Magno Paganelli de Souza

Propaganda
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão
Magno Paganelli de Souza
São Paulo
2014
Magno Paganelli de Souza
A relação entre a violência do Hamas e a interpretação do Corão
Dissertação apresentada ao Programa
de Pós-Graduação da Universidade
Presbiteriana
Mackenzie,
como
requisito para a obtenção do título de
Mestre em Ciências da Religião.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun
São Paulo
2014
P128r Paganelli, Magno
A relação entre a violência do Hamas e a
interpretação do Corão
/ Magno Paganelli de Souza – 2014.
205 f. : il. ; 30 cm
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – Universidade
Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2014.
Orientador: Prof. Dr. Ricardo Bitun
Bibliografia: f. 185-192
1. Corão 2. Terrorismo 3. Hamas 4. Islamismo 5. Violência
I. Título
LC BP161
RESUMO
Neste trabalho, procurarei investigar influências e tendências na
interpretação do Corão sobre o Movimento de Resistência Islâmica, o Hamas,
desde a sua formação, em 1986, até a sua eleição em 2006. Sendo o
movimento denominado “de resistência”, pressupõe a resistência a ações de
ocupação israelenses. Mas o movimento é também de resistência “islâmica”,
incorporando motivações religiosas e respostas de cunho religioso a questões
políticas e sociais. Assim, procuro desdobramentos práticos dessa resistência
as quais tenham caráter violento e sejam inspirados por alguma interpretação
do Corão.
Como referencial teórico, a pesquisa será apoiada na obra de René
Girard, A violência e o sagrado, núcleo da teoria mimética, uma explicação da
violência no comportamento humano e da violência na cultura humana.
Entendo que tal referencial faz importantes considerações para estudos no
campo da violência sem deixar de observar a organização social que a religião
provê em determinadas culturas, como é o caso do nosso objeto de pesquisa.
A metodologia empregada é a revisão bibliográfica de obras, ensaios e
artigos científicos, produzidos por especialistas, no Brasil e fora dele; além de
obras de pensadores de considerável importância dentro do Islã.
PLAVRAS-CHAVE: Corão, violência, terrorismo, Palestina, Hamas,
islamismo.
ABSTRACT
This work will seek to investigate influences and trends in the
interpretation of the Koran that had influenced the Islamic Resistance
Movement, Hamas, of its formation in 1986 until his election in 2006. As the
movement called “resistance” is assumed to be the resistance actions of Israeli
occupation. But the movement is also “Islamic” resistance, incorporating
religious motivations and religious responses to political and social issues.
Thus, we look for practical consequences of this resistance that have violent
nature and are inspired by an interpretation of the Koran.
The theoretical research will be supported in the work of René Girard, A
Violência e o Sagrado core of mimetic theory, an explanation of violence in
human behavior and violence in human culture. I understand that this
framework raises important considerations for studies in the field of violence
that takes into account the social organization that religion provides in certain
cultures, such as the case of our research object .
The methodology is a literature review of articles, essays and scientific
articles produced by experts in Brazil and abroad, as well as works of thinkers
of considerable importance within Islam.
KEY-WORDS: Koran, violence, terrorism, Palestine, Hamas, Islam.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO....................................................................................................5
1. A VIOLÊNCIA..............................................................................................36
1.1 Qual é o nosso cenário?.......................................................................36
1.1.1 A Guerra da Independência........................................................38
1.1.2 A Guerra dos Seis Dias (1967)................................................39
1.1.3 Interlúdio........................................................................................42
1.2 A violência ontem...................................................................................45
1.3 A violência hoje......................................................................................60
1.4 Terrorismo ou pedido de socorro?.........................................................72
1.5 O Islã condena conflitos.........................................................................82
2. O CORÃO E OS PERÍODOS MEQUENSE E MEDINENSE.......................86
2.1 A formação do Alcorão..........................................................................86
2.2 A construção da sociedade islâmica em Medina................................103
2.3 Uma fé, um domínio............................................................................113
2.4 Uma vez dominados bastava avançar?..............................................120
2.5 As releituras da História......................................................................126
2.6 O conceito de Islamuflagem................................................................129
3. O HAMAS: A AÇÃO SOCIAL E A VIOLÊNCIA........................................136
3.1 Leituras do Corão a partir do século XIX.............................................138
3.2 A Irmandade Muçulmana....................................................................142
3.3 Da Irmandade Muçulmana ao Hamas: pensamento e ação social....150
3.4 Mais um lado cruel..............................................................................160
3.4.1 Mais entrevistas...........................................................................167
3.5 O Hamas na fase e na função política................................................171
3.6 O Estatuto do Hamas: Corão, violência e os novos tempos..............173
CONSIDERAÇÕES FINAIS............................................................................182
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS...............................................................185
Anexo 1: Porções do Estatuto do Hamas.......................................................192
Anexo 2: Símbolos do Hamas........................................................................197
Mapa 1: Imagem de satélite do território da Faixa de Gaza...........................153
Quadro 1: Ataques do Hamas de 1990 a 2006..............................................155
Quadro 2: Perfil Sociocultural dos Voluntários ao Martírio.............................163
AGRADECIMENTOS
Se há guerras religiosas e, sendo elas indesejáveis, o mal que nelas
reside não vem de Deus, mas de nossas próprias deficiências. Portanto,
agradeço primeiramente a Deus, a razão e a essência da religião.
Agradeço a meus pais, que desde cedo incutiram em mim a importância
dos estudos e esta pesquisa não é senão reflexo dessa insistência.
Agradeço a minha amada Roseli. Sem ao seu sacrifício, eu não chegaria
até aqui. Incluo aqui o meu filho, o Magninho, um presente de Deus para a
minha vida. Vocês são o meu porto seguro, não me cansarei de repetir isso.
Agradeço aos “Brunelli”, Walter e Marcia, pelo incentivo inicial e apoio
constante, para que eu avançasse neste projeto que agora está concluído.
Quero lembrar, ainda, os amigos que me incentivaram: Prs. Milton
Rodrigues e Sérgio Bezerra. Também ao Dr. Gedeon Alencar, que abriu as
portas da Academia para mim. Vocês foram muito importantes. Obrigado.
Agradeço à CAPES “pela graça alcançada”. Igualmente à Universidade
Presbiteriana Mackenzie, pelo apoio.
Finalmente, aos colegas da minha turma, sempre muito amigos, e aos
professores do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião, com
lembrança ao meu orientador, Prof. Dr. Ricardo Bitun. Vocês são os gigantes
sobre os ombros de quem subi para ver mais longe. Incluo aqui o prof. Dr.
Peter Robert Demant, por quem tenho admiração especial, como já expressei
antes, pela seriedade, clareza e conhecimento.
O meu mais sincero agradecimento a todos vocês.
INTRODUÇÃO
Aquele que busca terroristas exultará ao
encontrar na estante de um estudante de
engenharia um livro com o título Manual de
Fabricação de Bombas. Essa evidência lhe
basta
–
ainda
que
sejam
bombas
de
irrigação... Rubem Alves
Os atentados de 11 de setembro deram ocasião à farta produção de
documentação pela mídia a respeito do Islã, insuflando no senso comum a
imagem de uma religião violenta. Desde então, fazer associações do Islã com a
violência não foi atitude elegante ou respeitosa. Hoje, distanciados daquele
momento fatídico, se desfruta maior liberdade para aproximar a observação de
algum fenômeno que dispara a violência dentro do ambiente de onde se espera
o cultivo da paz: a religião.
Há instituições que procuram o diálogo amistoso e de conciliação; sejam
instituições político-governamentais, sejam religiosas, acadêmicas, nas ONGs
e no Terceiro Setor. Aumenta o fato ouvirmos o tom do discurso das grandes
religiões, que se pautam pela convergência de temas que promovam a paz, a
convivência pacífica e harmoniosa (e até mesmo o ecumenismo), a promoção
do entendimento entre os povos e a justiça social para todos. Todas as
religiões pregam isso. Como exemplo de esforço neste sentido, dentro da
promoção do diálogo no grupo monoteísta, que envolve as três religiões,
judaísmo, cristianismo e islamismo, a Universidade de Harvard vem
desenvolvendo um projeto de entendimento, cooperação e diálogo para os três
ramos, chamado Abraham Path (Caminho de Abraão), reunindo líderes dos
5
três grupos para atividades conjuntas e desenvolvimento do diálogo, 1 além da
Muslim Jewish Conference, 2 da mesma Universidade.
Embora a preocupação com a piedade, a espiritualidade e com as
demandas por justiça social estejam presentes na tradição islâmica, os
elementos da contemporaneidade (ou modernidade, depende do autor) 3
penetraram, em certa medida, esta tradição religiosa e interferiram (ou
reorientaram) no seu discurso, positiva ou negativamente. Entre outros, Kamel 4
(2007, p. 163), por exemplo, faz esta afirmação. Todas as três religiões
comportam
grupos
que
se
adaptaram
bem
a
esta
agenda
da
contemporaneidade. O mesmo não parece ter ocorrido com grupos chamados
fundamentalistas, existentes nas três tradições: “No século XX algumas das
pessoas que vivenciaram a modernidade basicamente como um ataque se
tornariam fundamentalistas” (ARMSTRONG, 2009, pp. 21,57,231). Nessas
minorias fundamentalistas a modernidade provocou uma reação contrária.
Martha Crenshaw 5 afirma que a modernidade mudou inclusive o modo padrão
das ações terroristas (CRENSHAW, 2007, p. 31). As chamadas “modernidade”
1
Ver
http://www.abrahampath.org/;
http://www.abrahamspathturkey.org/
e
http://www.pon.harvard.edu/category/research_projects/meni/abrahamspath/, todos acessados e
disponíveis em 15.02.2014.
2
Ver www.mjconference.org acessado em 28.05.2014.
3
Refiro-me, grosso modo, a segunda metade do século 20 até os nossos dias e as implicações
econômicas liberais, democráticas e culturais próprias. Estou chamando “contemporaneidade” ao que
alguns autores que constarão desta pesquisa nomearão “pós-modernidade”. Quando usarem o termo,
evidentemente, ele será mantido. Em linhas gerais, todos eles usam pós-modernidade como indicação
de elementos do liberalismo econômico, político e cultural, o que caracteriza, na visão do Islã, a
sociedade influenciada pela cultura Europeia em certa medida e mais intensamente pela influência dos
Estados Unidos.
4
Ali Kamel é sociólogo e jornalista, filho de pai e avô sírios e casado com uma judia.
5
Martha Crenshaw é membro sênior do Centro para a Segurança e Cooperação Internacional (CISAC)
e do Instituto Spogli Freeman de Estudos Internacionais, bem como professora de Ciência Política na
Universidade de Stanford. De 1974 a 2007 ela lecionou no Departamento de Governo da Wesleyan
University e de 2002 a 2007 foi professora de questões globais e pensamento democrático no Colin e
Nancy Campbell. Ela é ex-Presidente e Conselheira da Sociedade Internacional de Psicologia Política
(ISPP). Recebeu diversos prêmio por seu trabalho e em 2009 ela recebeu o prêmio da National Science
Foundation por um projeto sobre "Mapeamento de organizações terroristas".
6
e “pós-modernidade”, aqui nomeadas simplesmente contemporaneidade, não
afetaram positivamente nem “atualizaram” o discurso religioso de grupos
fundamentalistas (de dentro do Islã e dos outros monoteísmos também), no
que toca o conteúdo que deveria promover e fazer convergir a paz e o
entendimento. Dentro do importante grupo político-religioso que é o Hamas 6
isso também é notável.
A percepção que ora aponto é reforçada pelo conteúdo das obras de
teóricos e mesmo nos discursos emitidos por seus líderes de grande projeção,
que rapidamente entram em cena para digerir “o espetáculo da morte com
palavras” e dessa forma transformarem “o camicase em mártir, o assassino em
freedom fighter. São elas, as palavras, que tornam doce o paraíso dos suicidas,
e um inferno o mundo alarmado em sobre vida” (WEINBERG, 2007, p. 35,
ênfases no original).
Os resultados da manutenção e recorrência desse discurso, que pode
ser remontado à fundação do Islã na Península arábica, 7 aos conflitos tribais
entre nômades e caravaneiros, nós os vemos hoje constante e insistentemente
em diferentes pontos do planeta, tanto no Ocidente (que tem sido declarado “o
inimigo a ser batido” pelos fundamentalistas) quanto no próprio Oriente Médio.
Na virada do século XX para o século XXI, o projeto “islamista” 8 tem
proposto um modelo radical religioso já superado. Grupos fundamentalistas
não acompanharam essa tendência global, antes, reagem a ela (mesmo
inseridos no contexto ocidental e talvez até por isso), impondo um modelo de
fé, sociedade e política que se arroga o direito de ditar formas de governo
(DEMANT, 2004, pp. 210,211), interfere na economia e se faz presente na
sociedade, extrapolando as já estabelecidas convenções humanas de bom
convívio e desajustando até mesmo relações diplomáticas.
6
Sigla árabe de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento Islâmico de Resistência. Grupo
que atua na Palestina com o objetivo de resistir a ocupação israelense.
7
Não será objeto desta pesquisa, mas autores como Don Richardson, Bernard Lewis e outros têm
feito.
8
Usando “islamista” no sentido de DEMANT (2004, p. 14), como definição do movimento religioso
radical do Islã político.
7
Delimitação da pesquisa
Uma distinção metodológica é necessária quanto aos termos adotados
“islâmicos” e “islamistas”. Com islâmico, esta pesquisa fará referência ao fiel e
piedoso do Islã; com islamista, a pesquisa se referirá aqui especificamente aos
grupos radicais que se nomeiam fiéis do Islã. Eles serão usados sem qualquer
tom pejorativo, pois já são de uso corrente (dentro da academia). Isso deve
ficar claro, a fim de evitar qualquer associação indevida.
Procurarei demonstrar as hipóteses desta pesquisa a partir dos
discursos de autoridades “no” Islã e “do” Islã. Como esta pesquisa não tem
caráter exegético, não caberá a mim fazer a interpretação dos textos do Corão;
antes, valendo-me da metodologia da revisão bibliográfica (melhor detalhada à
frente), recolherei depoimentos e declarações de pesquisadores, especialistas,
autoridades e pensadores de dentro do Islã. Estes últimos poderão indicar a
interpretação que adotam, a visão de mundo própria daqueles que olham a sua
religião desde dentro. Eles são os portadores da tradição (específica ou não) e
detêm o conhecimento dos mecanismos pelos quais passam as interpretações
e desdobramentos da reflexão teológica da sua própria religião.
Lembro que este é um trabalho de “Ciências da Religião”. Inserem-se
aqui as considerações de Filoramo & Prandi (1999). Este trabalho se serve das
ciências que julgar adequadas para o estudo do comportamento das hipóteses,
dentro
de
determinada
teoria
apresentada
a
seguir.
Neste
sentido,
considerando ser ciências “da religião”, a atenção será dada a este campo, não
no sentido de fazer exegese (repito), mas respeitando o objeto que está no
campo religioso. 9 É preciso encarar a religião, porque ela está presente nas
sociedades. Mas, para além disso, é necessário levantar a lona da tenda e
enxergar o ser humano coberto por ela, judeu ou palestino, como é o caso.
O Islã, e certamente outras tradições religiosas, negociam com a Política,
a Economia, a Cultura, a sociedade em seu entorno ou com a força ao seu
redor, a qual Durkheim dirá que é o próprio Deus:
9
Neste sentido, Crenshaw pergunta: “Por que o Hamas é considerado um grupo nacionalista quando
se apela à criação de um Estado Islâmico?” (2007, p. 7). Penso que a pergunta é pertinente dentro do
recorte cronológico da pesquisa.
8
[...] a sociedade só vive nos e pelos indivíduos. [...] ela só tem
realidade à medida que ocupa espaço nas consciências
humanas, e esse espaço, somos nós que lho damos. [...] é que
a sociedade, da qual os deuses não são senão a expressão
simbólica. [...] Ora, esse ser existe: é a sociedade (DURKHEIM,
1989, p. 417; tbm. p. 281).
Do mesmo modo, Bourdieu interpretou a dinâmica dos campos religioso
e intelectual, educacional e artístico, cultural e social, como ocorrendo à base
de “trocas”, numa dialética de afirmação e reafirmação entre produtores de
serviços e consumidores. É weberiano neste sentido e logicamente segue
Durkheim quando vê na sociedade o que a religião vê no sagrado (BOURDIEU,
2011, p. ex. pp. 52,53).
O universo muçulmano (como fenômeno sociológico, DEMANT, 2004, p.
14) é amplo. Em termos numéricos Demant sinaliza com 1,3 bilhão no planeta
(DEMANT, 2004, p. 13); o PEW, 10 em 2013, estimou em 1,6 bilhão. 11 A
presença do muçulmano é notável em todos os continentes, estando as
maiores concentrações, em números de adeptos, no Oriente Médio, seguido
pela Ásia, África, Europa e Américas. As maiores facções são, grosso modo, a
sunita, 12 seguido pelos xiitas. 13
Reside aqui outra ressalva a ser feita. Os vários grupos de fieis
seguidores dividem-se em sunitas, xiitas, sufis etc., e interpretam determinados
pontos da doutrina, da tradição e da lei diferentemente. Como foi dito na banca
de qualificação, trata-se “de um campo minado”. Estou ciente, mas preciso
avançar. Portanto, esta pesquisa não pretende mapear todos os campos, nem
catalogá-los, nem dialogar com todos eles, nem mesmo compreender todas as
10
O Pew Research Center é um think tank localizado em Washington DC que fornece informações
sobre questões, atitudes e tendências que estão moldando os EUA e o mundo.
11
Disponível em http://www.pewresearch.org/fact-tank/2013/06/07/worlds-muslim-population-
more-widespread-than-you-might-think/ acessado em 1º de maio de 2014.
12
Sunita: seguidores da sunah. Grupo majoritário no Islã.
13
Xiita: literalmente “partidário”, como referência ao partido de Ali (o quarto imame) que lutou pela
herança na sucessão de Muhammad.
9
tradições dentro do Islã. Nisso, fará uma concentração bastante limitada e
específica, qual seja, a busca por um raciocínio que conduz à violência (se ele
existe) e, se isso é iniciativa de palestinos ou revide à ação israelense. Será
verificado se há esse raciocínio e se ele move o Movimento Hamas. É possível,
penso eu, que este Movimento reúna membros inclinados a mais de uma
maneira de interpretar a religião. Embora seja um movimento com teor
pronunciadamente
religioso
(Hamas
significa
Movimento
Islâmico
de
Resistência), pode, mesmo assim, agregar, em torno de seus objetivos,
pessoas com pensamentos díspares. Não procurarei compreender essas
variações, mas sim, insisto, identificar uma possível relação da violência (sem
fazer juízo de valor, se justificada ou não) com alguma interpretação do Corão
ou se ela é exclusiva e essencialmente laica, secularista.
É notável em publicações jornalísticas, como concordam os autores que
têm lidado com o tema, que os movimentos radicais têm origem em ambos os
ramos, sunita e xiita. “O martírio pelo suicídio é uma das poucas coisas que
unem xiitas e sunitas ao longo da história” (KAMEL, 2007, p. 219). “A pesquisa
sobre o suicídio como um ato político” foi revivida recentemente, mas
“encontramos exemplos anteriores deste no Islã medieval, especialmente entre
os Assassinos” (KEPEL, 2003, p. 105), uma seita ou grupo sectário dos xiitas
ismaelitas 14 que surgiu cerca de 5 séculos após o início do Islã. No corte
geográfico contemplado nesta pesquisa, também bastante específico, temos o
território palestino, onde há pelo menos 85% de população muçulmana, “quase
todos sunitas” (DEMANT, 2004, p. 273). 15
A concentração das operações na faixa de Gaza, de população
majoritariamente muçulmana, que ocupa a Palestina, está sob o controle
político do Hamas (sigla de Harakat al-Muqawwama al-Islamiyya, Movimento
Islâmico de Resistência). É nesse Movimento que a pesquisa fará a sua
14
Os ismailitas ou sétimos, que aceitam uma outra sucessão de sete imãs [...] seguem Isma’il ibn
Ja’far, o filho do sexto imã, que morreu antes de seu pai. Deste grupo se desenvolveram seitas tais como
os drusos, os naziris, os nusairis e outras ainda mais heterodoxas. Algumas delas por fim se tornariam
comunidades fechadas (por causa da perseguição) e quase etnias, como os alawitas na Síria e alewis na
Turquia. (DEMANT, 2004, p. 223, ênfase no original).
15
1,3 milhão de árabes israelenses, 2 milhões de árabes da Cisjordânia e 1 a 1,5 milhão na Faixa de
Gaza (MORRIS, 2014, p. 233).
10
concentração, haja vista ser um grupo com forte expressão na região e
também no cenário internacional, em função do êxito alcançado no cenário
político palestino, nas recentes eleições em 2006, suplantando o predomínio do
Fatah, outro grupo com características bastante parecidas o qual liderava o
cenário político e o controle da Autoridade Palestina (AP) 16 até recentemente.
Tendo em vista essa expressão, a pesquisa fará também um recorte
temporal. Não abordarei as mudanças ocorridas no perfil do Movimento, após a
sua eleição em 2006 para ocupar e integrar o governo da Autoridade Palestina
(AP). Segundo Hroub, 17 “até a formação do governo do Hamas, em 2006, não
havia porta-voz oficial ou endereço do Hamas em qualquer país ocidental”
(HROUB, 2009, p. 135). Assim, o recorte cobrirá a situação e o comportamento
do Hamas desde a sua fundação, em 1986 18 até a sua eleição em 2006,
portanto, vinte anos.
O Hamas, em certo sentido, é expressão bastante precisa de
determinados aspectos da religião, uma vez que ela compreende os setores
político, religioso, social e até mesmo econômico e familiar das relações
humanas. No Islã não há compartimentação da vida, ou seja, não há o aspecto
religioso restrito ao âmbito pessoal, ao foro íntimo; ao passo que a esfera
política pode sofrer um “descolamento” do perfil religioso, como ocorre com
outras tradições religiosas, ainda que não estejamos advogando uma total
imparcialidade ou autonomia na atuação política de um personagem religioso,
nem vice-versa. A atuação religiosa na esfera pública é vista como dever,
prescrito no texto fundante, o Corão. 19
16
A Autoridade Palestina foi estabelecida segundo o Acordo de Gaza-Jericó, assinado no Cairo, em 4
de maio de 1994 (STERN, 2004, p. 32).
17
Khaled Hroub nasceu num campo de refugiados em Belém. É professor residente na Faculdade de
Artes liberais da Northwestern University, no Qatar, com foco nos estudos de mídias Árabes e Oriente
Médio. É diretor do Projeto de Mídia Árabe da Universidade de Cambridge onde também é pesquisador
sênior. Apresenta semanalmente um programa de crítica de livros na TV Al-Jazeera. É uma voz do Islã
moderado.
18
O ano de fundação do Hamas é corrigido por YOUSEF (2012, p. 35, nota 1) para o final de 1986, e
não 1987, contrariando fontes como MidWest, a Wikipedia e o próprio Hroub.
19
Citando dois colunistas que dizem não haver “moderação no Islã político” (Said-al-Hamd, do Al-
Ayyam do Bahrein e o iraquiano Azziz Al-Hajj, do site Elaph), Weinberg chama a atenção para “a tensão
11
Objetivos da pesquisa
A bibliografia produzida ou publicada no Brasil sobre o Islã integra-se em
dois eixos de abordagem. Um desses eixos é composto por obras publicadas
por pesquisadores especialistas, cujo perfil é notadamente regido pelas
Ciências Sociais, carecendo de um aprofundamento no discurso propriamente
teológico-religioso. Integram esse corpus, livros e dissertações de orientação
histórico-sociológica com notável atenção à cultura e à política. O outro eixo
traz as obras produzidas pelos próprios teóricos e teólogos e, evidentemente,
arrastam após si as razões e justificativas de sua teologia e crença, exaltam o
mito fundante do profeta Mohammad, 20 sua obra prima, o Corão, e os ahadith,
que são a coleção de ditos registrados por seus companheiros, obra que regula
praticamente toda a vida do fiel.
Diante disto, a pesquisa aprofundará a análise das obras que apontam o
caminho pelo qual o ideário da violência e do terrorismo 21 chegou ao Hamas e,
paralelamente a isso, procurará uma vinculação desse ideário com o Corão.
Sei que reduzir a discussão a simples questão de “terrorismo” é um
reducionismo imperdoável, e, como tal, é cometer injustiça e deixar de
perceber fatores outros que serão dispostos nos Capítulos 2 e 3. O ideário a
que me refiro é a interpretação do Corão a qual destoa do uso corrente. A
região da Palestina comportava várias etnias e seguidores de outros credos
religiosos em harmonia, como aponta Edward Said, 22 entre outros: “Todos
existente entre tais correntes, a moderada, disposta a compromissos, acordos, tratados e convivência, e
a mais extremada, indisposta e missionária”. Esta dialética é interna a toda a comunidade muçulmana e
é necessário prestar “atenção ao que dizem os teólogos, pois em grande medida depende destes
provedores de pistas o destino do pensamento e a direção do comportamento de grande parte destas
populações” (WEINBERG, 2007, p. 162).
20
Estou usando “mito” no sentido sociológico ou ainda psicológico junguiano, que não vê como
“ficção”, mas como elaboração complexa da realidade, ou como Girard, que diz que “os mitos são
formas de organização do conhecimento” (GIRARD, 2011, p. 86).
21
Por “terrorismo”, estou me apropriando do termo já corrente, como por exemplo, em PAPE, 2003.
22
Edward W. Said (1935-2003), palestino de nascimento, foi um dos mais notáveis críticos culturais
do século XX. Professor de Literatura Comparada da Universidade Columbia, lecionou também em
Harvard, John Hopkins e Yale.
12
falavam árabe, eram muçulmanos sunitas em sua maioria e conviviam com
uma minoria formada por cristãos, drusos e muçulmanos xiitas” (SAID, 2012, p.
14).
Sendo o Hamas um movimento surgido na década de 1980, portanto
recente, será necessário identificar as principais ênfases que predominam no
trabalho realizado pelos intérpretes do Corão e teólogos islamistas sobre o
pensamento original de Mohammad. Quem são e o que ensinam esses
teóricos sobre o papel e a missão da comunidade e do indivíduo frente à
ocupação israelense na Palestina? Que expectativas religiosas têm nutrido
essa tradição? Isto posto, a pesquisa traçará paralelos entre o discurso do
Hamas e o conteúdo de determinada intepretação do Corão no qual se apoia,
conforme indicado no próprio Estatuto oficial do Movimento (ver Anexo 1).
O Islã avança em passos largos pelo planeta (vide a citação do número
de adeptos), portanto, merece atenção. Assim, esta pesquisa supre lacuna na
pesquisa atual, à medida que olha para essa religião e para a ocorrência de um
pensamento e postura pública que destoam de toda uma tradição já
estabelecida de que, segundo Nasr, “o Islã é uma religião da paz”. 23 Não são
poucos os autores que desdenham essa definição. O Islã apregoa a paz, mas
os radicais islamistas fazem o mesmo? Até onde isto é verdadeiro no contexto
pesquisado e corresponde à verdade? A pesquisa deverá dar pistas.
Problematização
Como foi dito, estimativas dão conta de que a população muçulmana já
soma pelo menos 1,6 bilhão de seguidores presentes em todos os continentes.
Esta presença maciça tem remodelado a geopolítica internacional.
23
“Para compreender a natureza do Islã e da verdade sobre a afirmação muitas vezes feita de que o
Islã adota a violência é importante analisar esta questão claramente lembrando que a própria palavra
Islã significa paz e que a história do Islã certamente não foi testemunha de mais violência do a que se
encontra em outras civilizações, particularmente a do Ocidente”. In NASR, S. H., Islam and the question
of violence, in Journal, vol. 13, nº 2. Al-Islam.org, publicado por Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project.
Acessado
http://www.al-islam.org/al-serat/vol-13-no-2/islam-and-question-violence-seyyed-hossein-
nasr no dia 04.02.2014.
13
O investimento em ações para estabelecer-se em sociedades nas quais é
minoria é a preocupação das lideranças religiosas, em países onde a
comunidade é minoria. Pipes, 24 por exemplo, menciona as atividades do
Council on American-Islamic Relations (CAIR), 25 instituição com sede em
Washington, fundada em 1994, cujo objetivo é (ou ao menos é assim que CAIR
se apresenta) “promover o interesse e o entendimento entre o público em geral
no que diz respeito ao Islã e os muçulmanos na América do Norte e realizar
serviços educacionais” (PIPES, 1999). No entanto, ele adverte:
Mas essas ocasionais boas obras servem principalmente como
uma cobertura para agenda real do CAIR, que parece ser
dupla: ajudar a organização radical Hamas na sua campanha
de terror contra Israel e promover o programa islâmico nos
Estados Unidos (Ibidem).
No
Oriente
Médio,
ambiente
dos
principais
grupos
radicais
fundamentalistas islamistas, a reação não foi a mesma dos grupos nos EUA.
Ao contrário, os ataques de 11/9 parecem ter servido de estopim para que as
propostas nos âmbitos já mencionados aqui (política, econômica, social e
religiosa) fossem acentuadas. Houve um reflorescimento do sentimento
religioso radical, o maior engajamento de facções militantes e notoriamente das
principais autoridades de projeção internacional e simpatizantes. Pinker 26
defende que “Estados islâmicos como a Arábia Saudita e a Indonésia, que já
24
Daniel Pipes é diretor do Middle East Forum e colunista premiado dos jornais New York Sun e The
Jerusalem Post. Seu website, DanielPipes.org, é a fonte de informação especializada em Oriente Médio e
Islã com o maior número de acessos registrados na Internet. Pipes obteve sua Licenciatura (1971) e
Doutorado (1978) em História pela Universidade de Harvard. Estudou no exterior por seis anos, três dos
quais no Egito. Lecionou nas universidades de Chicago e de Harvard e ainda no U.S. Naval War College.
25
Disponível em http://www.danielpipes.org/321/how-dare-you-defame-islam, acessado em
06.05.2014.
26
Steven Arthur Pinker é psicólogo e linguista canadense. Ele é professor no Harvard College e no
Departamento de Psicologia da Universidade de Harvard. Até 2003, ele ensinou no Departamento de
Cérebro e Ciências cognitivas do MIT. Ele realiza pesquisas sobre linguagem e cognição, escreve para
publicações como o New York Times, Time e The New Republic e é autor de sete livros.
14
foram indulgentes para com os extremistas islamistas, decidiram que agora
basta e começaram a reprimir” (PINKER, 2012, pp. 490,1) enquanto que
Weinberg cita pesquisa PEW de 2004 dizendo, por exemplo, que em 2004 “Bin
Laden era simpático aos olhos dos paquistaneses (65%), dos jordanianos
(55%) e dos marroquinos (45%)” (WEINBERG, 2007, p. 144). A pesquisa de
Weinberg está dentro do arco de tempo coberto pela pesquisa. Com o recorte
da pesquisa no período 1986-2006, temos um período que comporta a
ocorrência mais acentuada de violência, mesmo diante desses dois autores.
Sendo o Islã uma religião da paz e, se isso está claro para seus adeptos,
como compreender que recorram a atos terroristas e a violência expressa nas
operações do Hamas? Como podem apoiar-se em premissas religiosas como
justificativa para a violência? Esta é uma hipótese sustentável? A pergunta
central que se coloca é “há uma interpretação do Corão que estimula a
violência e o terrorismo do Movimento Islâmico de Resistência, o Hamas?”.
Hipótese
São vários os teóricos e pesquisadores que têm apontado para as
causas do estranhamento entre o Ocidente e o Islã. Isso tem sido chamado de
Orientalismo, 27 tendo inclusive a obra de Said título homônimo. Há quem
alegue que isso se dá pelo predomínio ou colonialismo norte-americano e pela
interferência ocidental nos países onde o Islã é a religião predominante, e.g.,
GARAUDY (1998). Outra área apontada como responsável pelo quadro pintado
aqui é a visão ocidental divergente dos valores distintos. Seyyed Hossein Nasr
(s/d) faz defesa nesta linha. Muçulmanos e ocidentais não compartilham o
mesmo sistema de valores e – aqui entra outro agente – a mídia, que parece
não entender a dinâmica entre essas populações e reproduz os fatos pela sua
ótica, distorcendo-os em relação ao que realmente ocorre. É o que se chama
27
O termo ou a “denúncia” do orientalismo indica uma reação daqueles que veem o Ocidente com o
seu capitalismo e colonialismo como “a raiz do mal, de todo o mal” (WEINBERG, 2007, p. 67).
15
orientalismo. Weinberg 28 (2007) apresenta e aprofunda o outro lado do
problema, o que já indica na seguinte afirmação:
[...] a denúncia do orientalismo ocidental caiu ao gosto dos que
veem no colonialismo e no capitalismo a raiz do mal, de todo o
mal. Mas há também quem denuncia a estereotipia inversa, a
do Ocidente pelos orientais, e tente alertar a opinião pública
contra a indisposição de muitos pensadores do Ocidente de ver
o fundamentalismo islâmico como uma ameaça similar ao
nazismo (WEINBERG, 2007, pp. 67,68).
A hipótese de partida da pesquisa trabalha com a possibilidade de que
exista uma linha de interpretação do Corão e da tradição, os ahadith, usada
como modo de interpretá-los a qual apoia a violência e os atos terroristas
promovidos pelo Hamas, ao menos nos vinte anos de existência do movimento
cobertos pela pesquisa.
O Corão e os ahadith formaram no pensamento dos islamistas atraídos
para esta corrente uma caricatura do chamado “infiel”, seja ele judeu sionista,
cristão ou simplesmente infiel. Nessa caricatura, aqueles que não creem e não
professam a mesma fé no profeta e no seu deus (bem como no seu livro) são
inferiores, traidores; embora a possibilidade de coexistência exista. Peter
Berger
(1985,
pp.
36,57,58)
aponta
esse
comportamento,
citando
explicitamente o islamismo como exemplo.
Justificativa e relevância
Essas questões parecem fazer parte de um cenário longínquo, distante,
mas ganham relevância e devem interessar-nos diretamente, ainda mais em
tempos quando a globalização não somente aproxima os povos e culturas, mas
interfere nas suas relações, na economia, na educação, na cultura como um
todo. É na fronteira dos assentamentos que reside o núcleo ou estopim do
28
Jacques Alkalai Weinberg é professor titular de Graduação e Pós-graduação da Faculdade de
Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. É doutor em Ciências da
Comunicação pela USP, pós-doutor na Universidade do Texas e autor de diversas obras.
16
problema (PAPE, 2003, pp. 354-356), ao menos, é como entendo a questão. O
Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) só deveria encontrar razão para
organizar-se fundamentado nesse conflito que se tem agravado pelo aumento
do número dos assentamentos (FLINT, 2009, pp. 56,138,407,412,438). O Islã,
em si, não produz conflitos em suas fronteiras, como demonstra o caso da
Índia. “O país possui uma população muçulmana superior a do Paquistão, mas
não tem em suas fronteiras um movimento islâmico fundamentalista”
(WEINBERG, 2007, pp. 179,179). Por quê? Weinberg suspeita que seja porque
há participação da população na vida política do país, e isso serve de antídoto
ao fundamentalismo (Ibidem). Daí a relevância desta pesquisa, que poderá
tocar ao menos, num dos cernes do problema (pelo campo religioso, insisto),
questão que fica aberta desde já. Será a ocupação israelense a única questão
na pauta do Hamas ou o único motivo para a sua resistência?
Não são poucos os que têm se debruçado sobre a questão do conflito
entre palestinos e israelenses para estudá-la. Para tanto há estudos, grupos de
pesquisas, frentes acadêmicas de diálogo, instâncias governamentais, locais e
internacionais. Enfim, há uma polifonia envolvida no problema e muitas são as
abordagens feitas na tentativa de equacioná-la. Mas, eventualmente os
aparentes avanços se convertem em retrocesso. Israelenses e palestinos têm
sofrido baixas entre famílias inocentes, sem ver lançada qualquer luz para a
solução do conflito. Os judeus sionistas são apontados como vilões
dissimulados, em cujo território também há famílias inocentes vivendo alguma
incerteza e insegurança (SAID, 2012, pp. XXVIII,XXXI,XXXIII,7,9). A questão
permanece atual e complexa, e a sua discussão é necessária, ainda mais
considerando que o Brasil tem estreitado relações econômicas, políticas e
culturais com palestinos e países árabes muçulmanos, além de servir de abrigo
para algumas comunidades que para cá têm enviado seus filhos e refugiados.
A pesquisa também é relevante para a academia no Brasil por conta da
escassez de estudos neste campo e, praticamente a inexistência de um
trabalho voltado especificamente ao Hamas. Busca no banco de teses e
dissertações dessa Instituição (U. P. Mackenzie) no início desta pesquisa,
mostrou não haver um único trabalho sobre o Hamas. Busca realizada no
projeto Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD), que integra os
17
sistemas de informações de teses e dissertações existentes nas instituições de
ensino superior (IES) brasileiras também não identificou um único registro. O
mesmo pode ser dito do banco de teses da CAPES. Também quero destacar a
relevância da pesquisa para a Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma vez
que a temática está enquadrada em uma das linhas contempladas pelo
Programa, relacionada à área de concentração “Ciências Sociais, Religião e
Sociedade”, que estuda “Religião e Violência”.
Este trabalho pretende contribuir para o avanço nos estudos e pesquisas
que têm sido feitos por especialistas de outras áreas, os quais procuram meios
para promover o entendimento dos grupos alocados nos grandes centros, em
regiões de fronteira, e o desdobramento disso; além dos estudos sobre a
violência e sua natureza, com vistas à promoção da paz e do entendimento
entre povos, etnias e confissões religiosas. O estudo das Ciências da Religião
tem esse compromisso e tal compromisso deverá ser o nosso fio condutor
independentemente do resultado a que cheguemos.
Desenvolvimento da pesquisa
Citando Girard, “como todos os cientistas, estou em busca do fator
comum, do padrão, não da diferença” (GIRARD et. al., 2011) dentro do Islã, até
deparar-me com o modo de interpretar o Corão, utilizado pelos grupos
fundamentalistas, para apoiar a violência que praticam e, se eles veem isso
como violência. Minha hipótese é que esse modo de interpretar o livro passe
pela construção de uma identidade própria e da identidade do outro.
O Islã nasceu na Península Arábica, no século VII da presente Era e
cresceu no meio da movimentada e politeísta península dos mercadores, dos
caravaneiros e das pilhagens de caravanas. Quando surgiu, o helenismo já
havia sido difundido, o judaísmo tinha colônias na Europa, Ásia Menor e na
própria Arábia enquanto o Cristianismo tendo pensadores de expressão estava
consolidado como religião oficial no Império Romano. Alguns elementos dos
cultos judaico e cristão foram incorporados por Muhammad, o profeta fundador
do Islã, na composição do texto do Corão; uma simples leitura demonstra isso.
A revelação registrada no Corão anuncia como uma de suas propostas
18
“atualizar” e “substituir” os conteúdos das revelações anteriores, dos judeus e
dos cristãos, contidos na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento (KAMEL,
2007, p. 77). Essa revelação que Muhammad anunciou ter recebido teria sido
dada a ele, um comerciante reconhecidamente analfabeto, que se tornou o
maior fenômeno religioso em alguns períodos nos últimos 1400 anos,
estendendo-se ao nosso tempo. Que espécie de motivação ou força há
subjacente a esse enérgico ímpeto para a expansão subsequente que a levou
aos quatro cantos do planeta? O que move os suicidas em troca da própria
vida? Isso é uma obrigação para todos os fieis? Vamos atrás de pistas.
A primeira fase da pesquisa será realizada por meio de revisão na
literatura produzida pela Academia, à procura de informações e pistas
relevantes. Isso inclui um estudo preliminar da História do Islã escrita por
autores favoráveis ou contrários, participação em aulas e congressos, leitura de
textos de cunho teológico produzidos pelas associações e centros de
divulgação e promoção do Islã o Brasil além de leitura livre do próprio Corão. 29
Na segunda fase da revisão da literatura serão vistas as obras
publicadas recentemente por especialistas. O resultado será demonstrado
especialmente no capítulo 1, conforme proposto no Sumário.
A revisão bibliográfica tem contemplado algumas das seguintes obras
que tratam do tema, ainda que com perspectivas e hipóteses distintas, na
tentativa de aprofundar a compreensão do tema da violência em diferentes
campos, dentro do seguinte quadro.
À medida que o Estado assumiu o papel da regulação da sociedade pelo
aparato jurídico, que veio substituir o papel da religião (como veremos no
Referencial Teórico), menos o indivíduo pode vingar os danos sofridos e mais o
Estado ou a polícia assumiram a responsabilidade de fazê-lo. 30 Após o
Renascimento, surgiram leis que dispuseram os instrumentos para mediar e
defender os direitos dos cidadãos em dada sociedade. A proposta de
29
Foram feitas duas leituras completas em duas versões diferentes (ver nas Referências
Bibliográficas) e a terceira está em andamento, sendo a versão comentada pelo Dr. Helmi Nasr (USP).
30
“O papel da religião é prover a “moral” que mantem o proletário, no capitalismo, sujeito,
submisso. Os intelectuais admitem a religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a religião e
dê condições iguais a todos por meio do Estado” (SOREL, 1992, p. 265, ênfase acrescentada).
19
pacificação pelo Estado reforçou a consciência sobre limites, fazendo com que
a violência se tornasse estranha no relacionamento cotidiano, embora não a
tenha exterminado como germe da natureza humana (BUORO, 1999, pp. 1531).
Para fundamentar o entendimento da violência inerente à natureza
humana, recorro a Buoro et. al. (1999), Violência urbana: dilemas e desafios.
As autoras da Universidade de São Paulo, são especialistas no estudo da
violência. As conclusões a que chegam convergem para a teoria utilizada na
presente pesquisa. Ainda dentro da definição de termos no campo da violência,
utilizei Violência urbana, de Paulo Sérgio Pinheiro e Guilherme Assis de
Almeida, ambos especialistas do Núcleo de Estudos da Violência da USP
(NEVUSP) e com larga experiência reconhecida no assunto.
Da obra de Pinheiro interessa-me o Capítulo 1, O que é a violência?,
onde os autores pontuam uma definição do que é a violência no modo básico e
dão uma definição ampla de violência, cobrindo outros níveis que não os mais
visíveis pelo observador comum. Em seguida, relatam a violência em nível
mundial, a importância de se considerar o contexto social onde ela ocorre,
apontando para valores culturais que podem ser considerados violentos em
uma cultura, mas não necessariamente em outras; essas distinções, segundo
os autores, precisam ser levadas em consideração antes de quaisquer
determinações e definições sobre violência. Segue esse primeiro capítulo da
obra fazendo a “tipologia da violência”, em que comparte a violência em três
grandes categorias: violência auto-infligida, violência interpessoal e violência
coletiva. Deste capítulo 1, o que mais nos interessa para a pesquisa será essa
última categoria: Violência Coletiva, que está diretamente ligada ao nosso
objeto de estudo.
Um olhar, de dentro do Islã, sobre a violência será extraído de Islam and
the question of violence, de Seyyed Hossein Nasr 31 que dispõe o discurso
sobre os variados meios de como a violência e o uso da força são vistos.
31
Seyyed Hossein Nasr é professor de Estudos Islâmicos na Universidade George Washington. É um
importante estudioso religião e estudos comparativos do mundo islâmico. Autor de mais de cinquenta
livros e quinhentos artigos que foram traduzidos para idiomas no mundo islâmico, europeu e asiático, o
20
O mundo muçulmano, de Peter Demant é outra obra considerada. O
autor é historiador, professor-doutor no Departamento de História na USP, 32
especialista em questões de Oriente Médio, tendo dissertado sobre a
colonização israelense dos territórios palestinos, entre 1967 e 1977, e esteve
ativamente envolvido nos diálogos entre acadêmicos israelenses e palestinos.
Da obra, interessa para a pesquisa da Parte 2 – HOJE, onde, depois de
ter demonstrado historicamente o desenvolvimento das correntes dentro do islã
em diferentes culturas e sob variados governos, situa o momento mais recente
quando ocorreu e ocorre a influência da modernidade e da globalização na
estrutura social muçulmana. Como desdobramento desse encontro de ideias e
ideologias, o autor trata especificamente das ondas fundamentalistas,
dividindo-as em três: a primeira de 1967-1981; a segunda ocorrida nos anos
1980; a terceira onda islamista de 1991-2001. A obra de Demant será útil,
ainda, pelo fato de ser robusta em informações históricas que servirão de
parâmetro para esta pesquisa.
No tratamento do Islã e do terrorismo, serão considerados ensaios,
papers e artigos produzidos por especialistas em Oriente Médio e em
terrorismo. Dentre eles dou destaque para: All Kind of Terrorists, de Uri Avnery,
Terrorism in historical perspective e The Crisis of Universalism: America and
Radical Islam after 9/11, de Fred Halliday, 33 The Strategic Logic of Suicide
Terrorism, de Robert Pape, entre outros.
Outra obra considerada é O guia árabe contemporâneo sobre o islã
político, uma coletânea organizada pelo professor Ibrahim M. Abu-Rabi’, que
reúne textos escritos por autores de dentro do Islã, sendo eles pensadores,
acadêmicos e militantes. Abu-Rabi’ é professor da cadeira de Estudos
Islâmicos do Conselho “Edmonton” de Comunidades Muçulmanas da
Universidade de Alberta. A obra reúne interpretações árabes do Islã e do
professor Nasr é uma figura intelectual bem conhecida e altamente respeitada no Ocidente e no mundo
islâmico.
32
Professor no Instituto de Relações Internacionais, o IRI.
33
Fred Halliday (1946-2010) foi pesquisador do Institució Catalana de Recerca i Estudis Avançats
(ICREA) e professor pesquisador no Institut Barcelona d'Estudis Internacionals. De 1985-2008 foi
professor de Relações Internacionais na London School of Economics (LSE) e em seguida professor
emérito na mesma instituição.
21
islamismo, sobre temas como jihad, Israel e Palestina, o pensamento político
moderno no Islã, entre outras. A obra traz indicações dos campos político e
teológico sobre a posição a respeito da Palestina, especialmente o capítulo
escrito por Abu Sway que demonstra a impossibilidade de entregar territórios,
total ou parcialmente, em um acordo com Israel.
Entre os autores dos capítulos que compõem a obra constam nomes
como Abdullah Azzam, palestino, um dos fundadores do Hamas; Sayyid
Muhammad Hussain Fadlallah, possui título de Grande Aiatolá, pensador
islamita xiita libanês, considerado o pai espiritual do Hezbollah libanês e
Muhammad al-Ghazali, apresentado na obra como “importante pensador
islamita [...] que buscou interpretar o Islã e o Alcorão sob uma luz moderna”. A
medida que forem citados no corpo da pesquisa tais autores serão mais
adequadamente apresentados.
Outra obra é Hamas, um guia para iniciantes, de Khaled Hroub. Ele
nasceu num campo de refugiados em Belém. É professor e diretor do Projeto
de Mídia Árabe da Universidade de Cambridge, onde também é pesquisador. É
uma voz do Islã moderado. A obra “se propõe a relatar a história do ‘verdadeiro
Hamas’, não aquele que tem sido mal compreendido ou distorcido” (HROUB,
2009, p. 8). Hroub vê o Hamas “como uma consequência natural de uma
condição de ocupação brutal e não natural”, e considera que o ímpeto radical
do Movimento “deveria ser visto como um resultado completamente previsível
do projeto colonial israelense em andamento na Palestina” (Ibidem, p. 9). O
autor nos apresenta vasta cobertura do perfil e atuação do Hamas na região.
Filho do Hamas, de Yousef & Brackin (2010) é uma obra escrita em
coautoria. Seu “mentor” mais importante, Mosab Hassan Yousef, foi membro e
principal sucessor de um dos fundadores do Hamas. A obra é uma narrativa a
respeito de como o autor saiu do Movimento, após atuar por 10 diretamente
anos ligado a ele, e atuando secretamente como espião do serviço de
inteligência de Israel.
Yousef tem contribuições sobre o modo como os militantes pensam, o
raciocínio que seguem, os interesses que demonstram, a ideologia na qual se
apoiam e estruturam sua política nos territórios palestinos e como planejam os
ataques que fazem, alguns dos quais tendo sido realizados com a participação
22
do próprio autor. A obra de Yousef tem importância dentro do escopo da
pesquisa, por adicionar informações vindas do núcleo do Movimento.
