimento de decifração muito antigo e com uma eficácia a toda a prova, de uma validade mil vezes confirmada no campo atual de sua aplicação” (GIRARD, 2004, p. 128). 25 Desejamos por imitação. O nosso desejo é aprendido ou derivado do desejo do outro, que adotamos como nosso modelo. 36 A mimese possui caráter de aquisição. Assim, no primeiro momento do desejo ele é apenas mimético, imitativo, elegendo um modelo em que se basear. Mas, no próximo momento, esse desejo pelo mesmo objeto desejado pelo outro, pelo modelo, pode levar à violência, porque aquele a quem elegemos por modelo passa a ser nosso rival. O objeto ou o sentimento ou a vocação metafísica, quando são os mesmos entre dois sujeitos, gera desavenças, rivalidades, ciúmes, disputas entre próximos, o que Girard chama “violência intestina” (GIRARD, 1990, pp. 14-46). Estou aplicando a teoria imitativa ao conflito em questão, considerando, por exemplo, a terra e o que dela advém como objetos declarados do desejo e do interesse de ambos os povos, israelenses e palestinos. Não ficarei preso em discussões semânticas ou de outra natureza, de que a “Palestina histórica” (PAPE, 2003, p. 349) é dos palestinos ou o Israel bíblico (FLINT, 2009, p. 137) é dos judeus: a questão, em si, se limitará à locação dos povos, e a locação se dá na terra. A terra é o objeto em disputa e a teoria imitativa contempla este aspecto. O “desejo” pela terra está presente na questão e no conflito. O desejo pela manutenção do direito à terra, desejo pela manutenção “do que é seu”, da terra que é sua e que foi ocupada, porque outro também a desejou. Deseja-se também o que se considera seu por direito, o que deveria ser garantia básica: estar na terra, e é isso o que ambos os povos querem e desejam. Quando o modelo passa a ser rival na aquisição do objeto desejado, institui-se o momento da crise. “A crise trágica é sempre analisada do ponto de vista da ordem que está nascendo e nunca do ponto de vista da ordem que desmorona” (GIRARD, 1990, p. 60). Em A violência e o sagrado Girard explica a origem do termo: “termos aparentados, como crise, critério, critica, que remontam todos à mesma raiz, ao mesmo verbo grego, krino, que significa não só julgar, distinguir, mas acusar e condenar uma vítima (GIRARD, 1990, p. 32, ênfases no original). Esse é o tema específico da obra, em que Girard trata do rito sacrificial para solucionar o problema da crise da escalada da violência. 36 Conforme Aula 1 http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014. 26 O rito sacrificial é a primeira forma de instituição humana, religiosa, no caso, que tentará controlar internamente a violência na comunidade e evitará que a crise mimética se espalhe dando lugar à crise sacrificial (GIRARD, 1990, pp. 55-85). No rito, a comunidade escolhe aleatoriamente (“ao acaso”, nas palavras de Girard), uma vítima expiatória, “o bode expiatório”, que deverá ser sacrificado, para que a escalada da violência não avance. Esta é a solução religiosa ou de dentro do campo religioso. A violência dirigida contra a vítima cessará a crise na comunidade, dando lugar ao sagrado. A paz retornará e a harmonia se instalará, reorganizando os relacionamentos comunitários. Resolve-se, assim, a crise sacrificial provocada pelo desejo mimético. A perturbadora resposta oferecida por Girard [a crise] é que a sociedade consegue o equilíbrio, ainda que a curto prazo, ao transferir sua agressão para uma figura ou grupo de figuras que fazem parte da sociedade, mas que estão à sua margem. As vítimas são expulsas ou destruídas, e a comunidade então passa a estar em paz consigo mesma. Esse processo de identificação e de marginalização da vítima é aquilo que Girard chama de “mecanismo do bode expiatório”. A Violência e o Sagrado vai mais longe ainda, relacionando esse processo de exclusão às crenças e às práticas religiosas (GIRARD, 2011, pp. 20,21). O bode expiatório age apenas sobre as relações humanas perturbadas pela crise, mas dará a impressão de agir igualmente sobre as causa exteriores, as pestes, as secas e outras calamidades objetivas (GIRARD, 2004, p. 60). Para Girard, as sociedades religiosas antigas 37 são entendidas como aquelas que não possuíam um sistema judiciário. A instituição reguladora do sistema judicial veio controlar a violência e a sua escalada (SOREL, 1992, pp. 37 Sua obra faz um recuo temporal de 15 a 25 séculos (e.g., A violência e o Sagrado), o que engloba o nascimento do Islã e o surgimento do Corão. Esta é uma associação feita por mim, não consta da sua obra. 27 11,265). 38 Uma vez controlada a violência pelo aparato estatal, o sagrado é liberado e depurado da violência. Pensando especificamente no caso da Palestina e do Hamas, a insuficiência ou ineficiência de organismos mediadores de controle da violência e das próprias negociações de paz entre ambos os povos libera o cenário para a configuração tal qual René Girard a concebeu. As tentativas nacionalistas do Fatah e da Organização para a Libertação da Palestina (OLP) 39 não levaram a bom termo as negociações, o que promoveu a agenda do Hamas que, embora HROUB aponte o nacionalismo como causa da sua ascensão (HROUB, 2009, p. 22), o Movimento em si tem perfil islamista – estou considerando o arco de tempo coberto pela pesquisa. Crenshaw classifica o Hamas como “grupo híbrido” (CRENSHAW, 2007, p. 24), com motivações sociais e religiosas. 40 Para ela, há o “velho” e o “novo” terrorismo, cujos objetivos “são pensados para serem negociáveis e limitados”, “são locais, não globais” e “normalmente relacionados a questões do nacionalismo e da autonomia territorial” (Ibidem, p. 11). Já os “novos terroristas procuram apenas destruir, e suas mortes resultarão apenas do alcance no paraíso no milênio, não mudanças políticas aqui e agora” (Id., p. 19). Neste quadro o Hamas está mais para “velho” terrorismo com nuanças do “novo, o que ela dá o nome de “grupos híbridos”. Nesta categoria ela enquadra o Hamas e o Jihad Islâmica (Id., p. 24). Em contextos tingidos pela religião com ineficiência do aparelho estatal, o rito fundador permite o estabelecimento da paz. Ele envolve o mecanismo do bode expiatório. Em Totem e Tabu, Freud tratou desse modelo o qual Girard 38 Outros autores também disseram isso, mas essa informação não é de suma importância para a compreensão da teoria mimética. Penso que este papel do Estado é senso comum. 39 A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi fundada em 1964 no Cairo, por Gamal Abdel Nasser, presidente do Egito, supostamente para representar o povo palestino oprimido. A esse tempo, Yasser Arafat chefiava o Fatah, vindo a ser presidente da OLP em 1969. “As três maiores organizações que a integram são o Fatah, um grupo nacionalista de esquerda; a Frente Popular para a Libertação da Palestina (FPLP), um grupo comunista; e a Frente Democrática para a Libertação da Palestina (FDLP), também de ideologia comunista” (YOUSEF, 2010, p. 47). 40 Segundo o trabalho de Crenshaw, os grupos “puramente religiosos mataram um total de 6.120 pessoas, e os grupos híbridos ou mistos mataram 4.657” (CRENSHAW, 2007, p. 24) 28 aprofundou, qual seja, dos objetos que são venerados e de proibições que são estritas. O mesmo foi feito por Durkheim (1989, pp. 142,230-240). A sociedade que estava ameaçada de desaparecimento se reúne, se religa, no assassinato fundador. Essa é a hipótese central de A Violência e o Sagrado. 41 Em O Bode Expiatório, Girard concentra-se na demonstração da vítima expiatória que apazigua a violência e o faz novamente, a exemplo de A violência e o sagrado, por meio da análise de mitologias, gregas e em premissas etnológicas e etológicas 42 (GIRARD, 2011, p. 33). A partir da análise do texto do poeta francês Guillaume de Machaut, século XIV, Julgamento do Rei de Navarra, Girard investiga o antissemitismo subliminar, subjacente ao texto, que atribui aos judeus as mortes ocorridas na comunidade francesa (não revelada a cidade). Estes, os judeus, “estão envenenando o rio” (GIRARD, 2004, pp. 14,55,60) e provocando as mortes. Os judeus são, então, os bodes expiatórios da sociedade. Precisam ser perseguidos e eliminados, mas nem isso provoca o fim das mortes, cuja causa, soube-se depois, era a peste negra. Boa parte da obra trata dos conteúdos bíblicos, começando com a paixão e as “palavras” importantes, como a de Pilatos (“não vejo crime nele”), e a de Jesus (“perdoa-lhes, não sabem o que fazem”). Essa última fala da inconsciência da multidão, mas não fala da bondade de Cristo, como a teologia interpreta, antes, da revelação do evangelho que desmitifica o mito da violência, o mito do bode expiatório. Mas Girard adverte: “Não vejo como alguém pode encontrar algo de metafísico no desejo mimético, pelo menos não na minha explicação” (GIRARD, 2011, p. 163). Girard constrói, então, sua teoria sobre a crítica literária feita a partir dos clássicos, analisando diversos mitos e tragédias e comparando seus elementos semelhantes e como se comportam os agentes e personagens. Diante do exposto, seguiremos a teoria mimética de Girard, que poderá ser resumida e esquematizada em três “intuições”: 43 41 Disponível em Aula 3, sobre A Violência e o Sagrado, http://youtu.be/1Pyqlm3QQmc acessado em 02.04.2014. 42 Disciplina que estuda o comportamento dos animais. 43 Conforme Aula 1 disponível em http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014. 29 1ª intuição: o desejo mimético ou rivalidade mimética. O desejo humano é fundamentalmente mimético ou imitativo. O sujeito não deseja por iniciativa própria, mas por imitação. O seu desejo é derivado do desejo do outro, que ele adota como modelo para si. A ocorrência desse mecanismo tem como consequência o caráter mimético do desejo que é a causa primordial da violência humana. A mimese possui caráter de aquisição. Então, no primeiro momento do desejo, ele é apenas mimético, mas no próximo momento (ou passo), pode levar à violência, porque o objeto, sentimento ou objeto metafísico desejado é o mesmo objeto (ou sentimento ou objeto metafísico) desejado por aquele ao qual foi usado como modelo. O modelo, então, passa a ser o rival. 2ª intuição: a hipótese central, desenvolvida em A violência e o sagrado, vem trazer a resolução sacrificial da crise provocada pelo desejo mimético. O rito sacrificial é a primeira instituição de controle interno da violência em um grupo ou sociedade. Ocorrendo a morte de uma vítima (bode expiatório), a escalada da violência, a qual Girard chama crise mimética, cessa, porque promove a reconciliação e dá lugar ao sagrado, isto é, ao sentimento de pacificação (algo como sentimento de dever cumprido ou justa retribuição). A paz e a harmonia retornam. Estabelece-se a hierarquização dos ritos quando surgem os objetos de adoração e as proibições estritas são formuladas. 3ª intuição: O reordenamento da sociedade ocorre em decorrência das instituições humanas religiosas e seus mecanismos que religam a sociedade que estava ameaçada de desagregação pela crise mimética, adotando unanimemente a solução do bode expiatório. Se a violência cria o sagrado (pacifica a sociedade), como proposto na teoria, no caso em questão o terror é usado para atender a essa demanda por sacralidade, para “criar” o sagrado (atender a uma demanda religiosa) ao executar a vítima. A comunidade de fé compreende que o sacrifício atende a uma determinação divina, a uma expectação divina. O esforço (jihad) por cumprir o que está prescrito e interpretado pelo viés adotado pela 30 hermenêutica radical estabelece um fato religioso concreto e ao mesmo tempo transcendental: o mujahidun (guerreiro) é elevado ao Paraíso junto a Allah. O mártir é usado como bode expiatório. Se ele não for sacrificado, a paz não acontecerá e a obediência divina não ocorrerá: é preciso sacrificar-se. É preciso notar a influência religiosa na motivação para o martírio, pois não são somente os pobres e marginalizados da sociedade, sem expectativa de ascensão social os que são recrutados para o sacrifício, como demonstra Stern 44 (2004, pp. 54,190,192), mas também das classes mais privilegiadas e instruídas, como registra Crenshaw (2007, p. 18). A religião une a ambos. 45 Em sua teoria mimética, Girard também lidou com o conceito de revelação (grego apocalipsys), e revelação do mecanismo do bode expiatório, que no rito assume significado concreto produzindo efeitos reais dentro da cultura, e esta sendo alimentada pela religião (GIRARD, 2010, p. 146). Girard extrai sua compreensão da teoria elaborada a partir da leitura de inúmeros textos e indica literalmente que a análise de conteúdo é a metodologia mais acertada para se obter um resultado claro e das “constantes e repetições de padrões” (GIRARD, 2011, p. 185). 46 Não se pode evitar que a teoria mimética ajusta-se à questão que se coloca nesta pesquisa, uma vez 44 Jessica Stern tem mestrado pelo Massachusetts Instituto of Thecnology (MIT) em Engenharia química/tecnologia política e doutorado pela Harvard University em políticas públicas. É pesquisadora do Centro para a Saúde e os Direitos Humanos na Harvard School of Public Health. É uma dos principais especialistas em terrorismo tendo servido no Conselho Nacional de Segurança Pessoal do Presidente Clinton entre 1994-95. É membro da Comissão Trilateral e do Conselho de Relações Exteriores dos EUA. Ela faz parte do Comitê Executivo e é membro do Conselho Consultivo do Cure Violence. 45 Shaul Kimhi (2004, pp. 817,8) demonstra com dados do IDF que “a maioria [dos homens-bomba] foram educados: educação elementar – 14%; segundo grau – 51% e ensino superior 32%. Assim, como muitos homens-bomba palestinos, um terço dos terroristas suicidas tem uma formação acadêmica. Esta é uma taxa de educação mais elevada do que a taxa acadêmica média em toda a população palestina”. 46 Em nota de rodapé a esta citação, o autor trás: “A análise de conteúdo é uma metodologia de pesquisa que utiliza um conjunto de procedimentos para validar inferências feitas a partir dos textos, por exemplo para refletir padrões culturais de grupos, instituições ou sociedades; revela o foco da atenção de indivíduos, grupos, instituições e da sociedade; descreve a tendência no conteúdo da comunicação.” (Robert P. Waber, Basic Content Analysis. Londres: Sage, 1985, p. 9). Isto irá concordar com a citação que farei de Bardin mais à frente. 31 que a hipótese leva em consideração a interpretação de textos. O Islã, como o Cristianismo e o Judaísmo, é uma religião do livro. Finalizando, A teoria mimética é a única teoria que supõe um componente de violência tanto na cultura primitiva quanto na moderna, e que considera o homem etologicamente violento, mas dotado de capacidade cultural (trazida pela religião) de controlar essa violência, promovendo um comportamento ético (GIRARD, 2011, p. 192). Nesse sentido, a teoria mimética provê, assim como a teórica crítica, um dispositivo que esta chama de “emancipação”, mas que Girard chama de “comportamento ético”, que se orienta para a solução do problema da crise. Estou considerando “emancipação” no sentido de Horkheimer (pp. 143,152) e Nobre (2004, pp. 10-12). Como vimos, nenhuma sociedade pode viver “no sagrado”, ou seja, na violência. Viver em sociedade é escapar da violência, certamente não em uma verdadeira reconciliação, que responderia imediatamente à questão “o que é sagrado?”, mas em um desconhecimento sempre tributário de uma maneira ou de outra, à própria violência (GIRARD, 1990, p. 403). Seguindo, então, a metodologia de Girard, que trabalha com a literatura ao elaborar sua teoria, e a sua indicação da análise de conteúdo, a metodologia proposta para a esta pesquisa contempla a reconstrução parcial da História, que atenda ao período recortado (1986-2006), que deverá ser esboçada, visando à fundação e ao surgimento do Hamas. Também se contará suscintamente a história do estabelecimento do Estado de Israel, considerando o seu direito de existência, a fim de prover contextualização necessária e melhor compreensão do tema da pesquisa. Para o trabalho metodológico seguirei as diretrizes de teóricos como Reis (2010, p. 60), quando afirma que: 32 [...] a pesquisa bibliográfica, por meio da revisão da literatura, impõe-se na produção de conhecimentos acadêmicos com as funções de [...] auxiliar a definir corretamente os termos ou conceitos que fundamentarão a pesquisa para assim evitar incorreções e ambiguidades de interpretações e, quando necessário, esclarecer seu significado específico. Para a revisão bibliográfica, seguirei o método proposto por Bardin (1979, pp. 93-95), da análise de conteúdo em 3 partes: a. Pré-análise b. Exploração do material c. O tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação. Após a leitura flutuante ou familiarização com o material e os discursos que registra, será feita a escolha dos documentos, que comporão o corpus (“constituição do corpus”) para os procedimentos analíticos posteriores. Esta constituição seguirá regras de representatividade, homogeneidade e da pertinência, na qual “os documentos retidos devem ser adequados, enquanto fonte de informação, de modo a corresponderem ao objetivo que suscita a análise” (BARDIN, 1979, p. 98). Conforme antecipei na Delimitação da Pesquisa, procurarei demonstrar as hipóteses desta pesquisa a partir dos próprios discursos de autoridades “no” Islã e “do” Islã. Para isto, serão considerados depoimentos e declarações oficiais de autoridades e pensadores do Islã, com preferência aos membros do Hamas ou relacionados com o Movimento e de pesquisadores e especialistas no assunto. Como já referi, os discursos dos membros ou pensadores intérpretes do Corão pelo viés radical é que nos darão a interpretação, a visão de mundo própria daqueles que olham o Islã desde dentro. A referenciação de índices e a elaboração de indicadores que apontam na direção da hipótese serão feitas considerando os textos como uma manifestação contendo indicadores que “a análise vai fazer falar”, sendo essencial o trabalho preparatório de escolha dos índices adequados e específicos em virtude das hipóteses e sua posterior e final organização sistemática (BARDIN, 1979, pp. 99,100). 33 Uma vez escolhidos os índices, procede-se à construção de indicadores precisos e seguros. Desde a pré-análise devem ser determinadas operações: de recorte de textos em unidades comparáveis de categorização para análise temática e de modalidade decodificação para o registro de dados (BARDIN, 1979, p. 100, ênfases no original). Isto significa que, embora a pesquisa possa me colocar frente a frente com duas ou mais interpretações do mesmo dado/índice (ou fato), seguirei rigorosamente aqueles que se ajustem stricto sensu à teoria e à hipótese. Isso justificará em parte o “desvio” do “campo minado” que é o tema. Em seguida, os principais eventos recortados na revisão bibliográfica serão isolados e relacionados com o que o referencial teórico indicar como relevante. Finalmente, serão esboçados e analisados o tipo de ordem social em que tais temas lancem luz a compreensão do objeto estudado e como a hipótese se comportará diante da metodologia proposta. Ao tratamento do material recolhido anteriormente Bardin chama codificação. Codificá-lo é transformá-lo em “uma representação do conteúdo ou da sua expressão, susceptível de esclarecer o analista acerca das características do texto, que podem servir de índices” (BARDIN, 1979, p. 103). Havendo suficiente repetição no padrão que aponte para a pergunta de partida, a hipótese se confirmará e a teoria se manterá. Sobre um trabalho de recorte, agregação e enumeração, a análise do conteúdo levará em conta as expressões, que são “aspectos formais da significação (palavra e palavra tema; frase e unidade significante)” (BARDIN, 1979, p. 106). Bardin especifica como unidades de registro e de contexto a “palavra”, o “tema (análise temática)” e o “objeto ou referente”, que são temas eixo em redor dos quais o discurso se organiza (BARDIN, 1979, p. 104). Portanto, a enumeração do índice extraído da análise do conteúdo (tema, palavra, personagem, etc.) ocorrerá a partir da “inferência”, sendo que esta designa “a indução, a partir dos fatos” (BARDIN, 1979, p. 137), portanto, um trabalho de cunho histórico também. Justifico, portanto, que a análise de conteúdo constitui bom instrumento de indicação para se investigar as causas (variáveis inferidas) a partir dos 34 efeitos (variáveis de inferência ou indicadores; referências no texto) e assim decodificar de modo a servir para demonstração da hipótese inicial e estabelecer o objetivo inicial da pesquisa. No Capítulo 1 farei uma breve reconstrução da história de como as sociedades lidam com a questão da violência, antes e depois do advento do Estado, que reivindica o uso da força para reprimir a crise da violência entre seus cidadãos. Neste Capítulo também procuro abordar as considerações feitas por autores que apresentam a visão do Islã sobre a violência, na qual demonstram ser o Islã uma religião que não estimula a violência gratuita e que atos estranhos a esse modelo são realizados por aqueles que não compreendem o espírito do Islã, que significa paz (e.g., NASR 2014). No Capítulo 2 haverá um contraponto. A reconstrução da História do Islã pela perspectiva das suas batalhas e enfrentamentos, uma vez que em pesquisa prévia verifiquei haver um movimento de retorno às fontes, ad fontes, um resgate a determinado modelo original ideal no período que Muhammad era vivo. Neste Capítulo será possível notar as diferenças de comportamento da comunidade original que refletiu na composição do texto do Corão, no que se convencionou chamar “versículos de Meca” (ou mequenses) e “versículos de Medina” (ou medinenses). Finalmente, no Capítulo 3 haverá maior concentração na abordagem sobre o Hamas, sobre alguns pronunciamentos feitos por seus apoiadores, pensadores e líderes, sua origem na Irmandade Muçulmana, suas atividades e estratégia de resistência e o modo como permeiam essas ações com a confiança de que obedecem a mandamentos divinos. 1. A VIOLÊNCIA De fato, a religião tem sempre um único objetivo: impedir o retorno da violência recíproca. René Girard 35 Neste capítulo farei uma introdução ao cenário onde o conflito entre as sociedades palestina e israelense ou entre o Hamas e o Estado de Israel tem ocorrido. Esta breve porção situará as primeiras considerações feitas sobre a violência, tal como vista em séculos recentes e o desenvolvimento no modo como a sociedade e os poderes públicos lidam com ela. Na segunda parte do capítulo farei considerações introdutórias sobre a questão da violência no âmbito do pensamento do Islã. 1.1 Qual é o nosso cenário? O estabelecimento de Israel como Estado não é história que se possa contar em poucas linhas; admito a complexidade e adianto não ver a necessidade de maiores aprofundamentos na reconstrução da história. Selecionarei alguns pontos como as causas primárias mais amplas do presente conflito, o qual provoca as ações do Hamas. Notadamente (não exclusivamente, repito) os assentamentos e a ocupação de Israel, além das fronteiras previstas inicialmente no Plano de Partilha (KARAN, 2010). 47 Tais reclames por parte dos palestinos, inicialmente, e dos palestinos somados ao Hamas, hoje podem ser conferidos em vários artigos sobre o tema. 48 O “movimento” 49 mais intenso reunindo judeus na diáspora (expressão sinônima a exílio para o povo judeus após o ano 70) começou no século XIX (ARMSTRONG, 2009, pp. 205-207), embora houvesse judeus na terra muito 47 Brasil de Fato. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/4627 e acessado em 15.04.2014. 48 E.g., MORRIS, 2014; HALLIDAY, 2014; HASSAN, 2014; PAPE, 2003; AVNERY, 2014 et.al. 49 O termo “sionismo” [relacionado a “movimento sionista”] foi criado em 1885 pelo escritor judeu- austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “sionismo” basicamente significava uma resposta ao problema nacional judeu [...] da dispersão judaica em vários países e [o fato de serem] uma minoria populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos [...]. Assim, a solução sionista pretendia acabar com essa situação, através do retorno a “Sion” (KARAN, 2010). 36 antes disso. 50 Outras regiões foram cogitadas, como Uganda (na África Oriental) e a Bacia do Rio da Prata, mas [...] a região da Palestina Otomana acabou se sobressaindo das demais em virtude principalmente das migrações massivas, a partir de 1917, incentivadas pelo governo britânico – que “via com bons olhos” imperialistas a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e islâmica) (KARAN, 2010). Os termos entre aspas constam da Declaração de Balfour, “anunciada em novembro de 1917 pelo governo britânico na forma de uma carta de lord Rothschild” (SAID, 2012, p. 18). O “sionismo político internacional”, movimento que ganhou forte projeção pelos esforços do “jornalista judeu-húngaro Theodor Herzl (1860-1904) na Europa em fins do século 19”, era um “movimento nacionalista preponderantemente laico e secular” que trabalhava para resolver a questão dos judeus da diáspora, ou seja, “visava à fundação de um Estado nacional judaico” (KARAN, 2010). Com o apoio britânico e o início das imigrações massivas “principalmente a partir de 1917”, em função das expressões de apoio dadas na Declaração Balfour (que “via com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na Palestina histórica) e o apoio de “outros atores (como a ONU), determinou a partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu em 1947 e a criação do Estado de Israel em 1948” (KARAN, 2010; BARD, 2004, p. 10). 1.1.1 A Guerra da Independência (1948-9) 50 “Grandes comunidades se restabeleceram em Jerusalém e Tiberíades por volta do século IX. No século XI, havia concentrações judaicas em Rafah (em hebraico Rafiah), Gaza, Ashkelon, Iafo (Jaffa) e Cesareia” [...] “No início do século XIX – anos antes do nascimento do movimento sionista moderno – mais de dez mil judeus viviam ao longo do que hoje é Israel (BARD, 2004, p. 9). 37 Em 1947 os ingleses decidiram “entregar o assunto às Nações Unidas” (HOURANI, 1994, p. 362). A divisão da Palestina, conforme proposta aprovada pela ONU, previa que “o Estado árabe deveria ficar com aproximadamente 43% do território”, 56% seria destinado a criação do “Estado judeu-sionista” e os “restantes 1%, Jerusalém, seriam colocados sob um mandato internacional administrado pela ONU” (KARAN, 2010). Essa Palestina cujos habitantes mais remotos seriam povos egeus (BARD, 2004, p. 10) havia sido “islamizada”, por assim dizer, no século VII (Ibidem) e se tornado uma província do Império Otomano em 1516 (SAID, 2012, p. 13). Remonta daí o seu perfil árabe e o Islã como religião relativamente predominante. Sua população era constituída de uma minoria judaica contando “174.606 pessoas entre um total de 1.033.314”. [...] em 1936 o número de judeus subiu para 384.078 entre 1.366.692; e em 1946 eles eram 608.225 numa população total de 1.912.112. [...] Todos falavam árabe, eram muçulmanos sunitas em sua maioria e conviviam com uma minoria formada por cristãos, drusos e muçulmanos xiitas que também falavam árabe (SAID, 2012, pp. 13,14). A divisão proposta pelo Mandato Britânico não parece ter considerado a maioria árabe nem a sua ocupação. Karan ressalta que “a maioria do território seria controlada por uma minoria judaica (30% [da população])” (KARAN, 2010), mas a situação foi agravada ainda “antes da fundação de Israel e da primeira guerra árabe-israelense”, devido a “superioridade econômica e militar” israelense que “já tinham comprado 6% das terras e invadido a maior parte delas, expulsando a população civil árabe-palestina” (Ibidem). A questão da Palestina envolveu as relações entre a Grã-Bretanha e os Estados Unidos de um lado e palestinos e a Liga Árabe do outro (HOURANI, 1004, p. 362). Os ingleses fixaram data para a retirada de sua presença na região: 14 de maio de 1948 (Ibidem). Mas à medida que a data se aproximava a autoridade britânica diminuiu e aumentou a pressão israelense convergindo para um conflito, o que provocou a intervenção dos países árabes (Ibidem, p. 364; AVNERY, 2014). 38 Quando da proclamação oficial da criação do Estado de Israel por David Ben Gurion (1886-1973) em 15 de maio de 1948, centenas de militantes ligados a Irmandade Muçulmana, perseguidos “no Egito após tentarem derrubar o regime do Rei Farouk após a Segunda Guerra Mundial” [...] “fugiram para a Transjordânia de onde partiriam para a batalha contra o Estado de Israel em 1948” (WEINBERG, 2007, p. 158; HROUB, 2009, p. 35) apoiando os países árabes no esforço contra a ocupação israelense. Assim, “forças egípcias, jordanianas, iraquianas, sírias e libanesas avançaram sobre as partes predominantemente árabes do país” (HOURANI, 1994, p. 364) dando início ao que ficou conhecido como a Guerra da Independência. A ONU mediou armistícios no início de 1949 criando fronteiras estáveis, mas “cerca de 75% da Palestina foram incluídos dentro das fronteiras de Israel” (Ibidem). “Assim, após a primeira guerra árabe-israelense de 1948-49, a ocupação sionista da Palestina havia ascendido a mais de 70% do território, deixando aos árabes as piores terras de cultivo para sobreviver” (KARAN, 2014). 1.1.2 A Guerra dos Seis Dias (1967) Anos mais tarde, em 1967, o povo palestino sofreria novo baque. Havia mudanças em determinados cenários políticos no mundo árabe, como as alianças entre liberais educados que voltavam do exílio, juntando-se a “oficiais do novo exército regular” e ascendendo ao poder no Iêmen do Norte, formando a República Árabe do Iêmen; distinguiam-se, assim, do Iêmen do Sul, recém restabelecido após a retirada do protetorado britânico, o que fez emergir a República Popular do Iêmen (HOURANI, 1994, p. 412). O Egito havia sido solicitado a apoiar com a força militar no Iêmen do Norte e enviou apoio (Ibidem). A dinâmica da política de ‘Abd al-Nasser e o seu histórico como “figura simbólica do nacionalismo árabe” herdada desde a guerra do canal de Suez em 1956 (Ibidem, p. 414) elevaram-no à espécie de “defensor dos árabes” na região, diante de um problema incontornável: as relações com Israel, o que incluía a questão da Palestina (HOURANI, 1994, p. 412). 39 A Síria havia caído “nas mãos de um grupo ba’thista que achava que só através da revolução social e do confronto direto com Israel se podia resolver o problema da Palestina e criar uma nova nação árabe” (HOURANI, 1994, p. 413). “Desde 1948, os próprios palestinos não tinham podido desempenhar um papel independente nas discussões sobre seu destino” (Ibidem). A criação da Organização para Libertação da Palestina (OLP) em 1964, foi a “solução” encontrada pela Liga Árabe para ser, à parte da própria Liga, o organismo para representar os interesses dos palestinos; mas, ao mesmo tempo, estava “sob controle egípcio e as forças armadas a ela ligadas faziam parte dos exércitos do Egito, Síria, Jordânia e Iraque” (Ibidem). O maior expoente da OLP, o próprio Yasser Arafat, era natural do Cairo, não um palestino. Entre os palestinos exilados e educados no Cairo e em Beirute em fins da década de 1950, emergiram dos grupos nacionalistas árabes pró-nasseristas, especialmente em Beirute, uma geração reagente aos interesses árabes que não eram os mesmos dos palestinos (Ibidem). O Fatah e grupos menores são dessa safra que “aos poucos passaram para uma análise marxista da sociedade e da ação social” e, consequentemente, o consenso decorrente daí dizia que “o caminho para a recuperação da Palestina estava numa revolução fundamental nos países árabes” (HOURANI, 1994, p. 413). As primeiras “ações diretas” desses grupos contra Israel começaram em 1965, e não passaram sem retaliações, “não contra o Ba’th sírio, que apoiava os palestinos, mas contra a Jordânia” (Ibidem). Os árabes agora eram minoria entre a população de Israel, que em 1967 contava cerca de 2,3 milhões sendo que 13% eram árabes (Ibidem). Mais que com habitantes, Israel se fortalecia economicamente com o apoio dos Estados Unidos, com o envio de contribuições de judeus do mundo todo e de recursos vindos da Alemanha em caráter de reparação. Militarmente, Israel também se fortalecia e sabia-se mais preparado que os países vizinhos, ou por uma questão de segurança frente à hostilidade na região ou por alimentar “a esperança de conquistar o resto da Palestina e terminar a guerra inacabada de 1948” (Ibidem). Esses cenários convergiram em 1967, quando ‘Abd al-Nasser solicitou à ONU a retirada de suas forças da fronteira com Israel, estacionadas desde a “guerra do canal”, e fechou o golfo para os navios israelenses (HOURANI, 40 1994, p. 414). A tensão cresceu na região levando a Jordânia e a Síria a fazerem acordo com o Egito; mas, a 5 de junho Israel atacou: [...] e destruiu sua força aérea. E nos poucos dias seguintes os israelenses ocuparam o Sinal até o canal de Suez, Jerusalém e a parte palestina da Jordânia, e parte do sul da Síria (o Jawlan, ou “colinas de Golan”) (HOURANI, 1994, p. 414). Assim, foi na Guerra de 1967, que durou somente seis dias (de 5 a 10 de junho de 1967, FLINT, 2009, p. 335), que Israel conquistou a Cisjordânia à Jordânia, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (devolvida em 2005 ao Egito) e as colinas de Golã à Síria (KARAN, 2014). Falando da Guerra dos Seis Dias, Walzer esclarece que a situação como vemos hoje é o que se deve esperar: El resultado [que a guerra e a ocupação provocam] es una “acción recíproca”, una continuada escalada, de cuyo desarrollo nadie es culpable, ni sequiera en el caso de que haya actuado primero, porque en estas circunstancias todo acto puede denominarse, y lo es casi con toda certeza, preventivo [...] No hay duda de que a menudo las guerra se convierten em una espiral violenta 51 (WALZER, 2001, p. 54). Segundo Hourani, 52 tais perdas de terras por parte dos palestinos fortaleceu o seu “senso de identidade” e os levou a trabalhar em prol de uma “existência nacional separada e independente” (HOURANI, 1994, p. 415) que iria desembocar nos atuais quadros como trata esta pesquisa. Do lado de Israel, a administração das terras tem sido tratada como conquista legítima 51 “O resultado [que a guerra e a ocupação provocam] é uma “ação recíproca”, uma escalada continuada, de cujo desenvolvimento ninguém é culpado, nem sequer é o caso de que agiu primeiro, porque, porque nestas circunstâncias qualquer ato pode ser chamado, e quase certamente é, preventivo [...] não há dúvida de que a guerra muitas vezes se tornam em uma espiral violenta” (trad. livre). 52 Albert Hourani (1915-1993) nasceu em Manchester (Inglaterra), de pais libaneses. Formou-se em Oxford, ali lecionou de 1948 a 1979. Foi professor visitante nas Universidades de Chicago, Harvard e na American University em Beirute, e dirigiu o Middle East Centre, em Oxford. 41 (Ibidem; KAPELIOUK, 1972). No que toca a este trabalho, Israel mantém os territórios ocupados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, “o que “hoje representa quase 80% do território da Palestina histórica sob controle e administração israelense” (KARAN, 2014). A reivindicação palestina “para constituir seu Estado soberano nada mais é do que 20% das terras originais do mandato britânico, um valor bem menor do que os 43% do plano de partilha de 1947” (KARAN, 2014) 53 e parte da luta de resistência e motivo dos conflitos na região. 54 “Foi o projeto sionista que levou ao surgimento dos movimentos de resistência palestina, tanto nacionalistas quanto muçulmanos” (ABU-RABI, 2011, p. 119). Este é o cenário considerado nesta pesquisa. Ao fazer perguntas mais adiante não arbitrarei sobre a legitimidade ou não da violência no conflito. A questão colocada é outra e precisa considerar o fundo histórico. Penso ter pontuado a situação e, assim, partirei para um recorte mais aproximado. 1.1.3 Interlúdio Cerca de 40 homens foram capturados e levados à delegacia por um grupo de policiais. Um deles estava trabalhando, como o frentista Ismail Helou, 22 anos de idade. Outro, Rajou Hayek, 33 anos, que levava seu pai, um cadeirante, a uma clínica médica, foi algemado e obrigado por oito homens a entrar num veículo, também da polícia, e levado para a delegacia. A acusação? Eram palestinos com aparência de “homens ocidentais”: corte de cabelo ou 53 Nas palavras de Mustafa Abu Sway, professor de estudos islâmicos na Universidade de Al-Quds: “[...] na criação de Israel, em 1948, sobre 78% da terra da Palestina. Israel ocupou os outros 22% da Palestina, juntamente com regiões de outros países árabes, em 1967. Sempre que há algum discurso sobre a solução de dois Estados, o proposto Estado palestino significa 22% ou menos, da Palestina histórica!” (ABU-RABI, 2011, p. 119). 54 As Resoluções da ONU 242 e 338 determinam que Israel devolva os territórios e retorne às fronteiras de anteriores a guerra de 1967. Além disso, há a Resolução 194 de 1948, “que concedia aos refugiados palestinos o direito de retornarem para suas terras e a compensação pela perda de seus lares e propriedades, e por serem expulsos da Palestina devido à criação do Estado de Israel em 1948” (HROUB, 2009, pp. 144,145). 42 calça com cintura baixa. Por isso foram espancados, tiveram seus cabelos raspados e sofreram humilhações. 55 Quando notícias assim são lidas mundo afora, parte das pessoas fica com a respiração suspensa. Essas informações passam uma mensagem de violação dos direitos humanos, para dizer o mínimo. Cidadãos devem contar com o Estado na proteção de suas vidas. Preferências a um estilo ou gosto pessoal incluem-se aí, seja no corte de cabelo, seja no jeans que veste. Mas, e quando a notícia reporta a morte de uma única pessoa, que seja – quando não dezenas delas – vítimas da explosão de um homem-bomba? O modo como o homem encarou a violência recentemente teve um desenvolvimento. Precisamos entender esse desenvolvimento em diferentes épocas e regiões e procurar delimitar o que estou chamando de “violência” e fazê-lo em conexão com o entendimento que o Islã tem da violência. Reconheço que o mundo do Islã é amplo e complexo, que não se limita a um grupo homogêneo, nem a uma atividade normativa para toda a comunidade. Mas esta pesquisa tem um recorte específico e por isso minha concentração se voltará para as informações que acompanham e corroboram a sua proposta. É neste sentido que o texto será composto, sem deixar-se inflamar por melindres ou paixões que não contribuem com a proposta da pesquisa. A notícia acima dá conta de uma ação realizada pelo Hamas e ocorrida em Gaza, território palestino onde o grupo atua e tem forte apoio da população local (HROUB, 2009, p. 114). 56 Devemos perguntar se tais atos são considerados violentos aos olhos dos habitantes daquela região e daquela cultura num sentido mais amplo. Por que há esse comportamento? Alguma religião manda matar? Nenhuma religião manda matar, mas o homem mata, porque não entende o espírito da religião; por interpretá-la incorretamente ou porque seus atos públicos são autônomos. Se a ação humana em nome da religião causa espanto, é provável que o praticante não 55 “Gaza police shaving heads of young men in crackdown on western fashion”, The Guardian. Disponível em http://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/29/gaza-police-shaving-heads-men-western em 9.07.2013. 56 “A base da popularidade do movimento atinge 30% a 40% de todo o eleitorado palestino.” 43 tenha compreendido o significado e o sentido da religião. Tal indivíduo usa lentes embaçadas para interpretá-la e, assim, não a enxerga bem. Na verdade, as guerras religiosas são as duas coisas ao mesmo tempo porque as categorias teológicas de pensamento tornam impossível pensar e levar adiante a luta de classes enquanto tal, permitindo não obstante pensá-la e levá-la a cabo enquanto guerra religiosa (BOURDIEU, 2011, p. 47). Em outras palavras, é possível justificar, por meio da religião, um conflito essencialmente social ou um ato público, podendo até disfarçá-lo. Sociedades não religiosas também matam. James Kennedy (2003, pp. 299,300) aponta que os Estados ateus totalitários – portanto orientados por política antirreligiosa, somados aos massacres de Stálin, Mao Tsé e Hitler, mataram mais de 130 milhões de vidas em um século apenas, o século XX. Se adicionarmos à religião um conflito de ordem política, teremos um efeito altamente explosivo? Que cultura seria gerada desta combinação: religião e política? A prática comum a esta comunidade, por estranha que parecesse a outros grupos, seria justificada em si, pois não temos como catalogar hábitos culturais como “válidos” ou “não válidos”, “adequados” ou “inadequados”. Não podemos dizer que isso ou aquilo é certo, pois o que uma cultura produz é gerado no acordo das relações internas de um grupo e refletem ou orientam o seu comportamento; se torna “lei” (DURKHEIM, 1989, p. 55). A definição da antropologia cognitiva diz, ainda, que esses traços que caracterizam uma cultura são formados por estruturas psicológicas (GEERTZ, 1989, p. 21) e que a cultura “é um contexto, algo dentro do qual [os acontecimentos sociais] podem ser descritos de forma inteligível – isto é, descritos com densidade” (Ibidem, p. 24). É preciso discutir a participação da religião como influência sobre o comportamento humano e social, i. é., qual influência gera qual comportamento e quais efeitos trazem. Também precisamos estabelecer uma relação minimamente aceitável, um acordo ou base comum sobre o que é a violência dentro das diferentes culturas (são semelhantes?) ou o que tem sido considerado violência em nossos dias (são legítimas ou não?). Desse modo, 44 vamos começar definindo os termos que a pesquisa adotará como seus referenciais etimológicos e epistemológicos. 1.2 A violência ontem Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de ser mais para que a situação objetiva em que tal proibição se verifica seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade a que os referimos, porque fere a ontológica e histórica vocação dos homens – a do ser mais. A citação feita de Paulo Freire (2005, p. 47) dá conta de como é amplo o sentido que a palavra “violência” pode assumir em nossos dias. O educador está lidando com o processo do crescimento humano, e ele o faz de olho na opressão que classes dominantes impõem ao que chama “oprimido”. Este aparente oprimido, explicitamente, é na verdade, de modo curioso o indivíduo que pode ensinar o opressor, aquele que se julga detentor do poder, do conhecimento e da cultura. O oprimido não oprime: Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a violência, que jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos oprimidos. Como poderiam os oprimidos dar início à violência, se eles são o resultado de uma violência? Como poderiam ser os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os constitui? (FREIRE, 2005, p. 47). Freire chega mesmo a chamar “terror” a tal situação de “tirania”, na qual “os que primeiro odiaram” inauguram o ódio e “geram os demitidos da vida, os esfarrapados do mundo” (FREIRE, 2005, p. 47), ou “os condenados da terra”, título da obra de Frantz Fanon, 57 onde lemos: “O desdobramento da violência 57 Frantz Omar Fanon (1925–1961) foi um psiquiatra e ensaísta de ascendência francesa e africana. Fortemente envolvido na luta pela independência da Argélia, foi também um influente pensador do século XX sobre os temas da descolonização e da psicopatologia da colonização. 45 exercida no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo regime colonial contestado” (FANON, 1968, p. 69). Mas não me deterei em questões epistêmicas internas a estas obras; tão somente quero pontuar o alcance do debate sobre o que é a violência. No caso de Freire, a violência é a privação do acesso aos mecanismos legais e institucionais do Estado para que o sujeito seja aquilo para o qual a sua própria vocação o impulsiona: o ser mais, o ser humano em desenvolvimento, situação análoga à que encontramos nos territórios palestinos, como veremos mais adiante no Capítulo 2. Marilena Chauí 58 diz que uma brecada (ou freada) mais brusca que o motorista de ônibus dá, no trânsito, também é uma manifestação de violência, “um ato de violência” (VÁRIOS, 1997, p. 130), mas um ato não visto pela sociedade local, brasileira no caso, por conta do que chama “sistema dos preconceitos” (VÁRIOS, 1997, p. 117). Esse mecanismo ou sistema é a condensação de um senso comum em torno do qual determinado pensamento ou sensação são admitidos como verdade para uma comunidade. Como é um pré-conceito, tal formulação é concebida anteriormente a todo e qualquer ato do grupo e é usado por este como emblema das pseudovirtudes pelas quais espera ser visto pelos de fora. A autora relaciona quatro marcas mais significativas do preconceito, das quais nos interessa a última: O preconceito é intrinsecamente contraditório: ama o velho e deseja o novo, confia nas aparências mas teme que tudo o que reluz não seja ouro, elogia a honestidade mas inveja a riqueza, teme a sexualidade mas deseja a pornografia, afirma a igualdade entre os humanos mas é racista e sexista, desconfia das artes mas não cessa de consumi-las, desconfia da política mas não cessa de repeti-la (VÁRIOS, 1997, p. 118). Há, portanto, uma construção retórica que orienta antecipadamente a noção e a definição do ato e do sistema, por onde se nomeiam as práticas sociais de um grupo visando preservar ou reforçar a manutenção de seus elementos culturais. Assim, o preconceito serve como ferramenta para o 58 Marilena de Souza Chaui é Doutora em Filosofia pela USP, onde também é professora titular. 