Há, no Brasil, as fontes primárias mais relevantes para o estudo do Islã,
que são: o Corão (dentre os quais se destaca a versão produzida pelo Dr.
Helmi Nasr, chamada Alcorão na Tradução do Sentido, publicação patrocinada
pela Liga Islâmica Mundial, Makka) e a obra traduzida pelo Dr. Samir Hayek.
Dou destaque para uma versão do Alcorão Sagrado traduzido por este último,
versão que tem sido recomendada pela comunidade islâmica no Brasil, cuja
fluidez literária é bastante agradável. A mesma poderá ser utilizada em cotejo
com a versão do professor Nasr.
Outro grupo de obras que poderão ser consideradas serão as
publicações de teóricos islâmicos (fontes primárias), obras publicadas por
órgãos oficiais da própria religião. Trata-se de historiografia e teologia, entre as
quais se destacam obras publicadas pelo Centro Islâmico do Brasil. Neste
grupo de obras encontramos o modo como os teóricos (e teólogos) interpretam
e formulam a religião e como se dá o comportamento islâmico “recomendado”:
pelas vias da tradição, pela lei própria (sharia) e pela teologia.
Referencial teórico
Penso que a escolha de um bom referencial teórico pode ser feita em
função da preferência por este ou aquele campo de estudo ou pela adequação
ao próprio objeto do estudo. Nesta pesquisa, a opção pelo referencial teórico
adotado se justifica pelo fato de o objeto (o Hamas) é pesquisado na
perspectiva do campo religioso (ou por ser um movimento com este perfil
também, e é o que interessa aqui). Embora seja possível estudar o Hamas da
perspectiva sociológica, histórica, política ou outras, não posso perder de vista
o locus da pesquisa, no caso, o campo religioso.
Portanto, como referencial teórico, a pesquisa será apoiada na obra de
René Girard, A violência e o sagrado (GIRARD, 1990), núcleo da teoria
mimética desenvolvida pelo autor. Segundo o próprio autor, a teoria mimética
23
ou teoria imitativa é uma explicação da violência no comportamento humano e
da violência na cultura humana. 34
Em A violência e o sagrado, Girard constrói a compreensão do sacrifício
como ritual que procura apaziguar a violência interior ao ser. O sacrifício afasta
a violência latente. Nossa sociedade, no entanto, compreende mal os motivos
que levavam ao sacrifício. A lógica adotada no mecanismo do sacrifício, no
entanto, é diferente da lógica moderna. Girard cita o caso dos chukchi
(GIRARD, 1990, p. 29), povo nômade da Sibéria, que, ao primeiro ato de
violência, propunha a cessação disso, sacrificando um dos seus membros, não
o culpado, pois se assim o fizesse, estaria promovendo o revide, dando
continuidade à violência primeira. Tal mecanismo, neste sentido, é semelhante
ao adotado nos sacrifícios de mártires por grupos terroristas. O sacrifício dos
chukchi funcionava como uma crítica ao culpado que efetuou o primeiro ato de
violência (levando o culpado e a sua sociedade a uma reflexão crítica) e visava
à pacificação por meio do rompimento do ciclo de violência, não a vingança
que a eternizaria; “a vingança constitui, portanto, um processo infinito,
interminável” (Ibidem, pp. 27,35). Para evitar a vingança perpetuada, as
sociedades religiosas, no passado, instituíram o mecanismo do sacrifício; as
mais recentes adotaram o poder do Estado. “É o sistema judiciário que afasta a
ameaça da vingança” (Ibidem, p. 28). “Fazer violência ao violento significa
deixar-se contaminar por sua violência” (GIRARD, 1990, pp. 40,41). Esta é uma
das teses centrais de Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade
do mal (1999), onde Hannah Arendt advoga não ser coerente repetir o mal que
se pretende expiar.
São três as perguntas que movem o trabalho acadêmico de René Girard:
“O que une as sociedades? O que faz com que, pelo contrário, desmoronem?
34
Conforme Aula 1 [http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014] do prof. Dr. João Cezar de Castro
Rocha, especialista em Teoria Mimética, sendo coautor de uma obra sobre o tema com o próprio R.
Girard. Dr. João Cezar de Castro Rocha é graduado em História pela Universidade do Estado do Rio de
Janeiro e mestre em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Completou dois cursos de
doutorado em Letras pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro e em Literatura Comparada, pela
Stanford University. Em 2005-2006 realizou pós-doutorado na Freie Universität, Berlim, orientado pelo
Prof. Dr. Joachim Küpper. Atualmente é assessor ad hoc da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo e participa do Conselho Consultivo de várias revistas especializadas no Brasil e no exterior.
24
E, junto a tantos outros teóricos contemporâneos, Girard pergunta: qual a
contribuição da religião nesse processo?” (GIRARD, 2011, p. 21). Neste
sentido, Girard está em consonância com outros pesquisadores como
Durkheim e Bourdieu (citados anteriormente), entre outros, que entenderam o
papel primaz da religião na organização da sociedade. “O que Girard propõe é
uma forma atualizada de antropologia comparativa e de história comparada das
religiões e da cultura” (GIRARD, 2011 p. 36), utilizando “dados antropológicos e
etnológicos, incluindo mitos e ritos” e análise de mitologias gregas, criando
assim um “tipo de metodologia [com] o uso particular de fontes textuais ‘como
dados’ [...] e a própria literatura como se fossem ‘remanescências’, indícios”
(Ibidem, p. 35, ênfases no original). Mito, portanto, associa-se a mais uma
disciplina porque “é um fragmento de história humana [que] transfigurado pelo
pensamento primitivo, transforma-se naturalmente em representação do futuro,
ou seja, em imagem mobilizadora” (SOREL, 1992, p. 8. Ver também nota 12 da
mesma obra). 35
A teoria imitativa comporta quatro passos subentendidos na expressão
“mecanismo mimético” (GIRARD, 2011, p. 79).
O
mecanismo
mimético
abrange
uma
sequência
fenomenológica que é bem ampla. Descreve todo o processo,
começando pelo desejo mimético, que depois se torna
rivalidade mimética, com possível escalada até o estágio de
uma crise mimética e, por fim, terminando com a solução do
bode expiatório (Ibidem, ênfases acrescentadas).
Girard define o desejo como “aquilo que é mais distintamente humano” e
o desejo humano é fundamentalmente mimético ou imitativo (GIRARD, 2011 p.
31). Ninguém deseja por iniciativa própria; desejamos especificamente o
mesmo objeto desejado por aquele a quem elegemos como nosso modelo.
35
Girard defende sua teoria recorrendo aos inúmeros sucessos obtidos em sua aplicação: “Do que se
trata, na verdade? De aplicar a textos, aos quais ninguém ainda havia tido a ideia de aplicar, um
procedimento de decifração muito antigo e com uma eficácia a toda a prova, de uma validade mil vezes
confirmada no campo atual de sua aplicação” (GIRARD, 2004, p. 128).
25
Desejamos por imitação. O nosso desejo é aprendido ou derivado do desejo do
outro, que adotamos como nosso modelo. 36
A mimese possui caráter de aquisição. Assim, no primeiro momento do
desejo ele é apenas mimético, imitativo, elegendo um modelo em que se
basear. Mas, no próximo momento, esse desejo pelo mesmo objeto desejado
pelo outro, pelo modelo, pode levar à violência, porque aquele a quem
elegemos por modelo passa a ser nosso rival. O objeto ou o sentimento ou a
vocação metafísica, quando são os mesmos entre dois sujeitos, gera
desavenças, rivalidades, ciúmes, disputas entre próximos, o que Girard chama
“violência intestina” (GIRARD, 1990, pp. 14-46).
Estou aplicando a teoria imitativa ao conflito em questão, considerando,
por exemplo, a terra e o que dela advém como objetos declarados do desejo e
do interesse de ambos os povos, israelenses e palestinos. Não ficarei preso em
discussões semânticas ou de outra natureza, de que a “Palestina histórica”
(PAPE, 2003, p. 349) é dos palestinos ou o Israel bíblico (FLINT, 2009, p. 137)
é dos judeus: a questão, em si, se limitará à locação dos povos, e a locação se
dá na terra. A terra é o objeto em disputa e a teoria imitativa contempla este
aspecto. O “desejo” pela terra está presente na questão e no conflito. O desejo
pela manutenção do direito à terra, desejo pela manutenção “do que é seu”, da
terra que é sua e que foi ocupada, porque outro também a desejou. Deseja-se
também o que se considera seu por direito, o que deveria ser garantia básica:
estar na terra, e é isso o que ambos os povos querem e desejam.
Quando o modelo passa a ser rival na aquisição do objeto desejado,
institui-se o momento da crise. “A crise trágica é sempre analisada do ponto de
vista da ordem que está nascendo e nunca do ponto de vista da ordem que
desmorona” (GIRARD, 1990, p. 60). Em A violência e o sagrado Girard explica
a origem do termo: “termos aparentados, como crise, critério, critica, que
remontam todos à mesma raiz, ao mesmo verbo grego, krino, que significa não
só julgar, distinguir, mas acusar e condenar uma vítima (GIRARD, 1990, p. 32,
ênfases no original). Esse é o tema específico da obra, em que Girard trata do
rito sacrificial para solucionar o problema da crise da escalada da violência.
36
Conforme Aula 1 http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014.
26
O rito sacrificial é a primeira forma de instituição humana, religiosa, no
caso, que tentará controlar internamente a violência na comunidade e evitará
que a crise mimética se espalhe dando lugar à crise sacrificial (GIRARD, 1990,
pp. 55-85). No rito, a comunidade escolhe aleatoriamente (“ao acaso”, nas
palavras de Girard), uma vítima expiatória, “o bode expiatório”, que deverá ser
sacrificado, para que a escalada da violência não avance. Esta é a solução
religiosa ou de dentro do campo religioso. A violência dirigida contra a vítima
cessará a crise na comunidade, dando lugar ao sagrado. A paz retornará e a
harmonia se instalará, reorganizando os relacionamentos comunitários.
Resolve-se, assim, a crise sacrificial provocada pelo desejo mimético.
A perturbadora resposta oferecida por Girard [a crise] é que a
sociedade consegue o equilíbrio, ainda que a curto prazo, ao
transferir sua agressão para uma figura ou grupo de figuras
que fazem parte da sociedade, mas que estão à sua margem.
As vítimas são expulsas ou destruídas, e a comunidade então
passa a estar em paz consigo mesma. Esse processo de
identificação e de marginalização da vítima é aquilo que Girard
chama de “mecanismo do bode expiatório”. A Violência e o
Sagrado vai mais longe ainda, relacionando esse processo de
exclusão às crenças e às práticas religiosas (GIRARD, 2011,
pp. 20,21).
O bode expiatório age apenas sobre as relações humanas
perturbadas pela crise, mas dará a impressão de agir
igualmente sobre as causa exteriores, as pestes, as secas e
outras calamidades objetivas (GIRARD, 2004, p. 60).
Para Girard, as sociedades religiosas antigas 37 são entendidas como
aquelas que não possuíam um sistema judiciário. A instituição reguladora do
sistema judicial veio controlar a violência e a sua escalada (SOREL, 1992, pp.
37
Sua obra faz um recuo temporal de 15 a 25 séculos (e.g., A violência e o Sagrado), o que engloba o
nascimento do Islã e o surgimento do Corão. Esta é uma associação feita por mim, não consta da sua
obra.
27
11,265). 38 Uma vez controlada a violência pelo aparato estatal, o sagrado é
liberado e depurado da violência. Pensando especificamente no caso da
Palestina e do Hamas, a insuficiência ou ineficiência de organismos
mediadores de controle da violência e das próprias negociações de paz entre
ambos os povos libera o cenário para a configuração tal qual René Girard a
concebeu. As tentativas nacionalistas do Fatah e da Organização para a
Libertação da Palestina (OLP) 39 não levaram a bom termo as negociações, o
que promoveu a agenda do Hamas que, embora HROUB aponte o
nacionalismo como causa da sua ascensão (HROUB, 2009, p. 22), o
Movimento em si tem perfil islamista – estou considerando o arco de tempo
coberto pela pesquisa.
Crenshaw classifica o Hamas como “grupo híbrido” (CRENSHAW, 2007,
p. 24), com motivações sociais e religiosas. 40 Para ela, há o “velho” e o “novo”
terrorismo, cujos objetivos “são pensados para serem negociáveis e limitados”,
“são locais, não globais” e “normalmente relacionados a questões do
nacionalismo e da autonomia territorial” (Ibidem, p. 11). Já os “novos terroristas
procuram apenas destruir, e suas mortes resultarão apenas do alcance no
paraíso no milênio, não mudanças políticas aqui e agora” (Id., p. 19). Neste
quadro o Hamas está mais para “velho” terrorismo com nuanças do “novo, o
que ela dá o nome de “grupos híbridos”. Nesta categoria ela enquadra o
Hamas e o Jihad Islâmica (Id., p. 24).
Em contextos tingidos pela religião com ineficiência do aparelho estatal, o
rito fundador permite o estabelecimento da paz. Ele envolve o mecanismo do
bode expiatório. Em Totem e Tabu, Freud tratou desse modelo o qual Girard
38
Outros autores também disseram isso, mas essa informação não é de suma importância para a
compreensão da teoria mimética. Penso que este papel do Estado é senso comum.
39
A Organização para a Libertação da Palestina (OLP) foi fundada em 1964 no Cairo, por Gamal
Abdel Nasser, presidente do Egito, supostamente para representar o povo palestino oprimido. A esse
tempo, Yasser Arafat chefiava o Fatah, vindo a ser presidente da OLP em 1969. “As três maiores
organizações que a integram são o Fatah, um grupo nacionalista de esquerda; a Frente Popular para a
Libertação da Palestina (FPLP), um grupo comunista; e a Frente Democrática para a Libertação da
Palestina (FDLP), também de ideologia comunista” (YOUSEF, 2010, p. 47).
40
Segundo o trabalho de Crenshaw, os grupos “puramente religiosos mataram um total de 6.120
pessoas, e os grupos híbridos ou mistos mataram 4.657” (CRENSHAW, 2007, p. 24)
28
aprofundou, qual seja, dos objetos que são venerados e de proibições que são
estritas. O mesmo foi feito por Durkheim (1989, pp. 142,230-240). A sociedade
que estava ameaçada de desaparecimento se reúne, se religa, no assassinato
fundador. Essa é a hipótese central de A Violência e o Sagrado. 41
Em O Bode Expiatório, Girard concentra-se na demonstração da vítima
expiatória que apazigua a violência e o faz novamente, a exemplo de A
violência e o sagrado, por meio da análise de mitologias, gregas e em
premissas etnológicas e etológicas 42 (GIRARD, 2011, p. 33). A partir da análise
do texto do poeta francês Guillaume de Machaut, século XIV, Julgamento do
Rei de Navarra, Girard investiga o antissemitismo subliminar, subjacente ao
texto, que atribui aos judeus as mortes ocorridas na comunidade francesa (não
revelada a cidade). Estes, os judeus, “estão envenenando o rio” (GIRARD,
2004, pp. 14,55,60) e provocando as mortes. Os judeus são, então, os bodes
expiatórios da sociedade. Precisam ser perseguidos e eliminados, mas nem
isso provoca o fim das mortes, cuja causa, soube-se depois, era a peste negra.
Boa parte da obra trata dos conteúdos bíblicos, começando com a paixão
e as “palavras” importantes, como a de Pilatos (“não vejo crime nele”), e a de
Jesus (“perdoa-lhes, não sabem o que fazem”). Essa última fala da
inconsciência da multidão, mas não fala da bondade de Cristo, como a teologia
interpreta, antes, da revelação do evangelho que desmitifica o mito da
violência, o mito do bode expiatório. Mas Girard adverte: “Não vejo como
alguém pode encontrar algo de metafísico no desejo mimético, pelo menos não
na minha explicação” (GIRARD, 2011, p. 163).
Girard constrói, então, sua teoria sobre a crítica literária feita a partir dos
clássicos, analisando diversos mitos e tragédias e comparando seus elementos
semelhantes e como se comportam os agentes e personagens. Diante do
exposto, seguiremos a teoria mimética de Girard, que poderá ser resumida e
esquematizada em três “intuições”: 43
41
Disponível em Aula 3, sobre A Violência e o Sagrado, http://youtu.be/1Pyqlm3QQmc acessado em
02.04.2014.
42
Disciplina que estuda o comportamento dos animais.
43
Conforme Aula 1 disponível em http://youtu.be/G3Oro1bPf1Q em 01.04.2014.
29
1ª intuição: o desejo mimético ou rivalidade mimética. O desejo humano
é fundamentalmente mimético ou imitativo. O sujeito não deseja por iniciativa
própria, mas por imitação. O seu desejo é derivado do desejo do outro, que ele
adota como modelo para si. A ocorrência desse mecanismo tem como
consequência o caráter mimético do desejo que é a causa primordial da
violência humana.
A mimese possui caráter de aquisição. Então, no primeiro momento do
desejo, ele é apenas mimético, mas no próximo momento (ou passo), pode
levar à violência, porque o objeto, sentimento ou objeto metafísico desejado é o
mesmo objeto (ou sentimento ou objeto metafísico) desejado por aquele ao
qual foi usado como modelo. O modelo, então, passa a ser o rival.
2ª intuição: a hipótese central, desenvolvida em A violência e o sagrado,
vem trazer a resolução sacrificial da crise provocada pelo desejo mimético. O
rito sacrificial é a primeira instituição de controle interno da violência em um
grupo ou sociedade. Ocorrendo a morte de uma vítima (bode expiatório), a
escalada da violência, a qual Girard chama crise mimética, cessa, porque
promove a reconciliação e dá lugar ao sagrado, isto é, ao sentimento de
pacificação (algo como sentimento de dever cumprido ou justa retribuição). A
paz e a harmonia retornam. Estabelece-se a hierarquização dos ritos quando
surgem os objetos de adoração e as proibições estritas são formuladas.
3ª intuição: O reordenamento da sociedade ocorre em decorrência das
instituições humanas religiosas e seus mecanismos que religam a sociedade
que estava ameaçada de desagregação pela crise mimética, adotando
unanimemente a solução do bode expiatório.
Se a violência cria o sagrado (pacifica a sociedade), como proposto na
teoria, no caso em questão o terror é usado para atender a essa demanda por
sacralidade, para “criar” o sagrado (atender a uma demanda religiosa) ao
executar a vítima. A comunidade de fé compreende que o sacrifício atende a
uma determinação divina, a uma expectação divina. O esforço (jihad) por
cumprir o que está prescrito e interpretado pelo viés adotado pela
30
hermenêutica radical estabelece um fato religioso concreto e ao mesmo tempo
transcendental: o mujahidun (guerreiro) é elevado ao Paraíso junto a Allah. O
mártir é usado como bode expiatório. Se ele não for sacrificado, a paz não
acontecerá e a obediência divina não ocorrerá: é preciso sacrificar-se.
É preciso notar a influência religiosa na motivação para o martírio, pois
não são somente os pobres e marginalizados da sociedade, sem expectativa
de ascensão social os que são recrutados para o sacrifício, como demonstra
Stern 44 (2004, pp. 54,190,192), mas também das classes mais privilegiadas e
instruídas, como registra Crenshaw (2007, p. 18). A religião une a ambos. 45
Em sua teoria mimética, Girard também lidou com o conceito de revelação
(grego apocalipsys), e revelação do mecanismo do bode expiatório, que no rito
assume significado concreto produzindo efeitos reais dentro da cultura, e esta
sendo alimentada pela religião (GIRARD, 2010, p. 146).
Girard extrai sua compreensão da teoria elaborada a partir da leitura de
inúmeros textos e indica literalmente que a análise de conteúdo é a
metodologia mais acertada para se obter um resultado claro e das “constantes
e repetições de padrões” (GIRARD, 2011, p. 185). 46 Não se pode evitar que a
teoria mimética ajusta-se à questão que se coloca nesta pesquisa, uma vez
44
Jessica Stern tem mestrado pelo Massachusetts Instituto of Thecnology (MIT) em Engenharia
química/tecnologia política e doutorado pela Harvard University em políticas públicas. É pesquisadora
do Centro para a Saúde e os Direitos Humanos na Harvard School of Public Health. É uma dos principais
especialistas em terrorismo tendo servido no Conselho Nacional de Segurança Pessoal do Presidente
Clinton entre 1994-95. É membro da Comissão Trilateral e do Conselho de Relações Exteriores dos
EUA. Ela faz parte do Comitê Executivo e é membro do Conselho Consultivo do Cure Violence.
45
Shaul Kimhi (2004, pp. 817,8) demonstra com dados do IDF que “a maioria [dos homens-bomba]
foram educados: educação elementar – 14%; segundo grau – 51% e ensino superior 32%. Assim, como
muitos homens-bomba palestinos, um terço dos terroristas suicidas tem uma formação acadêmica. Esta
é uma taxa de educação mais elevada do que a taxa acadêmica média em toda a população palestina”.
46
Em nota de rodapé a esta citação, o autor trás: “A análise de conteúdo é uma metodologia de
pesquisa que utiliza um conjunto de procedimentos para validar inferências feitas a partir dos textos,
por exemplo para refletir padrões culturais de grupos, instituições ou sociedades; revela o foco da
atenção de indivíduos, grupos, instituições e da sociedade; descreve a tendência no conteúdo da
comunicação.” (Robert P. Waber, Basic Content Analysis. Londres: Sage, 1985, p. 9). Isto irá concordar
com a citação que farei de Bardin mais à frente.
31
que a hipótese leva em consideração a interpretação de textos. O Islã, como o
Cristianismo e o Judaísmo, é uma religião do livro.
Finalizando,
A teoria mimética é a única teoria que supõe um componente
de violência tanto na cultura primitiva quanto na moderna, e
que considera o homem etologicamente violento, mas dotado
de capacidade cultural (trazida pela religião) de controlar essa
violência, promovendo um comportamento ético (GIRARD,
2011, p. 192).
Nesse sentido, a teoria mimética provê, assim como a teórica crítica, um
dispositivo que esta chama de “emancipação”, mas que Girard chama de
“comportamento ético”, que se orienta para a solução do problema da crise.
Estou considerando “emancipação” no sentido de Horkheimer (pp. 143,152) e
Nobre (2004, pp. 10-12).
Como vimos, nenhuma sociedade pode viver “no sagrado”, ou
seja, na violência. Viver em sociedade é escapar da violência,
certamente não em uma verdadeira reconciliação, que
responderia imediatamente à questão “o que é sagrado?”, mas
em um desconhecimento sempre tributário de uma maneira ou
de outra, à própria violência (GIRARD, 1990, p. 403).
Seguindo, então, a metodologia de Girard, que trabalha com a literatura
ao elaborar sua teoria, e a sua indicação da análise de conteúdo, a
metodologia proposta para a esta pesquisa contempla a reconstrução parcial
da História, que atenda ao período recortado (1986-2006), que deverá ser
esboçada, visando à fundação e ao surgimento do Hamas. Também se contará
suscintamente a história do estabelecimento do Estado de Israel, considerando
o seu direito de existência, a fim de prover contextualização necessária e
melhor compreensão do tema da pesquisa. Para o trabalho metodológico
seguirei as diretrizes de teóricos como Reis (2010, p. 60), quando afirma que:
32
[...] a pesquisa bibliográfica, por meio da revisão da literatura,
impõe-se na produção de conhecimentos acadêmicos com as
funções de [...] auxiliar a definir corretamente os termos ou
conceitos que fundamentarão a pesquisa para assim evitar
incorreções e ambiguidades de interpretações e, quando
necessário, esclarecer seu significado específico.
Para a revisão bibliográfica, seguirei o método proposto por Bardin
(1979, pp. 93-95), da análise de conteúdo em 3 partes:
a. Pré-análise
b. Exploração do material
c. O tratamento dos resultados, a inferência e a interpretação.
Após a leitura flutuante ou familiarização com o material e os discursos
que registra, será feita a escolha dos documentos, que comporão o corpus
(“constituição do corpus”) para os procedimentos analíticos posteriores. Esta
constituição seguirá regras de representatividade, homogeneidade e da
pertinência, na qual “os documentos retidos devem ser adequados, enquanto
fonte de informação, de modo a corresponderem ao objetivo que suscita a
análise” (BARDIN, 1979, p. 98).
Conforme antecipei na Delimitação da Pesquisa, procurarei demonstrar
as hipóteses desta pesquisa a partir dos próprios discursos de autoridades “no”
Islã e “do” Islã. Para isto, serão considerados depoimentos e declarações
oficiais de autoridades e pensadores do Islã, com preferência aos membros do
Hamas ou relacionados com o Movimento e de pesquisadores e especialistas
no assunto. Como já referi, os discursos dos membros ou pensadores
intérpretes do Corão pelo viés radical é que nos darão a interpretação, a visão
de mundo própria daqueles que olham o Islã desde dentro.
A referenciação de índices e a elaboração de indicadores que apontam
na direção da hipótese serão feitas considerando os textos como uma
manifestação contendo indicadores que “a análise vai fazer falar”, sendo
essencial o trabalho preparatório de escolha dos índices adequados e
específicos em virtude das hipóteses e sua posterior e final organização
sistemática (BARDIN, 1979, pp. 99,100).
33
Uma vez escolhidos os índices, procede-se à construção de
indicadores precisos e seguros. Desde a pré-análise devem ser
determinadas operações: de recorte de textos em unidades
comparáveis de categorização para análise temática e de
modalidade decodificação para o registro de dados (BARDIN,
1979, p. 100, ênfases no original).
Isto significa que, embora a pesquisa possa me colocar frente a frente
com duas ou mais interpretações do mesmo dado/índice (ou fato), seguirei
rigorosamente aqueles que se ajustem stricto sensu à teoria e à hipótese. Isso
justificará em parte o “desvio” do “campo minado” que é o tema.
Em seguida, os principais eventos recortados na revisão bibliográfica
serão isolados e relacionados com o que o referencial teórico indicar como
relevante. Finalmente, serão esboçados e analisados o tipo de ordem social em
que tais temas lancem luz a compreensão do objeto estudado e como a
hipótese se comportará diante da metodologia proposta. Ao tratamento do
material recolhido anteriormente Bardin chama codificação. Codificá-lo é
transformá-lo em “uma representação do conteúdo ou da sua expressão,
susceptível de esclarecer o analista acerca das características do texto, que
podem servir de índices” (BARDIN, 1979, p. 103). Havendo suficiente repetição
no padrão que aponte para a pergunta de partida, a hipótese se confirmará e a
teoria se manterá.
Sobre um trabalho de recorte, agregação e enumeração, a análise do
conteúdo levará em conta as expressões, que são “aspectos formais da
significação (palavra e palavra tema; frase e unidade significante)” (BARDIN,
1979, p. 106). Bardin especifica como unidades de registro e de contexto a
“palavra”, o “tema (análise temática)” e o “objeto ou referente”, que são temas
eixo em redor dos quais o discurso se organiza (BARDIN, 1979, p. 104).
Portanto, a enumeração do índice extraído da análise do conteúdo
(tema, palavra, personagem, etc.) ocorrerá a partir da “inferência”, sendo que
esta designa “a indução, a partir dos fatos” (BARDIN, 1979, p. 137), portanto,
um trabalho de cunho histórico também.
Justifico, portanto, que a análise de conteúdo constitui bom instrumento
de indicação para se investigar as causas (variáveis inferidas) a partir dos
34
efeitos (variáveis de inferência ou indicadores; referências no texto) e assim
decodificar de modo a servir para demonstração da hipótese inicial e
estabelecer o objetivo inicial da pesquisa.
No Capítulo 1 farei uma breve reconstrução da história de como as
sociedades lidam com a questão da violência, antes e depois do advento do
Estado, que reivindica o uso da força para reprimir a crise da violência entre
seus cidadãos. Neste Capítulo também procuro abordar as considerações
feitas por autores que apresentam a visão do Islã sobre a violência, na qual
demonstram ser o Islã uma religião que não estimula a violência gratuita e que
atos estranhos a esse modelo são realizados por aqueles que não
compreendem o espírito do Islã, que significa paz (e.g., NASR 2014).
No Capítulo 2 haverá um contraponto. A reconstrução da História do Islã
pela perspectiva das suas batalhas e enfrentamentos, uma vez que em
pesquisa prévia verifiquei haver um movimento de retorno às fontes, ad fontes,
um resgate a determinado modelo original ideal no período que Muhammad era
vivo. Neste Capítulo será possível notar as diferenças de comportamento da
comunidade original que refletiu na composição do texto do Corão, no que se
convencionou chamar “versículos de Meca” (ou mequenses) e “versículos de
Medina” (ou medinenses).
Finalmente, no Capítulo 3 haverá maior concentração na abordagem
sobre o Hamas, sobre alguns pronunciamentos feitos por seus apoiadores,
pensadores e líderes, sua origem na Irmandade Muçulmana, suas atividades e
estratégia de resistência e o modo como permeiam essas ações com a
confiança de que obedecem a mandamentos divinos.
1. A VIOLÊNCIA
De fato, a religião tem sempre um único
objetivo: impedir o retorno da violência
recíproca. René Girard
35
Neste capítulo farei uma introdução ao cenário onde o conflito entre as
sociedades palestina e israelense ou entre o Hamas e o Estado de Israel tem
ocorrido. Esta breve porção situará as primeiras considerações feitas sobre a
violência, tal como vista em séculos recentes e o desenvolvimento no modo
como a sociedade e os poderes públicos lidam com ela. Na segunda parte do
capítulo farei considerações introdutórias sobre a questão da violência no
âmbito do pensamento do Islã.
1.1 Qual é o nosso cenário?
O estabelecimento de Israel como Estado não é história que se possa
contar em poucas linhas; admito a complexidade e adianto não ver a
necessidade de maiores aprofundamentos na reconstrução da história.
Selecionarei alguns pontos como as causas primárias mais amplas do presente
conflito,
o
qual
provoca
as
ações
do
Hamas.
Notadamente
(não
exclusivamente, repito) os assentamentos e a ocupação de Israel, além das
fronteiras previstas inicialmente no Plano de Partilha (KARAN, 2010). 47 Tais
reclames por parte dos palestinos, inicialmente, e dos palestinos somados ao
Hamas, hoje podem ser conferidos em vários artigos sobre o tema. 48
O “movimento” 49 mais intenso reunindo judeus na diáspora (expressão
sinônima a exílio para o povo judeus após o ano 70) começou no século XIX
(ARMSTRONG, 2009, pp. 205-207), embora houvesse judeus na terra muito
47
Brasil de Fato. Disponível em http://www.brasildefato.com.br/node/4627 e acessado em
15.04.2014.
48
E.g., MORRIS, 2014; HALLIDAY, 2014; HASSAN, 2014; PAPE, 2003; AVNERY, 2014 et.al.
49
O termo “sionismo” [relacionado a “movimento sionista”] foi criado em 1885 pelo escritor judeu-
austríaco Nathan Birnbaum como uma alusão a “Sion”, um dos nomes bíblicos de Jerusalém (Al-Quds
para os árabes e muçulmanos). Nessa época, “sionismo” basicamente significava uma resposta ao
problema nacional judeu [...] da dispersão judaica em vários países e [o fato de serem] uma minoria
populacional, onde inclusive muitos judeus eram perseguidos [...]. Assim, a solução sionista pretendia
acabar com essa situação, através do retorno a “Sion” (KARAN, 2010).
36
antes disso. 50 Outras regiões foram cogitadas, como Uganda (na África
Oriental) e a Bacia do Rio da Prata, mas
[...] a região da Palestina Otomana acabou se sobressaindo
das demais em virtude principalmente das migrações massivas,
a partir de 1917, incentivadas pelo governo britânico – que “via
com bons olhos” imperialistas a criação de um “lar nacional
judaico” na Palestina histórica (de maioria populacional árabe e
islâmica) (KARAN, 2010).
Os termos entre aspas constam da Declaração de Balfour, “anunciada em
novembro de 1917 pelo governo britânico na forma de uma carta de lord
Rothschild” (SAID, 2012, p. 18).
O “sionismo político internacional”, movimento que ganhou forte projeção
pelos esforços do “jornalista judeu-húngaro Theodor Herzl (1860-1904) na
Europa
em
fins
do
século
19”,
era
um
“movimento
nacionalista
preponderantemente laico e secular” que trabalhava para resolver a questão
dos judeus da diáspora, ou seja, “visava à fundação de um Estado nacional
judaico” (KARAN, 2010).
Com o apoio britânico e o início das imigrações massivas “principalmente
a partir de 1917”, em função das expressões de apoio dadas na Declaração
Balfour (que “via com bons olhos” a criação de um “lar nacional judaico” na
Palestina histórica) e o apoio de “outros atores (como a ONU), determinou a
partilha da Palestina entre um Estado árabe e outro judeu em 1947 e a criação
do Estado de Israel em 1948” (KARAN, 2010; BARD, 2004, p. 10).
1.1.1 A Guerra da Independência (1948-9)
50
“Grandes comunidades se restabeleceram em Jerusalém e Tiberíades por volta do século IX. No
século XI, havia concentrações judaicas em Rafah (em hebraico Rafiah), Gaza, Ashkelon, Iafo (Jaffa) e
Cesareia” [...] “No início do século XIX – anos antes do nascimento do movimento sionista moderno –
mais de dez mil judeus viviam ao longo do que hoje é Israel (BARD, 2004, p. 9).
37
Em 1947 os ingleses decidiram “entregar o assunto às Nações Unidas”
(HOURANI, 1994, p. 362). A divisão da Palestina, conforme proposta aprovada
pela ONU, previa que “o Estado árabe deveria ficar com aproximadamente
43% do território”, 56% seria destinado a criação do “Estado judeu-sionista” e
os “restantes 1%, Jerusalém, seriam colocados sob um mandato internacional
administrado pela ONU” (KARAN, 2010).
Essa Palestina cujos habitantes mais remotos seriam povos egeus
(BARD, 2004, p. 10) havia sido “islamizada”, por assim dizer, no século VII
(Ibidem) e se tornado uma província do Império Otomano em 1516 (SAID,
2012, p. 13). Remonta daí o seu perfil árabe e o Islã como religião
relativamente predominante. Sua população era constituída de uma minoria
judaica contando “174.606 pessoas entre um total de 1.033.314”.
[...] em 1936 o número de judeus subiu para 384.078 entre
1.366.692; e em 1946 eles eram 608.225 numa população total
de 1.912.112. [...] Todos falavam árabe, eram muçulmanos
sunitas em sua maioria e conviviam com uma minoria formada
por cristãos, drusos e muçulmanos xiitas que também falavam
árabe (SAID, 2012, pp. 13,14).
A divisão proposta pelo Mandato Britânico não parece ter considerado a
maioria árabe nem a sua ocupação. Karan ressalta que “a maioria do território
seria controlada por uma minoria judaica (30% [da população])” (KARAN,
2010), mas a situação foi agravada ainda “antes da fundação de Israel e da
primeira guerra árabe-israelense”, devido a “superioridade econômica e militar”
israelense que “já tinham comprado 6% das terras e invadido a maior parte
delas, expulsando a população civil árabe-palestina” (Ibidem).
A questão da Palestina envolveu as relações entre a Grã-Bretanha e os
Estados Unidos de um lado e palestinos e a Liga Árabe do outro (HOURANI,
1004, p. 362). Os ingleses fixaram data para a retirada de sua presença na
região: 14 de maio de 1948 (Ibidem). Mas à medida que a data se aproximava
a autoridade britânica diminuiu e aumentou a pressão israelense convergindo
para um conflito, o que provocou a intervenção dos países árabes (Ibidem, p.
364; AVNERY, 2014).
38
Quando da proclamação oficial da criação do Estado de Israel por David
Ben Gurion (1886-1973) em 15 de maio de 1948, centenas de militantes
ligados a Irmandade Muçulmana, perseguidos “no Egito após tentarem
derrubar o regime do Rei Farouk após a Segunda Guerra Mundial” [...] “fugiram
para a Transjordânia de onde partiriam para a batalha contra o Estado de Israel
em 1948” (WEINBERG, 2007, p. 158; HROUB, 2009, p. 35) apoiando os países
árabes no esforço contra a ocupação israelense. Assim, “forças egípcias,
jordanianas, iraquianas, sírias e libanesas avançaram sobre as partes
predominantemente árabes do país” (HOURANI, 1994, p. 364) dando início ao
que ficou conhecido como a Guerra da Independência.
A ONU mediou armistícios no início de 1949 criando fronteiras estáveis,
mas “cerca de 75% da Palestina foram incluídos dentro das fronteiras de Israel”
(Ibidem). “Assim, após a primeira guerra árabe-israelense de 1948-49, a
ocupação sionista da Palestina havia ascendido a mais de 70% do território,
deixando aos árabes as piores terras de cultivo para sobreviver” (KARAN,
2014).
1.1.2 A Guerra dos Seis Dias (1967)
Anos mais tarde, em 1967, o povo palestino sofreria novo baque. Havia
mudanças em determinados cenários políticos no mundo árabe, como as
alianças entre liberais educados que voltavam do exílio, juntando-se a “oficiais
do novo exército regular” e ascendendo ao poder no Iêmen do Norte, formando
a República Árabe do Iêmen; distinguiam-se, assim, do Iêmen do Sul, recém
restabelecido após a retirada do protetorado britânico, o que fez emergir a
República Popular do Iêmen (HOURANI, 1994, p. 412). O Egito havia sido
solicitado a apoiar com a força militar no Iêmen do Norte e enviou apoio
(Ibidem). A dinâmica da política de ‘Abd al-Nasser e o seu histórico como
“figura simbólica do nacionalismo árabe” herdada desde a guerra do canal de
Suez em 1956 (Ibidem, p. 414) elevaram-no à espécie de “defensor dos
árabes” na região, diante de um problema incontornável: as relações com
Israel, o que incluía a questão da Palestina (HOURANI, 1994, p. 412).
39
A Síria havia caído “nas mãos de um grupo ba’thista que achava que só
através da revolução social e do confronto direto com Israel se podia resolver o
problema da Palestina e criar uma nova nação árabe” (HOURANI, 1994, p.
413). “Desde 1948, os próprios palestinos não tinham podido desempenhar um
papel independente nas discussões sobre seu destino” (Ibidem). A criação da
Organização para Libertação da Palestina (OLP) em 1964, foi a “solução”
encontrada pela Liga Árabe para ser, à parte da própria Liga, o organismo para
representar os interesses dos palestinos; mas, ao mesmo tempo, estava “sob
controle egípcio e as forças armadas a ela ligadas faziam parte dos exércitos
do Egito, Síria, Jordânia e Iraque” (Ibidem). O maior expoente da OLP, o
próprio Yasser Arafat, era natural do Cairo, não um palestino.
Entre os palestinos exilados e educados no Cairo e em Beirute em fins da
década de 1950, emergiram dos grupos nacionalistas árabes pró-nasseristas,
especialmente em Beirute, uma geração reagente aos interesses árabes que
não eram os mesmos dos palestinos (Ibidem). O Fatah e grupos menores são
dessa safra que “aos poucos passaram para uma análise marxista da
sociedade e da ação social” e, consequentemente, o consenso decorrente daí
dizia que “o caminho para a recuperação da Palestina estava numa revolução
fundamental nos países árabes” (HOURANI, 1994, p. 413).
As primeiras “ações diretas” desses grupos contra Israel começaram em
1965, e não passaram sem retaliações, “não contra o Ba’th sírio, que apoiava
os palestinos, mas contra a Jordânia” (Ibidem). Os árabes agora eram minoria
entre a população de Israel, que em 1967 contava cerca de 2,3 milhões sendo
que 13% eram árabes (Ibidem). Mais que com habitantes, Israel se fortalecia
economicamente com o apoio dos Estados Unidos, com o envio de
contribuições de judeus do mundo todo e de recursos vindos da Alemanha em
caráter de reparação. Militarmente, Israel também se fortalecia e sabia-se mais
preparado que os países vizinhos, ou por uma questão de segurança frente à
hostilidade na região ou por alimentar “a esperança de conquistar o resto da
Palestina e terminar a guerra inacabada de 1948” (Ibidem).
Esses cenários convergiram em 1967, quando ‘Abd al-Nasser solicitou à
ONU a retirada de suas forças da fronteira com Israel, estacionadas desde a
“guerra do canal”, e fechou o golfo para os navios israelenses (HOURANI,
40
1994, p. 414). A tensão cresceu na região levando a Jordânia e a Síria a
fazerem acordo com o Egito; mas, a 5 de junho Israel atacou:
[...] e destruiu sua força aérea. E nos poucos dias seguintes os
israelenses ocuparam o Sinal até o canal de Suez, Jerusalém e
a parte palestina da Jordânia, e parte do sul da Síria (o Jawlan,
ou “colinas de Golan”) (HOURANI, 1994, p. 414).
Assim, foi na Guerra de 1967, que durou somente seis dias (de 5 a 10 de
junho de 1967, FLINT, 2009, p. 335), que Israel conquistou a Cisjordânia à
Jordânia, a Faixa de Gaza e a Península do Sinai (devolvida em 2005 ao Egito)
e as colinas de Golã à Síria (KARAN, 2014). Falando da Guerra dos Seis Dias,
Walzer esclarece que a situação como vemos hoje é o que se deve esperar:
El resultado [que a guerra e a ocupação provocam] es una
“acción
recíproca”,
una
continuada
escalada,
de
cuyo
desarrollo nadie es culpable, ni sequiera en el caso de que
haya actuado primero, porque en estas circunstancias todo
acto puede denominarse, y lo es casi con toda certeza,
preventivo [...] No hay duda de que a menudo las guerra se
convierten em una espiral violenta 51 (WALZER, 2001, p. 54).
Segundo Hourani, 52 tais perdas de terras por parte dos palestinos
fortaleceu o seu “senso de identidade” e os levou a trabalhar em prol de uma
“existência nacional separada e independente” (HOURANI, 1994, p. 415) que
iria desembocar nos atuais quadros como trata esta pesquisa. Do lado de
Israel, a administração das terras tem sido tratada como conquista legítima
51
“O resultado [que a guerra e a ocupação provocam] é uma “ação recíproca”, uma escalada
continuada, de cujo desenvolvimento ninguém é culpado, nem sequer é o caso de que agiu primeiro,
porque, porque nestas circunstâncias qualquer ato pode ser chamado, e quase certamente é,
preventivo [...] não há dúvida de que a guerra muitas vezes se tornam em uma espiral violenta” (trad.
livre).
52
Albert Hourani (1915-1993) nasceu em Manchester (Inglaterra), de pais libaneses. Formou-se em
Oxford, ali lecionou de 1948 a 1979. Foi professor visitante nas Universidades de Chicago, Harvard e na
American University em Beirute, e dirigiu o Middle East Centre, em Oxford.
41
(Ibidem; KAPELIOUK, 1972). No que toca a este trabalho, Israel mantém os
territórios ocupados na Cisjordânia e na Faixa de Gaza, “o que “hoje representa
quase 80% do território da Palestina histórica sob controle e administração
israelense” (KARAN, 2014). A reivindicação palestina “para constituir seu
Estado soberano nada mais é do que 20% das terras originais do mandato
britânico, um valor bem menor do que os 43% do plano de partilha de 1947”
(KARAN, 2014) 53 e parte da luta de resistência e motivo dos conflitos na
região. 54 “Foi o projeto sionista que levou ao surgimento dos movimentos de
resistência palestina, tanto nacionalistas quanto muçulmanos” (ABU-RABI,
2011, p. 119).
Este é o cenário considerado nesta pesquisa. Ao fazer perguntas mais
adiante não arbitrarei sobre a legitimidade ou não da violência no conflito. A
questão colocada é outra e precisa considerar o fundo histórico. Penso ter
pontuado a situação e, assim, partirei para um recorte mais aproximado.
1.1.3 Interlúdio
Cerca de 40 homens foram capturados e levados à delegacia por um
grupo de policiais. Um deles estava trabalhando, como o frentista Ismail Helou,
22 anos de idade. Outro, Rajou Hayek, 33 anos, que levava seu pai, um
cadeirante, a uma clínica médica, foi algemado e obrigado por oito homens a
entrar num veículo, também da polícia, e levado para a delegacia. A acusação?
Eram palestinos com aparência de “homens ocidentais”: corte de cabelo ou
53
Nas palavras de Mustafa Abu Sway, professor de estudos islâmicos na Universidade de Al-Quds:
“[...] na criação de Israel, em 1948, sobre 78% da terra da Palestina. Israel ocupou os outros 22% da
Palestina, juntamente com regiões de outros países árabes, em 1967. Sempre que há algum discurso
sobre a solução de dois Estados, o proposto Estado palestino significa 22% ou menos, da Palestina
histórica!” (ABU-RABI, 2011, p. 119).
54
As Resoluções da ONU 242 e 338 determinam que Israel devolva os territórios e retorne às
fronteiras de anteriores a guerra de 1967. Além disso, há a Resolução 194 de 1948, “que concedia aos
refugiados palestinos o direito de retornarem para suas terras e a compensação pela perda de seus lares
e propriedades, e por serem expulsos da Palestina devido à criação do Estado de Israel em 1948”
(HROUB, 2009, pp. 144,145).
42
calça com cintura baixa. Por isso foram espancados, tiveram seus cabelos
raspados e sofreram humilhações. 55
Quando notícias assim são lidas mundo afora, parte das pessoas fica
com a respiração suspensa. Essas informações passam uma mensagem de
violação dos direitos humanos, para dizer o mínimo. Cidadãos devem contar
com o Estado na proteção de suas vidas. Preferências a um estilo ou gosto
pessoal incluem-se aí, seja no corte de cabelo, seja no jeans que veste. Mas, e
quando a notícia reporta a morte de uma única pessoa, que seja – quando não
dezenas delas – vítimas da explosão de um homem-bomba?
O modo como o homem encarou a violência recentemente teve um
desenvolvimento. Precisamos entender esse desenvolvimento em diferentes
épocas e regiões e procurar delimitar o que estou chamando de “violência” e
fazê-lo em conexão com o entendimento que o Islã tem da violência.
Reconheço que o mundo do Islã é amplo e complexo, que não se limita a um
grupo homogêneo, nem a uma atividade normativa para toda a comunidade.
Mas esta pesquisa tem um recorte específico e por isso minha concentração se
voltará para as informações que acompanham e corroboram a sua proposta. É
neste sentido que o texto será composto, sem deixar-se inflamar por melindres
ou paixões que não contribuem com a proposta da pesquisa.
A notícia acima dá conta de uma ação realizada pelo Hamas e ocorrida
em Gaza, território palestino onde o grupo atua e tem forte apoio da população
local (HROUB, 2009, p. 114). 56 Devemos perguntar se tais atos são
considerados violentos aos olhos dos habitantes daquela região e daquela
cultura num sentido mais amplo. Por que há esse comportamento?
Alguma religião manda matar? Nenhuma religião manda matar, mas o
homem mata, porque não entende o espírito da religião; por interpretá-la
incorretamente ou porque seus atos públicos são autônomos. Se a ação
humana em nome da religião causa espanto, é provável que o praticante não
55
“Gaza police shaving heads of young men in crackdown on western fashion”, The Guardian.
Disponível em http://www.guardian.co.uk/world/2013/apr/29/gaza-police-shaving-heads-men-western
em 9.07.2013.
56
“A base da popularidade do movimento atinge 30% a 40% de todo o eleitorado palestino.”
43
tenha compreendido o significado e o sentido da religião. Tal indivíduo usa
lentes embaçadas para interpretá-la e, assim, não a enxerga bem.
Na verdade, as guerras religiosas são as duas coisas ao
mesmo tempo porque as categorias teológicas de pensamento
tornam impossível pensar e levar adiante a luta de classes
enquanto tal, permitindo não obstante pensá-la e levá-la a cabo
enquanto guerra religiosa (BOURDIEU, 2011, p. 47).
Em outras palavras, é possível justificar, por meio da religião, um conflito
essencialmente social ou um ato público, podendo até disfarçá-lo.
Sociedades não religiosas também matam. James Kennedy (2003, pp.
299,300) aponta que os Estados ateus totalitários – portanto orientados por
política antirreligiosa, somados aos massacres de Stálin, Mao Tsé e Hitler,
mataram mais de 130 milhões de vidas em um século apenas, o século XX. Se
adicionarmos à religião um conflito de ordem política, teremos um efeito
altamente explosivo? Que cultura seria gerada desta combinação: religião e
política? A prática comum a esta comunidade, por estranha que parecesse a
outros grupos, seria justificada em si, pois não temos como catalogar hábitos
culturais como “válidos” ou “não válidos”, “adequados” ou “inadequados”. Não
podemos dizer que isso ou aquilo é certo, pois o que uma cultura produz é
gerado no acordo das relações internas de um grupo e refletem ou orientam o
seu comportamento; se torna “lei” (DURKHEIM, 1989, p. 55).
A definição da antropologia cognitiva diz, ainda, que esses traços que
caracterizam uma cultura são formados por estruturas psicológicas (GEERTZ,
1989, p. 21) e que a cultura “é um contexto, algo dentro do qual [os
acontecimentos sociais] podem ser descritos de forma inteligível – isto é,
descritos com densidade” (Ibidem, p. 24).
É preciso discutir a participação da religião como influência sobre o
comportamento humano e social, i. é., qual influência gera qual comportamento
e quais efeitos trazem. Também precisamos estabelecer uma relação
minimamente aceitável, um acordo ou base comum sobre o que é a violência
dentro das diferentes culturas (são semelhantes?) ou o que tem sido
considerado violência em nossos dias (são legítimas ou não?). Desse modo,
44
vamos começar definindo os termos que a pesquisa adotará como seus
referenciais etimológicos e epistemológicos.
1.2 A violência ontem
Basta, porém, que homens estejam sendo proibidos de ser
mais para que a situação objetiva em que tal proibição se
verifica seja, em si mesma, uma violência. Violência real, não
importa que, muitas vezes, adocicada pela falsa generosidade
a que os referimos, porque fere a ontológica e histórica
vocação dos homens – a do ser mais.
A citação feita de Paulo Freire (2005, p. 47) dá conta de como é amplo o
sentido que a palavra “violência” pode assumir em nossos dias. O educador
está lidando com o processo do crescimento humano, e ele o faz de olho na
opressão que classes dominantes impõem ao que chama “oprimido”. Este
aparente oprimido, explicitamente, é na verdade, de modo curioso o indivíduo
que pode ensinar o opressor, aquele que se julga detentor do poder, do
conhecimento e da cultura. O oprimido não oprime:
Daí que, estabelecida a relação opressora, esteja inaugurada a
violência, que jamais foi até hoje, na história, deflagrada pelos
oprimidos. Como poderiam os oprimidos dar início à violência,
se eles são o resultado de uma violência? Como poderiam ser
os promotores de algo que, ao instaurar-se objetivamente, os
constitui? (FREIRE, 2005, p. 47).
Freire chega mesmo a chamar “terror” a tal situação de “tirania”, na qual
“os que primeiro odiaram” inauguram o ódio e “geram os demitidos da vida, os
esfarrapados do mundo” (FREIRE, 2005, p. 47), ou “os condenados da terra”,
título da obra de Frantz Fanon, 57 onde lemos: “O desdobramento da violência
57
Frantz Omar Fanon (1925–1961) foi um psiquiatra e ensaísta de ascendência francesa e africana.
Fortemente envolvido na luta pela independência da Argélia, foi também um influente pensador
do século XX sobre os temas da descolonização e da psicopatologia da colonização.
45
exercida no seio do povo colonizado será proporcional à violência exercida pelo
regime colonial contestado” (FANON, 1968, p. 69). Mas não me deterei em
questões epistêmicas internas a estas obras; tão somente quero pontuar o
alcance do debate sobre o que é a violência. No caso de Freire, a violência é a
privação do acesso aos mecanismos legais e institucionais do Estado para que
o sujeito seja aquilo para o qual a sua própria vocação o impulsiona: o ser
mais, o ser humano em desenvolvimento, situação análoga à que encontramos
nos territórios palestinos, como veremos mais adiante no Capítulo 2.
Marilena Chauí 58 diz que uma brecada (ou freada) mais brusca que o
motorista de ônibus dá, no trânsito, também é uma manifestação de violência,
“um ato de violência” (VÁRIOS, 1997, p. 130), mas um ato não visto pela
sociedade local, brasileira no caso, por conta do que chama “sistema dos
preconceitos” (VÁRIOS, 1997, p. 117). Esse mecanismo ou sistema é a
condensação de um senso comum em torno do qual determinado pensamento
ou sensação são admitidos como verdade para uma comunidade. Como é um
pré-conceito, tal formulação é concebida anteriormente a todo e qualquer ato
do grupo e é usado por este como emblema das pseudovirtudes pelas quais
espera ser visto pelos de fora. A autora relaciona quatro marcas mais
significativas do preconceito, das quais nos interessa a última:
O preconceito é intrinsecamente contraditório: ama o velho e
deseja o novo, confia nas aparências mas teme que tudo o que
reluz não seja ouro, elogia a honestidade mas inveja a riqueza,
teme a sexualidade mas deseja a pornografia, afirma a
igualdade entre os humanos mas é racista e sexista, desconfia
das artes mas não cessa de consumi-las, desconfia da política
mas não cessa de repeti-la (VÁRIOS, 1997, p. 118).
Há, portanto, uma construção retórica que orienta antecipadamente a
noção e a definição do ato e do sistema, por onde se nomeiam as práticas
sociais de um grupo visando preservar ou reforçar a manutenção de seus
elementos culturais. Assim, o preconceito serve como ferramenta para o
58
Marilena de Souza Chaui é Doutora em Filosofia pela USP, onde também é professora titular.
46
exercício da dominação, pois dá ao dominado a ilusão de que tudo está
explicado e justificado; não há o que temer; antes, o preconceito “se tornou a
forma de segurança num mundo, enfim, tornado transparente” (VÁRIOS, 1997,
p. 119). Seguramente encontramos no conflito entre judeus e palestinos a
promoção lado a lado de discursos que procuram rotular “o outro” por meio da
construção de imagens distorcidas que suscitam somente os seus aspectos
negativos, ou seja, preconceito mútuo. 59
Como exemplo de tal construção retórica, Chaui menciona a falácia de
que “o povo brasileiro é pacífico e não-violento por natureza”, senso comum
cuja origem data do seu descobrimento, quando os pioneiros referiam-se em
seus relatos como “o Paraíso Terrestre [...] habitado por homens e mulheres
em estado de inocência” (VÁRIOS, 1997, pp. 120,121). Como é possível no
Paraíso Terrestre, conviverem “homens e mulheres em estado de inocência” e
simultaneamente um grupo violento? Inadmissível! Portanto, sendo o Brasil
habitado por “homens e mulheres em estado de inocência”, segue-se o
raciocínio falacioso de que o povo brasileiro é “cordial, generoso, pacífico, sem
preconceitos de classe, raça e credo.” (Ibidem).
Essa imagem caricata construída em relatos e correspondências,
celebrada dos botequins às mais altas rodas sociais precisa explicar a violência
real existente no país em que os fatos insistem em mostrar. Como encará-la?
Chaui diz que a resposta é simples: “não a encarando, mas absorvendo-a no
preconceito da não-violência” (VÁRIOS, 1997, p. 121). Ela, então, apresenta
um sistema para driblar a convivência do fato com o relato, das ocorrências
com as consciências. O sistema consiste de três mecanismos diretos e três
procedimentos indiretos. Interessam-nos aqui os três mecanismos.
O primeiro é o mecanismo da exclusão. Usando como exemplo o próprio
caso brasileiro, no mecanismo da exclusão afirma-se que o povo da terra é
não-violento e, portanto, qualquer violência situada nos limites da nação é
59
Ver, e.g., HANIF, S. The difference between freedom-fighters and terrorists is not perception but
terminology,
in
Media
Monitors
Network,
California,
2003.
Disponível
em
http://www.mediamonitors.net/sabiahanif1.html, acessado em 15.04.2014. Do outro lado, AVNERY, U.
All Kind of Terrorists, in Media Monitors Network. Califórnia, Nov. 2001. Disponível em:
http://www.mediamonitors.net/uri44.html, acessado em 22.04.2014.
47
praticada por não-brasileiros, mesmo que o infrator seja nascido e registrado
no país. Cria-se um dualismo entre “nós, os brasileiros pacíficos” e “eles, os
outros violentos” que não cabem no discurso de afirmação preconceituoso de
que “o povo brasileiro é pacífico e não-violento por natureza”.
No caso da eliminação de vidas, Wainberg diz que “o que autoriza o
assassinato do outro é a imagem decaída que temos de sua cultura, história,
religião, hábitos e costumes” (WEINBERG, 2007, p. 44). No caso em questão,
o Corão registra revelações de Muhammad ensinando que o Cristianismo e o
Judaísmo foram ultrapassados pelo Islamismo. Se isso for mal compreendido
ou mal utilizado, cria a caricatura do outro e de sua cultura como inferiores. 60
O segundo mecanismo apontado por Chaui é o mecanismo da distinção
entre o essencial e o acidental. Se naturalmente ou em sua essência o povo
brasileiro é não-violento, então, nenhum registro de violência nessa sociedade
não pode fazer parte da essência do povo, pois isso é antinatural. No entanto,
havendo violência – e há – então ela é episódica, não-essencial, não-estrutural
na composição da sociedade. É preciso “distingui-la” ou nomeá-la, “ou como se
diz muito exatamente, é ‘um surto’, ‘uma onda’, ‘uma epidemia’.” (VÁRIOS,
1997, p. 121).
Por último, há o mecanismo das máscaras. De certo modo, é parecido
com o primeiro: o da exclusão. Aqui ocorre a separação entre “nós” e “eles”,
sendo que cada um de “nós” pode, acidentalmente, estar entre “eles”. Mas para
que fique claro esse mascaramento, é preciso dar uma identidade própria a uns
e outros, para que a violência, quando vier, seja vista como efetuada ou
provocada por um “não-brasileiro”, o outro. No mecanismo das máscaras há
uma tendência à diminuição dos atributos comuns à sociedade; o violento é
menos povo, é menos cidadão em relação àquele que não comete a violência:
60
“Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e
porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2.63-66; 5.59-60 e 7.166.” Disponível em
http://coraocomentado.blogspot.com.br/2010/01/blogando-o-alcorao-surata-2-vaca.html e acessado
em 13.10.2013. A mesma concepção encontrei em O Filho do Hamas: “Por que meu pai, que amava Alá
e seu povo, tinha de pagar um preço tão alto enquanto homens sem fé como Arafat e membros da OLP
proporcionavam uma grande vitória aos israelenses, que eram comparados a porcos e macacos no
Alcorão?” (YOUSEF, 2010, pp. 77,78).
48
E, finalmente, aquelas máscaras são o preconceito 61 em seu
estado puro: a favelada, mãe irresponsável que gera a criança
de rua naturalmente delinquente e perversa [...] Enfim, todas as
formas estruturais de violência são mascaradas pela atribuição
da culpa à vitima. (VÁRIOS, 1997, p. 122)
Isso se aproxima muito do que Goffman 62 chamou de estigma:
Enquanto o estranho está à nossa frente, podem surgir
evidências de que ele tem um atributo que o torna diferente de
outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser
– incluído, sendo, até, de uma espécie menos desejável – num
caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou
fraca. [...] O termo estigma, portanto, será usado em referência
a um atributo profundamente depreciativo, mas o que é
preciso, na realidade, é uma linguagem de relações e não de
atributos
(GOFFMAN,
1988,
pp.
12,13;
ênfases
acrescentadas).
Para Buoro (1999, p. 12; citando Norbert Elias), o processo que levou ao
estabelecimento, no Ocidente, da sociedade com as características que a
fazem conhecida em nossos dias como Civilização Ocidental, precisou incluir
uma interferência do Estado na regulação das relações interpessoais. 63
“Historicamente a justiça era vista como responsabilidade pessoal”, e era
61
“O preconceito diz respeito a um mecanismo desenvolvido pelo indivíduo para poder se defender
de ameaças imaginárias, e assim é um falseamento da realidade, que o indivíduo foi impedido de
enxergar e que contém elementos que ele gostaria de ter para si, mas se vê obrigado a não ter”
(CROCHÍK, 2006, p.22).
62
Erving Goffman (1922-1982) estudou nas universidades de Toronto e de Chicago. Na
Universidade de Chicago, estudou Sociologia e Antropologia Social. Foi Professor Titular
da Universidade da Califórnia em Berkeley e professor de Antropologia e Sociologia na Universidade
da Pensilvânia, presidente da Sociedade Americana de Sociologia em 1981-1982 e efetuou pesquisas
na linha da sociologia interpretativa e cultural, iniciada por Max Weber.
63
Norbert Elias, O processo civilizador, vol. 2: Formação do Estado e Civilização. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 1993.
49
matéria de educação pessoal aprender que matar por justiça era ato de
virilidade. 64 As relações na comunidade não tinham qualquer mediação senão
das partes interessadas, portanto, estava justificada a proteção de suas
posses, de sua dignidade e o “senso comum”, para resgatar Chaui, assim
construiu o seu estatuto (BUORO, 1999, p. 12).
Com a organização do Estado, este assumiu o papel do indivíduo na
regulação das relações conflituosas, fazendo a justiça vigorar e estabelecendo
a paz social. Ao menos em tese. O indivíduo já não pode arbitrar as causas
que antes eram de sua competência; deve transferir para o Estado a primazia
dos atos de “vingar a violência sofrida por qualquer que seja a causa (Ibidem).
As Reflexões sobre a violência, de Georges Eugène Sorel, 65 serão
consideradas, aqui, apenas por recontarem a história das distinções feitas
entre violência e o que Sorel chama de “brutalidade” e “força”. O prefácio de
Jacques Julliard traz a “distinção célebre” que Sorel faz “propondo chamar de
força os atos da autoridade e de violência os atos de revolta. A primeira é obra
do Estado; a segunda, do proletariado” (SOREL, 1992, p. 11). Não que o
conflito nos territórios ocupados possa ser comparado a lutas de classes, 66
mas é análogo quando consideramos Israel como força ocupante dos
territórios, oprimindo os palestinos e obrigando-os a serem confinados (FLINT,
2009, pp. 210,219; SAID, 2012, p. 196).
Para Sorel, o Estado deve usar a força como meio de garantir a ordem
social pela qual uma minoria governará. A força do Estado é legítima e no seu
momento histórico de transição da execução da “justiça” das mãos do povo
para os braços fortes do Estado, a violência é vista como quebra da ordem
social, ou seja, ela procura destruir a ordem que o Estado deverá garantir.
Assim, todo ato visando à acomodação de interesses díspares dentro de uma
sociedade, e que não é desencadeado pelo Estado, não é uso da força, mas
64
Aqui a autora está citando ROUCHÉ, Michel. A violência e a morte – Alta Idade Média. In: VEYNE,
Paul (Org.). História da vida privada. 8ª reimp. São Paulo: Cia. Das Letras, 1989. Vol. 1, pp. 467-500.
65
A obra de Sorel reúne uma série de artigos publicados em forma de livro. O autor se preocupa com
os aspectos jurídicos e a violência no socialismo, e distingue violência de brutalidade.
66
Embora, como vimos no ponto 1.1, os movimentos palestinos surgidos no final da década de 1950
apoiavam-se em teoria marxista.
50
da violência. “A palavra violência está marcada com o selo da ilegitimidade,
enquanto da força a religião católica fez uma virtude” (SOREL, 1992, p. 11).
Afirmação parelha temos em Seyyed Hossein Nasr: “Na medida em que ‘força’
está em causa, o Islã não é completamente oposto ao seu uso, mas sim
procura controlá-la à luz da lei divina (al-Sharia)” (NASR, s/d). 67
O campo referencial de Sorel é a França da segunda metade do século
XIX, cercada de protestantes e católicos por todos os lados. O autor se
preocupa com os aspectos jurídicos e a violência no socialismo e a sua
preocupação é guiada pela busca da “gênese histórica da moral” (SOREL,
1992, p. 14), daí, que constrói seu argumento sob a tutela de Pascal,
fartamente citado na obra e por quem nutre grande admiração. Nisso guarda
semelhança com o trabalho de Michael Walzer, que considera a realidade
moral da guerra o seu aspecto mais problemático: 68 “La forma en que
hablamos sobre la moral y la justicia es muy similar al lenguaje que utilizamos
para referirnos a la estrategia militar” 69 (WALZER, 2001, p. 41).
Mas Sorel nada faz sem recorrer a Marx, de quem retém a ideia de uma
espécie de lei implacável das condições sociais, da qual não se poderia
escapar, como fazem os otimistas, através da busca de um “bode expiatório”
(SOREL, 1992, p. 17), no que parece lançar a pedra fundamental do
pensamento e da teoria mimética para Girard. A violência presente, conforme
pensamento que Sorel desenvolve a partir das reflexões de Pascal, deve
implicar um crime anterior da humanidade. Só isso justificaria “o caráter inédito
do sacrifício de Jesus e do livramento que ele propicia” (SOREL, 1992, p. 17).
Sorel distingue entre o cristianismo histórico e o calvinismo contemporâneo.
67
NASR, S. H., Islam and the question of violence, in Journal, vol. 13, nº 2. Al-Islam.org, publicado por
Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project. Disponível em Acessado http://www.al-islam.org/al-serat/vol13-no-2/islam-and-question-violence-seyyed-hossein-nasr, acessado no dia 04.02.2014
68
“O ponto de partida da obra é a distinção medieval entre o ius ad bellum (direito a guerra) e o ius
in bello (direito de guerra). O primeiro se refere as razões que têm os estados para entrar em combate e
o segundo aos meios com que estes leva a cabo seu desígnio. Nesta dualidade se encontra o coração
mesmo do que constitui a essência mais problemática da realidade moral da guerra” (Jorge Navarrete).
69
“O modo como falamos de moral e justíça é muito semelhante à linguagem que usamos para
referir-nos a estratégia militar” (trad. livre).
51
Os dogmas do pecado e da predestinação foram levados às
suas consequências mais extremas. Eles correspondem aos
dois primeiros aspectos do pessimismo: à miséria da espécie
humana e ao determinismo social (SOREL, 1992, pp. 34,35).
Mas para ele o protestantismo não é suficientemente justo para dirimir
as questões sociais, não esse protestantismo calvinista que ele observa. E aí
entram as suas críticas. Ele acusa os calvinistas que se organizavam
militarmente e faziam expedições a países católicos, expulsando os adeptos de
Roma, enquanto que os discípulos de Cristo assistiriam a tudo passivelmente,
ou seja, a vitória de Cristo sobre o pecado e a miséria humana. Esses mesmos
discípulos, retomando uma leitura literal das conquistas cananeias, faziam-se
os próprios conquistadores da Terra Santa.
Tomavam, portanto a ofensiva e queriam estabelecer o reino
de Deus pela força. Em cada localidade conquistada, os
calvinistas realizavam uma verdadeira revolução catastrófica,
mudando tudo de alto a baixo (SOREL, 1992, pp. 33,34).
Por que hoje há críticas a essas posturas, tanto a dos tempos de Sorel
como dos tempos dos discípulos calvinistas? Porque o conceito que se tem de
justiça é remodelado pelo tempo e pela cultura. Sorel alinha o seu pensamento
ao de Pascal e diz que a justiça existe “conforme Deus no-la quis revelar”.
Como os deuses diferem entre os povos, a justiça sofre suas variações em
consonância com a fé. Assim, Sorel provoca Pascal a reconhecer que a “teoria
do direito natural” não é ciência exata, ela muda e sabemos isso ao notar não
haver leis universalmente aceitas: “ações que consideramos crimes foram tidas
outrora como virtuosas” (SOREL, 1992, p. 37).
A justiça está sujeita à controvérsia; a força é bem reconhecível
e incontroversa. Assim, não se pode dar a força à justiça,
porque a força contradisse a justiça e disse que ela é que era
justa. E não se podendo fazer que o que é justo fosse forte,
fez-se que fosse justo o que é forte (SOREL, 1992, p. 37).
52
E o que isto tem a ver com o Hamas? O que vejo aqui é a semelhança
entre o que chamamos “justiça”, no Ocidente, e o que a sociedade palestina
sofre com a ocupação de terras por Israel. Não podendo recorrer ao que
consideram justo, fazem uso da força, que podemos considerar “injusta”.
Sorel, então, aponta para a democracia, cujo estabelecimento valeu-se
de “certos atos criminosos” que foram descritos pela História como heroicos ou
meritórios e usará um exemplo de P. de Rousiers para demonstrar as díspares
admissões culturais a respeito do conceito de violência. Rousiers, um “católico
fervoroso e preocupado com a moral” (SOREL, 1992, p. 203), descreveu
situação em 1860 na qual os moradores da região de Denver, grande centro
mineiro das montanhas Rochosas, agiram na fissura da inoperância da
magistratura americana. Os “cidadãos corajosos resolveram agir” e os
bandidos foram expurgados (Ibidem). Então, diz P. de Bureau:
Sei [...] que a lei de Lynch é geralmente considerada na França
como um sintoma de barbárie [...]; mas se os homens de bem
da Europa pensam assim, os homens de bem da América
pensam de outro modo. (Ibidem, p. 205). 70
Assim Sorel aprofunda as distinções existentes, quando se tenta definir
o que é a violência dentro de um contexto social. Para ele, as relações sociais
se dão sobre “uma infinidade de incidentes de violência” diante dos quais o
homem não há que recuar, especialmente quando o enfrentamento é legítimo
no sentido de gerar benefícios ao grupo (SOREL, 1992, p. 2011) – ou, no
nosso caso, etnia; estou fazendo alusão ao conflito em questão.
Chama a atenção de Sorel a violência das revoluções, que foi
satanizada nos países democráticos onde a educação e a cultura foram
elevadas à categoria de virtude máxima e aos trabalhadores não restou
mecanismo para lutar por seus direitos (SOREL, 1992, p. 240). Para ele a
diferença é semântica: astúcia e violência são duas faces da mesma moeda.
70
A Lei de Lynch, de onde nos veem as expressões “linchar” e “linchamento”, é o assassinato de um
indivíduo, geralmente por uma multidão, sem processo judical e em detrimento dos direitos básicos de
todo cidadão.
53
Argumentos falaciosos doem tanto ou mais que pancadas: “não há uma
diferença muito grande a estabelecer entre esses dois métodos” (Ibidem).
É a mesma percepção de Sabia Hanif, 71 criticando a “Grã-Bretanha [que]
se orgulha de seu compromisso com a igualdade, desde que você não seja
argelino ou muçulmano” (HANIF, 2003, trad. livre). 72 Ela refere-se ao
tratamento dado pelos políticos ingleses e ecoado pela imprensa aos argelinos
muçulmanos no país, que não podiam levantar suspeitas sobre serem ou não
violentos, pois nem todos vieram da França, onde argelinos muçulmanos
haviam promovido um atentado ao metrô.
A Grã-Bretanha deveria ser um refúgio para alguns argelinos
(lembre-se que nem todos os argelinos estão aqui como
refugiados), mas este sonho azedou. Argelinos se tornaram
bodes expiatórios; eles são a nova cara do diabo (HANIF,
2003). 73
Sorel nos chama a atenção para as diferenças culturais na definição da
violência. Atos de violência funcionam bem em contextos carentes de
emancipação e geram um pensamento comum rico e sublime, mas isso não é
observado como lei universal. Assim, em outros países as coisas não
funcionam da mesma maneira. Por quê? A sua resposta é que “as tradições
nacionais desempenham aqui um grande papel” (SOREL, 1992, p. 242).
Por “tradições nacionais” certamente ele entende uma sociedade ou
cultura, dizendo haver distinção quanto a moral, tema caro a ele. Para Sorel, a
legitimidade da ação, envolvendo a violência, está ligada à noção de moral;
71
The difference between freedom-fighters and terrorists is not perception but terminology, in Media
Monitors Network, disponível em http://www.mediamonitors.net/sabiahanif1.html em 15.04.2014. Na
ocasião da publicação deste artigo, Sabia Hanif era estagiária na Comissão de Direitos Humanos Islâmica
(Islamic Human Rights Commission, www.ihrc.org) e co-autora de Language, media and the public mind
– a case study of reporting of the “ricin” incident com Romana Majid.
72
As citações de Hanif daqui em diante serão traduções livres.
73
Neste contexto ela critica a ironia de Uri Avnery que, por sua vez, faz distinção entre combatentes
pela liberdade e terroristas: “[...] guerreiros da liberdade estão do meu lado e os terroristas estão do
outro lado” (HANIF, 2003).
54
mas há distinções, já que há modelos sociais (como o socialismo da época)
que estão pouco ligando para a moral (SOREL, 1992, p. 244). Esse
pensamento é herdado das civilizações umas às outras. A Europa cristã, por
exemplo, recebeu sua herança do modelo grego clássico (SOREL, 1992, p.
259, tratado por Nietzsche em Genealogia da moral, citado por Sorel).
O que a sociedade chama “valores de virtude”, ainda que essa
sociedade seja cristianizada, não são valores cultivados nos conventos da
cristandade europeia de Sorel, mas na família que os preservam: “é curioso
observar a que ponto a Igreja moderna desconhece esses valores que a
civilização cristã-clássica produziu” (SOREL, 1992, p. 262). A família é a maior
afetada nos distúrbios sociais; mais que o governo. Veja o reclame palestino
das perdas de terras cultivadas, propriedades, áreas herdadas (HAROUB,
2009, pp. 144,145). O mesmo ocorre em culturas em que predominam outras
religiões; certamente é a família que se encarrega de legar valores. E. Said
observa isso e cita livro de Hisham Sharaby que “tenta dissecar a sociedade
árabe para mostrar que o que há de errado nela é sua estrutura familiar
irremediavelmente patriarcal, autoritária e atávica” (SAID, 2012, p. 212).
Se a Igreja está fora de cogitação na concepção de Sorel, se não é que
está em situação pior que a sociedade atrasada e “bárbara” pré-revolução, e a
família preserva valores que servirão para inflamar as massas, quem poderá ou
deverá aglutinar os interesses coletivos?
O papel da religião é prover a “moral” que mantem o proletário,
no capitalismo, sujeito, submisso. Os intelectuais admitem a
religião por causa deste papel que ela exerce. Remova a
religião e dê condições iguais a todos por meio do Estado
(SOREL, 1992, p. 265).
Resposta óbvia. E ideal para setores específicos do Islã que se inclinam
ao socialismo porque este se opõe ao capitalismo 74 democrático em alguns
74
“Aos olhos islâmicos o capitalismo por sua vez contradiz valores centrais da economia muçulmana
indisposta a juro, à corrupção e ao vício, marcas que sintetizam a ojeriza que sentem por estas
distorções e outras liberalidades comportamentais de tais sociedades” (WEINBERG, 2007, p. 157).
55
países, mas não para todo o Islã. Mesmo Said indica que leitores de Sharaby 75
terminam a leitura da obra querendo saber qual a proposta do autor para
substituir a família. “Então surge um vazio quase total” (SAID, 2012, p. 212).
O papel da religião para aqueles que fazem resistência na Palestina não
deve ser entendido à parte dessa moldura. Por que seria? A resistência é
necessária, pois as terras estão sendo ocupadas. Se um movimento como o
Fatah tem motivações nacionalistas, o Hamas enfrenta o mesmo problema,
mas dá respostas a partir da religião. Esse é um ponto importante a se
ressaltar. Não penso que a ocupação, se considerarmos as resoluções da ONU
242 e 338 e a ocupação “israelense da Cisjordânia e de Gaza em 1967”,
incrementada com “política de destruição [...] implantada nessas áreas (SAID,
2012, pp. XXIII e 17), 76 são ilegítimas; a necessidade de uma resposta a Israel
existe, e o que dispõe os palestinos para chamar a atenção e trazer
interlocutores à mesa de discussões? O terror provocado por suas ações.
La realidad moral de la guerra presenta dos vertientes. Sucede
que la guerra siempre es juzgada dos veces, la primeira em
relación com las razones que tienen os Estados para entrar en
combate, la segunda em función de los medios com que llevan
a cabo su designio. El primer tipo de juicio posee carácter
adjetivo: décimos que uns determinada guerra es justa o
injusta. El segundo es adverbial: décimos que la guerra se há
desarrollado justa o injustamente (WALZER, 2001, p. 51).
Avnery 77 conta que um “terrorista” palestino lhe disse que eles usam os
recursos de que dispõem: “Dê-me tanques e aviões, e eu vou parar de enviar
75
Hisham Sharabi (1927–2005 ), foi professor emérito de História e Cultura Árabe na Georgetown
University, onde foi especialista em História Intelectual e Pensamento Social Europeu.
76
Said registra, e.g., que “no fim de 1969, 7.554 residências árabes foram arrasadas e, em 16 de
agosto de 1971, 212 casas foram demolidas, segundo o londrino Sunday Times de 19 de junho de 1977”
(SAID, 2012, p 17).
77
Uri Avnery nascido na Alemanha, é um jornalista israelense, pacifista e antigo membro
da Knesset
(1965-1974 e 1979-1981).
Durante
a
juventude
foi
membro
do
movimento
de direita denominado Sionismo Revisionista e da organização paramilitar Irgun. Fundador do
56
homens-bomba a Israel” (AVNERY, 2014). 78 As ações de terror são baratas 79
em função dos recursos precários dos palestinos. No entanto, o revide por
meio de ações terroristas é a resposta que o Hamas e movimentos com
motivação religiosa encontram, mais que em uma ideologia nacionalista, por
exemplo. Segundo Fathi Shiqaqi, um dos fundadores da Jihad Islâmica
Palestina, a capacidade de destruir o moral do inimigo e plantar o terror no
povo judeu é uma “capacidade” que vem como “um presente de Alá”
(HASSAN, 2001). 80
Hassan conta que, em abril de 1999, ela encontrou-se com um “Imam
afiliado ao Hamas: um jovem barbudo, pós-graduado pela prestigiosa
Universidade Al Azhar, no Cairo” (2001). O relato dado por aquele Imam é uma
elaborada teologia do martírio; descreve desde as funções da primeira gota de
sangue para lavar “seus pecados instantaneamente”, passa pela isenção de
julgamento no “Dia do Juízo Final”, tem a possibilidade de “interceder por
setenta” de seus parentes mais próximos e queridos para que entrem no Céu,
além de ter “à sua disposição setenta e duas huris, as belas virgens do
Paraíso” (HASSAN, 2001).
Sheikh Ahmed Yassin é o conhecido líder espiritual do Hamas, morto pelo
exército israelense em 2004. Hassan teve diversos encontros com ele, “em sua
movimento pacifista Gush Shalom, foi um dos proprietários do HaOlam HaZeh, uma revista israelense
de informação, que circulou de 1950 a 1993.
78
Um membro das Brigadas de al-Qassam disse: “Não temos tanques ou foguetes, mas temos algo
superior, explodindo nossas bombas islâmicas humanas. No lugar de um arsenal nuclear, estamos
orgulhosos do nosso arsenal de crentes” (HASSAN, 2014).
79
“Se as armas de destruição em massa hoje são caras, a bomba humana é barata. Um oficial de
segurança palestino ressaltou que, além de um jovem disposto, tudo o que é necessário são itens como
pregos, pólvora, uma bateria, um interruptor de luz e um cabo curto, mercúrio (facilmente obtidos a
partir de termômetros), acetona, e o custo de adaptar um cinto largo o suficiente para manter seis ou
oito bolsões de explosivos. O item mais caro é o transporte a uma cidade israelense distante. O custo
total de uma operação típica é de cerca de cento e cinquenta dólares. A organização patrocinadora
geralmente dá entre 3 e 5 mil dólares à família do bombardeiro” (HASSAN, 2001, trad. livre).
80
Nasra Hassan atua há mais de 20 anos com a ONU, tendo passado pela UNICEF e UNRWA. Ela
entrevistou mais de 250 pessoas envolvidas na militância palestina, entre voluntários a homens-bomba,
organizadores de ataques e familiares.
57
pequena casa em uma pista de terra batida em um quarto lotado de Gaza”.
Yassin chamou a atenção para a dúvida que tinha a respeito de os leitores
ocidentais de Hassan compreenderem os motivos do martírio. “Eu duvido que
eles vão estar dispostos a entender as suas explicações”, disse ele.
O amor ao martírio é algo profundo dentro do coração. Mas
estas recompensas não são em si o objetivo do mártir. O único
objetivo é ganhar a satisfação de Allah. Isso pode ser feito da
maneira mais simples e mais rápida ao morrer pela causa de
Alá. E isso é Deus que escolhe os mártires (HASSAN, 2001).
Essa é a resposta eminentemente religiosa para a questão do conflito, o
que, a meu ver, não tira a sua legitimidade.
Semelhante à construção da saga do Islã, quando da expansão inicial na
península arábica e posteriormente nas conquistas iniciais sob comando dos
califas “bem guiados”, a literatura produzida exerceu papel fundamental,
quando elaborou o mito e consolidou a mensagem e a imagem que deveriam
permanecer e entrar para a História. Explicando o termo jihad, Kepel 81 (2003,
pp. 92,93) aponta este sentido. Sorel registrou que a literatura produzida após
a Revolução “não é totalmente mentirosa quando relata um número tão grande
de frases grandiloquentes que teriam sido lançadas por combatentes” (Ibidem,
1992, p. 269). Mas essas frases foram buriladas nas escrivaninhas de “homens
de letras, habituados a manejar a declamação clássica”. É o que Weinberg
(2007) acredita e o que dá título ao seu livro.
Podemos aplicar isso ao Islã, quando narra as glórias dos tempos ideais
da comunidade do Profeta, em Yatrib. Essa prática é vista na propaganda que
atribui aos discursos do Profeta certas categorias desenvolvidas recentemente,
como Weinberg que cita Abdullah Yussuf Azzam, 82 para quem o lema
81
Gilles Kepel é professor do Instituto de Estudos Políticos de Paris. É Diretor do Programa de
Doutorado no Mundo Muçulmano do Instituto de Estudos Políticos. Foi Professor Visitante nas
Universidades de Columbia e Nova Iorque. Ele é o autor de vários livros sobre o Islã, incluindo o tema da
Jihad.
82
Abdullah Yusuf Azzam (1941–1989). Nascido na Palestina, foi teólogo, pensador e soldado do Islã.
Fundador da Jihad Afegã, foi para o Afeganistão em 1983 para lutar contra os soviéticos.
58
inspirador era: “Nada mais que a Jihad e o rifle: não a negociações, não a
assembleias, não ao diálogo” (WEINBERG, 2007, p. 8). “Em ‘Virtudes do
martírio no Caminho de Alá’ [...] o ‘Lênin da Jihad Internacional’” disse: “A vida
da ummah 83 está conectada à pena dos intelectuais e ao sangue dos mártires”
(Ibidem) ou, mais especificamente, no caso dos “20 mil mujahidin (soldados do
Islã) de 20 diferentes países que derrotaram os soviéticos que, com o terror
como tática e o Alcorão como inspiração” (Id.). Ou, nas palavras de Azzam, “a
jihad me ensinou que o Islã é como uma árvore que é nutrida apenas por
sangue” (ABU-RABI, 2011, p. 86). “Para Azzam, o principal objetivo do jihad
após a inevitável queda de Cabul seria a tomada de Jerusalém e a restauração
da lei islâmica em uma Palestina libertada da ocupação sionista” (KEPEL,
2003, p. 95).
Assim, para justificar a violência na revolução por meio das lutas
geradas pela defesa dos valores entre classes, sociedades ou civilizações – se
estamos pensando de maneira mais ampla – Sorel apropriou-se da tese de
Harnack, que havia defendido que os mártires do Cristianismo não teriam sido
muitos como a história quer fazer crer. E como faz isso? Construção literária
com citações específicas (SOREL, 1992, pp. 206-210). A sua conclusão neste
ponto é, mais uma vez, óbvia. O socialismo é bastante razoável e
“perfeitamente revolucionário”, pois mesmo com uns poucos e breves conflitos,
esses são ampliados, como o foram os relatos de martírio no Cristianismo, mas
que guardadas as devidas proporções (catastróficas), a “civilização não corre o
risco de sucumbir sob as consequências de um novo desenvolvimento da
brutalidade” (SOREL, 1992, p. 210). A morte nestas condições fica justificada.
1.3 A violência hoje
A fim de traçar um entendimento sobre a violência como é entendida
hoje, partirei da obra de Paulo Sérgio Pinheiro, Violência urbana (PINHEIRO,
83
A comunidade ideal (ou ainda em processo de construção) dos muçulmanos submissos a Lei de
Deus.
59
2003). 84 Dela interessa o primeiro capítulo: a “tipologia da violência”. 85 Nele,
distingue-se a violência em três grandes categorias: violência auto-infligida,
violência interpessoal e violência coletiva. A obra de Pinheiro é concisa e
direta. Ele argumenta que a violência é constituída de “ação, produção de
dano/destruição e intencionalidade”, e elabora “uma definição básica de
violência: ação intencional que provoca dano” (PINHEIRO, 2003, p. 19). “O uso
da força é prudente – dentro, claro, de seus limites. Já a violência é a ‘força
cega’, que não enxerga as consequências de seus atos” (Ibidem).
Embora trate da violência urbana (cfm. citação acima), 86 Pinheiro evoca
a compreensão internacional, já assentada, que reconhece o uso da força pelo
Estado. O Estado age dentro de normas e limites estabelecidos para a
manutenção da ordem pública, com vistas à construção de um espaço público
para a convivência entre os diferentes.
“A ação não-violenta, pautada pela ética, é a maneira que possibilita o
encontro dos homens e mulheres pela palavra” (Ibidem). Assim, o aparato
político é o mecanismo legítimo no Estado pelo qual homens e mulheres,
povos, etnias, sociedades, enfim, podem estabelecer diálogo. “A violência traz
como resultado a desordem e o caos, impossibilitando a criação do espaço
público para ação política” (Ibidem). No Estado moderno, a violência deve ser
suprimida por ele da relação conflituosa existente no espaço público. Ela na
verdade não desaparecerá porque, como o próprio autor diz, faz parte da
“essência do ser humano”; tentar compreendê-la é exercício de compreensão
do próprio ser humano. No entanto, dentro desse cenário, “a política é uma
prática eminentemente oposta à violência” (Ibidem, ênfase acrescentada). A
84
Paulo Sérgio Pinheiro é um diplomata e acadêmico brasileiro. Dentro da Estrutura da Organização
das Nações Unidas, ele exerceu o cargo de relator especial para a situação dos direitos humanos de
Myanmar. É coordenador de pesquisa do programa CEPID/FAPESP/ Núcleo de Estudos da Violência,
Universidade de São Paulo (USP) e Professor de Ciência Política (aposentado) pela USP. Também
lecionou na Brown University, Columbia University, na Notre Dame University, nos EUA; na Oxford
University, na Grã-Bretanha e na École des Hautes Études en Sciences Sociales, em Paris. Publicou
diversos artigos, ensaios e livros sobre história social, democracia, violência, e direitos humanos.
85
Esse capítulo 1, O que é a violência? fala da categoria Violência Coletiva que está ligada ao nosso
objeto de estudo.
86
O que em certa medida pode ser atribuído ao cenário social urbano onde o Hamas atua.
60
política é a alternativa que deve ser buscada como o único meio pelo qual
povos e sociedades estabelecerão marcos legítimos para a construção do
espaço
publico.
“Violência”
provém
do
latim
violentia,
que
significa
“veemência”, “impetuosidade”, e deriva da raiz latina vis, ‘força’ (PINHEIRO,
2003, p. 19, ênfases no original).
Pinheiro distingue o uso da força entre duas categorias. Mesmo que
essa força seja tomada em seu sentido de “agressão física”, ou com maior
intensidade, como o uso de força física valendo-se do “uso de armas de fogo
ou mesmo bombas”, é preciso atentar para o fato de que ela seja
“especializada” ou “não-autorizada” (PINHEIRO, 2003, p. 15). A violência de
um “terrorista”, como ele estabelece, é exemplo de uso não-autorizado, porque
não está dentro do mecanismo social legítimo do Estado (Ibidem). Mas a
mesma bomba ou armas de fogo nas mãos de um soldado do exército é
exemplo de força em seu sentido “especializado”, porque atua com rigor na
“defesa”. O mesmo vale para o exército, que ao fazer uso dos mesmos
expedientes age, não com violência, mas com força, “caso em que a palavra
“força” é preferencial (sem mencionarmos que muitas operações de guerra e
preparação bélica são descritas como de “defesa”)” (Ibidem). Avnery concorda:
Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por
outros meios. Isso é verdade para o terrorismo, também. O
terrorismo é sempre um instrumento para a consecução de
objetivos políticos. Uma vez que estes podem ser de direita ou
de esquerda, revolucionário ou reacionário, religioso ou secular
(AVNERY, 2014, trad. livre). 87
As distinções feitas por Pinheiro são limitadas a determinados contextos,
mas são importantes. Há muito se fala também em terrorismo de Estado, por
exemplo. Avnery (2014) em seu artigo considera diversas manifestações de
caráter terrorista cometidos por forças ditas “especializadas”, usando a
expressão de Pinheiro:
87
As citações de Avnery daqui em diante serão traduções livres.
61
Israel tem usado esse método a partir da data da sua criação.
No início dos anos 50 o IDF 88 cometia “ataques de retaliação”,
projetados para assustar os aldeões de além da fronteira, a fim
de induzi-los a exercer pressão sobre os governos da Jordânia
e do Egito para impedir a infiltração de palestinos em Israel
(AVNERY, 2014, trad. livre).
A exposição de Pinheiro apresenta as distinções aceitas entre força e
violência. Seguindo o raciocínio, Pinheiro traz para o seu texto a definição de
violência, dada pela Organização Mundial da Saúde, OMS.
O uso intencional da força física ou do poder, real ou potencial,
contra si próprio, contra outras pessoas ou contra um grupo ou
uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de
resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de
desenvolvimento ou privação. E. G. Krug, Relatório Mundial
Sobre Violência e Saúde. Brasília: OMS / Opas / UNDP /
Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, 2002. (PINHEIRO,
2003, p. 16)
A definição da OMS abrange inúmeros casos como negligência, abusos
físicos, sexuais, psicológicos, suicídio, auto-abuso etc., formas de violência que
acarretam opressão a pessoas, famílias, comunidades, sistemas de saúde,
além de atos de violência ativos e reativos. Destaco o perfil da violência “nãoautorizada”, a qual a OMS define como
88
A palavra “IDF” é formada a partir das iniciais do nome hebraico oficial do Exército de Defesa de
Israel. A segunda palavra “defesa”, haganah em hebraico, foi o nome dado para as forças militares
clandestinas da comunidade judaica na Palestina durante o mandato britânico. Tinha o direito a esse
tempo a duas pequenas formações dissidentes, o Irgun de Menachem Begin e o Stern Gang (LEÍ), que
praticava o terrorismo contra os ingleses e os árabes palestinos. Após a criação do Estado de Israel,
Begin preferiu o uso do termo “exército de Israel” e não “IDF” por causa da alusão ao haganah no
nome oficial. Disponível em http://www.monde-diplomatique.fr/mav/88/KAPELIOUK/13690#nb1 e
MORIN, 2007, p. 118.
62
[...] uso intencional da força física ou do poder [...] contra outras
pessoas ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte
ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão, morte,
dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação
(Ibidem).
Concorda com essa definição da OMS o registro de Vilhena: 89
Toda violência é, na verdade, violação da personalidade
daquele que a sofre. Toda violência é ameaça de morte. E isso
porque, atingir a dignidade do ser humano é já atingir sua vida.
Da humilhação ao extermínio e ao genocídio, portanto, são
múltiplas as formas de violência e múltiplas as de morte. E toda
forma de violência é, portanto, mortal (VILHENA, 2007, pp.
144,145).
A autora indica a espiritualidade como “única fonte possível” para
qualquer enfrentamento com perfil não-violento e ético (VILHENA, 2007, p.
145), o que encontra a sugestão de Girard (2011, p. 163). Embora reconheça
as limitações de tal postura frente à opressão e a agressão, a postura espiritual
tem o poder de transformar “o ser humano por dentro, gerando vida a partir da
sua vontade de não-violência” (VILHENA, 2007, p. 145). O Nobel da Paz de
1984, Desmond Tutu, que visitou assentamentos palestinos, segue na mesma
linha quando afirma:
[...] não é possível haver futuro sem perdão. Jamais haverá um
futuro sem que haja paz. Jamais haverá paz sem que haja
reconciliação. Mas não haverá reconciliação antes de existir
perdão. E jamais existirá perdão sem que as pessoas se
arrependam (TUTU, 2012, p. 54).
89
Junia de Vilhena é Doutora em Psicologia, professora de Psicologia da PUC-Rio, Psicanalista do
Círculo Psicanalítico do Rio de Janeiro, pesquisadora da Associação Universitária de Pesquisa em
Psicopatologia Fundamental, pesquisadora correspondente do Centre de Recherches Psychanalyse et
Médecine da Université Denis-Diderot, em Paris.
63
Pinheiro não ignora os diferentes contextos culturais e suas dinâmicas,
sobre o que falei anteriormente e que ele cita como “largas variações de país
para país” (PINHEIRO, 2003, p. 18). O relatório que apresenta coloca o Brasil
no topo da lista de países violentos. 90 A pergunta inevitável diante dessa
constatação é: como percebemos a violência dos outros, se somos tão ou mais
violentos do que eles? Talvez a resposta já tenha sido dada por Chauí e seus
“mecanismos” para explicar a violência.
Uma distinção que se coloca entre a violência cometida no Brasil e, por
exemplo, a violência que vemos nos relatos como o recorte jornalístico sobre o
Hamas, em Gaza, é a intolerância entre povos, a rejeição do outro. O Brasil é
reconhecido como um país que acolhe de braços abertos as diferentes etnias.
Quando não reconhecemos o mesmo padrão em outras partes do planeta,
ficamos alerta. Quando a inexistência desse padrão vem acompanhada de
violência, dizemos que “eles” são violentos, ainda que os “nossos números”
sejam mais alarmantes e provem o contrário.
Pinheiro não trabalha com essa possibilidade. Ele coloca a questão de
modo diferente. Sua distinção se dá dentro do que chama a “tipologia da
violência”, quando elenca três grandes categorias delimitadas por aqueles que
a praticam. Ela chama “violência auto-infligida” a violência contra si mesmo;
“violência interpessoal”, quando é praticada contra outra pessoa ou quando
provem de outra pessoa ou grupo e a “violência coletiva”, a violência “infligida
por conjuntos ou grupos maiores, como Estados, grupos políticos organizados,
milícias e organizações terroristas” (PINHEIRO, 2003, p. 22). Acredito que
tendo qualificado anteriormente a violência do Estado como “força”, aqui
Pinheiro esteja considerando o uso da força, além do necessário para
estabelecer a ordem pública ou motivada por razões ilegítimas, como no caso
das “limpezas étnicas” (WATZAL, 91 2014), como vez ou outra ouço dizer sobre
o que Israel faz aos palestinos.
90
“Com taxa de 26,3 homicídios por 100 mil habitantes em 1999, o Brasil ocupa a segunda posição
num conjunto de 60 países. Com referência à população jovem, o Brasil (taxa de 48,5 homicídios por 100
mil) ocupa o terceiro lugar, bem distante do grupo de países cujas taxas ficam abaixo de um homicídio
por 100 mil jovens” (PINHEIRO, 2003, p. 18).
91
Dr Ludwig Watzal trabalha como jornalista e editor da MWC News em Bonn, Alemanha.
64
Quero acompanhar o raciocínio de Pinheiro e refinar o que chamou
“violência coletiva”, conceito que atende a esta pesquisa sobre os movimentos
islâmicos de resistência. Ele especifica a violência coletiva dividindo-a em
“violência social, violência política e violência econômica” (PINHEIRO, 2003,
pp. 22,23). É este o ponto que qualifica as ações, quando são estudados os
atos cometidos no cenário onde grupos islamistas atuam, quaisquer que sejam
as motivações apresentadas. Pinheiro diz que “a violência coletiva pode indicar
a existência de agendas sociais, como, por exemplo, os crimes de ódio,
cometidos por grupos organizados, os atos terroristas e a violência das
multidões” (PINHEIRO, 2003, pp. 23,24). Assim, ele coloca o “terrorismo”
dentro da categoria “violência”. “A ideia de que havia [...] um terrorismo
‘religioso’ começou a se desenvolver com o crescimento de movimentos
islâmicos radicais, após a revolução iraniana” (CRENSHAW, 2007, p. 3).