46 exercício da dominação, pois dá ao dominado a ilusão de que tudo está explicado e justificado; não há o que temer; antes, o preconceito “se tornou a forma de segurança num mundo, enfim, tornado transparente” (VÁRIOS, 1997, p. 119). Seguramente encontramos no conflito entre judeus e palestinos a promoção lado a lado de discursos que procuram rotular “o outro” por meio da construção de imagens distorcidas que suscitam somente os seus aspectos negativos, ou seja, preconceito mútuo. 59 Como exemplo de tal construção retórica, Chaui menciona a falácia de que “o povo brasileiro é pacífico e não-violento por natureza”, senso comum cuja origem data do seu descobrimento, quando os pioneiros referiam-se em seus relatos como “o Paraíso Terrestre [...] habitado por homens e mulheres em estado de inocência” (VÁRIOS, 1997, pp. 120,121). Como é possível no Paraíso Terrestre, conviverem “homens e mulheres em estado de inocência” e simultaneamente um grupo violento? Inadmissível! Portanto, sendo o Brasil habitado por “homens e mulheres em estado de inocência”, segue-se o raciocínio falacioso de que o povo brasileiro é “cordial, generoso, pacífico, sem preconceitos de classe, raça e credo.” (Ibidem). Essa imagem caricata construída em relatos e correspondências, celebrada dos botequins às mais altas rodas sociais precisa explicar a violência real existente no país em que os fatos insistem em mostrar. Como encará-la? Chaui diz que a resposta é simples: “não a encarando, mas absorvendo-a no preconceito da não-violência” (VÁRIOS, 1997, p. 121). Ela, então, apresenta um sistema para driblar a convivência do fato com o relato, das ocorrências com as consciências. O sistema consiste de três mecanismos diretos e três procedimentos indiretos. Interessam-nos aqui os três mecanismos. O primeiro é o mecanismo da exclusão. Usando como exemplo o próprio caso brasileiro, no mecanismo da exclusão afirma-se que o povo da terra é não-violento e, portanto, qualquer violência situada nos limites da nação é 59 Ver, e.g., HANIF, S. The difference between freedom-fighters and terrorists is not perception but terminology, in Media Monitors Network, California, 2003. Disponível em http://www.mediamonitors.net/sabiahanif1.html, acessado em 15.04.2014. Do outro lado, AVNERY, U. All Kind of Terrorists, in Media Monitors Network. Califórnia, Nov. 2001. Disponível em: http://www.mediamonitors.net/uri44.html, acessado em 22.04.2014. 47 praticada por não-brasileiros, mesmo que o infrator seja nascido e registrado no país. Cria-se um dualismo entre “nós, os brasileiros pacíficos” e “eles, os outros violentos” que não cabem no discurso de afirmação preconceituoso de que “o povo brasileiro é pacífico e não-violento por natureza”. No caso da eliminação de vidas, Wainberg diz que “o que autoriza o assassinato do outro é a imagem decaída que temos de sua cultura, história, religião, hábitos e costumes” (WEINBERG, 2007, p. 44). No caso em questão, o Corão registra revelações de Muhammad ensinando que o Cristianismo e o Judaísmo foram ultrapassados pelo Islamismo. Se isso for mal compreendido ou mal utilizado, cria a caricatura do outro e de sua cultura como inferiores. 60 O segundo mecanismo apontado por Chaui é o mecanismo da distinção entre o essencial e o acidental. Se naturalmente ou em sua essência o povo brasileiro é não-violento, então, nenhum registro de violência nessa sociedade não pode fazer parte da essência do povo, pois isso é antinatural. No entanto, havendo violência – e há – então ela é episódica, não-essencial, não-estrutural na composição da sociedade. É preciso “distingui-la” ou nomeá-la, “ou como se diz muito exatamente, é ‘um surto’, ‘uma onda’, ‘uma epidemia’.” (VÁRIOS, 1997, p. 121). Por último, há o mecanismo das máscaras. De certo modo, é parecido com o primeiro: o da exclusão. Aqui ocorre a separação entre “nós” e “eles”, sendo que cada um de “nós” pode, acidentalmente, estar entre “eles”. Mas para que fique claro esse mascaramento, é preciso dar uma identidade própria a uns e outros, para que a violência, quando vier, seja vista como efetuada ou provocada por um “não-brasileiro”, o outro. No mecanismo das máscaras há uma tendência à diminuição dos atributos comuns à sociedade; o violento é menos povo, é menos cidadão em relação àquele que não comete a violência: 60 “Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2.63-66; 5.59-60 e 7.166.” Disponível em http://coraocomentado.blogspot.com.br/2010/01/blogando-o-alcorao-surata-2-vaca.html e acessado em 13.10.2013. A mesma concepção encontrei em O Filho do Hamas: “Por que meu pai, que amava Alá e seu povo, tinha de pagar um preço tão alto enquanto homens sem fé como Arafat e membros da OLP proporcionavam uma grande vitória aos israelenses, que eram comparados a porcos e macacos no Alcorão?” (YOUSEF, 2010, pp. 77,78). 48 E, finalmente, aquelas máscaras são o preconceito 61 em seu estado puro: a favelada, mãe irresponsável que gera a criança de rua naturalmente delinquente e perversa [...] Enfim, todas as formas estruturais de violência são mascaradas pela atribuição da culpa à vitima. (VÁRIOS, 1997, p. 122) Isso se aproxima muito do que Goffman 62 chamou de estigma: Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser – incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. [...] O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de atributos (GOFFMAN, 1988, pp. 12,13; ênfases acrescentadas). Para Buoro (1999, p. 12; citando Norbert Elias), o processo que levou ao estabelecimento, no Ocidente, da sociedade com as características que a fazem conhecida em nossos dias como Civilização Ocidental, precisou incluir uma interferência do Estado na regulação das relações interpessoais. 63 “Historicamente a justiça era vista como responsabilidade pessoal”, e era 61 “O preconceito diz respeito a um mecanismo desenvolvido pelo indivíduo para poder se defender de ameaças imaginárias, e assim é um falseamento da realidade, que o indivíduo foi impedido de enxergar e que contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas se vê obrigado a não ter” (CROCHÍK, 2006, p.22). 62 Erving Goffman (1922-1982) estudou nas universidades de Toronto e de Chicago. Na Universidade de Chicago, estudou Sociologia e Antropologia Social. Foi Professor Titular da Universidade da Califórnia em Berkeley e professor de Antropologia e Sociologia na Universidade da Pensilvânia, presidente da Sociedade Americana de Sociologia em 1981-1982 e efetuou pesquisas na linha da sociologia interpretativa e cultural, iniciada por Max Weber. 63 Norbert Elias, O processo civilizador, vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1993. 49 matéria de educação pessoal aprender que matar por justiça era ato de virilidade. 64 As relações na comunidade não tinham qualquer mediação senão das partes interessadas, portanto, estava justificada a proteção de suas posses, de sua dignidade e o “senso comum”, para resgatar Chaui, assim construiu o seu estatuto (BUORO, 1999, p. 12). Com a organização do Estado, este assumiu o papel do indivíduo na regulação das relações conflituosas, fazendo a justiça vigorar e estabelecendo a paz social. Ao menos em tese. O indivíduo já não pode arbitrar as causas que antes eram de sua competência; deve transferir para o Estado a primazia dos atos de “vingar a violência sofrida por qualquer que seja a causa (Ibidem). As Reflexões sobre a violência, de Georges Eugène Sorel, 65 serão consideradas, aqui, apenas por recontarem a história das distinções feitas entre violência e o que Sorel chama de “brutalidade” e “força”. O prefácio de Jacques Julliard traz a “distinção célebre” que Sorel faz “propondo chamar de força os atos da autoridade e de violência os atos de revolta. A primeira é obra do Estado; a segunda, do proletariado” (SOREL, 1992, p. 11). Não que o conflito nos territórios ocupados possa ser comparado a lutas de classes, 66 mas é análogo quando consideramos Israel como força ocupante dos territórios, oprimindo os palestinos e obrigando-os a serem confinados (FLINT, 2009, pp. 210,219; SAID, 2012, p. 196). Para Sorel, o Estado deve usar a força como meio de garantir a ordem social pela qual uma minoria governará. A força do Estado é legítima e no seu momento histórico de transição da execução da “justiça” das mãos do povo para os braços fortes do Estado, a violência é vista como quebra da ordem social, ou seja, ela procura destruir a ordem que o Estado deverá garantir. Assim, todo ato visando à acomodação de interesses díspares dentro de uma sociedade, e que não é desencadeado pelo Estado, não é uso da força, mas 64 Aqui a autora está citando ROUCHÉ, Michel. A violência e a morte – Alta Idade Média. In: VEYNE, Paul (Org.). História da vida privada. 8ª reimp. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Vol. 1, pp. 467-500. 65 A obra de Sorel reúne uma série de artigos publicados em forma de livro. O autor se preocupa com os aspectos jurídicos e a violência no socialismo, e distingue violência de brutalidade. 66 Embora, como vimos no ponto 1.1, os movimentos palestinos surgidos no final da década de 1950 apoiavam-se em teoria marxista. 50 da violência. “A palavra violência está marcada com o selo da ilegitimidade, enquanto da força a religião católica fez uma virtude” (SOREL, 1992, p. 11). Afirmação parelha temos em Seyyed Hossein Nasr: “Na medida em que ‘força’ está em causa, o Islã não é completamente oposto ao seu uso, mas sim procura controlá-la à luz da lei divina (al-Sharia)” (NASR, s/d). 67 O campo referencial de Sorel é a França da segunda metade do século XIX, cercada de protestantes e católicos por todos os lados. O autor se preocupa com os aspectos jurídicos e a violência no socialismo e a sua preocupação é guiada pela busca da “gênese histórica da moral” (SOREL, 1992, p. 14), daí, que constrói seu argumento sob a tutela de Pascal, fartamente citado na obra e por quem nutre grande admiração. Nisso guarda semelhança com o trabalho de Michael Walzer, que considera a realidade moral da guerra o seu aspecto mais problemático: 68 “La forma en que hablamos sobre la moral y la justicia es muy similar al lenguaje que utilizamos para referirnos a la estrategia militar” 69 (WALZER, 2001, p. 41). Mas Sorel nada faz sem recorrer a Marx, de quem retém a ideia de uma espécie de lei implacável das condições sociais, da qual não se poderia escapar, como fazem os otimistas, através da busca de um “bode expiatório” (SOREL, 1992, p. 17), no que parece lançar a pedra fundamental do pensamento e da teoria mimética para Girard. A violência presente, conforme pensamento que Sorel desenvolve a partir das reflexões de Pascal, deve implicar um crime anterior da humanidade. Só isso justificaria “o caráter inédito do sacrifício de Jesus e do livramento que ele propicia” (SOREL, 1992, p. 17). Sorel distingue entre o cristianismo histórico e o calvinismo contemporâneo. 67 NASR, S. H., Islam and the question of violence, in Journal, vol. 13, nº 2. Al-Islam.org, publicado por Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project. Disponível em Acessado http://www.al-islam.org/al-serat/vol13-no-2/islam-and-question-violence-seyyed-hossein-nasr, acessado no dia 04.02.2014 68 “O ponto de partida da obra é a distinção medieval entre o ius ad bellum (direito a guerra) e o ius in bello (direito de guerra). O primeiro se refere as razões que têm os estados para entrar em combate e o segundo aos meios com que estes leva a cabo seu desígnio. Nesta dualidade se encontra o coração mesmo do que constitui a essência mais problemática da realidade moral da guerra” (Jorge Navarrete). 69 “O modo como falamos de moral e justíça é muito semelhante à linguagem que usamos para referir-nos a estratégia militar” (trad. livre). 51 Os dogmas do pecado e da predestinação foram levados às suas consequências mais extremas. Eles correspondem aos dois primeiros aspectos do pessimismo: à miséria da espécie humana e ao determinismo social (SOREL, 1992, pp. 34,35). Mas para ele o protestantismo não é suficientemente justo para dirimir as questões sociais, não esse protestantismo calvinista que ele observa. E aí entram as suas críticas. Ele acusa os calvinistas que se organizavam militarmente e faziam expedições a países católicos, expulsando os adeptos de Roma, enquanto que os discípulos de Cristo assistiriam a tudo passivelmente, ou seja, a vitória de Cristo sobre o pecado e a miséria humana. Esses mesmos discípulos, retomando uma leitura literal das conquistas cananeias, faziam-se os próprios conquistadores da Terra Santa. Tomavam, portanto a ofensiva e queriam estabelecer o reino de Deus pela força. Em cada localidade conquistada, os calvinistas realizavam uma verdadeira revolução catastrófica, mudando tudo de alto a baixo (SOREL, 1992, pp. 33,34). Por que hoje há críticas a essas posturas, tanto a dos tempos de Sorel como dos tempos dos discípulos calvinistas? Porque o conceito que se tem de justiça é remodelado pelo tempo e pela cultura. Sorel alinha o seu pensamento ao de Pascal e diz que a justiça existe “conforme Deus no-la quis revelar”. Como os deuses diferem entre os povos, a justiça sofre suas variações em consonância com a fé. Assim, Sorel provoca Pascal a reconhecer que a “teoria do direito natural” não é ciência exata, ela muda e sabemos isso ao notar não haver leis universalmente aceitas: “ações que consideramos crimes foram tidas outrora como virtuosas” (SOREL, 1992, p. 37). A justiça está sujeita à controvérsia; a força é bem reconhecível e incontroversa. Assim, não se pode dar a força à justiça, porque a força contradisse a justiça e disse que ela é que era justa. E não se podendo fazer que o que é justo fosse forte, fez-se que fosse justo o que é forte (SOREL, 1992, p. 37). 52 E o que isto tem a ver com o Hamas? O que vejo aqui é a semelhança entre o que chamamos “justiça”, no Ocidente, e o que a sociedade palestina sofre com a ocupação de terras por Israel. Não podendo recorrer ao que consideram justo, fazem uso da força, que podemos considerar “injusta”. Sorel, então, aponta para a democracia, cujo estabelecimento valeu-se de “certos atos criminosos” que foram descritos pela História como heroicos ou meritórios e usará um exemplo de P. de Rousiers para demonstrar as díspares admissões culturais a respeito do conceito de violência. Rousiers, um “católico fervoroso e preocupado com a moral” (SOREL, 1992, p. 203), descreveu situação em 1860 na qual os moradores da região de Denver, grande centro mineiro das montanhas Rochosas, agiram na fissura da inoperância da magistratura americana. Os “cidadãos corajosos resolveram agir” e os bandidos foram expurgados (Ibidem). Então, diz P. de Bureau: Sei [...] que a lei de Lynch é geralmente considerada na França como um sintoma de barbárie [...]; mas se os homens de bem da Europa pensam assim, os homens de bem da América pensam de outro modo. (Ibidem, p. 205). 70 Assim Sorel aprofunda as distinções existentes, quando se tenta definir o que é a violência dentro de um contexto social. Para ele, as relações sociais se dão sobre “uma infinidade de incidentes de violência” diante dos quais o homem não há que recuar, especialmente quando o enfrentamento é legítimo no sentido de gerar benefícios ao grupo (SOREL, 1992, p. 2011) – ou, no nosso caso, etnia; estou fazendo alusão ao conflito em questão. Chama a atenção de Sorel a violência das revoluções, que foi satanizada nos países democráticos onde a educação e a cultura foram elevadas à categoria de virtude máxima e aos trabalhadores não restou mecanismo para lutar por seus direitos (SOREL, 1992, p. 240). Para ele a diferença é semântica: astúcia e violência são duas faces da mesma moeda. 70 A Lei de Lynch, de onde nos veem as expressões “linchar” e “linchamento”, é o assassinato de um indivíduo, geralmente por uma multidão, sem processo judical e em detrimento dos direitos básicos de todo cidadão. 53 Argumentos falaciosos doem tanto ou mais que pancadas: “não há uma diferença muito grande a estabelecer entre esses dois métodos” (Ibidem). É a mesma percepção de Sabia Hanif, 71 criticando a “Grã-Bretanha [que] se orgulha de seu compromisso com a igualdade, desde que você não seja argelino ou muçulmano” (HANIF, 2003, trad. livre). 72 Ela refere-se ao tratamento dado pelos políticos ingleses e ecoado pela imprensa aos argelinos muçulmanos no país, que não podiam levantar suspeitas sobre serem ou não violentos, pois nem todos vieram da França, onde argelinos muçulmanos haviam promovido um atentado ao metrô. A Grã-Bretanha deveria ser um refúgio para alguns argelinos (lembre-se que nem todos os argelinos estão aqui como refugiados), mas este sonho azedou. Argelinos se tornaram bodes expiatórios; eles são a nova cara do diabo (HANIF, 2003). 73 Sorel nos chama a atenção para as diferenças culturais na definição da violência. Atos de violência funcionam bem em contextos carentes de emancipação e geram um pensamento comum rico e sublime, mas isso não é observado como lei universal. Assim, em outros países as coisas não funcionam da mesma maneira. Por quê? A sua resposta é que “as tradições nacionais desempenham aqui um grande papel” (SOREL, 1992, p. 242). Por “tradições nacionais” certamente ele entende uma sociedade ou cultura, dizendo haver distinção quanto a moral, tema caro a ele. Para Sorel, a legitimidade da ação, envolvendo a violência, está ligada à noção de moral; 71 The difference between freedom-fighters and terrorists is not perception but terminology, in Media Monitors Network, disponível em http://www.mediamonitors.net/sabiahanif1.html em 15.04.2014. Na ocasião da publicação deste artigo, Sabia Hanif era estagiária na Comissão de Direitos Humanos Islâmica (Islamic Human Rights Commission, www.ihrc.org) e co-autora de Language, media and the public mind – a case study of reporting of the “ricin” incident com Romana Majid. 72 As citações de Hanif daqui em diante serão traduções livres. 73 Neste contexto ela critica a ironia de Uri Avnery que, por sua vez, faz distinção entre combatentes pela liberdade e terroristas: “[...] guerreiros da liberdade estão do meu lado e os terroristas estão do outro lado” (HANIF, 2003). 54 mas há distinções, já que há modelos sociais (como o socialismo da época) que estão pouco ligando para a moral (SOREL, 1992, p. 244). Esse pensamento é herdado das civilizações umas às outras. A Europa cristã, por exemplo, recebeu sua herança do modelo grego clássico (SOREL, 1992, p. 259, tratado por Nietzsche em Genealogia da moral, citado por Sorel). O que a sociedade chama “valores de virtude”, ainda que essa sociedade seja cristianizada, não são valores cultivados nos conventos da cristandade europeia de Sorel, mas na família que os preservam: “é curioso observar a que ponto a Igreja moderna desconhece esses valores que a civilização cristã-clássica produziu” (SOREL, 1992, p. 262). A família é a maior afetada nos distúrbios sociais; mais que o governo. Veja o reclame palestino das perdas de terras cultivadas, propriedades, áreas herdadas (HAROUB, 2009, pp. 144,145). O mesmo ocorre em culturas em que predominam outras religiões; certamente é a família que se encarrega de legar valores. E. Said observa isso e cita livro de Hisham Sharaby que “tenta dissecar a sociedade árabe para mostrar que o que há de errado nela é sua estrutura familiar irremediavelmente patriarcal, autoritária e atávica” (SAID, 2012, p. 212). Se a Igreja está fora de cogitação na concepção de Sorel, se não é que está em situação pior que a sociedade atrasada e “bárbara” pré-revolução, e a família preserva valores que servirão para inflamar as massas, quem poderá ou deverá aglutinar os interesses coletivos? O papel da religião é prover a “moral” que mantem o proletário, no capitalismo, sujeito, submisso. Os intelectuais admitem a religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a religião e dê condições iguais a todos por meio do Estado (SOREL, 1992, p. 265). Resposta óbvia. E ideal para setores específicos do Islã que se inclinam ao socialismo porque este se opõe ao capitalismo 74 democrático em alguns 74 “Aos olhos islâmicos o capitalismo por sua vez contradiz valores centrais da economia muçulmana indisposta a juro, à corrupção e ao vício, marcas que sintetizam a ojeriza que sentem por estas distorções e outras liberalidades comportamentais de tais sociedades” (WEINBERG, 2007, p. 157). 55 países, mas não para todo o Islã. Mesmo Said indica que leitores de Sharaby 75 terminam a leitura da obra querendo saber qual a proposta do autor para substituir a família. “Então surge um vazio quase total” (SAID, 2012, p. 212). O papel da religião para aqueles que fazem resistência na Palestina não deve ser entendido à parte dessa moldura. Por que seria? A resistência é necessária, pois as terras estão sendo ocupadas. Se um movimento como o Fatah tem motivações nacionalistas, o Hamas enfrenta o mesmo problema, mas dá respostas a partir da religião. Esse é um ponto importante a se ressaltar. Não penso que a ocupação, se considerarmos as resoluções da ONU 242 e 338 e a ocupação “israelense da Cisjordânia e de Gaza em 1967”, incrementada com “política de destruição [...] implantada nessas áreas (SAID, 2012, pp. XXIII e 17), 76 são ilegítimas; a necessidade de uma resposta a Israel existe, e o que dispõe os palestinos para chamar a atenção e trazer interlocutores à mesa de discussões? O terror provocado por suas ações. La realidad moral de la guerra presenta dos vertientes. Sucede que la guerra siempre es juzgada dos veces, la primeira em relación com las razones que tienen os Estados para entrar en combate, la segunda em función de los medios com que llevan a cabo su designio. El primer tipo de juicio posee carácter adjetivo: décimos que uns determinada guerra es justa o injusta. El segundo es adverbial: décimos que la guerra se há desarrollado justa o injustamente (WALZER, 2001, p. 51). Avnery 77 conta que um “terrorista” palestino lhe disse que eles usam os recursos de que dispõem: “Dê-me tanques e aviões, e eu vou parar de enviar 75 Hisham Sharabi (1927–2005 ), foi professor emérito de História e Cultura Árabe na Georgetown University, onde foi especialista em História Intelectual e Pensamento Social Europeu. 76 Said registra, e.g., que “no fim de 1969, 7.554 residências árabes foram arrasadas e, em 16 de agosto de 1971, 212 casas foram demolidas, segundo o londrino Sunday Times de 19 de junho de 1977” (SAID, 2012, p 17). 77 Uri Avnery nascido na Alemanha, é um jornalista israelense, pacifista e antigo membro da Knesset (1965-1974 e 1979-1981). Durante a juventude foi membro do movimento de direita denominado Sionismo Revisionista e da organização paramilitar Irgun. Fundador do 56 homens-bomba a Israel” (AVNERY, 2014). 78 As ações de terror são baratas 79 em função dos recursos precários dos palestinos. No entanto, o revide por meio de ações terroristas é a resposta que o Hamas e movimentos com motivação religiosa encontram, mais que em uma ideologia nacionalista, por exemplo. Segundo Fathi Shiqaqi, um dos fundadores da Jihad Islâmica Palestina, a capacidade de destruir o moral do inimigo e plantar o terror no povo judeu é uma “capacidade” que vem como “um presente de Alá” (HASSAN, 2001). 80 Hassan conta que, em abril de 1999, ela encontrou-se com um “Imam afiliado ao Hamas: um jovem barbudo, pós-graduado pela prestigiosa Universidade Al Azhar, no Cairo” (2001). O relato dado por aquele Imam é uma elaborada teologia do martírio; descreve desde as funções da primeira gota de sangue para lavar “seus pecados instantaneamente”, passa pela isenção de julgamento no “Dia do Juízo Final”, tem a possibilidade de “interceder por setenta” de seus parentes mais próximos e queridos para que entrem no Céu, além de ter “à sua disposição setenta e duas huris, as belas virgens do Paraíso” (HASSAN, 2001). Sheikh Ahmed Yassin é o conhecido líder espiritual do Hamas, morto pelo exército israelense em 2004. Hassan teve diversos encontros com ele, “em sua movimento pacifista Gush Shalom, foi um dos proprietários do HaOlam HaZeh, uma revista israelense de informação, que circulou de 1950 a 1993. 78 Um membro das Brigadas de al-Qassam disse: “Não temos tanques ou foguetes, mas temos algo superior, explodindo nossas bombas islâmicas humanas. No lugar de um arsenal nuclear, estamos orgulhosos do nosso arsenal de crentes” (HASSAN, 2014). 79 “Se as armas de destruição em massa hoje são caras, a bomba humana é barata. Um oficial de segurança palestino ressaltou que, além de um jovem disposto, tudo o que é necessário são itens como pregos, pólvora, uma bateria, um interruptor de luz e um cabo curto, mercúrio (facilmente obtidos a partir de termômetros), acetona, e o custo de adaptar um cinto largo o suficiente para manter seis ou oito bolsões de explosivos. O item mais caro é o transporte a uma cidade israelense distante. O custo total de uma operação típica é de cerca de cento e cinquenta dólares. A organização patrocinadora geralmente dá entre 3 e 5 mil dólares à família do bombardeiro” (HASSAN, 2001, trad. livre). 80 Nasra Hassan atua há mais de 20 anos com a ONU, tendo passado pela UNICEF e UNRWA. Ela entrevistou mais de 250 pessoas envolvidas na militância palestina, entre voluntários a homens-bomba, organizadores de ataques e familiares. 57 pequena casa em uma pista de terra batida em um quarto lotado de Gaza”. Yassin chamou a atenção para a dúvida que tinha a respeito de os leitores ocidentais de Hassan compreenderem os motivos do martírio. “Eu duvido que eles vão estar dispostos a entender as suas explicações”, disse ele. O amor ao martírio é algo profundo dentro do coração. Mas estas recompensas não são em si o objetivo do mártir. O único objetivo é ganhar a satisfação de Allah. Isso pode ser feito da maneira mais simples e mais rápida ao morrer pela causa de Alá. E isso é Deus que escolhe os mártires (HASSAN, 2001). Essa é a resposta eminentemente religiosa para a questão do conflito, o que, a meu ver, não tira a sua legitimidade. Semelhante à construção da saga do Islã, quando da expansão inicial na península arábica e posteriormente nas conquistas iniciais sob comando dos califas “bem guiados”, a literatura produzida exerceu papel fundamental, quando elaborou o mito e consolidou a mensagem e a imagem que deveriam permanecer e entrar para a História. Explicando o termo jihad, Kepel 81 (2003, pp. 92,93) aponta este sentido. Sorel registrou que a literatura produzida após a Revolução “não é totalmente mentirosa quando relata um número tão grande de frases grandiloquentes que teriam sido lançadas por combatentes” (Ibidem, 1992, p. 269). Mas essas frases foram buriladas nas escrivaninhas de “homens de letras, habituados a manejar a declamação clássica”. É o que Weinberg (2007) acredita e o que dá título ao seu livro. Podemos aplicar isso ao Islã, quando narra as glórias dos tempos ideais da comunidade do Profeta, em Yatrib. Essa prática é vista na propaganda que atribui aos discursos do Profeta certas categorias desenvolvidas recentemente, como Weinberg que cita Abdullah Yussuf Azzam, 82 para quem o lema 81 Gilles Kepel é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris. É Diretor do Programa de Doutorado no Mundo Muçulmano do Instituto de Estudos Políticos. Foi Professor Visitante nas Universidades de Columbia e Nova Iorque. Ele é o autor de vários livros sobre o Islã, incluindo o tema da Jihad. 82 Abdullah Yusuf Azzam (1941–1989). Nascido na Palestina, foi teólogo, pensador e soldado do Islã. Fundador da Jihad Afegã, foi para o Afeganistão em 1983 para lutar contra os soviéticos. 58 inspirador era: “Nada mais que a Jihad e o rifle: não a negociações, não a assembleias, não ao diálogo” (WEINBERG, 2007, p. 8). “Em ‘Virtudes do martírio no Caminho de Alá’ [...] o ‘Lênin da Jihad Internacional’” disse: “A vida da ummah 83 está conectada à pena dos intelectuais e ao sangue dos mártires” (Ibidem) ou, mais especificamente, no caso dos “20 mil mujahidin (soldados do Islã) de 20 diferentes países que derrotaram os soviéticos que, com o terror como tática e o Alcorão como inspiração” (Id.). Ou, nas palavras de Azzam, “a jihad me ensinou que o Islã é como uma árvore que é nutrida apenas por sangue” (ABU-RABI, 2011, p. 86). “Para Azzam, o principal objetivo do jihad após a inevitável queda de Cabul seria a tomada de Jerusalém e a restauração da lei islâmica em uma Palestina libertada da ocupação sionista” (KEPEL, 2003, p. 95). Assim, para justificar a violência na revolução por meio das lutas geradas pela defesa dos valores entre classes, sociedades ou civilizações – se estamos pensando de maneira mais ampla – Sorel apropriou-se da tese de Harnack, que havia defendido que os mártires do Cristianismo não teriam sido muitos como a história quer fazer crer. E como faz isso? Construção literária com citações específicas (SOREL, 1992, pp. 206-210). A sua conclusão neste ponto é, mais uma vez, óbvia. O socialismo é bastante razoável e “perfeitamente revolucionário”, pois mesmo com uns poucos e breves conflitos, esses são ampliados, como o foram os relatos de martírio no Cristianismo, mas que guardadas as devidas proporções (catastróficas), a “civilização não corre o risco de sucumbir sob as consequências de um novo desenvolvimento da brutalidade” (SOREL, 1992, p. 210). A morte nestas condições fica justificada. 1.3 A violência hoje A fim de traçar um entendimento sobre a violência como é entendida hoje, partirei da obra de Paulo Sérgio Pinheiro, Violência urbana (PINHEIRO, 83 A comunidade ideal (ou ainda em processo de construção) dos muçulmanos submissos a Lei de Deus. 59 2003). 84 Dela interessa o primeiro capítulo: a “tipologia da violência”. 85 Nele, distingue-se a violência em três grandes categorias: violência auto-infligida, violência interpessoal e violência coletiva. A obra de Pinheiro é concisa e direta. Ele argumenta que a violência é constituída de “ação, produção de dano/destruição e intencionalidade”, e elabora “uma definição básica de violência: ação intencional que provoca dano” (PINHEIRO, 2003, p. 19). “O uso da força é prudente – dentro, claro, de seus limites. Já a violência é a ‘força cega’, que não enxerga as consequências de seus atos” (Ibidem). Embora trate da violência urbana (cfm. citação acima), 86 Pinheiro evoca a compreensão internacional, já assentada, que reconhece o uso da força pelo Estado. O Estado age dentro de normas e limites estabelecidos para a manutenção da ordem pública, com vistas à construção de um espaço público para a convivência entre os diferentes. “A ação não-violenta, pautada pela ética, é a maneira que possibilita o encontro dos homens e mulheres pela palavra” (Ibidem). Assim, o aparato político é o mecanismo legítimo no Estado pelo qual homens e mulheres, povos, etnias, sociedades, enfim, podem estabelecer diálogo. “A violência traz como resultado a desordem e o caos, impossibilitando a criação do espaço público para ação política” (Ibidem). No Estado moderno, a violência deve ser suprimida por ele da relação conflituosa existente no espaço público. Ela na verdade não desaparecerá porque, como o próprio autor diz, faz parte da “essência do ser humano”; tentar compreendê-la é exercício de compreensão do próprio ser humano. No entanto, dentro desse cenário, “a política é uma prática eminentemente oposta à violência” (Ibidem, ênfase acrescentada). A 84 Paulo Sérgio Pinheiro é um diplomata e acadêmico brasileiro. Dentro da Estrutura da Organização das Nações Unidas, ele exerceu o cargo de relator especial para a situação dos direitos humanos de Myanmar. É coordenador de pesquisa do programa CEPID/FAPESP/ Núcleo de Estudos da Violência, Universidade de São Paulo (USP) e Professor de Ciência Política (aposentado) pela USP. Também lecionou na Brown University, Columbia University, na Notre Dame University, nos EUA; na Oxford University, na Grã-Bretanha e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Publicou diversos artigos, ensaios e livros sobre história social, democracia, violência, e direitos humanos. 85 Esse capítulo 1, O que é a violência? fala da categoria Violência Coletiva que está ligada ao nosso objeto de estudo. 86 O que em certa medida pode ser atribuído ao cenário social urbano onde o Hamas atua. 60 política é a alternativa que deve ser buscada como o único meio pelo qual povos e sociedades estabelecerão marcos legítimos para a construção do espaço publico. “Violência” provém do latim violentia, que significa “veemência”, “impetuosidade”, e deriva da raiz latina vis, ‘força’ (PINHEIRO, 2003, p. 19, ênfases no original). Pinheiro distingue o uso da força entre duas categorias. Mesmo que essa força seja tomada em seu sentido de “agressão física”, ou com maior intensidade, como o uso de força física valendo-se do “uso de armas de fogo ou mesmo bombas”, é preciso atentar para o fato de que ela seja “especializada” ou “não-autorizada” (PINHEIRO, 2003, p. 15). A violência de um “terrorista”, como ele estabelece, é exemplo de uso não-autorizado, porque não está dentro do mecanismo social legítimo do Estado (Ibidem). Mas a mesma bomba ou armas de fogo nas mãos de um soldado do exército é exemplo de força em seu sentido “especializado”, porque atua com rigor na “defesa”. O mesmo vale para o exército, que ao fazer uso dos mesmos expedientes age, não com violência, mas com força, “caso em que a palavra “força” é preferencial (sem mencionarmos que muitas operações de guerra e preparação bélica são descritas como de “defesa”)” (Ibidem). Avnery concorda: Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros meios. Isso é verdade para o terrorismo, também. O terrorismo é sempre um instrumento para a consecução de objetivos políticos. Uma vez que estes podem ser de direita ou de esquerda, revolucionário ou reacionário, religioso ou secular (AVNERY, 2014, trad. livre). 87 As distinções feitas por Pinheiro são limitadas a determinados contextos, mas são importantes. Há muito se fala também em terrorismo de Estado, por exemplo. Avnery (2014) em seu artigo considera diversas manifestações de caráter terrorista cometidos por forças ditas “especializadas”, usando a expressão de Pinheiro: 87 As citações de Avnery daqui em diante serão traduções livres. 61 Israel tem usado esse método a partir da data da sua criação. No início dos anos 50 o IDF 88 cometia “ataques de retaliação”, projetados para assustar os aldeões de além da fronteira, a fim de induzi-los a exercer pressão sobre os governos da Jordânia e do Egito para impedir a infiltração de palestinos em Israel (AVNERY, 2014, trad. livre). A exposição de Pinheiro apresenta as distinções aceitas entre força e violência. Seguindo o raciocínio, Pinheiro traz para o seu texto a definição de violência, dada pela Organização Mundial da Saúde, OMS. O uso intencional da força física ou do poder, real ou potencial, contra si próprio, contra outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. E. G. Krug, Relatório Mundial Sobre Violência e Saúde. Brasília: OMS / Opas / UNDP / Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2002. (PINHEIRO, 2003, p. 16) A definição da OMS abrange inúmeros casos como negligência, abusos físicos, sexuais, psicológicos, suicídio, auto-abuso etc., formas de violência que acarretam opressão a pessoas, famílias, comunidades, sistemas de saúde, além de atos de violência ativos e reativos. Destaco o perfil da violência “nãoautorizada”, a qual a OMS define como 88 A palavra “IDF” é formada a partir das iniciais do nome hebraico oficial do Exército de Defesa de Israel. A segunda palavra “defesa”, haganah em hebraico, foi o nome dado para as forças militares clandestinas da comunidade judaica na Palestina durante o mandato britânico. Tinha o direito a esse tempo a duas pequenas formações dissidentes, o Irgun de Menachem Begin e o Stern Gang (LEÍ), que praticava o terrorismo contra os ingleses e os árabes palestinos. Após a criação do Estado de Israel, Begin preferiu o uso do termo “exército de Israel” e não “IDF” por causa da alusão ao haganah no nome oficial. Disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/mav/88/KAPELIOUK/13690#nb1 e MORIN, 2007, p. 118. 62 [...] uso intencional da força física ou do poder [...] contra outras pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação (Ibidem). Concorda com essa definição da OMS o registro de Vilhena: 89 Toda violência é, na verdade, violação da personalidade daquele que a sofre. Toda violência é ameaça de morte. E isso porque, atingir a dignidade do ser humano é já atingir sua vida. Da humilhação ao extermínio e ao genocídio, portanto, são múltiplas as formas de violência e múltiplas as de morte. E toda forma de violência é, portanto, mortal (VILHENA, 2007, pp. 144,145). A autora indica a espiritualidade como “única fonte possível” para qualquer enfrentamento com perfil não-violento e ético (VILHENA, 2007, p. 145), o que encontra a sugestão de Girard (2011, p. 163). Embora reconheça as limitações de tal postura frente à opressão e a agressão, a postura espiritual tem o poder de transformar “o ser humano por dentro, gerando vida a partir da sua vontade de não-violência” (VILHENA, 2007, p. 145). O Nobel da Paz de 1984, Desmond Tutu, que visitou assentamentos palestinos, segue na mesma linha quando afirma: [...] não é possível haver futuro sem perdão. Jamais haverá um futuro sem que haja paz. Jamais haverá paz sem que haja reconciliação. Mas não haverá reconciliação antes de existir perdão. E jamais existirá perdão sem que as pessoas se arrependam (TUTU, 2012, p. 54). 89 Junia de Vilhena é Doutora em Psicologia, professora de Psicologia da PUC-Rio, Psicanalista do Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental, pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et Médecine da Université Denis-Diderot, em Paris. 63 Pinheiro não ignora os diferentes contextos culturais e suas dinâmicas, sobre o que falei anteriormente e que ele cita como “largas variações de país para país” (PINHEIRO, 2003, p. 18). O relatório que apresenta coloca o Brasil no topo da lista de países violentos. 90 A pergunta inevitável diante dessa constatação é: como percebemos a violência dos outros, se somos tão ou mais violentos do que eles? Talvez a resposta já tenha sido dada por Chauí e seus “mecanismos” para explicar a violência. Uma distinção que se coloca entre a violência cometida no Brasil e, por exemplo, a violência que vemos nos relatos como o recorte jornalístico sobre o Hamas, em Gaza, é a intolerância entre povos, a rejeição do outro. O Brasil é reconhecido como um país que acolhe de braços abertos as diferentes etnias. Quando não reconhecemos o mesmo padrão em outras partes do planeta, ficamos alerta. Quando a inexistência desse padrão vem acompanhada de violência, dizemos que “eles” são violentos, ainda que os “nossos números” sejam mais alarmantes e provem o contrário. Pinheiro não trabalha com essa possibilidade. Ele coloca a questão de modo diferente. Sua distinção se dá dentro do que chama a “tipologia da violência”, quando elenca três grandes categorias delimitadas por aqueles que a praticam. Ela chama “violência auto-infligida” a violência contra si mesmo; “violência interpessoal”, quando é praticada contra outra pessoa ou quando provem de outra pessoa ou grupo e a “violência coletiva”, a violência “infligida por conjuntos ou grupos maiores, como Estados, grupos políticos organizados, milícias e organizações terroristas” (PINHEIRO, 2003, p. 22). Acredito que tendo qualificado anteriormente a violência do Estado como “força”, aqui Pinheiro esteja considerando o uso da força, além do necessário para estabelecer a ordem pública ou motivada por razões ilegítimas, como no caso das “limpezas étnicas” (WATZAL, 91 2014), como vez ou outra ouço dizer sobre o que Israel faz aos palestinos. 90 “Com taxa de 26,3 homicídios por 100 mil habitantes em 1999, o Brasil ocupa a segunda posição num conjunto de 60 países. Com referência à população jovem, o Brasil (taxa de 48,5 homicídios por 100 mil) ocupa o terceiro lugar, bem distante do grupo de países cujas taxas ficam abaixo de um homicídio por 100 mil jovens” (PINHEIRO, 2003, p. 18). 91 Dr Ludwig Watzal trabalha como jornalista e editor da MWC News em Bonn, Alemanha. 64 Quero acompanhar o raciocínio de Pinheiro e refinar o que chamou “violência coletiva”, conceito que atende a esta pesquisa sobre os movimentos islâmicos de resistência. Ele especifica a violência coletiva dividindo-a em “violência social, violência política e violência econômica” (PINHEIRO, 2003, pp. 22,23). É este o ponto que qualifica as ações, quando são estudados os atos cometidos no cenário onde grupos islamistas atuam, quaisquer que sejam as motivações apresentadas. Pinheiro diz que “a violência coletiva pode indicar a existência de agendas sociais, como, por exemplo, os crimes de ódio, cometidos por grupos organizados, os atos terroristas e a violência das multidões” (PINHEIRO, 2003, pp. 23,24). Assim, ele coloca o “terrorismo” dentro da categoria “violência”. “A ideia de que havia [...] um terrorismo ‘religioso’ começou a se desenvolver com o crescimento de movimentos islâmicos radicais, após a revolução iraniana” (CRENSHAW, 2007, p. 3). De fato, têm sido demonstradas as razões pelas quais ocorrem os ataques do Hamas (PAPE, 2003; CRENSHAW, 2007; SHAUL, 2004 92). Entre as causas estão “agendas sociais”: “vingança pessoal” por parentes mortos em conflitos, “retaliação a Israel”, “contra o processo de paz entre israelenses e palestinos” (CHEN, 2012, p. 113), “o sofrimento dos palestinos” (ATEEK, 2012); “coagir as democracias modernas a fazer concessões significativas a autodeterminação nacional” e “coagir democracias modernas a fazerem concessões de terras” “retirada das forças militares do Estado de destino de que os terroristas veem como lar nacional” (PAPE, 2003). 93 Segundo o B’Tselem – The Israeli Information Center for Human Rights in the Occupied Territories (http://www.btselem.org), o período coberto por esta pesquisa mostra que 1.426 israelenses, civis e militares, foram mortos pelo Hamas (e todas as outras facções palestinas juntas), contra 5.050 palestinos mortos por Israel. “De todas essas vítimas, havia 137 crianças israelenses (ou menores de 92 Os autores SHAUL e EVEN tentam uma “tipologia” do terrorista suicida. Classificaram em quatro perfis de acordo com a motivação: religiosos, explorados, retribuição/vingança por sofrimento e sociais/nacionalistas. 93 A característica comum de todas as campanhas terroristas suicidas é infligir punição na sociedade adversária, seja diretamente, matando civis ou indiretamente matando militares em circunstâncias que não pode levar a vitória significativa em batalha (PAPE, 2003, p. 346). 65 18 anos) assassinadas contra 998 crianças palestinas da mesma faixa etária” (HROUB, 2009, p. 86). Trazendo para a consideração das causas da violência na modernidade, Danilo Martuccelli 94 (1999) faz considerações no ensaio Reflexões sobre a violência na condição moderna. Ele aponta três agentes na ocorrência da violência na modernidade. Primeiro, o processo de deslegitimação da violência nas sociedades modernas frente à maior consciência de insegurança, dos perigos e riscos no mundo moderno. Segundo, a relação entre a “informação” e a “energia”, as limitações imateriais de uns e a realidade material de outros. E, por fim – e decorrente do anterior, o qual chamou de “modelo institucional que preconiza a existência de indivíduos autônomos” – o indivíduo detentor de informação procura normatizar as relações, estabelecendo como modelo ideal de autocontrole, o controle a partir do seu interior, que decorre do processo de desinstitucionalização “muito afastado dos fatos” (MARTUCCELLI, 1999, pp. 172,3). Isso tem feito parte do jogo político e apontado de ambos os lados do conflito: Israel é acusado de lobby no congresso norte-americano, e.g., por Mohsen Saleh 95 (in ABI-RABI, 2011, pp. 138-168) tanto quanto os muçulmanos são acusados (PIPES, 2006). Um dos exemplos dados por Martuccelli é o modo de ver a violência por meio do que chamou “o crescimento da consciência dos riscos e da violência”. Essa consciência decorre da exposição à mídia e à informação, que transmuta a percepção real no mundo tranquilo, vivido por uma classe elevada; mas, principalmente, da observância da ineficácia das estruturas, no sentimento de que nada é feito. A violência fica, assim, sujeita à natureza “subjetiva”, um “sentimento” ou uma maneira de “ter experiência” do mundo exterior ou de sentir-se exposto a ele (MARTUCCELLI, 1999, p. 159). O outro exemplo é a violência como as que foram vistas na América Latina. Elas ocorreram por 94 Danilo Martuccelli é professor de sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Paris-Descartes (Sorbonne). É também membro do grupo de pesquisa CERLIS (Centre de recherches sur les liens sociaux), que pertence à mesma instituição. 95 Mohsen Saleh é um acadêmico palestino que lidera o principal grupo de discussão do instituto al- Zaytouna, com sede em Beirute, Líbano, que publica sobre a situação atual na Palestina, com um foco especial sobre o Hamas. 66 reformas sociais e mudança “dos regimes políticos ilegítimos” (MARTUCCELLI, 1999, p. 158), mas não se pode pensar a violência como “fracasso” nas tentativas de negociação; esse não é o melhor modo de lidar com a questão, já que é possível institucionalização pensá-la das como “relações “resíduo sociais de estrutural constante” dominação”, e não na é (MARTUCCELLI, 1999, p. 158). Antecipando as considerações sobre as causas da violência, feitas por pesquisadores do chamado Islã político (e.g. Demant, Kamel, Weinberg e outros), Danilo Martuccelli teoriza sobre o ambiente propício para a violência na modernidade, o que pode ser aplicado ao Islã presente em determinadas regiões. 96 O autor busca um significado para a violência que esteja além dos contextos históricos, como um “arquisentido”, pois, independentemente do contexto, a violência “não é nada mais a não ser um meio coletivo de ação, ou um recurso indispensável ao ator dominado” (MARTUCCELLI, 1999, p. 158), e essa relação (dominados e dominadores) é notável. Tal violência não deve sequer ser olhada da perspectiva da moral, uma vez que os dominados “não [dispõem] de outros meios, o ator recorre à violência para se fazer ‘ouvir’.” (Ibidem). É o caso já mencionado aqui da obra de Fanon: As relações colono-colonizado são relações de massa. Ao número o colono opõe sua força. O colono é um exibicionista. Sua preocupação de segurança leva-o a lembrar em alta voz ao colono que “o patrão aqui sou eu”. O colono alimenta a cólera do colonizado e sufoca-a. [...] A tensão muscular do colonizado libera-se periodicamente em explosões sanguinárias: lutas tribais, lutas de sobas, lutas entre indivíduos (FANON, 1968, p. 40). Fred Halliday afirma algo análogo: 96 Embora eu tenha dúvidas se se possa falar em Islã “exclusivamente político” e Islã “exclusivamente religioso”. Em determinados contextos, uma ou outra ênfase surge mais pronunciada, mas não excludente. 67 “Terrorismo” é omitido muito facilmente na discussão política contemporânea como fenômeno geral da resistência armada à opressão por parte dos Estados. Esta atividade tem sido uma das principais características do mundo moderno, especialmente em situações de dominação por potências ocidentais ou coloniais. [...] O direito geral de resistir, e, quando existe extrema coação, a pegar em armas, é geralmente reconhecido tanto na lei e no discurso político moderno [...] Este direito também é parte preciosa do legado de reflexão política, no Ocidente e no Oriente, ao longo de muitos séculos. A tradição jurídica e política cristã deu o devido respeito a este princípio. [...] Ele está igualmente presente no discurso islâmico, onde a revolta – muitas vezes é referida como khuruj (literalmente “sair” contra o tirano), (HALLIDAY, 2011, trad. livre). 97 Ernest Gellner 98 também contempla a relação do Islã com o ambiente contemporâneo em Pós-modernismo, razão e religião (1992), complementando a percepção de Martuccelli. Para ele, “os mais importantes conflitos intelectuais da história dos homens tendem a ser binários” (1992, p. 11). Martuccelli fala da a relação entre a “informação” e a “energia” (MARTUCCELLI, 1999, pp. 172,3). Mas a pós-modernidade, para Gellner, fez a fé romper o ciclo binário em benefício de três posições rivais: o fundamentalismo religioso, o relativismo do “pós-modernismo” e o racionalismo iluminista ou fundamentalismo racionalista (GELLNER, 1992, pp. 11,12). Vou deter-me no primeiro caso, o fundamentalismo religioso. O fundamentalismo recusa a reivindicação modernista e tolerante que define a fé como sendo mais moderada, muito menos exclusiva e, na sua globalidade, menos exigente e muito mais complacente (GELLNER, p. 13). 97 Todas as citações de Halliday daqui em diante serão traduções livres. 98 Ernest Gellner é professor na Central European University de Praga e diretor do seu Centro de Estudos do Nacionalismo. 68 Ou seja, o relativismo não cabe no projeto fundamentalista porque é humanista, visa à existência, ao alcance de uma identidade (no sentido dado por Kierkeggard), e não a aceitação rigorosa de uma doutrina rígida. Gellner associa o Islã como o fundamentalismo que atinge níveis mais intensos em nossos dias, contrariando a teoria sociológica da secularização (Ibidem, p. 15). Ele argumenta que a emergência das religiões mundiais moveu a ênfase do “ritual vivido para a doutrina transcendente”, sendo que esse período foi seguido da nova transferência da ênfase para o âmbito cívico (GELLNER, 1992, p. 16). Cita os Estados Unidos como exemplo de uma religião nacional (portanto, cívica). Mas a exceção é o Islã. “Afirmar que a secularização é uma realidade no Islão não é controverso, é simplesmente falso. O Islão é hoje tão forte como era há um século atrás. Em alguns aspectos é talvez mais forte” (Ibidem, p. 17). Das quatro civilizações predominantes no final da Idade Média (cristã, chinesa, indiana e islâmica) a islâmica é a única que não foi secularizada nos níveis das demais (Ibidem). Ele pergunta: “Por que motivo deveria uma determinada religião ser tão marcadamente resistente á secularização?”. A resposta está na estrutura que une aspectos de fé e moral, ou “dito de outro modo, ela é simultaneamente doutrina e lei, pelo que nenhuma outra argumentação válida deverá ser sancionada” (Ibidem, p. 18). É maior a amplitude do registro escrito, “a lei canônica não existe, apenas a lei divina enquanto tal”, de modo que os oficiais (“eruditos muçulmanos”) são mais bem descritos como “teólogos/juristas” (Ibidem). A dualidade Igreja/Estado inexiste neste modelo, o que resulta também na exclusão do relativismo. O fio condutor da fé começa no ambiente supramundano (é divino) e termina no seio do povo, o poder executivo, humano, que opera pela lei a representação da vontade de Deus na terra (Ibidem, p. 19). A lei não pode ser uma opção em determinados contextos culturais; sua expansão ocorre [...] quando muito por analogia e interpretação. A sociedade via-se, assim, dotada de uma lei simultaneamente fundamental e concreta, cada uma delas estabelecida à sua maneira e 69 passível de ser utilizada pelos seus membros com um modelo de governo legítimo (GELLNER, 1992, p. 19). Há pouco espaço para experiências e a flutuação decorrente do sabor dos tempos é eliminada pela coesão dos “três princípios fundamentais [...] que regem a legitimidade religiosa e política no interior dessa mesma civilização”, que são: “a Mensagem divina e a sua componente legal, o consenso da comunidade e, por fim, os líderes sagrados” (GELLNER, 1992, p. 20). Esses três agentes foram encubados em uma sociedade com um centro político cujo poder territorial emanava das lideranças das tribos locais autogovernadas. “Desde modo, a sua forma de governo absolutista era, por um lado, limitado pelo poder real das tribos e, por outro, pela legitimidade independente e não manipulável da lei divina” (GELLNER, 1992, p. 22). Tal estrutura provocou a dualidade interna entre o “Alto Islão dos intelectuais” e “Baixo Islão popular” (Ibidem), que se basta. “Deste modo, a sua forma de governo absolutista era, por um lado, limitado pelo poder real das tribos e, por outro, pela legitimidade independente e não manipulável da lei divina” (Ibidem). A questão é que o equilíbrio pode ser abalado quando “um movimento revivalista” persegue o ideal religioso, “a verdade religiosa absoluta”, e encontra na periferia da sociedade “comunidades rurais autônomas coesas, armadas e com experiência militar” (GELLNER, 1992, pp. 22,29). A ânsia “das tribos periféricas, dotadas de um poder militar formidável”, por “recompensas urbanas e privilégios políticos”, “por abraçar a forma ‘superior’, mais pura e unitária” (Ibidem) do Islã Superior, aliançada por meio de “um intelectual respeitado” (Ibidem, p. 26): esse é o mapa da concepção do fundamentalismo radical revelado no desequilíbrio: O equilíbrio de forças sofreu alterações consideráveis, transferindo-se do Islão popular para o Alto Islão. A maioria das bases sociais do Islão Popular deteriorou-se enquanto o Alto Islão assistiu ao grande fortalecimento de suas bases (GELLNER, 1992, p. 29). 70 Esse é o quadro que Gellner chama de “o Islão Reformado”, com o qual a identificação assemelha-se “à dos nacionalismos noutros contextos” (Ibidem). Uma vez absorvido pelo modelo, o “crente comum dificilmente poderá continuar a identificar-se com a sua tribo local ou com o seu santuário” (GELLNER, 1992, p. 30). As pretensões são universais, domínio amplo, tanto territorial quanto político e econômico. O Islã se basta e não pode se dobrar ao relativismo ocidental. Fazê-lo é apostatar, provocar a própria derrocada a partir do enfraquecimento espiritual, como são interpretas as derrotas frente ao inimigo opressor, cujo remédio será o martírio “contra um tirano muçulmano” (Ibidem, p. 33). Gellner invoca a história da revolução iraniana, quando Khomeini inspirou a “histeria das massas” e “induziu os revolucionários a deixarem-se massacrar pelos homens do xá em número tal, que acabaram por esgotar a paciência da oposição” (Ibidem). Assim, Gellner fecha o modelo da religião do Islã frente às demandas de hoje e de sempre, respondendo que o dilema do Islã, frente ao relativismo na pós-modernidade, não repele a nova cultura, nem faz a “idealização de uma qualquer virtude e sabedoria populares” (GELLNER, 1992, p. 35). Ele “retorna” ou observa estrita e rigorosamente o Alto Islão constituído no seio da comunidade como “uma tradição local absolutamente genuína e desde há muito estabelecida” na “prática da(s) primeira(s) geração(ões) de muçulmanos” (GELLNER, 1992, pp. 35,36). “À luz das necessidades modernas, a autoreforma podia ser apresentada como um retorno ao ideal genuinamente local, um regresso ao lar moral e não tanto um auto-repúdio” (Ibidem, p. 36). Sendo verificada a situação de “opressão” e “dominação”, temos nos aproximado do nosso objeto, em sentido geográfico, pois é o que especialistas relatam como a real situação na terra Palestina, como veremos mais de perto. A “violência” assume outro perfil, passando de “violência interpessoal” (PINHEIRO, 2003, p. 22) para uma crise de “desigualdade profunda”, para usar expressão de Halliday (2004), “una espiral violenta” como diz Walzer (2001, p. 54), o que levará a escalada da violência ou crise mimética, na expressão de Girard (2011, p. 79). 1.4 Terrorismo ou pedido de socorro? 71 Chen 99 (2012, p. 107) considera que o Hamas cometeu o seu primeiro atentado suicida 100 em abril de 1994, “em retaliação pelo massacre de Hebron realizado por extremistas judeus”. Quarenta e seis anos depois da fundação do Estado de Israel, oito depois da fundação do próprio Hamas. 101 Isso exime os palestinos da má fama de “terroristas” como alguns querem fazer crer. Halliday (2011) afirma que não se compreende o terrorismo adequadamente, se não se considerarem as “conexões: entre passado e presente, [terrorismo] estatal e violência insurgente, nacionalistas e movimentos religiosos” (HALLIDAY, 2011, trad. livre). Não há explicação fácil. O número mais expressivo de terrorismo suicida está com os Tigres de Libertação do Tamil Eelam, que, sozinhos, são responsáveis por 75 dos 186 ataques terroristas suicidas, entre 1980-2001 (PAPE, 2003, p. 343). 102 Entre os grupos islamistas, a motivação religiosa representa dois terços do total de ataques suicidas, mas “o fanatismo religioso não explica” por si o terrorismo suicida, como também a adesão de um grupo “a uma ideologia marxista/leninista, [pois] existem explicações psicológicas que têm sido desmentidas pelo leque alargado das origens socioeconômicas de terroristas suicidas” (Ibidem). Se o Hamas encontra forte apoio na Faixa de Gaza, havendo palestinos na Cisjordânia, em Israel e na própria Jordânia (SAID, 2012, pp. 156,157), não é sem motivo. O cerco imposto por Israel àquele território causa, dentre inúmeros outros desequilíbrios, o esmagamento socioeconômico da população. O relatório da ONU (Human Rights Council – HRC, resolution 5/1) apresentado pelo relator especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios palestinos ocupados desde 1967, Richard A. Falk, aponta para as “condições terríveis em que o povo palestino tem para viver” (WATZAL, 2014). 99 Dr. Chen Tianshe é professor associado da Faculdade de História na Zhengzhou University (China). 100 Segundo Crenshaw, as missões suicidas começaram na década de 1980 no Líbano (2007, p. 31). 101 Yousef defende que “embora tenha sido o primeiro atentado a bomba, o ataque em Hadera foi, na verdade, o terceiro teste, parte de uma fase de tentativa e erro durante a qual o fabricante de bombas Yahya Ayyash aperfeiçoou seu ofício” (2010, p. 71). Para Pape (2003, p. 359), o primeiro atentado foi em Afula, também em abril (como Chen) de 1996, no dia 6, com 9 mortos. 102 Robert A. Pape é professor associado de Ciência Política na Universidade de Chicago. 72 Israel bloqueou não apenas 1,6 milhão de habitantes da Faixa de Gaza, mas também controla a área na água, na terra e no ar. Ninguém pode deixar esta prisão a céu aberto sem uma autorização dos israelenses. (Ibidem) O relatório de Falk ainda destaca que a operação militar israelense “Chumbo Fundido”, realizada de dezembro de 2008 a janeiro de 2009, “matou 1.400 pessoas e causou grandes danos na infraestrutura” (Ibidem). Ou, na afirmação de Shulamit Aloni: “Não temos câmaras de gás, nem fornos crematórios, mas não há só um método para cometer um genocídio” (MORIN, 2007, p. 128). 103 Flint 104 diz que na Faixa de Gaza viviam 1 milhão de palestinos e 5 mil colonos israelenses que controlam 30% das terras e 40% das fontes de água (dados que cobrem o período da pesquisa). “Grande parte das reservas subterrâneas de água é canalizada para os assentamentos e para o território de Israel” (FLINT, 2009, p. 56). Em registro feito em abril de 2001 sobre o bloqueio de Gaza, Flint aponta que os prejuízos econômicos batiam na casa de US$ 3 bilhões. Além disso, 125 mil palestinos foram proibidos de manter seu trabalho em Israel e o índice de desemprego chegou a 50% (Ibidem). Ela menciona que a ONU se pronunciou dizendo que durante menos de um ano, de outubro de 2000 a março de 2001, 575 prédios residenciais foram totalmente destruídos e outros 3.700, também residenciais, foram seriamente danificados, 181 mil árvores foram derrubadas pelo Exército e quase 3,7 milhões de m2 de áreas agrícolas cultivadas foram destruídas (Ibidem, p. 129). Diante disso, Pape fala do modo como os terroristas avaliam positivamente a utilização do meio suicida entre suas ações mais efetivas contra a pressão israelense. A retirada das tropas de Israel da Faixa de Gaza em maio de 1994 foi atribuída a um ataque do Hamas. Israel e a OLP 103 Versão do Courrier Internacional de 13 de março de 2003. 104 Guila Flint é correspondente da BBC Brasil para Israel e Palestina, tendo trabalhado para o Jornal da Tarde, o Estadão, GloboNews, CartaCapital, Correio Braziliense entre outros. Formou-se na Universidade de Tel Aviv (Israel), para onde se mudou em 1969. É autora de Israel, terra em transe – democracia ou teocracia?, e Miragem de Paz – Israel e Palestina, processos e retrocessos e revisou e traduziu os textos de Outro Israel: reflexões de Uri Avnery (todos pela ed. Civilização Brasileira). 73 assinaram os Acordos de Oslo em 13 de setembro de 1993 prevendo que as forças armadas israelenses seriam removidas a partir de 13 de dezembro daquele ano, com a conclusão da operação prevista para 13 de abril do ano seguinte. Israel não cumpriu nenhum dos prazos. Soma-se a isso o impasse em outra questão, como o tamanho da força policial da Palestina: a proposta da OLP era de 9 mil homens, e Israel impôs o limite de 1.800 policiais. “Até 5 abril de 1994 estas questões estavam por resolver. O Hamas, em seguida, lançou dois ataques suicidas, um em 6 de abril e outro em 13 de abril, matando 15 civis israelenses” (PAPE, 2003, p. 353. Ver Quadro 2). O próprio Ministro Yitzhak Rabin contrariou a opinião de analistas de que o suicídio terrorista atrasou a implementação do Acordo, ao admitir que a decisão teve o objetivo de reduzir o terrorismo (PAPE, 2003, p. 354). Em outra entrevista citada por Pape, Ahmed Bakr, líder do Hamas, confessa estar certo de que “o que forçou os israelenses a se retirar de Gaza foi o levante e não o acordo de Oslo”. Imad al-Faluji, Ministro da Comunicação da AP, julgou que: [...] tudo o que foi alcançado até agora é a consequência de nossas ações militares. [...] Israel pode vencer todos os exércitos árabes. No entanto, ele não pode fazer nada contra um jovem com uma faca ou uma carga explosiva em seu corpo (Hamas Leader, 1995, apud PAPE, 2003, p. 354). Não me “encanto” com o terrorismo visto em situações assim, nem podemos nos esquecer de que o terrorismo não é um meio exclusivo dos árabes ou muçulmanos (ou islâmicos) de resolver seus problemas. Historicamente, o continente europeu foi pioneiro em violência política em escala mundial, desenvolvido moderna guerra industrial e desempenhando o papel de liderança no desenvolvimento desses instrumentos particulares de ação política moderna e controle: o genocídio, a tortura sistemática do Estado e de terrorismo (HALLIDAY, 2014). 74 Enfim, todos, nações e grupos, se servem do recurso ao terror, a fim de conseguir seus propósitos de “legitimar a violência” (HANIF, 2014). Hanif cita Nelson Mandela, que, se hoje é considerado ícone da luta pelos direitos, ontem fez terror contra o Estado. “Nelson Mandela, agora um herói, foi preso porque se recusou a pedir a seus seguidores que se abstivessem de violência” (HANIF, 2014). Com o fim das atividades do Congresso Nacional Africano em 1960, do qual Mandela era vice-presidente, ele passou à clandestinidade e introduziu “uma campanha de sabotagem contra a economia do país” para derrubar o governo (HANIF, 2014), o que ele mesmo admitiu diante do tribunal: Eu não nego que planejei sabotagem. Não planejei isso com espírito imprudente, nem porque tivesse amor à violência. Isso se deu como resultado sereno e sóbrio da avaliação de um ambiente da situação política que surgiu depois de muitos anos de tirania, exploração e opressão do meu povo pelos brancos (HANIF, 2014). As Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais de 1977 (HALLIDAY, 2014) regulam as regras do jogo da guerra, mas não são eficientes (nem poderiam) para resolver questões de opressão como relatada. Menos ainda com relação à “modernidade do terrorismo” (Ibidem). Se Genebra torna “legais” as ações do Estado, e “criminosas” as reações dos adversários do Estado, é preciso manter distinta a existência do “baixo terrorismo” “patrocinado pelo Estado”. Este constitui o “apoio a terroristas, e mais amplamente da guerrilha, a atividade por um Estado no território e/ou contra os funcionários e cidadãos de outro” (Ibidem) e a responsabilidade dos grupos de oposição, em revolta contra seus próprios estados, para respeitarem as normas de guerra em seus ataques na resistência a este Estado (Id.). Halliday menciona exemplos como movimentos nacionalistas na Irlanda, Armênia, Bengali, além dos anarquistas russos. No final da década de 1960, os recursos utilizados por guerrilhas de perfil secularista (marxista-leninista) na Palestina, no Irã e na Eritreia incluíam ataques contra civis, sequestros de aviões, sequestros de políticos e até de cidadãos comuns (HALLIDAY, 2014). Já os movimentos de natureza religiosa, 75 como a Irmandade Muçulmana, no Egito e na Jordânia, e o Islã Fedayeen, no Irã, apelavam para “assassinatos seletivos de intelectuais ou adversários políticos”, sem ter feito com que isso se tornasse padrão (Ibidem). Mas após o 11/9, certo ranço “orientalista” parece ter sido impresso a determinados grupos e suas ações. No entanto, Halliday adverte que o “terrorismo como ideologia e instrumento de luta, é um fenômeno moderno, um produto do conflito entre Estados contemporâneos e suas sociedades inquietas” próprio de ser visto em diferentes regiões, ricas ou pobres, cujas “raízes estão na política secular moderna [...] sem apelo cultural ou regional específico” e que visa também a tomada do poder (HALLIDAY, 2014). 105 Em All Kind of Terrorists, Uri Avnery (2014) também insiste em que não são os mecanismos de legitimação do Estado (no caso a Convenção de Genebra) que tornam “oficial” ou “justificável” uma ação, mas o seu objetivo (AVNERY, 2014). Dentro de sua definição, ele coloca o ex-presidente dos Estados Unidos, George W. Bush, que declararia guerra a bin Laden, mesmo sem os atentados de 11/9, porque o objetivo deste era “livrar-se dos Estados Unidos e seus satélites” (AVNERY, 2014). Bush foi seguido por muitos que se “aliaram” a eles contra os “terroristas”: “Putin na Chechênia; a China contra suas regiões muçulmanas, a Índia na Caxemira, Sharon nos territórios 105 O autor conclui apontando o que chama de “o caminho a seguir” em quatro diretrizes. Primeiro, condenar o terrorismo de qualquer natureza, o estatal ou o baixo terrorismo, porque ele viola “as regras da guerra no que diz respeito ao tratamento de civis e prisioneiros”. Em segundo lugar, o Oriente precisa apoiar ações de defesa de direitos humanos, enquanto o Ocidente precisa abandonar o apoio a grupos que considera “terroristas” no Oriente. Em terceiro lugar, a “resistência ao terror não é uma prerrogativa dos estados ocidentais poderosos”. Terror, de baixo e de cima, tem sido a experiência de muitos povos do terceiro mundo ao longo de décadas, bem antes do 11/9”. Em outras palavras, há milhares de vítimas em todos os continentes e especialmente os países poderosos contribuíram para este estado de coisas, não sendo, portanto, suas únicas vítimas. E finalmente, a luta contra o terrorismo em qualquer continente precisa levar em conta suas dimensões políticas, culturais, de segurança, história e as relações de direitos humanos e entre “civilizações”. “O principal desafio [...] é criar uma ordem global que defenda a segurança e ao mesmo tempo torne reais as aspirações de igualdade e respeito mútuo que a própria modernidade tem despertado e proclamado, mas tem falhado espetacularmente em cumprir até agora [...] e acima de tudo, a nossa melhor defesa: um compromisso com os valores liberais e democráticos (HALLIDAY, 2014). 76 ocupados – todos agora estão lutando contra ‘terroristas’. Todo mundo e seu bin Laden” (AVNERY, 2014). Avnery, então, se diz orgulhoso com uma definição que cunhou: “A diferença entre combatentes da liberdade e terroristas é que os guerreiros da liberdade estão do meu lado e os terroristas estão do outro lado” (Ibidem). Os atentados em Nova York tornaram moda a palavra “terrorismo” e isso fez com que o “sentido preciso” fosse esvaziado. “Terror”, diz Avnery, “significa medo extremo. A raiz da palavra latina é ‘terrere’, assustar ou ter medo” e tem origem na ação dos “jacobinos, uma das facções da Revolução Francesa, para destruir seus adversários, decapitando-os com a guilhotina durante os anos de 1793-4”, sendo que Robespierre, o líder do movimento, teve a mesma morte (AVNERY, 2014). A partir daí, terrorismo se tornou “um método de alcançar objetivos políticos 106 por assustar a população civil”, e não pode ser aplicado entre exércitos e seus soldados (Ibidem). 107 Não é diferente no caso do Hamas e dos palestinos. Se Hanif (2014) chamou de “irônica” a definição cunhada por Avnery, ele ainda vai mais longe. Confessa que um “terrorista” palestino disse a ele recentemente: “Dê-me tanques e aviões, e eu vou parar de enviar homens-bomba a Israel” (AVNERY, 2014), ou seja, “o terrorismo é a arma dos fracos” (Ibidem). Israel tem usado esse método a partir da data da sua criação. No início dos anos 50 o IDF cometia “ataques de retaliação”, projetados para assustar os aldeões de além da fronteira, a fim de induzi-los a exercer pressão sobre os governos da Jordânia e do Egito a fim de impedir a infiltração de palestinos em Israel (AVNERY, 2014). 106 “Suicídios terroristas tentaram obrigar as forças militares americanas e francesas a abandonarem o Líbano em 1983, as forças de Israel a deixarem o Líbano em 1985, as forças israelenses a saírem da Faixa de Gaza e na Cisjordânia em 1994 e 1995” (PAPE, 2003, p. 343). 107 Repito aqui citação já feita: “Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros meios. Isso é verdade para o terrorismo, também. O terrorismo é sempre um instrumento para a consecução de objetivos políticos. Uma vez que estes podem ser de direita ou de esquerda, revolucionário ou reacionário, religioso ou secular, o termo "terrorismo internacional" é um disparate. Cada organismo terrorista tem sua própria agenda específica” (AVNERY, 2014). 77 De fato, terroristas são os outros. Avnery segue citando alguns casos na própria história de Israel em seus conflitos contra o Egito, no final dos anos 1960, contra o Líbano em 1966 na campanha no sul daquele país, como também os talibãs e a devastação causada pelos russos, na Chechênia (AVNERY, 2014). O problema, corrige ele, é que sendo o terrorismo uma ferramenta política para solução de problemas políticos, não há outro meio para combatê-lo senão pela via política. “Resolva o problema que gera o terrorismo e você se livrará dele” ou “resolva o problema israelense-palestino e os outros pontos de inflamação no Oriente Médio, e você vai se livrar da alQaeda. [...] Ninguém ainda inventou outro método” (AVNERY, 2014). É senso comum haver ocupação ilegal da terra dos palestinos; penso que as Resoluções 242 e 338 da ONU deixam isso claro. Esta situação tem um peso maior sobre os médio orientais, por causa das características geográficas locais e do desenvolvimento da própria sociedade. É preciso salientar que as divisões nacionais “comuns” ao Ocidente não eram tão “comuns” na região, até cerca de cem anos, por exemplo. Kamel dá conta de que França e GrãBretanha receberam da Liga das Nações “o Oriente Médio como área a ser ‘supervisionada’ até que a independência pudesse ser ‘concedida’ àqueles povos” (KAMEL, 2007, p. 114). A Grã-Bretanha comprometeu-se com os chefes árabes (ele usa a expressão “jurou”) “torná-los os governadores de suas nações. O problema começa aí: que nações? Era preciso inventá-las” (Ibidem). E foi assim que nasceram, ou melhor, foram criadas a Arábia Saudita, a Palestina e a Jordânia, o Iraque e o Irã, a Indonésia, a Índia. Estou mencionando isso, para falar que a relação daqueles povos entre si é ligeiramente diferente de como europeus e americanos se veem na sua relação com a terra e até mesmo com o clã ou a aldeia. Falando sobre os imigrantes sírios e libaneses, dois autores que publicaram obras no Brasil concordam em que esses povos (que estão geograficamente próximos do espectro da pesquisa) têm em comum uma estrutura apoiada nos valores étnicos ligados a família, a religião e a aldeia (KNOWLTON, 1961, p. 167; TRUZZI, 2005, p. 3). Um deles, Truzzi, não insere o idioma neste tripé, e justifica: 78 Embora a região territorialmente pertença ao chamado mundo árabe moderno, e seus habitantes efetivamente serem falantes da língua árabe, os sírios e libaneses identificam-se, sobretudo, com a religião professada e com a região ou aldeia de origem, elementos fundadores de suas identidades, muito mais que com o estado-nação, existente para eles na época da emigração. Em consequência, a identidade árabe lhes soa artificial (TRUZZI, 2005, p. 2). Neste sentido, a aldeia é o ponto central onde os valores são passados às gerações e onde há convívio entre duas, três ou até mesmo quatro gerações no mesmo espaço. Seria a família na teoria de Sorel. Se a família constitui elemento fundamental de reprodução de valores – entre os quais a honra familiar desempenha papel de destaque –, a aldeia representa o locus onde tais valores foram cultivados e onde as gerações anteriores da família viveram. (TRUZZI, 2005, p. 3, ênfase no original). Se a religião é tão pronunciada na identidade do povo da aldeia e se de fato ela e os demais valores identitários são transmitidos entre o grupo, é certo que elementos rituais sejam rapidamente elaborados dentro do mercado de produtores de serviços, como Bourdieu interpreta. Pape confirma isso: Organizações terroristas suicidas comumente cultivam os “mitos sacrificiais” que incluem conjuntos elaborados de símbolos e rituais para marcar a morte de um indivíduo atacante como uma contribuição para a nação. Famílias dos suicidas também costumam receber recompensas materiais, tanto das organizações terroristas e de outros apoiadores. Como resultado, a arte de martírio provoca apoio popular a partir de comunidade dos terroristas, reduzindo a reação moral que os ataques suicidas poderiam produzir, e assim por 79 estabelece as bases para sinais críveis de mais ataques que virão (PAPE, 2003, p. 347, ênfase acrescentada) Fechando mais o ângulo de observação, Farah 108 (2011) dá apoio à ideia que a terra exerce importante papel na manutenção da vida e na construção da identidade palestina. Em um de seus artigos, por exemplo, trata o tema da terra na obra do escritor palestino Ghassan Kanafani, cuja família precisou abandonar a Palestina, rumo ao Líbano após 1948, ano de fundação de Israel. De fato, a relação do palestino com a terra constitui a problemática essencial da grande maioria dos romances e dos contos de Kanafani, autor que associa árvores que caracterizam essa paisagem (vista como prolongamento natural do lar), como a oliveira, a laranjeira e a videira, ao apego à terra natal, ao futuro e à esperança (FARAH, 2011). 109 Said também pinta este quadro ao dizer que “a sociedade palestina foi organizada em linhas feudais e tribais” (SAID, 2012, p. 202). É este cenário poético, de um povo da terra, conectado a ela e por meio dela, que ao mesmo tempo cerceado por irmãos e vizinhos num verdadeiro apartheid (WATZAL, 2007, ABU-RABI, 2011, p. 124) em sua própria terra. O livro de Tutu, que traz bons “insights” sobre processos de reconciliação e pacificação de comunidades em conflito, haja vista o seu profícuo trabalho, durante e após o aparthaid sul-africano, tem um capítulo dedicado ao conflito israelo-palestino. Tutu fez um discurso no Natal de 1989, na igreja Old South, em Boston, intitulado “Ocupação é opressão”. Um dos anfitriões do encontro era Naim Ateek, fundador do Centro Ecumênico de Teologia da Libertação Palestina “Sabeel” de Jerusalém. No discurso, Tutu (2012, pp. 118-126) fez 108 Paulo Daniel Elias Farah possui graduação em Língua e Literatura Árabe, graduação em Letras Português, mestrado em Linguística e doutorado em Letras, todos pela USP, onde é professor. 109 A forte identificação com a terra já aparece na primeira frase do livro “Homens ao sol” (de 1963) “Abu-Qays repousou o peito na terra úmida. O solo pulsava com batimentos ofegantes que reverberavam em cada grão de areia” (KANAFANI, G. Obras completas, vol. 1. Beirute, 1972, p. 37. Apud FARAH, 2001). 80 associações da ocupação israelense com o apartheid sul-africano. Algumas de suas afirmações são: Não há meio pelo qual a força se transforme em justiça (p. 120); Eu testemunhei a humilhação dos palestinos nos bloqueios rodoviários [...] a exigência áspera e descortês por identificação dos palestinos foi uma lembrança sinistra das infames reides da lei do passe do horrendo regime do apartheid [...] Nesses visitas, nós vimos ou lemos a respeito de situações que não aconteceram nem durante o apartheid na África do Sul: a demolição de casas com base na suspeita de que um membro da família fosse um terrorista, de modo que todos pagavam o preço nesses atos de punição coletiva que, aparentemente, se repetem nos recentes ataques aos campos de refugiados árabes. Não sabemos a verdade exata porque os israelenses não permitem a presença da imprensa (pp. 121,122); Nós condenamos a violência dos homens-bomba e, se as crianças árabes são ensinadas a odiarem judeus, também condenamos a corrupção das mentes jovens (p. 123). Abu Sway 110 associa o tema da terra ao Movimento e à religião, dizendo que o esforço do Hamas pela “questão da terra, conforme apresentada no decreto do Hamas, é consistente com a teologia e a jurisprudência islâmicas” (ABU-RABI, 2011, p. 131. Sobre “decreto do Hamas”, ver Apêndice 1). Mas, o que diz a religião? É ela que acende o pavio dos homens-bomba que lutam pelo fim dos conflitos na Palestina? 1.5 O Islã condena conflitos 110 O professor Abu Sway recebeu o seu BA da Universidade de Belém (1984) e MA (1985) e doutorado (1993) no Boston College, EUA. Foi o primeiro titular da Cátedra Integral para o Estudo da Obra de Imam Ghazali em Al-Masjid Al-Aqsa e da Al-Quds University, em 2012. Desde 1996 é Professor de Filosofia e Estudos Islâmicos em Al-Quds University (Jerusalém). 81 Se é assim na perspectiva étnica, também é na religiosa. E com olhar retrospectivo, há apoio na história do início do Islã, pois “foi apenas após Alá ter lhe dado a terra e um Estado que o Profeta resolveu defender e guardar essas posses”. Assim, a pergunta que al-Buti 111 faz é: “O que é que existe hoje pelo qual devemos fazer a jihad?”. Ele mesmo responde: O que realmente existe é a residência territorial do Islã (dar alIslam), porque o território antes unido foi dividido em pequenos territórios independentes; não obstante, esta permanece como a “riqueza” mais durável que os muçulmanos possuem hoje (ABU-RABI, 2011, pp. 92,93, ênfases no original) Ele afirma pelo Islã que se deve ter em mente o “direito [...] de possuir e governar um território” como “direito estabelecido, então esse território torna-se um dar al-Islam permanente”. No caso de a terra cair em “ocupação inimiga, isso não muda o fato de que em última instância, ela pertence aos muçulmanos, cujo dever é continuar lutando contra os ocupantes e agressores com todos os meios possíveis a fim de recuperá-la” (Ibidem, p. 93). No artigo com o título “O Islã condena conflitos”, Farah (1998) chama a atenção para a rápida associação a uma motivação religiosa sempre que ocorre uma crise ou questão crítica envolvendo países no Oriente Médio ou países de maioria muçulmana (como a Indonésia). Para apoiar a defesa que faz de que todo e qualquer conflito não pode ser fundamentado imediatamente na religião, ele recorre a um dito do profeta Muhammad, que diz: “Se dois muçulmanos se encontrarem com espadas (arma mais utilizada no séc. 7), o assassino e o assassinado vão para o inferno” (FARAH, 1998). Com esta citação, Farah explica que o entendimento aceito (ou que deveria ser aceito) é que até “mesmo a intenção de matar um outro muçulmano é condenada pelo islamismo” (Ibidem). 111 Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti estudou Teologia Islâmica na Universidade Al-Azhar e ocupou posições acadêmicas em países árabes e muçulmanos. É professor de estudos islâmicos na Universidade de Damasco, e é considerado o pensador muçulmano mais importante da Síria contemporânea. 82 A questão da violência no Islã é assunto tratado também pelo professor Seyyed Hossein Nasr 112 em Islam and the question of violence (2014), 113 artigo que inicia “lembrando que a própria palavra Islã significa paz e que a história do Islã certamente não foi testemunha de mais violência do a que se encontra em outras civilizações, particularmente a do Ocidente.”. Para o autor, este é o caminho “para compreender a natureza do Islã”. Ele parte para as definições do que se entende por “violência”. Considerando haver várias definições no dicionário, a pergunta se torna “como Islã está relacionado com estas definições?”. Ele, então, toma a definição de violência como “força”, e neste sentido “o Islã não é completamente contrário ao seu uso” (NASR, 2014), uma vez que o Islã apregoa o equilíbrio entre as forças e o seu controle “à luz da lei divina (al-Sharia)”. Nasr considera que este mundo aglutina várias forças, “na natureza, nas sociedades humanas, entre os homens e na própria alma humana” e, eventualmente, elas podem impor-se umas às outras. Neste caso, é papel do Islã promover o reequilíbrio, e para isso deve fazer uso da força. A própria compreensão de justiça passa pelo equilíbrio. “A palavra de justiça (al-‘Adl), em árabe, pode ser relacionada em sua etimologia a palavra para o equilíbrio (ta’adul)” (Ibidem). Quando ocorre desajuste entre as forças operantes, torna-se, de fato, “necessário” o uso da força para “realizar e estabelecer a justiça” (Ibidem). Constitui-se, portanto, “injustiça” omitir-se a fazer o uso da força, permitindo a opressão, tornar-se presa ou mesmo “vítima de outras forças que não deixam de aumentar o desequilíbrio e a desordem e resultam em maior injustiça” (NASR, 2014). A intensidade com que se fará uso da força na promoção do equilíbrio dependerá do presente e imediato estado das coisas, tendo em vista, sempre, a máxima da ética pública: o maior bem para o maior número de pessoas, e não para benefício de “interesses de uma pessoa ou um grupo específico”. 112 Seyyed Hossein Nasr é professor de Estudos Islâmicos na Universidade George Washington. É um importante estudioso da religião e estudos comparativos do mundo islâmico. Autor de mais de cinquenta livros e quinhentos artigos que foram traduzidos para idiomas no mundo islâmico, europeu e asiático, o professor Nasr é figura intelectual conhecida e respeitada no Ocidente e no mundo islâmico. 113 As citações serão tradução livre. 83 Como o Islã advoga sobre o “reino de César”, é preciso também ser responsável na aplicação da força nos ambientes sociais onde as várias relações humanas acontecem e onde “a força está presente”. Nestes casos, o Islã procura limitar a intensidade com que atua e aplica a força visando proteger-se de “todas as guerras, invasões e ataques” que tem experimentado. Com isso, alega Nasr, A paz que domina o pátio de uma mesquita ou um jardim, seja em Marrakesh ou Lahore, não é acidental, mas o resultado do controle de força com o objetivo de estabelecer a harmonia que resulta do equilíbrio de forças, sejam essas forças naturais, sociais ou psicológicas (NASR, 2014). A segunda definição de Nasr, quanto ao significado de violência, aponta para a “força física rude ou ação danosa”. Se o significado de violência for este, “a lei islâmica se opõe a todas as utilizações de força, neste sentido, salvo em caso de guerra ou para a punição de criminosos, de acordo com a sharia” (Ibidem). O consenso amplo aceito nos acordos internacionais que regulam as regras da guerra, de que não se deve atacar crianças e mulheres nem outros civis, é contemplado. Somente contra os agressores é permitido o uso da violência na guerra. Lesões não podem ser cometidas nem mesmo na punição de criminosos, de acordo com a Sharia. O terceiro sentido ou significado de violência é no cometimento da “injustiça contra os direitos e leis dos outros”. Se esta for a questão, se o entendimento de violência é esse, então “o Islã se opõe totalmente a ela”. Os direitos humanos são definidos pela Lei Islâmica e por ela protegidos, cobrindo os direitos dos muçulmanos, como também os seguidores de outras religiões, considerados “Povo do Livro (Ahl al-Kitab)”. “Se há, no entanto, violação na sociedade islâmica, é devida não aos ensinamentos do Islã, mas a imperfeição dos receptores humanos da mensagem divina” (Ibidem). O Islã é considerado perfeito e perfeita a sua lei, mas “nenhuma religião pode neutralizar completamente as imperfeições inerentes à natureza do homem caído”, ficando aberta a possibilidade para as más interpretações que dão ocasião a múltiplos sentidos. Penso que aqui está a janela para o extremismo. 84 Nasr não cita dados mais precisos, mas defende que mesmo com todos os fatores (ou forças) negativos contrários operando nas sociedades muçulmanas, como “colonialismo, a superpopulação, a industrialização, a modernização resultando deslocamento cultural” entre outros, essas sociedades contabilizam “menos violência fruto do emprego injusto da força [...] na maioria dos países islâmicos do que nos países industrializados do Ocidente” (NASR, 2014). Ainda outros dois significados são encontrados para violência, são eles: primeiro, “grosseria ou veemência imoderada”. Também o Islã se opõe a isto. Novamente a regra de ouro é invocada: moderação, moralidade e equilíbrio de forças. “Mesmo que a força precise ser utilizada, isso deve ser feito na base da moderação”. E finalmente, se por violência se entende “distorção de significado ou fato que resulte em prejuízo para outros”, o Islã é completamente contrário a essa violência. Sendo o Islã “baseado na Verdade que salva e que encontra sua expressão suprema no testemunho da fé la ilaha illa’Llah (não há divindade, mas o Divino)” fica excluído qualquer apoio a interpretações que amparem, motivem ou estimulem tais distorções. “Qualquer distorção da verdade é contra os ensinamentos básicos da religião, mesmo que ninguém puder (sic) ser afetado por ela”. Promover qualquer entendimento de força ou violência que resulte “em lesões contrariam os ensinamentos do Corão e a tradição do Profeta!”. Assim, como já havia antecipado, o Islã “abrange a totalidade da vida e não faz apenas distinção entre o sagrado e o secular”. À vista disso, precisa atuar na manutenção do equilíbrio de forças “que caracterizam este mundo como tal” (NASR, 2014). É neste sentido que se pode falar em jihad como esforço e uso da força (Ibidem; KEPEL, 2003, p. 92). A paz, cujo estabelecimento é o objetivo do Islã, só pode ser obtida com o uso da força, primeiramente a força contra os instintos humanos e depois na sua experiência no mundo sob a Sharia. O Islam tolera o uso da força apenas na medida da oposição a tendência centrípeta que transforma o homem contra o que ele é na sua realidade interior. O uso da força só pode ser tolerado 85 no sentido de desfazer a violação de nossa própria natureza e do caos que resultou da perda de equilíbrio. Porém, tal uso de força não é, na realidade, a violência como geralmente entendida. É o esforço da vontade humana e esforço no sentido de se conformar a vontade de Deus na entrega da vontade humana a vontade divina. A partir desta entrega (taslim) vem a paz (salam), daí islam, e só através deste islam pode a violência inata na natureza do homem caído ser controlada e a fera interior subjugada para que o homem viva em paz consigo mesmo e com o mundo, para que ele viva em paz com Deus (NASR, 2014). Penso, com isso, ter coberto um leque de significados de violência ao longo do tempo recente, como também dentro de algumas culturas distintas, incluindo o âmbito da religião. Especialmente importante foi esta última contribuição do professor Nasr, estabelecendo o entendimento modelo, o elevado padrão a ser perseguido pelos fieis do Islã. 2. O CORÃO E OS PERÍODOS MEQUENSE E MEDINENSE A morte é no fundo a maior violência que pode acontecer a um homem. René Girard 2.1 A formação do Corão A razão para as disparidades na interpretação do texto corânico tem sido atribuída às diferenças de circunstâncias que envolveram o Profeta e sua comunidade nas experiências em Meca e, posteriormente, em Medina. Kamel (2007, p. 131) diz que a principal fonte de disparidades nas interpretações do Corão (o que separa moderados e extremistas) é identificar “a interpretação correta da história passada, o que é normativo e o que é prescritivo”: [...] alguns recorrem a trechos semelhantes [ele fala em relação a textos sem validade na Bíblia] do Alcorão, como se eles 86 tivessem um caráter de mandamento eterno. [...] O que Johnson [Paul Johnson, historiador inglês] citou do Alcorão se refere a um período histórico determinado: a luta de Maomé contra os idólatras, os politeístas de Meca (Ibidem). Para algumas escolas islâmicas, há versículos que constam do Alcorão e que são revogados ou modificados por outros, revelados posteriormente (valem os últimos). E há versículos que foram revelados, mas que, por ordem de Deus, deixaram de constar do Alcorão: alguns deles porque caducaram, outros porque, mesmo sem caducar, Deus não achou mais necessário enfatizá-los (Ibidem, p. 136). Para Armstrong (2009, p. 324), Sayyid Qutb 114 elaborou um plano pelo qual “os muçulmanos devem passar [...] a fim de criar no século XX uma comunidade corretamente orientada”. Ela diz que Qutb entendia que a primeira parte do plano consistia no agrupamento de homens dispostos (jamaah) a implantar a revelação de Deus de “substituir a jahiliyyah 115 de Meca por uma sociedade justa e igualitária, que reconhecesse a soberania de Deus como única” (Ibidem). O segundo ponto do “programa do profeta mostrou que a sociedade estava dividida em dois campos opostos”, Meca e Medina, nós e eles, sendo nós a comunidade de Medina e eles os pagãos de Meca, que deveriam ser combatidos (Ibidem). No terceiro estágio, já “em Medina [...] o Profeta instituiu um Estado islâmico” (ARMSTRONG, 2009, p. 329) e “no quarto e último estágio ocorreu a luta armada contra Meca, começando com pequenos ataques às caravanas de mercadores e evoluindo para o confronto com o exército de Meca” (Ibidem). Assim, os textos produzidos em ambientes distintos darão substância para a elaboração de 1) uma teologia voltada para Deus e a paz ou 2) nutrirão uma 114 Sayyid al-Qutb Ibrahim ou simplesmente Sayyid Qutb (1906-1966) foi um poeta, ensaísta, crítico literário egípcio e ativista político e militante radical muçulmano. É considerado pensador fundamentalista mais importante (DEMANT, 2004, p. 205). Morreu enforcado em 1966 pelo regime de Nasser (KEPEL, 2003, p. 96). 