De fato, têm sido demonstradas as razões pelas quais ocorrem os
ataques do Hamas (PAPE, 2003; CRENSHAW, 2007; SHAUL, 2004 92). Entre
as causas estão “agendas sociais”: “vingança pessoal” por parentes mortos em
conflitos, “retaliação a Israel”, “contra o processo de paz entre israelenses e
palestinos” (CHEN, 2012, p. 113), “o sofrimento dos palestinos” (ATEEK, 2012);
“coagir as democracias modernas a fazer concessões significativas a
autodeterminação nacional” e “coagir democracias modernas a fazerem
concessões de terras” “retirada das forças militares do Estado de destino de
que os terroristas veem como lar nacional” (PAPE, 2003). 93 Segundo o
B’Tselem – The Israeli Information Center for Human Rights in the Occupied
Territories (http://www.btselem.org), o período coberto por esta pesquisa
mostra que 1.426 israelenses, civis e militares, foram mortos pelo Hamas (e
todas as outras facções palestinas juntas), contra 5.050 palestinos mortos por
Israel. “De todas essas vítimas, havia 137 crianças israelenses (ou menores de
92
Os autores SHAUL e EVEN tentam uma “tipologia” do terrorista suicida. Classificaram em quatro
perfis de acordo com a motivação: religiosos, explorados, retribuição/vingança por sofrimento e
sociais/nacionalistas.
93
A característica comum de todas as campanhas terroristas suicidas é infligir punição na sociedade
adversária, seja diretamente, matando civis ou indiretamente matando militares em circunstâncias que
não pode levar a vitória significativa em batalha (PAPE, 2003, p. 346).
65
18 anos) assassinadas contra 998 crianças palestinas da mesma faixa etária”
(HROUB, 2009, p. 86).
Trazendo para a consideração das causas da violência na modernidade,
Danilo Martuccelli 94 (1999) faz considerações no ensaio Reflexões sobre a
violência na condição moderna. Ele aponta três agentes na ocorrência da
violência na modernidade. Primeiro, o processo de deslegitimação da violência
nas sociedades modernas frente à maior consciência de insegurança, dos
perigos e riscos no mundo moderno. Segundo, a relação entre a “informação” e
a “energia”, as limitações imateriais de uns e a realidade material de outros. E,
por fim – e decorrente do anterior, o qual chamou de “modelo institucional que
preconiza a existência de indivíduos autônomos” – o indivíduo detentor de
informação procura normatizar as relações, estabelecendo como modelo ideal
de autocontrole, o controle a partir do seu interior, que decorre do processo de
desinstitucionalização “muito afastado dos fatos” (MARTUCCELLI, 1999, pp.
172,3). Isso tem feito parte do jogo político e apontado de ambos os lados do
conflito: Israel é acusado de lobby no congresso norte-americano, e.g., por
Mohsen Saleh 95 (in ABI-RABI, 2011, pp. 138-168) tanto quanto os muçulmanos
são acusados (PIPES, 2006).
Um dos exemplos dados por Martuccelli é o modo de ver a violência por
meio do que chamou “o crescimento da consciência dos riscos e da violência”.
Essa consciência decorre da exposição à mídia e à informação, que transmuta
a percepção real no mundo tranquilo, vivido por uma classe elevada; mas,
principalmente, da observância da ineficácia das estruturas, no sentimento de
que nada é feito. A violência fica, assim, sujeita à natureza “subjetiva”, um
“sentimento” ou uma maneira de “ter experiência” do mundo exterior ou de
sentir-se exposto a ele (MARTUCCELLI, 1999, p. 159). O outro exemplo é a
violência como as que foram vistas na América Latina. Elas ocorreram por
94
Danilo Martuccelli é professor de sociologia da Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da
Universidade Paris-Descartes (Sorbonne). É também membro do grupo de pesquisa CERLIS (Centre de
recherches sur les liens sociaux), que pertence à mesma instituição.
95
Mohsen Saleh é um acadêmico palestino que lidera o principal grupo de discussão do instituto al-
Zaytouna, com sede em Beirute, Líbano, que publica sobre a situação atual na Palestina, com um foco
especial sobre o Hamas.
66
reformas sociais e mudança “dos regimes políticos ilegítimos” (MARTUCCELLI,
1999, p. 158), mas não se pode pensar a violência como “fracasso” nas
tentativas de negociação; esse não é o melhor modo de lidar com a questão, já
que
é
possível
institucionalização
pensá-la
das
como
“relações
“resíduo
sociais
de
estrutural
constante”
dominação”,
e
não
na
é
(MARTUCCELLI, 1999, p. 158).
Antecipando as considerações sobre as causas da violência, feitas por
pesquisadores do chamado Islã político (e.g. Demant, Kamel, Weinberg e
outros), Danilo Martuccelli teoriza sobre o ambiente propício para a violência na
modernidade, o que pode ser aplicado ao Islã presente em determinadas
regiões. 96 O autor busca um significado para a violência que esteja além dos
contextos históricos, como um “arquisentido”, pois, independentemente do
contexto, a violência “não é nada mais a não ser um meio coletivo de ação, ou
um recurso indispensável ao ator dominado” (MARTUCCELLI, 1999, p. 158), e
essa relação (dominados e dominadores) é notável. Tal violência não deve
sequer ser olhada da perspectiva da moral, uma vez que os dominados “não
[dispõem] de outros meios, o ator recorre à violência para se fazer ‘ouvir’.”
(Ibidem). É o caso já mencionado aqui da obra de Fanon:
As relações colono-colonizado são relações de massa. Ao
número o colono opõe sua força. O colono é um exibicionista.
Sua preocupação de segurança leva-o a lembrar em alta voz
ao colono que “o patrão aqui sou eu”. O colono alimenta a
cólera do colonizado e sufoca-a. [...] A tensão muscular do
colonizado
libera-se
periodicamente
em
explosões
sanguinárias: lutas tribais, lutas de sobas, lutas entre indivíduos
(FANON, 1968, p. 40).
Fred Halliday afirma algo análogo:
96
Embora eu tenha dúvidas se se possa falar em Islã “exclusivamente político” e Islã “exclusivamente
religioso”. Em determinados contextos, uma ou outra ênfase surge mais pronunciada, mas não
excludente.
67
“Terrorismo” é omitido muito facilmente na discussão política
contemporânea como fenômeno geral da resistência armada à
opressão por parte dos Estados. Esta atividade tem sido uma
das
principais
características
do
mundo
moderno,
especialmente em situações de dominação por potências
ocidentais ou coloniais. [...] O direito geral de resistir, e, quando
existe extrema coação, a pegar em armas, é geralmente
reconhecido tanto na lei e no discurso político moderno [...]
Este direito também é parte preciosa do legado de reflexão
política, no Ocidente e no Oriente, ao longo de muitos séculos.
A tradição jurídica e política cristã deu o devido respeito a este
princípio. [...] Ele está igualmente presente no discurso
islâmico, onde a revolta – muitas vezes é referida como khuruj
(literalmente “sair” contra o tirano), (HALLIDAY, 2011, trad.
livre). 97
Ernest Gellner 98 também contempla a relação do Islã com o ambiente
contemporâneo em Pós-modernismo, razão e religião (1992), complementando
a percepção de Martuccelli. Para ele, “os mais importantes conflitos intelectuais
da história dos homens tendem a ser binários” (1992, p. 11). Martuccelli fala da
a relação entre a “informação” e a “energia” (MARTUCCELLI, 1999, pp. 172,3).
Mas a pós-modernidade, para Gellner, fez a fé romper o ciclo binário em
benefício de três posições rivais: o fundamentalismo religioso, o relativismo do
“pós-modernismo” e o racionalismo iluminista ou fundamentalismo racionalista
(GELLNER,
1992,
pp.
11,12).
Vou
deter-me
no
primeiro
caso,
o
fundamentalismo religioso.
O fundamentalismo recusa a reivindicação modernista e
tolerante que define a fé como sendo mais moderada, muito
menos exclusiva e, na sua globalidade, menos exigente e
muito mais complacente (GELLNER, p. 13).
97
Todas as citações de Halliday daqui em diante serão traduções livres.
98
Ernest Gellner é professor na Central European University de Praga e diretor do seu Centro de
Estudos do Nacionalismo.
68
Ou seja, o relativismo não cabe no projeto fundamentalista porque é
humanista, visa à existência, ao alcance de uma identidade (no sentido dado
por Kierkeggard), e não a aceitação rigorosa de uma doutrina rígida. Gellner
associa o Islã como o fundamentalismo que atinge níveis mais intensos em
nossos dias, contrariando a teoria sociológica da secularização (Ibidem, p. 15).
Ele argumenta que a emergência das religiões mundiais moveu a ênfase do
“ritual vivido para a doutrina transcendente”, sendo que esse período foi
seguido da nova transferência da ênfase para o âmbito cívico (GELLNER,
1992, p. 16). Cita os Estados Unidos como exemplo de uma religião nacional
(portanto, cívica). Mas a exceção é o Islã. “Afirmar que a secularização é uma
realidade no Islão não é controverso, é simplesmente falso. O Islão é hoje tão
forte como era há um século atrás. Em alguns aspectos é talvez mais forte”
(Ibidem, p. 17).
Das quatro civilizações predominantes no final da Idade Média (cristã,
chinesa, indiana e islâmica) a islâmica é a única que não foi secularizada nos
níveis das demais (Ibidem). Ele pergunta: “Por que motivo deveria uma
determinada religião ser tão marcadamente resistente á secularização?”. A
resposta está na estrutura que une aspectos de fé e moral, ou “dito de outro
modo, ela é simultaneamente doutrina e lei, pelo que nenhuma outra
argumentação válida deverá ser sancionada” (Ibidem, p. 18). É maior a
amplitude do registro escrito, “a lei canônica não existe, apenas a lei divina
enquanto tal”, de modo que os oficiais (“eruditos muçulmanos”) são mais bem
descritos como “teólogos/juristas” (Ibidem).
A dualidade Igreja/Estado inexiste neste modelo, o que resulta também na
exclusão do relativismo. O fio condutor da fé começa no ambiente
supramundano (é divino) e termina no seio do povo, o poder executivo,
humano, que opera pela lei a representação da vontade de Deus na terra
(Ibidem, p. 19). A lei não pode ser uma opção em determinados contextos
culturais; sua expansão ocorre
[...] quando muito por analogia e interpretação. A sociedade
via-se, assim, dotada de uma lei simultaneamente fundamental
e concreta, cada uma delas estabelecida à sua maneira e
69
passível de ser utilizada pelos seus membros com um modelo
de governo legítimo (GELLNER, 1992, p. 19).
Há pouco espaço para experiências e a flutuação decorrente do sabor
dos tempos é eliminada pela coesão dos “três princípios fundamentais [...] que
regem a legitimidade religiosa e política no interior dessa mesma civilização”,
que são: “a Mensagem divina e a sua componente legal, o consenso da
comunidade e, por fim, os líderes sagrados” (GELLNER, 1992, p. 20). Esses
três agentes foram encubados em uma sociedade com um centro político cujo
poder territorial emanava das lideranças das tribos locais autogovernadas.
“Desde modo, a sua forma de governo absolutista era, por um lado, limitado
pelo poder real das tribos e, por outro, pela legitimidade independente e não
manipulável da lei divina” (GELLNER, 1992, p. 22). Tal estrutura provocou a
dualidade interna entre o “Alto Islão dos intelectuais” e “Baixo Islão popular”
(Ibidem), que se basta. “Deste modo, a sua forma de governo absolutista era,
por um lado, limitado pelo poder real das tribos e, por outro, pela legitimidade
independente e não manipulável da lei divina” (Ibidem).
A questão é que o equilíbrio pode ser abalado quando “um movimento
revivalista” persegue o ideal religioso, “a verdade religiosa absoluta”, e
encontra na periferia da sociedade “comunidades rurais autônomas coesas,
armadas e com experiência militar” (GELLNER, 1992, pp. 22,29). A ânsia “das
tribos periféricas, dotadas de um poder militar formidável”, por “recompensas
urbanas e privilégios políticos”, “por abraçar a forma ‘superior’, mais pura e
unitária” (Ibidem) do Islã Superior, aliançada por meio de “um intelectual
respeitado” (Ibidem, p. 26): esse é o mapa da concepção do fundamentalismo
radical revelado no desequilíbrio:
O equilíbrio de forças sofreu alterações consideráveis,
transferindo-se do Islão popular para o Alto Islão. A maioria das
bases sociais do Islão Popular deteriorou-se enquanto o Alto
Islão assistiu ao grande fortalecimento de suas bases
(GELLNER, 1992, p. 29).
70
Esse é o quadro que Gellner chama de “o Islão Reformado”, com o qual a
identificação assemelha-se “à dos nacionalismos noutros contextos” (Ibidem).
Uma vez absorvido pelo modelo, o “crente comum dificilmente poderá continuar
a identificar-se com a sua tribo local ou com o seu santuário” (GELLNER, 1992,
p. 30). As pretensões são universais, domínio amplo, tanto territorial quanto
político e econômico. O Islã se basta e não pode se dobrar ao relativismo
ocidental. Fazê-lo é apostatar, provocar a própria derrocada a partir do
enfraquecimento espiritual, como são interpretas as derrotas frente ao inimigo
opressor, cujo remédio será o martírio “contra um tirano muçulmano” (Ibidem,
p. 33). Gellner invoca a história da revolução iraniana, quando Khomeini
inspirou a “histeria das massas” e “induziu os revolucionários a deixarem-se
massacrar pelos homens do xá em número tal, que acabaram por esgotar a
paciência da oposição” (Ibidem).
Assim, Gellner fecha o modelo da religião do Islã frente às demandas de
hoje e de sempre, respondendo que o dilema do Islã, frente ao relativismo na
pós-modernidade, não repele a nova cultura, nem faz a “idealização de uma
qualquer virtude e sabedoria populares” (GELLNER, 1992, p. 35). Ele “retorna”
ou observa estrita e rigorosamente o Alto Islão constituído no seio da
comunidade como “uma tradição local absolutamente genuína e desde há
muito estabelecida” na “prática da(s) primeira(s) geração(ões) de muçulmanos”
(GELLNER, 1992, pp. 35,36). “À luz das necessidades modernas, a autoreforma podia ser apresentada como um retorno ao ideal genuinamente local,
um regresso ao lar moral e não tanto um auto-repúdio” (Ibidem, p. 36).
Sendo verificada a situação de “opressão” e “dominação”, temos nos
aproximado do nosso objeto, em sentido geográfico, pois é o que especialistas
relatam como a real situação na terra Palestina, como veremos mais de perto.
A “violência” assume outro perfil, passando de “violência interpessoal”
(PINHEIRO, 2003, p. 22) para uma crise de “desigualdade profunda”, para usar
expressão de Halliday (2004), “una espiral violenta” como diz Walzer (2001, p.
54), o que levará a escalada da violência ou crise mimética, na expressão de
Girard (2011, p. 79).
1.4 Terrorismo ou pedido de socorro?
71
Chen 99 (2012, p. 107) considera que o Hamas cometeu o seu primeiro
atentado suicida 100 em abril de 1994, “em retaliação pelo massacre de Hebron
realizado por extremistas judeus”. Quarenta e seis anos depois da fundação do
Estado de Israel, oito depois da fundação do próprio Hamas. 101 Isso exime os
palestinos da má fama de “terroristas” como alguns querem fazer crer.
Halliday
(2011)
afirma
que
não
se
compreende
o
terrorismo
adequadamente, se não se considerarem as “conexões: entre passado e
presente,
[terrorismo]
estatal
e
violência
insurgente,
nacionalistas
e
movimentos religiosos” (HALLIDAY, 2011, trad. livre). Não há explicação fácil.
O número mais expressivo de terrorismo suicida está com os Tigres de
Libertação do Tamil Eelam, que, sozinhos, são responsáveis por 75 dos 186
ataques terroristas suicidas, entre 1980-2001 (PAPE, 2003, p. 343). 102 Entre os
grupos islamistas, a motivação religiosa representa dois terços do total de
ataques suicidas, mas “o fanatismo religioso não explica” por si o terrorismo
suicida,
como
também
a
adesão
de
um
grupo
“a
uma
ideologia
marxista/leninista, [pois] existem explicações psicológicas que têm sido
desmentidas pelo leque alargado das origens socioeconômicas de terroristas
suicidas” (Ibidem).
Se o Hamas encontra forte apoio na Faixa de Gaza, havendo palestinos
na Cisjordânia, em Israel e na própria Jordânia (SAID, 2012, pp. 156,157), não
é sem motivo. O cerco imposto por Israel àquele território causa, dentre
inúmeros outros desequilíbrios, o esmagamento socioeconômico da população.
O relatório da ONU (Human Rights Council – HRC, resolution 5/1) apresentado
pelo relator especial sobre a situação dos direitos humanos nos territórios
palestinos ocupados desde 1967, Richard A. Falk, aponta para as “condições
terríveis em que o povo palestino tem para viver” (WATZAL, 2014).
99
Dr. Chen Tianshe é professor associado da Faculdade de História na Zhengzhou University (China).
100
Segundo Crenshaw, as missões suicidas começaram na década de 1980 no Líbano (2007, p. 31).
101
Yousef defende que “embora tenha sido o primeiro atentado a bomba, o ataque em Hadera foi,
na verdade, o terceiro teste, parte de uma fase de tentativa e erro durante a qual o fabricante de
bombas Yahya Ayyash aperfeiçoou seu ofício” (2010, p. 71). Para Pape (2003, p. 359), o primeiro
atentado foi em Afula, também em abril (como Chen) de 1996, no dia 6, com 9 mortos.
102
Robert A. Pape é professor associado de Ciência Política na Universidade de Chicago.
72
Israel bloqueou não apenas 1,6 milhão de habitantes da Faixa
de Gaza, mas também controla a área na água, na terra e no
ar. Ninguém pode deixar esta prisão a céu aberto sem uma
autorização dos israelenses. (Ibidem)
O relatório de Falk ainda destaca que a operação militar israelense
“Chumbo Fundido”, realizada de dezembro de 2008 a janeiro de 2009, “matou
1.400 pessoas e causou grandes danos na infraestrutura” (Ibidem). Ou, na
afirmação de Shulamit Aloni: “Não temos câmaras de gás, nem fornos
crematórios, mas não há só um método para cometer um genocídio” (MORIN,
2007, p. 128). 103
Flint 104 diz que na Faixa de Gaza viviam 1 milhão de palestinos e 5 mil
colonos israelenses que controlam 30% das terras e 40% das fontes de água
(dados que cobrem o período da pesquisa). “Grande parte das reservas
subterrâneas de água é canalizada para os assentamentos e para o território
de Israel” (FLINT, 2009, p. 56). Em registro feito em abril de 2001 sobre o
bloqueio de Gaza, Flint aponta que os prejuízos econômicos batiam na casa de
US$ 3 bilhões. Além disso, 125 mil palestinos foram proibidos de manter seu
trabalho em Israel e o índice de desemprego chegou a 50% (Ibidem). Ela
menciona que a ONU se pronunciou dizendo que durante menos de um ano,
de outubro de 2000 a março de 2001, 575 prédios residenciais foram
totalmente destruídos e outros 3.700, também residenciais, foram seriamente
danificados, 181 mil árvores foram derrubadas pelo Exército e quase 3,7
milhões de m2 de áreas agrícolas cultivadas foram destruídas (Ibidem, p. 129).
Diante disso, Pape fala do modo como os terroristas avaliam
positivamente a utilização do meio suicida entre suas ações mais efetivas
contra a pressão israelense. A retirada das tropas de Israel da Faixa de Gaza
em maio de 1994 foi atribuída a um ataque do Hamas. Israel e a OLP
103
Versão do Courrier Internacional de 13 de março de 2003.
104
Guila Flint é correspondente da BBC Brasil para Israel e Palestina, tendo trabalhado para o Jornal
da Tarde, o Estadão, GloboNews, CartaCapital, Correio Braziliense entre outros. Formou-se na
Universidade de Tel Aviv (Israel), para onde se mudou em 1969. É autora de Israel, terra em transe –
democracia ou teocracia?, e Miragem de Paz – Israel e Palestina, processos e retrocessos e revisou e
traduziu os textos de Outro Israel: reflexões de Uri Avnery (todos pela ed. Civilização Brasileira).
73
assinaram os Acordos de Oslo em 13 de setembro de 1993 prevendo que as
forças armadas israelenses seriam removidas a partir de 13 de dezembro
daquele ano, com a conclusão da operação prevista para 13 de abril do ano
seguinte. Israel não cumpriu nenhum dos prazos. Soma-se a isso o impasse
em outra questão, como o tamanho da força policial da Palestina: a proposta
da OLP era de 9 mil homens, e Israel impôs o limite de 1.800 policiais. “Até 5
abril de 1994 estas questões estavam por resolver. O Hamas, em seguida,
lançou dois ataques suicidas, um em 6 de abril e outro em 13 de abril, matando
15 civis israelenses” (PAPE, 2003, p. 353. Ver Quadro 2).
O próprio Ministro Yitzhak Rabin contrariou a opinião de analistas de que
o suicídio terrorista atrasou a implementação do Acordo, ao admitir que a
decisão teve o objetivo de reduzir o terrorismo (PAPE, 2003, p. 354). Em outra
entrevista citada por Pape, Ahmed Bakr, líder do Hamas, confessa estar certo
de que “o que forçou os israelenses a se retirar de Gaza foi o levante e não o
acordo de Oslo”. Imad al-Faluji, Ministro da Comunicação da AP, julgou que:
[...] tudo o que foi alcançado até agora é a consequência de
nossas ações militares. [...] Israel pode vencer todos os
exércitos árabes. No entanto, ele não pode fazer nada contra
um jovem com uma faca ou uma carga explosiva em seu corpo
(Hamas Leader, 1995, apud PAPE, 2003, p. 354).
Não me “encanto” com o terrorismo visto em situações assim, nem
podemos nos esquecer de que o terrorismo não é um meio exclusivo dos
árabes ou muçulmanos (ou islâmicos) de resolver seus problemas.
Historicamente, o continente europeu foi pioneiro em violência
política em escala mundial, desenvolvido moderna guerra
industrial
e
desempenhando
o
papel
de
liderança
no
desenvolvimento desses instrumentos particulares de ação
política moderna e controle: o genocídio, a tortura sistemática
do Estado e de terrorismo (HALLIDAY, 2014).
74
Enfim, todos, nações e grupos, se servem do recurso ao terror, a fim de
conseguir seus propósitos de “legitimar a violência” (HANIF, 2014). Hanif cita
Nelson Mandela, que, se hoje é considerado ícone da luta pelos direitos, ontem
fez terror contra o Estado. “Nelson Mandela, agora um herói, foi preso porque
se recusou a pedir a seus seguidores que se abstivessem de violência”
(HANIF, 2014). Com o fim das atividades do Congresso Nacional Africano em
1960, do qual Mandela era vice-presidente, ele passou à clandestinidade e
introduziu “uma campanha de sabotagem contra a economia do país” para
derrubar o governo (HANIF, 2014), o que ele mesmo admitiu diante do tribunal:
Eu não nego que planejei sabotagem. Não planejei isso com
espírito imprudente, nem porque tivesse amor à violência. Isso
se deu como resultado sereno e sóbrio da avaliação de um
ambiente da situação política que surgiu depois de muitos anos
de tirania, exploração e opressão do meu povo pelos brancos
(HANIF, 2014).
As Convenções de Genebra e seus dois Protocolos Adicionais de 1977
(HALLIDAY, 2014) regulam as regras do jogo da guerra, mas não são
eficientes (nem poderiam) para resolver questões de opressão como relatada.
Menos ainda com relação à “modernidade do terrorismo” (Ibidem). Se Genebra
torna “legais” as ações do Estado, e “criminosas” as reações dos adversários
do Estado, é preciso manter distinta a existência do “baixo terrorismo”
“patrocinado pelo Estado”. Este constitui o “apoio a terroristas, e mais
amplamente da guerrilha, a atividade por um Estado no território e/ou contra os
funcionários e cidadãos de outro” (Ibidem) e a responsabilidade dos grupos de
oposição, em revolta contra seus próprios estados, para respeitarem as normas
de guerra em seus ataques na resistência a este Estado (Id.). Halliday
menciona exemplos como movimentos nacionalistas na Irlanda, Armênia,
Bengali, além dos anarquistas russos.
No final da década de 1960, os recursos utilizados por guerrilhas de perfil
secularista (marxista-leninista) na Palestina, no Irã e na Eritreia incluíam
ataques contra civis, sequestros de aviões, sequestros de políticos e até de
cidadãos comuns (HALLIDAY, 2014). Já os movimentos de natureza religiosa,
75
como a Irmandade Muçulmana, no Egito e na Jordânia, e o Islã Fedayeen, no
Irã, apelavam para “assassinatos seletivos de intelectuais ou adversários
políticos”, sem ter feito com que isso se tornasse padrão (Ibidem). Mas após o
11/9, certo ranço “orientalista” parece ter sido impresso a determinados grupos
e suas ações. No entanto, Halliday adverte que o “terrorismo como ideologia e
instrumento de luta, é um fenômeno moderno, um produto do conflito entre
Estados contemporâneos e suas sociedades inquietas” próprio de ser visto em
diferentes regiões, ricas ou pobres, cujas “raízes estão na política secular
moderna [...] sem apelo cultural ou regional específico” e que visa também a
tomada do poder (HALLIDAY, 2014). 105
Em All Kind of Terrorists, Uri Avnery (2014) também insiste em que não
são os mecanismos de legitimação do Estado (no caso a Convenção de
Genebra) que tornam “oficial” ou “justificável” uma ação, mas o seu objetivo
(AVNERY, 2014). Dentro de sua definição, ele coloca o ex-presidente dos
Estados Unidos, George W. Bush, que declararia guerra a bin Laden, mesmo
sem os atentados de 11/9, porque o objetivo deste era “livrar-se dos Estados
Unidos e seus satélites” (AVNERY, 2014). Bush foi seguido por muitos que se
“aliaram” a eles contra os “terroristas”: “Putin na Chechênia; a China contra
suas regiões muçulmanas, a Índia na Caxemira, Sharon nos territórios
105
O autor conclui apontando o que chama de “o caminho a seguir” em quatro diretrizes. Primeiro,
condenar o terrorismo de qualquer natureza, o estatal ou o baixo terrorismo, porque ele viola “as regras
da guerra no que diz respeito ao tratamento de civis e prisioneiros”. Em segundo lugar, o Oriente
precisa apoiar ações de defesa de direitos humanos, enquanto o Ocidente precisa abandonar o apoio a
grupos que considera “terroristas” no Oriente. Em terceiro lugar, a “resistência ao terror não é uma
prerrogativa dos estados ocidentais poderosos”. Terror, de baixo e de cima, tem sido a experiência de
muitos povos do terceiro mundo ao longo de décadas, bem antes do 11/9”. Em outras palavras, há
milhares de vítimas em todos os continentes e especialmente os países poderosos contribuíram para
este estado de coisas, não sendo, portanto, suas únicas vítimas. E finalmente, a luta contra o terrorismo
em qualquer continente precisa levar em conta suas dimensões políticas, culturais, de segurança,
história e as relações de direitos humanos e entre “civilizações”. “O principal desafio [...] é criar uma
ordem global que defenda a segurança e ao mesmo tempo torne reais as aspirações de igualdade e
respeito mútuo que a própria modernidade tem despertado e proclamado, mas tem falhado
espetacularmente em cumprir até agora [...] e acima de tudo, a nossa melhor defesa: um compromisso
com os valores liberais e democráticos (HALLIDAY, 2014).
76
ocupados – todos agora estão lutando contra ‘terroristas’. Todo mundo e seu
bin Laden” (AVNERY, 2014).
Avnery, então, se diz orgulhoso com uma definição que cunhou: “A
diferença entre combatentes da liberdade e terroristas é que os guerreiros da
liberdade estão do meu lado e os terroristas estão do outro lado” (Ibidem).
Os atentados em Nova York tornaram moda a palavra “terrorismo” e isso
fez com que o “sentido preciso” fosse esvaziado. “Terror”, diz Avnery, “significa
medo extremo. A raiz da palavra latina é ‘terrere’, assustar ou ter medo” e tem
origem na ação dos “jacobinos, uma das facções da Revolução Francesa, para
destruir seus adversários, decapitando-os com a guilhotina durante os anos de
1793-4”, sendo que Robespierre, o líder do movimento, teve a mesma morte
(AVNERY, 2014). A partir daí, terrorismo se tornou “um método de alcançar
objetivos políticos 106 por assustar a população civil”, e não pode ser aplicado
entre exércitos e seus soldados (Ibidem). 107
Não é diferente no caso do Hamas e dos palestinos. Se Hanif (2014)
chamou de “irônica” a definição cunhada por Avnery, ele ainda vai mais longe.
Confessa que um “terrorista” palestino disse a ele recentemente: “Dê-me
tanques e aviões, e eu vou parar de enviar homens-bomba a Israel” (AVNERY,
2014), ou seja, “o terrorismo é a arma dos fracos” (Ibidem).
Israel tem usado esse método a partir da data da sua criação.
No início dos anos 50 o IDF cometia “ataques de retaliação”,
projetados para assustar os aldeões de além da fronteira, a fim
de induzi-los a exercer pressão sobre os governos da Jordânia
e do Egito a fim de impedir a infiltração de palestinos em Israel
(AVNERY, 2014).
106
“Suicídios terroristas tentaram obrigar as forças militares americanas e francesas a abandonarem
o Líbano em 1983, as forças de Israel a deixarem o Líbano em 1985, as forças israelenses a saírem da
Faixa de Gaza e na Cisjordânia em 1994 e 1995” (PAPE, 2003, p. 343).
107
Repito aqui citação já feita: “Clausewitz disse que a guerra é a continuação da política por outros
meios. Isso é verdade para o terrorismo, também. O terrorismo é sempre um instrumento para a
consecução de objetivos políticos. Uma vez que estes podem ser de direita ou de esquerda,
revolucionário ou reacionário, religioso ou secular, o termo "terrorismo internacional" é um disparate.
Cada organismo terrorista tem sua própria agenda específica” (AVNERY, 2014).
77
De fato, terroristas são os outros. Avnery segue citando alguns casos na
própria história de Israel em seus conflitos contra o Egito, no final dos anos
1960, contra o Líbano em 1966 na campanha no sul daquele país, como
também os talibãs e a devastação causada pelos russos, na Chechênia
(AVNERY, 2014). O problema, corrige ele, é que sendo o terrorismo uma
ferramenta política para solução de problemas políticos, não há outro meio
para combatê-lo senão pela via política. “Resolva o problema que gera o
terrorismo e você se livrará dele” ou “resolva o problema israelense-palestino e
os outros pontos de inflamação no Oriente Médio, e você vai se livrar da alQaeda. [...] Ninguém ainda inventou outro método” (AVNERY, 2014).
É senso comum haver ocupação ilegal da terra dos palestinos; penso que
as Resoluções 242 e 338 da ONU deixam isso claro. Esta situação tem um
peso maior sobre os médio orientais, por causa das características geográficas
locais e do desenvolvimento da própria sociedade. É preciso salientar que as
divisões nacionais “comuns” ao Ocidente não eram tão “comuns” na região, até
cerca de cem anos, por exemplo. Kamel dá conta de que França e GrãBretanha receberam da Liga das Nações “o Oriente Médio como área a ser
‘supervisionada’ até que a independência pudesse ser ‘concedida’ àqueles
povos” (KAMEL, 2007, p. 114). A Grã-Bretanha comprometeu-se com os
chefes árabes (ele usa a expressão “jurou”) “torná-los os governadores de suas
nações. O problema começa aí: que nações? Era preciso inventá-las” (Ibidem).
E foi assim que nasceram, ou melhor, foram criadas a Arábia Saudita, a
Palestina e a Jordânia, o Iraque e o Irã, a Indonésia, a Índia.
Estou mencionando isso, para falar que a relação daqueles povos entre si
é ligeiramente diferente de como europeus e americanos se veem na sua
relação com a terra e até mesmo com o clã ou a aldeia. Falando sobre os
imigrantes sírios e libaneses, dois autores que publicaram obras no Brasil
concordam em que esses povos (que estão geograficamente próximos do
espectro da pesquisa) têm em comum uma estrutura apoiada nos valores
étnicos ligados a família, a religião e a aldeia (KNOWLTON, 1961, p. 167;
TRUZZI, 2005, p. 3). Um deles, Truzzi, não insere o idioma neste tripé, e
justifica:
78
Embora a região territorialmente pertença ao chamado mundo
árabe moderno, e seus habitantes efetivamente serem falantes
da língua árabe, os sírios e libaneses identificam-se, sobretudo,
com a religião professada e com a região ou aldeia de origem,
elementos fundadores de suas identidades, muito mais que
com o estado-nação, existente para eles na época da
emigração. Em consequência, a identidade árabe lhes soa
artificial (TRUZZI, 2005, p. 2).
Neste sentido, a aldeia é o ponto central onde os valores são passados às
gerações e onde há convívio entre duas, três ou até mesmo quatro gerações
no mesmo espaço. Seria a família na teoria de Sorel.
Se a família constitui elemento fundamental de reprodução de
valores – entre os quais a honra familiar desempenha papel de
destaque –, a aldeia representa o locus onde tais valores foram
cultivados e onde as gerações anteriores da família viveram.
(TRUZZI, 2005, p. 3, ênfase no original).
Se a religião é tão pronunciada na identidade do povo da aldeia e se de
fato ela e os demais valores identitários são transmitidos entre o grupo, é certo
que elementos rituais sejam rapidamente elaborados dentro do mercado de
produtores de serviços, como Bourdieu interpreta. Pape confirma isso:
Organizações terroristas suicidas comumente cultivam os
“mitos sacrificiais” que incluem conjuntos elaborados de
símbolos e rituais para marcar a morte de um indivíduo
atacante como uma contribuição para a nação. Famílias dos
suicidas também costumam receber recompensas materiais,
tanto das organizações terroristas e de outros apoiadores.
Como resultado, a arte de martírio provoca apoio popular a
partir de comunidade dos terroristas, reduzindo a reação moral
que os ataques suicidas poderiam produzir, e assim por
79
estabelece as bases para sinais críveis de mais ataques que
virão (PAPE, 2003, p. 347, ênfase acrescentada)
Fechando mais o ângulo de observação, Farah 108 (2011) dá apoio à ideia
que a terra exerce importante papel na manutenção da vida e na construção da
identidade palestina. Em um de seus artigos, por exemplo, trata o tema da terra
na obra do escritor palestino Ghassan Kanafani, cuja família precisou
abandonar a Palestina, rumo ao Líbano após 1948, ano de fundação de Israel.
De fato, a relação do palestino com a terra constitui a
problemática essencial da grande maioria dos romances e dos
contos
de
Kanafani,
autor
que
associa
árvores
que
caracterizam essa paisagem (vista como prolongamento
natural do lar), como a oliveira, a laranjeira e a videira, ao
apego à terra natal, ao futuro e à esperança (FARAH, 2011). 109
Said também pinta este quadro ao dizer que “a sociedade palestina foi
organizada em linhas feudais e tribais” (SAID, 2012, p. 202). É este cenário
poético, de um povo da terra, conectado a ela e por meio dela, que ao mesmo
tempo cerceado por irmãos e vizinhos num verdadeiro apartheid (WATZAL,
2007, ABU-RABI, 2011, p. 124) em sua própria terra.
O livro de Tutu, que traz bons “insights” sobre processos de reconciliação
e pacificação de comunidades em conflito, haja vista o seu profícuo trabalho,
durante e após o aparthaid sul-africano, tem um capítulo dedicado ao conflito
israelo-palestino. Tutu fez um discurso no Natal de 1989, na igreja Old South,
em Boston, intitulado “Ocupação é opressão”. Um dos anfitriões do encontro
era Naim Ateek, fundador do Centro Ecumênico de Teologia da Libertação
Palestina “Sabeel” de Jerusalém. No discurso, Tutu (2012, pp. 118-126) fez
108
Paulo Daniel Elias Farah possui graduação em Língua e Literatura Árabe, graduação em Letras
Português, mestrado em Linguística e doutorado em Letras, todos pela USP, onde é professor.
109
A forte identificação com a terra já aparece na primeira frase do livro “Homens ao sol” (de 1963)
“Abu-Qays repousou o peito na terra úmida. O solo pulsava com batimentos ofegantes que
reverberavam em cada grão de areia” (KANAFANI, G. Obras completas, vol. 1. Beirute, 1972, p. 37. Apud
FARAH, 2001).
80
associações da ocupação israelense com o apartheid sul-africano. Algumas de
suas afirmações são:
Não há meio pelo qual a força se transforme em justiça (p.
120); Eu testemunhei a humilhação dos palestinos nos
bloqueios rodoviários [...] a exigência áspera e descortês por
identificação dos palestinos foi uma lembrança sinistra das
infames reides da lei do passe do horrendo regime do
apartheid [...] Nesses visitas, nós vimos ou lemos a respeito de
situações que não aconteceram nem durante o apartheid na
África do Sul: a demolição de casas com base na suspeita de
que um membro da família fosse um terrorista, de modo que
todos pagavam o preço nesses atos de punição coletiva que,
aparentemente, se repetem nos recentes ataques aos campos
de refugiados árabes. Não sabemos a verdade exata porque os
israelenses não permitem a presença da imprensa (pp.
121,122); Nós condenamos a violência dos homens-bomba e,
se as crianças árabes são ensinadas a odiarem judeus,
também condenamos a corrupção das mentes jovens (p. 123).
Abu Sway 110 associa o tema da terra ao Movimento e à religião, dizendo
que o esforço do Hamas pela “questão da terra, conforme apresentada no
decreto do Hamas, é consistente com a teologia e a jurisprudência islâmicas”
(ABU-RABI, 2011, p. 131. Sobre “decreto do Hamas”, ver Apêndice 1).
Mas, o que diz a religião? É ela que acende o pavio dos homens-bomba
que lutam pelo fim dos conflitos na Palestina?
1.5 O Islã condena conflitos
110
O professor Abu Sway recebeu o seu BA da Universidade de Belém (1984) e MA (1985) e
doutorado (1993) no Boston College, EUA. Foi o primeiro titular da Cátedra Integral para o Estudo da
Obra de Imam Ghazali em Al-Masjid Al-Aqsa e da Al-Quds University, em 2012. Desde 1996 é Professor
de Filosofia e Estudos Islâmicos em Al-Quds University (Jerusalém).
81
Se é assim na perspectiva étnica, também é na religiosa. E com olhar
retrospectivo, há apoio na história do início do Islã, pois “foi apenas após Alá
ter lhe dado a terra e um Estado que o Profeta resolveu defender e guardar
essas posses”. Assim, a pergunta que al-Buti 111 faz é: “O que é que existe hoje
pelo qual devemos fazer a jihad?”. Ele mesmo responde:
O que realmente existe é a residência territorial do Islã (dar alIslam), porque o território antes unido foi dividido em pequenos
territórios independentes; não obstante, esta permanece como
a “riqueza” mais durável que os muçulmanos possuem hoje
(ABU-RABI, 2011, pp. 92,93, ênfases no original)
Ele afirma pelo Islã que se deve ter em mente o “direito [...] de possuir e
governar um território” como “direito estabelecido, então esse território torna-se
um dar al-Islam permanente”. No caso de a terra cair em “ocupação inimiga,
isso não muda o fato de que em última instância, ela pertence aos
muçulmanos, cujo dever é continuar lutando contra os ocupantes e agressores
com todos os meios possíveis a fim de recuperá-la” (Ibidem, p. 93).
No artigo com o título “O Islã condena conflitos”, Farah (1998) chama a
atenção para a rápida associação a uma motivação religiosa sempre que
ocorre uma crise ou questão crítica envolvendo países no Oriente Médio ou
países de maioria muçulmana (como a Indonésia). Para apoiar a defesa que
faz de que todo e qualquer conflito não pode ser fundamentado imediatamente
na religião, ele recorre a um dito do profeta Muhammad, que diz: “Se dois
muçulmanos se encontrarem com espadas (arma mais utilizada no séc. 7), o
assassino e o assassinado vão para o inferno” (FARAH, 1998). Com esta
citação, Farah explica que o entendimento aceito (ou que deveria ser aceito) é
que até “mesmo a intenção de matar um outro muçulmano é condenada pelo
islamismo” (Ibidem).
111
Muhammad Sa’id Ramadan al-Buti estudou Teologia Islâmica na Universidade Al-Azhar e ocupou
posições acadêmicas em países árabes e muçulmanos. É professor de estudos islâmicos na Universidade
de Damasco, e é considerado o pensador muçulmano mais importante da Síria contemporânea.
82
A questão da violência no Islã é assunto tratado também pelo professor
Seyyed Hossein Nasr 112 em Islam and the question of violence (2014), 113 artigo
que inicia “lembrando que a própria palavra Islã significa paz e que a história do
Islã certamente não foi testemunha de mais violência do a que se encontra em
outras civilizações, particularmente a do Ocidente.”. Para o autor, este é o
caminho “para compreender a natureza do Islã”.
Ele parte para as definições do que se entende por “violência”.
Considerando haver várias definições no dicionário, a pergunta se torna “como
Islã está relacionado com estas definições?”. Ele, então, toma a definição de
violência como “força”, e neste sentido “o Islã não é completamente contrário
ao seu uso” (NASR, 2014), uma vez que o Islã apregoa o equilíbrio entre as
forças e o seu controle “à luz da lei divina (al-Sharia)”. Nasr considera que este
mundo aglutina várias forças, “na natureza, nas sociedades humanas, entre os
homens e na própria alma humana” e, eventualmente, elas podem impor-se
umas às outras. Neste caso, é papel do Islã promover o reequilíbrio, e para
isso deve fazer uso da força.
A própria compreensão de justiça passa pelo equilíbrio. “A palavra de
justiça (al-‘Adl), em árabe, pode ser relacionada em sua etimologia a palavra
para o equilíbrio (ta’adul)” (Ibidem). Quando ocorre desajuste entre as forças
operantes, torna-se, de fato, “necessário” o uso da força para “realizar e
estabelecer a justiça” (Ibidem). Constitui-se, portanto, “injustiça” omitir-se a
fazer o uso da força, permitindo a opressão, tornar-se presa ou mesmo “vítima
de outras forças que não deixam de aumentar o desequilíbrio e a desordem e
resultam em maior injustiça” (NASR, 2014). A intensidade com que se fará uso
da força na promoção do equilíbrio dependerá do presente e imediato estado
das coisas, tendo em vista, sempre, a máxima da ética pública: o maior bem
para o maior número de pessoas, e não para benefício de “interesses de uma
pessoa ou um grupo específico”.
112
Seyyed Hossein Nasr é professor de Estudos Islâmicos na Universidade George Washington. É um
importante estudioso da religião e estudos comparativos do mundo islâmico. Autor de mais de
cinquenta livros e quinhentos artigos que foram traduzidos para idiomas no mundo islâmico, europeu e
asiático, o professor Nasr é figura intelectual conhecida e respeitada no Ocidente e no mundo islâmico.
113
As citações serão tradução livre.
83
Como o Islã advoga sobre o “reino de César”, é preciso também ser
responsável na aplicação da força nos ambientes sociais onde as várias
relações humanas acontecem e onde “a força está presente”. Nestes casos, o
Islã procura limitar a intensidade com que atua e aplica a força visando
proteger-se de “todas as guerras, invasões e ataques” que tem experimentado.
Com isso, alega Nasr,
A paz que domina o pátio de uma mesquita ou um jardim, seja
em Marrakesh ou Lahore, não é acidental, mas o resultado do
controle de força com o objetivo de estabelecer a harmonia que
resulta do equilíbrio de forças, sejam essas forças naturais,
sociais ou psicológicas (NASR, 2014).
A segunda definição de Nasr, quanto ao significado de violência, aponta
para a “força física rude ou ação danosa”. Se o significado de violência for este,
“a lei islâmica se opõe a todas as utilizações de força, neste sentido, salvo em
caso de guerra ou para a punição de criminosos, de acordo com a sharia”
(Ibidem). O consenso amplo aceito nos acordos internacionais que regulam as
regras da guerra, de que não se deve atacar crianças e mulheres nem outros
civis, é contemplado. Somente contra os agressores é permitido o uso da
violência na guerra. Lesões não podem ser cometidas nem mesmo na punição
de criminosos, de acordo com a Sharia.
O terceiro sentido ou significado de violência é no cometimento da
“injustiça contra os direitos e leis dos outros”. Se esta for a questão, se o
entendimento de violência é esse, então “o Islã se opõe totalmente a ela”. Os
direitos humanos são definidos pela Lei Islâmica e por ela protegidos, cobrindo
os direitos dos muçulmanos, como também os seguidores de outras religiões,
considerados “Povo do Livro (Ahl al-Kitab)”. “Se há, no entanto, violação na
sociedade islâmica, é devida não aos ensinamentos do Islã, mas a imperfeição
dos receptores humanos da mensagem divina” (Ibidem). O Islã é considerado
perfeito e perfeita a sua lei, mas “nenhuma religião pode neutralizar
completamente as imperfeições inerentes à natureza do homem caído”, ficando
aberta a possibilidade para as más interpretações que dão ocasião a múltiplos
sentidos. Penso que aqui está a janela para o extremismo.
84
Nasr não cita dados mais precisos, mas defende que mesmo com todos
os fatores (ou forças) negativos contrários operando nas sociedades
muçulmanas, como “colonialismo, a superpopulação, a industrialização, a
modernização
resultando
deslocamento
cultural”
entre
outros,
essas
sociedades contabilizam “menos violência fruto do emprego injusto da força [...]
na maioria dos países islâmicos do que nos países industrializados do
Ocidente” (NASR, 2014).
Ainda outros dois significados são encontrados para violência, são eles:
primeiro, “grosseria ou veemência imoderada”. Também o Islã se opõe a isto.
Novamente a regra de ouro é invocada: moderação, moralidade e equilíbrio de
forças. “Mesmo que a força precise ser utilizada, isso deve ser feito na base da
moderação”.
E finalmente, se por violência se entende “distorção de significado ou fato
que resulte em prejuízo para outros”, o Islã é completamente contrário a essa
violência. Sendo o Islã “baseado na Verdade que salva e que encontra sua
expressão suprema no testemunho da fé la ilaha illa’Llah (não há divindade,
mas o Divino)” fica excluído qualquer apoio a interpretações que amparem,
motivem ou estimulem tais distorções. “Qualquer distorção da verdade é contra
os ensinamentos básicos da religião, mesmo que ninguém puder (sic) ser
afetado por ela”. Promover qualquer entendimento de força ou violência que
resulte “em lesões contrariam os ensinamentos do Corão e a tradição do
Profeta!”.
Assim, como já havia antecipado, o Islã “abrange a totalidade da vida e
não faz apenas distinção entre o sagrado e o secular”. À vista disso, precisa
atuar na manutenção do equilíbrio de forças “que caracterizam este mundo
como tal” (NASR, 2014). É neste sentido que se pode falar em jihad como
esforço e uso da força (Ibidem; KEPEL, 2003, p. 92). A paz, cujo
estabelecimento é o objetivo do Islã, só pode ser obtida com o uso da força,
primeiramente a força contra os instintos humanos e depois na sua experiência
no mundo sob a Sharia.
O Islam tolera o uso da força apenas na medida da oposição a
tendência centrípeta que transforma o homem contra o que ele
é na sua realidade interior. O uso da força só pode ser tolerado
85
no sentido de desfazer a violação de nossa própria natureza e
do caos que resultou da perda de equilíbrio. Porém, tal uso de
força não é, na realidade, a violência como geralmente
entendida. É o esforço da vontade humana e esforço no
sentido de se conformar a vontade de Deus na entrega da
vontade humana a vontade divina. A partir desta entrega
(taslim) vem a paz (salam), daí islam, e só através deste islam
pode a violência inata na natureza do homem caído ser
controlada e a fera interior subjugada para que o homem viva
em paz consigo mesmo e com o mundo, para que ele viva em
paz com Deus (NASR, 2014).
Penso, com isso, ter coberto um leque de significados de violência ao
longo do tempo recente, como também dentro de algumas culturas distintas,
incluindo o âmbito da religião. Especialmente importante foi esta última
contribuição do professor Nasr, estabelecendo o entendimento modelo, o
elevado padrão a ser perseguido pelos fieis do Islã.