115 Jahiliyyah: era da ignorância, antes do início do Islã. 87 ideologia que estimula a violência. Armstrong admite que, “dada a polarização dessa sociedade, a violência era inevitável, como para os muçulmanos atuais” (ARMSTRONG, 2009, p. 329) porque se baseiam na parte da história que registra ações dessa natureza. Não por acaso, Sayyid Qutb é o nome a ser lembrado quando o assunto é a teorização de um Islã fundamentalista. Para Kepel (2003, p. 96), a autoridade de seus escritos é decorrente de “uma mística e um poder religioso que são reforçados pela acumulação de inúmeras liminares retiradas do Alcorão e, sobretudo, a hadith”. Além dos caravaneiros nômades, agricultores e artesãos (HOURANI, 1994, p. 26), a península arábica do século VII também contava com outro ator social de relativa importância: o poeta. Sua atividade não se limitava a compor poesia. O poeta transitava no campo da fé e também acumulava a função semelhante a de um jornalista moderno e, nalguns casos, um agente da propaganda política, infamando inimigos (VERNET, 2004, p. 50). 116 “Por isso um poeta [...] afirma que se não se encontram inimigos alheios é preciso iniciar uma discórdia familiar” (VERNET, 2004, p. 41). Embora não haja registros de qualquer texto de origem árabe do século III (VERNET, 2004, p. 49), “uma série de poetas, como ‘Abid b. Abras, Tarafa, al-Nabiga al-Dubyani, ‘Adi b. Zayd, ‘Amr b. Jultum, teria ocupado a cena literária do mundo árabe na segunda metade do século VI” (VERNET, 2004, p. 49). 117 Há, no entanto “ testemunhos externos – bizantinos – que garantem que na época de Zenóbia [séc. 3] já existia essa poesia na forma de canções” (VERNET, 2004, p. 49), na boa oralidade semita; mas registros físicos parece não ter havido. A afirmação de Vernet se baseia no conteúdo extraído de crônicas oriundas da tradição que perpassou três ou quatro gerações até conseguirem ser registradas por “historiadores árabes que escreveram dois 116 Juan Vernet (1923-2011) foi um arabista e historiador espanhol. Foi catedrático da Universidade de Barcelona e correspondente da Academia de Estudos Islâmicos de Amã. 117 A historiografia árabe/islâmica desse período e posterior é bastante contraditória. Essa afirmação de Vernet, por exemplo, contradiz Hourani que diz “O Corão foi o primeiro livro escrito em árabe, e os muçulmanos acreditavam que esta era a língua em que fora revelado” (HOURANI, 1994, p. 67). Evidentemente não foi uma obra que nasceu pronta e acabada, senão que foi colecionada ao longo de ao menos duas décadas e só depois disso foi organizada em um único volume. 88 séculos depois dos fatos relatados” (VERNET, 2004, p. 7). Um tempo bastante longo, cobrindo situações precárias para amparar um registro confiável. Evidência disso temos em Hourani, que afirma que a primeira biografia de Muhammad surgiu mais de um século, após a morte do Profeta, em 632, e ainda assim “parece haver elementos nas biografias e histórias tradicionais que provavelmente não foram inventados”. (HOURANI, 1994, pp. 32,86, ênfase acrescentada). E com uma agravante, de que “a língua árabe ainda não adquiria a capacidade de expressar os conceitos científicos e filosóficos de um modo preciso” (HOURANI, 1994, p. 91). Isto durante a primeira geração de domínio muçulmano, provavelmente século VIII! A afirmação de Hourani coloca sob suspeição a originalidade de supostos conceitos científicos registrados no Corão possivelmente avançados para a época, e até mesmo a confiabilidade da obra: “Sem dúvida, esses textos refletem tentativas posteriores de enquadrar Maomé no modelo próximo-oriental de homem santo, e no modelo árabe de descendência nobre” (HOURANI, 1994, p. 32). Uma “tentativa posterior” de fazê-lo parecer relevante. Sendo Mohammad um homem sem familiaridade com as letras, seu desejo por produzir um registro literário de tal monta advém da existência de uma classe e uma poesia já relativamente consolidadas, senão árabe, judaica e cristã. Vernet dá conta de um lamento enfático de Mohammad, em sua estada em Yatrib (Medina) pela “falta de poetas – ou seja, de jornalistas – a seu serviço para responder às invectivas dos inimigos” (VERNET, 2004, p. 50). “Seja como for, é certo que no período em que Maomé viveu a poesia árabe tinha existência plena” (Ibidem). Sendo um dos papéis dos poetas-jornalistas infamar inimigos, põe-se uma questão sobre a fidelidade e imparcialidade dos textos. Grande parte dos versos utilizados para estabelecer fatos e costumes do século VI foi inventada ou composta pelos dois editores mencionados, sempre há que se admitir a autenticidade de alguns deles – talvez uns trinta por cento –, que teriam sido imitados, ampliando uma ideia central (VERNET, 2004, p. 50). 89 Ao menos trinta por cento de textos foram imitados, mimetizados da tradição judaico-cristã corrente, que lhe interessava especialmente remodelar em novas formas árabes. Mohammad era mais um poeta num cenário onde muitos outros havia. Ele sobrepujou a todos no alcance de sua obra, é o que Vernet diz sem entender como isso se deu em função de elementos vigentes em seu tempo. É compreensível que um literato aceite ideias diferentes das suas em questões de estética; que todas as pessoas, cultas ou analfabetas, façam o mesmo é mais difícil de entender, e é esse último fato que constitui o único milagre narrado no Alcorão e aceito por todos os muçulmanos (VERNET, 2004, p. 52). Mohammad nasceu em Meca, talvez, no ano 570 ou por volta disso. Pertencia ao clã dos haximitas (VERNET, 2004, p. 58; HOURANI, 1994, p. 33), que atuavam comercialmente, como mercadores. “O clã Hashim (hoje conhecido como Hashemita), [é] um dos mais prestigiados da tribo dos quraysh, que em árabe quer dizer ‘tubarão pequeno’.” (KAMEL, 2007, p. 63, ênfase no original). Muhammad 118 em português, quer dizer “Louvado”, do verbo árabe hãmada, louvar, elogiar, glorificar (KAMEL, 2007, p. 64). Os hashimitas estavam intimamente ligados ao santuário central de Meca, a Kaaba, e Hourani, na tentativa de reforçar o mito, diz que “os registros de história que retratam sua vida dão conta de que em seu tempo o mundo vivia ‘à espera de um guia, e um homem em busca de uma vocação’.” (HOURANI, 1994, p. 33). Especula-se que tivesse empreendido alguma peregrinação, talvez à Síria, onde teria sido exposto ao monoteísmo, inexistente à época na Península, e ao monasticismo por meio de um monge por nome Bahira (VERNET, 2004, pp. 58,59). Que as peregrinações existiam naquele tempo e eram comuns entre tribos e clãs árabes, é verdade. Mas a 118 Seu pai foi “Abdulah bin Abdu L’Muttalib. Sua mãe foi Aminah, seu avô paterno Abdu L’Muttalib. O tio que o acolheria posteriormente à morte de seu pai foi Abu Talib (KAMEL, 2007, p. 64). Do lado materno, é possível que ele tivesse parentes em Yatrib, a futura Medina, como o avô ‘Abd al-Muttalib (VERNET, 2004, p. 58). 90 vocação de Muhammad não necessita ser explicada exclusivamente por esse meio, uma vez que a religiosidade, como vimos, fazia parte do ar que aqueles povos respiravam e a questão do monoteísmo pode ser resolvida pelo contato com grupos ebionitas próximos a ele. Após o seu casamento com a rica viúva Khadija (KAMEL, 2007, p. 65), Muhammad se ocupou com retiros espirituais afastado do contato público. O futuro profeta passava semanas em meditação “na caverna de Hira, nos arredores de Meca” (Ibidem, p. 66). Num desses retiros ocorreu a “visão”, com Gabriel, algo que “perturbou-o imensamente. Ele voltou para casa e contou o que tinha lhe ocorrido para Khadija, e disse a ela que temia ter tido uma visão diabólica ou então que estivesse ficando louco” (Id., p. 67). Vernet acrescenta: no momento em que recebeu a revelação ele estava envolto num manto e parecia um possesso, um sacerdote ou um bruxo. Essas descrições, desenvolvidas pela tradição, chegaram a levar o historiador bizantino Teófano (c. 802/807) a acreditar que o fundador do islã era epiléptico (VERNET, 2004, p. 59; PIAZZA, 1991, p. 386). Durante essas crises, Muhammad repetia palavras subconscientemente (VERNET, 2004, p. 59), talvez aquelas que estivessem em sua mente sem que tivesse dado muita atenção quando as ouviu – e pela natureza religiosa da experiência, é possível pensar em resíduos de pregações ouvidas de judeus e cristãos, o que justificaria os “cerca de trinta por cento de textos imitados” (VERNET, 2004, p. 50). Isso ocorreu entre os anos 610 e 612 (Ibidem, p. 58). O êxtase assustador, segundo a “hagiografia de Maomé”, consistiu em uma visão de dois homens, sendo um deles o anjo Gabriel. O peito de Muhammad foi aberto por um deles a fim de que tivesse os pecados lavados. Em seguida Gabriel informou as primeiras palavras que posteriormente comporiam o conjunto maior da obra do Corão. Segundo Kamel, “o primeiro versículo da sura 94 seria uma referência a isso. Acaso não abrimos o teu peito” (KAMEL, 2007, p. 64, ênfase no original). Muhammad tinha cerca de quarenta anos quando teve a experiência que ficou conhecida como Noite do Poder ou do Destino, mas há incertezas 91 flagrantes no modo como ela ocorreu, sendo que umas versões dão conta de que quando teve a visão, um anjo em forma de homem “convocou-o a tornar-se mensageiro de Deus; em outra [versão], ele ouviu a voz do anjo convidando-o a recitar” (HOURANI, 1994, p. 33). Revelado ao longo de vinte anos “a base real da revelação era, segundo Maomé, um livro guardado no céu que só os puros chegavam a conhecer” (VERNET, 2004, p. 60). Estando no céu, ele não o leu, apenas ouviu as recitações feitas por Gabriel. Mas alega tê-lo recitado sem interrupções quando da primeira revelação e o esqueceu. Depois Deus, no mais puro idioma árabe, ia-lhe recordando por meio de um Espírito ou de anjos os fragmentos que lhe eram necessários em cada momento (VERNET, 2004, p. 60). Muhammad não fez o registro de uma única letra das mensagens recebidas. Ela as transmitiu oralmente algum tempo depois aos seus companheiros e estes, fazendo uso do “sistema gráfico em uso na Arábia do Norte no início do século VII” (VERNET, 2004, p. 109), 119 encarregaram-se de preservar, a seu modo, o que o Profeta podia lembrar. Assim, à medida que ele transmitia as novas revelações com as mensagens, os companheiros que estivessem próximos procuravam rabiscar o maior número possível de palavras nos suportes de que dispunham no momento. Confiavam na memória ou a recitadores (isso no Século VII d.C., quando a facilidade de escrita já era relativamente difundida e as técnicas já eram avançadas). Dessa forma, “os escritos iniciais do Corão eram feitos em ossos, pedaços de couro, omoplatas de camelos, casca de palmeira” (VERNET, 2004, p. 111). Essas revelações e mensagens foram retransmitidas oralmente na maioria dos casos e só foram compiladas num documento único trezentos anos depois, quando já havia pelo menos 24 variantes dos manuscritos. A exceção, 119 Há aqui o problema já indicado, que contradiz Hourani, que alega que “a língua árabe ainda não adquiria a capacidade de expressar os conceitos científicos e filosóficos de um modo preciso” (HOURANI, 1994, p. 91) entre os séculos 7-8. Vernet ainda acrescenta a informação de que a inscrição de al-Namara, considerada a primeira escrita árabe, foi redigida pouco depois de 328 d.C. (VERNET, 2004, p. 31), desmontando o argumento de A. Hourani. 92 uma compilação de Zid ibn Thabit, foi escolhida porque seu dialeto Quraishi era a língua falada por Muhammad. O fator determinante na escolha do texto oficial: motivação política. Optaram pelo dialeto de Meca (VERNET, 2004, pp. 112-114). As demais cópias foram queimadas (CANER, 2001, pp. 91,92). 120 Fica claro no texto a bagunça que foi a formação do Corão. Pergunto: se Deus quisesse corrigir as alegadas distorções bíblicas no AT e NT, teria Ele usado um grupo tão despreparado como esta página demonstra? Ou não foi deus quem revelou o Corão? (VERNET, 2004, p. 119). 121 Vernet, no entanto, não duvida da fidelidade que o processo de transmissão oral preserva através das gerações, “contudo, quando praticada em meios que ignoram ou utilizam pouco a escrita, ela incorre frequentemente em erros, e desses erros nascem as lendas” (VERNET, 2004, p. 13). BLAINEY (2008, p. 121) 122 entende que os povos do deserto, pastores nômades, eram mais atentos à “nova religião que os fazendeiros das terras férteis” e em função da situação nômade, dispensavam os rigores da religião formal, diferente dos “fazendeiros das terras férteis” estabelecidos. Assim, as mesquitas, os sacerdotes, os rituais fúnebres com suas purificações, tudo era adaptável ao estado andarilho em que viviam. Certamente a fidelidade na transmissão oral também era mais frouxa. “Os convertidos aprendiam de cor as passagens principais do Alcorão, entendendo-as da melhor forma que podiam, enquanto as recitavam com fervor” (BLAINEY, 2008, p. 121). Um indício dessa maneira de “entender da melhor forma que podiam” é visto na prática do próprio Muhammad, que distingue os dois períodos em que viveu em Meca (entre 612-622) e depois em Medina, até a sua morte. Ambos 120 Ergun Mehmet Caner é mestre em Teologia e doutor em Teologia e leciona Teologia e História em Dallas. Emir Fethi Caner, seu irmão (e co-autor), é doutor em Filosofia e professor de História na Carolina do Norte. Ambos foram criados na cultura islâmica. 121 Vernet refere-se a recorrente afirmação feita na comunidade de fé do Islã no sentido de que a Bíblia Hebraica e o Novo Testamento foram corrompidos, e Deus precisou enviar o Corão para corrigir as distorções feitas por judeus e cristãos. 122 Geoffrey Blainey (1930) é professor da Universidade de Harvard e da Universidade de Melbourne. 93 os períodos no Corão admitem subdivisões, “seja por motivos literários e religiosos predominantes no primeiro, seja por motivos político-bélico que afloram com muita intensidade no segundo” (VERNET, 2004, p. 62). Em outras palavras, interessava aproximar judeus e cristãos para a sua causa e, assim, começar a nova religião com uma herança numerosa de fieis oriundos desses dois grupos. Como não conseguiu e foi expulso de Meca, finalizando o primeiro período (de 612-615), partiu para o ataque, que é característica do segundo período em Medina (VERNET, 2004, p. 62). A Arábia e seus oásis eram utilizados como refúgio por comunidades inconformadas com a pressão econômica, religiosa e política a que judeus e cristãos eram submetidos em seus Estados de origem (VERNET, 2004, p. 32). À medida que Muhammad era consolidado como árbitro na comunidade de Yatrib/Medina, em detrimento dos judeus que faziam às vezes de mediadores nos conflitos locais, o futuro profeta instituiu uma série de procedimentos imitativos ou miméticos, das práticas cúlticas das comunidades que queria atrair, com a finalidade de aproximá-las: “prescreveu o jejum da ‘axura (Levítico 16.19) no dia 10 do primeiro mês ao ano (muharram), a semelhança do grande jejum do yom kippur (10 de tisrí, também primeiro mês do ano judeu) (VERNET, 2004, p. 69). O mesmo aconteceu na composição do texto corânico. Muhammad ouvira pregações cristãs (a partir do Novo Testamento) e judaicas (basicamente a Bíblia Hebraica e lendas judaicas) e posteriormente as recitou à sua maneira. À medida que seu fraco conhecimento da Bíblia Hebraica era manifesto, os judeus o rejeitavam, e Muhammad acabou por persegui-los (VERNET, 2004, pp. 70,71) em represália. Às censuras que lhe dirigiam pelo reduzido conhecimento da Bíblia, ele respondia que os judeus só tinham recebido uma parte do Livro e algumas leis particulares; acusava-os de recitar as Escrituras com má pronúncia, no que ele podia acreditar sinceramente, se pensarmos que por serem o árabe e o hebraico línguas semíticas muito próximas, algumas frases (por exemplo, “olho por olho”) têm praticamente a mesma 94 pronúncia, embora às vezes não signifiquem a mesma coisa” (VERNET, 2004, pp. 70,71). A opção foi fugir da perseguição que se seguiu. E Muhammad o fez, dirigindo-se para Medina. Atravessou as montanhas da costa e os leitos secos de água, indo parar a menos de 400 quilômetros ao norte. Era o seu novo lar, um “oásis de tamareiras e campos irrigados de cereais [...]. O dia de sua chegada, 24 de setembro de 622, veio a tornar-se o primeiro dia do novo calendário islâmico” (BLAINEY, 2008, p. 117). Vernet (2004, p. 71) afirma que inicialmente não havia “forças suficientes para castigar os judeus” que rejeitavam sua pregação, então Muhammad adotou “castigos” contra a comunidade judaica, tais como mudar revelações corânicas para favorecer o seu interesse pessoal e a direção da alqibla, 123 que apontava o rumo para onde as rezas deveriam ser feitas. 124 Isso criou outro elemento mimético na nova religião. A primeira cidade para onde faziam as rezas era Jerusalém, tentando agradar judeus e cristãos. Frustrado o seu plano, Muhammad abandonou o procedimento e adotou a sua cidade natal como destino das rezas dos islâmicos, como é feito até hoje. 125 A sacralidade mimética aplicada a Meca se dava pelo discurso de que a fundação do local de culto, a Kaaba, havia se dado pelas mãos de Abraão e seu filho Ismael, ambos personagens judeus já consolidados na tradição judaico-cristã. Com a fuga de Muhammad e de um grupo de apoiadores para Medina, era necessário retomar esse santuário árabe e purificá-lo antes da chegada dos peregrinos da fé (VERNET, 2004, p. 72). Os coraixitas, síndicos da Kaaba, não entregariam o santuário ao refugiado Muhammad, que sabia dessa dificuldade. 123 Al-Qibla: direção à Meca; indica para onde se deve voltar na oras das rezas. 124 “Talvez tenha sido um sinal do rompimento com os judeus o fato de a direção para onde se voltava a comunidade durante a prece mudar de Jerusalém para Meca (qibla), e de dar-se nova ênfase à linhagem de descendência espiritual que ligava Maomé a Abraão” (HOURANI, 1994, p. 34). Muhammad precisava manter a apropriação feita dos elementos e agentes da tradição judaico-cristã. 125 O rompimento com os judeus faz com que Muhammad substituísse o “jejum da axura (que só vigorou um ano, mas continuou sendo aceito como prática piedosa e é conservado até hoje pelos xiitas)” (VERNET, 2004, p. 71). 95 A estratégia foi usar em seu favor as tradições religiosas existentes nas comunidades e apoiar-se na ética da guerra: que só poderiam atacar se fossem atacados. Todos acreditavam que Deus daria vitória nessas condições. “Era preciso convencer os muçulmanos de que o seu ideário também podia ser conseguido pelas armas e, como o pacto de Aqaba 126 era puramente defensivo, esperar um momento oportuno para passar ao ataque” (VERNET, 2004, p. 72). Em seus albores, na boca do Profeta ainda nos idos de Meca, o Islã se anuncia como profecia monoteísta, anúncio escatológico de uma salvação vindoura, mas extramundana. Não mais que uma dúzia de anos depois do primeiro anúncio, passa a prometer, também, certos bens de salvação nada celestiais: espólios de guerra, poder e honradas. Riqueza. Bens mundanos, inteiramente “deste mundo” (“diesseitig” escreve Weber quinhentas vezes; “thiswordly”, pode-se dizer em inglês). Promete-se aos crentes o domínio do mundo com prestígio social, mantendo-se o testemunho de “fé” como condição primeiríssima e sine qua non, mas suficiente, das recompensas no outro mundo. Em poucos anos de pregação, bens religiosos ideais estariam fartamente misturados nos acenos do chancelados original). Profeta com (PIERUCCI, bens 2002, materiais pp. 75,76, religiosamente ênfases no 127 Hourani admite ver na mensagem do Corão “ecos [...] dos ensinamentos de religiões anteriores: ideias judaicas nas doutrinas; [...] reflexos de religiosidade monástica cristã” (HOURANI, 1994, p. 36). Vai além: “histórias bíblicas em formas diferentes das do Velho e Novo Testamentos; um eco da 126 127 Sobre o pacto de al-Aqaba, o “Juramento dos Homens” ou “da Guerra”: VERNET, 2004, p. 67. Antônio Flávio de Oliveira Pierucci (1944-2012). Graduado em Filosofia (PUC-SP), Mestre em Ciências Sociais (PUC-SP) e Doutor em Sociologia (USP). Foi Livre Docente pela Universidade de São Paulo onde atuou como Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP. Especialista em Sociologia da Religião e Teoria Sociológica Alemã. 96 ideia maniqueísta da sucessão de revelações feitas a diferentes povos”, o que reforça a hipótese de mimetismo aplicado sobre essas obras literárias. Muhammad precisava de um sistema já consolidado, uma religião pronta, funcionando, e o elo para isso estava ao seu alcance. No entanto, as profecias do Profeta não anunciavam nada de novo – ele não profetizou, apenas requentou velhas ideias: “nas primeiras revelações, o tom é de um adivinho árabe, tartamudeando seu senso de encontro com o sobrenatural” (HOURANI, 1994, p. 36). Como a sua versão destoava e muito das histórias originais, o acusaram de plágio e falso profeta, o que provocou ira e revolta contra seus acusadores. Foi fácil encontrar resposta: “Se as ideias ou histórias assumiram uma forma diferente no Corão, isso talvez fosse porque seguidores de profetas anteriores haviam distorcido a mensagem recebida destes” (HOURANI, 1994, p. 36). Mas, se nem ao menos ele conseguira preservar o registro de sua mensagem, como poderia demonstrar a invalidade e a corrupção de uma tradição estrangeira, anterior e já consolidada? Não demonstrou. Como Muhammad se inseriu a uma tradição estranha à sua, o contrário deve ser provável: ele distorceu a mensagem original. Se na juventude o Profeta era “um homem em busca da verdade”, sua busca posterior foi reorientada e ele foi “embrutecido pelo senso de poder que se abate sobre ele [...] senso de autoridade”. Suas preocupações e interesses o levaram a se tornar “um árbitro preocupado em fazer a paz e conciliar disputas à luz de princípios de justiça tidos como de origem divina, um habilidoso manipulador de forças políticas” (HOURANI, 1994, p. 36). A fé que o Profeta detinha não acenava com a possibilidade de ganhar o mundo, nem quando residia em Meca, nem posteriormente em Medina. Essa “evolução temática” não aparece no Corão. “Dos textos não se deduz que ele tivesse de realizar ofensivas frequentes pensando em submeter o mundo inteiro ao Islã” (VERNET, 2004, p. 105). Fato é que a política contida no texto é de árabes para uma realidade árabe, não universal. Até mesmo “os profetas descritos no Alcorão são puramente nacionais, só se dirigem à sua nação” (VERNET, 2004, p. 64). Penso que aqui reside ao menos parte da razão por que determinadas crises se instalam quando essa tradição procura se impor a 97 costumes de regiões e religiões diversas mantendo a rigidez original, que só fazia sentido naquele contexto cultural, político e até certo ponto econômico. 128 Hourani (1994, p. 34) vê nas passagens deste período o que chama de “instruções específicas” e “princípios gerais” como indicação de que “ao mesmo tempo, a doutrina torna-se mais universal, voltada para toda a Arábia pagã, e por implicação para todo o mundo”, mas penso que isso é interpretação posterior e não parece corresponder às expectativas iniciais. De um modo ou de outro, foi na segunda fase da vida religiosa, a partir das revelações recebidas em Medina, que o Profeta começou a aproximar de si os seguidores que formariam o núcleo duro do seu poderio e dariam o caráter combativo à comunidade. Em Medina ele percebeu a possibilidade de luta armada contra os coraixitas, inicialmente para tomar-lhes o controle das rotas comerciais dos caravaneiros (HOURANI, 1994, p. 34) e, posteriormente, a tomada do santuário e da cidade. “Em Medina, Maomé começou a acumular um poder que se irradiou pelo oásis e o deserto em volta. Logo se viu atraído para uma luta armada com os coraixitas”, tendo por objetivo a tomada do controle das rotas comerciais. A dinâmica adotada nessa investida é que moldou o caráter da comunidade (HOURANI, 1994, p. 34). Hourani viu neste período “a convicção de que Deus e os anjos lutavam a seu lado” (Ibidem). Pierucci viu além: Com a precoce mutação da “religião de Maomé” em “profecia político-militar”, ou seja, em religião “politicamente orientada 128 Conforme Abu Sway: “No pensamento político islâmico, a ideia dominante é de que os tratados com o inimigo podem ser realizados se forem temporários. A ideia de uma trégua ou cessar-fogo temporário é aceitável a partir do ponto de vista da shari’ah se a trégua for do interesse da comunidade muçulmana. Há discussões legais detalhadas centradas nos tratados do Profeta com não muçulmanos, especialmente com a tribo de Qureish, naquela que se tornou conhecida como a trégua de Hudaybiyah. Segundo a história do Islã, o tratado considerado mais relevante para o conflito na Palestina é aquele que Salah al-Din al-Ayyubi realizou em Ramlah, próximo de Lyd (uma cidade costeira da Palestina, em 1948) com os cruzados. Em ambos os casos o tratado foi temporário” (ABU-RABI, 2011, p. 135, ênfase acrescentada). Por questões como essa, penso ser necessário que o islã seja modernizado para se tornar uma religião com apelo mais amplo, com aplicação universal, pois como operar no mundo atual, globalmente, fazendo uso de princípios tribais, antiquados? 98 em seu lastro” orientada”, suas e, mais especificamente, promessas não podiam “feudalmente permanecer orientadas só para “o outro mundo”, passando a anunciar perspectivas concretas de vida boa “neste mundo”, sobre a face da terra [...] Porque o Islã passa a “glorificar o heroísmo com promessas de prazer sensível neste mundo e no Além para o combatente da fé. Eis aí a radicalidade da thisworkliness típica do Islã. (PIERUCCI, 2002, p. 76) 129 Riqueza, poder, honra são as promessas do islã antigo para este mundo: promessas a soldados [Soldatenverheissungen], portanto, e um paraíso sensual no além para soldados [sinnliches Soldatenverheissungen] (WEBER, 1999, p. 413) [...] a promessa do domínio do mundo e do prestígio social dos crentes que, no Islã antigo, os fiéis levaram consigo na mochila como recompensa pela participação na guerra santa [heiliger Krieg] contra todos os descrentes [...] (Ibidem, p. 356) As promessas que, prescindindo da posição de dominador, estão vinculadas, mesmo no islã, à propaganda guerreira, e especialmente, recompensa portanto, pela morte à na do paraíso guerra islâmico religiosa como [Tod im Glaubenskrieg], são, naturalmente tão longe de ser promessas de salvação no verdadeiro sentido da palavra quanto [...] a de qualquer outro céu de heróis (WEBER, 1991, p. 325). 130 Perucci (2002, p. 76) observa que na fase medinense da vida e da composição do Corão, as promessas de salvação, antes com orientação extramundana para atrair judeus e cristãos, passam a exaltar as possibilidades de riquezas temporais (“intramundanas”), para seduzir guerreiros. Ele cita a 129 Esse mesmo heroísmo e promessas na vida além serão feitas pelos fundamentalistas, como veremos. 130 Pierucci traz a seguinte tradução para este trecho: “[...] naturalmente promessas de salvação, no verdadeiro sentido da palavra, tanto quanto a promessa do Walhalla, ou a do paraíso dos heróis, anunciado ao kshatriya indiano que morre em combate” (2002, p. 76). 99 sura 4.94 para exemplificar: “Ambicionais os bens deste mundo? Deus vos reserva espólios abundantes!”. É com expectativas assim que se forja um dos traços mais característicos do Islã: o mártir muçulmano, o crente a cavalo que desafia a morte na jihad, por Deus e pelo território de Deus (Perucci, 2002, p. 76, ênfase no original). 131 Esta atitude refletia a ameaça sob a qual o profeta vivia, ameaça de perder prestígio social, ao ver desacreditada a sua palavra e as convicções que espalhava. Se ele não podia demonstrar a árabes, judeus e cristãos a genuinidade das revelações recebidas, logo as tradições religiosas consolidadas o desmascarariam. A violência é uma via de duas mãos: A violência, portanto, não é somente instrumento de opressão social ou de agressão militar. Ela é também um método de ação que parece às vezes necessário para defender a liberdade ameaçada ou para conquistá-la. A violência, com efeito, pode ser empregada ao serviço de causas justas. Mas isto não a torna justa (VILHENA, 2007, p. 147, ênfase acrescentada). 131 Pierucci destaca três características do Islã que reforçam a vocação para a conquista e a guerra. Primeiro, uma religião masculina: “[...] é isso que acontece empiricamente [...] a consistência interna do tipo ideal o exige, toda religião de guerreiros é dirigida exclusivamente ao sexo masculino: na die Männer allein. Só para homens”. Segundo, “características de um espírito definitivamente feudal”. E por último, a adulteração da revelação a seu gosto e o apelo aos guerreiros com promessas de prazeres sexuais que o Profeta “pessoalmente e na forma de suas promessas para o Além feitas aos combatentes da fé, tanto espaço deu a volúpia sexual” e, numa sura especial, “dispensou a si mesmo do limite do número de mulheres imposto aos outros” (PIERUCCI, 2002, p. 94). E na nota 69 da mesma página: “Era de quatro esposas o limite permitido ao comum dos mortais (cf. Alcorão 4:3), mas a necessidade sentida em Medina de ampliar o numero de seu séquito mediante alianças com diversas tribos, e alianças para valer costumavam ser alianças matrimoniais, Maomé acabou superpovoando sem próprio harém. E para legitimar religiosamente tal exceção foi necessário que recebesse uma revelação especial permitindo a ele ter mais do que as quatro esposas usuais” (PIERUCCI, 2002, p. 94). 100 A convivência entre o Profeta do Islã e os grupos de judeus na Península arábica era conflituosa, em Meca e em Medina. Muhammad imprimiu em seu texto as próprias diferenças com os grupos de judeus, chamando-os de “porcos” e “macacos”, como também as diferenças com os “renegadores do sábado”, os cristãos (2.65 132; 5.60 133; 7.166 134). Conteúdos assim transferem para leitores de hoje a percepção “do outro” como diferente e objeto do preconceito contra tais grupos. 135 Em países como a Arábia Saudita e o Egito e outros no Oriente Médio, onde há presença dessas minorias, as perseguições são claras. 136 Em que medida a pressão sofrida causou a reação, não sabemos. Fato é que os contornos sociais envolviam um plano de conquista que, segundo a leitura que Pierucci faz de Weber, “grande parte de seu impulso social básico se concentrava na busca pela terra, a principal força propulsora de sua militância guerreira” (PIERUCCI, 2002, p. 95), ainda hoje elemento bastante valorizado. A mensagem, a partir de Medina, segundo o autor, era essencialmente esta: a conquista territorial, “ainda que a cabeça deva estar voltada fisicamente para Meca cinco vezes ao dia” (PIERUCCI, 2002, p. 95). 132 2.65: Já sabeis o que ocorreu àqueles, dentre vós, que profanaram o sábado; a esses dissemos: "Sede símios desprezíveis!" 133 5.60: Dize ainda: Poderia anunciar-vos um caso pior do que este, ante os olhos de Deus? São aqueles a quem Deus amaldiçoou, abominou e converteu em símios, suínos e adoradores do sedutor; estes, encontram-se em pior situação, e mais desencaminhados da verdadeira senda. 134 7.166: E quando, ensoberbecidos, profanaram o que lhes havia sido vedado, dissemos-lhes: Sede símios desprezíveis! 135 “Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2.63-66; 5.59-60 e 7.166.” Disponível em http://coraocomentado.blogspot.com.br/2010/01/blogando-o-alcorao-surata-2-vaca.html em 13.10.2013. A mesma concepção encontramos em O Filho do Hamas: “Por que meu pai, que amava Alá e seu povo, tinha de pagar um preço tão alto enquanto homens sem fé como Arafat e membros da OLP proporcionavam uma grande vitória aos israelenses, [p 78] que eram comparados a porcos e macacos no Alcorão?” (YOUSEF, 2010, p. 77). 136 A Missão Portas Abertas tem ranking de 50 países no que chama Classificação de Países por Perseguição, originalmente chamada de World Watch List – WWL, classificados, com base em experiência de campo, em quatro níveis de perseguição: extrema, severa, moderada e concentrada. Disponível em http://www.portasabertas.org.br/cristaosperseguidos/classificacao/ em 13.10.2013. 101 Se de fato Muhammad rompera com o judaísmo e o cristianismo, era natural que rejeitasse a moral destes em favor da que mais favoreceria seu ideário. Assim, nessa época de popularização dos monastérios, o Profeta diz que os mesmos não seriam adotados no Islã, com preferência ao esforço pessoal do fiel (jihad) independentemente do seu isolamento social – ele precisava dos homens para a batalha, o jihad menor. O zoroastrismo persa, de Mani, era mais útil nesse momento, pois ensinava que “o universo era um campo de batalha, abaixo do Deus supremo, entre bons e maus espíritos; o bem venceria, mas os homens e mulheres de virtude e pureza ritual podiam apressar a vitória” (HOURANI, 1994, p. 25). Hourani registra que depois das vitórias de Alexandre, que conquistou o Irã em 334-333 a.C., a doutrina de Mani migrou para o Ocidente. Ela incorporava profetas e mestres num sistema filosófico com forte “ênfase no dualismo de bem e mal e tendo uma classe sacerdotal e um culto formal” (HOURANI, 1994, p. 25), tal como ocorreu inicialmente no Islã. Há ainda, do lado cristão, a influência de uma “tendência dominante no Oriente”, que vinha do grupo dos nestorianos. Nestorius, discípulo de Teodoro de Mopsuéstia, fora patriarca da igreja de Constantinopla, aproximadamente no ano 428. Ambos afirmavam a doutrina do monofisismo, de que “só Deus (o Pai) não podia ser criado nem gerado, que Jesus de Nazaré não poderia então ser colocado no mesmo plano e que, consequentemente, Maria não podia ser chamada ‘mãe de Deus’ mas mãe de Jesus” (GARAUDY, 1998, p. 29). Esse ensino se espalhou pela Pérsia “e foi provavelmente o que o profeta conheceu quando conduzia até a Síria as caravanas de sua futura esposa Khadija” (GARAUDY, 1998, p. 29). 137 Nessa época, nascia no pensamento de Muhammad a semente do monoteísmo inexistente na Arábia. O discurso começava a tomar forma e a ideologia a fazer sentido e se consolidar. As histórias vividas nesse tempo 137 Roger Garaudy (1913-2012) foi um filósofo francês de origem católica e integrou a resistência francesa contra o nazismo. Foi preso, aderiu ao partido comunista e, mais tarde, em 1982, abraçou o Islã e a causa palestina. Foi expulso do PC em 1970 por ter criticado a invasão soviética da Checoslováquia. Por suas críticas contundentes ao sionismo e às políticas de Israel em relação aos palestinos foi acusado de ser “antissemita” e foi processado na França por este motivo. 102 foram posteriormente entendidas e registradas como revelações de Allah e encontram uma boa leitura feita por Kamel. Falando sobre a interpretação correta da história passada, o autor distingue o que é normativo e o que é prescritivo, separando o registro histórico dos conceitos morais religiosos, que posteriormente foram fundidos pelos discípulos. Kamel indica que as situações históricas não devem servir como recomendação eterna para todas as futuras comunidades (KAMEL, 2007, p. 131). Admitindo a luta de Muhammad “contra os idólatras, os politeístas de Meca”, ele alega ser preciso separar aquela situação passada como única a não ser repetida (Ibidem). Kamel, no entanto, admite não haver consenso quanto ao que é e ao que não é regra de fé. Há versículos que “perderam a validade”, mas constam do texto corânico, enquanto outros permaneceram registrados sem receber maior ênfase por Deus, por ter “caducado” (KAMEL, 2007, p. 131). Reside aí um indício para entender a confusão havida nas escolas de interpretação posteriores que se esforçam para reviver, em outras terras, o período de ouro do Islã, em Medina, quando a nascente comunidade do Profeta era vibrante e coesa. É precisamente esse o mecanismo que foi adotado por pensadores no século XX, como Qutb, que elaboraram o fundamentalismo e que funciona como combustível numa sociedade em crise com as culturas do seu tempo. 2.2 A construção da sociedade islâmica em Medina Instalado em Medina, os novos ares parecem ter favorecido a causa da conquista. Muhammad procurou apoio dos moradores de Taif, próxima a Meca, mas teve de sair às pressas “fugindo de pedras” [apedrejamento] (KAMEL, 2007, p. 68). Em Meca, ele foi procurado por 12 homens de Medina que se mostraram dispostos a envolver-se no novo movimento e arrastaram após si outros interessados que “prometeram defender o Islã, dando a própria vida, se isso fosse necessário” (KAMEL, 2007, p. 68). É evidente ter havido uma motivação além da salvação extramundana. Acenando basicamente com riqueza em forma de terra numa zona de desertos, “o Islã ficou sendo substancialmente, uma religião de guerreiros” e, Weber não se esquece de completar, 103 “uma religião de senhores”: ... uma religião de senhores... puramente feudais os elementos últimos de sua ética econômica. Já na primeira geração de adeptos, os mais piedosos eram precisamente os mais ricos, ou melhor, aqueles que tinham enriquecido mais que os outros companheiros de fé com os despojos de guerra em sentido amplo (WEBER, apud PIERUCCI, 2002, p. 77, ênfase no original). A essa altura “as tribos tinham de mil a 2 mil indivíduos e eram dirigidas por um sayyid, senhor” (VERNET, 2004, p. 42, ênfase no original). As rusgas entre tribos eram frequentes e a desonra, radicalmente rejeitada e quando ocorria, era admitido o assassinato dos difamadores. O árabe pré-islâmico valorizava a honra e a hombridade; organizava-se em torno de valores como, por exemplo, generosidade, a proteção do fraco (VERNET, 2004, p. 42). Muhammad deveria articular o seu discurso de modo a fazer uma costura entre todos os grupos, interesses e especialmente os valores. Além das pequenas comunidades de árabes e de judeus em Medina, havia também os “iemenitas de aws” e os “hazraj”. Os primeiros viviam nos subúrbios e enfrentavam os últimos “que ocupavam o centro da cidade” (VERNET, 2004, p. 41). As disputas eram mediadas pelos judeus, como vimos, mas surgia um novo “fiel da balança entre as duas facções”: “um árbitro da outra ‘raça’, o coraixita Maomé” (VERNET, 2004, p. 41). Em seu último discurso, “A Peregrinação do adeus”, em março de 632, Muhammad deu destaque a virtudes transcendentais, como também a relações pessoais. “Deus é maior que o maior dos reis, e só a ele se deve uma absoluta reverência”. A despeito disso, haveria disputas e mortes já na sucessão do Profeta. Se Muhammad tinha em mente algum tipo de “resistência a qualquer tirania e para a contestação de qualquer autoridade, [no] fundamento divino de uma igualdade de todos os homens acima de qualquer hierarquia social” (GARAUDY, 1998, p. 30) seus homens mais próximos parecem não ter entendido. Eles queriam reinar aqui, enquanto Deus reinava no céu. A questão da honra era outro fator relevante. A desonra, por sua vez, poderia ser atingida pelo trabalho do poeta/jornalista através da difamação. 104 Muhammad reorganizou os valores e a hierarquia em sua comunidade em torno desses elementos: Maomé, com sua mensagem, relativizou alguns desses conceitos ao tornar, por exemplo, a riqueza, a generosidade, a nobreza e a ascendência iguais, pela religião, à piedade, a ponto de bastar essa virtude para serem todos iguais perante Deus e dar validade à expressão: “Diz: sou assim; não diga: assim foi meu pai” (VERNET, 2004, p. 42). Vernet situa historicamente neste período uma característica recorrente no Corão. Ele diz que a língua ferina era usada para inferiorizar as pessoas, dizendo-as inferiores ao lagarto, à hiena, ao porco-espinho ou a qualquer outro animal desprezível do deserto (VERNET, 2004, p. 45). Reside aqui a fonte das repetidas vezes que Muhammad ofendeu judeus e cristãos, chamando-os “macacos e porcos”. 138 Frantz Fanon atribui esse expediente a colonizadores: 138 As passagens do Corão que trazem essa expressão são 2.63-66; 5.59-60 e 7.166. Em Simpósio realizado na USP-SP de 29-31/10/2013, questionei o Sheik Jihad H. Hammadeh, vice-presidente da Assembleia Mundial da Juventude Islâmica na América Latina, o qual não demonstrou conhecer qualquer vínculo desses versículos a algum tipo de ofensa, alegando que Allah havia dito que transformaria a qualquer ofensor em “porcos e macacos”, não somente judeus e cristãos. Não parece ser esse o entendimento mais amplo, a contar dos seguintes comentários de iminentes autoridades. “Esta interpretação é amplamente usada nos dias de hoje como metáfora para a corrupção dos judeus, ao nível de bestas. O próprio Mafoma [Muhammad] deu início a esta prática quando se dirigiu aos judeus da tribo Quraizá (Qurayzah), ao preparar-se para os massacrar, com os termos: “Vós, irmãos de macacos.” Recentemente, o grão-xeque de Al-Azhar, Muhammad Sayyid Tantawi, chamou aos judeus “inimigos de Alá, descendentes de macacos e de porcos”. O xeque saudita Abd Al-Rahman Al-Sudayyis, imã da principal mesquita de Meca, a mesquita Al-Haraam, explanou esta noção dizendo num sermão que os judeus são “a escumalha da raça humana, os ratos do mundo, os violadores de pactos e de acordos, os homicidas de profetas e a descendência de macacos e porcos”. Outro xeque saudita, Ba’d bin Abdallah Al-Ajameh Al-Ghamidi, explicitou mais claramente a conexão: “O comportamento actual dos irmãos de macacos e de porcos, a sua perfídia, propensão para violar os acordos e profanar os lugares santos [...] está relacionada com os feitos dos seus antepassados durante o primeiro período do islão − o que atesta a grande semelhança entre todos os judeus hoje vivos e os judeus que viveram no dealbar do islão”. “Hoje em dia [século 20 em diante], os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e porcos; A primeira destas passagens descreve Alá dirigindo-se aos 105 “Por vezes este maniqueísmo vai até ao fim de sua lógica e desumaniza o colonizado. A rigor, animaliza-o. E, de fato, a linguagem do colono, quando fala do colonizado, é uma linguagem zoológica” (FANON, 1968, p. 31). Embora as diferentes tribos, a esse tempo, fossem conduzidas por diferentes sheiks, Muhammad organizou o seu discurso apoiado na tradição das comunidades de judeus “de que todos eram descendentes de Abraão” (BINGEMER, 2001, p. 176). Em certo sentido, isso reforça a hipótese de mimetismo, uma vez que demonstramos o vasto politeísmo na península préislâmica. Muhammad rejeita a sua tradição em favor da tradição abraâmica. O monoteísmo islâmico iniciado pelo Profeta tem a função de aproximar, sob a sua espada, as diferentes tradições. Citando B. Júnior, R. S., 139 Bingemer 140 chama de “teocracia islâmica” a comunidade muçulmana fundada em Medina, onde “Maomé experiencia como 'profeta legislador' toda uma diversidade de situações aos olhos da tradição islâmica” que reúne em torno de seu projeto e das revelações que faz, reivindicando a chancela divina e “assegura aos crentes diretrizes para o discernimento do comportamento justo em meio às necessidades e conflitos do mundo” (BINGEMER, 2001, p. 176). E Pierucci acrescenta: judeus que profanaram o Sábado nos seguintes termos: “Sede símios desprezíveis!” A passagem prossegue dizendo que esta maldição há-de ser “exemplo para os seus contemporâneos e para os seus descendentes, e uma exortação para os tementes a Deus.” Na tradição teológica islâmica estas passagens não têm sido entendidas como aplicando-se a todos os judeus. Ibn Abbas diz que “os que não honraram a santidade do Sábado foram transformados em macacos, tendo morrido sem deixar descendência”. Outros exegetas, contudo, a exemplo do pioneiro estudioso do islão, Ibn Qutaiba, sustentam que os macacos hoje existentes são descendentes dos judeus que não honraram o Sábado.” Fonte, site Corão Comentado, http://coraocomentado.blogspot.com.br/, acessado em 10.11.2013. 139 In: Mística e política no seguimento ao profeta do Islã. Mística e Política. Bingemer. Coleção Seminários Especiais. Centro João XXIII/Loyola, 1994. 140 Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989). Atualmente é professora associada no Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade. 106 É que na ida para Medina começava a nascer o que mais tarde islamologistas chamariam de “Islã total”: o Islã que engloba em si todas as esferas da vida, individual e coletiva. Se o islã como um Estado surge com a Hégira, é bom lembrar que se trata de uma fusão de comunidade religiosa com sociedade política, de um híbrido Igreja-e-Estado, muito embora uma “igreja” no formato ocidental (et pour cause) jamais tenha se desenvolvido por lá (PIERUCCI, 2002, p. 78, ênfase no original). Citando Weber, toca na questão do monoteísmo que agora exige exclusividade – pois é o Profeta que detém a palavra revelada – e “ao combatente da fé” cabe o esforço por eliminar obstáculos a essa crença, já que o anúncio da “exclusividade de um Deus único universal” pressupõe a “abjeção moral dos não-crentes como inimigos, cuja existência tranquila provoca a justa cólera de Deus” (PIERUCCI, 2002, p. 78). Nascia, assim, um novo modelo de fé que misturava política, economia e armas: Em Meca, Maomé pregara uma religiosidade nova e despojada, desarmada em todos os sentidos da palavra. Em Medina, ele a vestiu, ataviou e encouraçou de violência legítima, erigindo-a em uma comunidade religiosa envolta em poder militar. A transferência geográfica de sede do núcleo fundador do Islã precipitaria a refundação do islã, agora como Estado (PIERUCCI, 2002, pp. 78,79). Mas, um Estado não se faz sem recursos. Era preciso muito dinheiro para sustentar seus fiéis soldados. A sobrevivência entrava na pauta do dia e a História dá conta do mecanismo utilizado por Muhammad. Os despojos de guerra, o “butim das contínuas campanhas vitoriosas” proveria regularidade para as economias do bando (VERNET, 2004, p. 106). E sabei que, de tudo quanto adquirirdes de despojos, a quinta parte pertencerá a Allah, ao Mensageiro e aos seus parentes, 107 aos órfãos, aos indigentes e ao viajante (Sura 8.41, HAYEK, s/d, p. 160) 141 “Uma boa fonte de renda proveio da captação ou jizya paga pelos judeus, cristãos e sabeus ou masdeístas (dimmis) que ficaram vivendo nas zonas do território do islã” (VERNET, 2004, p. 106, ênfase no original). Bingemer diz que “Maomé acaba permitindo que alguns dos seus seguidores saqueassem algumas caravanas que se dirigiam à Meca. Do sucesso desse empreendimento nasce a certeza de que Alá estava realmente com eles” (BINGEMER, 2001, p. 177). Ela alega que esses recursos dos saques não devem ser tomados como “por demais simplista”, já que se desenvolverá e assumirá grande importância para o “triunfo do Islamismo”, no que mais adiante se chamará “Guerras Santas” (Ibidem): Historicamente, como vemos, desde a sua origem, o Islamismo já vem sendo marcado por uma trajetória de conquistas e uma tendência de imposição de sua doutrina, ainda que, na maioria das vezes, a violência seja o instrumental utilizado para tal fim (BINGEMER, 2001, p. 177). Pierucci é mais incisivo e afirma que não se trata de conversão, mas de conquista. O “monoteísmo escatológico” do Corão fora adaptado “aos interesses socioeconômicos expressos no estilo de vida guerreiro-feudal, a ânsia de salvação passou a ser interpretada por meio da ideia de jihad” (PIERUCCI, 2002, p. 81, ênfase no original). Bingemer concorda que “as afirmações presentes no Alcorão de que Deus é alguém violento, têm, assim, um cunho extremamente pedagógico” (BINGEMER, 2001, p. 190). 142 Essa prática de apelar para a religião, a fim de justificar o uso da política e de outros recursos, consolidou-se cedo no Islã. Cedo e ainda hoje se 141 “Sabei que de qualquer coisa que faça parte do butim que obtiverdes, um quinto pertence a Deus, ao Enviado, aos próximos do Enviado, as órfãos e aos viajantes” (VERNET, 2004, p. 106). 142 Neste ponto, Bingemer puxa uma nota de rodapé que diz: “Embora saibamos, pela história, que o próprio Maomé teria se envolvido em guerras, como aquela pela tomada de Meca, isso não invalida o teor da revelação apresentada por ele” (BINGEMER, 2001, p. 190). 108 consolida. É a “instrumentalização da religião, que permite sujeitar a lei divina (shari’a) às necessidades dos governantes, criando assim uma tradição (sunna) por vezes em contradição radical com a revelação” (BINGEMER, 2001, p. 192). “Para um muçulmano devoto a política é o que os cristãos chamariam de sacramento. Uma atividade que deve ser sacralizada para se tornar um canal do divino” (ARMSTRONG, 2009, p. 63). Foi assim no surgimento dos otomanos, segundo Hourani, quando os soldados turcos a serviço dos abássidas justificaram a legitimidade do califado de Bagdá: “De modo mais sistemático que os omíadas, os abácidas tentaram justificar seu governo em termos islâmicos” (HOURANI, 1994, p. 55), prática a que vários governos recorreram quando sentiram a necessidade de se justificarem religiosamente (Ibidem, p. 83). Mas é assim que o Islã lida com ambos os campos, religioso e político. “É irreal tudo o que é percebido ou concebido fora de sua relação com Deus. Logo, não há separação entre o sagrado e o profano: tudo é sagrado por sua relação com Deus” (GARAUDY, 1998, p. 31). “O Islã é indivisivelmente uma religião e uma comunidade. Uma fé e um código de vida” (GARAUDY, 1998, p. 24). Apelar “à religião para justificar as piores violações dos direitos do homem” (BINGEMER, 2001, p. 192), “tal a raiz e a definição de todo fundamentalismo: identificar a fé com a forma cultural ou institucional que ela assumiria numa época passada de sua história” (BINGEMER, 2001, p. 193). E o nascedouro do Islã, ou seja, a visão que o fundamentalismo tem na interpretação do Corão e da tradição é terreno fértil para histórias dessa natureza. Tanto que Qutb chama de “uma ultrajante ignorância da natureza dessa religião que alguém pense que pode compreendê-la enquanto está lendo páginas frias”. E continua: “Longe de ser derivada de estruturas congeladas, a jurisprudência só pode ser derivada da fonte morna e corrente da vida, que se mistura com o movimento dessa religião no mundo da realidade” (ABU-RABI, 2011, p. 87). Confirma a tradição, uma vez que: No passado, quando os muçulmanos enfrentavam uma questão legal difícil, eles a levariam à atenção do povo das fronteiras, quer dizer, aqueles que lutavam a jihad. Na 109 realidade, somente os pios podem distinguir entre a verdade e a falsidade na religião (Ibidem). Pierucci dá uma explicação para o fato de não ser a fé a prioridade em todos os territórios conquistados, mas a apropriação dos recursos (saque e pilhagem). Há implicações fiscais e econômicas. Se todos se converterem, quem sustentará as campanhas para novas conquistas e o próprio aparelho humano? Os “incluídos politicamente mas excluídos ritualmente da comunidade dos crentes” servem para pagar o zákat (imposto que o nãomuçulmano paga), equilibrar as contas e manter o padrão de vida dos guerreiros. Por esse mecanismo explica-se também, por exemplo, a aclamada “tolerância islâmica para com cristãos e judeus nos países islamizados” (PIERUCCI, 2002, p. 84). Mas Weinberg contesta essa imagem de tolerância creditada ao Islã desde cedo: Há ainda o pouco difundido e conhecido caso do martírio de 48 cristãos em Córdova, Espanha, no século IX, que com suas mortes protestaram contra o domínio político e religioso do Islã, refletindo a tensão intercultural que existia na região, ao contrário do que sugere a propalada e popular imagem de convivência harmônica das três religiões na Espanha árabe (WEINBERG, 2007, p. 25). 143 Kamel (2007, p. 124) concorda com isso plenamente. “Para quem vivia uma situação assim (ou morte ou conversão ou tributo), não havia outra conclusão senão a de que o Islã, Estado e religião expandiam-se pela força. A fusão de fé com política gerou um filho, o califado. A fé era protegida das acusações feitas contra uma ruptura do que se entendia por religião. “Para os conquistadores muçulmanos, a acusação não fazia sentido. Para eles, o que se 143 “Nacionalistas árabe-palestinos, tanto do Fatah como do Hamas, gostam de falar de “muçulmanos e cristãos” da Palestina ao vender o seu caso no Ocidente, mas esse é um dispositivo propagandístico, totalmente desprovido de substância e sinceridade (afinal, a principal razão pela qual árabes cristãos vêm deixando a Terra Santa tem sido o medo dos muçulmanos e dos futuros excessos muçulmanos, o que é também a causa da emigração dos cristãos do Iraque)” (MORRIS, 2014, p. 51). 110 expandia pela espada era o califado, o Império Islâmico, mas não a religião” (KAMEL, 2007, p. 124). E mais: “em alguns casos, as conversões sequer eram estimuladas, para que o erário não sofresse abalos” (Ibidem). Albert Hourani também fala do surgimento do imposto a não-muçulmanos como receita para um exército e para a corte (HOURANI, 1994, p. 55). Pierucci, citando Hourani (2002, p. 81), afirma que na mudança para Medina, Muhammad “refundava o Islã e o relançava ao encontro do mundo: para conquistar territórios e submeter suas populações à glória de Alá”. Acho pouco provável que Muhammad tivesse em mente algo como uma religião de alcance universal, pelo que tem sido demonstrado. Que era uma nova “classe dominante composta basicamente de senhores da terra e da guerra” (PIERUCCI, 2002, p. 79), isso sim. O Islã desde cedo se tornou religião “para guerreiros”, “um estamento de cavaleiros crescentemente poderosos e organizados” e assim acenou “em suas promessas com vitórias e conquistas tão terrenas quanto territoriais” (Ibidem). Muito tempo depois desse período é que se popularizará (se é que podemos falar nesses termos) a produção dos hadith, coleção dos ditos e/ou comentários e práticas do Profeta, reunidos por seus companheiros. A preservação da mensagem original se deu por essa via (BINGEMER, 2001, p. 195). No entanto, Bingemer indica que em “dado momento da História do Islamismo (660-750)” começou a haver uma “interpretação fatalista e resignada de certos versículos do Alcorão” (BINGEMER, 2001, p. 195). A formulação desses falsos hadith será a grande causa pela qual o Islamismo muitas vezes não conseguirá mais remontar até à sua fonte originária, o Alcorão, perdendo-se assim em meio a interpretações que, em grande parte, se desvirtuam da intenção primária do Profeta e do Alcorão. A partir daí, as intervenções violentas, tais como vemos hoje anunciadas pelos grupos terroristas muçulmanos, não têm sua origem senão nessas infindáveis coleções herdadas da tradição islâmica, e fundamentadas de forma errônea no próprio texto sagrado que é o Alcorão (BINGEMER, 2001, p. 196, ênfase acrescentada). 111 Que a violência cometida em nome do Islã se vale de “interpretação resignada de certos versículos do Alcorão”, é compreensível. Mas é preciso considerar, igualmente, que o esforço por recriar e “retornar até à sua fonte originária” (ad fontes) levará ao encontro de cenas igualmente violentas, as quais servirão como modelo a ser seguido ou resgatado. Todas as sociedades conservadoras (como já se observou) voltaram-se para uma Idade do Ouro, que, no caso dos sunitas e do Império Otomano, foi a época do Profeta Maomé (c. 570632) e dos quatro rashidun (califas “corretamente orientados”) que o sucederam (ARMSTRONG, 2009, p. 63). Em um sentido a ligação com o Hamas é clara, uma vez que o Hamas é sunita. 144 As raízes da abordagem fundamentalista do Corão pelos grupos radicais é traçada por Armstrong: Um reformador como Ahmad ibn Taymiyyah (1263-1328), de Damasco, por exemplo, recusou-se a aceitar o fechamento das “portas do ijtihad. 145 [...] Achava que para sobreviver à crise os muçulmanos deviam retornar às fontes, ao Alcorão e à Suna 146 do profeta. Queria eliminar os acréscimos dos teólogos e recuperar o básico (2009, p. 68). E sobre retornar às fontes, Armstrong acrescenta: 144 145 Os xiitas recorrem ao martírio de Ali. Ijtihad: hermenêutica, o esforço de reflexão, ou seja, o pensamento racional sobre o texto islâmico (Corão e ahadith) na tentativa de extrair os ensinamentos legais para a prática da comunidade. Os xiitas admitem o ijtihad, enquanto os sunitas adotam o taqlid, a imitação. 146 Sunah: literalmente “o caminho trilhado” como referência a coleção de procedimentos adotados pelo Profeta no caminho da fé. 112 A criação de um novo e vibrante islamismo só seria possível com a retomada dos ideais dos salaf, 147 a primeira geração de muçulmanos. Rida 148 não era fundamentalista; ainda procurava casar o islamismo com a moderna cultura ocidental, em vez de elaborar um contradiscurso, porém influenciaria com sua obra os fundamentalistas do futuro (Ibidem, p. 266). 2.3 Uma fé, um domínio Deus é único, e única realidade. Tal é a shahada, o princípio fundador dessa profissão de fé cujo segundo postulado é que Maomé, mensageiro de Deus, designa o movimento de retorno; porque Maomé é o exemplo mesmo de toda realidade considerada como revelação e sinal de Deus (GARAUDY, 1998, p. 31, ênfase no original). A shahada, o credo islâmico, dá fundamento a todo o edifício que Muhammad faria erigir sobre a Península, a partir de Medina, a capital provisória, a incubadora da ummah, a comunidade do Profeta. A ummah é o ideal comunitário islâmico a ser implantado em todo o mundo, a partir do modelo observado do início do Islã. É na concretização de uma comunidade mundial de tal perfil que a shari’a, a lei divina, pode ser aplicada extensa e irrestritamente. Sob esse manto está a autoridade que Muhammad aos poucos cunhava, anunciando que o próprio Deus o havia eleito como seu representante, e que ninguém o contestasse, sob pena de condenação eterna: “Maomé começou a reforçar a sua autoridade pessoal determinando que os crentes deviam obedecer a Deus e, por conseguinte, ao seu Enviado. Aqueles que se rebelassem teriam abrigo no inferno” (VERNET, 2004, p. 73). 147 Salaf (ou salafi): ancestrais muçulmanos. A tradição salafi considera as três primeiras gerações de muçulmanos, as dos companheiros do Profeta, e as duas gerações seguintes. Hoje o termo refere-se às correntes (seitas e grupos) ortodoxas do Islã. 148 Rashid Rida (1865-1935), jornalista, foi o primeiro muçulmano a propor a criação de um Estado islâmico modernizado, baseado na Shariah. Defendeu a restauração do califado. 113 Muhammad tinha o discurso, o carisma e o novo exército. Bastava desembainhar a espada e conquistar territórios. E foi o que fez. Conhecedor da rotina nos trajetos comerciais dos caravaneiros e com a bênção de Deus, avançou: “Em pleno mês sagrado de rajab atacou uma caravana em Nahla, matou um dos viajantes e retornou a Medina com um grande butim. A cidade, indignada, tachou os combatentes de bandoleiros” (VERNET, 2004, p. 73, ênfase no original). Se a ética local parece ter sido ofendida, como de fato foi, isso era pouco para quem detinha os oráculos de Deus entre o povo. Bastava um pronunciamento divino chancelando o arrastão. Quando te perguntarem se é lícito combater no mês sagrado, dize-lhes: A luta durante este mês é um grave pecado; porém, desviar os crentes da senda de Allah, negá-Lo, privar os demais da Mesquita Sagrada e expulsar dela (Makka) os seus habitantes é pior do que o homicídio (Sura 2.217, versão de EL HAYEK). Era assim que o Deus do Corão falava. 149 O mesmo expediente “espiritual” foi usado para justificar a batalha de Badr, a vitória do fosso, “a mão dura empregada com os judeus e os contínuos ataques às caravanas [que] muito fizeram em favor do islã” (VERNET, 2004, pp. 76,77,80). Tantas outras vitórias Muhammad conseguiu assim, todas com a devida anuência dos céus: pilhando caravanas, atacando pequenas aldeias, saqueando e deixando seus soldados saquear e passando a espada. “O enriquecimento inicial do islã que favoreceu a implantação da sua lei sobre as tribos e sobre os judeus, que agora pagarão a jizya” (VERNET, 2004, p. 81), era a rotina do novo estado islâmico ideal nascendo em Medina. Embora não tenha referências concretas (ele fala de “cronistas”, VERNET, 2004, pp. 82,83), Vernet diz haver “citações” dando conta do envio de embaixadores aos principais reis da época: Bizâncio, Abissínia e aos persas. Mas o historiador não tem certeza absoluta de que tivessem sido enviados; é mais provável que esses embaixadores tivessem cruzado o 149 Vernet (2004, pp. 76,77) expõe o modo como Muhammad justifica a bastante conhecida batalha de Badr criando textos, os quais alega serem as revelações de Allah para apoiar a pistolagem que faz. 114 território pretendido por Muhammad, porque o sentido que o autor quer ressaltar é a existência ou surgimento de um nome forte para dialogar com as tribos em pé de igualdade. Falta novamente um apoio que sustente o plano do Profeta para expansão global de seu domínio àquela época; sua ocupação principal enquanto viveu foi apenas a Arábia. O objetivo, a partir de Medina, era tomar Meca militarmente. As intermitentes tentativas de ataque culminaram num conflito armado do qual Maomé sairia vitorioso: em 630, oitavo ano da Hégira, as elites de Meca se renderam a um cerco de vários anos e Maomé tomou a cidade. Conta o mito que sem derramamento de sangue (PIERUCCI, 2002, p. 85). Quando conquistou Meca, Muhammad “mandou destruir os ídolos e proclamou que Meca tinha sido conquistada pela força, o que tornava todos os seus habitantes cativos dele” (VERNET, 2004, p. 84). Evidentemente a sua tribo de origem, os coraixitas, submeteu-se obedientemente (este o significado de Islã, submeter-se) com juramento, e foram forçados a reconhecê-lo “como Enviado de Deus” (Ibidem). “A mais profunda alegria o invadia, e para atrair seus parentes ele deu um novo destino às esmolas”, fazendo nova revelação, a Sura 9.60 150 (Ibidem, p. 85). Kamel (2007, p. 72), que conta sobre a primeira derrota em Uhud, defende que a batalha contra Meca ocorreu com a tomada “sem resistência”, uma vez que Muhammad já era forte o suficiente para entrar vitorioso na cidade, destroçar os ídolos da Kaaba e repetir o gesto de Abraão, séculos atrás (Ibidem, p. 73). Aos poucos estendia o seu domínio por meio de batalhas e subjugando os pequenos povoados e tribos “os tamim, os asad, os bakr, os taglib etc.”, que – reconheciam “sua missão, e as doutrinas de Maomé” (VERNET, 2004, p. 85, ênfase no original) e fazendo alianças com chefes de outras tribos da Arábia (PIERUCCI, 2002, p. 84). É em Medina “que se 150 “As esmolas são tão-somente para os pobres, para os necessitados, para os funcionários empregados em sua administração, para aqueles cujos corações têm de ser conquistados, para a redenção dos escravos, para os endividados, para a causa de Allah e para o viajante” (Sura 2.217, versão de EL HAYEK). 115 evidencia a seus olhos essa espécie de matriz genética de caráter bélico” (Ibidem). E aos poucos é o que está acontecendo. Vários autores falam em “cidades de soldados” (Ibidem, p. 86), e o resultado aparece na historiografia posterior à morte de Muhammad como o período matinal da história do Islã [que] continuou a ser pontilhado de guerras de islamização – guerras civis e de expansão [...] sempre por conquista militar que o Islã se expandiu para fora da península árabe (Ibidem). A militarização dos escravos é um dado particular que aparece nas narrativas de conquistas desde o início. São “escravos guerreiros” ou “escravos montados” que “foram sistematicamente recrutados por vários governantes muçulmanos e partir do século IX e postos a serviço do Islã e do califado [em] campanhas militares e extração compulsória de tributos” (PIERUCCI, 2002, p. 86). Citando Daniel Pipes, Pierucci diz que a utilização sistemática de soldados escravos nas terras centrais do mundo muçulmano parece ter persistido do século IX ao século XIX (Ibidem). Como resultado de sua pesquisa sobre esta característica do Islã nascente, Pierucci listou 19 termos utilizados por Weber para demonstrar o seu caráter bélico. Os termos listados por Pierucci, como encontrados em sua pesquisa do material de Weber são: camada social de guerreiros, bando guerreiro, combatentes da fé, lutadores de Deus, ordem religiosa de guerreiros, estamento guerreiro, profecia político-militar, confraria de guerra de conquista, religião de propaganda de guerra, ordem de cavalaria marcial, cavalaria de crentes, comunidade carismática de guerreiro dirigida pelo profeta guerreiro, religião de combate, comunismo de guerra, religião de um exército conquistador, classe de cavaleiros de guerra, heróis de guerra a cavalo, estrato de guerreiros cavaleiros e, “em definitivo”, “uma religião de guerreiros” (PIERUCCI, 2002, p. 87). Esse caráter foi impresso por Muhammad, em Medina, e sua preservação, “a era de ouro”, faz parte da ideologia a ser resgatada pelo pensamento fundamentalista radical. Por isso, determinadas leituras e reinterpretações posteriores do Corão assumiram esse perfil, pois intérpretes fundamentalistas procuram resgatar a maneira exemplar dada pelo 116 Profeta e, na prática, encontram esse modelo. Daí os novos grupos de resistência adotam práticas dessa natureza nos territórios onde atuam ou que desejam libertar da opressão colonial ou de natureza similar. [...] o Islã que surge dos fragmentos de Weber é uma religião política que interpela para a guerra de conquista, que orienta e disciplina para a batalha e o heroísmo, que fabrica uma religiosidade guerreiros, ritualista em suma, e eticamente que aponta simplificada como modelo para de personalidade para os indivíduos mais simples: “O guerreiro, não o homem de letras”, nem o comerciante ou o empresário bem-sucedido, “é o ideal da religiosidade”. Gostemos ou não, esse é o retrato do antigo Islã pintado pela sociologia de Weber (PIERUCCI, 2002, p. 87). “Durante sua vida, Maomé subjugou muitas comunidades judaicas, talvez a principal e mais rica delas, Khaibar, que resistiu bravamente até ser derrotada por um exército de 1.600 homens” (KAMEL, 2007, p. 79). A nova configuração social deveria unir sob o guarda-chuva da nova religião o poder militar dominador e conquistador e a camada comercial para manter a sua corte. Por isso, Weber usa termos da geologia para demonstrar a que se refere: estrato, camada e no caso “camada portadora” (ou “portador social” da religiosidade), que indica o portador da religião ou religiosidade, uma facção. Pierucci, falando do método utilizado por Weber para classificar aquela sociedade, chama a atenção para o fato de Weber dar importância estratégica ao período formador de uma religião. E do Islã, o que diz? Como identificá-lo sociologicamente pela chave estrutural do estrato “portador”? É indispensável isolá-lo teoricamente, pois há que fazer distinção “quando as camadas sociais engajadas na vida prática, determinantes para o desenvolvimento de uma religião, são heróis de cavalaria militar [ritterliche Kriegshelden], agentes políticos, classes economicamente aquisitivas (Weber apud PIERUCCI, 2002, p. 88, ênfase no original). 117 E conclui cinicamente: “Todos sabemos que Maomé era um comerciante de Meca” (Ibidem). Mesmo Garaudy, que faz História perfilado ao Islã, é obrigado a admitir que “essas duas formas de comunidade, a do deserto e a do oásis [...] utilizavam de bom grado os beduínos como guerreiros mercenários para a proteção de seus tráficos em caravanas” (GARAUDY, 1998, pp. 26,27). Muhammad recebeu a sua última revelação nove dias antes de morrer (KAMEL, 2007, p. 75), vítima de malária, nos braços de sua amada adolescente Aixa (VERNET, 2004, p. 89), o que ocorreu no dia 13 de rabil do ano 11 da Hégira 151 ou 8 de junho de 632. Deixou um legado para todos os gostos, e desgostos também. Não fazia ideia de que sua religião seria acreditada pela quantidade de adeptos que há hoje por todo o planeta. Mas, que herança nós temos procurado identificar e por que motivos sua religião tem sido tão mal interpretada? Precisamos pensar nas implicações da Arábia daqueles anos, a partir da lente política, por exemplo. Vimos que a shahada é um elemento basilar no Islã, a crença em que “o poder pertencente só a Deus, que torna relativa toda soberania social” (GARAUDY, 1998, p. 35), e o elemento da consulta (shura), prática que prevê a exclusão de “toda mediação entre Deus e o povo” por instrumentalização humana (GARAUDY, 1998, p. 35). Com esses mecanismos, afastam-se simultaneamente a absolutização ou sacralização do poder nas mãos de um tirano e a democracia do tipo ocidental, isto é, o poder nas mãos do povo com alma “individualista, quantitativa, estatística, delegada e alienada” (GARAUDY, 1998, p. 35). É coerente, pois se o poder é de Deus, este não pode ser do povo; seria profanação, usurpação, e, portanto, constitui-se “haram”, pecado, usurpação. Porém, o Islã de hoje tem se democratizado em diversas regiões do mundo (e.g., Irã, Egito, Palestina, Turquia e outros), mas a exemplo do Irã, o 151 A hégira é o calendário muçulmano que conta os anos a partir da data que Muhammad, fugindo dos habitantes de Meca, migrou para Medina, em 612 d.C. 118 modelo mais bem sucedido, é uma democracia controlada, o que pode facilmente ser criticado por especialistas no assunto. 152 Assim, Garaudy critica Rousseau e seu Contrato social, alegando que este não considerava concretamente o indivíduo, portanto, era incapaz de conceber tal “integração social senão através do mito de uma ‘vontade geral’”, onde as expressões e instituições democráticas hoje tradicionais “mostraram tudo que ela continha de delegação e de alienação de poder para produzir uma caricatura de democracia” (GARAUDY, 1998, p. 35). Como “no direito muçulmano, a propriedade não é um atributo do indivíduo nem de um grupo, mas uma função social, disposta segundo as exigências divinas da ‘Comendadoria do Bem’” (GARAUDY, 1998, p. 35, ênfase no original), a terra e o que ela produz devem ser dispostos para o bem comum, porque a terra é da coletividade. Remeto à importância da terra vista no capítulo anterior. Bingemer toca na questão da legitimação da violência no passado, no presente e no futuro e em conexão com a questão da propriedade da terra, pois tudo pertence a Allah. A concepção islâmica primitiva, nascente, difere da romana em que era preciso socializar a posse e o uso da terra, sem exclusividade, ou seja, ela não pertence a um indivíduo, a um grupo ou ao 152 Carranca e Camargos explicam, a partir de uma entrevista com a Nobel da Paz, a advogada iraniana Shirin Ebadi, a distinção entre a democracia naquele país e o Islã. Para a entrevistada “o governo do Irã é antidemocrático, não o islã” (2010, p. 161), e advoga que isso se deve a uma interpretação errada que os líderes do país fazem do Alcorão e da sharia. Desse modo, pelo voto democrático, o povo elege seus líderes que em nada diferem de governos ditadores que violam os direitos humanos, como os temos, por exemplo, na América Latina, sem serem Estados islâmicos. Há países no sudeste asiático, como a Malásia, nação predominantemente islâmica, onde a democracia vigora com os direitos humanos sendo respeitados. No Irã, o sistema judiciário baseia-se na sharia, que reduz direitos, viola igualdades e desconsidera a vontade do povo que os elegeu. Com 90% da população xiita, até mesmo os sunitas encontram dificuldades para construir sua mesquita no país. Corrobora a perspectiva democrática de Shirin, outra entrevista relatada na obra, com Emadeddin Baghi, jornalista, escritor, teólogo muçulmano, ativista e integrante do movimento que defende reformas políticas no Irã, homem que no passado esteve próximo a Khomeini, fundou em 2003 a Sociedade dos Defensores dos Direitos dos Presos e pouco depois a Associação Pelo Direito à Vida. Interrogado nos mesmos moldes que a Nobel da Paz, se haveria compatibilidade da democracia num Estado islâmico, é direto e alinhado à Shirin: “O problema no Irã não é a religião, mas um sistema repressor que quer se manter no poder e usar a religião para isso” (CARRANCA, 2010, p. 188). 119 próprio Estado. Esses são apenas “gerenciadores” das propriedades (BINGEMER, 2001, pp. 214,215). Fato é que o Islã, ao longo do tempo, elaborou uma perspectiva social, para tentar resgatar e reviver o que foi experimentado em Medina, mas mais “solto”, não “paralisado pelo cientificismo positivista e pelo individualismo ocidental”, antes, que fosse talhado “pelos valores fundamentais que já fizeram renascer a Comunidade de Medina num clarão de esperança: transcendência e comunidade” (GARAUDY, 1998, p. 36). Essa a luta do Islã em quatorze séculos. 2.4 Uma vez dominados bastava avançar? As reflexões sobre o sentido correto do Corão e a maneira adequada e justa de aplicar a sharia e também a busca por uma prática ideal de vida, levou à compreensão de que era preciso “seguir o caminho de Deus (jihad), 153 que podia ter um sentido mais amplo ou mais preciso: combater pela expansão das fronteiras do Islã” (HOURANI, 1994, pp. 82,84, ênfase no original). Hourani descreve essa proposta como bem elaborada já na primeira geração. Roger Garaudy defende o militarismo da expansão inicial, cometendo um anacronismo flagrante ao comparar esta expansão a dos europeus (muitos séculos depois) sobre a América e a África gozando de “uma superioridade absoluta: a do canhão, do fuzil, e depois da metralhadora” (GARAUDY, 1998, p. 24). Assim, fica justificada a violência que ao próprio autor parece estranha, mas como a luta foi parelha, na sua visão, então a ética ou qualquer outro valor, religioso ou não, nem precisa ser posta na balança. “O império árabe não se fundou, portanto, numa relação de forças que lhe assegurassem esmagadora supremacia” (GARAUDY, 1998, p. 24). Ele admite que as guerras santas, enquanto o Profeta vivia, e mesmo após a sua morte, é que deram suporte ao ambicioso projeto embalado na sanha por riquezas: “a vitória do Islã é ininteligível sem o Islã, como fé, e como comunidade assentada sobre essa fé” (GARAUDY, 1998, p. 25). 153 Em linhas gerais há o jihad menor, o combate militar, exterior ao crente enquanto o jihad maior é esforço interior por autocontrole e comportamento adequado. Há farta literatura e desenvolvimento de ambos os termos produzida pelas comunidade muçulmana como também pela academia. 120 Nos oásis, tornados cidades, com a agricultura, seu artesanato e seu comércio, sua propriedade privada e sua hierarquia social e política, criaram-se e depois degradaram-se outras formas de comunidade: a divisão crescente do trabalho e a complementaridade das funções originaram novos vínculos, mas também concorrências e desigualdades, desejos de posse e de poderio, inclinações ao luxo e apetites de dominação. (GARAUDY, 1998, pp. 26,27, ênfase acrescentada) Mesmo Vernet, em nota onde cita al-Mansur b. Abi Amir, 154 diz que submeteu os reinos cristãos a derrotas sucessivas (VERNET, 2004, p. 21) e o fez dentro de um contexto de batalhas militares sangrentas. Parece ser o expediente usado pelos historiadores pró-islã que sempre dirão ser esse avanço pacífico, como o faz Garaudy. Nunca o foi. O Dr. Helmi Nasr (2003, p. 276), em seu comentário ao Corão, na abertura da Sura 8, Al-Anfal, menciona a batalha de Badr como referência para a explicação sobre os espólios de guerra e da estratégia militar e legislações a serem aplicadas em tempos de guerra. O comentário deixa claro não haver qualquer intenção religiosa de salvação no sentido estrito; a concentração do comentário está no tema da conquista político-militar pura e simples, e na pilhagem, além de vingança entre tribos. É um modelo peculiar de religião que abarca todos os campos naturais da vida e da experiência humana. Isso não retrata o Islã como um todo, mas tal possibilidade ou modo de fazer religião – e, consequentemente, de viver uma espiritualidade combativa – chocar-se-á com os valores que não preveem a violência no campo religioso dentro do próprio Islã. O sufismo, 155 por exemplo, é de certo modo uma reação 154 Al-Mansur b. Abi Amir ou Almanzor, líder político e militar muçulmano na península Ibérica, morto em 393 da Hégira, 1002 d.C. 155 O sufismo, ramo mais místico do Islã, é praticado por uma ala minoritária no mundo muçulmano. Sua inclinação maior é para aspectos místicos da vida religiosa, numa tentativa de resgatar, por exemplo, as experiências místicas do Profeta. Nem por serem mais “exotéricos” deixam de ter sua teologia e um profundo senso político-social. Ver Marietta Stepanyants, Sufism in the Context of Modern Politics. http://www.iop.or.jp/Documents/0919/stepanyants.pdf acessado em 14.06.2014. 121 a isso. A violência desdenha “a própria humanidade [que] se encontra ameaçada por essa violência inumana e desumanizante, que pode travestir-se de diversas formas, inclusive da prática fanática de uma determinada religião” (VILHENA, 2007, p. 146). 156 No Capítulo 1 vimos a sugestão de Vilhena, de que a espiritualidade é o refúgio e o recurso a não-violência. Contra isso, a interpretação fundamentalista radical pouca atenção dá a espiritualidade enquanto se concentra em aspectos particulares e do seu interesse. Estou falando em linhas gerais, pois no caso da resistência do Hamas, ela está atrelada a colonização e espoliação por Israel. Ao afirmar que “não é possível, portanto, haver relações justas e pacíficas entre os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos”, Vilhena (2007, p. 146) toca no ponto central da teoria mimética, que identifica no desejo imitativo a gênese da violência e da escalada da violência em seus estudos. É o desejo que move o homem, e o homem do Islã não escapa a isso; o desejo por conquistas, tomando como modelo a primeira comunidade e aplicado por séculos de invasões e submissões: Jihad, ou guerra de conquista islâmica, se desenrolou por mais de um milênio em três continentes nas terras cristãs ribeirinhas do Mediterrâneo e do interior – para não mencionar as budista e hindu na Ásia. Isso explica a dificuldade em entender um processo em que foi adaptado às circunstâncias e terrenos diferentes, combinando as perseguições e os períodos de descanso, saques, assaltos maciços e destruição. Duas violentas ondas de islamização podem ser dintinguidas: a onda árabe (634-750) e a onda turca (c. 1021-1689) (YE’OR, 2002, p. 48, tradução livre). 157 156 Para Gellner (1992, p. 13), o fundamentalismo privilegia a doutrina em detrimento do ritual; nesse sentido, o sufismo como que alivia o sobrepeso do rigorismo doutrinário. 157 Bat Ye'or é o pseudônimo de Gisele Littman, egípcia de nascimento (teve a nacionalidade revogada e nova nacionalização britânica), é historiadora, escritora e comentarista político que escreve sobre a história do Oriente Médio cristão e judeus dhimmis vivendo sob governos islâmicos. 122 E a onda árabe inicial, como a turca posterior, sempre seguiram o modelo-piloto implantado pelo próprio Muhammad em Medina. O tratamento dado por Muhammad aos judeus do oásis de Khaybar serviu “como um modelo para os tratados estabelecidos pelos conquistadores árabes sobre os povos conquistados em territórios além da Arábia”. Muhammad atacou o oásis em 628, torturou um dos líderes da tribo a fim de encontrar o tesouro escondido da tribo, e, em seguida, quando os judeus se renderam, concordou em deixá-los continuar a cultivar seu oásis se dessem metade do que produzissem. Muhammad também se reservou o direito de cancelar o tratado e expulsar os judeus quando desejasse. Este tratado ou acordo foi chamado de “dhimma”, e aqueles que o aceitaram ficaram conhecidos como “dhimmis”. Todos os não-muçulmanos que aceitaram a supremacia muçulmana e concordaram em pagar o tributo em troca de “proteção muçulmana” ficaram conhecidos como “dhimmis” (WARRAQ, 1995, p. 217, tradução livre). 158 Blainey, por exemplo, constata que “Maomé ainda não era visto como o salvador dos países vizinhos, mas seus exércitos começaram a conquistar uma vitória atrás da outra, longe de casa [...] A cidade de Damasco foi tomada em 635” (BLAINEY, 2008, p. 119), depois da morte do Profeta. O autor propõe datas e cita regiões conquistadas no Ocidente e no Oriente, demonstrando que a expansão territorial começou “menos de vinte anos após a morte de Maomé” – e não na sua gestão – e que “sua religião e sua espada dominaram das fronteiras do Afeganistão, no Oriente, até Trípoli, no Ocidente, uma distância de quase 5 mil quilômetros” (BLAINEY, 2008, pp. 119,120, ênfase acrescentada), o que se deu em caráter de (usando categorias de hoje) pura opressão. 158 Ibn Warraq é o pseudônimo de um conhecido crítico do Islã. Ele é fundador do Institute for the Secularisation of Islamic Society (ISIS) e foi pesquisador sênior no Center for Inquiry, com foco na crítica científica ao Corão. Warraq atualmente é Vice-presidente do World Encounter Institute. As opiniões sobre o trabalho de Warraq se dividem entre “revisionista” e “bem fundamentado”. 123 “Os dhimmis estavam em perigo constante de ser escravizados”. Como exemplo, Warraq começa por mencionar a conquista de Trípoli em 643 (onze anos após a morte de Muhammad) por Amr, quando este “forçou os judeus e os cristãos a entregarem as suas mulheres e crianças como escravos para o exército árabe”, podendo deduzir “a entrega” do pagamento do “temido imposto da jizya” (WARRAQ, 1995, p. 231). Esse modelo de “avanço” foi posto em prática entre 652 e 1276. A conquista da Núbia (hoje Sudão) foi seguida da obrigação de enviar um contingente de escravos anualmente para o Cairo, o que não eximia mulheres e crianças (Ibidem). “Os tratados celebrados sob os omíadas e abássidas [dois governos muçulmanos distintos] com as cidades da Transoxiana, 159 Sistão, 160 Armênia e Fezã 161 estipulava um tributo anual de escravos de ambos os sexos” (Ibidem). Os exércitos árabes fizeram das aldeias que ocupavam os territórios atacados a sua “principal fonte de reservas de escravos” para abastecer a “máquina de guerra do Islã” (no dizer de Pierucci), e “as expedições militares mais disciplinadas” foram as que mais erradicaram “as cidades dos incrédulos. Todos os presos foram deportados em massa” (WARRAQ, 1995, p. 231). Em 781, no saque de Éfeso, 7.000 gregos foram deportados para o cativeiro. Depois a captura de Armórica 162 em 838, havia tantos prisioneiros que o Califa al-Mutasim ordenou que fossem leiloados em lotes de cinco e de dez. No saque de Tessalônica em 903, 22 mil cristãos foram divididos entre os líderes árabes ou vendidos como escravos. Em 1064, o sultão seljúcida Alp Arslan, devastou a Geórgia e a Armênia. Aqueles que não foram tomados como prisioneiros, ele executou (WARRAQ, 1995, p. 231). Todas as grandes religiões estão manchadas de sangue. 159 Transoxiana é uma antiga denominação para uma região da Ásia Central correspondente aos atuais Uzbequistão, Tadjiquistão e sudoeste do Cazaquistão. 160 O atual Sistão é uma região fronteiriça no sudeste do Irã e sudoeste do Afeganistão. 161 Fezã ou Fezão é uma região no sudoeste da Líbia. 162 Armórica é antiga denominação da região da Gália. 124 O próprio Garaudy refere-se às invasões dos exércitos muçulmanos nas antigas civilizações dos deltas (as do Hoang-Ho, 163 do Indo, da Mesopotâmia, do Egito), “a vitória não veio de uma superioridade de cultura, mas de uma superioridade militar: a do cavaleiro sobre o infante, a da espada de ferro sobre a espada de bronze” (GARAUDY, 1998, p. 20). Garaudy não indica a preocupação com uma mensagem religiosa de esperança para um futuro melhor ou uma convivência harmônica entre povos, ou seja: nada de religião no discurso desses “construtores de impérios” (Ibidem). 164 A mesma conclusão é vista em Hourani, que fala do interesse maior dos soldados islâmicos na política e na economia, mais que na religião (HOURANI, 1994, p. 61), e mesmo no século VIII “não havia pressão ou incentivo positivo para que outros se convertessem” (Ibidem, p. 65). A ordem era matar alguns, para impor-se e manter outros vivos, para que pagassem o tributo de jizya para o sustento dos soldados de Allah. 165 As distribuições de terras aos dirigentes árabes multiplicaramse nos territórios ocupados: grandes domínios constituem-se 163 Hoang-Ho ou Huang-Ho é o segundo rio mais extenso da China. 164 “Roma não dominou a Grécia e não fundou seu império pelo refinamento da sua cultura, mas pelo peso de suas armas. Os hunos, os mongóis, os tártaros, que, com Átila, devastaram a Europa inteira até a Gália, os que com Gengis Khan, construíram o mais vasto dos impérios destruindo as civilizações da China, do Kharezm e da Pérsia inteira, da Índia, os que com Tamerlão reinaram sem piedade da China ao Volga, de Delhi a Bagdá, nenhum desses ‘construtores de impérios’ trazia uma mensagem civilizadora rica de futuro” (GARAUDY, 1998, p. 20). 165 “Um século depois da morte do Profeta, especialistas muçulmanos em jurisprudência do oitavo século fixaram a política em relação aos povos do Livro, com base em decisões decretadas por Muhammad aos judeus da Arábia, decisões que foram seguidas na adoção de outros pactos de garantias de proteção para judeus e cristãos. Esses processos constituíram as regras normativas aplicáveis a todos os povos conquistados pela jihad. Da mesma forma, o dhimma de Khaybar serviu aos jurisconsultos como um modelo para a elaboração de tratados com populações que foram submetidas a dominação islâmica. As condições do dhimmi, resultado direto da jihad, está ligada a este “pacto de proteções” que suspendeu o direito inicial do conquistador de matar ou escravizar os seguidores das religiões toleradas, desde que fossem submetidos a pagar o tributo (jizya)” (YE’OR, 2002, p. 41, tradução livre, ênfases no original). Por “jizya”, aqui, deve ser entendido um pagamento permanente e não simplesmente uma “taxa única”. 125 em proveito de cidadãos árabes que vivem graças aos rendimentos que lhes proporcionam seus arrendatários autóctones (GARAUDY, 1998, p. 44). 2.5 As releituras da História A História dispõe de relatos como esses. No entanto, é preciso ter clara a ideia de que no Islã a religião é servida pela política (estou novamente fazendo uso de categorias mais atuais). No seu início, a religião cavalgava no lombo dos cavalos dos soldados. Garaudy confirma essa peculiaridade do Islã, mas reserva para depois da morte do Profeta o exacerbado interesse dos quatro califas “bem guiados”, os primeiros companheiros e sucessores de Muhammad, “Abu Bakr, Omar, Uthman e Ali, os omíadas interessaram-se muito mais pelo poder político em si mesmo do que pelo seu significado religioso; e essa separação já é ruptura com o espírito profundo do Islã” (GARAUDY, 1998, p. 45). “A escala de preferência entre os califas ortodoxos era determinada pelo número de batalhas das quais eles haviam participado” (ABU-RABI, 2011, p. 88). Era assim que o consenso na ummah era estabelecido, “e não [por] exigir qualquer recomendação ou eleição” (Ibidem) Dos esforços travados pela herança do Profeta – praticamente todos os seus sucessores foram assassinados (DEMANT, 2004, pp. 38,39) – é marcante a história do “martírio de Hussein”, que dá origem a uma importante cerimônia do xiismo e mostra o espírito em que posteriormente seria rememorada a sua morte, na celebração da Ashura. 166 Muhammad morreu sem deixar suficientemente claro como se daria a sua sucessão, o que sugere a despretensão a uma expansão do Islã para além dos territórios da Arábia. Após a morte do Profeta e por processos que envolveram conflitos, conspirações e assassinatos dos antigos homens de confiança de Muhammad, a liderança do Islã se dividiu entre sunitas e xiitas. 167 166 Décimo dia do mês Muharram, a data em que os muçulmanos comemoram a criação de Adão (KAMEL, 2007, p. 104). 167 Não é prioridade neste trabalho recontar a história da sucessão do Profeta e as divisões que ainda hoje permanecem no islã. Sobre a sucessão de Muhammad e a divisão em sunitas e xiitas, ver KAMEL, 2007, p. 95ss; DEMANT, 2004, p. 37ss. 126 Os sunitas (de sunnah, tradição preservada em coleção de “ditos” atribuídos ao Profeta), admitiram os imames que foram companheiros imediatos do Profeta, tidos em alta conta na comunidade original, por suas virtudes e comportamento exemplar. Os xiitas (de xia ou shi’a, partido de Ali) reclamaram a sucessão por consanguinidade com o Profeta, naturalmente por meio de Fatima, sua filha, e de Ali seu genro (DEMANT, 2004, p. 38). Assim, a histórica divisão do Islã que seguiu a morte de Muhammad teve o seguinte perfil. De um lado a minoria xiita: Ali, Hasan, Hussein e depois Ali (filho menor de Hussein). Do outro lado a maioria sunita: Abu Bakr, Omar, Osman e Ali – o mesmo xiita. Inicialmente os sunitas levaram a melhor, nomeando os três primeiros califas 168 até que Ali, o quarto califa, teve a legitimidade de sua liderança contestada por Mu’awiyya, de origem coraixita, a tribo de origem de Muhammad (DEMANT, 2004, p. 38; KAMEL, 2007, p. 102). “Uma guerra civil se seguiu, e Ali foi assassinado em 661. Mu’awiyya fundou a primeira dinastia califal, a dos Omíadas” (DEMANT, Ibidem). A sede do seu governo foi transferida para Damasco como um importante passo da internacionalização do Islã, mas as marcas de sangue que selaram esse avanço escorreram nos olhos da minoria de integrantes da família do Profeta, que desejava ter maior, senão total, participação na sucessão à frente da comunidade. Embora optassem por aceitar pacificamente o califado de Mu’awiyya em Damasco, parece ser este um ponto-chave na História das interpretações das tradições e textos do Corão, quando teve início uma tradição de releitura das origens do Islã, com uma lente ideológica, fazendo como que uma significativa inversão: exalta o aspecto religioso mais que o político para legitimar este. É o que deixa entrever Demant quando diz que “iniciou-se então uma nova leitura da época do Profeta e de seus sucessores imediatos, idealizada como era de religiosidade, proximidade a Deus e, portanto, de sucessos tanto espirituais quanto mundanos” (DEMANT, 2004, pp. 38,40, ênfase acrescentada). Uma vez que o poder político havia escapado ao controle da minoria, foi preciso reler a jovem tradição a partir de nova abordagem que apelasse a uma suposta legitimidade pela maioria: a religião. Finda a primeira fase, a inclinação por vir 168 Califa: um tenente, representante legal sunita da ummah (comunidade) religiosa e política após a morte do Profeta. O califa sunita corresponde ao imam xiita. 