2. O CORÃO E OS PERÍODOS MEQUENSE E MEDINENSE
A morte é no fundo a maior violência que
pode acontecer a um homem. René Girard
2.1 A formação do Corão
A razão para as disparidades na interpretação do texto corânico tem sido
atribuída às diferenças de circunstâncias que envolveram o Profeta e sua
comunidade nas experiências em Meca e, posteriormente, em Medina. Kamel
(2007, p. 131) diz que a principal fonte de disparidades nas interpretações do
Corão (o que separa moderados e extremistas) é identificar “a interpretação
correta da história passada, o que é normativo e o que é prescritivo”:
[...] alguns recorrem a trechos semelhantes [ele fala em relação
a textos sem validade na Bíblia] do Alcorão, como se eles
86
tivessem um caráter de mandamento eterno. [...] O que
Johnson [Paul Johnson, historiador inglês] citou do Alcorão se
refere a um período histórico determinado: a luta de Maomé
contra os idólatras, os politeístas de Meca (Ibidem).
Para algumas escolas islâmicas, há versículos que constam do
Alcorão e que são revogados ou modificados por outros,
revelados posteriormente (valem os últimos). E há versículos
que foram revelados, mas que, por ordem de Deus, deixaram
de constar do Alcorão: alguns deles porque caducaram, outros
porque, mesmo sem caducar, Deus não achou mais necessário
enfatizá-los (Ibidem, p. 136).
Para Armstrong (2009, p. 324), Sayyid Qutb 114 elaborou um plano pelo
qual “os muçulmanos devem passar [...] a fim de criar no século XX uma
comunidade corretamente orientada”. Ela diz que Qutb entendia que a primeira
parte do plano consistia no agrupamento de homens dispostos (jamaah) a
implantar a revelação de Deus de “substituir a jahiliyyah 115 de Meca por uma
sociedade justa e igualitária, que reconhecesse a soberania de Deus como
única” (Ibidem). O segundo ponto do “programa do profeta mostrou que a
sociedade estava dividida em dois campos opostos”, Meca e Medina, nós e
eles, sendo nós a comunidade de Medina e eles os pagãos de Meca, que
deveriam ser combatidos (Ibidem).
No terceiro estágio, já “em Medina [...] o Profeta instituiu um Estado
islâmico” (ARMSTRONG, 2009, p. 329) e “no quarto e último estágio ocorreu a
luta armada contra Meca, começando com pequenos ataques às caravanas de
mercadores e evoluindo para o confronto com o exército de Meca” (Ibidem).
Assim, os textos produzidos em ambientes distintos darão substância para a
elaboração de 1) uma teologia voltada para Deus e a paz ou 2) nutrirão uma
114
Sayyid al-Qutb Ibrahim ou simplesmente Sayyid Qutb (1906-1966) foi um poeta, ensaísta, crítico
literário egípcio e ativista
político e
militante
radical muçulmano.
É
considerado
pensador
fundamentalista mais importante (DEMANT, 2004, p. 205). Morreu enforcado em 1966 pelo regime de
Nasser (KEPEL, 2003, p. 96).
115
Jahiliyyah: era da ignorância, antes do início do Islã.
87
ideologia que estimula a violência. Armstrong admite que, “dada a polarização
dessa sociedade, a violência era inevitável, como para os muçulmanos atuais”
(ARMSTRONG, 2009, p. 329) porque se baseiam na parte da história que
registra ações dessa natureza. Não por acaso, Sayyid Qutb é o nome a ser
lembrado quando o assunto é a teorização de um Islã fundamentalista. Para
Kepel (2003, p. 96), a autoridade de seus escritos é decorrente de “uma mística
e um poder religioso que são reforçados pela acumulação de inúmeras
liminares retiradas do Alcorão e, sobretudo, a hadith”.
Além dos caravaneiros nômades, agricultores e artesãos (HOURANI,
1994, p. 26), a península arábica do século VII também contava com outro ator
social de relativa importância: o poeta. Sua atividade não se limitava a compor
poesia. O poeta transitava no campo da fé e também acumulava a função
semelhante a de um jornalista moderno e, nalguns casos, um agente da
propaganda política, infamando inimigos (VERNET, 2004, p. 50). 116 “Por isso
um poeta [...] afirma que se não se encontram inimigos alheios é preciso iniciar
uma discórdia familiar” (VERNET, 2004, p. 41).
Embora não haja registros de qualquer texto de origem árabe do século
III (VERNET, 2004, p. 49), “uma série de poetas, como ‘Abid b. Abras, Tarafa,
al-Nabiga al-Dubyani, ‘Adi b. Zayd, ‘Amr b. Jultum, teria ocupado a cena
literária do mundo árabe na segunda metade do século VI” (VERNET, 2004, p.
49). 117 Há, no entanto “ testemunhos externos – bizantinos – que garantem que
na época de Zenóbia [séc. 3] já existia essa poesia na forma de canções”
(VERNET, 2004, p. 49), na boa oralidade semita; mas registros físicos parece
não ter havido. A afirmação de Vernet se baseia no conteúdo extraído de
crônicas oriundas da tradição que perpassou três ou quatro gerações até
conseguirem ser registradas por “historiadores árabes que escreveram dois
116
Juan Vernet (1923-2011) foi um arabista e historiador espanhol. Foi catedrático da Universidade
de Barcelona e correspondente da Academia de Estudos Islâmicos de Amã.
117
A historiografia árabe/islâmica desse período e posterior é bastante contraditória. Essa afirmação
de Vernet, por exemplo, contradiz Hourani que diz “O Corão foi o primeiro livro escrito em árabe, e os
muçulmanos acreditavam que esta era a língua em que fora revelado” (HOURANI, 1994, p. 67).
Evidentemente não foi uma obra que nasceu pronta e acabada, senão que foi colecionada ao longo de
ao menos duas décadas e só depois disso foi organizada em um único volume.
88
séculos depois dos fatos relatados” (VERNET, 2004, p. 7). Um tempo bastante
longo, cobrindo situações precárias para amparar um registro confiável.
Evidência disso temos em Hourani, que afirma que a primeira biografia
de Muhammad surgiu mais de um século, após a morte do Profeta, em 632, e
ainda assim “parece haver elementos nas biografias e histórias tradicionais que
provavelmente não foram inventados”. (HOURANI, 1994, pp. 32,86, ênfase
acrescentada). E com uma agravante, de que “a língua árabe ainda não
adquiria a capacidade de expressar os conceitos científicos e filosóficos de um
modo preciso” (HOURANI, 1994, p. 91). Isto durante a primeira geração de
domínio muçulmano, provavelmente século VIII! A afirmação de Hourani coloca
sob suspeição a originalidade de supostos conceitos científicos registrados no
Corão possivelmente avançados para a época, e até mesmo a confiabilidade
da obra: “Sem dúvida, esses textos refletem tentativas posteriores de
enquadrar Maomé no modelo próximo-oriental de homem santo, e no modelo
árabe de descendência nobre” (HOURANI, 1994, p. 32). Uma “tentativa
posterior” de fazê-lo parecer relevante.
Sendo Mohammad um homem sem familiaridade com as letras, seu
desejo por produzir um registro literário de tal monta advém da existência de
uma classe e uma poesia já relativamente consolidadas, senão árabe, judaica
e cristã. Vernet dá conta de um lamento enfático de Mohammad, em sua
estada em Yatrib (Medina) pela “falta de poetas – ou seja, de jornalistas – a
seu serviço para responder às invectivas dos inimigos” (VERNET, 2004, p. 50).
“Seja como for, é certo que no período em que Maomé viveu a poesia árabe
tinha existência plena” (Ibidem).
Sendo um dos papéis dos poetas-jornalistas infamar inimigos, põe-se
uma questão sobre a fidelidade e imparcialidade dos textos.
Grande parte dos versos utilizados para estabelecer fatos e
costumes do século VI foi inventada ou composta pelos dois
editores
mencionados,
sempre
há
que
se
admitir
a
autenticidade de alguns deles – talvez uns trinta por cento –,
que teriam sido imitados, ampliando uma ideia central
(VERNET, 2004, p. 50).
89
Ao menos trinta por cento de textos foram imitados, mimetizados da
tradição judaico-cristã corrente, que lhe interessava especialmente remodelar
em novas formas árabes.
Mohammad era mais um poeta num cenário onde muitos outros havia.
Ele sobrepujou a todos no alcance de sua obra, é o que Vernet diz sem
entender como isso se deu em função de elementos vigentes em seu tempo.
É compreensível que um literato aceite ideias diferentes das
suas em questões de estética; que todas as pessoas, cultas ou
analfabetas, façam o mesmo é mais difícil de entender, e é
esse último fato que constitui o único milagre narrado no
Alcorão e aceito por todos os muçulmanos (VERNET, 2004, p.
52).
Mohammad nasceu em Meca, talvez, no ano 570 ou por volta disso.
Pertencia ao clã dos haximitas (VERNET, 2004, p. 58; HOURANI, 1994, p. 33),
que atuavam comercialmente, como mercadores. “O clã Hashim (hoje
conhecido como Hashemita), [é] um dos mais prestigiados da tribo dos
quraysh, que em árabe quer dizer ‘tubarão pequeno’.” (KAMEL, 2007, p. 63,
ênfase no original). Muhammad 118 em português, quer dizer “Louvado”, do
verbo árabe hãmada, louvar, elogiar, glorificar (KAMEL, 2007, p. 64).
Os hashimitas estavam intimamente ligados ao santuário central de
Meca, a Kaaba, e Hourani, na tentativa de reforçar o mito, diz que “os registros
de história que retratam sua vida dão conta de que em seu tempo o mundo
vivia ‘à espera de um guia, e um homem em busca de uma vocação’.”
(HOURANI, 1994, p. 33). Especula-se que tivesse empreendido alguma
peregrinação, talvez à Síria, onde teria sido exposto ao monoteísmo,
inexistente à época na Península, e ao monasticismo por meio de um monge
por nome Bahira (VERNET, 2004, pp. 58,59). Que as peregrinações existiam
naquele tempo e eram comuns entre tribos e clãs árabes, é verdade. Mas a
118
Seu pai foi “Abdulah bin Abdu L’Muttalib. Sua mãe foi Aminah, seu avô paterno Abdu L’Muttalib.
O tio que o acolheria posteriormente à morte de seu pai foi Abu Talib (KAMEL, 2007, p. 64). Do lado
materno, é possível que ele tivesse parentes em Yatrib, a futura Medina, como o avô ‘Abd al-Muttalib
(VERNET, 2004, p. 58).
90
vocação de Muhammad não necessita ser explicada exclusivamente por esse
meio, uma vez que a religiosidade, como vimos, fazia parte do ar que aqueles
povos respiravam e a questão do monoteísmo pode ser resolvida pelo contato
com grupos ebionitas próximos a ele.
Após o seu casamento com a rica viúva Khadija (KAMEL, 2007, p. 65),
Muhammad se ocupou com retiros espirituais afastado do contato público. O
futuro profeta passava semanas em meditação “na caverna de Hira, nos
arredores de Meca” (Ibidem, p. 66). Num desses retiros ocorreu a “visão”, com
Gabriel, algo que “perturbou-o imensamente. Ele voltou para casa e contou o
que tinha lhe ocorrido para Khadija, e disse a ela que temia ter tido uma visão
diabólica ou então que estivesse ficando louco” (Id., p. 67). Vernet acrescenta:
no momento em que recebeu a revelação ele estava envolto
num manto e parecia um possesso, um sacerdote ou um bruxo.
Essas descrições, desenvolvidas pela tradição, chegaram a
levar o historiador bizantino Teófano (c. 802/807) a acreditar
que o fundador do islã era epiléptico (VERNET, 2004, p. 59;
PIAZZA, 1991, p. 386).
Durante essas crises, Muhammad repetia palavras subconscientemente
(VERNET, 2004, p. 59), talvez aquelas que estivessem em sua mente sem que
tivesse dado muita atenção quando as ouviu – e pela natureza religiosa da
experiência, é possível pensar em resíduos de pregações ouvidas de judeus e
cristãos, o que justificaria os “cerca de trinta por cento de textos imitados”
(VERNET, 2004, p. 50). Isso ocorreu entre os anos 610 e 612 (Ibidem, p. 58).
O êxtase assustador, segundo a “hagiografia de Maomé”, consistiu em
uma visão de dois homens, sendo um deles o anjo Gabriel. O peito de
Muhammad foi aberto por um deles a fim de que tivesse os pecados lavados.
Em seguida Gabriel informou as primeiras palavras que posteriormente
comporiam o conjunto maior da obra do Corão. Segundo Kamel, “o primeiro
versículo da sura 94 seria uma referência a isso. Acaso não abrimos o teu
peito” (KAMEL, 2007, p. 64, ênfase no original).
Muhammad tinha cerca de quarenta anos quando teve a experiência que
ficou conhecida como Noite do Poder ou do Destino, mas há incertezas
91
flagrantes no modo como ela ocorreu, sendo que umas versões dão conta de
que quando teve a visão, um anjo em forma de homem “convocou-o a tornar-se
mensageiro de Deus; em outra [versão], ele ouviu a voz do anjo convidando-o
a recitar” (HOURANI, 1994, p. 33).
Revelado ao longo de vinte anos “a base real da revelação era, segundo
Maomé, um livro guardado no céu que só os puros chegavam a conhecer”
(VERNET, 2004, p. 60). Estando no céu, ele não o leu, apenas ouviu as
recitações feitas por Gabriel. Mas alega tê-lo recitado
sem interrupções quando da primeira revelação e o esqueceu.
Depois Deus, no mais puro idioma árabe, ia-lhe recordando por
meio de um Espírito ou de anjos os fragmentos que lhe eram
necessários em cada momento (VERNET, 2004, p. 60).
Muhammad não fez o registro de uma única letra das mensagens
recebidas. Ela as transmitiu oralmente algum tempo depois aos seus
companheiros e estes, fazendo uso do “sistema gráfico em uso na Arábia do
Norte no início do século VII” (VERNET, 2004, p. 109), 119 encarregaram-se de
preservar, a seu modo, o que o Profeta podia lembrar. Assim, à medida que ele
transmitia as novas revelações com as mensagens, os companheiros que
estivessem próximos procuravam rabiscar o maior número possível de palavras
nos suportes de que dispunham no momento. Confiavam na memória ou a
recitadores (isso no Século VII d.C., quando a facilidade de escrita já era
relativamente difundida e as técnicas já eram avançadas). Dessa forma, “os
escritos iniciais do Corão eram feitos em ossos, pedaços de couro, omoplatas
de camelos, casca de palmeira” (VERNET, 2004, p. 111).
Essas revelações e mensagens foram retransmitidas oralmente na
maioria dos casos e só foram compiladas num documento único trezentos anos
depois, quando já havia pelo menos 24 variantes dos manuscritos. A exceção,
119
Há aqui o problema já indicado, que contradiz Hourani, que alega que “a língua árabe ainda não
adquiria a capacidade de expressar os conceitos científicos e filosóficos de um modo preciso”
(HOURANI, 1994, p. 91) entre os séculos 7-8. Vernet ainda acrescenta a informação de que a inscrição
de al-Namara, considerada a primeira escrita árabe, foi redigida pouco depois de 328 d.C. (VERNET,
2004, p. 31), desmontando o argumento de A. Hourani.
92
uma compilação de Zid ibn Thabit, foi escolhida porque seu dialeto Quraishi era
a língua falada por Muhammad. O fator determinante na escolha do texto
oficial: motivação política. Optaram pelo dialeto de Meca (VERNET, 2004, pp.
112-114). As demais cópias foram queimadas (CANER, 2001, pp. 91,92). 120
Fica claro no texto a bagunça que foi a formação do Corão.
Pergunto: se Deus quisesse corrigir as alegadas distorções
bíblicas no AT e NT, teria Ele usado um grupo tão
despreparado como esta página demonstra? Ou não foi deus
quem revelou o Corão? (VERNET, 2004, p. 119). 121
Vernet, no entanto, não duvida da fidelidade que o processo de
transmissão oral preserva através das gerações, “contudo, quando praticada
em meios que ignoram ou utilizam pouco a escrita, ela incorre frequentemente
em erros, e desses erros nascem as lendas” (VERNET, 2004, p. 13).
BLAINEY (2008, p. 121) 122 entende que os povos do deserto, pastores
nômades, eram mais atentos à “nova religião que os fazendeiros das terras
férteis” e em função da situação nômade, dispensavam os rigores da religião
formal, diferente dos “fazendeiros das terras férteis” estabelecidos. Assim, as
mesquitas, os sacerdotes, os rituais fúnebres com suas purificações, tudo era
adaptável ao estado andarilho em que viviam. Certamente a fidelidade na
transmissão oral também era mais frouxa. “Os convertidos aprendiam de cor as
passagens principais do Alcorão, entendendo-as da melhor forma que podiam,
enquanto as recitavam com fervor” (BLAINEY, 2008, p. 121).
Um indício dessa maneira de “entender da melhor forma que podiam” é
visto na prática do próprio Muhammad, que distingue os dois períodos em que
viveu em Meca (entre 612-622) e depois em Medina, até a sua morte. Ambos
120
Ergun Mehmet Caner é mestre em Teologia e doutor em Teologia e leciona Teologia e História em
Dallas. Emir Fethi Caner, seu irmão (e co-autor), é doutor em Filosofia e professor de História na
Carolina do Norte. Ambos foram criados na cultura islâmica.
121
Vernet refere-se a recorrente afirmação feita na comunidade de fé do Islã no sentido de que a
Bíblia Hebraica e o Novo Testamento foram corrompidos, e Deus precisou enviar o Corão para corrigir as
distorções feitas por judeus e cristãos.
122
Geoffrey Blainey (1930) é professor da Universidade de Harvard e da Universidade de Melbourne.
93
os períodos no Corão admitem subdivisões, “seja por motivos literários e
religiosos predominantes no primeiro, seja por motivos político-bélico que
afloram com muita intensidade no segundo” (VERNET, 2004, p. 62). Em outras
palavras, interessava aproximar judeus e cristãos para a sua causa e, assim,
começar a nova religião com uma herança numerosa de fieis oriundos desses
dois grupos. Como não conseguiu e foi expulso de Meca, finalizando o primeiro
período (de 612-615), partiu para o ataque, que é característica do segundo
período em Medina (VERNET, 2004, p. 62).
A Arábia e seus oásis eram utilizados como refúgio por comunidades
inconformadas com a pressão econômica, religiosa e política a que judeus e
cristãos eram submetidos em seus Estados de origem (VERNET, 2004, p. 32).
À medida que Muhammad era consolidado como árbitro na comunidade de
Yatrib/Medina, em detrimento dos judeus que faziam às vezes de mediadores
nos conflitos locais, o futuro profeta instituiu uma série de procedimentos
imitativos ou miméticos, das práticas cúlticas das comunidades que queria
atrair, com a finalidade de aproximá-las: “prescreveu o jejum da ‘axura (Levítico
16.19) no dia 10 do primeiro mês ao ano (muharram), a semelhança do grande
jejum do yom kippur (10 de tisrí, também primeiro mês do ano judeu)
(VERNET, 2004, p. 69).
O mesmo aconteceu na composição do texto corânico. Muhammad
ouvira pregações cristãs (a partir do Novo Testamento) e judaicas
(basicamente a Bíblia Hebraica e lendas judaicas) e posteriormente as recitou
à sua maneira. À medida que seu fraco conhecimento da Bíblia Hebraica era
manifesto, os judeus o rejeitavam, e Muhammad acabou por persegui-los
(VERNET, 2004, pp. 70,71) em represália.
Às censuras que lhe dirigiam pelo reduzido conhecimento da
Bíblia, ele respondia que os judeus só tinham recebido uma
parte do Livro e algumas leis particulares; acusava-os de
recitar as Escrituras com má pronúncia, no que ele podia
acreditar sinceramente, se pensarmos que por serem o árabe e
o hebraico línguas semíticas muito próximas, algumas frases
(por exemplo, “olho por olho”) têm praticamente a mesma
94
pronúncia, embora às vezes não signifiquem a mesma coisa”
(VERNET, 2004, pp. 70,71).
A opção foi fugir da perseguição que se seguiu. E Muhammad o fez,
dirigindo-se para Medina. Atravessou as montanhas da costa e os leitos secos
de água, indo parar a menos de 400 quilômetros ao norte. Era o seu novo lar,
um “oásis de tamareiras e campos irrigados de cereais [...]. O dia de sua
chegada, 24 de setembro de 622, veio a tornar-se o primeiro dia do novo
calendário islâmico” (BLAINEY, 2008, p. 117).
Vernet (2004, p. 71) afirma que inicialmente não havia “forças suficientes
para castigar os judeus” que rejeitavam sua pregação, então Muhammad
adotou “castigos” contra a comunidade judaica, tais como mudar revelações
corânicas para favorecer o seu interesse pessoal e a direção da alqibla, 123 que
apontava o rumo para onde as rezas deveriam ser feitas. 124 Isso criou outro
elemento mimético na nova religião. A primeira cidade para onde faziam as
rezas era Jerusalém, tentando agradar judeus e cristãos. Frustrado o seu
plano, Muhammad abandonou o procedimento e adotou a sua cidade natal
como destino das rezas dos islâmicos, como é feito até hoje. 125
A sacralidade mimética aplicada a Meca se dava pelo discurso de que a
fundação do local de culto, a Kaaba, havia se dado pelas mãos de Abraão e
seu filho Ismael, ambos personagens judeus já consolidados na tradição
judaico-cristã. Com a fuga de Muhammad e de um grupo de apoiadores para
Medina, era necessário retomar esse santuário árabe e purificá-lo antes da
chegada dos peregrinos da fé (VERNET, 2004, p. 72). Os coraixitas, síndicos
da Kaaba, não entregariam o santuário ao refugiado Muhammad, que sabia
dessa dificuldade.
123
Al-Qibla: direção à Meca; indica para onde se deve voltar na oras das rezas.
124
“Talvez tenha sido um sinal do rompimento com os judeus o fato de a direção para onde se
voltava a comunidade durante a prece mudar de Jerusalém para Meca (qibla), e de dar-se nova ênfase à
linhagem de descendência espiritual que ligava Maomé a Abraão” (HOURANI, 1994, p. 34). Muhammad
precisava manter a apropriação feita dos elementos e agentes da tradição judaico-cristã.
125
O rompimento com os judeus faz com que Muhammad substituísse o “jejum da axura (que só
vigorou um ano, mas continuou sendo aceito como prática piedosa e é conservado até hoje pelos
xiitas)” (VERNET, 2004, p. 71).
95
A estratégia foi usar em seu favor as tradições religiosas existentes nas
comunidades e apoiar-se na ética da guerra: que só poderiam atacar se
fossem atacados. Todos acreditavam que Deus daria vitória nessas condições.
“Era preciso convencer os muçulmanos de que o seu ideário também podia ser
conseguido pelas armas e, como o pacto de Aqaba 126 era puramente
defensivo, esperar um momento oportuno para passar ao ataque” (VERNET,
2004, p. 72).
Em seus albores, na boca do Profeta ainda nos idos de Meca,
o Islã se anuncia como profecia monoteísta, anúncio
escatológico de uma salvação vindoura, mas extramundana.
Não mais que uma dúzia de anos depois do primeiro anúncio,
passa a prometer, também, certos bens de salvação nada
celestiais: espólios de guerra, poder e honradas. Riqueza.
Bens mundanos, inteiramente “deste mundo” (“diesseitig”
escreve Weber quinhentas vezes; “thiswordly”, pode-se dizer
em inglês). Promete-se aos crentes o domínio do mundo com
prestígio social, mantendo-se o testemunho de “fé” como
condição primeiríssima e sine qua non, mas suficiente, das
recompensas no outro mundo. Em poucos anos de pregação,
bens religiosos ideais estariam fartamente misturados nos
acenos
do
chancelados
original).
Profeta
com
(PIERUCCI,
bens
2002,
materiais
pp.
75,76,
religiosamente
ênfases
no
127
Hourani admite ver na mensagem do Corão “ecos [...] dos ensinamentos
de religiões anteriores: ideias judaicas nas doutrinas; [...] reflexos de
religiosidade monástica cristã” (HOURANI, 1994, p. 36). Vai além: “histórias
bíblicas em formas diferentes das do Velho e Novo Testamentos; um eco da
126
127
Sobre o pacto de al-Aqaba, o “Juramento dos Homens” ou “da Guerra”: VERNET, 2004, p. 67.
Antônio Flávio de Oliveira Pierucci (1944-2012). Graduado em Filosofia (PUC-SP), Mestre em
Ciências Sociais (PUC-SP) e Doutor em Sociologia (USP). Foi Livre Docente pela Universidade de São
Paulo onde atuou como Professor Titular do Departamento de Sociologia da USP. Especialista em
Sociologia da Religião e Teoria Sociológica Alemã.
96
ideia maniqueísta da sucessão de revelações feitas a diferentes povos”, o que
reforça a hipótese de mimetismo aplicado sobre essas obras literárias.
Muhammad precisava de um sistema já consolidado, uma religião
pronta, funcionando, e o elo para isso estava ao seu alcance. No entanto, as
profecias do Profeta não anunciavam nada de novo – ele não profetizou,
apenas requentou velhas ideias: “nas primeiras revelações, o tom é de um
adivinho árabe, tartamudeando seu senso de encontro com o sobrenatural”
(HOURANI, 1994, p. 36). Como a sua versão destoava e muito das histórias
originais, o acusaram de plágio e falso profeta, o que provocou ira e revolta
contra seus acusadores. Foi fácil encontrar resposta: “Se as ideias ou histórias
assumiram uma forma diferente no Corão, isso talvez fosse porque seguidores
de profetas anteriores haviam distorcido a mensagem recebida destes”
(HOURANI, 1994, p. 36). Mas, se nem ao menos ele conseguira preservar o
registro de sua mensagem, como poderia demonstrar a invalidade e a
corrupção de uma tradição estrangeira, anterior e já consolidada? Não
demonstrou. Como Muhammad se inseriu a uma tradição estranha à sua, o
contrário deve ser provável: ele distorceu a mensagem original.
Se na juventude o Profeta era “um homem em busca da verdade”, sua
busca posterior foi reorientada e ele foi “embrutecido pelo senso de poder que
se abate sobre ele [...] senso de autoridade”. Suas preocupações e interesses
o levaram a se tornar “um árbitro preocupado em fazer a paz e conciliar
disputas à luz de princípios de justiça tidos como de origem divina, um
habilidoso manipulador de forças políticas” (HOURANI, 1994, p. 36).
A fé que o Profeta detinha não acenava com a possibilidade de ganhar o
mundo, nem quando residia em Meca, nem posteriormente em Medina. Essa
“evolução temática” não aparece no Corão. “Dos textos não se deduz que ele
tivesse de realizar ofensivas frequentes pensando em submeter o mundo
inteiro ao Islã” (VERNET, 2004, p. 105). Fato é que a política contida no texto é
de árabes para uma realidade árabe, não universal. Até mesmo “os profetas
descritos no Alcorão são puramente nacionais, só se dirigem à sua nação”
(VERNET, 2004, p. 64). Penso que aqui reside ao menos parte da razão por
que determinadas crises se instalam quando essa tradição procura se impor a
97
costumes de regiões e religiões diversas mantendo a rigidez original, que só
fazia sentido naquele contexto cultural, político e até certo ponto econômico. 128
Hourani (1994, p. 34) vê nas passagens deste período o que chama de
“instruções específicas” e “princípios gerais” como indicação de que “ao mesmo
tempo, a doutrina torna-se mais universal, voltada para toda a Arábia pagã, e
por implicação para todo o mundo”, mas penso que isso é interpretação
posterior e não parece corresponder às expectativas iniciais.
De um modo ou de outro, foi na segunda fase da vida religiosa, a partir
das revelações recebidas em Medina, que o Profeta começou a aproximar de si
os seguidores que formariam o núcleo duro do seu poderio e dariam o caráter
combativo à comunidade. Em Medina ele percebeu a possibilidade de luta
armada contra os coraixitas, inicialmente para tomar-lhes o controle das rotas
comerciais dos caravaneiros (HOURANI, 1994, p. 34) e, posteriormente, a
tomada do santuário e da cidade. “Em Medina, Maomé começou a acumular
um poder que se irradiou pelo oásis e o deserto em volta. Logo se viu atraído
para uma luta armada com os coraixitas”, tendo por objetivo a tomada do
controle das rotas comerciais. A dinâmica adotada nessa investida é que
moldou o caráter da comunidade (HOURANI, 1994, p. 34). Hourani viu neste
período “a convicção de que Deus e os anjos lutavam a seu lado” (Ibidem).
Pierucci viu além:
Com a precoce mutação da “religião de Maomé” em “profecia
político-militar”, ou seja, em religião “politicamente orientada
128
Conforme Abu Sway: “No pensamento político islâmico, a ideia dominante é de que os tratados
com o inimigo podem ser realizados se forem temporários. A ideia de uma trégua ou cessar-fogo
temporário é aceitável a partir do ponto de vista da shari’ah se a trégua for do interesse da comunidade
muçulmana. Há discussões legais detalhadas centradas nos tratados do Profeta com não muçulmanos,
especialmente com a tribo de Qureish, naquela que se tornou conhecida como a trégua de Hudaybiyah.
Segundo a história do Islã, o tratado considerado mais relevante para o conflito na Palestina é aquele
que Salah al-Din al-Ayyubi realizou em Ramlah, próximo de Lyd (uma cidade costeira da Palestina, em
1948) com os cruzados. Em ambos os casos o tratado foi temporário” (ABU-RABI, 2011, p. 135, ênfase
acrescentada). Por questões como essa, penso ser necessário que o islã seja modernizado para se tornar
uma religião com apelo mais amplo, com aplicação universal, pois como operar no mundo atual,
globalmente, fazendo uso de princípios tribais, antiquados?
98
em
seu
lastro”
orientada”,
suas
e,
mais
especificamente,
promessas
não
podiam
“feudalmente
permanecer
orientadas só para “o outro mundo”, passando a anunciar
perspectivas concretas de vida boa “neste mundo”, sobre a
face da terra [...] Porque o Islã passa a “glorificar o heroísmo
com promessas de prazer sensível neste mundo e no Além
para o combatente da fé. Eis aí a radicalidade da thisworkliness típica do Islã. (PIERUCCI, 2002, p. 76) 129
Riqueza, poder, honra são as promessas do islã antigo para
este mundo: promessas a soldados [Soldatenverheissungen],
portanto, e um paraíso sensual no além para soldados
[sinnliches Soldatenverheissungen] (WEBER, 1999, p. 413) [...]
a promessa do domínio do mundo e do prestígio social dos
crentes que, no Islã antigo, os fiéis levaram consigo na mochila
como recompensa pela participação na guerra santa [heiliger
Krieg] contra todos os descrentes [...] (Ibidem, p. 356) As
promessas que, prescindindo da posição de dominador, estão
vinculadas, mesmo no islã, à propaganda guerreira, e
especialmente,
recompensa
portanto,
pela
morte
à
na
do
paraíso
guerra
islâmico
religiosa
como
[Tod
im
Glaubenskrieg], são, naturalmente tão longe de ser promessas
de salvação no verdadeiro sentido da palavra quanto [...] a de
qualquer outro céu de heróis (WEBER, 1991, p. 325). 130
Perucci (2002, p. 76) observa que na fase medinense da vida e da
composição do Corão, as promessas de salvação, antes com orientação
extramundana para atrair judeus e cristãos, passam a exaltar as possibilidades
de riquezas temporais (“intramundanas”), para seduzir guerreiros. Ele cita a
129
Esse mesmo heroísmo e promessas na vida além serão feitas pelos fundamentalistas, como
veremos.
130
Pierucci traz a seguinte tradução para este trecho: “[...] naturalmente promessas de salvação, no
verdadeiro sentido da palavra, tanto quanto a promessa do Walhalla, ou a do paraíso dos heróis,
anunciado ao kshatriya indiano que morre em combate” (2002, p. 76).
99
sura 4.94 para exemplificar: “Ambicionais os bens deste mundo? Deus vos
reserva espólios abundantes!”.
É com expectativas assim que se forja um dos traços mais
característicos do Islã: o mártir muçulmano, o crente a cavalo
que desafia a morte na jihad, por Deus e pelo território de Deus
(Perucci, 2002, p. 76, ênfase no original). 131
Esta atitude refletia a ameaça sob a qual o profeta vivia, ameaça de
perder prestígio social, ao ver desacreditada a sua palavra e as convicções que
espalhava. Se ele não podia demonstrar a árabes, judeus e cristãos a
genuinidade
das
revelações
recebidas,
logo
as
tradições
religiosas
consolidadas o desmascarariam. A violência é uma via de duas mãos:
A violência, portanto, não é somente instrumento de opressão
social ou de agressão militar. Ela é também um método de
ação que parece às vezes necessário para defender a
liberdade ameaçada ou para conquistá-la. A violência, com
efeito, pode ser empregada ao serviço de causas justas. Mas
isto não a torna justa (VILHENA, 2007, p. 147, ênfase
acrescentada).
131
Pierucci destaca três características do Islã que reforçam a vocação para a conquista e a guerra.
Primeiro, uma religião masculina: “[...] é isso que acontece empiricamente [...] a consistência interna do
tipo ideal o exige, toda religião de guerreiros é dirigida exclusivamente ao sexo masculino: na die
Männer allein. Só para homens”. Segundo, “características de um espírito definitivamente feudal”. E por
último, a adulteração da revelação a seu gosto e o apelo aos guerreiros com promessas de prazeres
sexuais que o Profeta “pessoalmente e na forma de suas promessas para o Além feitas aos combatentes
da fé, tanto espaço deu a volúpia sexual” e, numa sura especial, “dispensou a si mesmo do limite do
número de mulheres imposto aos outros” (PIERUCCI, 2002, p. 94). E na nota 69 da mesma página: “Era
de quatro esposas o limite permitido ao comum dos mortais (cf. Alcorão 4:3), mas a necessidade sentida
em Medina de ampliar o numero de seu séquito mediante alianças com diversas tribos, e alianças para
valer costumavam ser alianças matrimoniais, Maomé acabou superpovoando sem próprio harém. E para
legitimar religiosamente tal exceção foi necessário que recebesse uma revelação especial permitindo a
ele ter mais do que as quatro esposas usuais” (PIERUCCI, 2002, p. 94).
100
A convivência entre o Profeta do Islã e os grupos de judeus na
Península arábica era conflituosa, em Meca e em Medina. Muhammad imprimiu
em seu texto as próprias diferenças com os grupos de judeus, chamando-os de
“porcos” e “macacos”, como também as diferenças com os “renegadores do
sábado”, os cristãos (2.65 132; 5.60 133; 7.166 134). Conteúdos assim transferem
para leitores de hoje a percepção “do outro” como diferente e objeto do
preconceito contra tais grupos. 135 Em países como a Arábia Saudita e o Egito e
outros no Oriente Médio, onde há presença dessas minorias, as perseguições
são claras. 136
Em que medida a pressão sofrida causou a reação, não sabemos. Fato
é que os contornos sociais envolviam um plano de conquista que, segundo a
leitura que Pierucci faz de Weber, “grande parte de seu impulso social básico
se concentrava na busca pela terra, a principal força propulsora de sua
militância guerreira” (PIERUCCI, 2002, p. 95), ainda hoje elemento bastante
valorizado. A mensagem, a partir de Medina, segundo o autor, era
essencialmente esta: a conquista territorial, “ainda que a cabeça deva estar
voltada fisicamente para Meca cinco vezes ao dia” (PIERUCCI, 2002, p. 95).
132
2.65: Já sabeis o que ocorreu àqueles, dentre vós, que profanaram o sábado; a esses dissemos:
"Sede símios desprezíveis!"
133
5.60: Dize ainda: Poderia anunciar-vos um caso pior do que este, ante os olhos de Deus? São
aqueles a quem Deus amaldiçoou, abominou e converteu em símios, suínos e adoradores do sedutor;
estes, encontram-se em pior situação, e mais desencaminhados da verdadeira senda.
134
7.166: E quando, ensoberbecidos, profanaram o que lhes havia sido vedado, dissemos-lhes: Sede
símios desprezíveis!
135
“Hoje em dia, os jihadistas referem-se frequentemente aos judeus com estes termos: macacos e
porcos; esta prática fundamenta-se no Alcorão em 2.63-66; 5.59-60 e 7.166.” Disponível em
http://coraocomentado.blogspot.com.br/2010/01/blogando-o-alcorao-surata-2-vaca.html
em
13.10.2013. A mesma concepção encontramos em O Filho do Hamas: “Por que meu pai, que amava Alá
e seu povo, tinha de pagar um preço tão alto enquanto homens sem fé como Arafat e membros da OLP
proporcionavam uma grande vitória aos israelenses, [p 78] que eram comparados a porcos e macacos
no Alcorão?” (YOUSEF, 2010, p. 77).
136
A Missão Portas Abertas tem ranking de 50 países no que chama Classificação de Países por
Perseguição, originalmente chamada de World Watch List – WWL, classificados, com base em
experiência de campo, em quatro níveis de perseguição: extrema, severa, moderada e concentrada.
Disponível em http://www.portasabertas.org.br/cristaosperseguidos/classificacao/ em 13.10.2013.
101
Se de fato Muhammad rompera com o judaísmo e o cristianismo, era
natural que rejeitasse a moral destes em favor da que mais favoreceria seu
ideário. Assim, nessa época de popularização dos monastérios, o Profeta diz
que os mesmos não seriam adotados no Islã, com preferência ao esforço
pessoal do fiel (jihad) independentemente do seu isolamento social – ele
precisava dos homens para a batalha, o jihad menor. O zoroastrismo persa, de
Mani, era mais útil nesse momento, pois ensinava que “o universo era um
campo de batalha, abaixo do Deus supremo, entre bons e maus espíritos; o
bem venceria, mas os homens e mulheres de virtude e pureza ritual podiam
apressar a vitória” (HOURANI, 1994, p. 25). Hourani registra que depois das
vitórias de Alexandre, que conquistou o Irã em 334-333 a.C., a doutrina de
Mani migrou para o Ocidente. Ela incorporava profetas e mestres num sistema
filosófico com forte “ênfase no dualismo de bem e mal e tendo uma classe
sacerdotal e um culto formal” (HOURANI, 1994, p. 25), tal como ocorreu
inicialmente no Islã.
Há ainda, do lado cristão, a influência de uma “tendência dominante no
Oriente”, que vinha do grupo dos nestorianos. Nestorius, discípulo de Teodoro
de Mopsuéstia, fora patriarca da igreja de Constantinopla, aproximadamente no
ano 428. Ambos afirmavam a doutrina do monofisismo, de que “só Deus (o Pai)
não podia ser criado nem gerado, que Jesus de Nazaré não poderia então ser
colocado no mesmo plano e que, consequentemente, Maria não podia ser
chamada ‘mãe de Deus’ mas mãe de Jesus” (GARAUDY, 1998, p. 29). Esse
ensino se espalhou pela Pérsia “e foi provavelmente o que o profeta conheceu
quando conduzia até a Síria as caravanas de sua futura esposa Khadija”
(GARAUDY, 1998, p. 29). 137
Nessa época, nascia no pensamento de Muhammad a semente do
monoteísmo inexistente na Arábia. O discurso começava a tomar forma e a
ideologia a fazer sentido e se consolidar. As histórias vividas nesse tempo
137
Roger Garaudy (1913-2012) foi um filósofo francês de origem católica e integrou a resistência
francesa contra o nazismo. Foi preso, aderiu ao partido comunista e, mais tarde, em 1982, abraçou o Islã
e a causa palestina. Foi expulso do PC em 1970 por ter criticado a invasão soviética da Checoslováquia.
Por suas críticas contundentes ao sionismo e às políticas de Israel em relação aos palestinos foi acusado
de ser “antissemita” e foi processado na França por este motivo.
102
foram posteriormente entendidas e registradas como revelações de Allah e
encontram uma boa leitura feita por Kamel. Falando sobre a interpretação
correta da história passada, o autor distingue o que é normativo e o que é
prescritivo, separando o registro histórico dos conceitos morais religiosos, que
posteriormente foram fundidos pelos discípulos. Kamel indica que as situações
históricas não devem servir como recomendação eterna para todas as futuras
comunidades (KAMEL, 2007, p. 131). Admitindo a luta de Muhammad “contra
os idólatras, os politeístas de Meca”, ele alega ser preciso separar aquela
situação passada como única a não ser repetida (Ibidem).
Kamel, no entanto, admite não haver consenso quanto ao que é e ao
que não é regra de fé. Há versículos que “perderam a validade”, mas constam
do texto corânico, enquanto outros permaneceram registrados sem receber
maior ênfase por Deus, por ter “caducado” (KAMEL, 2007, p. 131). Reside aí
um indício para entender a confusão havida nas escolas de interpretação
posteriores que se esforçam para reviver, em outras terras, o período de ouro
do Islã, em Medina, quando a nascente comunidade do Profeta era vibrante e
coesa. É precisamente esse o mecanismo que foi adotado por pensadores no
século XX, como Qutb, que elaboraram o fundamentalismo e que funciona
como combustível numa sociedade em crise com as culturas do seu tempo.
2.2 A construção da sociedade islâmica em Medina
Instalado em Medina, os novos ares parecem ter favorecido a causa da
conquista. Muhammad procurou apoio dos moradores de Taif, próxima a Meca,
mas teve de sair às pressas “fugindo de pedras” [apedrejamento] (KAMEL,
2007, p. 68). Em Meca, ele foi procurado por 12 homens de Medina que se
mostraram dispostos a envolver-se no novo movimento e arrastaram após si
outros interessados que “prometeram defender o Islã, dando a própria vida, se
isso fosse necessário” (KAMEL, 2007, p. 68). É evidente ter havido uma
motivação além da salvação extramundana.
Acenando basicamente com riqueza em forma de terra numa
zona de desertos, “o Islã ficou sendo substancialmente, uma
religião de guerreiros” e, Weber não se esquece de completar,
103
“uma religião de senhores”: ... uma religião de senhores...
puramente feudais os elementos últimos de sua ética
econômica. Já na primeira geração de adeptos, os mais
piedosos eram precisamente os mais ricos, ou melhor, aqueles
que tinham enriquecido mais que os outros companheiros de fé
com os despojos de guerra em sentido amplo (WEBER, apud
PIERUCCI, 2002, p. 77, ênfase no original).
A essa altura “as tribos tinham de mil a 2 mil indivíduos e eram dirigidas
por um sayyid, senhor” (VERNET, 2004, p. 42, ênfase no original). As rusgas
entre tribos eram frequentes e a desonra, radicalmente rejeitada e quando
ocorria, era admitido o assassinato dos difamadores. O árabe pré-islâmico
valorizava a honra e a hombridade; organizava-se em torno de valores como,
por exemplo, generosidade, a proteção do fraco (VERNET, 2004, p. 42).
Muhammad deveria articular o seu discurso de modo a fazer uma costura entre
todos os grupos, interesses e especialmente os valores.
Além das pequenas comunidades de árabes e de judeus em Medina,
havia também os “iemenitas de aws” e os “hazraj”. Os primeiros viviam nos
subúrbios e enfrentavam os últimos “que ocupavam o centro da cidade”
(VERNET, 2004, p. 41). As disputas eram mediadas pelos judeus, como vimos,
mas surgia um novo “fiel da balança entre as duas facções”: “um árbitro da
outra ‘raça’, o coraixita Maomé” (VERNET, 2004, p. 41).
Em seu último discurso, “A Peregrinação do adeus”, em março de 632,
Muhammad deu destaque a virtudes transcendentais, como também a relações
pessoais. “Deus é maior que o maior dos reis, e só a ele se deve uma absoluta
reverência”. A despeito disso, haveria disputas e mortes já na sucessão do
Profeta. Se Muhammad tinha em mente algum tipo de “resistência a qualquer
tirania e para a contestação de qualquer autoridade, [no] fundamento divino de
uma igualdade de todos os homens acima de qualquer hierarquia social”
(GARAUDY, 1998, p. 30) seus homens mais próximos parecem não ter
entendido. Eles queriam reinar aqui, enquanto Deus reinava no céu.
A questão da honra era outro fator relevante. A desonra, por sua vez,
poderia ser atingida pelo trabalho do poeta/jornalista através da difamação.
104
Muhammad reorganizou os valores e a hierarquia em sua comunidade em
torno desses elementos:
Maomé, com sua mensagem, relativizou alguns desses
conceitos ao tornar, por exemplo, a riqueza, a generosidade, a
nobreza e a ascendência iguais, pela religião, à piedade, a
ponto de bastar essa virtude para serem todos iguais perante
Deus e dar validade à expressão: “Diz: sou assim; não diga:
assim foi meu pai” (VERNET, 2004, p. 42).
Vernet situa historicamente neste período uma característica recorrente
no Corão. Ele diz que a língua ferina era usada para inferiorizar as pessoas,
dizendo-as inferiores ao lagarto, à hiena, ao porco-espinho ou a qualquer outro
animal desprezível do deserto (VERNET, 2004, p. 45). Reside aqui a fonte das
repetidas vezes que Muhammad ofendeu judeus e cristãos, chamando-os
“macacos e porcos”. 138 Frantz Fanon atribui esse expediente a colonizadores:
138
As passagens do Corão que trazem essa expressão são 2.63-66; 5.59-60 e 7.166. Em Simpósio
realizado na USP-SP de 29-31/10/2013, questionei o Sheik Jihad H. Hammadeh, vice-presidente da
Assembleia Mundial da Juventude Islâmica na América Latina, o qual não demonstrou conhecer
qualquer vínculo desses versículos a algum tipo de ofensa, alegando que Allah havia dito que
transformaria a qualquer ofensor em “porcos e macacos”, não somente judeus e cristãos. Não parece
ser esse o entendimento mais amplo, a contar dos seguintes comentários de iminentes autoridades.
“Esta interpretação é amplamente usada nos dias de hoje como metáfora para a corrupção dos judeus,
ao nível de bestas. O próprio Mafoma [Muhammad] deu início a esta prática quando se dirigiu aos
judeus da tribo Quraizá (Qurayzah), ao preparar-se para os massacrar, com os termos: “Vós, irmãos de
macacos.” Recentemente, o grão-xeque de Al-Azhar, Muhammad Sayyid Tantawi, chamou aos judeus
“inimigos de Alá, descendentes de macacos e de porcos”. O xeque saudita Abd Al-Rahman Al-Sudayyis,
imã da principal mesquita de Meca, a mesquita Al-Haraam, explanou esta noção dizendo num sermão
que os judeus são “a escumalha da raça humana, os ratos do mundo, os violadores de pactos e de
acordos, os homicidas de profetas e a descendência de macacos e porcos”. Outro xeque saudita, Ba’d
bin Abdallah Al-Ajameh Al-Ghamidi, explicitou mais claramente a conexão: “O comportamento actual
dos irmãos de macacos e de porcos, a sua perfídia, propensão para violar os acordos e profanar os
lugares santos [...] está relacionada com os feitos dos seus antepassados durante o primeiro período do
islão − o que atesta a grande semelhança entre todos os judeus hoje vivos e os judeus que viveram no
dealbar do islão”. “Hoje em dia [século 20 em diante], os jihadistas referem-se frequentemente aos
judeus com estes termos: macacos e porcos; A primeira destas passagens descreve Alá dirigindo-se aos
105
“Por vezes este maniqueísmo vai até ao fim de sua lógica e desumaniza o
colonizado. A rigor, animaliza-o. E, de fato, a linguagem do colono, quando fala
do colonizado, é uma linguagem zoológica” (FANON, 1968, p. 31).
Embora as diferentes tribos, a esse tempo, fossem conduzidas por
diferentes sheiks, Muhammad organizou o seu discurso apoiado na tradição
das comunidades de judeus “de que todos eram descendentes de Abraão”
(BINGEMER, 2001, p. 176). Em certo sentido, isso reforça a hipótese de
mimetismo, uma vez que demonstramos o vasto politeísmo na península préislâmica. Muhammad rejeita a sua tradição em favor da tradição abraâmica. O
monoteísmo islâmico iniciado pelo Profeta tem a função de aproximar, sob a
sua espada, as diferentes tradições.