127 era a concentração dos dois poderes, político e espiritual, em um único agente: o líder, o califa sunita ou o imam xiita (HOURANI, 1994, p. 79). Quando Mu’awiyya morreu, Hussein, filho de Ali (assassinado em 669) reivindicou a liderança para si, uma vez que havia aguardado pacificamente o fim da liderança de Mu’awiyya, conforme a tendência da maioria sunita. Era de esperar que a transição fosse natural, visto que Hussein era neto do Profeta. Mas Mu’awiyya inovou, nomeando seu sucessor o filho Yazid, “consagrando assim um novo princípio de hereditariedade e uma nova dinastia” (DEMANT, 2004, p. 40; KAMEL, 2007, p. 102, CARRANCA, 2010, p. 53). Hussein levantou-se com seus partidários, pois estes clamaram que fossem a Damasco, depor Yazid e restituir o califado às mãos da família do Profeta (KAMEL, 2007, p. 10; DEMANT, Ibidem). O grupo composto por 72 soldados esperava contar com o apoio da população de Kufa (atual Karbala, Iraque), que, por uma manobra de Yazid, não se confirmou. Cercado, Hussein e seus homens se depararam com um exército formado por cerca de mil homens liderados pelo califa. Hussein ouviu a voz de comando para que ele e seus homens fossem atacados, e propôs enfrentá-los sozinhos, poupando a vida do seu grupo, mas não houve desertores (KAMEL, 2007, p. 103). Seu pequeno grupo foi esmagado e todos foram decapitados, “numa área onde depois surgiria a cidade de Karbala” (DEMANT, 2004, p. 40; KAMEL, Ibidem). “Esse episódio marcou a divisão definitiva entre sunitas e xiitas e é lembrado com rituais de lamentação e mortificação” (PEREIRA, 2012, p. 344). “A cabeça de Hussein foi levada ao governador de Kufa numa bandeja” (KAMEL, 2007, p. 103), mimese da prática já conhecida pela apresentação da cabeça de João Batista a Herodias, 169 igualmente servida numa bandeja seis séculos antes. A origem dos modernos martírios dos jihadistas não pode ser traçada “exclusivamente” pelo massacre em Karbala, até porque tais práticas não são exclusivas do xiismo. No entanto, não resta dúvida de que este evento e tudo o que nele está envolto acrescenta elementos à construção de um ideário de luta com martírio. Estou tratando, em termos mais amplos, a construção de um modelo e não o caso específico da Palestina. É tentativa de compreender um 169 “Instigada por sua mãe, ela disse: Dá-me aqui numa bandeja a cabeça de João Batista” (Mateus 14.8). 128 antecedente na religião o qual proporcione cenário para o martírio na resistência. A teologia muçulmana, como todas as outras teologias, forjou determinada maneira de ler e reler a vida e obra de seus heróis e inspirar as novas gerações com os mesmos sentimentos. Foi assim que Ali Shari’ati, o teólogo muçulmano, considerado “um dos inspiradores da resistência à opressão no Irã, escreveu em 1972 que o martírio não é uma dimensão do Islã, mas sua própria essência” (GARAUDY, 1998, p. 44). Com isso, ele fundiu os dois aspectos que tenho procurado destacar aqui: o rosto exterior, expresso na política de resistência e a face interior, manifesta na religiosidade pujante, fervorosa. Garaudy afirma que assim Shari’ati conseguiu unir “de maneira indivisível a resistência ao inimigo exterior da fé e a luta interior contra as vibrações mais animais, em nós, do egoísmo e do medo” (GARAUDY, 1998, p. 44, ênfase no original). 2.6 O conceito de Islamuflagem Cada aspecto do Islã pode ser retratado por outros pontos de vista; admite abordagens diversas, usando o “modelo” mequense ou o medinense. O Islã alterou ou modificou cenários e convivências nas culturas em que se inseriu. A arquitetura, a culinária, a literatura, a filosofia, a medicina, a religião, a economia, o direito, as relações sociais e o bem estar humano, enfim. Uma série de temas do mundo e da cultura muçulmana poderia ser discutida. No entanto, tenho me detido na pesquisa do que houve de marginal, no sentido da ocorrência à margem dos principais eventos. Kamel fala da alma do Islã marcada pelo senso de responsabilidade por uma missão em âmbito mundial que visa à tarefa de “restaurar, para aqueles que voluntariamente a aceitem, a verdade, restabelecer, para aqueles que voluntariamente o aceitem, o que teria sido deturpado nos livros sagrados anteriormente revelados” (KAMEL, 2007, p. 77), ou seja, a tradição contida na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento. Esse rompimento parcial (“parcial” porque boas porções do Corão recontam, à sua maneira e com variações, conteúdos dos dois livros anteriores) é por si “um fator de distanciamento para aqueles que conhecem o 129 Islã” (Ibidem). Para o autor, só assim “o Islã se distancia dos que acreditam que não houve deturpação alguma”, pois o que é dito e escrito sobre o Islã destaca o que é diferente, não o que é semelhante, nem mesmo “a origem comum”. Assim, “o mal-entendido se perpetua. Conhecer e se inteirar das semelhanças talvez seja um fator de aproximação” (Ibidem). É a proposta do livro de Kamel. Vilhena (2007) concorda com Kamel “no que se refere à interpretação das palavras do Alcorão.” Para ela, como para os muçulmanos, Muhammad esclareceu as diferenças sobre a Guerra Santa entre os jihads maior e menor. O primeiro “é a luta interior do muçulmano para submeter o ego a Deus e tornar-se realmente um homem de Deus, um homem espiritual”. O segundo “é a luta externa que sempre esteve presente na história do Islã, porque este surgiu num contexto conflitivo e o conflito marcou profundamente sua história” (VILHENA, 2007, p. 141). Assim, insisto em que para um muçulmano que idealize o período medinense como modelo, voltar às fontes (ad fontes) pode levá-lo a assumir esse perfil conflitivo inequivocamente. “As lutas externas e mesmo as lutas internas para consolidação do Islã, de consolidação do Islã, se constituíram em marcas em sua história” (Ibidem). A autora ainda acrescenta a resposta padrão de que o Cristianismo amarga a Inquisição e as Cruzadas, que também foram “guerras de religião”. E inclui a “primeira evangelização do continente americano, quando da chegada ao mesmo, em sintonia com o projeto colonial que resultou na morte violenta de milhares de nativos” (VILHENA, 2007, p. 141). E ela pergunta: “Por que então, essa quase identificação do fanatismo com a religião muçulmana?” (Ibidem). 170 Semelhante a Vilhena é a resposta de Kamel: Porque nas sociedades muçulmanas hoje, a tomada de poder é o coração do programa fundamentalista. Eles sabem que 170 Sem pretender qualquer tipo de comparação, mas procurando separar os eventos e evitar anacronismos, é preciso dizer que as Cruzadas e a Inquisição ocorreram mais de mil anos após a fundação do Cristianismo; a “primeira evangelização do continente americano” ainda precisou de mais quinhentos anos. Mas os registros de conflitos e guerras no Islã estão 1) na sua gênese e 2) pontualmente ao longo de sua história, e é a esse período e a esse modelo original que os intérpretes radicais recorrem quando formulam suas ideologias em nossos dias: há um texto fundante que lhes fornece substância canônica, autorizada. 130 fundamentalista sem poder político é um leão sem dentes: não apedreja, não fere, não mata, não obriga a usar o véu; apenas prega a sua visão estreita do mundo (KAMEL, 2007, p. 162). Ele recorre ao mesmo anacronismo e procura justificar um erro com outro, dizendo que alguns lhe “perguntam por que tais fatos só têm acontecido em países islâmicos, se há fundamentalistas em todas as religiões, sempre tendo a intolerância como marca?” (KAMEL, 2007, p. 162). A resposta padrão à qual recorre é que “a Inquisição nunca deve ser esquecida”. Kamel também toca na questão do ad fontes, o processo pelo qual a religião diante da crise, dos desafios e ameaças do seu tempo (a globalização, por exemplo) parte em busca de uma ressignificação. Então, recorrem ao “modelo ideal” encontrado na fundação fazendo leituras enviesadas para defender seus pontos de vista: Os fundamentalistas usam na sua luta pelo poder as realizações da tecnologia e ciência modernas, baseadas no racionalismo e impossíveis sem ele: gravações, explosivos sofisticados, fax, televisão, Internet, aviões etc. Porém, são teologicamente opostos ao racionalismo inerente a essas invenções e, onde chegam ao poder, tentam destruí-lo (DEMANT, 2004, p. 359). Ou, para ater-nos apenas aos elementos “intelectuais” do processo, deparamo-nos com o que Weinberg chama de iteologia: A utopia destas pregações está sempre à espera de uma nova arquitetura social e do surgimento de um novo homem. Na obra teológica, ao contrário, a utopia está no passado, distante e inacessível. Por isso, cabe ao labor humano descobrir a verdade promulgada e seguir a norma prescrita na revelação. É esta disciplina cega ao dito e repetido desde o alvorecer da fé que deve comprometer os que desejam apressar de alguma forma o reino de Deus na Terra. Por isso as teologias, como as ideologias, tornam-se igualmente prescritivas e normativas. 131 Tornam-se iteologias (WEINBERG, 2007, p 136, ênfase no original). Ele usou as mesmas expressões de Kamel: prescritivas e normativas (2007, p. 131), o embaralhamento do cenário de Meca com o de Medina parece ser o meio de justificar pelo Corão ações que o todo do Islã não adota. Mais do que a fusão da ideologia com a teologia, penso ser possível observar a sutil passagem de um campo a outros, não somente da teologia para a ideologia, mas também da religião para a política e dos elementos da fé para os componentes culturais inclusive, que tanto encantam e iludem mesmo a observadores especializados, mas não levam em conta o aspecto etéreo da religião. Isso faz a religião ser camuflada por um discurso político ou viceversa, faz camuflar a religião de cultura, o que a torna mais bela e aceitável – e defensável. Chamaria a essa facilidade de transitar de um campo a outro com tal sutileza de Islamuflagem, a camuflagem que permite ao interlocutor do Islã radical recorrer a nuanças presentes em todo o conjunto da fé, sem a necessidade de reafirmar um discurso específico que comprometa a sua penetração ou avanço e provoque rejeição às suas propostas. Assim, a pretexto de intercâmbio cultural ou exercício de alteridade, a própria essência da religião se escamoteia entre véus, aromas e imposições. Fortes traços disso vemos em Pierucci, que comentando as conclusões de Weber, diz que o Islã antigo tem um traço marcante que o distingue de outras grandes religiões. Esse Islã antigo era uma religião para guerreiros. Zoroastro, por exemplo, levava sua profecia para camponeses e para os nobres, ao passo que a profecia islâmica era dirigida para guerreiros (PIERUCCI, 2002, p. 90). Para ele, Weber se refere aos acampamentos militares erguidos nos territórios conquistados já nos tempos de Omar, o segundo califa (634-644), como lugares “onde começou a surgir uma aristocracia feudal” (Ibidem, nota 55). E cita Weber: “A disciplina na guerra religiosa [Disziplin im Glaubenskriege] foi a fonte da invencibilidade da cavalaria muçulmana” 132 (PIERUCCI, 2002, p. 90, ênfase no original). Para Pierucci, Weber descobre o Islã “como uma religiosidade não-ética” (PIERUCCI, 2002, p. 91, ênfase no original), sendo Weber já familiarizado com as categorias estudadas no protestantismo, e tal “descobrimento [...] finalmente aflora em seu texto numa tirada definitiva: ‘o conceito de salvação no sentido ético da palavra era totalmente estranho ao Islã’” (Ibidem). O que chamou a atenção e interesse dos “guerreiros” foi o espírito de dominação, de conquista, “os interesses estamentais dos guerreiros”, a oportunidade de também ser “senhor”, e isso com o aval do Profeta e uma boa profecia de Allah em seu favor (Id.). Dentro das “camadas sociais portadoras” de Weber, a sua fórmula para o Islã seria a do “guerreiro subjugador do mundo” (PIERUCCI, 2002, p. 92). “A figura humana que personifica o Islã nessa lista – e o tipifica idealmente – é a do guerreiro que submete o mundo” (Ibidem). Isso não nasce de outro lugar senão do “texto” ou da palavra do Profeta, já que “intencionalmente ou não, a palavra usada aí para caracterizar a atitude islâmica, perante o mundo é ‘Unterwerfung’, que coincidentemente quer dizer ‘submissão’ [...] em árabe: ‘ishlam’” (Id.). Em outras palavras, submeta-se e submeta. Para Bingemer 171 a luta (jihad maior), de fato, é prevista, ou seja, que “o combate pela causa de Deus e a luta contra a injustiça inclui também a luta armada. Essa concepção está enraizada no Islã desde as suas origens até o momento atual” (BINGEMER, 2001, p. 211). Ela recorre ao fato de que “o próprio Alcorão apresenta vários elementos sobre a jihad. Muitos versículos convocam os muçulmanos a lutar pela causa de Deus” (Ibidem, ênfase no original). E propõe algumas suras como exemplo: 2.190 172, 216 173; 4.95 174; 171 Bingemer avisa que seguirá ipis literis o texto da Tese de Mestrado defendida por SILVA, S. V. pela PUC-Rio: Justiça social: um diálogo entre Cristianismo e islamismo: uma aproximação a partir da igreja Católica e do Islã Xiita, pp. 136-139. 172 “Combatei, pela causa de Allah, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis agressão, porque Allah não estima os agressores”. 173 “Está-vos prescrita a luta (pela causa de Allah), embora a repudieis. É possível que repudieis algo que seja um bem para vós e, quiçá, gosteis de algo que vos seja prejudicial; todavia, Allah sabe, e vós ignorais”. 174 “Os crentes que, sem razão fundada, permanecem em suas casas, jamais se equiparam àqueles que sacrificam os seus bens e as suas vidas pela causa de Allah; Ele concede maior dignidade àqueles 133 8.65 175; 9.120 176 (Ibidem). A guerra santa, no entanto, pode ser associada “à defesa dos pobres, dos fracos e humilhados”, como a Sura 4.75, 177 sendo que a morte pela “causa de Allah” sempre garante aos “que morrem na batalha pela causa de Deus [que] são mártires e vivem junto de Deus e gozam de sua bondade” (Ibidem), como dispõe as suras 3.169-171. 178 Dessa forma, a autora estabelece que “a causa de Deus associa-se a princípios fundamentais da fé islâmica e à justiça social, pela qual os muçulmanos são convocados a lutar e defender mesmo que seja necessário o combate armado” (Ibidem, p. 211). Dito isso, podemos concluir que a guerra, nas fileiras do Islamismo primitivo, era uma necessidade inevitável, em defesa da doutrina, da missão e da proteção aos oprimidos. Assim, notamos a partir do próprio texto sagrado que a luta é permitida não para a difusão da religião e imposição aos nãomuçulmanos de abraçarem o islamismo, mas sim para combater a agressão, cujo objetivo é o estabelecimento da paz (BINGEMER, 2001, p. 211). que sacrificam os seus bens e as suas vidas do que aos que permanecem (em suas casas). Embora Allah prometa a todos (os crentes) o bem, sempre confere aos combatentes uma recompensa superior à dos que permanecem (em suas casas)”. 175 “Ó Profeta, estimula os crentes ao combate. Se entre vós houvesse vinte perseverantes, venceriam duzentos, e se houvesse cem, venceriam mil dos incrédulos, porque estes são insensatos”. 176 “Não deveria o povo de Madina e seus vizinhos beduínos negarem-se a seguir o Mensageiro de Allah, nem preferir as suas próprias vidas, em detrimento da dele, porque todo o seu sofrimento, devido à sede, fome ou fadiga, pela causa de Allah, todo o dano causado aos incrédulos e todo o dano recebido do inimigo ser-lhe-á registrado como boa ação, e Allah jamais frustra a recompensa dos benfeitores”. 177 “E o que vos impede de combater pela causa de Allah e dos indefesos, homens, mulheres e crianças? que dizem: Ó Senhor nosso, tira-nos desta cidade (Makka), cujos habitantes são opressores. Designa-nos, da Tua parte, um protetor e um socorredor!”. 178 “E não creiais que aqueles que sucumbiram pela causa de Allah estejam mortos; ao contrário, vivem, agraciados, ao lado do seu Senhor. Estão jubilosos por tudo quanto Allah lhes concedeu da Sua graça, e se regozijam por aqueles que ainda não sucumbiram, porque estes não serão presas do temor, nem se angustiarão. Regozijam-se com a mercê e com a graça de Allah, e Allah jamais frustra a recompensa dos crentes”. 134 Bingemer finaliza, justificando a violência a partir de uma interpretação de textos do Corão, e isso ainda no Islã primitivo. Citando uma tradição que ela diz não poder comprovar, mas que foi e tem sido largamente usada para justificar ataques, guerra ofensiva (em contraponto a ataques defensivos prescritos por suras como 2.186-187; 190-191), Muhammad teria enviado cartas a alguns soberanos, convidando-os a se reverterem ao Islã, os quais teriam se negado. A essas negativas, feitas pelos destinatários, os soldados de Muhammad teriam atacado os grupos, por iniciativa própria e isso teria criado a jurisprudência, um antecedente legal, tanto no Islã daquele tempo como ao longo da História e nos movimentos modernos em especial, os quais apoiam suas ações nesta tradição e “fundamentados erroneamente nos textos do Alcorão e nos textos dos hadith, ora sendo completamente manipulados por forças políticas que visam a manutenção e extensão do poder de dominação” (BINGEMER, 2001, p. 218, ênfase no original). Cabe citação de Weber em Pierucci sobre o Islã: Não as ideias, mas os interesses (materiais e ideais) é que dominam diretamente a ação dos humanos. O mais das vezes, as “imagens do mundo” criadas pelas “ideias” determinaram, feito manobreiros de linha de trem, os trilhos nos quais a ação se vê empurrada pela dinâmica dos interesses. (PIERUCCI, 2002, p. 96, ênfase no original) 179 Isto é Islamuflagem. Vilhena pensa não ser “possível haver relações justas e pacíficas entre os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos” (VILHENA, 2007, p. 146). Como isso se dará é uma imensa incógnita. Mas ela aponta noutra direção, a da raiz da violência atrelada ao desejo, o que reforça a teoria de Girard. A violência surge precisamente quando o homem começa a desejar o ilimitado [...] A violência se enraíza num desejo ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um 179 Ensayos sobre sociologia de la religión. Madrid: Taurus, 1984, 3 vols. 135 outro, e cresce e se firma em seus tentáculos mortíferos, quando convertida em fanatismo, se crê respaldada por um decreto divino para redimir com sua força o humano (VILHENA, 2007, pp. 146,147, ênfases acrescentadas). A diferença do argumento de Bingemer (anteriormente citado) é que a ela justifica e legitima a violência, ao passo que Vilhena identifica as causas dessa violência no “desejo ilimitado” pelo objeto desejado pelo outro, um decreto divino ou a leitura que é feita deste. Muhammad precisava de elementos para compor uma religião na península arábica, um grupo mimético: um livro, um mito de origem, uma tradição, uma história, um ancestral-patriarca, uma cidade santa, um dia santo no calendário, uma elevação aos céus, uma terra santa, um grupo de profetas, um Profeta maior, um anjo, uma divindade monoteísta, uma promessa de vida eterna, um paraíso e também um inferno para onde enviar os seus inimigos. Em outras palavras, mimetizar uma ou duas tradições próximas, presentes, conhecidas e plasmáveis, traduzindo-as 180 para as circunstâncias populares disponíveis. Tudo isso estava à mão, ao seu alcance, inclusive os próprios fieis que formavam minorias distintas em comunidades de judeus e cristãos. 3. O HAMAS: A AÇÃO SOCIAL E A VIOLÊNCIA O medo das pessoas e o preconceito na nossa cidade crescem muito a cada dia e o medo da violência justifica, muitas vezes, uma violência prévia. Ruth Cardoso A nossa inimizade para com os hindus não é devido à questão da Caxemira, a nossa inimizade para com a América não é devido ao Iraque e Afeganistão, a inimizade entre nós e os judeus não é 180 Estou considerando a categoria de SANTOS, 2002, p. 238. 136 devido à Palestina, a causa real é que eles não aceitam islamismo. nosso sistema e o 181 Em sua recente obra Deus, a Liberdade e o mal, Alvin Plantinga inicia seus argumentos a partir do problema do mal. Entre os males “naturais como terremotos, maremotos e doenças contagiosas, há males que resultam da estupidez humana, arrogância e crueldade” (PLANTINGA, 2012, p. 20). Citando um trecho de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, ele chama de “pormenor dolorosamente realista” o modo como, no século 19, os turcos cometiam crimes na Bulgária como preventivo contra um levante dos eslavos. Incendeiam povoações, matam, maltratam mulheres e crianças, pregam os prisioneiros pelas orelhas às vedações, abandonam-nos até chegar a manhã e, então, enforcam-nos – todo o gênero de coisas que não imaginas. As pessoas falam por vezes de crueldade animalesca, mas isso é uma grande injustiça e insulto aos animais; um animal nunca poderá ser tão cruel como um homem, tão artisticamente cruel. [...] Esses turcos tinham também prazer em torturar as crianças; em arrancar o nascituro do ventre da mãe, em atirar bebês ao ar para apanhá-los com as pontas das baionetas à frente das suas mães. Fazê-los à frente das mães era o que animava a diversão. Eis outra cena que me pareceu muito interessante. Imagina uma mãe tremendo, com um bebê nos braços, um círculo de turcos invasores à sua volta. Planejam uma diversão; acariciam o bebê, riem para fazê-lo rir, e conseguem: o bebê ri. Nesse momento, um turco aponta uma pistola a dez centímetros da face do bebê. O bebê ri com alegria, estende as suas mãozinhas para a pistola, e o turco dispara-a na face do bebê e rebenta o seu cérebro. Artístico, não é? 182 181 Declaração em áudio, de setembro/2013, por Abdul Samad, clérigo paquistanês militante da Al- Sahab, braço da Al-Qaeda, onde definiu os padrões de amizade e inimizade entre muçulmanos e infiéis. 182 Fiódor Dostoiévski, Os irmãos Karamázov (do original em inglês, 1993, pp. 245-246). Publicado no Brasil por Editora 34, apud PLANTINGA, 2012, pp. 20,21. O décimo quinto capítulo de Os irmãos 137 3.1 Leituras do Corão a partir do século 19 O século 19 foi especialmente pródigo em fomentar ideologias que legitimaram a violência, a resistência e o conflito armado. No recôncavo baiano, longe dos centros onde o Islã predominava e dos atritos do Oriente Médio, a chamada Revolta ou Levante Malê é documentada por Gilberto Freyre, Nina Rodrigues, conforme recente artigo de Ribeiro 183 (2011), Etienne Ignace e especialmente por João José dos Reis 184 em Rebelião escrava no Brasil, a história do levante dos malês (1986). A partir do século XIX houve uma tentativa de estruturação da sharī’a, a Lei islâmica. Falando da sua utilização como base para a prática islamista, Cherem 185 esclarece a confusão moderna no próprio seio da comunidade islâmica entre os conceitos de sharī’a como lei nos campos político e moral. Entre as fontes da sharī’a, por ordem de importância, temos então: o Corão e a sunna – exemplo do profeta, relatado por “tradições” (ahadīth, sing: hadīth) narradas por uma cadeia de transmissores que chega até os companheiros do profeta. E cita em nota que “o Alcorão é a fonte primária da sharī’a, mas, como Karamazov chama-se A Revolta. Nele, o autor faz menção dos turcos e sua violência. O texto descreve o relato de um búlgaro a Ivan Karamázov apoiado em um fundo real. Trata-se da guerra Russo-Turca. Historicamente, em alguns períodos, foram travadas guerras entre ambos os impérios, inclusive, uma delas tem a ver com a Criméia. Joseph Frank, respeitado pesquisador de Dostoievski, atesta isso. Comentando a citação que fiz, ele diz: “Os detalhes da candente acusação de Ivan a Deus mostram uma lista de atrocidades que Dostoievski retirou de diversas fontes – os processos criminais que presenciou, algumas das barbaridades contadas sobre a guerra Russo-Turca...” (FRANK, Joseph. Dostoievski 1871 a 1881. O Manto do Profeta. Trad. Geraldo Gerson de Souza. EDUSP, 2007, p. 754). 183 Lidice Meyer Pinto Ribeiro, mestre em Ciências Biológicas e doutora em Ciência Social (Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2005). É professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas: antropologia rural, antropologia da religião e teologia. 184 Mestre e Doutor em História pela Universidade de Minnesota, EUA. Lecionou como professor visitante nas Universidades de Michigan, Princeton, Brandeis, Texas, Harvard e na École des Hautes Études en Sciences Sociales. É professor titular do Departamento de História da Univ. Federal da Bahia. 185 Youssef Cherem é Bacharel em Relações Internacionais (PUC-Minas), mestre e doutorando em Antropologia Social (UNICAMP), professor do Departamento de História da Arte (UNIFESP). 138 foi muitas vezes notado, ele não é um livro jurídico (no sentido, por exemplo, do Pentateuco)” (CHEREM, 2011, pp. 157,158). Mas o século XIX não foi cenário de poucas influências sobre as leituras do Corão. O wahabismo, seita majoritária na Arábia Saudita (KAMEL, 2007, p. 101), iniciado cem anos antes, fortaleceu-se e no século XIX promoveu uma reforma ultrarradical. Retomando o mote da volta a uma origem, aos tempos dourados da religião pura, “Ibn Taymiyya, um filósofo muçulmano do século XIII, e Al-Wahhab, do século XVIII, formam a base desse pensamento conhecido como salafi” (KAMEL, 2007, p. 179). A palavra de origem árabe indica aqueles tempos e compreender o wahabismo “é fundamental para entender o extremismo religioso, base do terrorismo islâmico” (Ibidem) uma vez que o wahabismo “se impôs em boa parcela do Islã, rejeitando a contribuição de outras escolas de pensamento e impondo os padrões de sua civilização beduína ao complexo mundo islâmico” (WEINBERG, 2007, p. 188, ênfase acrescentada). Fazendo menção ao conteúdo do discurso do pensador liberal Khaled Abou el Fadl, no livro The Great Theft, o wahabismo promove a expansão de “uma visão etnocêntrica e nada universal que se divulga através do mundo com o apoio financeiro e logístico da Arábia Saudita que exporta o credo wahabita impondo seus ditamos como os únicos aceitáveis” (Ibidem). “O movimento [wahabita] surgiu na Arábia do século XVIII, pelas mãos de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, desencantado com o que chamava de degradação do Islã, e propôs um retorno radical às origens” (KAMEL, 2007, p. 179). A proposta consistia na interpretação radical do Corão, com que muitos não concordavam, quais sejam, punições, amputação de braços aos ladrões, decapitação, execução pública para assassinos (como o Hamas chegou a impor 186) e lealdade ao governo fiel ao Corão (KAMEL, 2007, p. 179). Ramadan al-Buti observa que o Profeta e as três primeiras gerações de “Califas Corretamente Guiados” do Islã orientaram a seguir seus ditos e que as inovações na religião poderiam desviar o indivíduo; “abraçar uma nova escola legal, chamada Salafiyyah, que é baseada no fanatismo, não tem nada a ver com seguir o caminho correto” (ABU-RABI, 2011, p. 35). 186 Cfm. artigo da BBC citado por Flint, 2009, pp. 285,286. 139 Na tradição islâmica, movimentos de volta a uma origem idealizada, de purificação da religião, sempre se fizeram presentes. Ibn Taymiyya, um filósofo muçulmano do século XIII, e Al-Wahhab, do século XVIII, formam a base desse pensamento conhecido como salafi, uma palavra árabe que se refere aos tempos dos pioneiros do islã (KAMEL, 2007, p. 179). Salaf é o “núcleo divino da religião e um dos principais alicerces da Sunnah do Profeta” e a Salafiyyah é “uma inovação teológica, não permitida por Deus, e uma forma de falsa consciência sem nenhuma base histórica” (ABU-RABI, 2011, p. 36). A Salafiyyah surgiu com força no século 19, no Egito, durante o período do Mandato Britânico e preconizava uma reforma islâmica. A liderança do movimento foi de Jamal al-Din Al-Afghnani e Muhammad’Abduh e teve grande impacto no mundo islâmico (ABU-RABI, 2011, pp. 37,38). Já a doutrina Wahhabi, do xeque Muhammed ibn Abdul Wahab (17031792), guardava um ponto comum com o movimento de reforma egípcio, que era a rejeição a modernização do Islã e o ímpeto para “combater inovações e superstições” (ABU-RABI, 2011, p. 38). Seus “líderes preferiam o termo Salafiyyah porque não gostavam do termo Wahhabi, que sugere que essa doutrina é baseada unicamente no xeque Muhammed Ibn Abdul Wahab” (Ibidem). Sugeriram a troca de Wahhabiyyah para Salafi'yyah 187 e o movimento se fortaleceu, lembrando que o Egito do século XIX fora afetado por um ingrediente adicional, o controle europeu, e “foi palco da primeira revolta nacionalista contra o Ocidente (a rebelião do coronel Urabi, em 1881)” (DEMANT, 2004, p. 204). A nova escola ideológica havia aberto as portas para mestres e alunos. Sermões, discussões, cartas, lições, conferências, diagnosticar a doença e prescrever a cura: todas essas coisas por si 187 “Depois disso, os seguidores começaram a promover essa nova nomenclatura a fim de provar a outros que seu pensamento Wahhabiyyah não era simplesmente a criação de Muhammed Ibn Abdul Wahab, mas que sua história pode ser traçada até os ancestrais (salaf). Quer dizer que, em sua adoção da doutrina Wahhabi, eles queriam mostrar que eram os verdadeiros herdeiros e depositários do credo, da doutrina e do caminho dos ancestrais em sua compreensão do Islã” (ABU-RABI, 2011, p. 38). 140 mesmas de nada servirão e não alcançarão o objetivo. As missões precisam de certos meios para serem seguidas. [...] Vocês não são uma organização de caridade, um partido político ou um comitê ad hoc para propósitos específicos. Vocês são uma nova vida que corre no coração da ummah para avivá-la com o Alcorão; uma nova luz que brilha para lançar a luz de Alá sobre a escuridão do materialismo... (ABURABI, 2011, p. 51). Essas palavras selecionadas por Fathi Yakan 188 (in ABU-RABI) são de Hassan al-Banna, chamado, na mesma obra, de um dos “pais fundadores do islamismo”, ao lado de Sayyid Qutb (ABU-RABI, 2011, p. 20). Essa safra de pensadores do Islã tem sido apontada em uníssono como os mentores do novo islamismo fundamentalista. Demant (2004, pp. 204-219) acrescenta, ainda, o nome de Abu al-Ala Mawdudi (1903-1979) enquadrando-os no que chama “a primeira onda fundamentalista” datada entre 1967-1981. “Os principais movimentos fundamentalistas sunitas atuais se inspiram na Irmandade Muçulmana egípcia e no pensamento de seu principal ideólogo, Sayyid Qutb” (Ibidem, p. 204). É no Egito que temos a montagem do cenário para o surgimento da mãe de todos os modernos movimentos fundamentalistas, a Irmandade Muçulmana. A ocupação britânica na região pressionou a articulação de uma resistência e reação ao colonialismo e ao imperialismo. É a Irmandade Muçulmana, fundada por al-Banna em 1928, o organismo que defenderá o “radicalismo político [...] uma reação voluntariosa à crescente ameaça estrangeira na Palestina então ocupada pelos britânicos” (AZEVEDO, 2008, p. 78). E não só a causa Palestina, uma vez que o islamismo de alBanna e Sayyid Qutb refletem as aspirações egípcias pan-arabistas 189 (DEMANT, 2004, p. 205). É de al-Banna a seguinte declaração: “O Islã é fé e devoção, é um país e é cidadania, é uma religião e um Estado, é 188 Fathi Yakan (1933-2009) estabeleceu o movimento islâmico em Trípoli, Líbano, nos anos 1950 e foi líder da Frente de Ação Islâmica naquele país. Pertence de modo geral à ideologia e ao pensamento do Movimento da Irmandade Muçulmana. 189 Os pan-arabistas (Al-Qawmiyyun Al-‘Arabi), esquerdistas e islamistas não reconhecem a legitimidade das fronteiras criadas artificialmente para separar esses Estados (ABU-RABI, 2011, p. 123). 141 espiritualidade e trabalho duro, é o Alcorão e a espada” (KAMEL, 2007, p. 186). 190 O Corão aí está; a terra também. 3.2 A Irmandade Muçulmana Quando fundou a Irmandade, Hasan al-Banna tinha 22 anos de idade. “Era respeitado professor formado pela Al-Azhar”, a prestigiada universidade sunita 191 no Cairo – “ele próprio wahhabista (salafi)” (KAMEL, 2007, p. 185). 192 A obra que se tornou a espinha dorsal de sua ideologia é Carta a um estudante muçulmano, escrita em 1935 (Ibidem). A Irmandade Muçulmana logo tomou corpo e abrangência. Seis anos depois de sua criação, aplicou-se a ação política e “depois de 1945, sofreu a sua mudança mais radical: aderiu à violência e ao terror, praticando assassinatos políticos com o objetivo de derrubar a monarquia egípcia” (KAMEL, 2007, p. 185). Quando contava com “duas mil filiais, quinhentos mil militantes e o dobro de simpatizantes” emergiu o novo modelo de ação, adotado posteriormente pelo Hamas: passaram a investir em escolas, mesquitas, hospitais, fábricas (Ibidem). A Irmandade proveu assistência mais ampla a uma população 190 Hasan al-Banna nasceu às margens do Nilo de uma família de relojoeiros. Sua biografia cita o fato de que em tenra idade conseguiu decorar o Alcorão em sua plenitude tornando-se pregador nas mesquitas ainda jovem. Graduou-se na Mesquita de al-Azhar aos 16 anos tornando-se professor primário a seguir. Fundaria então a Irmandade ao escrever o livro Carta a um Estudante Muçulmano (WEINBERG, 2007, p. 158). Para aprofundar os detalhes sobre al-Banna e os anos iniciais da Irmandade Muçulmana, ver ainda KAMEL, p. 185ss e DEMANT, pp. 204-219. 191 Carranca dá uma indicação que ajuda a compreender como o Islã é recebido em diferentes culturas. Quando explicam a natureza xiita do Irã, país por onde incursionaram, destaca que ao receber o “Islã imposto pelos árabes, com a rica herança dos tempos pré-islâmicos, o xiismo adota uma visão trágica da vida, enraizado no senso de martírio e sofrimento. Isso porque os persas já vinham de longa experiência de assimilação de culturas estrangeiras, dando-lhes uma forma adequada às suas inclinações, adotando certos preceitos e rejeitando outros. Assim, ao serem obrigados a abraçar a crença de Mohammed, firmaram uma interpretação própria do Corão, mesclando-a às suas crenças tradicionais” (CARRANCA, 2010, pp. 52,53). 192 As aspirações iniciais do movimento eram que a “Irmandade tem uma mensagem salafi, segue o caminho dos sunitas [em oposição aos xiitas], é uma organização política, um grupo atlético, uma união científica e cultural, um empreendimento econômico e uma ideia social” (KAMEL, 2007, p. 185). 142 carente, elaborou um novo raciocínio para o entendimento do jihad convocando todos os crentes, “sem exceção, mulheres e crianças, inclusive” e com isso ganhou solidez para avançar no mundo muçulmano com sua proposta de islamizar o mundo, começando no seu próprio quintal. “A guerra defensiva apenas por territórios perdidos ou ameaçados [...] passa também a ser a defesa do islã como religião” cujo slogan é “a morte na luta por Deus é a nossa grande esperança” (KAMEL, 2007, pp. 187,188). Em seu livro, Al-Banna expressa claramente seus objetivos com a Irmandade Muçulmana: “Deus é o nosso objetivo, o mensageiro é o nosso exemplo, o Alcorão é a nossa Constituição, o jihad é o nosso método e o martírio é o nosso desejo” (Ibidem). Lá estava o Corão. Até mesmo Kamel parece incomodado com esta interpretação: “Não à toa, o slogan da Irmandade Muçulmana desde o início foi: ‘Preparem-se para o jihad e sejam amantes da morte’.” (Ibidem). Quando a Irmandade passou à clandestinidade pelo governo egípcio de Nasser, em 1948, “al-Banna, com apenas 43 anos, foi assassinado por agentes secretos [...] tornando-se um mártir para os fanáticos e um exemplo a ser seguido”. Naqueles dias, militantes costumavam marchar pelas ruas do Cairo, gritando: “Nós não temos medo da morte; nós a desejamos.” A frase com que a Al-Qaeda costuma terminar suas declarações – “vocês amam a vida; nós, a morte” – vem daí” (KAMEL, 2007, p. 189). Sayyid Qutb, o “pensador fundamentalista mais importante” do período (DEMANT, 2004, p. 205), sofreu forte impacto cultural do Ocidente quando estudou na Califórnia entre 1948 e 1951. Qutb (pronuncia-se Kuh-tub) “trabalhava no Ministério da Educação antes de ser enviado para os EUA para inteirar-se dos métodos educacionais e dos currículos americanos” (KAMEL, 2007, p. 191). A experiência negativa diante da “sexualidade aberta da sociedade ocidental”, a humilhação racista que sofreu e a “simpatia para com o sionismo” (DEMANT, 2004, p. 205) não foram bem digeridas por Qutb: 143 Quando uma estudante universitária americana disse a ele que o “problema do sexo não era ético, mas meramente biológico”, ele concluiu que os americanos “eram primitivos nas suas vidas sexuais” (STERN, 2004, p. 41). Seus biógrafos dizem que [...] indispôs-se à liberdade feminina observada na sociedade dos Estados Unidos e à vida espiritual do americano (dizia que as igrejas eram “centros de entretenimento e playgrounds sexuais”). [...] Critica com veemência os encontros dançantes realizados nos salões paroquiais da cidade e a violência que testemunhara em esportes populares como luta marcial, boxe e futebol americano (WEINBERG, 2007, p. 148). A reação de tal ambiente causou em Qutb uma ebulição que chamuscaria seus pares na obra Marcos Miliares (ou Sinalizações da estrada): 193 Quando publicou Sinalizações da estrada, sua obra mais conhecida e radical, considerada a bíblia do terror islâmico, foi preso por pregar a derrubada do governo, por conspiração e por traição. Julgado, foi enforcado em 1966 [...] O ódio ao Ocidente, porém será a grande marca de sua obra (KAMEL, 2007, pp. 194,195). Como principal ideólogo do movimento da Irmandade Muçulmana no Egito nos anos 1940 e 1950, Sayyid Qutb estava preocupado principalmente com o impacto do Ocidente nas sociedades árabes e muçulmanas. Nas palavras de Roxane Euben, “o pensamento político de Qutb é uma acusação não apenas contra o imperialismo e o colonialismo 193 Escreveu um comentário de 32 volumes denominado Fi Zalal al-Koran (À Sombra do Alcorão) tendo publicado uma porção sob título Ma’alim fi-l-Tariq (1964), constituindo-se num dos mais importantes manifestos teológicos que influenciaram os grupos militarizados do Islã fundamentalista (WEINBERG, 2007, pp. 148,149). Sua outra obra é Justiça Social e Islã (1949). 144 ocidentais, a corrupção dos regimes do Oriente Médio, o poder secularista árabe, ou a modernidade per se, mas também contra as formas modernas de soberania e a epistemologia racionalista ocidental que as justifica” [In Enemy in the mirror: islamic fundamentalism and the limits of western rationalism, 1999, p. 5 ] (ABU-RABI, 2011, p. 13). Para Kamel, o resgate que Qutb fez do conceito de jahiliyyah 194 foi a grande inovação na produção intelectual recente do Islã. A jahiliyyah refere-se à posse pelo homem do atributo legítimo somente nas mãos de Deus, que é a dominação sobre o outro. Quando o homem assume o poder e passa a controlar sua vida e destino, caracteriza-se a pior rebeldia contra Deus e o Ocidente estava, aos seus olhos, mergulhado neste pecado. 195 Ele então escreveu como forma de prevenir os muçulmanos e para contra atacar a cultura pagã que quer destruir o Islã (KAMEL, 2007, pp. 194,195). Para Kamel, “Qutb superou Al-Banna” ao se tornar o principal articulador do radicalismo islâmico: “Se antes a luta era para devolver ao Islã a sua forma original e reunir todos os muçulmanos num só califado, depois de Qutb a meta passou a ser a conversão de todo o mundo ao Islã, sem exceção” (KAMEL, 2007, p. 195). A jihad ganhou novo perfil com Qutb, para quem “todos os que se opuserem à universalização do Islã devem ser combatidos” (Ibidem, p. 197). Se al-Banna via o jihad como recurso para defender os territórios do Islã contra o colonialismo e o imperialismo, Qutb não via proveito algum em somente defender-se; era preciso avançar e espalhar o Islã por toda a Terra, pois o jihad era mandamento de Deus para este fim. Então, ele reinterpretou a Sura 2.190, que diz: “Combatei pela causa de Deus, aqueles que vos combatem; porém, não os provoqueis, porque Deus não estima os agressores” 194 A ignorância da humanidade antes que o Corão fosse revelado ao mundo. 195 Nenhum sistema político ou poder material deveria impor obstáculos à forma de se pregar o Islã... Caso alguém o faça, o Islã deverá lutar contra essa pessoa até sua morte ou até que se submeta. ... Qualquer sistema no qual as decisões finais são deixadas ao ser humano, e no qual as fontes de toda autoridade são humanas, deifica os seres humanos ao outorgar, não a Deus, mas a outros homens o domínio sobre seus pares. Essa declaração significa que a autoridade usurpada de Deus terá que ser a Ele restaurada e expulsa os usurpadores... (KAMEL, 2007, pp. 198,199, ênfase no original). 145 (KAMEL, 2007, p. 197). “Para que não deixe margem de dúvidas de que se refere à guerra, Qutb busca refúgio na história dos profetas para dizer que só pregação não basta” (Ibidem). Em seus estudos, Qutb alinhou-se também ao religioso do século XIII, Ibn Taymiyya (1266-1328), que pregava a purificação do Islã e se opunha a quase tudo que não fosse sancionado pelo Corão (WEINBERG, 2007, p. 150). Tamiyya incentivava a guerra como legítima quando feita contra um governo que não segue as regras da religião (KAMEL, 2007, p. 207) e assim aplicou-o “à própria sociedade muçulmana” (DEMANT, p. 209; STERN, 2004, p. 41). Kamel evita o “politicamente correto”. Na sua leitura dos acontecimentos envolvendo a questão dos judeus e cristãos com Muhammad no século VII, Kamel destaca: “Somente uma leitura bastante heterodoxa poderia justificar, por exemplo, o ódio que ele prega aos judeus e aos cristãos” (KAMEL, 2007, p. 202). É assim que Qutb relê o Profeta, assinalando que ele definiu obediência como culto; e, neste sentido judeus e cristãos que não cultuam como os muçulmanos não obedecem e “se igualam àqueles que associam outros a Deus” (Ibidem, ênfase no original). É assim que “Qutb põe [...] judeus e cristãos no mesmo nível que os idólatras e politeístas, a quem o Alcorão mandou, num certo contexto histórico, punir com a morte” (Ibidem). Em sentido ampliado, a convocação para a luta e o ódio fomentado por Bin Laden e a Al-Qaeda contra judeus e cristãos, os novos “cruzados”, vêm daí (Ibidem). Para que fique clara a influência recebida por Qutb, Peter Demant aponta, ainda, para Mawdudi, pensador indiano ultraconservador que nas décadas de 1940 e 1950 196 desenvolveu cinco princípios para uma teologia do Islã: a antiapologia, o antiocidentalismo, o literalismo, a politização e o universalismo (DEMANT, 2004, p. 206). Resumidamente, Mawdudi queria dizer por antiapologia que o Islã não precisa ser defendido, porque deve estar clara e 196 Na década de 1940 Abd al-Qadir Awda escreveu uma comparação detalhada da legislação penal da Sharia e a tradição jurídica francesa que foi e ainda é praticada no Egito [...] Sua geração de pensadores muçulmanos – e isso inclui tais autores influentes como Sayyid Qutb, bem como Mawdudi – formou o entendimento contemporâneo da Sharia como lei, onde os ditos individuais do Profeta Muhammad coletados nos livros de hadith, bem como os versos individuais do Alcorão, são vistos quase como se fossem parágrafos em um código civil muçulmano (GRIFFEL, 2007, p. 13). 146 explícita a suficiência e evidência de sua superioridade; por antiocidentalismo, a rejeição ao humanismo e exaltação do ser humano, bem como todos os traços característicos do Ocidente e sua cultura (popular ou científica) iluminista; por literalismo, 197 a tomada primordial do Corão ao pé da letra; as tentativas de amenizar “versículos difíceis” são ridicularizadas pelos fundamentalistas; por politização, o novo engajamento nas questões temporais sem apagar a chama espiritual e, por fim, o universalismo: “como ele tem valor universal, o islã precisa ser imposto a toda a humanidade” (Ibidem, pp. 206,208). Weinberg vê como argumento-chave da interpretação de Mawdudi que “a história era uma luta permanente entre o Islã e a ‘ignorância’.” (WEINBERG, 2007, p. 165). 198 Com a dedicação de seus fiéis, os seguidores fariam o Islã prevalecer. O Estado islâmico resultaria do esforço dos piedosos que transformariam a sociedade desde dentro, desde suas próprias entranhas. Falando sobre os critérios de aplicação da Sharia a desmandos de um governante corrupto, Youssef Cherem traz comentário que revela muito sobre os critérios (ou falta deles) na interpretação do Corão: O pensamento árabe, e, particularmente, sunita, coloca-se diante de um dilema entre a normatividade absoluta e revelada, a segurança, estabilidade, clareza e ordem perfeita que o “mito da sharī’a como sistema de valores e normas transcendentes lhe garante, e o mundo falível das inevitáveis interpretações desse corpus sagrado por seres humanos. Qual é o limite, então, da sharī’a, e qual o papel da interpretação? Ou, em 197 “Acreditava-se erroneamente que os fundamentalistas islâmicos pregavam o retorno do islã à literalidade do Alcorão. Foi um equívoco. Não existe texto mais metafórico do que o Alcorão, cheio de simbolismos. Não se presta a uma leitura literal [...] cientes de que, diante da revelação escrita, interpretações múltiplas são possíveis, depois de interpretá-las de uma maneira radical, o que eles fazem é decretar que a visão deles é a única possível” (KAMEL, 2007, pp. 172,173). 198 “Tal filosofia provocaria ampla reação dos círculos conservadores e liberais do Islã. Os primeiros afirmam que ele interpretou de forma equivocada passagens do Islã. Os segundos afirmam que as fontes de inspiração de sua doutrina política são na verdade Stalin, Mussolini e Hitler. Dizem que era um extremista e uma das fontes do atual fenômeno do terrorismo” (WEINBERG, 2007, p. 165, nota no 20). 