Citando B. Júnior, R. S., 139 Bingemer 140 chama de “teocracia islâmica” a
comunidade muçulmana fundada em Medina, onde “Maomé experiencia como
'profeta legislador' toda uma diversidade de situações aos olhos da tradição
islâmica” que reúne em torno de seu projeto e das revelações que faz,
reivindicando a chancela divina e “assegura aos crentes diretrizes para o
discernimento do comportamento justo em meio às necessidades e conflitos do
mundo” (BINGEMER, 2001, p. 176). E Pierucci acrescenta:
judeus que profanaram o Sábado nos seguintes termos: “Sede símios desprezíveis!” A passagem
prossegue dizendo que esta maldição há-de ser “exemplo para os seus contemporâneos e para os seus
descendentes, e uma exortação para os tementes a Deus.” Na tradição teológica islâmica estas
passagens não têm sido entendidas como aplicando-se a todos os judeus. Ibn Abbas diz que “os que não
honraram a santidade do Sábado foram transformados em macacos, tendo morrido sem deixar
descendência”. Outros exegetas, contudo, a exemplo do pioneiro estudioso do islão, Ibn Qutaiba,
sustentam que os macacos hoje existentes são descendentes dos judeus que não honraram o Sábado.”
Fonte, site Corão Comentado, http://coraocomentado.blogspot.com.br/, acessado em 10.11.2013.
139
In: Mística e política no seguimento ao profeta do Islã. Mística e Política. Bingemer. Coleção
Seminários Especiais. Centro João XXIII/Loyola, 1994.
140
Maria Clara Lucchetti Bingemer possui graduação em Comunicação Social pela Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro, mestrado em Teologia pela Pontifícia Universidade Católica do
Rio de Janeiro e doutorado em Teologia Sistemática pela Pontifícia Universidade Gregoriana (1989).
Atualmente é professora associada no Departamento de Teologia da PUC-Rio. Durante dez anos dirigiu
o Centro Loyola de Fé e Cultura da mesma Universidade.
106
É que na ida para Medina começava a nascer o que mais tarde
islamologistas chamariam de “Islã total”: o Islã que engloba em
si todas as esferas da vida, individual e coletiva. Se o islã como
um Estado surge com a Hégira, é bom lembrar que se trata de
uma fusão de comunidade religiosa com sociedade política, de
um híbrido Igreja-e-Estado, muito embora uma “igreja” no
formato ocidental (et pour cause) jamais tenha se desenvolvido
por lá (PIERUCCI, 2002, p. 78, ênfase no original).
Citando Weber, toca na questão do monoteísmo que agora exige
exclusividade – pois é o Profeta que detém a palavra revelada – e “ao
combatente da fé” cabe o esforço por eliminar obstáculos a essa crença, já que
o anúncio da “exclusividade de um Deus único universal” pressupõe a “abjeção
moral dos não-crentes como inimigos, cuja existência tranquila provoca a justa
cólera de Deus” (PIERUCCI, 2002, p. 78). Nascia, assim, um novo modelo de
fé que misturava política, economia e armas:
Em
Meca,
Maomé
pregara
uma
religiosidade
nova
e
despojada, desarmada em todos os sentidos da palavra. Em
Medina, ele a vestiu, ataviou e encouraçou de violência
legítima, erigindo-a em uma comunidade religiosa envolta em
poder militar. A transferência geográfica de sede do núcleo
fundador do Islã precipitaria a refundação do islã, agora como
Estado (PIERUCCI, 2002, pp. 78,79).
Mas, um Estado não se faz sem recursos. Era preciso muito dinheiro
para sustentar seus fiéis soldados. A sobrevivência entrava na pauta do dia e a
História dá conta do mecanismo utilizado por Muhammad. Os despojos de
guerra, o “butim das contínuas campanhas vitoriosas” proveria regularidade
para as economias do bando (VERNET, 2004, p. 106).
E sabei que, de tudo quanto adquirirdes de despojos, a quinta
parte pertencerá a Allah, ao Mensageiro e aos seus parentes,
107
aos órfãos, aos indigentes e ao viajante (Sura 8.41, HAYEK,
s/d, p. 160)
141
“Uma boa fonte de renda proveio da captação ou jizya paga pelos
judeus, cristãos e sabeus ou masdeístas (dimmis) que ficaram vivendo nas
zonas do território do islã” (VERNET, 2004, p. 106, ênfase no original).
Bingemer diz que “Maomé acaba permitindo que alguns dos seus
seguidores saqueassem algumas caravanas que se dirigiam à Meca. Do
sucesso desse empreendimento nasce a certeza de que Alá estava realmente
com eles” (BINGEMER, 2001, p. 177). Ela alega que esses recursos dos
saques não devem ser tomados como “por demais simplista”, já que se
desenvolverá e assumirá grande importância para o “triunfo do Islamismo”, no
que mais adiante se chamará “Guerras Santas” (Ibidem):
Historicamente, como vemos, desde a sua origem, o Islamismo
já vem sendo marcado por uma trajetória de conquistas e uma
tendência de imposição de sua doutrina, ainda que, na maioria
das vezes, a violência seja o instrumental utilizado para tal fim
(BINGEMER, 2001, p. 177).
Pierucci é mais incisivo e afirma que não se trata de conversão, mas de
conquista. O “monoteísmo escatológico” do Corão fora adaptado “aos
interesses socioeconômicos expressos no estilo de vida guerreiro-feudal, a
ânsia de salvação passou a ser interpretada por meio da ideia de jihad”
(PIERUCCI, 2002, p. 81, ênfase no original). Bingemer concorda que “as
afirmações presentes no Alcorão de que Deus é alguém violento, têm, assim,
um cunho extremamente pedagógico” (BINGEMER, 2001, p. 190). 142
Essa prática de apelar para a religião, a fim de justificar o uso da política
e de outros recursos, consolidou-se cedo no Islã. Cedo e ainda hoje se
141
“Sabei que de qualquer coisa que faça parte do butim que obtiverdes, um quinto pertence a
Deus, ao Enviado, aos próximos do Enviado, as órfãos e aos viajantes” (VERNET, 2004, p. 106).
142
Neste ponto, Bingemer puxa uma nota de rodapé que diz: “Embora saibamos, pela história, que o
próprio Maomé teria se envolvido em guerras, como aquela pela tomada de Meca, isso não invalida o
teor da revelação apresentada por ele” (BINGEMER, 2001, p. 190).
108
consolida. É a “instrumentalização da religião, que permite sujeitar a lei divina
(shari’a) às necessidades dos governantes, criando assim uma tradição
(sunna) por vezes em contradição radical com a revelação” (BINGEMER, 2001,
p. 192). “Para um muçulmano devoto a política é o que os cristãos chamariam
de sacramento. Uma atividade que deve ser sacralizada para se tornar um
canal do divino” (ARMSTRONG, 2009, p. 63). Foi assim no surgimento dos
otomanos, segundo Hourani, quando os soldados turcos a serviço dos
abássidas justificaram a legitimidade do califado de Bagdá: “De modo mais
sistemático que os omíadas, os abácidas tentaram justificar seu governo em
termos islâmicos” (HOURANI, 1994, p. 55), prática a que vários governos
recorreram quando sentiram a necessidade de se justificarem religiosamente
(Ibidem, p. 83).
Mas é assim que o Islã lida com ambos os campos, religioso e político.
“É irreal tudo o que é percebido ou concebido fora de sua relação com Deus.
Logo, não há separação entre o sagrado e o profano: tudo é sagrado por sua
relação com Deus” (GARAUDY, 1998, p. 31). “O Islã é indivisivelmente uma
religião e uma comunidade. Uma fé e um código de vida” (GARAUDY, 1998, p.
24). Apelar “à religião para justificar as piores violações dos direitos do homem”
(BINGEMER, 2001, p. 192), “tal a raiz e a definição de todo fundamentalismo:
identificar a fé com a forma cultural ou institucional que ela assumiria numa
época passada de sua história” (BINGEMER, 2001, p. 193). E o nascedouro do
Islã, ou seja, a visão que o fundamentalismo tem na interpretação do Corão e
da tradição é terreno fértil para histórias dessa natureza. Tanto que Qutb
chama de “uma ultrajante ignorância da natureza dessa religião que alguém
pense que pode compreendê-la enquanto está lendo páginas frias”. E continua:
“Longe de ser derivada de estruturas congeladas, a jurisprudência só pode ser
derivada da fonte morna e corrente da vida, que se mistura com o movimento
dessa religião no mundo da realidade” (ABU-RABI, 2011, p. 87). Confirma a
tradição, uma vez que:
No passado, quando os muçulmanos enfrentavam uma
questão legal difícil, eles a levariam à atenção do povo das
fronteiras, quer dizer, aqueles que lutavam a jihad. Na
109
realidade, somente os pios podem distinguir entre a verdade e
a falsidade na religião (Ibidem).
Pierucci dá uma explicação para o fato de não ser a fé a prioridade em
todos os territórios conquistados, mas a apropriação dos recursos (saque e
pilhagem). Há implicações fiscais e econômicas. Se todos se converterem,
quem sustentará as campanhas para novas conquistas e o próprio aparelho
humano?
Os
“incluídos
politicamente
mas
excluídos
ritualmente
da
comunidade dos crentes” servem para pagar o zákat (imposto que o nãomuçulmano paga), equilibrar as contas e manter o padrão de vida dos
guerreiros. Por esse mecanismo explica-se também, por exemplo, a aclamada
“tolerância islâmica para com cristãos e judeus nos países islamizados”
(PIERUCCI, 2002, p. 84). Mas Weinberg contesta essa imagem de tolerância
creditada ao Islã desde cedo:
Há ainda o pouco difundido e conhecido caso do martírio de 48
cristãos em Córdova, Espanha, no século IX, que com suas
mortes protestaram contra o domínio político e religioso do Islã,
refletindo a tensão intercultural que existia na região, ao
contrário do que sugere a propalada e popular imagem de
convivência harmônica das três religiões na Espanha árabe
(WEINBERG, 2007, p. 25). 143
Kamel (2007, p. 124) concorda com isso plenamente. “Para quem vivia
uma situação assim (ou morte ou conversão ou tributo), não havia outra
conclusão senão a de que o Islã, Estado e religião expandiam-se pela força. A
fusão de fé com política gerou um filho, o califado. A fé era protegida das
acusações feitas contra uma ruptura do que se entendia por religião. “Para os
conquistadores muçulmanos, a acusação não fazia sentido. Para eles, o que se
143
“Nacionalistas árabe-palestinos, tanto do Fatah como do Hamas, gostam de falar de
“muçulmanos e cristãos” da Palestina ao vender o seu caso no Ocidente, mas esse é um dispositivo
propagandístico, totalmente desprovido de substância e sinceridade (afinal, a principal razão pela qual
árabes cristãos vêm deixando a Terra Santa tem sido o medo dos muçulmanos e dos futuros excessos
muçulmanos, o que é também a causa da emigração dos cristãos do Iraque)” (MORRIS, 2014, p. 51).
110
expandia pela espada era o califado, o Império Islâmico, mas não a religião”
(KAMEL, 2007, p. 124). E mais: “em alguns casos, as conversões sequer eram
estimuladas, para que o erário não sofresse abalos” (Ibidem). Albert Hourani
também fala do surgimento do imposto a não-muçulmanos como receita para
um exército e para a corte (HOURANI, 1994, p. 55).
Pierucci, citando Hourani (2002, p. 81), afirma que na mudança para
Medina, Muhammad “refundava o Islã e o relançava ao encontro do mundo:
para conquistar territórios e submeter suas populações à glória de Alá”. Acho
pouco provável que Muhammad tivesse em mente algo como uma religião de
alcance universal, pelo que tem sido demonstrado. Que era uma nova “classe
dominante composta basicamente de senhores da terra e da guerra”
(PIERUCCI, 2002, p. 79), isso sim. O Islã desde cedo se tornou religião “para
guerreiros”, “um estamento de cavaleiros crescentemente poderosos e
organizados” e assim acenou “em suas promessas com vitórias e conquistas
tão terrenas quanto territoriais” (Ibidem).
Muito tempo depois desse período é que se popularizará (se é que
podemos falar nesses termos) a produção dos hadith, coleção dos ditos e/ou
comentários e práticas do Profeta, reunidos por seus companheiros. A
preservação da mensagem original se deu por essa via (BINGEMER, 2001, p.
195). No entanto, Bingemer indica que em “dado momento da História do
Islamismo (660-750)” começou a haver uma “interpretação fatalista e resignada
de certos versículos do Alcorão” (BINGEMER, 2001, p. 195).
A formulação desses falsos hadith será a grande causa pela
qual o Islamismo muitas vezes não conseguirá mais remontar
até à sua fonte originária, o Alcorão, perdendo-se assim em
meio a interpretações que, em grande parte, se desvirtuam da
intenção primária do Profeta e do Alcorão. A partir daí, as
intervenções violentas, tais como vemos hoje anunciadas pelos
grupos terroristas muçulmanos, não têm sua origem senão
nessas infindáveis coleções herdadas da tradição islâmica, e
fundamentadas de forma errônea no próprio texto sagrado que
é o Alcorão (BINGEMER, 2001, p. 196, ênfase acrescentada).
111
Que a violência cometida em nome do Islã se vale de “interpretação
resignada de certos versículos do Alcorão”, é compreensível. Mas é preciso
considerar, igualmente, que o esforço por recriar e “retornar até à sua fonte
originária” (ad fontes) levará ao encontro de cenas igualmente violentas, as
quais servirão como modelo a ser seguido ou resgatado.
Todas as sociedades conservadoras (como já se observou)
voltaram-se para uma Idade do Ouro, que, no caso dos sunitas
e do Império Otomano, foi a época do Profeta Maomé (c. 570632) e dos quatro rashidun (califas “corretamente orientados”)
que o sucederam (ARMSTRONG, 2009, p. 63).
Em um sentido a ligação com o Hamas é clara, uma vez que o Hamas é
sunita. 144 As raízes da abordagem fundamentalista do Corão pelos grupos
radicais é traçada por Armstrong:
Um reformador como Ahmad ibn Taymiyyah (1263-1328), de
Damasco, por exemplo, recusou-se a aceitar o fechamento das
“portas do ijtihad. 145 [...] Achava que para sobreviver à crise os
muçulmanos deviam retornar às fontes, ao Alcorão e à Suna 146
do profeta. Queria eliminar os acréscimos dos teólogos e
recuperar o básico (2009, p. 68).
E sobre retornar às fontes, Armstrong acrescenta:
144
145
Os xiitas recorrem ao martírio de Ali.
Ijtihad: hermenêutica, o esforço de reflexão, ou seja, o pensamento racional sobre o texto
islâmico (Corão e ahadith) na tentativa de extrair os ensinamentos legais para a prática da comunidade.
Os xiitas admitem o ijtihad, enquanto os sunitas adotam o taqlid, a imitação.
146
Sunah: literalmente “o caminho trilhado” como referência a coleção de procedimentos adotados
pelo Profeta no caminho da fé.
112
A criação de um novo e vibrante islamismo só seria possível
com a retomada dos ideais dos salaf, 147 a primeira geração de
muçulmanos. Rida 148 não era fundamentalista; ainda procurava
casar o islamismo com a moderna cultura ocidental, em vez de
elaborar um contradiscurso, porém influenciaria com sua obra
os fundamentalistas do futuro (Ibidem, p. 266).
2.3 Uma fé, um domínio
Deus é único, e única realidade. Tal é a shahada, o princípio
fundador dessa profissão de fé cujo segundo postulado é que
Maomé, mensageiro de Deus, designa o movimento de retorno;
porque Maomé é o exemplo mesmo de toda realidade
considerada como revelação e sinal de Deus (GARAUDY,
1998, p. 31, ênfase no original).
A shahada, o credo islâmico, dá fundamento a todo o edifício que
Muhammad faria erigir sobre a Península, a partir de Medina, a capital
provisória, a incubadora da ummah, a comunidade do Profeta. A ummah é o
ideal comunitário islâmico a ser implantado em todo o mundo, a partir do
modelo observado do início do Islã. É na concretização de uma comunidade
mundial de tal perfil que a shari’a, a lei divina, pode ser aplicada extensa e
irrestritamente. Sob esse manto está a autoridade que Muhammad aos poucos
cunhava, anunciando que o próprio Deus o havia eleito como seu
representante, e que ninguém o contestasse, sob pena de condenação eterna:
“Maomé começou a reforçar a sua autoridade pessoal determinando que os
crentes deviam obedecer a Deus e, por conseguinte, ao seu Enviado. Aqueles
que se rebelassem teriam abrigo no inferno” (VERNET, 2004, p. 73).
147
Salaf (ou salafi): ancestrais muçulmanos. A tradição salafi considera as três primeiras gerações de
muçulmanos, as dos companheiros do Profeta, e as duas gerações seguintes. Hoje o termo refere-se às
correntes (seitas e grupos) ortodoxas do Islã.
148
Rashid Rida (1865-1935), jornalista, foi o primeiro muçulmano a propor a criação de um Estado
islâmico modernizado, baseado na Shariah. Defendeu a restauração do califado.
113
Muhammad tinha o discurso, o carisma e o novo exército. Bastava
desembainhar a espada e conquistar territórios. E foi o que fez. Conhecedor da
rotina nos trajetos comerciais dos caravaneiros e com a bênção de Deus,
avançou: “Em pleno mês sagrado de rajab atacou uma caravana em Nahla,
matou um dos viajantes e retornou a Medina com um grande butim. A cidade,
indignada, tachou os combatentes de bandoleiros” (VERNET, 2004, p. 73,
ênfase no original). Se a ética local parece ter sido ofendida, como de fato foi,
isso era pouco para quem detinha os oráculos de Deus entre o povo. Bastava
um pronunciamento divino chancelando o arrastão.
Quando te perguntarem se é lícito combater no mês sagrado,
dize-lhes: A luta durante este mês é um grave pecado; porém,
desviar os crentes da senda de Allah, negá-Lo, privar os
demais da Mesquita Sagrada e expulsar dela (Makka) os seus
habitantes é pior do que o homicídio (Sura 2.217, versão de EL
HAYEK).
Era assim que o Deus do Corão falava. 149 O mesmo expediente
“espiritual” foi usado para justificar a batalha de Badr, a vitória do fosso, “a mão
dura empregada com os judeus e os contínuos ataques às caravanas [que]
muito fizeram em favor do islã” (VERNET, 2004, pp. 76,77,80). Tantas outras
vitórias Muhammad conseguiu assim, todas com a devida anuência dos céus:
pilhando caravanas, atacando pequenas aldeias, saqueando e deixando seus
soldados saquear e passando a espada. “O enriquecimento inicial do islã que
favoreceu a implantação da sua lei sobre as tribos e sobre os judeus, que
agora pagarão a jizya” (VERNET, 2004, p. 81), era a rotina do novo estado
islâmico ideal nascendo em Medina.
Embora não tenha referências concretas (ele fala de “cronistas”,
VERNET, 2004, pp. 82,83), Vernet diz haver “citações” dando conta do envio
de embaixadores aos principais reis da época: Bizâncio, Abissínia e aos
persas. Mas o historiador não tem certeza absoluta de que tivessem sido
enviados; é mais provável que esses embaixadores tivessem cruzado o
149
Vernet (2004, pp. 76,77) expõe o modo como Muhammad justifica a bastante conhecida batalha
de Badr criando textos, os quais alega serem as revelações de Allah para apoiar a pistolagem que faz.
114
território pretendido por Muhammad, porque o sentido que o autor quer
ressaltar é a existência ou surgimento de um nome forte para dialogar com as
tribos em pé de igualdade. Falta novamente um apoio que sustente o plano do
Profeta para expansão global de seu domínio àquela época; sua ocupação
principal enquanto viveu foi apenas a Arábia.
O objetivo, a partir de Medina, era tomar Meca militarmente. As
intermitentes tentativas de ataque culminaram num conflito
armado do qual Maomé sairia vitorioso: em 630, oitavo ano da
Hégira, as elites de Meca se renderam a um cerco de vários
anos e Maomé tomou a cidade. Conta o mito que sem
derramamento de sangue (PIERUCCI, 2002, p. 85).
Quando conquistou Meca, Muhammad “mandou destruir os ídolos e
proclamou que Meca tinha sido conquistada pela força, o que tornava todos os
seus habitantes cativos dele” (VERNET, 2004, p. 84). Evidentemente a sua
tribo de origem, os coraixitas, submeteu-se obedientemente (este o significado
de Islã, submeter-se) com juramento, e foram forçados a reconhecê-lo “como
Enviado de Deus” (Ibidem). “A mais profunda alegria o invadia, e para atrair
seus parentes ele deu um novo destino às esmolas”, fazendo nova revelação, a
Sura 9.60 150 (Ibidem, p. 85).
Kamel (2007, p. 72), que conta sobre a primeira derrota em Uhud,
defende que a batalha contra Meca ocorreu com a tomada “sem resistência”,
uma vez que Muhammad já era forte o suficiente para entrar vitorioso na
cidade, destroçar os ídolos da Kaaba e repetir o gesto de Abraão, séculos atrás
(Ibidem, p. 73). Aos poucos estendia o seu domínio por meio de batalhas e
subjugando os pequenos povoados e tribos “os tamim, os asad, os bakr, os
taglib etc.”, que – reconheciam “sua missão, e as doutrinas de Maomé”
(VERNET, 2004, p. 85, ênfase no original) e fazendo alianças com chefes de
outras tribos da Arábia (PIERUCCI, 2002, p. 84). É em Medina “que se
150
“As esmolas são tão-somente para os pobres, para os necessitados, para os funcionários
empregados em sua administração, para aqueles cujos corações têm de ser conquistados, para a
redenção dos escravos, para os endividados, para a causa de Allah e para o viajante” (Sura 2.217, versão
de EL HAYEK).
115
evidencia a seus olhos essa espécie de matriz genética de caráter bélico”
(Ibidem). E aos poucos é o que está acontecendo. Vários autores falam em
“cidades de soldados” (Ibidem, p. 86), e o resultado aparece na historiografia
posterior à morte de Muhammad como
o período matinal da história do Islã [que] continuou a ser
pontilhado de guerras de islamização – guerras civis e de
expansão [...] sempre por conquista militar que o Islã se
expandiu para fora da península árabe (Ibidem).
A militarização dos escravos é um dado particular que aparece nas
narrativas de conquistas desde o início. São “escravos guerreiros” ou “escravos
montados” que “foram sistematicamente recrutados por vários governantes
muçulmanos e partir do século IX e postos a serviço do Islã e do califado [em]
campanhas militares e extração compulsória de tributos” (PIERUCCI, 2002, p.
86). Citando Daniel Pipes, Pierucci diz que a utilização sistemática de soldados
escravos nas terras centrais do mundo muçulmano parece ter persistido do
século IX ao século XIX (Ibidem).
Como resultado de sua pesquisa sobre esta característica do Islã
nascente, Pierucci listou 19 termos utilizados por Weber para demonstrar o seu
caráter bélico. Os termos listados por Pierucci, como encontrados em sua
pesquisa do material de Weber são: camada social de guerreiros, bando
guerreiro, combatentes da fé, lutadores de Deus, ordem religiosa de guerreiros,
estamento guerreiro, profecia político-militar, confraria de guerra de conquista,
religião de propaganda de guerra, ordem de cavalaria marcial, cavalaria de
crentes, comunidade carismática de guerreiro dirigida pelo profeta guerreiro,
religião de combate, comunismo de guerra, religião de um exército
conquistador, classe de cavaleiros de guerra, heróis de guerra a cavalo, estrato
de guerreiros cavaleiros e, “em definitivo”, “uma religião de guerreiros”
(PIERUCCI, 2002, p. 87). Esse caráter foi impresso por Muhammad, em
Medina, e sua preservação, “a era de ouro”, faz parte da ideologia a ser
resgatada pelo pensamento fundamentalista radical. Por isso, determinadas
leituras e reinterpretações posteriores do Corão assumiram esse perfil, pois
intérpretes fundamentalistas procuram resgatar a maneira exemplar dada pelo
116
Profeta e, na prática, encontram esse modelo. Daí os novos grupos de
resistência adotam práticas dessa natureza nos territórios onde atuam ou que
desejam libertar da opressão colonial ou de natureza similar.
[...] o Islã que surge dos fragmentos de Weber é uma religião
política que interpela para a guerra de conquista, que orienta e
disciplina para a batalha e o heroísmo, que fabrica uma
religiosidade
guerreiros,
ritualista
em
suma,
e
eticamente
que
aponta
simplificada
como
modelo
para
de
personalidade para os indivíduos mais simples: “O guerreiro,
não o homem de letras”, nem o comerciante ou o empresário
bem-sucedido, “é o ideal da religiosidade”. Gostemos ou não,
esse é o retrato do antigo Islã pintado pela sociologia de Weber
(PIERUCCI, 2002, p. 87).
“Durante sua vida, Maomé subjugou muitas comunidades judaicas,
talvez a principal e mais rica delas, Khaibar, que resistiu bravamente até ser
derrotada por um exército de 1.600 homens” (KAMEL, 2007, p. 79). A nova
configuração social deveria unir sob o guarda-chuva da nova religião o poder
militar dominador e conquistador e a camada comercial para manter a sua
corte. Por isso, Weber usa termos da geologia para demonstrar a que se
refere: estrato, camada e no caso “camada portadora” (ou “portador social” da
religiosidade), que indica o portador da religião ou religiosidade, uma facção.
Pierucci, falando do método utilizado por Weber para classificar aquela
sociedade, chama a atenção para o fato de Weber dar importância estratégica
ao período formador de uma religião.
E do Islã, o que diz? Como identificá-lo sociologicamente pela
chave estrutural do estrato “portador”? É indispensável isolá-lo
teoricamente, pois há que fazer distinção “quando as camadas
sociais engajadas na vida prática, determinantes para o
desenvolvimento de uma religião, são heróis de cavalaria
militar [ritterliche Kriegshelden], agentes políticos, classes
economicamente aquisitivas (Weber apud PIERUCCI, 2002, p.
88, ênfase no original).
117
E conclui cinicamente: “Todos sabemos que Maomé era um comerciante
de Meca” (Ibidem). Mesmo Garaudy, que faz História perfilado ao Islã, é
obrigado a admitir que “essas duas formas de comunidade, a do deserto e a do
oásis [...] utilizavam de bom grado os beduínos como guerreiros mercenários
para a proteção de seus tráficos em caravanas” (GARAUDY, 1998, pp. 26,27).
Muhammad recebeu a sua última revelação nove dias antes de morrer
(KAMEL, 2007, p. 75), vítima de malária, nos braços de sua amada
adolescente Aixa (VERNET, 2004, p. 89), o que ocorreu no dia 13 de rabil do
ano 11 da Hégira 151 ou 8 de junho de 632. Deixou um legado para todos os
gostos, e desgostos também. Não fazia ideia de que sua religião seria
acreditada pela quantidade de adeptos que há hoje por todo o planeta.
Mas, que herança nós temos procurado identificar e por que motivos sua
religião tem sido tão mal interpretada?
Precisamos pensar nas implicações da Arábia daqueles anos, a partir da
lente política, por exemplo. Vimos que a shahada é um elemento basilar no
Islã, a crença em que “o poder pertencente só a Deus, que torna relativa toda
soberania social” (GARAUDY, 1998, p. 35), e o elemento da consulta (shura),
prática que prevê a exclusão de “toda mediação entre Deus e o povo” por
instrumentalização humana (GARAUDY, 1998, p. 35). Com esses mecanismos,
afastam-se simultaneamente a absolutização ou sacralização do poder nas
mãos de um tirano e a democracia do tipo ocidental, isto é, o poder nas mãos
do povo com alma “individualista, quantitativa, estatística, delegada e alienada”
(GARAUDY, 1998, p. 35). É coerente, pois se o poder é de Deus, este não
pode ser do povo; seria profanação, usurpação, e, portanto, constitui-se
“haram”, pecado, usurpação.
Porém, o Islã de hoje tem se democratizado em diversas regiões do
mundo (e.g., Irã, Egito, Palestina, Turquia e outros), mas a exemplo do Irã, o
151
A hégira é o calendário muçulmano que conta os anos a partir da data que Muhammad, fugindo
dos habitantes de Meca, migrou para Medina, em 612 d.C.
118
modelo mais bem sucedido, é uma democracia controlada, o que pode
facilmente ser criticado por especialistas no assunto. 152
Assim, Garaudy critica Rousseau e seu Contrato social, alegando que
este não considerava concretamente o indivíduo, portanto, era incapaz de
conceber tal “integração social senão através do mito de uma ‘vontade geral’”,
onde as expressões e instituições democráticas hoje tradicionais “mostraram
tudo que ela continha de delegação e de alienação de poder para produzir uma
caricatura de democracia” (GARAUDY, 1998, p. 35). Como “no direito
muçulmano, a propriedade não é um atributo do indivíduo nem de um grupo,
mas uma função social, disposta segundo as exigências divinas da
‘Comendadoria do Bem’” (GARAUDY, 1998, p. 35, ênfase no original), a terra e
o que ela produz devem ser dispostos para o bem comum, porque a terra é da
coletividade. Remeto à importância da terra vista no capítulo anterior.
Bingemer toca na questão da legitimação da violência no passado, no
presente e no futuro e em conexão com a questão da propriedade da terra,
pois tudo pertence a Allah. A concepção islâmica primitiva, nascente, difere da
romana em que era preciso socializar a posse e o uso da terra, sem
exclusividade, ou seja, ela não pertence a um indivíduo, a um grupo ou ao
152
Carranca e Camargos explicam, a partir de uma entrevista com a Nobel da Paz, a advogada
iraniana Shirin Ebadi, a distinção entre a democracia naquele país e o Islã. Para a entrevistada “o
governo do Irã é antidemocrático, não o islã” (2010, p. 161), e advoga que isso se deve a uma
interpretação errada que os líderes do país fazem do Alcorão e da sharia. Desse modo, pelo voto
democrático, o povo elege seus líderes que em nada diferem de governos ditadores que violam os
direitos humanos, como os temos, por exemplo, na América Latina, sem serem Estados islâmicos. Há
países no sudeste asiático, como a Malásia, nação predominantemente islâmica, onde a democracia
vigora com os direitos humanos sendo respeitados. No Irã, o sistema judiciário baseia-se na sharia, que
reduz direitos, viola igualdades e desconsidera a vontade do povo que os elegeu. Com 90% da
população xiita, até mesmo os sunitas encontram dificuldades para construir sua mesquita no país.
Corrobora a perspectiva democrática de Shirin, outra entrevista relatada na obra, com Emadeddin
Baghi, jornalista, escritor, teólogo muçulmano, ativista e integrante do movimento que defende
reformas políticas no Irã, homem que no passado esteve próximo a Khomeini, fundou em 2003 a
Sociedade dos Defensores dos Direitos dos Presos e pouco depois a Associação Pelo Direito à Vida.
Interrogado nos mesmos moldes que a Nobel da Paz, se haveria compatibilidade da democracia num
Estado islâmico, é direto e alinhado à Shirin: “O problema no Irã não é a religião, mas um sistema
repressor que quer se manter no poder e usar a religião para isso” (CARRANCA, 2010, p. 188).
119
próprio Estado. Esses são apenas “gerenciadores” das propriedades
(BINGEMER, 2001, pp. 214,215). Fato é que o Islã, ao longo do tempo,
elaborou uma perspectiva social, para tentar resgatar e reviver o que foi
experimentado em Medina, mas mais “solto”, não “paralisado pelo cientificismo
positivista e pelo individualismo ocidental”, antes, que fosse talhado “pelos
valores fundamentais que já fizeram renascer a Comunidade de Medina num
clarão de esperança: transcendência e comunidade” (GARAUDY, 1998, p. 36).
Essa a luta do Islã em quatorze séculos.
2.4 Uma vez dominados bastava avançar?
As reflexões sobre o sentido correto do Corão e a maneira adequada e
justa de aplicar a sharia e também a busca por uma prática ideal de vida, levou
à compreensão de que era preciso “seguir o caminho de Deus (jihad), 153 que
podia ter um sentido mais amplo ou mais preciso: combater pela expansão das
fronteiras do Islã” (HOURANI, 1994, pp. 82,84, ênfase no original). Hourani
descreve essa proposta como bem elaborada já na primeira geração.
Roger Garaudy defende o militarismo da expansão inicial, cometendo
um anacronismo flagrante ao comparar esta expansão a dos europeus (muitos
séculos depois) sobre a América e a África gozando de “uma superioridade
absoluta: a do canhão, do fuzil, e depois da metralhadora” (GARAUDY, 1998,
p. 24). Assim, fica justificada a violência que ao próprio autor parece estranha,
mas como a luta foi parelha, na sua visão, então a ética ou qualquer outro
valor, religioso ou não, nem precisa ser posta na balança. “O império árabe não
se fundou, portanto, numa relação de forças que lhe assegurassem
esmagadora supremacia” (GARAUDY, 1998, p. 24). Ele admite que as guerras
santas, enquanto o Profeta vivia, e mesmo após a sua morte, é que deram
suporte ao ambicioso projeto embalado na sanha por riquezas: “a vitória do Islã
é ininteligível sem o Islã, como fé, e como comunidade assentada sobre essa
fé” (GARAUDY, 1998, p. 25).
153
Em linhas gerais há o jihad menor, o combate militar, exterior ao crente enquanto o jihad maior é
esforço interior por autocontrole e comportamento adequado. Há farta literatura e desenvolvimento de
ambos os termos produzida pelas comunidade muçulmana como também pela academia.
120
Nos oásis, tornados cidades, com a agricultura, seu artesanato
e seu comércio, sua propriedade privada e sua hierarquia
social e política, criaram-se e depois degradaram-se outras
formas de comunidade: a divisão crescente do trabalho e a
complementaridade das funções originaram novos vínculos,
mas também concorrências e desigualdades, desejos de posse
e de poderio, inclinações ao luxo e apetites de dominação.
(GARAUDY, 1998, pp. 26,27, ênfase acrescentada)
Mesmo Vernet, em nota onde cita al-Mansur b. Abi Amir, 154 diz que
submeteu os reinos cristãos a derrotas sucessivas (VERNET, 2004, p. 21) e o
fez dentro de um contexto de batalhas militares sangrentas. Parece ser o
expediente usado pelos historiadores pró-islã que sempre dirão ser esse
avanço pacífico, como o faz Garaudy. Nunca o foi.
O Dr. Helmi Nasr (2003, p. 276), em seu comentário ao Corão, na
abertura da Sura 8, Al-Anfal, menciona a batalha de Badr como referência para
a explicação sobre os espólios de guerra e da estratégia militar e legislações a
serem aplicadas em tempos de guerra. O comentário deixa claro não haver
qualquer intenção religiosa de salvação no sentido estrito; a concentração do
comentário está no tema da conquista político-militar pura e simples, e na
pilhagem, além de vingança entre tribos. É um modelo peculiar de religião que
abarca todos os campos naturais da vida e da experiência humana.
Isso não retrata o Islã como um todo, mas tal possibilidade ou modo de
fazer religião – e, consequentemente, de viver uma espiritualidade combativa –
chocar-se-á com os valores que não preveem a violência no campo religioso
dentro do próprio Islã. O sufismo, 155 por exemplo, é de certo modo uma reação
154
Al-Mansur b. Abi Amir ou Almanzor, líder político e militar muçulmano na península Ibérica,
morto em 393 da Hégira, 1002 d.C.
155
O sufismo, ramo mais místico do Islã, é praticado por uma ala minoritária no mundo muçulmano.
Sua inclinação maior é para aspectos místicos da vida religiosa, numa tentativa de resgatar, por
exemplo, as experiências místicas do Profeta. Nem por serem mais “exotéricos” deixam de ter sua
teologia e um profundo senso político-social. Ver Marietta Stepanyants, Sufism in the Context of Modern
Politics. http://www.iop.or.jp/Documents/0919/stepanyants.pdf acessado em 14.06.2014.
121
a isso. A violência desdenha “a própria humanidade [que] se encontra
ameaçada por essa violência inumana e desumanizante, que pode travestir-se
de diversas formas, inclusive da prática fanática de uma determinada religião”
(VILHENA, 2007, p. 146). 156 No Capítulo 1 vimos a sugestão de Vilhena, de
que a espiritualidade é o refúgio e o recurso a não-violência. Contra isso, a
interpretação fundamentalista radical pouca atenção dá a espiritualidade
enquanto se concentra em aspectos particulares e do seu interesse. Estou
falando em linhas gerais, pois no caso da resistência do Hamas, ela está
atrelada a colonização e espoliação por Israel.
Ao afirmar que “não é possível, portanto, haver relações justas e
pacíficas entre os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar
seus desejos”, Vilhena (2007, p. 146) toca no ponto central da teoria mimética,
que identifica no desejo imitativo a gênese da violência e da escalada da
violência em seus estudos. É o desejo que move o homem, e o homem do Islã
não escapa a isso; o desejo por conquistas, tomando como modelo a primeira
comunidade e aplicado por séculos de invasões e submissões:
Jihad, ou guerra de conquista islâmica, se desenrolou por mais
de um milênio em três continentes nas terras cristãs ribeirinhas
do Mediterrâneo e do interior – para não mencionar as budista
e hindu na Ásia. Isso explica a dificuldade em entender um
processo em que foi adaptado às circunstâncias e terrenos
diferentes, combinando as perseguições e os períodos de
descanso, saques, assaltos maciços e destruição. Duas
violentas ondas de islamização podem ser dintinguidas: a onda
árabe (634-750) e a onda turca (c. 1021-1689) (YE’OR, 2002,
p. 48, tradução livre). 157
156
Para Gellner (1992, p. 13), o fundamentalismo privilegia a doutrina em detrimento do ritual;
nesse sentido, o sufismo como que alivia o sobrepeso do rigorismo doutrinário.
157
Bat Ye'or é o pseudônimo de Gisele Littman, egípcia de nascimento (teve a nacionalidade
revogada e nova nacionalização britânica), é historiadora, escritora e comentarista político que escreve
sobre a história do Oriente Médio cristão e judeus dhimmis vivendo sob governos islâmicos.
122
E a onda árabe inicial, como a turca posterior, sempre seguiram o
modelo-piloto implantado pelo próprio Muhammad em Medina.
O tratamento dado por Muhammad aos judeus do oásis de
Khaybar
serviu
“como
um
modelo
para
os
tratados
estabelecidos pelos conquistadores árabes sobre os povos
conquistados em territórios além da Arábia”. Muhammad
atacou o oásis em 628, torturou um dos líderes da tribo a fim
de encontrar o tesouro escondido da tribo, e, em seguida,
quando os judeus se renderam, concordou em deixá-los
continuar a cultivar seu oásis se dessem metade do que
produzissem. Muhammad também se reservou o direito de
cancelar o tratado e expulsar os judeus quando desejasse.
Este tratado ou acordo foi chamado de “dhimma”, e aqueles
que o aceitaram ficaram conhecidos como “dhimmis”. Todos os
não-muçulmanos que aceitaram a supremacia muçulmana e
concordaram em pagar o tributo em troca de “proteção
muçulmana” ficaram conhecidos como “dhimmis” (WARRAQ,
1995, p. 217, tradução livre). 158
Blainey, por exemplo, constata que “Maomé ainda não era visto como o
salvador dos países vizinhos, mas seus exércitos começaram a conquistar uma
vitória atrás da outra, longe de casa [...] A cidade de Damasco foi tomada em
635” (BLAINEY, 2008, p. 119), depois da morte do Profeta. O autor propõe
datas e cita regiões conquistadas no Ocidente e no Oriente, demonstrando que
a expansão territorial começou “menos de vinte anos após a morte de Maomé”
– e não na sua gestão – e que “sua religião e sua espada dominaram das
fronteiras do Afeganistão, no Oriente, até Trípoli, no Ocidente, uma distância de
quase 5 mil quilômetros” (BLAINEY, 2008, pp. 119,120, ênfase acrescentada),
o que se deu em caráter de (usando categorias de hoje) pura opressão.
158
Ibn Warraq é o pseudônimo de um conhecido crítico do Islã. Ele é fundador do Institute for the
Secularisation of Islamic Society (ISIS) e foi pesquisador sênior no Center for Inquiry, com foco na crítica
científica ao Corão. Warraq atualmente é Vice-presidente do World Encounter Institute. As opiniões
sobre o trabalho de Warraq se dividem entre “revisionista” e “bem fundamentado”.
123
“Os dhimmis estavam em perigo constante de ser escravizados”. Como
exemplo, Warraq começa por mencionar a conquista de Trípoli em 643 (onze
anos após a morte de Muhammad) por Amr, quando este “forçou os judeus e
os cristãos a entregarem as suas mulheres e crianças como escravos para o
exército árabe”, podendo deduzir “a entrega” do pagamento do “temido imposto
da jizya” (WARRAQ, 1995, p. 231). Esse modelo de “avanço” foi posto em
prática entre 652 e 1276. A conquista da Núbia (hoje Sudão) foi seguida da
obrigação de enviar um contingente de escravos anualmente para o Cairo, o
que não eximia mulheres e crianças (Ibidem). “Os tratados celebrados sob os
omíadas e abássidas [dois governos muçulmanos distintos] com as cidades da
Transoxiana, 159 Sistão, 160 Armênia e Fezã 161 estipulava um tributo anual de
escravos de ambos os sexos” (Ibidem).
Os exércitos árabes fizeram das aldeias que ocupavam os territórios
atacados a sua “principal fonte de reservas de escravos” para abastecer a
“máquina de guerra do Islã” (no dizer de Pierucci), e “as expedições militares
mais disciplinadas” foram as que mais erradicaram “as cidades dos incrédulos.
Todos os presos foram deportados em massa” (WARRAQ, 1995, p. 231).
Em 781, no saque de Éfeso, 7.000 gregos foram deportados
para o cativeiro. Depois a captura de Armórica 162 em 838, havia
tantos prisioneiros que o Califa al-Mutasim ordenou que fossem
leiloados em lotes de cinco e de dez. No saque de Tessalônica
em 903, 22 mil cristãos foram divididos entre os líderes árabes
ou vendidos como escravos. Em 1064, o sultão seljúcida Alp
Arslan, devastou a Geórgia e a Armênia. Aqueles que não
foram tomados como prisioneiros, ele executou (WARRAQ,
1995, p. 231).
Todas as grandes religiões estão manchadas de sangue.
159
Transoxiana é uma antiga denominação para uma região da Ásia Central correspondente aos
atuais Uzbequistão, Tadjiquistão e sudoeste do Cazaquistão.
160
O atual Sistão é uma região fronteiriça no sudeste do Irã e sudoeste do Afeganistão.
161
Fezã ou Fezão é uma região no sudoeste da Líbia.
162
Armórica é antiga denominação da região da Gália.
124
O próprio Garaudy refere-se às invasões dos exércitos muçulmanos nas
antigas civilizações dos deltas (as do Hoang-Ho, 163 do Indo, da Mesopotâmia,
do Egito), “a vitória não veio de uma superioridade de cultura, mas de uma
superioridade militar: a do cavaleiro sobre o infante, a da espada de ferro sobre
a espada de bronze” (GARAUDY, 1998, p. 20). Garaudy não indica a
preocupação com uma mensagem religiosa de esperança para um futuro
melhor ou uma convivência harmônica entre povos, ou seja: nada de religião
no discurso desses “construtores de impérios” (Ibidem). 164 A mesma conclusão
é vista em Hourani, que fala do interesse maior dos soldados islâmicos na
política e na economia, mais que na religião (HOURANI, 1994, p. 61), e mesmo
no século VIII “não havia pressão ou incentivo positivo para que outros se
convertessem” (Ibidem, p. 65). A ordem era matar alguns, para impor-se e
manter outros vivos, para que pagassem o tributo de jizya para o sustento dos
soldados de Allah. 165
As distribuições de terras aos dirigentes árabes multiplicaramse nos territórios ocupados: grandes domínios constituem-se
163
Hoang-Ho ou Huang-Ho é o segundo rio mais extenso da China.
164
“Roma não dominou a Grécia e não fundou seu império pelo refinamento da sua cultura, mas
pelo peso de suas armas. Os hunos, os mongóis, os tártaros, que, com Átila, devastaram a Europa inteira
até a Gália, os que com Gengis Khan, construíram o mais vasto dos impérios destruindo as civilizações
da China, do Kharezm e da Pérsia inteira, da Índia, os que com Tamerlão reinaram sem piedade da China
ao Volga, de Delhi a Bagdá, nenhum desses ‘construtores de impérios’ trazia uma mensagem civilizadora
rica de futuro” (GARAUDY, 1998, p. 20).
165
“Um século depois da morte do Profeta, especialistas muçulmanos em jurisprudência do oitavo
século fixaram a política em relação aos povos do Livro, com base em decisões decretadas por
Muhammad aos judeus da Arábia, decisões que foram seguidas na adoção de outros pactos de garantias
de proteção para judeus e cristãos. Esses processos constituíram as regras normativas aplicáveis a todos
os povos conquistados pela jihad. Da mesma forma, o dhimma de Khaybar serviu aos jurisconsultos
como um modelo para a elaboração de tratados com populações que foram submetidas a dominação
islâmica. As condições do dhimmi, resultado direto da jihad, está ligada a este “pacto de proteções” que
suspendeu o direito inicial do conquistador de matar ou escravizar os seguidores das religiões toleradas,
desde que fossem submetidos a pagar o tributo (jizya)” (YE’OR, 2002, p. 41, tradução livre, ênfases no
original). Por “jizya”, aqui, deve ser entendido um pagamento permanente e não simplesmente uma
“taxa única”.
125
em proveito de cidadãos árabes que vivem graças aos
rendimentos
que
lhes
proporcionam
seus
arrendatários
autóctones (GARAUDY, 1998, p. 44).
2.5 As releituras da História
A História dispõe de relatos como esses. No entanto, é preciso ter clara
a ideia de que no Islã a religião é servida pela política (estou novamente
fazendo uso de categorias mais atuais). No seu início, a religião cavalgava no
lombo dos cavalos dos soldados. Garaudy confirma essa peculiaridade do Islã,
mas reserva para depois da morte do Profeta o exacerbado interesse dos
quatro califas “bem guiados”, os primeiros companheiros e sucessores de
Muhammad, “Abu Bakr, Omar, Uthman e Ali, os omíadas interessaram-se
muito mais pelo poder político em si mesmo do que pelo seu significado
religioso; e essa separação já é ruptura com o espírito profundo do Islã”
(GARAUDY, 1998, p. 45). “A escala de preferência entre os califas ortodoxos
era determinada pelo número de batalhas das quais eles haviam participado”
(ABU-RABI, 2011, p. 88). Era assim que o consenso na ummah era
estabelecido, “e não [por] exigir qualquer recomendação ou eleição” (Ibidem)
Dos esforços travados pela herança do Profeta – praticamente todos os
seus sucessores foram assassinados (DEMANT, 2004, pp. 38,39) – é marcante
a história do “martírio de Hussein”, que dá origem a uma importante cerimônia
do xiismo e mostra o espírito em que posteriormente seria rememorada a sua
morte, na celebração da Ashura. 166
Muhammad morreu sem deixar suficientemente claro como se daria a
sua sucessão, o que sugere a despretensão a uma expansão do Islã para além
dos territórios da Arábia. Após a morte do Profeta e por processos que
envolveram conflitos, conspirações e assassinatos dos antigos homens de
confiança de Muhammad, a liderança do Islã se dividiu entre sunitas e xiitas. 167
166
Décimo dia do mês Muharram, a data em que os muçulmanos comemoram a criação de Adão
(KAMEL, 2007, p. 104).
167
Não é prioridade neste trabalho recontar a história da sucessão do Profeta e as divisões que ainda
hoje permanecem no islã. Sobre a sucessão de Muhammad e a divisão em sunitas e xiitas, ver KAMEL,
2007, p. 95ss; DEMANT, 2004, p. 37ss.
126
Os sunitas (de sunnah, tradição preservada em coleção de “ditos” atribuídos ao
Profeta), admitiram os imames que foram companheiros imediatos do Profeta,
tidos em alta conta na comunidade original, por suas virtudes e comportamento
exemplar. Os xiitas (de xia ou shi’a, partido de Ali) reclamaram a sucessão por
consanguinidade com o Profeta, naturalmente por meio de Fatima, sua filha, e
de Ali seu genro (DEMANT, 2004, p. 38). Assim, a histórica divisão do Islã que
seguiu a morte de Muhammad teve o seguinte perfil. De um lado a minoria
xiita: Ali, Hasan, Hussein e depois Ali (filho menor de Hussein). Do outro lado a
maioria sunita: Abu Bakr, Omar, Osman e Ali – o mesmo xiita.
Inicialmente os sunitas levaram a melhor, nomeando os três primeiros
califas
168
até que Ali, o quarto califa, teve a legitimidade de sua liderança
contestada por Mu’awiyya, de origem coraixita, a tribo de origem de
Muhammad (DEMANT, 2004, p. 38; KAMEL, 2007, p. 102). “Uma guerra civil
se seguiu, e Ali foi assassinado em 661. Mu’awiyya fundou a primeira dinastia
califal, a dos Omíadas” (DEMANT, Ibidem). A sede do seu governo foi
transferida para Damasco como um importante passo da internacionalização
do Islã, mas as marcas de sangue que selaram esse avanço escorreram nos
olhos da minoria de integrantes da família do Profeta, que desejava ter maior,
senão total, participação na sucessão à frente da comunidade.
Embora optassem por aceitar pacificamente o califado de Mu’awiyya em
Damasco, parece ser este um ponto-chave na História das interpretações das
tradições e textos do Corão, quando teve início uma tradição de releitura das
origens do Islã, com uma lente ideológica, fazendo como que uma significativa
inversão: exalta o aspecto religioso mais que o político para legitimar este. É o
que deixa entrever Demant quando diz que “iniciou-se então uma nova leitura
da época do Profeta e de seus sucessores imediatos, idealizada como era de
religiosidade, proximidade a Deus e, portanto, de sucessos tanto espirituais
quanto mundanos” (DEMANT, 2004, pp. 38,40, ênfase acrescentada). Uma vez
que o poder político havia escapado ao controle da minoria, foi preciso reler a
jovem tradição a partir de nova abordagem que apelasse a uma suposta
legitimidade pela maioria: a religião. Finda a primeira fase, a inclinação por vir
168
Califa: um tenente, representante legal sunita da ummah (comunidade) religiosa e política após a
morte do Profeta. O califa sunita corresponde ao imam xiita.
127
era a concentração dos dois poderes, político e espiritual, em um único agente:
o líder, o califa sunita ou o imam xiita (HOURANI, 1994, p. 79).
Quando Mu’awiyya morreu, Hussein, filho de Ali (assassinado em 669)
reivindicou a liderança para si, uma vez que havia aguardado pacificamente o
fim da liderança de Mu’awiyya, conforme a tendência da maioria sunita. Era de
esperar que a transição fosse natural, visto que Hussein era neto do Profeta.
Mas Mu’awiyya inovou, nomeando seu sucessor o filho Yazid, “consagrando
assim um novo princípio de hereditariedade e uma nova dinastia” (DEMANT,
2004, p. 40; KAMEL, 2007, p. 102, CARRANCA, 2010, p. 53).
Hussein levantou-se com seus partidários, pois estes clamaram que
fossem a Damasco, depor Yazid e restituir o califado às mãos da família do
Profeta (KAMEL, 2007, p. 10; DEMANT, Ibidem). O grupo composto por 72
soldados esperava contar com o apoio da população de Kufa (atual Karbala,
Iraque), que, por uma manobra de Yazid, não se confirmou. Cercado, Hussein
e seus homens se depararam com um exército formado por cerca de mil
homens liderados pelo califa. Hussein ouviu a voz de comando para que ele e
seus homens fossem atacados, e propôs enfrentá-los sozinhos, poupando a
vida do seu grupo, mas não houve desertores (KAMEL, 2007, p. 103). Seu
pequeno grupo foi esmagado e todos foram decapitados, “numa área onde
depois surgiria a cidade de Karbala” (DEMANT, 2004, p. 40; KAMEL, Ibidem).
“Esse episódio marcou a divisão definitiva entre sunitas e xiitas e é lembrado
com rituais de lamentação e mortificação” (PEREIRA, 2012, p. 344). “A cabeça
de Hussein foi levada ao governador de Kufa numa bandeja” (KAMEL, 2007, p.
103), mimese da prática já conhecida pela apresentação da cabeça de João
Batista a Herodias, 169 igualmente servida numa bandeja seis séculos antes.
A origem dos modernos martírios dos jihadistas não pode ser traçada
“exclusivamente” pelo massacre em Karbala, até porque tais práticas não são
exclusivas do xiismo. No entanto, não resta dúvida de que este evento e tudo o
que nele está envolto acrescenta elementos à construção de um ideário de luta
com martírio. Estou tratando, em termos mais amplos, a construção de um
modelo e não o caso específico da Palestina. É tentativa de compreender um
169
“Instigada por sua mãe, ela disse: Dá-me aqui numa bandeja a cabeça de João Batista” (Mateus
14.8).
128
antecedente na religião o qual proporcione cenário para o martírio na
resistência.
A teologia muçulmana, como todas as outras teologias, forjou
determinada maneira de ler e reler a vida e obra de seus heróis e inspirar as
novas gerações com os mesmos sentimentos. Foi assim que Ali Shari’ati, o
teólogo muçulmano, considerado “um dos inspiradores da resistência à
opressão no Irã, escreveu em 1972 que o martírio não é uma dimensão do Islã,
mas sua própria essência” (GARAUDY, 1998, p. 44). Com isso, ele fundiu os
dois aspectos que tenho procurado destacar aqui: o rosto exterior, expresso na
política de resistência e a face interior, manifesta na religiosidade pujante,
fervorosa. Garaudy afirma que assim Shari’ati conseguiu unir “de maneira
indivisível a resistência ao inimigo exterior da fé e a luta interior contra as
vibrações mais animais, em nós, do egoísmo e do medo” (GARAUDY, 1998, p.
44, ênfase no original).
2.6 O conceito de Islamuflagem
Cada aspecto do Islã pode ser retratado por outros pontos de vista;
admite abordagens diversas, usando o “modelo” mequense ou o medinense. O
Islã alterou ou modificou cenários e convivências nas culturas em que se
inseriu. A arquitetura, a culinária, a literatura, a filosofia, a medicina, a religião,
a economia, o direito, as relações sociais e o bem estar humano, enfim.
Uma série de temas do mundo e da cultura muçulmana poderia ser
discutida. No entanto, tenho me detido na pesquisa do que houve de marginal,
no sentido da ocorrência à margem dos principais eventos. Kamel fala da alma
do Islã marcada pelo senso de responsabilidade por uma missão em âmbito
mundial que visa à tarefa de “restaurar, para aqueles que voluntariamente a
aceitem, a verdade, restabelecer, para aqueles que voluntariamente o aceitem,
o que teria sido deturpado nos livros sagrados anteriormente revelados”
(KAMEL, 2007, p. 77), ou seja, a tradição contida na Bíblia Hebraica e no Novo
Testamento. Esse rompimento parcial (“parcial” porque boas porções do Corão
recontam, à sua maneira e com variações, conteúdos dos dois livros
anteriores) é por si “um fator de distanciamento para aqueles que conhecem o
129
Islã” (Ibidem). Para o autor, só assim “o Islã se distancia dos que acreditam que
não houve deturpação alguma”, pois o que é dito e escrito sobre o Islã destaca
o que é diferente, não o que é semelhante, nem mesmo “a origem comum”.
Assim, “o mal-entendido se perpetua. Conhecer e se inteirar das semelhanças
talvez seja um fator de aproximação” (Ibidem). É a proposta do livro de Kamel.
Vilhena (2007) concorda com Kamel “no que se refere à interpretação
das palavras do Alcorão.” Para ela, como para os muçulmanos, Muhammad
esclareceu as diferenças sobre a Guerra Santa entre os jihads maior e menor.
O primeiro “é a luta interior do muçulmano para submeter o ego a Deus e
tornar-se realmente um homem de Deus, um homem espiritual”. O segundo “é
a luta externa que sempre esteve presente na história do Islã, porque este
surgiu num contexto conflitivo e o conflito marcou profundamente sua história”
(VILHENA, 2007, p. 141). Assim, insisto em que para um muçulmano que
idealize o período medinense como modelo, voltar às fontes (ad fontes) pode
levá-lo a assumir esse perfil conflitivo inequivocamente. “As lutas externas e
mesmo as lutas internas para consolidação do Islã, de consolidação do Islã, se
constituíram em marcas em sua história” (Ibidem).
A autora ainda acrescenta a resposta padrão de que o Cristianismo
amarga a Inquisição e as Cruzadas, que também foram “guerras de religião”. E
inclui a “primeira evangelização do continente americano, quando da chegada
ao mesmo, em sintonia com o projeto colonial que resultou na morte violenta
de milhares de nativos” (VILHENA, 2007, p. 141). E ela pergunta: “Por que
então, essa quase identificação do fanatismo com a religião muçulmana?”
(Ibidem). 170 Semelhante a Vilhena é a resposta de Kamel:
Porque nas sociedades muçulmanas hoje, a tomada de poder
é o coração do programa fundamentalista. Eles sabem que
170
Sem pretender qualquer tipo de comparação, mas procurando separar os eventos e evitar
anacronismos, é preciso dizer que as Cruzadas e a Inquisição ocorreram mais de mil anos após a
fundação do Cristianismo; a “primeira evangelização do continente americano” ainda precisou de mais
quinhentos anos. Mas os registros de conflitos e guerras no Islã estão 1) na sua gênese e 2)
pontualmente ao longo de sua história, e é a esse período e a esse modelo original que os intérpretes
radicais recorrem quando formulam suas ideologias em nossos dias: há um texto fundante que lhes
fornece substância canônica, autorizada.
130
fundamentalista sem poder político é um leão sem dentes: não
apedreja, não fere, não mata, não obriga a usar o véu; apenas
prega a sua visão estreita do mundo (KAMEL, 2007, p. 162).
Ele recorre ao mesmo anacronismo e procura justificar um erro com
outro, dizendo que alguns lhe “perguntam por que tais fatos só têm acontecido
em países islâmicos, se há fundamentalistas em todas as religiões, sempre
tendo a intolerância como marca?” (KAMEL, 2007, p. 162). A resposta padrão à
qual recorre é que “a Inquisição nunca deve ser esquecida”. Kamel também
toca na questão do ad fontes, o processo pelo qual a religião diante da crise,
dos desafios e ameaças do seu tempo (a globalização, por exemplo) parte em
busca de uma ressignificação. Então, recorrem ao “modelo ideal” encontrado
na fundação fazendo leituras enviesadas para defender seus pontos de vista:
Os fundamentalistas usam na sua luta pelo poder as
realizações da tecnologia e ciência modernas, baseadas no
racionalismo e impossíveis sem ele: gravações, explosivos
sofisticados, fax, televisão, Internet, aviões etc. Porém, são
teologicamente opostos ao racionalismo inerente a essas
invenções e, onde chegam ao poder, tentam destruí-lo
(DEMANT, 2004, p. 359).
Ou, para ater-nos apenas aos elementos “intelectuais” do processo,
deparamo-nos com o que Weinberg chama de iteologia:
A utopia destas pregações está sempre à espera de uma nova
arquitetura social e do surgimento de um novo homem. Na obra
teológica, ao contrário, a utopia está no passado, distante e
inacessível. Por isso, cabe ao labor humano descobrir a
verdade promulgada e seguir a norma prescrita na revelação. É
esta disciplina cega ao dito e repetido desde o alvorecer da fé
que deve comprometer os que desejam apressar de alguma
forma o reino de Deus na Terra. Por isso as teologias, como as
ideologias, tornam-se igualmente prescritivas e normativas.
131
Tornam-se iteologias (WEINBERG, 2007, p 136, ênfase no
original).
Ele usou as mesmas expressões de Kamel: prescritivas e normativas
(2007, p. 131), o embaralhamento do cenário de Meca com o de Medina
parece ser o meio de justificar pelo Corão ações que o todo do Islã não adota.
Mais do que a fusão da ideologia com a teologia, penso ser possível
observar a sutil passagem de um campo a outros, não somente da teologia
para a ideologia, mas também da religião para a política e dos elementos da fé
para os componentes culturais inclusive, que tanto encantam e iludem mesmo
a observadores especializados, mas não levam em conta o aspecto etéreo da
religião. Isso faz a religião ser camuflada por um discurso político ou viceversa, faz camuflar a religião de cultura, o que a torna mais bela e aceitável – e
defensável. Chamaria a essa facilidade de transitar de um campo a outro com
tal sutileza de Islamuflagem, a camuflagem que permite ao interlocutor do Islã
radical recorrer a nuanças presentes em todo o conjunto da fé, sem a
necessidade de reafirmar um discurso específico que comprometa a sua
penetração ou avanço e provoque rejeição às suas propostas. Assim, a
pretexto de intercâmbio cultural ou exercício de alteridade, a própria essência
da religião se escamoteia entre véus, aromas e imposições.
Fortes traços disso vemos em Pierucci, que comentando as conclusões
de Weber, diz que o Islã antigo tem um traço marcante que o distingue de
outras grandes religiões. Esse Islã antigo era uma religião para guerreiros.
Zoroastro, por exemplo, levava sua profecia para camponeses e para os
nobres, ao passo que a profecia islâmica era dirigida para guerreiros
(PIERUCCI, 2002, p. 90). Para ele,
Weber se refere aos acampamentos militares erguidos nos
territórios conquistados já nos tempos de Omar, o segundo
califa (634-644), como lugares “onde começou a surgir uma
aristocracia feudal” (Ibidem, nota 55).
E
cita
Weber:
“A
disciplina
na
guerra
religiosa
[Disziplin
im
Glaubenskriege] foi a fonte da invencibilidade da cavalaria muçulmana”
132
(PIERUCCI, 2002, p. 90, ênfase no original). Para Pierucci, Weber descobre o
Islã “como uma religiosidade não-ética” (PIERUCCI, 2002, p. 91, ênfase no
original), sendo Weber já familiarizado com as categorias estudadas no
protestantismo, e tal “descobrimento [...] finalmente aflora em seu texto numa
tirada definitiva: ‘o conceito de salvação no sentido ético da palavra era
totalmente estranho ao Islã’” (Ibidem). O que chamou a atenção e interesse dos
“guerreiros” foi o espírito de dominação, de conquista, “os interesses
estamentais dos guerreiros”, a oportunidade de também ser “senhor”, e isso
com o aval do Profeta e uma boa profecia de Allah em seu favor (Id.).
Dentro das “camadas sociais portadoras” de Weber, a sua fórmula para
o Islã seria a do “guerreiro subjugador do mundo” (PIERUCCI, 2002, p. 92). “A
figura humana que personifica o Islã nessa lista – e o tipifica idealmente – é a
do guerreiro que submete o mundo” (Ibidem). Isso não nasce de outro lugar
senão do “texto” ou da palavra do Profeta, já que “intencionalmente ou não, a
palavra usada aí para caracterizar a atitude islâmica, perante o mundo é
‘Unterwerfung’, que coincidentemente quer dizer ‘submissão’ [...] em árabe:
‘ishlam’” (Id.). Em outras palavras, submeta-se e submeta.
Para Bingemer 171 a luta (jihad maior), de fato, é prevista, ou seja, que “o
combate pela causa de Deus e a luta contra a injustiça inclui também a luta
armada. Essa concepção está enraizada no Islã desde as suas origens até o
momento atual” (BINGEMER, 2001, p. 211). Ela recorre ao fato de que “o
próprio Alcorão apresenta vários elementos sobre a jihad. Muitos versículos
convocam os muçulmanos a lutar pela causa de Deus” (Ibidem, ênfase no
original). E propõe algumas suras como exemplo: 2.190 172, 216 173; 4.95 174;
171
Bingemer avisa que seguirá ipis literis o texto da Tese de Mestrado defendida por SILVA, S. V. pela
PUC-Rio: Justiça social: um diálogo entre Cristianismo e islamismo: uma aproximação a partir da igreja
Católica e do Islã Xiita, pp. 136-139.
172
“Combatei, pela causa de Allah, aqueles que vos combatem; porém, não pratiqueis agressão,
porque Allah não estima os agressores”.
173
“Está-vos prescrita a luta (pela causa de Allah), embora a repudieis. É possível que repudieis algo
que seja um bem para vós e, quiçá, gosteis de algo que vos seja prejudicial; todavia, Allah sabe, e vós
ignorais”.
174
“Os crentes que, sem razão fundada, permanecem em suas casas, jamais se equiparam àqueles
que sacrificam os seus bens e as suas vidas pela causa de Allah; Ele concede maior dignidade àqueles
133
8.65 175; 9.120 176 (Ibidem). A guerra santa, no entanto, pode ser associada “à
defesa dos pobres, dos fracos e humilhados”, como a Sura 4.75, 177 sendo que
a morte pela “causa de Allah” sempre garante aos “que morrem na batalha pela
causa de Deus [que] são mártires e vivem junto de Deus e gozam de sua
bondade” (Ibidem), como dispõe as suras 3.169-171. 178 Dessa forma, a autora
estabelece que “a causa de Deus associa-se a princípios fundamentais da fé
islâmica e à justiça social, pela qual os muçulmanos são convocados a lutar e
defender mesmo que seja necessário o combate armado” (Ibidem, p. 211).
Dito isso, podemos concluir que a guerra, nas fileiras do
Islamismo primitivo, era uma necessidade inevitável, em defesa
da doutrina, da missão e da proteção aos oprimidos. Assim,
notamos a partir do próprio texto sagrado que a luta é permitida
não para a difusão da religião e imposição aos nãomuçulmanos de abraçarem o islamismo, mas sim para
combater a agressão, cujo objetivo é o estabelecimento da paz
(BINGEMER, 2001, p. 211).
que sacrificam os seus bens e as suas vidas do que aos que permanecem (em suas casas). Embora Allah
prometa a todos (os crentes) o bem, sempre confere aos combatentes uma recompensa superior à dos
que permanecem (em suas casas)”.
175
“Ó Profeta, estimula os crentes ao combate. Se entre vós houvesse vinte perseverantes,
venceriam duzentos, e se houvesse cem, venceriam mil dos incrédulos, porque estes são insensatos”.
176
“Não deveria o povo de Madina e seus vizinhos beduínos negarem-se a seguir o Mensageiro de
Allah, nem preferir as suas próprias vidas, em detrimento da dele, porque todo o seu sofrimento, devido
à sede, fome ou fadiga, pela causa de Allah, todo o dano causado aos incrédulos e todo o dano recebido
do inimigo ser-lhe-á registrado como boa ação, e Allah jamais frustra a recompensa dos benfeitores”.
177
“E o que vos impede de combater pela causa de Allah e dos indefesos, homens, mulheres e
crianças? que dizem: Ó Senhor nosso, tira-nos desta cidade (Makka), cujos habitantes são opressores.
Designa-nos, da Tua parte, um protetor e um socorredor!”.
178
“E não creiais que aqueles que sucumbiram pela causa de Allah estejam mortos; ao contrário,
vivem, agraciados, ao lado do seu Senhor. Estão jubilosos por tudo quanto Allah lhes concedeu da Sua
graça, e se regozijam por aqueles que ainda não sucumbiram, porque estes não serão presas do temor,
nem se angustiarão. Regozijam-se com a mercê e com a graça de Allah, e Allah jamais frustra a
recompensa dos crentes”.
134
Bingemer finaliza, justificando a violência a partir de uma interpretação
de textos do Corão, e isso ainda no Islã primitivo. Citando uma tradição que ela
diz não poder comprovar, mas que foi e tem sido largamente usada para
justificar ataques, guerra ofensiva (em contraponto a ataques defensivos
prescritos por suras como 2.186-187; 190-191), Muhammad teria enviado
cartas a alguns soberanos, convidando-os a se reverterem ao Islã, os quais
teriam se negado. A essas negativas, feitas pelos destinatários, os soldados de
Muhammad teriam atacado os grupos, por iniciativa própria e isso teria criado a
jurisprudência, um antecedente legal, tanto no Islã daquele tempo como ao
longo da História e nos movimentos modernos em especial, os quais apoiam
suas ações nesta tradição e “fundamentados erroneamente nos textos do
Alcorão e nos textos dos hadith, ora sendo completamente manipulados por
forças políticas que visam a manutenção e extensão do poder de dominação”
(BINGEMER, 2001, p. 218, ênfase no original). Cabe citação de Weber em
Pierucci sobre o Islã:
Não as ideias, mas os interesses (materiais e ideais) é que
dominam diretamente a ação dos humanos. O mais das vezes,
as “imagens do mundo” criadas pelas “ideias” determinaram,
feito manobreiros de linha de trem, os trilhos nos quais a ação
se vê empurrada pela dinâmica dos interesses. (PIERUCCI,
2002, p. 96, ênfase no original) 179
Isto é Islamuflagem.
Vilhena pensa não ser “possível haver relações justas e pacíficas entre
os homens senão na medida em que uns e outros sabem limitar seus desejos”
(VILHENA, 2007, p. 146). Como isso se dará é uma imensa incógnita. Mas ela
aponta noutra direção, a da raiz da violência atrelada ao desejo, o que reforça
a teoria de Girard.
A violência surge precisamente quando o homem começa a
desejar o ilimitado [...] A violência se enraíza num desejo
ilimitado que esbarra no limite constituído pelo desejo de um
179
Ensayos sobre sociologia de la religión. Madrid: Taurus, 1984, 3 vols.
135
outro, e cresce e se firma em seus tentáculos mortíferos,
quando convertida em fanatismo, se crê respaldada por um
decreto divino para redimir com sua força o humano (VILHENA,
2007, pp. 146,147, ênfases acrescentadas).
A diferença do argumento de Bingemer (anteriormente citado) é que a
ela justifica e legitima a violência, ao passo que Vilhena identifica as causas
dessa violência no “desejo ilimitado” pelo objeto desejado pelo outro, um
decreto divino ou a leitura que é feita deste.
Muhammad precisava de elementos para compor uma religião na
península arábica, um grupo mimético: um livro, um mito de origem, uma
tradição, uma história, um ancestral-patriarca, uma cidade santa, um dia santo
no calendário, uma elevação aos céus, uma terra santa, um grupo de profetas,
um Profeta maior, um anjo, uma divindade monoteísta, uma promessa de vida
eterna, um paraíso e também um inferno para onde enviar os seus inimigos.
Em outras palavras, mimetizar uma ou duas tradições próximas, presentes,
conhecidas e plasmáveis, traduzindo-as 180 para as circunstâncias populares
disponíveis. Tudo isso estava à mão, ao seu alcance, inclusive os próprios fieis
que formavam minorias distintas em comunidades de judeus e cristãos.
3. O HAMAS: A AÇÃO SOCIAL E A VIOLÊNCIA
O medo das pessoas e o preconceito na
nossa cidade crescem muito a cada dia e o
medo da violência justifica, muitas vezes,
uma violência prévia. Ruth Cardoso
A nossa inimizade para com os hindus não
é devido à questão da Caxemira, a nossa
inimizade para com a América não é
devido
ao
Iraque
e
Afeganistão,
a
inimizade entre nós e os judeus não é
180
Estou considerando a categoria de SANTOS, 2002, p. 238.
136
devido à Palestina, a causa real é que eles
não
aceitam
islamismo.
nosso
sistema
e
o
181
Em sua recente obra Deus, a Liberdade e o mal, Alvin Plantinga inicia
seus argumentos a partir do problema do mal. Entre os males “naturais como
terremotos, maremotos e doenças contagiosas, há males que resultam da
estupidez humana, arrogância e crueldade” (PLANTINGA, 2012, p. 20).
Citando um trecho de Os irmãos Karamázov, de Dostoiévski, ele chama de
“pormenor dolorosamente realista” o modo como, no século 19, os turcos
cometiam crimes na Bulgária como preventivo contra um levante dos eslavos.
Incendeiam
povoações,
matam,
maltratam
mulheres
e
crianças, pregam os prisioneiros pelas orelhas às vedações,
abandonam-nos até chegar a manhã e, então, enforcam-nos –
todo o gênero de coisas que não imaginas. As pessoas falam
por vezes de crueldade animalesca, mas isso é uma grande
injustiça e insulto aos animais; um animal nunca poderá ser tão
cruel como um homem, tão artisticamente cruel. [...] Esses
turcos tinham também prazer em torturar as crianças; em
arrancar o nascituro do ventre da mãe, em atirar bebês ao ar
para apanhá-los com as pontas das baionetas à frente das
suas mães. Fazê-los à frente das mães era o que animava a
diversão. Eis outra cena que me pareceu muito interessante.
Imagina uma mãe tremendo, com um bebê nos braços, um
círculo de turcos invasores à sua volta. Planejam uma diversão;
acariciam o bebê, riem para fazê-lo rir, e conseguem: o bebê ri.
Nesse momento, um turco aponta uma pistola a dez
centímetros da face do bebê. O bebê ri com alegria, estende as
suas mãozinhas para a pistola, e o turco dispara-a na face do
bebê e rebenta o seu cérebro. Artístico, não é? 182
181
Declaração em áudio, de setembro/2013, por Abdul Samad, clérigo paquistanês militante da Al-
Sahab, braço da Al-Qaeda, onde definiu os padrões de amizade e inimizade entre muçulmanos e infiéis.
182
Fiódor Dostoiévski, Os irmãos Karamázov (do original em inglês, 1993, pp. 245-246). Publicado no
Brasil por Editora 34, apud PLANTINGA, 2012, pp. 20,21. O décimo quinto capítulo de Os irmãos
137
3.1 Leituras do Corão a partir do século 19
O século 19 foi especialmente pródigo em fomentar ideologias que
legitimaram a violência, a resistência e o conflito armado. No recôncavo baiano,
longe dos centros onde o Islã predominava e dos atritos do Oriente Médio, a
chamada Revolta ou Levante Malê é documentada por Gilberto Freyre, Nina
Rodrigues, conforme recente artigo de Ribeiro 183 (2011), Etienne Ignace e
especialmente por João José dos Reis 184 em Rebelião escrava no Brasil, a
história do levante dos malês (1986).
A partir do século XIX houve uma tentativa de estruturação da sharī’a, a
Lei islâmica. Falando da sua utilização como base para a prática islamista,
Cherem 185 esclarece a confusão moderna no próprio seio da comunidade
islâmica entre os conceitos de sharī’a como lei nos campos político e moral.
Entre as fontes da sharī’a, por ordem de importância, temos então: o Corão e a
sunna – exemplo do profeta, relatado por “tradições” (ahadīth, sing: hadīth)
narradas por uma cadeia de transmissores que chega até os companheiros do
profeta. E cita em nota que “o Alcorão é a fonte primária da sharī’a, mas, como
Karamazov chama-se A Revolta. Nele, o autor faz menção dos turcos e sua violência. O texto descreve o
relato de um búlgaro a Ivan Karamázov apoiado em um fundo real. Trata-se da guerra Russo-Turca.
Historicamente, em alguns períodos, foram travadas guerras entre ambos os impérios, inclusive, uma
delas tem a ver com a Criméia. Joseph Frank, respeitado pesquisador de Dostoievski, atesta isso.
Comentando a citação que fiz, ele diz: “Os detalhes da candente acusação de Ivan a Deus mostram uma
lista de atrocidades que Dostoievski retirou de diversas fontes – os processos criminais que presenciou,
algumas das barbaridades contadas sobre a guerra Russo-Turca...” (FRANK, Joseph. Dostoievski 1871 a
1881. O Manto do Profeta. Trad. Geraldo Gerson de Souza. EDUSP, 2007, p. 754).
183
Lidice Meyer Pinto Ribeiro, mestre em Ciências Biológicas e doutora em Ciência Social
(Antropologia Social) pela Universidade de São Paulo (2005). É professora da Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Tem experiência na área de Antropologia, atuando principalmente nos seguintes temas:
antropologia rural, antropologia da religião e teologia.
184
Mestre e Doutor em História pela Universidade de Minnesota, EUA. Lecionou como professor
visitante nas Universidades de Michigan, Princeton, Brandeis, Texas, Harvard e na École des Hautes
Études en Sciences Sociales. É professor titular do Departamento de História da Univ. Federal da Bahia.
185
Youssef Cherem é Bacharel em Relações Internacionais (PUC-Minas), mestre e doutorando em
Antropologia Social (UNICAMP), professor do Departamento de História da Arte (UNIFESP).
138
foi muitas vezes notado, ele não é um livro jurídico (no sentido, por exemplo, do
Pentateuco)” (CHEREM, 2011, pp. 157,158).
Mas o século XIX não foi cenário de poucas influências sobre as leituras
do Corão. O wahabismo, seita majoritária na Arábia Saudita (KAMEL, 2007, p.
101), iniciado cem anos antes, fortaleceu-se e no século XIX promoveu uma
reforma ultrarradical. Retomando o mote da volta a uma origem, aos tempos
dourados da religião pura, “Ibn Taymiyya, um filósofo muçulmano do século
XIII, e Al-Wahhab, do século XVIII, formam a base desse pensamento
conhecido como salafi” (KAMEL, 2007, p. 179). A palavra de origem árabe
indica aqueles tempos e compreender o wahabismo “é fundamental para
entender o extremismo religioso, base do terrorismo islâmico” (Ibidem) uma vez
que o wahabismo “se impôs em boa parcela do Islã, rejeitando a contribuição
de outras escolas de pensamento e impondo os padrões de sua civilização
beduína ao complexo mundo islâmico” (WEINBERG, 2007, p. 188, ênfase
acrescentada). Fazendo menção ao conteúdo do discurso do pensador liberal
Khaled Abou el Fadl, no livro The Great Theft, o wahabismo promove a
expansão de “uma visão etnocêntrica e nada universal que se divulga através
do mundo com o apoio financeiro e logístico da Arábia Saudita que exporta o
credo wahabita impondo seus ditamos como os únicos aceitáveis” (Ibidem).
“O movimento [wahabita] surgiu na Arábia do século XVIII, pelas mãos
de Muhammad ibn Abd al-Wahhab, desencantado com o que chamava de
degradação do Islã, e propôs um retorno radical às origens” (KAMEL, 2007, p.
179). A proposta consistia na interpretação radical do Corão, com que muitos
não concordavam, quais sejam, punições, amputação de braços aos ladrões,
decapitação, execução pública para assassinos (como o Hamas chegou a
impor 186) e lealdade ao governo fiel ao Corão (KAMEL, 2007, p. 179).
Ramadan al-Buti observa que o Profeta e as três primeiras gerações de
“Califas Corretamente Guiados” do Islã orientaram a seguir seus ditos e que as
inovações na religião poderiam desviar o indivíduo; “abraçar uma nova escola
legal, chamada Salafiyyah, que é baseada no fanatismo, não tem nada a ver
com seguir o caminho correto” (ABU-RABI, 2011, p. 35).
186
Cfm. artigo da BBC citado por Flint, 2009, pp. 285,286.
139
Na tradição islâmica, movimentos de volta a uma origem
idealizada, de purificação da religião, sempre se fizeram
presentes. Ibn Taymiyya, um filósofo muçulmano do século
XIII, e Al-Wahhab, do século XVIII, formam a base desse
pensamento conhecido como salafi, uma palavra árabe que se
refere aos tempos dos pioneiros do islã (KAMEL, 2007, p. 179).
Salaf é o “núcleo divino da religião e um dos principais alicerces da
Sunnah do Profeta” e a Salafiyyah é “uma inovação teológica, não permitida
por Deus, e uma forma de falsa consciência sem nenhuma base histórica”
(ABU-RABI, 2011, p. 36). A Salafiyyah surgiu com força no século 19, no Egito,
durante o período do Mandato Britânico e preconizava uma reforma islâmica. A
liderança do movimento foi de Jamal al-Din Al-Afghnani e Muhammad’Abduh e
teve grande impacto no mundo islâmico (ABU-RABI, 2011, pp. 37,38).
Já a doutrina Wahhabi, do xeque Muhammed ibn Abdul Wahab (17031792), guardava um ponto comum com o movimento de reforma egípcio, que
era a rejeição a modernização do Islã e o ímpeto para “combater inovações e
superstições” (ABU-RABI, 2011, p. 38). Seus “líderes preferiam o termo
Salafiyyah porque não gostavam do termo Wahhabi, que sugere que essa
doutrina é baseada unicamente no xeque Muhammed Ibn Abdul Wahab”
(Ibidem). Sugeriram a troca de Wahhabiyyah para Salafi'yyah 187 e o movimento
se fortaleceu, lembrando que o Egito do século XIX fora afetado por um
ingrediente adicional, o controle europeu, e “foi palco da primeira revolta
nacionalista contra o Ocidente (a rebelião do coronel Urabi, em 1881)”
(DEMANT, 2004, p. 204).
A nova escola ideológica havia aberto as portas para mestres e alunos.
Sermões, discussões, cartas, lições, conferências, diagnosticar
a doença e prescrever a cura: todas essas coisas por si
187
“Depois disso, os seguidores começaram a promover essa nova nomenclatura a fim de provar a
outros que seu pensamento Wahhabiyyah não era simplesmente a criação de Muhammed Ibn Abdul
Wahab, mas que sua história pode ser traçada até os ancestrais (salaf). Quer dizer que, em sua adoção
da doutrina Wahhabi, eles queriam mostrar que eram os verdadeiros herdeiros e depositários do credo,
da doutrina e do caminho dos ancestrais em sua compreensão do Islã” (ABU-RABI, 2011, p. 38).
140
mesmas de nada servirão e não alcançarão o objetivo. As
missões precisam de certos meios para serem seguidas. [...]
Vocês não são uma organização de caridade, um partido
político ou um comitê ad hoc para propósitos específicos.
Vocês são uma nova vida que corre no coração da ummah
para avivá-la com o Alcorão; uma nova luz que brilha para
lançar a luz de Alá sobre a escuridão do materialismo... (ABURABI, 2011, p. 51).
Essas palavras selecionadas por Fathi Yakan 188 (in ABU-RABI) são de
Hassan al-Banna, chamado, na mesma obra, de um dos “pais fundadores do
islamismo”, ao lado de Sayyid Qutb (ABU-RABI, 2011, p. 20). Essa safra de
pensadores do Islã tem sido apontada em uníssono como os mentores do novo
islamismo fundamentalista. Demant (2004, pp. 204-219) acrescenta, ainda, o
nome de Abu al-Ala Mawdudi (1903-1979) enquadrando-os no que chama “a
primeira onda fundamentalista” datada entre 1967-1981. “Os principais
movimentos fundamentalistas sunitas atuais se inspiram na Irmandade
Muçulmana egípcia e no pensamento de seu principal ideólogo, Sayyid Qutb”
(Ibidem, p. 204). É no Egito que temos a montagem do cenário para o
surgimento da mãe de todos os modernos movimentos fundamentalistas, a
Irmandade Muçulmana. A ocupação britânica na região pressionou a
articulação de uma resistência e reação ao colonialismo e ao imperialismo. É a
Irmandade Muçulmana, fundada por al-Banna em 1928, o organismo que
defenderá o “radicalismo político [...] uma reação voluntariosa à crescente
ameaça estrangeira na Palestina então ocupada pelos britânicos” (AZEVEDO,
2008, p. 78). E não só a causa Palestina, uma vez que o islamismo de alBanna e Sayyid Qutb refletem as aspirações egípcias pan-arabistas 189
(DEMANT, 2004, p. 205). É de al-Banna a seguinte declaração: “O Islã é fé e
devoção, é um país e é cidadania, é uma religião e um Estado, é
188
Fathi Yakan (1933-2009) estabeleceu o movimento islâmico em Trípoli, Líbano, nos anos 1950 e
foi líder da Frente de Ação Islâmica naquele país. Pertence de modo geral à ideologia e ao pensamento
do Movimento da Irmandade Muçulmana.
189
Os pan-arabistas (Al-Qawmiyyun Al-‘Arabi), esquerdistas e islamistas não reconhecem a
legitimidade das fronteiras criadas artificialmente para separar esses Estados (ABU-RABI, 2011, p. 123).
141
espiritualidade e trabalho duro, é o Alcorão e a espada” (KAMEL, 2007, p.
186). 190 O Corão aí está; a terra também.
3.2 A Irmandade Muçulmana
Quando fundou a Irmandade, Hasan al-Banna tinha 22 anos de idade.
“Era respeitado professor formado pela Al-Azhar”, a prestigiada universidade
sunita 191 no Cairo – “ele próprio wahhabista (salafi)” (KAMEL, 2007, p. 185). 192
A obra que se tornou a espinha dorsal de sua ideologia é Carta a um estudante
muçulmano, escrita em 1935 (Ibidem). A Irmandade Muçulmana logo tomou
corpo e abrangência. Seis anos depois de sua criação, aplicou-se a ação
política e “depois de 1945, sofreu a sua mudança mais radical: aderiu à
violência e ao terror, praticando assassinatos políticos com o objetivo de
derrubar a monarquia egípcia” (KAMEL, 2007, p. 185).
Quando contava com “duas mil filiais, quinhentos mil militantes e o dobro
de simpatizantes” emergiu o novo modelo de ação, adotado posteriormente
pelo Hamas: passaram a investir em escolas, mesquitas, hospitais, fábricas
(Ibidem). A Irmandade proveu assistência mais ampla a uma população
190
Hasan al-Banna nasceu às margens do Nilo de uma família de relojoeiros. Sua biografia cita o fato
de que em tenra idade conseguiu decorar o Alcorão em sua plenitude tornando-se pregador nas
mesquitas ainda jovem. Graduou-se na Mesquita de al-Azhar aos 16 anos tornando-se professor
primário a seguir. Fundaria então a Irmandade ao escrever o livro Carta a um Estudante Muçulmano
(WEINBERG, 2007, p. 158). Para aprofundar os detalhes sobre al-Banna e os anos iniciais da Irmandade
Muçulmana, ver ainda KAMEL, p. 185ss e DEMANT, pp. 204-219.
191
Carranca dá uma indicação que ajuda a compreender como o Islã é recebido em diferentes
culturas. Quando explicam a natureza xiita do Irã, país por onde incursionaram, destaca que ao receber
o “Islã imposto pelos árabes, com a rica herança dos tempos pré-islâmicos, o xiismo adota uma visão
trágica da vida, enraizado no senso de martírio e sofrimento. Isso porque os persas já vinham de longa
experiência de assimilação de culturas estrangeiras, dando-lhes uma forma adequada às suas
inclinações, adotando certos preceitos e rejeitando outros. Assim, ao serem obrigados a abraçar a
crença de Mohammed, firmaram uma interpretação própria do Corão, mesclando-a às suas crenças
tradicionais” (CARRANCA, 2010, pp. 52,53).
192
As aspirações iniciais do movimento eram que a “Irmandade tem uma mensagem salafi, segue o
caminho dos sunitas [em oposição aos xiitas], é uma organização política, um grupo atlético, uma união
científica e cultural, um empreendimento econômico e uma ideia social” (KAMEL, 2007, p. 185).
142
carente, elaborou um novo raciocínio para o entendimento do jihad convocando
todos os crentes, “sem exceção, mulheres e crianças, inclusive” e com isso
ganhou solidez para avançar no mundo muçulmano com sua proposta de
islamizar o mundo, começando no seu próprio quintal. “A guerra defensiva
apenas por territórios perdidos ou ameaçados [...] passa também a ser a
defesa do islã como religião” cujo slogan é “a morte na luta por Deus é a nossa
grande esperança” (KAMEL, 2007, pp. 187,188). Em seu livro, Al-Banna
expressa claramente seus objetivos com a Irmandade Muçulmana: “Deus é o
nosso objetivo, o mensageiro é o nosso exemplo, o Alcorão é a nossa
Constituição, o jihad é o nosso método e o martírio é o nosso desejo” (Ibidem).
Lá estava o Corão.
Até mesmo Kamel parece incomodado com esta interpretação: “Não à
toa, o slogan da Irmandade Muçulmana desde o início foi: ‘Preparem-se para o
jihad e sejam amantes da morte’.” (Ibidem). Quando a Irmandade passou à
clandestinidade pelo governo egípcio de Nasser, em 1948, “al-Banna, com
apenas 43 anos, foi assassinado por agentes secretos [...] tornando-se um
mártir para os fanáticos e um exemplo a ser seguido”.
Naqueles dias, militantes costumavam marchar pelas ruas do
Cairo, gritando: “Nós não temos medo da morte; nós a
desejamos.” A frase com que a Al-Qaeda costuma terminar
suas declarações – “vocês amam a vida; nós, a morte” – vem
daí” (KAMEL, 2007, p. 189).
Sayyid Qutb, o “pensador fundamentalista mais importante” do período
(DEMANT, 2004, p. 205), sofreu forte impacto cultural do Ocidente quando
estudou na Califórnia entre 1948 e 1951. Qutb (pronuncia-se Kuh-tub)
“trabalhava no Ministério da Educação antes de ser enviado para os EUA para
inteirar-se dos métodos educacionais e dos currículos americanos” (KAMEL,
2007, p. 191). A experiência negativa diante da “sexualidade aberta da
sociedade ocidental”, a humilhação racista que sofreu e a “simpatia para com o
sionismo” (DEMANT, 2004, p. 205) não foram bem digeridas por Qutb:
143
Quando uma estudante universitária americana disse a ele que
o “problema do sexo não era ético, mas meramente biológico”,
ele concluiu que os americanos “eram primitivos nas suas vidas
sexuais” (STERN, 2004, p. 41).
Seus biógrafos dizem que [...] indispôs-se à liberdade feminina
observada na sociedade dos Estados Unidos e à vida espiritual
do americano (dizia que as igrejas eram “centros de
entretenimento e playgrounds sexuais”). [...] Critica com
veemência os encontros dançantes realizados nos salões
paroquiais da cidade e a violência que testemunhara em
esportes populares como luta marcial, boxe e futebol
americano (WEINBERG, 2007, p. 148).
A reação de tal ambiente causou em Qutb uma ebulição que
chamuscaria seus pares na obra Marcos Miliares (ou Sinalizações da
estrada): 193
Quando publicou Sinalizações da estrada, sua obra mais
conhecida e radical, considerada a bíblia do terror islâmico, foi
preso por pregar a derrubada do governo, por conspiração e
por traição. Julgado, foi enforcado em 1966 [...] O ódio ao
Ocidente, porém será a grande marca de sua obra (KAMEL,
2007, pp. 194,195).
Como
principal
ideólogo
do
movimento
da
Irmandade
Muçulmana no Egito nos anos 1940 e 1950, Sayyid Qutb
estava preocupado principalmente com o impacto do Ocidente
nas sociedades árabes e muçulmanas. Nas palavras de
Roxane Euben, “o pensamento político de Qutb é uma
acusação não apenas contra o imperialismo e o colonialismo
193
Escreveu um comentário de 32 volumes denominado Fi Zalal al-Koran (À Sombra do Alcorão)
tendo publicado uma porção sob título Ma’alim fi-l-Tariq (1964), constituindo-se num dos mais
importantes manifestos teológicos que influenciaram os grupos militarizados do Islã fundamentalista
(WEINBERG, 2007, pp. 148,149). Sua outra obra é Justiça Social e Islã (1949).
144
ocidentais, a corrupção dos regimes do Oriente Médio, o poder
secularista árabe, ou a modernidade per se, mas também
contra as formas modernas de soberania e a epistemologia
racionalista ocidental que as justifica” [In Enemy in the mirror:
islamic fundamentalism and the limits of western rationalism,
1999, p. 5 ] (ABU-RABI, 2011, p. 13).
Para Kamel, o resgate que Qutb fez do conceito de jahiliyyah 194 foi a
grande inovação na produção intelectual recente do Islã. A jahiliyyah refere-se
à posse pelo homem do atributo legítimo somente nas mãos de Deus, que é a
dominação sobre o outro. Quando o homem assume o poder e passa a
controlar sua vida e destino, caracteriza-se a pior rebeldia contra Deus e o
Ocidente estava, aos seus olhos, mergulhado neste pecado. 195 Ele então
escreveu como forma de prevenir os muçulmanos e para contra atacar a
cultura pagã que quer destruir o Islã (KAMEL, 2007, pp. 194,195).
Para Kamel, “Qutb superou Al-Banna” ao se tornar o principal articulador
do radicalismo islâmico: “Se antes a luta era para devolver ao Islã a sua forma
original e reunir todos os muçulmanos num só califado, depois de Qutb a meta
passou a ser a conversão de todo o mundo ao Islã, sem exceção” (KAMEL,
2007, p. 195). A jihad ganhou novo perfil com Qutb, para quem “todos os que
se opuserem à universalização do Islã devem ser combatidos” (Ibidem, p. 197).
Se al-Banna via o jihad como recurso para defender os territórios do Islã
contra o colonialismo e o imperialismo, Qutb não via proveito algum em
somente defender-se; era preciso avançar e espalhar o Islã por toda a Terra,
pois o jihad era mandamento de Deus para este fim. Então, ele reinterpretou a
Sura 2.190, que diz: “Combatei pela causa de Deus, aqueles que vos
combatem; porém, não os provoqueis, porque Deus não estima os agressores”
194
A ignorância da humanidade antes que o Corão fosse revelado ao mundo.
195
Nenhum sistema político ou poder material deveria impor obstáculos à forma de se pregar o Islã...
Caso alguém o faça, o Islã deverá lutar contra essa pessoa até sua morte ou até que se submeta. ...
Qualquer sistema no qual as decisões finais são deixadas ao ser humano, e no qual as fontes de toda
autoridade são humanas, deifica os seres humanos ao outorgar, não a Deus, mas a outros homens o
domínio sobre seus pares. Essa declaração significa que a autoridade usurpada de Deus terá que ser a
Ele restaurada e expulsa os usurpadores... (KAMEL, 2007, pp. 198,199, ênfase no original).
145
(KAMEL, 2007, p. 197). “Para que não deixe margem de dúvidas de que se
refere à guerra, Qutb busca refúgio na história dos profetas para dizer que só
pregação não basta” (Ibidem). Em seus estudos, Qutb alinhou-se também ao
religioso do século XIII, Ibn Taymiyya (1266-1328), que pregava a purificação
do Islã e se opunha a quase tudo que não fosse sancionado pelo Corão
(WEINBERG, 2007, p. 150). Tamiyya incentivava a guerra como legítima
quando feita contra um governo que não segue as regras da religião (KAMEL,
2007, p. 207) e assim aplicou-o “à própria sociedade muçulmana” (DEMANT, p.
209; STERN, 2004, p. 41).
Kamel evita o “politicamente correto”. Na sua leitura dos acontecimentos
envolvendo a questão dos judeus e cristãos com Muhammad no século VII,
Kamel destaca: “Somente uma leitura bastante heterodoxa poderia justificar,
por exemplo, o ódio que ele prega aos judeus e aos cristãos” (KAMEL, 2007, p.
202). É assim que Qutb relê o Profeta, assinalando que ele definiu obediência
como culto; e, neste sentido judeus e cristãos que não cultuam como os
muçulmanos não obedecem e “se igualam àqueles que associam outros a
Deus” (Ibidem, ênfase no original). É assim que “Qutb põe [...] judeus e cristãos
no mesmo nível que os idólatras e politeístas, a quem o Alcorão mandou, num
certo contexto histórico, punir com a morte” (Ibidem). Em sentido ampliado, a
convocação para a luta e o ódio fomentado por Bin Laden e a Al-Qaeda contra
judeus e cristãos, os novos “cruzados”, vêm daí (Ibidem).
Para que fique clara a influência recebida por Qutb, Peter Demant
aponta, ainda, para Mawdudi, pensador indiano ultraconservador que nas
décadas de 1940 e 1950 196 desenvolveu cinco princípios para uma teologia do
Islã: a antiapologia, o antiocidentalismo, o literalismo, a politização e o
universalismo (DEMANT, 2004, p. 206). Resumidamente, Mawdudi queria dizer
por antiapologia que o Islã não precisa ser defendido, porque deve estar clara e
196
Na década de 1940 Abd al-Qadir Awda escreveu uma comparação detalhada da legislação penal
da Sharia e a tradição jurídica francesa que foi e ainda é praticada no Egito [...] Sua geração de
pensadores muçulmanos – e isso inclui tais autores influentes como Sayyid Qutb, bem como Mawdudi –
formou o entendimento contemporâneo da Sharia como lei, onde os ditos individuais do Profeta
Muhammad coletados nos livros de hadith, bem como os versos individuais do Alcorão, são vistos quase
como se fossem parágrafos em um código civil muçulmano (GRIFFEL, 2007, p. 13).