147 outros termos, onde acaba o sagrado e começa o profano? Infelizmente, os pensadores muçulmanos ainda não se debruçaram sobre a questão da hermenêutica religiosa do ponto de vista da falibilidade humana. A imperfeição do intérprete não é considerada quando se fala em “aplicação da sharī’a”. Parece que se presume que o intérprete é “virtuoso”, e que qualquer erro é desculpado pelas suas intenções. Mas nem mesmo quem é esse “intérprete” é definido (CHEREM, pp. 166,167). Esse é, a meu ver, o duto que transporta o conteúdo de um momento histórico (a península arábica do século VII) para o mundo presente, para a era moderna, com as letras e situações do passado para as situações e conflitos presentes: o literalismo na hermenêutica. E mais, promove a fusão de conteúdos devocionais e morais a campos que reivindicam legislação de outra natureza e mesmo intervenção de instituições internacionais, se focarmos os conflitos na Palestina, especificamente. A leitura corânica e da tradição islâmica que apontam para o Ocidente sob ação do mal; a proposta da ummah como ideal divino, que foi modelar na comunidade do Profeta; a rejeição da modernidade e da educação que irá expor as mazelas da comunidade e do próprio texto corânico, são fatores que, somados, apontarão para uma justificativa à formação de grupos defensores da ordem, da tradição e do sagrado. Pegando carona na obra de Lewis em What Went Wrong? Weinberg diz que Os muçulmanos deveriam perguntar não só o que ‘fizemos de errado’, referindo-se ao ocidente, mas também ‘o que eles fizeram de certo’. [...] Ou seja, corre o argumento de que os muçulmanos, especialmente os mais devotos, deveriam finalmente alterar em alguma medida seus mapas mentais o que lhes permitiria evitar os argumentos escapistas aos quais estão acostumados e que buscam bodes expiatórios externos para explicar seus próprios problemas e fracassos (WEINBERG, 2007, p. 216). 148 Ao atribuir malignidade ao Ocidente e à democracia, uma vez que são construções humanas e, portanto, contrárias ao plano de Allah, o pano de fundo defeituoso fica estendido e o cenário preparado para justificar ações violentas. Weinberg (2007) registra que Christopher Hitchens fez associação entre a aproximação de pensadores fundamentalistas influenciados pelo fascismo a ideias de teocracia islâmica: É o caso de Sayyd Qutub que em sua obra cita insistentemente Aléxis Carrel, francês Nobel de Fisiologia da Medicina em 1912 [...] No seu livro L'Homme, cet inconnu desenvolve ideias antissemitas e próximas do fascismo argumentando que a humanidade caminharia melhor se impusesse um regime de eugenia forçada e se deixasse governar por um grupo de elite formado por intelectuais (WEINBERG, 2007, pp. 100,101). 199 Qutb resumiu as influências que recebeu e as organizou num tripé a sua ideologia: 1. expressamente antiocidental; 2. Observação do mundo novamente numa jahiliyya e 3. a necessidade da aplicação da sharia, uma vez que “o dever do fiel é criar uma ordem justa que se baseia na lei de Deus” (DEMANT, 2004, pp. 209-211). “Legitimava-se, em termos islâmicos, o tiranocídio. Adotando o precedente medieval de Ibn Taimiyya, Qutb chegou a um programa radical de restauração do islã original” (Ibidem, p. 212). Se o entrave ao desenvolvimento em um ponto da História foi atribuído aos mongóis, provocando atraso econômico e deficiência na geração de emprego e renda, avanços nos campos da educação e da ciência, respeito pelos direitos humanos e uma política com diálogo mais amplo e aberto, agora os inimigos do Islã são outros: “ora as nações falsamente islâmicas, ora os 199 Em nota, Weinberg diz que “Carrel tem servido de fonte e referência também a movimentos de tonalidade fascista não-islâmica como é o caso do liderado pelo político francês Le Pen. [...] A convergência de ideias entre grupos fascistas e islamistas foi documentado por Marc Erickson. [Islamism, fascismo and terrorismo, Asia Times, 5 de novembro de 2002. Disponível em http://www.atimes.com/atimes/Others/islamism-fascism-terrorism.html em 28.01.2014] (WEINBERG, 2007, pp. 100,101). 149 judeus, ora ainda os novos imperialistas. Aparentemente, para estes círculos da ortodoxia islâmica, sempre haverá um bode expiatório à disposição” (WEINBERG, 2007, P. 217). 200 3.3 Da Irmandade Muçulmana ao Hamas: pensamento e ação social A sociedade palestina se caracterizou por uma religiosidade predominante (muçulmanos e cristãos, HROUB, 2009, p. 107) a despeito da resistência à colonização israelense ser realizada pelo “partido nacionalista Fatah e partidos à sua esquerda expressamente secularistas – isso até o estabelecimento do Hamas” (DEMANT, 2004, p. 216). Quando Israel foi declarado oficialmente Estado, em 1948, a Irmandade Muçulmana estendeu-se fisicamente para os territórios da Cisjordânia, anexado à Jordânia, onde o movimento juntou-se a uma ramificação própria naquele país, e para a Faixa de Gaza, sendo encabeçada pela liderança egípcia (HROUB, 2009, p. 35). Yousef registra que essa ramificação se deu com antecedência de treze anos: Em 1935, o irmão de al-Banna fundou uma divisão da sociedade nos territórios palestinos. [...] De acordo com o Alcorão, quando um inimigo invade qualquer território muçulmano, todos os seguidores do islamismo são convocados a lutar e defender sua terra (YOUSEF, 2010, p. 24). Mas Ismail Abu Shanab, um dos líderes do Hamas e presidente da Sociedade de Engenheiros de Gaza recua a data alegando que “a causa palestina deve ser entendida desde sua origem [...] Ela começou em 1917, ou 200 Para reforçar o seu argumento, o autor menciona o seguinte: “Os países árabes ficam atrás do oeste e extremo oriente em todos os indicadores industriais e produção manufatureira, criação de empregos, tecnologia, alfabetização, expectativa de vida, desenvolvimento humano, e vitalidade intelectual. Em número de linhas telefônicas, a nação mais desenvolvida era União Árabe Unida, posicionada em 33º lugar” (WEINBERG, 2007, p. 217). 150 até antes, e continuou quando os judeus desalojaram os palestinos de suas casas em 1948” (STERN, 2004, p. 35). 201 A ocupação dos territórios palestinos por exército e colonos israelenses é um drama para a vida de milhares de famílias. Guila Flint diz que no período correspondente à pesquisa, somente na Faixa de Gaza viviam 1 milhão de palestinos e 5 mil colonos israelenses que controlavam 30% das terras e 40% das fontes de água. “Grande parte das reservas subterrâneas de água é canalizada para os assentamentos e para o território de Israel [...] Segundo dados da ONG Law and Water 35%, da água consumida em Israel provém de fontes na Cisjordânia (FLINT, 2009, p. 56). A liderança dos colonos está nas mãos do setor ideológico. Movidos por uma visão nacionalista-religiosa, os colonos militantes acreditam que a chamada Terra de Israel bíblica pertence exclusivamente ao povo judeu e que os palestinos são intrusos nesses territórios (Ibidem, p. 137). Ela relata, ainda, a existência de “generosos subsídios do governo para a moradia nos territórios ocupados” e que “aos colonos são oferecidos empréstimos muitos favoráveis e isenção de impostos”. Como se isso não bastasse, “os assentamentos cercam as áreas palestinas, impedindo qualquer crescimento das cidades e aldeias palestinas” (FLINT, 2009, p. 138). No filme-documentário Cinco Câmeras Quebradas 202 há depoimentos sobre a interferência israelense nas propriedades palestinas, dividindo-as ao meio pela construção do Muro, a partir de 29 de março de 2002, quando famílias foram separadas, perdendo o espaço da moradia em terrenos 201 Abu Shanab alega que a “ocupação que é proibida por lei internacional”, o que Stern rebate com a nota 14, que diz: “Segundo sir Adam Roberts, catedrático de relações internacionais na universidade de Oxford, o que é ilegal não é a ocupação em si, mas as atividades de Israel como potência de ocupação” (Ibidem). 202 Les Cinqs Câmeras Brisées, França, 2011, foi filmado por Emad Bornat, morador de Bil’In, uma vila na Cisjordânia. O documentário mostra os protestos dos palestinos contra a construção de assentamentos israelenses em sua terra e especialmente sua luta contra a construção do Muro (ao qual Israel chama de cerca) que separa seus territórios dos territórios israelenses. 151 cultivados para seu sustento, muitos com uma cultura realizada há décadas. Mostra também colonos que ateiam fogo a oliveiras, base de sustentação da agricultura e parte da economia palestina. Almira Hass, do Haaretz, dá conta de que mais de 1.358 oliveiras foram queimadas ou destruídas na Cisjordânia, de 11 de setembro a 8 de outubro de 2013 (menos de um mês). 203 Após o início da construção do muro, tropas israelenses invadiram (abril/2000) Ramallah. Mais de 200 palestinos foram mortos e milhares foram feridos; 1.400 casas foram destruídas. As tropas invadiram ONGs, ministérios, institutos culturais, hospitais, farmácias, supermercados, escolas e bancos. Tudo foi estourado, móveis destruídos, documentos e arquivos confiscados. Pesquisas e coletas de dados sobre 3,5 milhões de palestinos foram perdidos. Relatórios, exames médicos, fichas de doentes (FLINT, 2009, p. 183). Jamal Salman (diretor-geral da Prefeitura de Belém) diz que as restrições impostas pelo exército israelense “provocam uma intensa frustração. E a frustração é a semente da violência” (FLINT, 2009, p. 215). Sobre o muro, acrescenta: “A segurança é só o pretexto. O objetivo é verdadeiro é confiscar mais terras dos palestinos e criar fatos consumados nessa área, pois a cerca não passa na linha verde (fronteira original entre Israel e a Cisjordânia) (Ibidem, p. 218). Outro resultado da construção do muro é o aperto econômico. Somente um palestino, Hassan Harouf, 42, perdeu 80 mil dos 93 mil metros quadrados com o confisco de suas terras (Id., p. 219). A atividade mineradora também causa prejuízos ao povo palestino, já que as pedreiras israelenses transportam anualmente nove dos 12 milhões de toneladas da pedra palestina destinadas à construção civil. “Os três milhões restantes são usados pelo setor de construção palestino e também para construir assentamentos israelenses na Cisjordânia” (FLINT, 2009, p. 438). 204 203 HASS, A. Israeli attacks on Palestinian olive groves kept top secret by state. Disponível em http://www.haaretz.com/news/diplomacy-defense/.premium-1.554690 acessado em 28.10.13. 204 20% da pedra usada na construção civil em Israel são retirados da Cisjordânia. O advogado da Yesh Din (organização de direitos humanos em Israel), Michael Sfard, diz: “Israel terá de pagar uma indenização pela retirada desses recursos naturais, da mesma maneira que indenizou o Egito pelo petróleo que extraiu do Sinai” (FLINT, 2009, p. 438). 152 Na Faixa de Gaza, o exército de Israel chegou a colocar seus caças supersônicos voando as baixas altitudes sobre regiões residenciais provocando danos à saúde, especialmente a das crianças. Elas entram em estado de ansiedade e pânico, perdem apetite e capacidade de se concentrar nos estudos, têm medo de se distanciar dos pais e de ir à escola, não conseguem dormir à noite. Sentem-se desorientadas (FLINT, 2009, p. 264). Os habitantes de Gaza pediram 9 mil aparelhos de audição para crianças [...] que ficaram surdas em decorrência do barulho contínuo de explosões e choques ultrassônicos causados por caças israelenses que sobrevoaram frequentemente a região (FLINT, 2009, p. 391). Flint também fala da “arma fedorenta” desenvolvida pelo Exército de Israel: um líquido lançado pelo “gambá”, que “é pior que cheiro de esgoto e não sai das roupas, mesmo após a lavagem [...] tem um cheiro horrível, parece de cadáver” (FLINT, 2009, p. 384). Mapa 1. Imagem de satélite manipulada traz o território da Faixa de Gaza (imagem original do Google Maps). 153 Este cenário caótico é, em certa medida, a razão do sucesso do Hamas no “trabalho social realizado nas camadas menos favorecidas”, como explica Hroub (2009, p. 102). O empobrecimento (e o sofrimento) da sociedade palestina, especialmente em Gaza é, em parte, amenizado pelas ações do Hamas, através de “poderosas e abrangentes redes de caridade – mesquitas, sindicatos, escolas, clubes esportivos” (Ibidem), por onde os recursos vindos da ajuda de países árabes chega à população. Somente durante a segunda Intifada (2000 a 2005) o desemprego subiu para uma taxa de 75% em alguns setores, o que elevou a percentual de palestinos situados abaixo da linha da pobreza, para cerca de 65% (CHEN, 2012, p. 114). “A maioria dos palestinos vê a violência como sua única opção para atingir seu objetivo de independência” (BLOOM, 2004, p. 69). O Hamas ficou conhecido por dar uma ajuda mensal até mesmo àqueles que trabalharam para a Autoridade Palestina sob o controle do Fatah quando se considerava que a renda destes estivesse abaixo da linha da pobreza (HROUB, 2009, pp. 102,103). Os recursos administrados pelo Hamas vêm de países como a Arábia Saudita, a maior fonte, e dos palestinos que moram lá; do Iraque, dos Estados Unidos, do Qatar, do Kwait, dos Emirados Árabes Unidos; mas não diretamente dos governos, vêm de “Organizações não-governamentais [...] de forma que os governos não podem ser acusados” (STERN, 2004, pp. 44,179; KAMEL, 2007, p. 223). O único governo que fornece fundos diretamente ao Hamas é o do Irã, nos disse o general. Emad al-Alami, funcionário graduado do Hamas, mantém os contatos entre o Hamas e o Irã. [...] Diz-se que o Irã fornece de US$ 20 a 30 milhões por ano ao Hamas (STERN, 2004, p. 44). Entre 2003 e 2004, pressionada pelos Estados Unidos e Israel, a Autoridade Palestina reprimiu as “atividades beneficentes do Hamas, incluindo 154 o congelamento de contas bancárias de 12 instituições de caridade na Cisjordânia e 38 na Faixa de Gaza” (HROUB, 2009, p. 104). Israel continuamente empenhou-se por enfraquecer ou dissipar as “organizações de trabalho social do Hamas na Faixa de Gaza e na Cisjordânia,” alegando que elas “canalizam fundos para suas atividades militares”. O resultado foram mais de 150 mil pessoas diretamente afetadas por esse contingenciamento (HROUB, 2009, p. 103). Além de “contribuir consideravelmente com serviços sociais e auxílio a milhares de famílias na miséria”, a presença e o modelo social do Movimento, diz o próprio Hamas, “ajudou a reduzir certos fenômenos negativos na sociedade palestina, tais como o uso de drogas” (HROUB, 2009, p. 107) O seguinte quadro procura possíveis relações entre alguma mudança no cenário político, social ou econômico, a partir de ações de Israel (ou entre os acordos de paz), com os ataques do Hamas a alvos israelenses. Em outras palavras, a tentativa é identificar se os ataques do Hamas são “reativos”, mais do que “proativos”, em que os ataques são provocados por frustração ou decepção nos avanços das negociações de paz, queda no nível de poder aquisitivo ou empobrecimento radical ou reação contra a ocupação de território palestino por forças ou colonização israelense. QUADRO 1 – ATAQUES DO HAMAS DE 1990 A 2006 205 ANO MÊS ATAQUES 1990 Dez 2 3 1 1991 Abr 3 1 13 1992 Fev 1 0 1 Abr 1 1 0 205 MORTOS FERIDOS OCORRÊNCIA* Tabela elaborada a partir dos dados de National Consortium for the Study of Terrorism and Responses to Terrorism (START), Global Terrorism Database [Data file] (2012), disponível em http://www.start.umd.edu/gtd; Robert Pape (2003); Guila Flint (2009) e Khaled Hroub (2009). 155 # 206 16 Mai 3 2 1 Jun 4 7 2 Ago 1 1 0 Set 3 2 1 Out 1 1 0 Dez 2 2 2 13 de setembro de 1993: Assinatura do Acordo de Oslo 1994 #41 1995 #6 1996 #11 206 207 Jan 8 6 14 Houve ataques todos os meses. 207 Fev 4 4 2 Tentativa Mar 2 - 1 israelenses (PAPE, 2003, p. 343,349) Abr 6 10 56 Fracasso do Acordo de Oslo 208. Mai 2 4 1 Massacre na mesquita em Hebron Jun 1 0 2 (HROUB, p. 19). 209 Jul 2 2 0 Assentamentos quase dobram de 94- Ago 5 3 10 97 (PAPE, p. 352; HROUB, p. 79) Set 2 3 1 Out 4 32 58 De out/94 a ago/95: 7 ataques Nov 2 2 0 contra Israel, com Jihad Islâmica Dez 3 1 15 (PAPE, 2003, p. 354) Jan 1 1 1 Campanhas neste ano e anterior são Abr 2 9 33 tentativas de concessão de território Jul 1 7 32 (PAPE, p. 352) que espera acelerar as Ago 1 6 100 negociações com OLP (PAPE, 2003, Set 1 2 0 348) Jan 3 3 1 As 4 campanhas de retaliação são Fev 3 29 89 pela morte de um líder do Hamas. Mar 4 33 114 de expulsar forças #: Total de ataques no ano. Dia 13.9.1993: Assinatura do Acordo de Oslo. Ataques neste ano e em 1995 são por concessões territoriais (PAPE, 2003, p. 352). 208 Houve dois ataques, em 6 e 13 de abril porque Israel não retirou suas tropas de Gaza e Cisjordânia no prazo de 13.12.93 a 13.04.94. 209 Primeiro ataque com homem-bomba, cf. Pape. O massacre ocorrido em Hebron ocorrido em 24.02.1994 matou 29 pessoas que oravam na mesquita e feriu outras. 156 Abr 1 1 0 1997 Mar 1 4 47 #2 Jul 1 15 170 1998 Mar 1 2 0 Hamas se manifesta contrário ao Jul 1 0 1 Acordo de Paz. Set 2 3 0 Out 2 2 65 Nov 1 2 21 1999 Fev 1 0 1 #4 Ago 3 1 2 2000 Dez 1 1 3 29.09: Início da Segunda Intifada 2001 Jan 3 3 1 4 meses depois da Intifada 210 Fev 2 11 17 Os Mar 5 9 71 relacionados aos fracassos na cúpula Abr 2 2 50 de Camp David (ABU-RABI, 2011, p. Mai 2 - - Jun 2 24 101 Jul 1 0 0 Ago 2 17 140 Pela retirada das tropas israelenses Set 2 6 58 (PAPE, 350) e colonos (FLINT, p. 137) Out 2 5 14 16 dos 35 ataques do Hamas em Nov 4 7 7 Gaza/Cisjordânia: contra o bloqueio. Dez 8 44 268 Prejuízos (FLINT, p. 129) Jan 2 7 25 Tomada de terras em Belém (FLINT, Fev 3 13 5 pp. 160-3) Mar 5 47 134 Abr 1 3 0 Mai 6 41 146 #7 # 35 2002 # 33 210 ataques do período estão 127) Até 2001, busca de autodeterminação (PAPE, 2003, p. 344) 29.03: Início da construção do Muro 211 02.04: invasão da Prefeitura de A ONU informou que de outubro de 2000 a março de 2001, 575 prédios residenciais foram totalmente destruídos, 3.700 prédios residenciais foram seriamente danificados, 181 mil árvores foram derrubadas pelo Exército e quase 3,7 milhões de metros quadrados de áreas agrícolas cultivadas foram destruídas (FLINT, 2009, p. 129). 211 FLINT, 2009, p. 182. 157 2003 # 36 2004 # 14 2005 # 17 2006 # 26 212 Jun 5 35 92 Belém. 212 Mais de 200 palestinos Jul 2 14 96 mortos Ago 6 25 131 Objetivo de concluir 1ª fase de Set 1 6 50 125km de muro (FLINT, 2009, p. 218) Nov 2 15 49 Jan 3 4 2 Eleições em Israel (FLINT, p. 193). Fev 4 4 4 Início da Guerra no Iraque (p. 196) Mar 10 21 63 Frustração com a permanente Abr 4 3 3 ocupação de Belém (FLINT, p. 208) Mai 8 13 34 Muro Jun 2 24 79 frustração (FLINT, p. 201ss) Ago 1 19 100 9 novos assentamentos (FLINT, p. Set 2 14 54 205), 63 desde a eleição de Sharon Dez 1 0 2 Jan 2 16 57 Mudanças na composição política de Mar 2 6 20 Israel; Abr 4 2 9 possibilidade de retirada de tropas Jun 2 3 5 em Gaza. Hamas muda o tom: quer Ago 2 0 2 parcela de participação política na Set 1 2 7 OLP (FLINT, pp. 238,239) Nov 1 0 0 Morte de Arafat (FLINT, p. 235) Jan 12 12 15 Eleições palestinas (FLINT, p. 243) Fev 1 0 0 Hamas se fortalece nas eleições Abr 2 0 0 (FLINT, p. 250) Mai 1 1 0 Estrondos supersônicos sobre Gaza Jun 1 0 3 em novembro (FLINT, p. 263-4) Jan 1 0 5 Hamas vence as eleições (FLINT, Mai 1 0 2 2009, Jun 2 6 4 internacional (Id, p. 283) Jul 5 0 0 Corte de gastos públicos 213 aumenta entrada p. 14). isolamento dos e trabalhistas; Corte de ajuda FLINT, 2009, pp. 183,187,189,190. 158 Nov 5 0 6 Aumento de execuções extrajudiciais Dez 7 6 13 de palestinos (FLINT, 2009, p. 304) 248 698 2805 TOTAL Mas há outras versões ou o outro lado da história, vinda dos palestinos. Por exemplo, a da escritora egípcia, criada em Gaza, Nonie Darwish, que hoje promove a reconciliação entre árabes e judeus, através do site www.arabsforisrael.com. Segundo a sua visão, terrorismo é resultado direto da cultura islâmica radical que está florescendo em todo o mundo árabe está sendo promovido pela mídia árabe, governos, sistema educacional e líderes religiosos. Ela diz: Os terroristas recebem campos de treinamento, dinheiro e respeito por fazerem o trabalho de Deus que é a Jihad. Os árabes entendem que não podem vencer a guerra contra o ocidente. O que eles podem fazer é doutrinar uma geração após a outra ao martírio. Sua arma secreta é a raiva e o rancor da rua árabe (WEINBERG, 2007, p. 186). Nasra Hassan confirma o modelo adotado: Em bairros palestinos, pássaros verdes dos bombardeiros suicidas aparecem em cartazes e em grafite – a linguagem da rua. Calendários são ilustrados com o “mártir do mês.” Pinturas glorificam os terroristas mortos no Paraíso e triunfante debaixo de um bando de pássaros verdes. Este símbolo é baseado em um dito do Profeta Muhammad, que a alma de um mártir é dedicada a Deus no seio dos pássaros verdes do Paraíso. As crianças que não sabem ler entoam os nomes dos heróis e fazem o sinal islâmico da vitória, punho cerrado com o 213 Flint (2009, p. 300) reporta “paralisia na economia palestina” em função do corte da ajuda internacional a Palestina após a eleição do Hamas. 1 milhão de palestinos vivem diretamente e 1 milhão indiretamente de salários do setor público. O corte da ajuda internacional afetou de salários a hospitais. 159 indicador direito (HASSAN, 2014, pp. 36-41; ver também STERN, 2004, p. 54ss). Com a missão de “lutar e defender a terra” considerada de propriedade dos muçulmanos, a Irmandade serviu de incubadora para alguns movimentos importantes na região. Um deles, o Fatah, 214 foi precursor da Organização para a Libertação da Palestina, a OLP. No final da década de 1930, oficiais moços e menos graduados do Exército egípcio, inclusive os filiados à irmandade, estabeleceram contatos com a Alemanha Nazista. Apesar de a irmandade ter começado como uma organização cultural e de caridade, logo ganhou uma ala paramilitar, que adotou lemas e práticas fascistas (STERN, 2004, p. 40). 3.4 Mais um lado cruel A ramificação palestina da Irmandade reorganizou seus objetivos para o território, estabelecendo o Movimento de Resistência Islâmica Harakat alMuqawwama al-Islamiyya, o Hamas, com a finalidade de “combater a ocupação israelense” (HROUB, 2009, p. 36), isso na véspera da Segunda Intifada. 215 Hamas, que em árabe significa “fervor” (KALOUT, 2006, p. 8) 216 começou como Movimento criado no final da década de 1980 e na ocasião da Primeira Intifada foi além dos propósitos de libertar os territórios ocupados e resistir à opressão israelense. Contrariando muitos dos relatos históricos 214 Al Fatah, fundado no início dos anos 1960 por Yasser Arafat. 215 Em 9 de dezembro de 1987, os palestinos iniciaram a Intifada, levante popular contra a ocupação israelense. A Intifada durou seis anos, até a assinatura do Acordo de Oslo, em 1993. Morreram naqueles confrontos 1.500 palestinos e 230 israelenses. A segunda Intifada teve início em setembro de 2000. A versão oficial dá conta que isso aconteceu após o colapso de Camp David entre o primeiro-ministro israelense Ehud Barak e o presidente da ANP Yasser Arafat. Uma das principais questões na qual as negociações falharam foi a mesquita de Al-Aqsa. Foi precisamente por isso que Ariel Sharon, então na oposição, realizou uma “exibição de força” ali, provocando este segundo levante palestino. 216 Hussein Ali Kalout é Professor de Relações Internacionais do Instituto de Educação Superior de Brasília (IESB) e especialista em Oriente Médio. 160 existentes, apenas sete homens participaram da reunião em Hebron a qual marcou, ao menos afetivamente, o início do Hamas. Seus nomes são: “o xeique Ahmed Yassin, que se tornaria o líder espiritual da nova organização; Muhammad Jamal al-Natsheh, de Hebron; Jamal Mansour, de Nabulus; o xeique Hassan Yousef; Mahmud Muslih, de Ramallah; Jamil Hamami, de Jerusalém e Ayman Abu Taha, de Gaza” (YOUSEF, 2010, p. 35). “A liderança política é a principal autoridade do Hamas. Todas as outras alas e braços estão sujeitos à estratégia e às pautas traçadas pelo Conselho Consultivo e pela Agência Política (AP) do Hamas”, sendo que os membros de uma ala, a política, nada sabem sobre as decisões da outra, a militar. Nem mesmo lugares e datas dos ataques são divulgados ou compartilhados (HROUB, 2009, pp. 161,162). O Hamas tem o seu próprio braço militar, as Brigadas Ezzedden Al-Qassam, liderada por Imad Akel 217 (YOUSEF, 2010, p. 63) além da organização administrativa e dos tentáculos que recrutam “voluntários” para a “causa”. No caso, o voluntariado é feito por um mecanismo específico e a causa é a bandeira religiosa que embrulha uma ideologia gananciosa por poder, influência e dinheiro (STERN, 2004, pp. xviii,5). A entrevista que Stern fez com o general-brigadeiro Nizar Amar, da segurança Geral Palestina, é reveladora. “Moço, muitas vezes adolescentes. Mentalmente imaturo. Há pressão para que ele trabalhe. Ele não consegue emprego.” Não há alternativa, nem mesmo no exército da Autoridade Palestina, nem nos exércitos de Arafat (quando estava vivo), e o moço não tem “vitamina w” 218 (STERN, 2004, pp. 44,45). Ele não tem dinheiro para divertir-se, casar-se não é alternativa, pois é caro. Sua vida não tem sentido e a única alternativa é procurar refúgio em Deus. Ele vai à mesquita. Ele começa a orar com mais frequência às cinco orações do Islã e comparece até nas orações das quatro horas da madrugada, o que não é feito pelo muçulmano comum (Ibidem, p. 45). “Os membros do Hamas estão lá e notam seu olhar aflito, preocupado e deprimido, e que ele vem todos os dias. É uma sociedade pequena. Todos se 217 “Mais novo de três irmãos, Akel estudara para ser farmacêutico quando se sentiu farto de tanta injustiça e frustração. Pegou uma arma, matou vários soldados israelenses e tomou seus fuzis. À medida que ganhava seguidores, sua influência aumentava” (YOUSEF, 2010, p. 62). 218 De wasta, expressão árabe para indicar o que no Brasil chamamos “apadrinhamento”. 161 conhecem, Eles investigarão e descobrirão tudo sobre ele. Gradualmente, o recrutamento começa” (Ibidem). “Ele se tornará um mártir 219 e o Hamas doará à sua família US$ 5.000,00, farinha de trigo, açúcar, outros mantimentos básicos e roupas 220 [...] A condição para viabilizar isso: não contar a ninguém!” (Ibidem). 221 “Nas ruas de Gaza [...] as crianças têm uma brincadeira chamada shuhada, que inclui uma simulação de um enterro de um terrorista suicida (STERN, 2004, p. 47). As entrevistas feitas entre 1996-1999 com mais de 250 pessoas envolvidas na militância palestina, por Nasra Hassan, revelam mais detalhes do ritual do mártir. Quero me deter em alguns poucos apenas, os que conectam o aspecto religioso do procedimento. Ela acompanhou três membros do Hamas que se preparavam para “partir para o combate” [...] “pouco antes da meia-noite no dia 30 de junho de 1993” (HASSAN, 2014). “Sentaram-se em seu esconderijo, uma caverna nas colinas perto de Hebron, e começaram a recitar o Alcorão” (Ibidem). Ao amanhecer, quando os homens ouviram a chamada de manhã para a oração de uma mesquita na aldeia abaixo, eles se ajoelharam e proferiram a invocação tradicional a Alá que os guerreiros muçulmanos fazem antes de partir para o combate. Eles colocaram roupas limpas, colocaram o Alcorão em seus bolsos e começaram a longa caminhada (Ibidem). 219 Em árabe, shaheed, mártir, herói. 220 Na nota 51 ela comenta sobre a promessa das 72 virgens: “[...] entre as quais se costumam incluir 72 virgens, vem sendo posta em dúvida. Christoph Luzemberg, em The Syro-Aramaic Reading of the Koran, argumenta que a palavra hur (‘passa branca’, uma iguaria no Oriente Médio antigo) foi erroneamente interpretada como houri (virgens). A tradição islâmica afirma que a tradução correta é ‘virgens’, embora a palavra nos textos mais antigos seja hur. As ambiguidades no texto são, em parte, causadas pela ausência de vogais e sinais diacríticos” (STERN, 2004). 221 Em nota no 49, ela registra texto de McGeary & Van Bierna, que diz: “Um membro do aparato de segurança israelense disse a Lelyveld: ‘hoje em dia, eles não encontram problema para recrutar suicidas. Para cada suicida que querem, há cinco, sete, dez voluntários’.” (STERN, 2004, p. 46). 162 Um dos jovens, que recentemente completou vinte e sete anos, foi interrogado sobre quando e por que decidiu oferecer-se para o martírio, e descobriu que havia sido na “época dos acordos de Oslo”. O jovem revelou que a sensação quando se recebe o convite para uma missão é de segurança semelhante a de um “muro impenetrável” que garante a ida para o paraíso: “Então, pressionando o detonador, você pode abrir a porta imediatamente para o Paraíso: é o caminho mais curto para o céu.”. Na casa dele, Hassan conta ter visto versículos do Corão impressos na parede da sala (HASSAN, 2014). Esse jovem “foi um dos onze filhos de uma família de classe média que, em 1948, tinham sido forçados a fugir de Majdal a um campo de refugiados em Gaza, durante a guerra árabe-israelense” (Ibidem). Nasra Hassan traçou o perfil médio dos voluntários, que não se refere ao que fazem como “suicídio”, que é proibido no Islã. O termo preferido é “explosões sagradas” (HASSAN, 2014) ou martírio (CHEN, 2012, p. 107. Também afirmaram não agir por vingança, "Se só isso motiva o candidato, o seu martírio não será aceitável a Deus”. A causa é estritamente militar: “não é a amargura de um indivíduo que comanda uma operação. Honra e dignidade são muito importantes na nossa cultura. E quando somos humilhados, respondemos com ira” (Ibidem). Quadro 2: PERFIL SÓCIOCULTURAL DOS VOLUNTÁRIOS AO MARTÍRIO – tinham idades entre 18-38 anos – nenhum tinha o perfil típico da personalidade suicida – nenhum deles era ignorante, desesperadamente pobre, simplório ou deprimido – muitos eram de classe média e, a menos que eles fossem fugitivos, estavam empregados – mais da metade eram refugiados nas áreas onde hoje é Israel – dois eram filhos de milionários – todos pareciam ser membros normais em suas famílias – foram educados e eram sérios, e em suas comunidades foram considerados jovens modelos – a maioria mantinha a barba 163 – todos eram profundamente religiosos – usaram terminologia islâmica de expressar suas opiniões, mas eram bem informados sobre política em Israel e em todo o mundo árabe – disseram que, a fim de serem aceitos para uma missão suicida, tinham de ser convencidos da legitimidade religiosa dos atos que estavam para executar – muitos haviam memorizado grandes seções do Corão e eram bem versados nos melhores pontos da lei e da prática islâmica – o conhecimento que tinham do cristianismo era baseado nas Cruzadas medievais e consideravam o judaísmo e o sionismo como sinônimos – quando falavam, todos tendiam a usar as mesmas frases: “O Ocidente tem medo do Islã”, “Alá nos prometeu sucesso final”, “É no Corão”, “Palestina islâmica será libertada” – todos exibiram raiva inequívoca em relação a Israel com frases como “Os israelenses humilham-nos”, “eles ocupam nossa terra e negam nossa história” – a maioria falava em árabe e todos falavam com naturalidade sobre os atentados, mostrando convicção inabalável na justeza de sua causa e seus métodos – questionados sobre escrúpulos em matar civis inocentes eles responderam imediatamente: “Os israelenses matam nossos filhos e nossas mulheres. Isto é uma guerra, e as pessoas inocentes se machucam”. Conforme pesquisa de Nasra Hassan (2014) entre 1996-1999 com mais de 250 voluntários, envolvidos na militância ou familiares. Chen (2012, p. 108) registra que o líder político do Hamas Khalid Misha’al mencionou que 120 pessoas haviam se apresentado como voluntários para o martírio (“serviço em amor a Deus”). “Metade deles eram universitários graduados e a maior parte da outra metade eram diplomados no ensino médio, enquanto apenas alguns terminaram escolas primárias” (ver também CRENSHAW, 2007, p. 15). 164 Hamas e Jihad Islâmica têm nos atentados suicidas uma resposta militar ao que chamam “provocações israelenses”. Há clara correlação entre o processo de paz e os ciclos de ataques suicidas realizados com o fim de impedir o progresso dos acordos (HASSAN, 2014). 222 Quem primeiramente propôs o uso de homens-bomba nas operações militares do Hamas foi o estudante de engenharia Yahya Ayyash, da Cisjordânia. “O falecido primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin apelidou Ayyash de ‘Engenheiro’, e este se tornou o seu apelido nas ruas palestinas” (HASSAN, 2014). “De acordo com uma fonte do Hamas”, Ayyash pretendia elevar o custo em vidas humanas para a ocupação israelense. Segundo esta fonte, ele teria dito: “Nós pagamos um preço alto quando usamos apenas estilingues e pedras. Precisamos exercer mais pressão, fazer o custo da ocupação muito mais caro em vidas humanas” (Ibidem). O assassinato de Ayyash ocorreu em janeiro de 1996 e acredita-se ter sido provocado pelas forças de segurança israelenses. Desde então, não há falta de recrutas voluntários para o martírio. “Nosso maior problema é haver hordas de jovens que batem em nossas portas clamando para serem enviados [...] é difícil escolher apenas alguns”, disse um líder do Hamas (HASSAN, 2014). “Aqueles a quem os afastamos, voltam e nos incomodam, implorando para serem aceitos”. Os responsáveis pelo preparo dos jovens dizem concentrar a atenção dos voluntários “em estar na presença de Deus, em reunião do profeta Maomé, em interceder por seus entes queridos, para que eles também possam ser salvos das agonias do inferno”. Mais que isso, também “nas huris e na luta contra a ocupação israelense para que sejam removidos da herança islâmica que é a Palestina” (Ibidem). 222 Antes de 11 de setembro de grupos fundamentalistas islâmicos haviam patrocinado atentados humanos não só na Cisjordânia, a Faixa de Gaza, e Israel, mas também no Afeganistão, Argélia, Argentina, na Chechênia, na Croácia, na Caxemira, no Quênia, Kuwait, Líbano, Paquistão, Panamá, Tadjiquistão, Tanzânia e Iêmen. Os alvos vão desde pessoas comuns a líderes mundiais, incluindo o Papa, que era para ter sido assassinado em Manila em 1995. Vestido como um sacerdote, o assassino provavelmente planejava detonar a si mesmo quando beijou o anel do Papa (HASSAN, 2014). 165 Outra constatação de Hassan é que às vésperas da operação, “exercícios espirituais [são] intensificados, incluindo orações e recitações do Corão” (HASSAM, 2014). Normalmente, o treinador incentiva o candidato a ler seis capítulos específicos do Corão: Baqara, Al Imran, Anfal, Tawba, Rahman e Asr, que apresentam temas como jihad, o nascimento da nação do Islã, a guerra, os favores de Deus e a importância da fé. Palestras religiosas duram de duas a quatro horas por dia (Ibidem, ênfases acrescentadas). Os voluntários suicidas do Hamas estavam sendo selecionados apenas às vésperas da sua execução. Como parte da preparação, “eles seriam levados para um cemitério, ficariam entre as sepulturas por algumas horas vestindo uma túnica branca que geralmente envolve o cadáver de muçulmanos a fim de sentir o sabor da morte com antecedência” (CHEN, 2012, p. 109). O marketing também faz parte do ritual, pois a divulgação de detalhes da operação pode motivar novos voluntários. Isso inclui a redação de “uma declaração de sua vontade” pelo candidato, gravações em fita cassete ou em vídeo e às vezes os três recursos. O cenário da gravação dos vídeos traz ao fundo “a bandeira e slogans da organização patrocinadora, mostram o mártir vivo recitando o Corão, posando com armas e bombas, exortando seus companheiros a seguirem o seu exemplo e exaltando as virtudes da jihad” (HASSAN, 2014). “Pouco antes de o homem-bomba sair em sua jornada final, ele executa uma ablução ritual, coloca roupas limpas e tenta assistir pelo menos uma oração comunitária em uma mesquita”. Ele reza um texto específico “que é costume antes da batalha e pede a Deus para perdoar seus pecados e para abençoar a sua missão”. Então “ele coloca um Corão no bolso do peito esquerdo, acima do coração, amarra os explosivos ao redor da cintura ou toma uma mala ou bolsa contendo a bomba”. O mentor e responsável por planejar a ação lhe dá adeus com as palavras “Que Deus esteja com você, que Deus dêlhe sucesso para que você alcance o Paraíso”. O futuro mártir responde: “Inshallah, nós nos encontraremos no paraíso” (HASSAN, 2014). Horas mais 166 tarde, quando apertar o detonador dos explosivos, ele dirá: “Allahu akbar”, que quer dizer “Allah é grande. Todo louvor a Ele” (Ibidem). A comunidade e a família do combatente, ao tomar conhecimento do que seu filho fez, comemorará como se fosse o nascimento de uma nova vida ou um casamento, cantando um novo gênero popular conhecido por “canções de vingança”. Centenas de convidados se reunirão em sua casa para parabenizálos; o “status” da família será elevado e uma quantia em dinheiro será destinada a eles. “Muitas vezes a mãe vai uivar de alegria sobre a honra que Deus concedeu a sua família” (HASSAN, 2014). 3.4.1 Mais entrevistas No escritório de contraterrorismo do Ministério da Defesa em Tal Aviv, Stern foi apresentada a um especialista em Hamas, cujo nome ela não menciona. Ele obteve autorização, em 1996, para fazer buscas nas Escolas Islâmicas de Ramallah depois dos ataques de Ashqelon e relata o que viu: Todas as paredes estavam cobertas com pôsteres sobre a jihad. Encontramos um vídeo de crianças de 6 anos marchando e cantando: “Oh, meu Deus, leve minha vida. Eu vou ser um shaheed’. Que podíamos fazer? Fechar a escola? Isso seria um desastre. Não podemos dar dinheiro à AP para melhorar as escolas, por eles serem corruptos. Não podemos fechar as organizações de caridade, pois isso seria contraproducente – só aumentaria o apoio ao Hamas (STERN, 2004, p. 54). Roni Shaked, especialista israelense em antiterrorismo, que serviu no Shin Bet, 223 “disse que é impossível promover um suicida com a idade de 22 anos”. É no jardim de infância que a criança começa a ser exposta a propaganda do martírio e, então, quando chega aos 22 anos de idade, olhará para a sua vida e desejará ser sacrificado. O apelo ao martírio “pode ser visto 223 O Shin Bet, abreviação de duas letras do alfabeto hebraico, é a agência de segurança de Israel. Em inglês a sigla é ISA, Israel Security Agency. 167 em tudo o que o Hamas gerencia: creches e escolas, onde se planta sementes de devoção em seus corações” (CHEN, 2012, p. 109). Falando do treinamento dado aos futuros mártires, ela destaca a lavagem cerebral que move o “moço, muitas vezes adolescente, mentalmente imaturo” a ver o inimigo como “menos que humano”, estratégia já destacada por Fanon. “Terroristas empregam também essa técnica, em parte se referindo ao inimigo como sub-humano [e] se referem aos judeus como “vírus destruidor”.” (STERN, 2004, p. 15). 224 Stern entrevistou o doutor Abdel Aziz al-Rantissi, porta voz do Hamas em Gaza. Ele é pediatra em seu território, e a despeito disso, foi interrogado sobre não se incomodar por ver o Hamas matar crianças israelenses. Ele não gosta da pergunta e responde que o Islã não aprova a matança infantil nem de mulheres, só de combatentes. “Quando crianças são mortas, é por danos colaterais”, esquiva-se, usando a mesma retórica de norte-americanos e israelenses em situação similar (STERN, 2004, p. 51). Mas estava blefando e não sustentou a afirmação inicial. Todo israelense é um combatente, porque todos participam do Exército. Todos são filhos daqueles que nos desalojaram de nossa terra natal. Se o judeu considera Israel sua terra por ter sido expulso dois mil anos atrás, nós usaremos a mesma lógica: fomos expulsos há meio século. A terra é nossa (STERN, 2004, p. 51). 224 O aspecto tático do treinamento promovido por Osama bin Laden nos acampamentos em Kandahar a líderes de outros grupos radicais, incluindo o Hamas e a Jihad Islâmica Palestina, assim como organizações extremistas da Argélia, do Paquistão e da Tunísia para combate incluía aulas sobre “topografia avançada, emboscadas, táticas militares, formação para combate, trincheiras [...] como matar com pistola e fuzil e como atirar de motocicletas e carros em movimento”. O treinamento para ações civis incluía “terrorismo, falsificação de documentos e passaportes, venenos, explosões de minas e um curso de espionagem que ensina os recrutas a driblar a suspeita policial (STERN, 2004, pp. 225,231). 168 É o mesmo argumento usado por Abu Shanab, 225 para quem “não há civis em Israel, porque todo cidadão é obrigado a servir ao exército [...] Estamos em guerra com Israel. Os americanos ajudam Israel” (STERN, 2004, p. 36). Exagerando nos saldo de mortos, o doutor Rantissi debita da conta da Primeira Intifada a morte de mais de duas mil pessoas pelos judeus, sendo a grande maioria de crianças 226 (Ibidem). Mas a narrativa dos fatos propriamente ditos parece não fazer mais sentido, depois de décadas de conflito. Shaykh Qardawi, que emergiu da Irmadade Muçulmana egípcia e desfruta “status” de estrela por conta de sua pregação semanal no canal de TV da al-Jazeera, ganhou apoio ao transferir o crédito de “mártir” para os suicidas que estavam lutando “uma jihad legítima” na Palestina. Considerando a ocupação de Israel ilegal por ocupar “uma parte da terra do Islã”, ficaram justificados todos os meios para expulsá-los. E por quê? Baseando-se “no pretexto que, na sociedade israelense, não havia civis, pois todos, incluindo as mulheres, usavam uniforme militar” (KEPEL, 2003, pp. 107,108). É o que afirma Stern: “Eu ouço somente meias-verdades em Gaza, mas a verdade não é o que conta para terroristas e aqueles que vêm apoiá-los. É percepção e dor e não a verdade, que leva ao terrorismo” (STERN, 2004, p. 53). “Palestinos que moravam em Gaza durante a primeira Intifada falam da pressão social em favor da adesão à causa, mesmo para jovens que não 225 Líder da ala política do Hamas e presidente da Sociedade de engenheiros de Gaza. Na mesma entrevista ele dá apoio a minha hipótese de como o muçulmano vê com maus olhos a globalização: “Globalização é apenas mais um sistema de colonização. É a tentativa dos Estados Unidos de dominar o resto do mundo pela economia em vez de militarmente” (STERN, 2004, p. 36). Outro exemplo dessa relação está na seguinte declaração: “O Hamas, assim como os outros principais movimentos islâmicos, dá boas-vindas ao que ele vê como avanços “científicos neutros” do Ocidente e não enfrenta qualquer problema de princípios em tomá-los emprestados ou empregá-los. Entretanto, recusa-se a incentivar o que considera a “moralidade materialista” da modernidade ocidental e a falta de espiritualidade: a marginalização do divino e a secularização da humanidade” (HROUB, 2009, p. 147; ver também CRENSHAW, 2007, p. 31). 226 Na mesma página, a nota 69 diz: “Segundo a Human Rights Watch, 670 palestinos foram mortos nos primeiros dois anos e meio da Primeira Intifada – o período mais intenso do levante [...] o número de baixas fatais palestinas alcançava 762 no final de 1990 e 1124 em 13 de setembro de 1993, data oficial do término da Primeira Intifada”. 169 moravam nos acampamentos” (Ibidem, p. 42). E se obtêm sucesso em sua abordagem é porque “conseguem convencer seus seguidores de que Islã é o que eles pregam, mesmo que estejam lendo textos verdadeiros de forma tendenciosa” (Ibidem). Por isso, “todo terrorista religioso se envolve com hermenêutica (interpretação de textos)”, com o diferencial que terroristas islamistas atraem mais seguidores pelo emprego do que Stern chama de “instrumentos de organização” (STERN, 2004, p. 42), que em parte são as recompensas, a promoção social da própria família que agora deu ao Islã um herói, emprego, assistencialismo e a possibilidade de ascensão social (Ibidem, pp. 4,38,45,54,224). Só Saddam Hussein oferecia às famílias dos mártires palestinos a soma de US$ 10.000 a US$ 25.000 (STERN, 2004, p. 146). Falando da devoção religiosa como motivação para o martírio, Chen (2012, p. 112) nos diz que “nos documentos da Segunda Intifada, o Hamas apresenta o Paraíso não como uma recompensa necessária por um ato de autoimolação, mas como um fim em si mesmo”. No primeiro estágio de sua atuação, o Movimento “raramente” recorria “a fontes religiosas islâmicas”, diferentemente dos documentos da segunda fase que “progressivamente tecem em suas narrativas versos corânicos e mais passagens da tradição islâmica (hadith) referentes aos mártires, martírio, e Jihad”. Ele ilustra o que está afirmando ao citar como exemplo, os textos do Corão 2:154; 3:169; 9:14; 9:24. Outro líder do Hamas, o xeque Younis a-Astal, interpreta como desejável a pobreza do muçulmano, a fim de que sua alma permaneça viva. “O Islã nos diferencia, porque prepara as pessoas para morrerem por Alá. Eles estão sempre prontos a morrer por Alá” (STERN, 2004, p. 34). Stern interpreta e amplia o sentido de pobreza como “desesperança, privação, inveja e humilhação”, sinalizadores para fazer “morte e paraíso parecerem mais atraentes [de modo que] todo bom muçulmano compreende que é melhor morrer lutando do que viver sem esperança” (Ibidem). 170 3.5 O Hamas na fase e na função política “O Hamas e outros grupos terroristas [...] usam religião para justificar aspirações de poder político para recuperar territórios palestinos ocupados por Israel” (STERN, 2004, p.29). 227 O fato de fazer resistência à ocupação israelense, em si, já toca o sentimento religioso do povo palestino muçulmano que, como vimos, tem fortes ligações com a terra. Mesmo não sendo religiosos, outros grupos souberam usar o sentimento popular a seu favor. 228 A cada dia sangrento, um lacrimoso Arafat aparecia diante das câmeras dos noticiários ocidentais torcendo as mãos e negando que incitasse a violência. Em vez disso, com um dos dedos ele apontava para meu pai, para Marwan Barghouti e os refugiados. Ele garantia ao mundo que estava fazendo todo o possível para pôr fim ao levante. Com o outro dedo, porém, o tempo todo ele apertava bem firme o gatilho (YOUSEF, 2010, pp. 153,154). Na sua gênese, o Movimento não pensava em termos políticos mais abrangentes, com organização formal, plataforma política e responsabilidade diante de interlocutores internacionais. Nem mesmo havia consenso entre os pares no mundo árabe, em relação ao sofrimento daquele povo. Se o Egito da Irmandade preocupava-se com os palestinos, bin Laden falou em “mudança da missão [...] e da inclusão da Palestina nos interesses” somente no que Stern chamou de “sua segunda convocação”, por meio de um fatwa em 1996 – nove anos após a criação do Hamas, 48 anos depois da criação do Estado de Israel (STERN, 2004, p. 238). Analistas acreditam que a AP tem interesse em manter os palestinos nos campos de refugiados, sem qualquer direito, sem recursos, 227 Stern registra: “O Hamas considera território palestino todo o atual Israel (estatuto do Hamas, cap. 2, art. 9). Para uma tradução em ingles, ver Muhammad Maqdsi, “Charter of the Islamic Resistance Movement (Hamas) of Palestine”, Journal of Palestine Studies, 22.4 (Summer 1993), pp. 122-34”. 228 Considerando a existência de outras minorias que não compartilham do anseio de mesma natureza, como cristãos e os próprios secularistas. 171 sem respostas, porque, assim, os recursos financeiros continuam irrigando suas contas bancárias e a atividade encontra razão de ser. O Hamas triunfou nas eleições legislativas ocorridas em 25 de janeiro de 2006. O seu lema fazia do Hamas o “Partido da Mudança e da Reforma”, “expressão criada para manifestar-se em comícios, obteve 74 dos 132 assentos no Conselho Legislativo Palestino, bem mais que os 45 obtidos pelo Fatah” (ALVARIÑO, 2007, pp. 189-190). O Hamas não estava preparado para a vida política como veio a enfrentar. “O Hamas simplesmente não tinha ideia de como funcionava o jogo do governo” (YOUSEF, 2010, p. 249). Que havia interesses pelo poder político, não é preciso discutir, mas nem todos compartilhavam do mesmo alvo. Um exemplo é encontrado no pai de Yousef, o xeque Hassan Yousef , “muito mais interessado no Deus do alcorão do que na política”. Segundo ele, “Alá havia nos dado a responsabilidade de erradicar os judeus, e meu pai não questionava isso” (Ibidem, p. 78). 229 Como os objetivos declarados do partido dominante, o Fatah, e o partido em ascensão, o Hamas, eram os mesmos, era desnecessário chamar a atenção dos eleitores para questões óbvias e os organizadores da campanha “se concentraram em apresentar um programa político alternativo, realista e viável para os problemas políticos e sociais que afligem a população palestina e denunciar a ineficiência e a corrupção do governo do partido Fatah” (KALOUT, 2006, pp. 8-10). O Hamas, no que se refere à política islâmica e a suas diversas abordagens da política ... apresentou um caso contemporâneo singular de um movimento islâmico que se mostrou engajado na luta pela libertação contra uma ocupação estrangeira. Movimentos islâmicos têm sido motivados por inúmeras razões, a grande maioria das quais teve seu enfoque nos regimes corruptos de seus próprios países (HROUB, 2009, p. 17). Assim, “a campanha do Hamas não se pautou em questões de guerra e paz com o Estado de Israel. No transcurso da campanha, o Movimento Hamas 229 Chamo a atenção para esta expressão “erradicar os judeus”. Voltarei a ela mais à frente quando tratar do conteúdo da Carta do Hamas. 172 não mencionou a destruição total do Estado Hebreu” (KALOUT, 2006, p. 8). Kalout enumera seis pontos que considera essenciais na condução do Hamas ao poder, em detrimento do Fatah, que, há quarenta anos, dominava o cenário político na Palestina: a) a saída de Arafat de cena; b) a divisão do Partido Fatah em diversas facções; c) a incompetência administrativa do governo Ahmed Qorei; d) as falhas da ANP de promover reformas internas amplas; e) as dificuldades para eliminar a corrupção, o clientelismo e o autoritarismo; f) a inviabilidade da promoção de assistência social a contento para a humilhada população palestina (KALOUT, 2006, p. 8). A questão sobre o comportamento e o novo papel político do Hamas pode ser mais bem respondida hoje do que em 2006, quando subiu ao poder. Mas é sabido que membros do Hamas “ficaram insatisfeitos com os cessarfogo ou cessações de hostilidades” do Movimento contra Israel e esses membros saíram para se juntar aos movimentos salafi-jihadi, expressão que “as pessoas das ruas da Faixa de Gaza usam [numa] referência comum para todos esses movimentos [...] ‘Jaljalat’, como no estrondo ruidoso do trovão” (ABU-RABI, 2011, p. 129). Mas não aprofundarei os comentários sobre questões políticas posteriores a eleição, pois não quero me distanciar da proposta da pesquisa e por isso passarei às observações de cunho religioso tecidas sobre o principal documento do Movimento. 3.6 O Estatuto do Hamas: Corão, violência e os novos tempos Não são poucos os argumentos que defendem a legitimidade palestina de lutar por seu direito à terra, com autodeterminação. Concordo em que os palestinos não podem ser responsabilizados pelos danos que os judeus sofreram na Europa, nem por qualquer projeto sionista, independentemente de como tenha sido implantado. O Islã não é uma religião com vocação política, nem um imenso partido político com simpatia por religião. No Islã, ambos os interesse caminham de 173 mãos dadas e durante a história serviram-se mutuamente. Neste caso estamos falando da sharia, a lei islâmica que rege a vida de todo muçulmano fiel. Não é possível, neste trabalho, aprofundar explicações detalhadas sobre as diferentes escolas de interpretação e de composição da sharia, mais do que foi feito. Todavia, penso ser desejável registrar alguns apontamentos sobre o pensamento e a visão do assunto por quem esteve intestinamente envolvido no Hamas. Refiro-me a Mustafa Abu Sway. Abu Sway discute a relação entre o sionismo e a narrativa islâmica na ótica da sharia, considerando o longo período entre Basileia 230 e Oslo. 231 Nesta ótica, a Terra Santa é considerada waqf, um dote ou dotação, para usufruto das gerações presentes e futuras do povo muçulmano. “É por definição uma propriedade que pertence a Deus até o Dia do Juízo” (ABU-RABI, 2011, p. 134). Em defesa dessa posição e do próprio conceito, ele evoca o Corão 5:20-1 e a concordância do artigo 11 do Decreto do Hamas. 232 Embora a Palestina não seja um estado islâmico na melhor acepção do termo, é o Islã que predomina em seus territórios, o que aquece os ânimos do povo e os enche de segurança e esperança, já que a literatura e o discurso islâmicos apoiam a causa tal como é defendida pela resistência do Hamas (Ibidem, pp. 132,134). Abu Sway acredita que os mesmos discursos e a mesma literatura que reafirma essa posição “contribuem para a psique islamista que rejeita Oslo”, uma vez que os acordos são contrários ao que prevê a waqf, ou seja, que as terras passarão “para o controle de uma entidade não muçulmana, uma entidade que tentou ilegalmente alterar sua situação” (ABU-RABI, 2011, p. 134; FLINT, 2009, p. 309), portanto, é dever do povo lutar contra esse pecado. Ele 230 Por Basileira (Suíça), Abu Sway está considerando a cidade onde, em 1897, Theodor Herzl organizou o primeiro congresso sionista. As terras que Israel ocuparia eram parte do estado islâmico turco-otomano (ainda não estavam sob o mandato Britânico, que viria 15 anos depois, com o fim da Primeira Guerra). Herzl, então, foi ao califa da Turquia e ofereceu dinheiro para ajudar com problemas financeiros em troca da permissão para a imigração do povo judeu. O califa negou e Herzl procurou outro caminho. 231 O Acordo de Oslo, assinado em 1993, pôs fim aos conflitos da Primeira Intifada, iniciada seis anos antes, em 9 de dezembro de 1987. 232 O artigo diz: “O Movimento da Resistência Islâmica acredita que a terra da Palestina é uma dotação [waqf] islâmica para as gerações muçulmanas até o Dia do Juízo” (ABU-RABI, 2011, p. 134). 174 interpreta a punição divina contra “os judeus [que] se recusaram a adentrar a terra porque isso significava que eles teriam de lutar contra o povo que vivia nela, que era conhecido por sua grande força” (Ibidem, p. 133), e o faz como interpretação dos versos 5.20,21,26. Assim, é a obediência, “submissão à vontade de Deus, e não códigos genéticos específicos, que determinou sua relação com a terra” (Ibidem). Assim, os palestinos muçulmanos e não os judeus seriam os legítimos herdeiros da terra, e isso com base no Corão, na submissão e disposição em lutar pela terra, waqf, dotação. “A Terra Santa, ou qualquer terra, é um veículo por meio do qual alguém cumpre o pacto com Deus” (Id.). Abu Sway também apela para a história contada na sura da ascensão, Al-Isra, “considerada por todos os eruditos muçulmanos por estabelecer o caráter islâmico da Terra Santa antes mesmo da chegada histórica dos muçulmanos durante a época do segundo califa, Omar Ibn al-Khattab, em 638 d.C.” (ABU-RABI, 2011, pp. 133,134). Além do Corão, Sway trata da situação legal da Terra Santa na shari’ah. A citação é longa, mas significativa. Por ela, pode-se ver a impossibilidade de uma solução duradoura de Dois Estados: Depois de assinar um acordo com o bispo Sofrônio, em Jerusalém, Omar Ibn al-Khattab se recusou a distribuir a terra entre o exército muçulmano e declarou-a uma dotação (waqf) islâmica para beneficio das gerações futuras, permitindo às pessoas usá-la sem possuí-la. A categoria da waqf na lei islâmica é por definição uma propriedade que pertence a Deus até o Dia do Juízo. [...] Em concordância com esse conceito, o artigo 11 do decreto do Hamas diz: “O Movimento da Resistência Islâmica acredita que a terra da Palestina é uma dotação [waqf] islâmica para as gerações muçulmanas até o Dia do Juízo”. A literatura e o discurso islâmicos, de modo semelhante, são cheios de referencias à Palestina como uma dotação ou bem de custódia islâmico. Essas referências contribuem para a psique islamita que rejeita Oslo, porque os acordos significam que a vasta maioria dessa waqf passará, ou já passou, para o controle de uma entidade não muçulmana, 175 uma entidade que tentou ilegalmente alterar sua situação (ABU-RABI, 2011, p. 134; a terceira ênfase foi acrescentada). Essa posição deve alimentar os sentimentos de Al-Faruqi 233 quando diz que “o Islã ainda condenaria um programa sionista cujo objetivo não fosse a Palestina, mas uma parte não muçulmana do mundo”. Mais ainda: “o Islã condenaria um Estado sionista mesmo que ele fosse estabelecido em uma ilha isolada ou no lado escuro da Lua” (ABU-RABI, 2011, p. 116). “No pensamento político islâmico, a ideia dominante é de que os tratados com o inimigo podem ser realizados se forem temporários” (ABURABI, 2011, p. 135). Sendo o Hamas um movimento religioso, também, a não ser que crie um mecanismo de enfraquecimento dos sentimentos e convicções dessa natureza (religiosa), terá que esbarrar, vez ou outra, no código legal do Islã que é a sharia. A sharia dá espaço para uma trégua temporária ou um cessar-fogo, mas essa decisão é vista como um paliativo até que a questão (ou o conflito) possa ser retomada com vantagem para a causa islâmica. Nas palavras de Abu Sway, “a trégua [deve ser] do interesse da comunidade muçulmana” (Ibidem). E ele toma como exemplo dentro da história do Islã um acordo assinado pelo Profeta com não-muçulmanos de sua tribo Quraish e o acordo que chama de o “mais relevante para o conflito na Palestina”, que foi assinado por Salah al-Din al-Ayyubi com os Cruzados em 1948. 234 Ambos os tratados foram temporários (ABU-RABI, 2011, p. 135). As tréguas têm ocorrido com períodos de retorno ao conflito, uma vez que as negociações não avançam para o rumo desejado, que são o retorno aos limites das fronteiras de 1967, libertação de mais prisioneiros, permissão e acesso para que os refugiados retornem a seus lares e sejam indenizados. 233 Ismai’l Raji al-Faruqi (1921-1986), proeminente islamita palestino-americano, foi professor na Universidade de Temple, Filadélfia e na Universidade Al-Azhar, no Cairo. Foi reconhecido por seus pares como uma autoridade sobre o Islã e a religião comparada. Escreveu sobre nacionalismo árabe, o movimento e o monoteísmo islâmico e a Palestina. 234 De fato o autor registra o ano de “1948” e também registra “os cruzados”. Ou houve um erro na datação, caso se refira a Saladino (1139-1193), ou o autor está chamando de cruzado a algum outro grupo invasor, talvez os próprios judeus. O acordo em questão foi assinado em Ramlah, próximo de Lyd, uma cidade costeira da Palestina. 176 Sendo temporários os acordos feitos até aqui, o conflito sempre estará na agenda. “O Hamas enxerga a criação de um mini-Estado palestino na Cisjordânia e na Faixa de Gaza como uma solução provisória” (ABU-RABI, 2011, p. 135, ênfase acrescentada). Na ocasião das eleições de 2006, mais especificamente em 27 de junho daquele ano, Hamas e Fatah adotaram conjuntamente o chamado “Documento dos Prisioneiros” 235 (ABU-RABI, 2011, p. 137). O Documento dá orientações para a “criação de um Estado palestino dentro das fronteiras anteriores a 1967 236 ao lado de Israel, enquanto afirma o direito dos refugiados palestinos de retornarem a Israel propriamente dito” (Ibidem). Abu Sway considera o documento um importante avanço na maneira de o Hamas fazer política, já que o Documento se distancia da Carta ou Constituição do Hamas, que, por seu conteúdo, sempre imprimiu no Hamas e nos palestinos a imagem de terroristas. Avi Pazner, o porta-voz israelense, disse sobre a Constituição: “É claro que não poderemos negociar com uma organização em cuja carta de princípios está mencionada a destruição de Israel” (FLINT, 2009, p. 282). Os trechos que esta pesquisa identificou como relevantes estão registrados no ANEXO 1. 237 Parafraseando o título de artigo de Bernard Lewis, a raiz da raiva dos palestinos muçulmanos escorre pelo texto, sempre amparado com boas doses de textos do Corão, do qual não se distanciam em momento algum. Nada do que pode parecer estranho a uma mentalidade “ocidental” (ainda que não concorde plenamente com este termo) escapa a uma justificativa extraída do texto sagrado e, quando possível, é feita a adição 235 Flint menciona o que chama de Documento de Reconciliação Nacional, elaborado na prisão de Hadarim por presos palestinos líderes de cinco facções. A iniciativa foi de Marwan Barghouri, principal líder do Fatah, Abdel Halek Natsche do Hamas e mais três delas: Frente Popular para a Libertação da Palestina, Frente Democrática para a Libertação da Palestina e Jihad Islâmico (FLINT, 2009, p. 307). 236 237 As chamadas “fronteiras anteriores a 1967” são referência a Guerra de 1967 ou Dos Seis Dias. Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/documentos/integra-do-estatuto-do- hamas/ no dia 05/06/2009. Sob o título de Íntegra do Estatuto do Hamas (traduzido pela Organização Sionista Unificada do Brasil), adverte que esta é a tradução literal do Estatuto (Carta) de fundação Hamas, tornada pública em 1988 e amplamente divulgada pelos sites palestinos oficiais. Esta tradução foi realizada a partir do original em árabe e não de traduções para o inglês disponível em http://www.islamonline.net/Arabic/doc/2004/03/article11.SHTML 177 de um hadith, um dito do Profeta ou de seus companheiros. É difícil dissociar do Hamas a afirmação de que a violência praticada pelo grupo não está ancorada no texto do Corão, ainda que a ocupação israelense seja ilegal (de que não discordo). O que não se sustenta diante da pesquisa é atribuir exclusivamente à ocupação os revides “legítimos” por parte do Movimento. Abu Sway menciona Mahmoud Al-Ramahi, um legislador do Hamas, para distanciar o novo Hamas eleito, do conteúdo da Carta de 1988 dizendo que “o decreto do Hamas foi escrito de modo apressado e que certos aspectos dele poderiam ser modificados” (ABU-RABI, 2011, p. 137). 238 Para Kalout, a menção à destruição do Estado de Israel no Estatuto do Movimento Hamas não passa de retórica “e as potências ocidentais, assim como Israel, sabem perfeitamente disso” (KALOUT, 2006, p. 69). Para ele, o Hamas deve contar com pedras, paus e homens-bomba, pois é o que existe em seu paiol e eles não são “páreo para o terceiro maior arsenal nuclear do planeta”. Declarações inflamadas como essas já não compõem o repertório do programa, nem do discurso do Movimento, após a sua eleição, e não demorará para que o Estatuto seja revisto (Ibidem). Kalout tem razão em termos, pois o Hamas tem recebido armas e munições do Irã e, só em dezembro de 2012, treze mil soldados foram alistados no seu exército. 239 Mas para que isso ocorra será preciso haver mudanças profundas na mentalidade do grupo. Yousef diz que na “transição do Hamas para uma organização terrorista” uma herança do Islã havia impregnado a motivação dos guerreiros, pois “os fedayeen tinham toda a força do Alcorão como apoio” (YOUSEF, 2010, p. 73). E “mesmo aqueles que reconheciam a impossibilidade da missão do Hamas” no que diz respeito a sua inferioridade frente ao poderio bélico de Israel “se agarravam à crença de que Alá um dia derrotaria Israel, ainda que tivesse de fazê-lo de maneira sobrenatural” (Ibidem, p. 74). O racismo “de alguns líderes” do Movimento não sai com acordos de paz e até mesmo os mais moderados estavam “muito mais interessado no Deus do alcorão do que na política [já que] Alá havia nos dado a responsabilidade de 238 239 Hroub fala da Carta de 1988 e de um “Memorando Introdutório de 1993” (p. 188). “Tensão entre palestinos e israelenses”, acessado em 14 de janeiro de 2014 no noticias.uol.com.br fala do alistamento e mostra fotos do treinamento na Faixa de Gaza. 178 erradicar os judeus” (Ibidem, p. 78) e era isso o que contava, mesmo para aqueles que não tinham nada contra seus vizinhos. E, finalmente, quem nos traz uma teologia mais aproximada de toda a questão em si é Hussain Fadlallah. 240 Em seu texto “O Islã e a lógica do Poder” ele faz a distinção entre poder e fraqueza, advogando que o discurso islâmico sobre o poder precisa ser transformado em ação, “um movimento educacional abrangente”, ao ponto de exercer influência em vários níveis da sociedade (ABU-RABI, 2011, p. 134). É uma nova retórica para a volta às fontes, requentada no discurso ouvido após a Guerra dos Seis Dias, de que os países árabes haviam sido derrotados porque seus governos eram infiéis. Era preciso humilhar-se a Allah e observar os preceitos da religião, para que a vitória possa ser vislumbrada. “A razão para a fraqueza dos muçulmanos em nossa era é a divisão do mundo muçulmano em pequenos Estados independentes em termos de suas economias, políticas, cultura, paz e guerra” (ABU-RABI, 2011, p. 103). Fadlallah constrói seu argumento de fora para dentro, ou seja, começa reunindo conceitos universais como “fortalecer nossa consciência”, “avaliar a natureza regional das diferenças” e “compreender o Islã em seu conceito unificador geral” e aos poucos passa por noções de “guerra emancipatória” (ABU-RABI, 2011, p. 104), aproximando muito do que vimos em Sorel, no Capítulo 1. Só então, Fadlallah assenta as bases fundamentais do seu pensamento, as quais não são firmadas em outro lugar, senão no Corão. O alcorão começa a mobilizar ativamente os oprimidos a partir do interior, por muitos canais que se concentram em esvaziar as almas de qualquer sentimento de fraqueza, que é a razão de sua obediência a seus opressores. Esse estilo se intensifica em muitos versos, até o ponto em que o alcorão convoca os oprimidos a abandonarem seu senso de inferioridade perante os opressores e a não serem enganados por eles. Pede-se que os oprimidos se comparem aos opressores e cheguem à conclusão de que os arrogantes não possuem nenhum poder 240 Sayyid Muhammad Hussain Fadlallah (n. 1935) é proveniente da uma família libanesa, mas nascido em Najaf, no Iraque. Possui o título de Grande Aiatolá, é um proeminente pensador islamista xiita libanês, considerado o pai espiritual do Hezbollah libanês. 179 esotérico, misterioso ou sobrenatural. Eles são simplesmente seres humanos finitos. Logo, por que submeter-se a eles? (ABU-RABI, 2011, pp. 106,107) Essa literatura de autoajuda árabe lembra bem o conceito de construção do outro, como vimos em Chaui. Mais uma vez é demonstrado como a mecânica de interpretação alhures pode ser forjada com o uso do Corão e aplicado à prática da violência. Fadlallah sabe da desconfiança contra a interpretação e admite que “alguns podem questionar a interpretação anterior dos versos corânicos 241 dizendo que eles combatem a adoração de outros seres que não Deus, e não têm nada a ver com o opressor e o oprimido” (ABURABI, 2011, p. 107). Ele então recorre à acusação dos pagãos – sempre os outros – que são responsáveis pela desgraça no mundo e especialmente no mundo islâmico. “Ao dar-lhes poder para agir com força contra seus opressores, o Alcorão permite que os oprimidos lutem por seu direito de permanecer em sua terra e praticar livremente sua religião” (ABU-RABI, 2011, p. 108), e segue citando o Corão. 242 Em sua defesa, segue costurando argumentos extraídos de versículos que exaltam o orgulho muçulmano, a grandeza de Allah e o erro generalizado, para não dizer imersão no pecado, em que todos, menos os fiéis soldados de Allah estão. O Corão garante tal retórica para estimular a convicção de ser “natural e legitimamente justificável combater e matar os inimigos da liberdade e da vida, pois essa é a maneira realista de construir uma vida e garantir que ela continue com base em uma lei justa” (ABU-RABI, 2011, p. 108). Assim, o Alcorão agita as almas dos fracos e ajuda-os a gerar seu próprio poder para lutar contra seus os opressores, confiando acima de tudo em Deus e em si mesmos. O Alcorão 241 Referindo-se a interpretação de 7:194: “Por certo, os que invocais, além de Allah, são servos como vós. Então, invocai-os! Que eles vos atendam, se sois verídicos”. 242 “Pois se Deus não tivesse capacitado as pessoas a se defenderem umas contra as outras, todos os monastérios e igrejas e sinagogas e mesquita – em [todas as] quais o nome de Deus é louvado em abundância – [já] teriam certamente sido destruídas” [ele cita 22:39-40, que apresentei resumidamente] (ABU-RABI, 2011, p. 108). 180 argumenta que as pessoas fracas têm esse poder, mas ignoram porque são possuídas pelo poder de seus opressores, e isso leva, em última instancia, à sua falha. Notamos que alguns versos corânicos sugerem que a vitória sobre os opressores representa um grande valor islâmico, conforme expressado no seguinte verso: “E que, sempre que a tirania os aflige, se defendam” (42:39). [...] De modo semelhante, muitos outros apontam que os oprimidos não são responsáveis pelo caos que resulta de sua luta contra a opressão, pois a principal responsabilidade recai sobre os opressores, que são a causa de todo o caos (ABU-RABI, 2011, pp. 108,109). No caso, judeus em primeiro lugar e dependendo do país os cristãos também [e mais uma vez cita o texto de 42:41-2.]. “Alá não tinha dificuldades em lidar com assassinatos; na verdade, ele até os encorajava” (YOUSEF, 2012, p. 200). Em outras palavras, é preciso considerar em que nível os acordos de paz podem interferir na consciência do povo, uma vez que é reconhecido que a guerra não ocorre apenas nas escaramuças e nas torturas realizadas nas prisões israelenses. Yousef, direto do centro nervoso do Hamas, admite: “Nossos inimigos são as ideologias, e elas não se importam com incursões e toques de recolher. Não podemos explodi-las com um tanque” (YOUSEF, 2010, p. 261). Hroub, defendendo o Hamas contra acusações feitas pelo teor da Carta, diz que hoje ela está obsoleta. “Ela foi escrita no início de 1998 por um indivíduo e apresentada ao público sem uma apropriada consulta, revisão ou consenso de todo o Hamas, o que fez seus líderes lamentarem” (HROUB, 2009, p. 62). Segundo ele, o seu conteúdo admitidamente antissionista e que reflete “uma visão de mundo ingênua” tem aquele perfil, porque o seu autor era da “velha guarda da Irmandade Muçulmana na Faixa de Gaza”, um indivíduo “completamente à parte do mundo externo” (Ibidem). Que mundo? Eles fazem o seu mundo. Radicais islâmicos consideram o tal “mundo externo” imerso no pecado, haram, e não podem comprometer-se com ele. A visão de mundo desses grupos vem do Corão, isto não está longe de ser notado. “Entretanto” – segue Hroub – 181 o discurso do Hamas se tornou mais elaborado e adaptável às realidades modernas. Suas ideias sobre Israel foram, desse modo, reformuladas dentro dos parâmetros da ocupação/ocupante, com a força motriz da resistência a Israel dirigida contra seus ataques, e não contra a religião (HROUB, 2009, p. 67). Morris (2014, p. 218) mostra que não é bem assim. Citando discurso de Ismail Haniyeh, “primeiro-ministro” do Hamas em Gaza, na ocasião do 25º aniversário do Movimento em dezembro de 2007 (com presença de 250 mil pessoas, diz: “Nós nunca reconheceremos Israel [...] nós nunca vamos desistir de uma polegada da Palestina”. Todos nós desejamos isso: que a religião, qualquer que seja, tenha consciência do seu papel espiritual na vida dos seres humanos, que respeite aqueles que não compartilham dos seus pressupostos e que possa colocar-se acima dos mais elevados valores humanos, considerando as maiores conquistas feitas até hoje, independentemente de quem as tenha trazido à luz. Se aos olhos de pesquisadores os conflitos de fronteira são única a razão da violência do Hamas, há que se reconsiderar essa premissa, pois, internamente, essa não é a única razão para os tais, uma vez que “o povo palestino [é] tão oprimido por seus próprios líderes quanto por Israel” (YOUSEF, 2010, p. 274). Nas palavras de um morador ilustre da região, “a razão do nosso sofrimento não era a ocupação. Nosso problema era muito maior do que exércitos e política” (YOUSEF, 2010, p. 144). CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa foi realizada sobre um campo complexo, “campo minado”. A sensibilidade e numerosas “razões” envolvidas na questão eram conhecidas desde o princípio, mas não considerei que o desafio devesse ser abandonado por causa disso. 182 Penso ter apresentado os resultados da pesquisa ajustados ao referencial teórico e dentro da metodologia proposta. Do modo como apreendi e apliquei a teoria mimética ao estudo da violência do Hamas, considerei o que me pareceu serem os pontos necessários de ambos os lados, a saber: 1. A ocupação israelense com o que de negativo ela provoca na sociedade palestina, independentemente de credo ou coloração política; 2. O histórico de interpretações enviesadas do Corão, conforme o pensamento militante propõe, por outro lado. Entendo que a pesquisa não privilegiou nenhuma das realidades: nem a visão israelense nem a palestina, apresentando, por vezes, autores que se colocam em ambos os lados. Entendo como função do pesquisador buscar a mediação entre pesos equivalentes, a fim de chegar a um consenso ou a um resultado justo, esclarecido e honesto para o seu trabalho. Do mesmo modo, autores com linhas de pensamento distintas foram usados, ora encontrando a visão de um lado e ora de outro. O trabalho de seleção das fontes das declarações procurou privilegiar a hipótese levantada na Introdução, seguindo um roteiro e o recorte proposto e apresentado previamente à banca. Do contrário, a extensão do trabalho não poderia ser medida. Confirmou-se que “havendo suficiente repetição no padrão que aponte para a pergunta de partida, a hipótese se confirmará e a teoria se manterá” (p. 34). E houve. Com isso, a teoria mimética de René Girard pôde ser aplicada ao estudo do conflito israelo-palestino, com atenção ao Hamas e a resposta que o movimento dá “a partir do campo religioso”. Há respostas e motivações sociais, nacionalistas e outras dadas por atores locais; mas primariamente o Hamas assume, como movimento que se autodenomina “islâmico”, uma motivação que emana de matriz religiosa e essa matriz é apoiada (ou modelada) por uma leitura específica do Corão e da tradição do Islã. Essa tradição foi observada no surgimento do Islã no século VII (cfm. Capítulo 2), ainda que não tenha sido (ou não seja) o padrão universalmente aceito pela comunidade de fé. A 183 recorrência a versículos é vastamente demonstrada, 243 ainda que em interpretação enviesada. Embora não tenha sido o mote principal da pesquisa, ocupei-me da apresentação do que o Islã anuncia como sendo tolerável e não tolerável em questões que envolvem o uso da força e da violência (Capítulo 1 mais enfaticamente). Também tomei o cuidado de evitar generalizações sobre a população palestina, que sabemos ser plural em sua composição cultural e religiosa. As respostas dadas pelo povo palestino a ocupação israelense e a outros fatores que geram o empobrecimento e a opressão do povo palestino são, diante do que se pode verificar na pesquisa, legítimas. Elementos nos Capítulos 1 e 3 podem demonstrar isso. Assim, o direito a autodeterminação é necessário e precisa ser atendido a meu ver, embora não haja resposta fácil para a solução da questão. O Hamas, como grupo que luta contra a ocupação do território palestino feita por colonos judeus, age com os recursos e os meios de que dispõe, com os recursos que lhe estão à mão, embora sejam notadas ocorrências que fogem ao eixo central dessa ação de resistência. A situação caótica da sociedade reflete-se na sua própria organização, fazendo com que seja impossível controlar todas as ações havidas e atribuídas ao grupo. Mas isso é detalhe e não deve tirar o foco do montante maior das operações do Movimento. No que toca o tempo presente, a eleição do Movimento com 45% dos votos (HROUB, 2009, p. 115) e o direito a parte dos assentos dentro da Autoridade Palestina, o recorte temporal da pesquisa não contemplou (19862006), portanto não justifica qualquer consideração no momento. Apenas esperamos que a eleição seja positiva para a causa palestina, para a convivência com o vizinho Israel e para a região. Quanto ao Islã, propriamente dito, penso não haver necessidade de tecer considerações, haja vista que a ocupação da pesquisa se deu sobre um segmento minoritário dentro da ampla população aderente a esta fé. Vale, portanto, o dizer de Demant (2004, p. 365) na penúltima página de seu livro – “com o islã: diálogo”. 243 Vimos os versículos prova nas pp: 47 (nota 58), 129, 165, 169, 174, 175 e outras indiretamente. 184 E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos e os pendores normais da maioria das pessoas. 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Rio de Janeiro: Sextante, 2010. ANEXO 1: Porções do Estatuto do Hamas 244 [foi mantida a grafia original] Israel existirá e continuará existindo até que o Islã o faça desaparecer, como fez desaparecer a todos aqueles que existiram anteriormente a ele. [...] As almas dos combatentes da Jihad encontrarão as almas de todos os guerreiros santos que sacrificaram suas vidas pela terra da Palestina [...] Por este Pacto, o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) mostra a sua cara, apresenta sua identidade [...] porque nossa luta contra os judeus é muito longa e muito séria, e exige todos os esforços sinceros. [...] Art. 3 [...] (Tais muçulmanos) reconhecem seus deveres para consigo mesmos, suas famílias e sua pátria, temendo a Alá em tudo. Eles fizeram levantar a bandeira da jihad diante dos opressores a fim de livrar a terra e os crentes de suas depravações, impurezas e maldades. “Atiramos a verdade contra a falsidade e arrebentamos a cabeça dela e, vedes, ela desaparece.” (Alcorão 21:18). [...] Art. 7 [...] O Movimento de Resistência Islâmica é um elo da corrente da jihad contra a invasão sionista. Acha-se conectado e vinculado ao (corajoso) levante do mártir “Izz Al-Din Al-Kassam e sua irmandade, os combatentes da jihad da Irmandade Muçulmana no ano de 1936. Em seguida está relacionado e conectado a outro elo, a jihad dos palestinos, o empenho e a jihad da Irmandade Muçulmana na guerra de 1948, e às operações da jihad da Irmandade Muçulmana de 1968 em diante. [...] O Profeta [...] disse; “A hora do julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e 244 Disponível em http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/documentos/integra-do-estatuto-do- hamas/ acessado em 05.06.2009. “O Pacto é a constituição política do Hamas e o seu credo. Ele nunca foi substituído ou anulado e, embora recorrentemente pressionado a fazê-lo, o Hamas nunca o alterou ou indicou uma prontidão para alterar qualquer uma das suas disposições” (MORRIS, 2014, p. 192). “No Pacto de 25 páginas, as Cruzadas e os cruzados são mencionados explicitamente 9 vezes; a palavra jihad aparece 11 vezes. Saladino, o guerreiro curdo que conduziu os exércitos muçulmanos na destruição do Reino de Jerusalém, é mencionado 4 vezes” (Ibidem, p. 198). 192 terminem por mata-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: Oh! Muçulmanos, Oh! Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o, exceto se se tratar da árvore Gharkad, porque ela é uma árvore dos judeus.” Art. 11 [...] Qualquer ato que não esteja de acordo com essa Lei Islâmica em relação à Palestina é nulo e revogado.” Essa é a única verdade. Por isso, Louvai o Grande Nome do Senhor.” (Alcorão 56 –95/96). [...] Art. 12 Nacionalismo, segundo o Movimento de Resistência Islâmica, é parte do credo religioso. Não existe nada que fale mais eloquentemente e mais profundamente de nacionalismo do que se segue quando o inimigo usurpa território muçulmano, quando travar a Jihad e confrontar o inimigo se torna um dever pessoal de cada muçulmano, homem e mulher. Uma mulher pode sair para lutar contra o inimigo (mesmo) sem a permissão do marido e um escravo sem a permissão do seu senhor. Não existe nada igual em qualquer outro sistema político – é um fato indiscutível. Enquanto vários outros nacionalismos se baseiam em fatores físicos, humanos e regionais, o nacionalismo do Movimento de Resistência Islâmica é caracterizado por todos os fatores acima e mais – e o mais importante – é caracterizado por motivos divinos que promovem um pacto entre esse nacionalismo, o espírito e a vida, desde que se torna relativo à fonte do espírito e a Ele que dá a vida. (O Movimento de Resistência Islâmica) está levantando a bandeira divina nos céus da pátria, de modo a criar laços indissolúveis entre o firmamento e a terra. “O caminho certo surge claramente do erro; por isso quem renuncia à falsidade e crê em Alá, é como agarrar firmemente um apoio, que nunca se quebra, e Alá tudo ouve e vê.” (Alcorão 2 – 256). [...] Art. 13 As iniciativas, as assim chamadas soluções pacíficas e conferências internacionais para resolver o problema palestino se acham em contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmica, pois ceder uma parte da Palestina é negligenciar parte da fé islâmica. O nacionalismo do Movimento de Resistência Islâmica é parte da fé (islâmica). É à luz desse princípio que seus membros são educados e lutam a jihad (Guerra Santa) a fim de erguer a bandeira de Alá sobre a pátria. “E Alá tem total controle sobre Seus feitos; mas muita gente não sabe.” (Alcorão 12-21) 193 [...] Não há solução para o problema palestino a não ser pela jihad (guerra santa). Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são perda de tempo e uma farsa. O povo palestino é muito importante para que se brinque com seu futuro, seus direitos e seu destino. Como consta do ahadith: “O povo de Al-Sha’m é o açoite (de Alá) na Sua terra. Por meio dele, Ele se vinga de quem Ele quer, dentre os Seus servos. Os hipócritas não podem ser superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.” (registrado por Al-Tabarani, que se acha em linha com Maomé, e por Ahmad (Ibn Hanbal), que se possui uma linha incompleta com Maomé, e que pode ser o registro mais preciso, podendo ser confiáveis, em ambos os casos, a transmissão das palavras do Profeta – Alá, por si, é onisciente). [...] Art. 15 No dia em que o inimigo conquista alguma parte da terra muçulmana, a jihad (guerra santa) passa a ser uma obrigação de cada muçulmano. Diante da ocupação da Palestina pelos judeus é necessário levantar a bandeira da jihad (guerra santa). Isso exige a propagação da consciência islâmica nas massas, localmente (na Palestina), no mundo árabe e no mundo islâmico. É necessário instilar o espírito da jihad (guerra santa) em toda a nação, reunir todas as fileiras dos combatentes da jihad (guerra santa) envolvendo os inimigos. [...] Faz-se (também) necessário introduzir mudanças essenciais nos currículos, a fim de eliminar as influências da invasão intelectual infligida pelos orientalistas e missionários. [...] É necessário colocar nas mentes de todas as gerações de muçulmanos que o problema da Palestina é um problema religioso, e que assim deve ser tratado, pois (a Palestina) contém lugares sagrados islâmicos, a mesquita de Al Aksa, que está inseparavelmente ligada, enquanto durarem o céu e a terra, à sagrada mesquita de Meca, devido á vigem noturna do Profeta (da mesquita de Meca à de Al Aksa), e a sua conseqüente ascensão ao céu. (enfase acrescentada) [...] Art. 22 [...] Não há um fim para dizer tudo sobre o envolvimento do inimigo sionista em guerras localizadas e guerras mundiais. Estiveram por detrás da Primeira Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do Califado Islâmico [...] Estiveram, também, por detrás da Segunda Guerra Mundial[...] Onde há uma guerra no mundo eles se encontram acionando os 194 cordéis por detrás das cortinas. “Quando acendem o fogo da guerra, Alá o extingue. Eles se esforçam para espalhar o mal na terra, mas Alá não ama aqueles que praticam o mal” (Alcorão, 5 – 64). [...] Art. 25 [...] Tudo que se oponha ou contradiz a essa orientação é fabricado pelo inimigo ou por seus lacaios a fim de provocar confusão, dividir as fileiras e provocar distração com assuntos laterais. “Oh! Vós que credes, se um mal intencionado lhe traz informação (sobre alguém), deveis examiná-la cuidadosamente, para não atingir pessoas (inocentes), devido a ignorância, para depois vos arrependerdes.” (Alcorão 49 – 6) [...] Art. 27 [...] A ideologia secularista se acha em total contradição com a ideologia religiosa, e são as idéias que são as bases das posições, condutas e decisões. [...] não podemos eliminar a identidade islâmica da Palestina, que é parte da nossa fé, e quem negligencia essa fé está perdido. “Quem rejeita a religião de Abrahão é alguém que ficou um tolo”. (Alcorão 2-130). [...] Quando a OLP adotar o Islã como seu meio de vida, então seremos as suas tropas e o combustível para o seu fogo que consumirá o inimigo. [...] Art. 28 [...] O sionismo se encontra por detrás de todo tipo de tráfico de drogas e do álcool, para facilitar o seu controle e sua expansão. Exigimos que os países árabes em torno de Israel abram as suas fronteiras aos árabes e muçulmanos combatentes da Jihad, a fim de cumprirem sua parte, juntando suas forças às forças dos seus irmãos – a Irmandade Muçulmana na Palestina. Dos demais países árabes e muçulmanos, exigimos que, no mínimo, facilitem a passagem através de seus territórios dos combatentes da Jihad. [...] Art. 29 [...] de forma que cada cidadão muçulmano seja uma reserva de apoio e reforço para o Movimento, e que disponibilizem profundo apoio estratégico em termos de recursos humanos e materiais e em informação, a qualquer tempo e em qualquer lugar. [...] “Alá disse: ‘EU e Meu Mensageiro acabaremos prevalecendo.’ Alá é forte e todo-poderoso” (Alcorão, 58-21) [...] A jihad não se limita a pegar em armas e combater o inimigo cara a cara, pois palavras eloquentes, escritos que persuadem, livros que efetivamente cumprem com sua finalidade, o apoio e a ajuda – tudo leva a desempenhar a sincera intenção de levantar a bandeira de Alá e faze-la reinar suprema – tudo isso é a jihad em prol de Alá. (O Profeta disse: “Quem prepara um guerreiro 195 com todas as armas para lutar por Alá é (também) um guerreiro, e quem dá apoio à família de um guerreiro (que saiu para combater por Alá) é, também, um guerreiro.” (registrado por Bukhari, Muslim, Abu Da’ud e Tirmidhi na suas coleções de Hadith). [...] Art. 31 O Movimento de Resistência Islâmica é um Movimento humano que respeita os direitos humanos e se acha comprometido com a tolerância islâmica para com os seguidores de outras religiões. [...] Somente sob o manto do Islã é que a salvaguarda e a segurança imperam. A história antiga e a recente dão provas disso. Os seguidores de outras religiões devem parar de competir com o Islã pela soberania nesta região, porque quando eles governam, ocorrem atos de assassinatos, torturas e deportações, e não permitem que outras religiões possam ter seu curso. Tanto o presente como o passado estão cheios de provas disso. Art. 32 [...] Todas as forças e toda capacidade disponível devem ser reunidas para enfrentar os ferozes ataques dos mongóis, nazistas, para impedir que a pátria seja perdida, o povo exilado, o mal espalhado sobre a terra e todos os valores religiosos sejam destruídos. [...] Art. 34 [...] assinalou esse fato em suas nobres palavras com as quais se dirigiu ao exaltado companheiro, Um’adh Jabal, dizendo: “Oh! Um’adh, Alá lhe concederá as Terras de Al-Sha’m 245 após minha morte, que vai de Al-‘Arish 246 ao Eufrates. Seus homens, mulheres e o produto do trabalho de suas mãos ficarão permanentemente nessas terras até o Dia da Ressurreição, para todos aqueles que tenham escolhido viver em alguma parte da planície costeira de Al-Sha’m ou Bayt Al-Makdis (Palestina), que se encontrará em permanente estado de Jihad, até o Dia da Ressurreição.” [...] Somente o ferro pode romper o ferro, e a falsa e fabricada fé dos inimigos somente pode ser vencida pela fé verdadeira do Islã, porque a verdadeira fé religiosa não pode ser atacada senão pela fé religiosa. E a verdade deverá triunfar porque a verdade é mais forte. [...] “Já demos Nossa Palavra para Nossos servos, os mensageiros, e 245 Nos escritos islâmicos medievais, Al-Sha’m se refere, grosseiramente, a toda uma área que corresponde presentemente a Israel, Palestina, Líbano, Jordânia e Síria. 246 Al-‘Arish é a capital de uma província egípcia no Sinai do Norte. 196 que serão ajudados até a vitória e que o Nosso exército acabará triunfando.” (Alcorão, 37: 171–173). ANEXO 2: Símbolos do Hamas O logotipo do Hamas ilustra atitude do grupo no contexto territorial em relação a Israel. No topo aparece um esboço do território de Israel, Gaza e Cisjordânia como uma entidade única coberta de verde, cor adotada pelo Movimento e característica do Islã. No centro está o santuário muçulmano Domo da Rocha, situado em Jerusalém, cercado por bandeiras da Palestina com as frases “Não há Deus senão Alá” e “Maomé é o mensageiro de Alá”. Sob esse conjunto está a palavra “Palestina” e na flâmula a expressão “Movimento de Resistência Islâmica do Hamas”. As espadas são um motivo islâmico comum, representando o poder do Islã e do desejo de espalhar a religião, pela força se necessário. 247 247 http://www.ucg.org/middle-east/telling-symbolism-hamas-logo/ 197 A bandeira do Hamas na cor verde traz a Shahada (do árabe “testemunho”), que é a profissão de fé muçulmana e o primeiro dos cinco pilares do Islamismo (arkan al-Islam). É uma declaração que pode ser dividida em duas partes. 248 Logotipo comemorativo dos 25 anos do Hamas destaca o Domo da Rocha, a totalidade do território do rio Jordão ao mar Mediterrâneo e o míssil Qassam-M75 representando a resistência (ou o desejo de destruição de Israel). 248 http://pt.wikipedia.org/wiki/Chahada 198 O Hamas no Brasil O emblema do Hamas no Brasil (Sociedade Islâmica no Maranhão) 249 é distinto do original palestino e é composto por um livro aberto (referência ao Corão) com o mapa mundi ao centro, mãos que seguram uma metralhadora, símbolo da resistência armada, e outra sustentando um lápis, provável indicação a educação. A Shahada está no alto do símbolo. Mas chama a atenção é que este emblema assemelha-se em suas cores ao emblema (logotipo) do grupo de resistência no Líbano, o Hesbollah (abaixo). A inscrição estilizada principal que compreende a base do logotipo traz a palavra Hezbollah. O texto superior diz “Então, certamente o partido de Allah 249 Disponível em http://islam-maranhao.blogspot.ca/2011/05/pib-partido-islamico-brasileiro.html em 05.03.2014. A pesquisa não contemplou o estudo deste grupo. Pessoalmente não acredito que se trate de uma sucursal do Movimento original; talvez apenas simpatizantes. 199 são os que hão de triunfar”, uma citação do Corão 5:56, enquanto o texto inferior diz “A Resistência Islâmica no Líbano”. 250 250 http://www.crwflags.com/fotw/flags/lb%7Dhezb.html em 02.07.14. 200