146
explícita a suficiência e evidência de sua superioridade; por antiocidentalismo,
a rejeição ao humanismo e exaltação do ser humano, bem como todos os
traços característicos do Ocidente e sua cultura (popular ou científica)
iluminista; por literalismo, 197 a tomada primordial do Corão ao pé da letra; as
tentativas
de
amenizar
“versículos
difíceis”
são
ridicularizadas
pelos
fundamentalistas; por politização, o novo engajamento nas questões temporais
sem apagar a chama espiritual e, por fim, o universalismo: “como ele tem valor
universal, o islã precisa ser imposto a toda a humanidade” (Ibidem, pp.
206,208).
Weinberg vê como argumento-chave da interpretação de Mawdudi que
“a história era uma luta permanente entre o Islã e a ‘ignorância’.” (WEINBERG,
2007, p. 165). 198 Com a dedicação de seus fiéis, os seguidores fariam o Islã
prevalecer. O Estado islâmico resultaria do esforço dos piedosos que
transformariam a sociedade desde dentro, desde suas próprias entranhas.
Falando sobre os critérios de aplicação da Sharia a desmandos de um
governante corrupto, Youssef Cherem traz comentário que revela muito sobre
os critérios (ou falta deles) na interpretação do Corão:
O pensamento árabe, e, particularmente, sunita, coloca-se
diante de um dilema entre a normatividade absoluta e revelada,
a segurança, estabilidade, clareza e ordem perfeita que o “mito
da sharī’a como sistema de valores e normas transcendentes
lhe garante, e o mundo falível das inevitáveis interpretações
desse corpus sagrado por seres humanos. Qual é o limite,
então, da sharī’a, e qual o papel da interpretação? Ou, em
197
“Acreditava-se erroneamente que os fundamentalistas islâmicos pregavam o retorno do islã à
literalidade do Alcorão. Foi um equívoco. Não existe texto mais metafórico do que o Alcorão, cheio de
simbolismos. Não se presta a uma leitura literal [...] cientes de que, diante da revelação escrita,
interpretações múltiplas são possíveis, depois de interpretá-las de uma maneira radical, o que eles
fazem é decretar que a visão deles é a única possível” (KAMEL, 2007, pp. 172,173).
198
“Tal filosofia provocaria ampla reação dos círculos conservadores e liberais do Islã. Os primeiros
afirmam que ele interpretou de forma equivocada passagens do Islã. Os segundos afirmam que as
fontes de inspiração de sua doutrina política são na verdade Stalin, Mussolini e Hitler. Dizem que era um
extremista e uma das fontes do atual fenômeno do terrorismo” (WEINBERG, 2007, p. 165, nota no 20).
147
outros termos, onde acaba o sagrado e começa o profano?
Infelizmente, os pensadores muçulmanos ainda não se
debruçaram sobre a questão da hermenêutica religiosa do
ponto de vista da falibilidade humana. A imperfeição do
intérprete não é considerada quando se fala em “aplicação da
sharī’a”. Parece que se presume que o intérprete é “virtuoso”, e
que qualquer erro é desculpado pelas suas intenções. Mas
nem mesmo quem é esse “intérprete” é definido (CHEREM, pp.
166,167).
Esse é, a meu ver, o duto que transporta o conteúdo de um momento
histórico (a península arábica do século VII) para o mundo presente, para a era
moderna, com as letras e situações do passado para as situações e conflitos
presentes: o literalismo na hermenêutica. E mais, promove a fusão de
conteúdos devocionais e morais a campos que reivindicam legislação de outra
natureza e mesmo intervenção de instituições internacionais, se focarmos os
conflitos na Palestina, especificamente.
A leitura corânica e da tradição islâmica que apontam para o Ocidente
sob ação do mal; a proposta da ummah como ideal divino, que foi modelar na
comunidade do Profeta; a rejeição da modernidade e da educação que irá
expor as mazelas da comunidade e do próprio texto corânico, são fatores que,
somados, apontarão para uma justificativa à formação de grupos defensores da
ordem, da tradição e do sagrado.
Pegando carona na obra de Lewis em What Went Wrong? Weinberg diz
que
Os muçulmanos deveriam perguntar não só o que ‘fizemos de
errado’, referindo-se ao ocidente, mas também ‘o que eles
fizeram de certo’. [...] Ou seja, corre o argumento de que os
muçulmanos, especialmente os mais devotos, deveriam
finalmente alterar em alguma medida seus mapas mentais o
que lhes permitiria evitar os argumentos escapistas aos quais
estão acostumados e que buscam bodes expiatórios externos
para
explicar
seus
próprios
problemas
e
fracassos
(WEINBERG, 2007, p. 216).
148
Ao atribuir malignidade ao Ocidente e à democracia, uma vez que são
construções humanas e, portanto, contrárias ao plano de Allah, o pano de
fundo defeituoso fica estendido e o cenário preparado para justificar ações
violentas. Weinberg (2007) registra que Christopher Hitchens fez associação
entre a aproximação de pensadores fundamentalistas influenciados pelo
fascismo a ideias de teocracia islâmica:
É o caso de Sayyd Qutub que em sua obra cita insistentemente
Aléxis Carrel, francês Nobel de Fisiologia da Medicina em 1912
[...] No seu livro L'Homme, cet inconnu desenvolve ideias
antissemitas e próximas do fascismo argumentando que a
humanidade caminharia melhor se impusesse um regime de
eugenia forçada e se deixasse governar por um grupo de elite
formado por intelectuais (WEINBERG, 2007, pp. 100,101). 199
Qutb resumiu as influências que recebeu e as organizou num tripé a sua
ideologia: 1. expressamente antiocidental; 2. Observação do mundo novamente
numa jahiliyya e 3. a necessidade da aplicação da sharia, uma vez que “o
dever do fiel é criar uma ordem justa que se baseia na lei de Deus” (DEMANT,
2004, pp. 209-211). “Legitimava-se, em termos islâmicos, o tiranocídio.
Adotando o precedente medieval de Ibn Taimiyya, Qutb chegou a um programa
radical de restauração do islã original” (Ibidem, p. 212).
Se o entrave ao desenvolvimento em um ponto da História foi atribuído
aos mongóis, provocando atraso econômico e deficiência na geração de
emprego e renda, avanços nos campos da educação e da ciência, respeito
pelos direitos humanos e uma política com diálogo mais amplo e aberto, agora
os inimigos do Islã são outros: “ora as nações falsamente islâmicas, ora os
199
Em nota, Weinberg diz que “Carrel tem servido de fonte e referência também a movimentos de
tonalidade fascista não-islâmica como é o caso do liderado pelo político francês Le Pen. [...] A
convergência de ideias entre grupos fascistas e islamistas foi documentado por Marc Erickson.
[Islamism, fascismo and terrorismo, Asia Times, 5 de novembro de 2002. Disponível em
http://www.atimes.com/atimes/Others/islamism-fascism-terrorism.html em 28.01.2014] (WEINBERG,
2007, pp. 100,101).
149
judeus, ora ainda os novos imperialistas. Aparentemente, para estes círculos
da ortodoxia islâmica, sempre haverá um bode expiatório à disposição”
(WEINBERG, 2007, P. 217). 200
3.3 Da Irmandade Muçulmana ao Hamas: pensamento e ação social
A
sociedade
palestina
se
caracterizou
por
uma
religiosidade
predominante (muçulmanos e cristãos, HROUB, 2009, p. 107) a despeito da
resistência à colonização israelense ser realizada pelo “partido nacionalista
Fatah e partidos à sua esquerda expressamente secularistas – isso até o
estabelecimento do Hamas” (DEMANT, 2004, p. 216).
Quando Israel foi declarado oficialmente Estado, em 1948, a Irmandade
Muçulmana estendeu-se fisicamente para os territórios da Cisjordânia, anexado
à Jordânia, onde o movimento juntou-se a uma ramificação própria naquele
país, e para a Faixa de Gaza, sendo encabeçada pela liderança egípcia
(HROUB, 2009, p. 35). Yousef registra que essa ramificação se deu com
antecedência de treze anos:
Em 1935, o irmão de al-Banna fundou uma divisão da
sociedade nos territórios palestinos. [...] De acordo com o
Alcorão,
quando
um
inimigo
invade
qualquer
território
muçulmano, todos os seguidores do islamismo são convocados
a lutar e defender sua terra (YOUSEF, 2010, p. 24).
Mas Ismail Abu Shanab, um dos líderes do Hamas e presidente da
Sociedade de Engenheiros de Gaza recua a data alegando que “a causa
palestina deve ser entendida desde sua origem [...] Ela começou em 1917, ou
200
Para reforçar o seu argumento, o autor menciona o seguinte: “Os países árabes ficam atrás do
oeste e extremo oriente em todos os indicadores industriais e produção manufatureira, criação de
empregos, tecnologia, alfabetização, expectativa de vida, desenvolvimento humano, e vitalidade
intelectual. Em número de linhas telefônicas, a nação mais desenvolvida era União Árabe Unida,
posicionada em 33º lugar” (WEINBERG, 2007, p. 217).
150
até antes, e continuou quando os judeus desalojaram os palestinos de suas
casas em 1948” (STERN, 2004, p. 35). 201
A ocupação dos territórios palestinos por exército e colonos israelenses
é um drama para a vida de milhares de famílias. Guila Flint diz que no período
correspondente à pesquisa, somente na Faixa de Gaza viviam 1 milhão de
palestinos e 5 mil colonos israelenses que controlavam 30% das terras e 40%
das fontes de água. “Grande parte das reservas subterrâneas de água é
canalizada para os assentamentos e para o território de Israel [...] Segundo
dados da ONG Law and Water 35%, da água consumida em Israel provém de
fontes na Cisjordânia (FLINT, 2009, p. 56).
A liderança dos colonos está nas mãos do setor ideológico.
Movidos por uma visão nacionalista-religiosa, os colonos
militantes acreditam que a chamada Terra de Israel bíblica
pertence exclusivamente ao povo judeu e que os palestinos
são intrusos nesses territórios (Ibidem, p. 137).
Ela relata, ainda, a existência de “generosos subsídios do governo para
a moradia nos territórios ocupados” e que “aos colonos são oferecidos
empréstimos muitos favoráveis e isenção de impostos”. Como se isso não
bastasse, “os assentamentos cercam as áreas palestinas, impedindo qualquer
crescimento das cidades e aldeias palestinas” (FLINT, 2009, p. 138).
No filme-documentário Cinco Câmeras Quebradas 202 há depoimentos
sobre a interferência israelense nas propriedades palestinas, dividindo-as ao
meio pela construção do Muro, a partir de 29 de março de 2002, quando
famílias foram separadas, perdendo o espaço da moradia em terrenos
201
Abu Shanab alega que a “ocupação que é proibida por lei internacional”, o que Stern rebate com
a nota 14, que diz: “Segundo sir Adam Roberts, catedrático de relações internacionais na universidade
de Oxford, o que é ilegal não é a ocupação em si, mas as atividades de Israel como potência de
ocupação” (Ibidem).
202
Les Cinqs Câmeras Brisées, França, 2011, foi filmado por Emad Bornat, morador de Bil’In, uma vila
na Cisjordânia. O documentário mostra os protestos dos palestinos contra a construção de
assentamentos israelenses em sua terra e especialmente sua luta contra a construção do Muro (ao qual
Israel chama de cerca) que separa seus territórios dos territórios israelenses.
151
cultivados para seu sustento, muitos com uma cultura realizada há décadas.
Mostra também colonos que ateiam fogo a oliveiras, base de sustentação da
agricultura e parte da economia palestina. Almira Hass, do Haaretz, dá conta
de que mais de 1.358 oliveiras foram queimadas ou destruídas na Cisjordânia,
de 11 de setembro a 8 de outubro de 2013 (menos de um mês). 203
Após o início da construção do muro, tropas israelenses invadiram
(abril/2000) Ramallah. Mais de 200 palestinos foram mortos e milhares foram
feridos; 1.400 casas foram destruídas. As tropas invadiram ONGs, ministérios,
institutos culturais, hospitais, farmácias, supermercados, escolas e bancos.
Tudo foi estourado, móveis destruídos, documentos e arquivos confiscados.
Pesquisas e coletas de dados sobre 3,5 milhões de palestinos foram perdidos.
Relatórios, exames médicos, fichas de doentes (FLINT, 2009, p. 183).
Jamal Salman (diretor-geral da Prefeitura de Belém) diz que as
restrições impostas pelo exército israelense “provocam uma intensa frustração.
E a frustração é a semente da violência” (FLINT, 2009, p. 215). Sobre o muro,
acrescenta: “A segurança é só o pretexto. O objetivo é verdadeiro é confiscar
mais terras dos palestinos e criar fatos consumados nessa área, pois a cerca
não passa na linha verde (fronteira original entre Israel e a Cisjordânia) (Ibidem,
p. 218). Outro resultado da construção do muro é o aperto econômico.
Somente um palestino, Hassan Harouf, 42, perdeu 80 mil dos 93 mil metros
quadrados com o confisco de suas terras (Id., p. 219).
A atividade mineradora também causa prejuízos ao povo palestino, já
que as pedreiras israelenses transportam anualmente nove dos 12 milhões de
toneladas da pedra palestina destinadas à construção civil. “Os três milhões
restantes são usados pelo setor de construção palestino e também para
construir assentamentos israelenses na Cisjordânia” (FLINT, 2009, p. 438). 204
203
HASS, A. Israeli attacks on Palestinian olive groves kept top secret by state. Disponível em
http://www.haaretz.com/news/diplomacy-defense/.premium-1.554690 acessado em 28.10.13.
204
20% da pedra usada na construção civil em Israel são retirados da Cisjordânia. O advogado da
Yesh Din (organização de direitos humanos em Israel), Michael Sfard, diz: “Israel terá de pagar uma
indenização pela retirada desses recursos naturais, da mesma maneira que indenizou o Egito pelo
petróleo que extraiu do Sinai” (FLINT, 2009, p. 438).
152
Na Faixa de Gaza, o exército de Israel chegou a colocar seus caças
supersônicos voando as baixas altitudes sobre regiões residenciais provocando
danos à saúde, especialmente a das crianças. Elas entram em estado de
ansiedade e pânico, perdem apetite e capacidade de se concentrar nos
estudos, têm medo de se distanciar dos pais e de ir à escola, não conseguem
dormir à noite. Sentem-se desorientadas (FLINT, 2009, p. 264).
Os habitantes de Gaza pediram 9 mil aparelhos de audição
para crianças [...] que ficaram surdas em decorrência do
barulho contínuo de explosões e choques ultrassônicos
causados
por
caças
israelenses
que
sobrevoaram
frequentemente a região (FLINT, 2009, p. 391).
Flint também fala da “arma fedorenta” desenvolvida pelo Exército de
Israel: um líquido lançado pelo “gambá”, que “é pior que cheiro de esgoto e não
sai das roupas, mesmo após a lavagem [...] tem um cheiro horrível, parece de
cadáver” (FLINT, 2009, p. 384).
Mapa 1. Imagem de satélite manipulada traz o território da Faixa de Gaza (imagem original do Google
Maps).
153
Este cenário caótico é, em certa medida, a razão do sucesso do Hamas
no “trabalho social realizado nas camadas menos favorecidas”, como explica
Hroub (2009, p. 102). O empobrecimento (e o sofrimento) da sociedade
palestina, especialmente em Gaza é, em parte, amenizado pelas ações do
Hamas, através de “poderosas e abrangentes redes de caridade – mesquitas,
sindicatos, escolas, clubes esportivos” (Ibidem), por onde os recursos vindos
da ajuda de países árabes chega à população. Somente durante a segunda
Intifada (2000 a 2005) o desemprego subiu para uma taxa de 75% em alguns
setores, o que elevou a percentual de palestinos situados abaixo da linha da
pobreza, para cerca de 65% (CHEN, 2012, p. 114).
“A maioria dos palestinos vê a violência como sua única opção para
atingir seu objetivo de independência” (BLOOM, 2004, p. 69).
O Hamas ficou conhecido por dar uma ajuda mensal até
mesmo àqueles que trabalharam para a Autoridade Palestina
sob o controle do Fatah quando se considerava que a renda
destes estivesse abaixo da linha da pobreza (HROUB, 2009,
pp. 102,103).
Os recursos administrados pelo Hamas vêm de países como a Arábia
Saudita, a maior fonte, e dos palestinos que moram lá; do Iraque, dos Estados
Unidos, do Qatar, do Kwait, dos Emirados Árabes Unidos; mas não diretamente
dos governos, vêm de “Organizações não-governamentais [...] de forma que os
governos não podem ser acusados” (STERN, 2004, pp. 44,179; KAMEL, 2007,
p. 223).
O único governo que fornece fundos diretamente ao Hamas é o
do Irã, nos disse o general. Emad al-Alami, funcionário
graduado do Hamas, mantém os contatos entre o Hamas e o
Irã. [...] Diz-se que o Irã fornece de US$ 20 a 30 milhões por
ano ao Hamas (STERN, 2004, p. 44).
Entre 2003 e 2004, pressionada pelos Estados Unidos e Israel, a
Autoridade Palestina reprimiu as “atividades beneficentes do Hamas, incluindo
154
o congelamento de contas bancárias de 12 instituições de caridade na
Cisjordânia e 38 na Faixa de Gaza” (HROUB, 2009, p. 104).
Israel continuamente empenhou-se por enfraquecer ou dissipar as
“organizações de trabalho social do Hamas na Faixa de Gaza e na
Cisjordânia,” alegando que elas “canalizam fundos para suas atividades
militares”. O resultado foram mais de 150 mil pessoas diretamente afetadas por
esse contingenciamento (HROUB, 2009, p. 103). Além de “contribuir
consideravelmente com serviços sociais e auxílio a milhares de famílias na
miséria”, a presença e o modelo social do Movimento, diz o próprio Hamas,
“ajudou a reduzir certos fenômenos negativos na sociedade palestina, tais
como o uso de drogas” (HROUB, 2009, p. 107)
O seguinte quadro procura possíveis relações entre alguma mudança no
cenário político, social ou econômico, a partir de ações de Israel (ou entre os
acordos de paz), com os ataques do Hamas a alvos israelenses. Em outras
palavras, a tentativa é identificar se os ataques do Hamas são “reativos”, mais
do que “proativos”, em que os ataques são provocados por frustração ou
decepção nos avanços das negociações de paz, queda no nível de poder
aquisitivo ou empobrecimento radical ou reação contra a ocupação de território
palestino por forças ou colonização israelense.
QUADRO 1 – ATAQUES DO HAMAS DE 1990 A 2006 205
ANO
MÊS
ATAQUES
1990
Dez
2
3
1
1991
Abr
3
1
13
1992
Fev
1
0
1
Abr
1
1
0
205
MORTOS FERIDOS
OCORRÊNCIA*
Tabela elaborada a partir dos dados de National Consortium for the Study of Terrorism and
Responses to Terrorism (START), Global Terrorism Database [Data file] (2012), disponível em
http://www.start.umd.edu/gtd; Robert Pape (2003); Guila Flint (2009) e Khaled Hroub (2009).
155
# 206 16
Mai
3
2
1
Jun
4
7
2
Ago
1
1
0
Set
3
2
1
Out
1
1
0
Dez
2
2
2
13 de setembro de 1993: Assinatura do Acordo de Oslo
1994
#41
1995
#6
1996
#11
206
207
Jan
8
6
14
Houve ataques todos os meses. 207
Fev
4
4
2
Tentativa
Mar
2
-
1
israelenses (PAPE, 2003, p. 343,349)
Abr
6
10
56
Fracasso do Acordo de Oslo 208.
Mai
2
4
1
Massacre na mesquita em Hebron
Jun
1
0
2
(HROUB, p. 19). 209
Jul
2
2
0
Assentamentos quase dobram de 94-
Ago
5
3
10
97 (PAPE, p. 352; HROUB, p. 79)
Set
2
3
1
Out
4
32
58
De out/94 a ago/95: 7 ataques
Nov
2
2
0
contra Israel, com Jihad Islâmica
Dez
3
1
15
(PAPE, 2003, p. 354)
Jan
1
1
1
Campanhas neste ano e anterior são
Abr
2
9
33
tentativas de concessão de território
Jul
1
7
32
(PAPE, p. 352) que espera acelerar as
Ago
1
6
100
negociações com OLP (PAPE, 2003,
Set
1
2
0
348)
Jan
3
3
1
As 4 campanhas de retaliação são
Fev
3
29
89
pela morte de um líder do Hamas.
Mar
4
33
114
de
expulsar
forças
#: Total de ataques no ano.
Dia 13.9.1993: Assinatura do Acordo de Oslo. Ataques neste ano e em 1995 são por concessões
territoriais (PAPE, 2003, p. 352).
208
Houve dois ataques, em 6 e 13 de abril porque Israel não retirou suas tropas de Gaza e
Cisjordânia no prazo de 13.12.93 a 13.04.94.
209
Primeiro ataque com homem-bomba, cf. Pape. O massacre ocorrido em Hebron ocorrido em
24.02.1994 matou 29 pessoas que oravam na mesquita e feriu outras.
156
Abr
1
1
0
1997
Mar
1
4
47
#2
Jul
1
15
170
1998
Mar
1
2
0
Hamas se manifesta contrário ao
Jul
1
0
1
Acordo de Paz.
Set
2
3
0
Out
2
2
65
Nov
1
2
21
1999
Fev
1
0
1
#4
Ago
3
1
2
2000
Dez
1
1
3
29.09: Início da Segunda Intifada
2001
Jan
3
3
1
4 meses depois da Intifada 210
Fev
2
11
17
Os
Mar
5
9
71
relacionados aos fracassos na cúpula
Abr
2
2
50
de Camp David (ABU-RABI, 2011, p.
Mai
2
-
-
Jun
2
24
101
Jul
1
0
0
Ago
2
17
140
Pela retirada das tropas israelenses
Set
2
6
58
(PAPE, 350) e colonos (FLINT, p. 137)
Out
2
5
14
16 dos 35 ataques do Hamas em
Nov
4
7
7
Gaza/Cisjordânia: contra o bloqueio.
Dez
8
44
268
Prejuízos (FLINT, p. 129)
Jan
2
7
25
Tomada de terras em Belém (FLINT,
Fev
3
13
5
pp. 160-3)
Mar
5
47
134
Abr
1
3
0
Mai
6
41
146
#7
# 35
2002
# 33
210
ataques
do
período
estão
127)
Até 2001, busca de autodeterminação (PAPE, 2003, p. 344)
29.03: Início da construção do
Muro 211
02.04: invasão da Prefeitura de
A ONU informou que de outubro de 2000 a março de 2001, 575 prédios residenciais foram
totalmente destruídos, 3.700 prédios residenciais foram seriamente danificados, 181 mil árvores foram
derrubadas pelo Exército e quase 3,7 milhões de metros quadrados de áreas agrícolas cultivadas foram
destruídas (FLINT, 2009, p. 129).
211
FLINT, 2009, p. 182.
157
2003
# 36
2004
# 14
2005
# 17
2006
# 26
212
Jun
5
35
92
Belém. 212 Mais de 200 palestinos
Jul
2
14
96
mortos
Ago
6
25
131
Objetivo de concluir 1ª fase de
Set
1
6
50
125km de muro (FLINT, 2009, p. 218)
Nov
2
15
49
Jan
3
4
2
Eleições em Israel (FLINT, p. 193).
Fev
4
4
4
Início da Guerra no Iraque (p. 196)
Mar
10
21
63
Frustração com a permanente
Abr
4
3
3
ocupação de Belém (FLINT, p. 208)
Mai
8
13
34
Muro
Jun
2
24
79
frustração (FLINT, p. 201ss)
Ago
1
19
100
9 novos assentamentos (FLINT, p.
Set
2
14
54
205), 63 desde a eleição de Sharon
Dez
1
0
2
Jan
2
16
57
Mudanças na composição política de
Mar
2
6
20
Israel;
Abr
4
2
9
possibilidade de retirada de tropas
Jun
2
3
5
em Gaza. Hamas muda o tom: quer
Ago
2
0
2
parcela de participação política na
Set
1
2
7
OLP (FLINT, pp. 238,239)
Nov
1
0
0
Morte de Arafat (FLINT, p. 235)
Jan
12
12
15
Eleições palestinas (FLINT, p. 243)
Fev
1
0
0
Hamas se fortalece nas eleições
Abr
2
0
0
(FLINT, p. 250)
Mai
1
1
0
Estrondos supersônicos sobre Gaza
Jun
1
0
3
em novembro (FLINT, p. 263-4)
Jan
1
0
5
Hamas vence as eleições (FLINT,
Mai
1
0
2
2009,
Jun
2
6
4
internacional (Id, p. 283)
Jul
5
0
0
Corte de gastos públicos 213
aumenta
entrada
p.
14).
isolamento
dos
e
trabalhistas;
Corte
de
ajuda
FLINT, 2009, pp. 183,187,189,190.
158
Nov
5
0
6
Aumento de execuções extrajudiciais
Dez
7
6
13
de palestinos (FLINT, 2009, p. 304)
248
698
2805
TOTAL
Mas há outras versões ou o outro lado da história, vinda dos palestinos.
Por exemplo, a da escritora egípcia, criada em Gaza, Nonie Darwish, que hoje
promove
a
reconciliação
entre
árabes
e
judeus,
através
do
site
www.arabsforisrael.com. Segundo a sua visão, terrorismo é resultado direto da
cultura islâmica radical que está florescendo em todo o mundo árabe está
sendo promovido pela mídia árabe, governos, sistema educacional e líderes
religiosos. Ela diz:
Os terroristas recebem campos de treinamento, dinheiro e
respeito por fazerem o trabalho de Deus que é a Jihad. Os
árabes entendem que não podem vencer a guerra contra o
ocidente. O que eles podem fazer é doutrinar uma geração
após a outra ao martírio. Sua arma secreta é a raiva e o rancor
da rua árabe (WEINBERG, 2007, p. 186).
Nasra Hassan confirma o modelo adotado:
Em bairros palestinos, pássaros verdes dos bombardeiros
suicidas aparecem em cartazes e em grafite – a linguagem da
rua. Calendários são ilustrados com o “mártir do mês.” Pinturas
glorificam os terroristas mortos no Paraíso e triunfante debaixo
de um bando de pássaros verdes. Este símbolo é baseado em
um dito do Profeta Muhammad, que a alma de um mártir é
dedicada a Deus no seio dos pássaros verdes do Paraíso. As
crianças que não sabem ler entoam os nomes dos heróis e
fazem o sinal islâmico da vitória, punho cerrado com o
213
Flint (2009, p. 300) reporta “paralisia na economia palestina” em função do corte da ajuda
internacional a Palestina após a eleição do Hamas. 1 milhão de palestinos vivem diretamente e 1 milhão
indiretamente de salários do setor público. O corte da ajuda internacional afetou de salários a hospitais.
159
indicador direito (HASSAN, 2014, pp. 36-41; ver também
STERN, 2004, p. 54ss).
Com a missão de “lutar e defender a terra” considerada de propriedade
dos muçulmanos, a Irmandade serviu de incubadora para alguns movimentos
importantes na região. Um deles, o Fatah, 214 foi precursor da Organização para
a Libertação da Palestina, a OLP.
No final da década de 1930, oficiais moços e menos graduados
do Exército egípcio, inclusive os filiados à irmandade,
estabeleceram contatos com a Alemanha Nazista. Apesar de a
irmandade ter começado como uma organização cultural e de
caridade, logo ganhou uma ala paramilitar, que adotou lemas e
práticas fascistas (STERN, 2004, p. 40).
3.4 Mais um lado cruel
A ramificação palestina da Irmandade reorganizou seus objetivos para o
território, estabelecendo o Movimento de Resistência Islâmica Harakat alMuqawwama al-Islamiyya, o Hamas, com a finalidade de “combater a
ocupação israelense” (HROUB, 2009, p. 36), isso na véspera da Segunda
Intifada. 215 Hamas, que em árabe significa “fervor” (KALOUT, 2006, p. 8) 216
começou como Movimento criado no final da década de 1980 e na ocasião da
Primeira Intifada foi além dos propósitos de libertar os territórios ocupados e
resistir à opressão israelense. Contrariando muitos dos relatos históricos
214
Al Fatah, fundado no início dos anos 1960 por Yasser Arafat.
215
Em 9 de dezembro de 1987, os palestinos iniciaram a Intifada, levante popular contra a ocupação
israelense. A Intifada durou seis anos, até a assinatura do Acordo de Oslo, em 1993. Morreram naqueles
confrontos 1.500 palestinos e 230 israelenses. A segunda Intifada teve início em setembro de 2000. A
versão oficial dá conta que isso aconteceu após o colapso de Camp David entre o primeiro-ministro
israelense Ehud Barak e o presidente da ANP Yasser Arafat. Uma das principais questões na qual as
negociações falharam foi a mesquita de Al-Aqsa. Foi precisamente por isso que Ariel Sharon, então na
oposição, realizou uma “exibição de força” ali, provocando este segundo levante palestino.
216
Hussein Ali Kalout é Professor de Relações Internacionais do Instituto de Educação Superior de
Brasília (IESB) e especialista em Oriente Médio.
160
existentes, apenas sete homens participaram da reunião em Hebron a qual
marcou, ao menos afetivamente, o início do Hamas. Seus nomes são: “o
xeique Ahmed Yassin, que se tornaria o líder espiritual da nova organização;
Muhammad Jamal al-Natsheh, de Hebron; Jamal Mansour, de Nabulus; o
xeique Hassan Yousef; Mahmud Muslih, de Ramallah; Jamil Hamami, de
Jerusalém e Ayman Abu Taha, de Gaza” (YOUSEF, 2010, p. 35).
“A liderança política é a principal autoridade do Hamas. Todas as outras
alas e braços estão sujeitos à estratégia e às pautas traçadas pelo Conselho
Consultivo e pela Agência Política (AP) do Hamas”, sendo que os membros de
uma ala, a política, nada sabem sobre as decisões da outra, a militar. Nem
mesmo lugares e datas dos ataques são divulgados ou compartilhados
(HROUB, 2009, pp. 161,162). O Hamas tem o seu próprio braço militar, as
Brigadas Ezzedden Al-Qassam, liderada por Imad Akel 217 (YOUSEF, 2010, p.
63) além da organização administrativa e dos tentáculos que recrutam
“voluntários” para a “causa”. No caso, o voluntariado é feito por um mecanismo
específico e a causa é a bandeira religiosa que embrulha uma ideologia
gananciosa por poder, influência e dinheiro (STERN, 2004, pp. xviii,5).
A entrevista que Stern fez com o general-brigadeiro Nizar Amar, da
segurança Geral Palestina, é reveladora. “Moço, muitas vezes adolescentes.
Mentalmente imaturo. Há pressão para que ele trabalhe. Ele não consegue
emprego.” Não há alternativa, nem mesmo no exército da Autoridade Palestina,
nem nos exércitos de Arafat (quando estava vivo), e o moço não tem “vitamina
w” 218 (STERN, 2004, pp. 44,45). Ele não tem dinheiro para divertir-se, casar-se
não é alternativa, pois é caro. Sua vida não tem sentido e a única alternativa é
procurar refúgio em Deus. Ele vai à mesquita. Ele começa a orar com mais
frequência às cinco orações do Islã e comparece até nas orações das quatro
horas da madrugada, o que não é feito pelo muçulmano comum (Ibidem, p. 45).
“Os membros do Hamas estão lá e notam seu olhar aflito, preocupado e
deprimido, e que ele vem todos os dias. É uma sociedade pequena. Todos se
217
“Mais novo de três irmãos, Akel estudara para ser farmacêutico quando se sentiu farto de tanta
injustiça e frustração. Pegou uma arma, matou vários soldados israelenses e tomou seus fuzis. À medida
que ganhava seguidores, sua influência aumentava” (YOUSEF, 2010, p. 62).
218
De wasta, expressão árabe para indicar o que no Brasil chamamos “apadrinhamento”.
161
conhecem, Eles investigarão e descobrirão tudo sobre ele. Gradualmente, o
recrutamento começa” (Ibidem). “Ele se tornará um mártir 219 e o Hamas doará
à sua família US$ 5.000,00, farinha de trigo, açúcar, outros mantimentos
básicos e roupas 220 [...] A condição para viabilizar isso: não contar a ninguém!”
(Ibidem). 221 “Nas ruas de Gaza [...] as crianças têm uma brincadeira chamada
shuhada, que inclui uma simulação de um enterro de um terrorista suicida
(STERN, 2004, p. 47).
As entrevistas feitas entre 1996-1999 com mais de 250 pessoas
envolvidas na militância palestina, por Nasra Hassan, revelam mais detalhes do
ritual do mártir. Quero me deter em alguns poucos apenas, os que conectam o
aspecto religioso do procedimento.
Ela acompanhou três membros do Hamas que se preparavam para “partir
para o combate” [...] “pouco antes da meia-noite no dia 30 de junho de 1993”
(HASSAN, 2014). “Sentaram-se em seu esconderijo, uma caverna nas colinas
perto de Hebron, e começaram a recitar o Alcorão” (Ibidem).
Ao amanhecer, quando os homens ouviram a chamada de
manhã para a oração de uma mesquita na aldeia abaixo, eles
se ajoelharam e proferiram a invocação tradicional a Alá que os
guerreiros muçulmanos fazem antes de partir para o combate.
Eles colocaram roupas limpas, colocaram o Alcorão em seus
bolsos e começaram a longa caminhada (Ibidem).
219
Em árabe, shaheed, mártir, herói.
220
Na nota 51 ela comenta sobre a promessa das 72 virgens: “[...] entre as quais se costumam incluir
72 virgens, vem sendo posta em dúvida. Christoph Luzemberg, em The Syro-Aramaic Reading of the
Koran, argumenta que a palavra hur (‘passa branca’, uma iguaria no Oriente Médio antigo) foi
erroneamente interpretada como houri (virgens). A tradição islâmica afirma que a tradução correta é
‘virgens’, embora a palavra nos textos mais antigos seja hur. As ambiguidades no texto são, em parte,
causadas pela ausência de vogais e sinais diacríticos” (STERN, 2004).
221
Em nota no 49, ela registra texto de McGeary & Van Bierna, que diz: “Um membro do aparato de
segurança israelense disse a Lelyveld: ‘hoje em dia, eles não encontram problema para recrutar suicidas.
Para cada suicida que querem, há cinco, sete, dez voluntários’.” (STERN, 2004, p. 46).
162
Um dos jovens, que recentemente completou vinte e sete anos, foi
interrogado sobre quando e por que decidiu oferecer-se para o martírio, e
descobriu que havia sido na “época dos acordos de Oslo”. O jovem revelou que
a sensação quando se recebe o convite para uma missão é de segurança
semelhante a de um “muro impenetrável” que garante a ida para o paraíso:
“Então, pressionando o detonador, você pode abrir a porta imediatamente para
o Paraíso: é o caminho mais curto para o céu.”. Na casa dele, Hassan conta ter
visto versículos do Corão impressos na parede da sala (HASSAN, 2014). Esse
jovem “foi um dos onze filhos de uma família de classe média que, em 1948,
tinham sido forçados a fugir de Majdal a um campo de refugiados em Gaza,
durante a guerra árabe-israelense” (Ibidem).
Nasra Hassan traçou o perfil médio dos voluntários, que não se refere ao
que fazem como “suicídio”, que é proibido no Islã. O termo preferido é
“explosões sagradas” (HASSAN, 2014) ou martírio (CHEN, 2012, p. 107.
Também afirmaram não agir por vingança, "Se só isso motiva o candidato, o
seu martírio não será aceitável a Deus”. A causa é estritamente militar: “não é a
amargura de um indivíduo que comanda uma operação. Honra e dignidade são
muito
importantes
na
nossa
cultura.
E
quando
somos
humilhados,
respondemos com ira” (Ibidem).
Quadro 2: PERFIL SÓCIOCULTURAL DOS VOLUNTÁRIOS AO MARTÍRIO
– tinham idades entre 18-38 anos
– nenhum tinha o perfil típico da personalidade suicida
– nenhum deles era ignorante, desesperadamente pobre, simplório ou
deprimido
– muitos eram de classe média e, a menos que eles fossem fugitivos,
estavam empregados
– mais da metade eram refugiados nas áreas onde hoje é Israel
– dois eram filhos de milionários
– todos pareciam ser membros normais em suas famílias
– foram educados e eram sérios, e em suas comunidades foram
considerados jovens modelos
– a maioria mantinha a barba
163
– todos eram profundamente religiosos
– usaram terminologia islâmica de expressar suas opiniões, mas eram
bem informados sobre política em Israel e em todo o mundo árabe
– disseram que, a fim de serem aceitos para uma missão suicida, tinham
de ser convencidos da legitimidade religiosa dos atos que estavam para
executar
– muitos haviam memorizado grandes seções do Corão e eram bem
versados nos melhores pontos da lei e da prática islâmica
– o conhecimento que tinham do cristianismo era baseado nas Cruzadas
medievais e consideravam o judaísmo e o sionismo como sinônimos
– quando falavam, todos tendiam a usar as mesmas frases: “O Ocidente
tem medo do Islã”, “Alá nos prometeu sucesso final”, “É no Corão”,
“Palestina islâmica será libertada”
– todos exibiram raiva inequívoca em relação a Israel com frases como
“Os israelenses humilham-nos”, “eles ocupam nossa terra e negam
nossa história”
– a maioria falava em árabe e todos falavam com naturalidade sobre os
atentados, mostrando convicção inabalável na justeza de sua causa e
seus métodos
– questionados sobre escrúpulos em matar civis inocentes eles
responderam imediatamente: “Os israelenses matam nossos filhos e
nossas mulheres. Isto é uma guerra, e as pessoas inocentes se
machucam”.
Conforme pesquisa de Nasra Hassan (2014) entre 1996-1999 com mais de 250 voluntários,
envolvidos na militância ou familiares.
Chen (2012, p. 108) registra que o líder político do Hamas Khalid Misha’al
mencionou que 120 pessoas haviam se apresentado como voluntários para o
martírio (“serviço em amor a Deus”). “Metade deles eram universitários
graduados e a maior parte da outra metade eram diplomados no ensino médio,
enquanto apenas alguns terminaram escolas primárias” (ver também
CRENSHAW, 2007, p. 15).
164
Hamas e Jihad Islâmica têm nos atentados suicidas uma resposta militar
ao que chamam “provocações israelenses”. Há clara correlação entre o
processo de paz e os ciclos de ataques suicidas realizados com o fim de
impedir o progresso dos acordos (HASSAN, 2014). 222
Quem primeiramente propôs o uso de homens-bomba nas operações
militares do Hamas foi o estudante de engenharia Yahya Ayyash, da
Cisjordânia. “O falecido primeiro-ministro israelense Yitzhak Rabin apelidou
Ayyash de ‘Engenheiro’, e este se tornou o seu apelido nas ruas palestinas”
(HASSAN, 2014). “De acordo com uma fonte do Hamas”, Ayyash pretendia
elevar o custo em vidas humanas para a ocupação israelense. Segundo esta
fonte, ele teria dito: “Nós pagamos um preço alto quando usamos apenas
estilingues e pedras. Precisamos exercer mais pressão, fazer o custo da
ocupação muito mais caro em vidas humanas” (Ibidem). O assassinato de
Ayyash ocorreu em janeiro de 1996 e acredita-se ter sido provocado pelas
forças de segurança israelenses.
Desde então, não há falta de recrutas voluntários para o martírio. “Nosso
maior problema é haver hordas de jovens que batem em nossas portas
clamando para serem enviados [...] é difícil escolher apenas alguns”, disse um
líder do Hamas (HASSAN, 2014). “Aqueles a quem os afastamos, voltam e nos
incomodam, implorando para serem aceitos”. Os responsáveis pelo preparo
dos jovens dizem concentrar a atenção dos voluntários “em estar na presença
de Deus, em reunião do profeta Maomé, em interceder por seus entes
queridos, para que eles também possam ser salvos das agonias do inferno”.
Mais que isso, também “nas huris e na luta contra a ocupação israelense para
que sejam removidos da herança islâmica que é a Palestina” (Ibidem).
222
Antes de 11 de setembro de grupos fundamentalistas islâmicos haviam patrocinado atentados
humanos não só na Cisjordânia, a Faixa de Gaza, e Israel, mas também no Afeganistão, Argélia,
Argentina, na Chechênia, na Croácia, na Caxemira, no Quênia, Kuwait, Líbano, Paquistão, Panamá,
Tadjiquistão, Tanzânia e Iêmen. Os alvos vão desde pessoas comuns a líderes mundiais, incluindo o
Papa, que era para ter sido assassinado em Manila em 1995. Vestido como um sacerdote, o assassino
provavelmente planejava detonar a si mesmo quando beijou o anel do Papa (HASSAN, 2014).
165
Outra constatação de Hassan é que às vésperas da operação, “exercícios
espirituais [são] intensificados, incluindo orações e recitações do Corão”
(HASSAM, 2014).
Normalmente, o treinador incentiva o candidato a ler seis
capítulos específicos do Corão: Baqara, Al Imran, Anfal,
Tawba, Rahman e Asr, que apresentam temas como jihad, o
nascimento da nação do Islã, a guerra, os favores de Deus e a
importância da fé. Palestras religiosas duram de duas a quatro
horas por dia (Ibidem, ênfases acrescentadas).
Os voluntários suicidas do Hamas estavam sendo selecionados apenas
às vésperas da sua execução. Como parte da preparação, “eles seriam
levados para um cemitério, ficariam entre as sepulturas por algumas horas
vestindo uma túnica branca que geralmente envolve o cadáver de muçulmanos
a fim de sentir o sabor da morte com antecedência” (CHEN, 2012, p. 109).
O marketing também faz parte do ritual, pois a divulgação de detalhes da
operação pode motivar novos voluntários. Isso inclui a redação de “uma
declaração de sua vontade” pelo candidato, gravações em fita cassete ou em
vídeo e às vezes os três recursos. O cenário da gravação dos vídeos traz ao
fundo “a bandeira e slogans da organização patrocinadora, mostram o mártir
vivo recitando o Corão, posando com armas e bombas, exortando seus
companheiros a seguirem o seu exemplo e exaltando as virtudes da jihad”
(HASSAN, 2014).
“Pouco antes de o homem-bomba sair em sua jornada final, ele executa
uma ablução ritual, coloca roupas limpas e tenta assistir pelo menos uma
oração comunitária em uma mesquita”. Ele reza um texto específico “que é
costume antes da batalha e pede a Deus para perdoar seus pecados e para
abençoar a sua missão”. Então “ele coloca um Corão no bolso do peito
esquerdo, acima do coração, amarra os explosivos ao redor da cintura ou toma
uma mala ou bolsa contendo a bomba”. O mentor e responsável por planejar a
ação lhe dá adeus com as palavras “Que Deus esteja com você, que Deus dêlhe sucesso para que você alcance o Paraíso”. O futuro mártir responde:
“Inshallah, nós nos encontraremos no paraíso” (HASSAN, 2014). Horas mais
166
tarde, quando apertar o detonador dos explosivos, ele dirá: “Allahu akbar”, que
quer dizer “Allah é grande. Todo louvor a Ele” (Ibidem).
A comunidade e a família do combatente, ao tomar conhecimento do que
seu filho fez, comemorará como se fosse o nascimento de uma nova vida ou
um casamento, cantando um novo gênero popular conhecido por “canções de
vingança”. Centenas de convidados se reunirão em sua casa para parabenizálos; o “status” da família será elevado e uma quantia em dinheiro será
destinada a eles. “Muitas vezes a mãe vai uivar de alegria sobre a honra que
Deus concedeu a sua família” (HASSAN, 2014).
3.4.1 Mais entrevistas
No escritório de contraterrorismo do Ministério da Defesa em Tal Aviv,
Stern foi apresentada a um especialista em Hamas, cujo nome ela não
menciona. Ele obteve autorização, em 1996, para fazer buscas nas Escolas
Islâmicas de Ramallah depois dos ataques de Ashqelon e relata o que viu:
Todas as paredes estavam cobertas com pôsteres sobre a
jihad. Encontramos um vídeo de crianças de 6 anos marchando
e cantando: “Oh, meu Deus, leve minha vida. Eu vou ser um
shaheed’. Que podíamos fazer? Fechar a escola? Isso seria
um desastre. Não podemos dar dinheiro à AP para melhorar as
escolas, por eles serem corruptos. Não podemos fechar as
organizações de caridade, pois isso seria contraproducente –
só aumentaria o apoio ao Hamas (STERN, 2004, p. 54).
Roni Shaked, especialista israelense em antiterrorismo, que serviu no
Shin Bet, 223 “disse que é impossível promover um suicida com a idade de 22
anos”. É no jardim de infância que a criança começa a ser exposta a
propaganda do martírio e, então, quando chega aos 22 anos de idade, olhará
para a sua vida e desejará ser sacrificado. O apelo ao martírio “pode ser visto
223
O Shin Bet, abreviação de duas letras do alfabeto hebraico, é a agência de segurança de Israel. Em
inglês a sigla é ISA, Israel Security Agency.
167
em tudo o que o Hamas gerencia: creches e escolas, onde se planta sementes
de devoção em seus corações” (CHEN, 2012, p. 109).
Falando do treinamento dado aos futuros mártires, ela destaca a
lavagem cerebral que move o “moço, muitas vezes adolescente, mentalmente
imaturo” a ver o inimigo como “menos que humano”, estratégia já destacada
por Fanon. “Terroristas empregam também essa técnica, em parte se referindo
ao inimigo como sub-humano [e] se referem aos judeus como “vírus
destruidor”.” (STERN, 2004, p. 15). 224
Stern entrevistou o doutor Abdel Aziz al-Rantissi, porta voz do Hamas
em Gaza. Ele é pediatra em seu território, e a despeito disso, foi interrogado
sobre não se incomodar por ver o Hamas matar crianças israelenses. Ele não
gosta da pergunta e responde que o Islã não aprova a matança infantil nem de
mulheres, só de combatentes. “Quando crianças são mortas, é por danos
colaterais”, esquiva-se, usando a mesma retórica de norte-americanos e
israelenses em situação similar (STERN, 2004, p. 51). Mas estava blefando e
não sustentou a afirmação inicial.
Todo israelense é um combatente, porque todos participam do
Exército. Todos são filhos daqueles que nos desalojaram de
nossa terra natal. Se o judeu considera Israel sua terra por ter
sido expulso dois mil anos atrás, nós usaremos a mesma
lógica: fomos expulsos há meio século. A terra é nossa
(STERN, 2004, p. 51).
224
O aspecto tático do treinamento promovido por Osama bin Laden nos acampamentos em
Kandahar a líderes de outros grupos radicais, incluindo o Hamas e a Jihad Islâmica Palestina, assim como
organizações extremistas da Argélia, do Paquistão e da Tunísia para combate incluía aulas sobre
“topografia avançada, emboscadas, táticas militares, formação para combate, trincheiras [...] como
matar com pistola e fuzil e como atirar de motocicletas e carros em movimento”. O treinamento para
ações civis incluía “terrorismo, falsificação de documentos e passaportes, venenos, explosões de minas e
um curso de espionagem que ensina os recrutas a driblar a suspeita policial (STERN, 2004, pp. 225,231).
168
É o mesmo argumento usado por Abu Shanab, 225 para quem “não há
civis em Israel, porque todo cidadão é obrigado a servir ao exército [...]
Estamos em guerra com Israel. Os americanos ajudam Israel” (STERN, 2004,
p. 36). Exagerando nos saldo de mortos, o doutor Rantissi debita da conta da
Primeira Intifada a morte de mais de duas mil pessoas pelos judeus, sendo a
grande maioria de crianças 226 (Ibidem). Mas a narrativa dos fatos propriamente
ditos parece não fazer mais sentido, depois de décadas de conflito.
Shaykh Qardawi, que emergiu da Irmadade Muçulmana egípcia e
desfruta “status” de estrela por conta de sua pregação semanal no canal de TV
da al-Jazeera, ganhou apoio ao transferir o crédito de “mártir” para os suicidas
que estavam lutando “uma jihad legítima” na Palestina. Considerando a
ocupação de Israel ilegal por ocupar “uma parte da terra do Islã”, ficaram
justificados todos os meios para expulsá-los. E por quê? Baseando-se “no
pretexto que, na sociedade israelense, não havia civis, pois todos, incluindo as
mulheres, usavam uniforme militar” (KEPEL, 2003, pp. 107,108).
É o que afirma Stern: “Eu ouço somente meias-verdades em Gaza, mas
a verdade não é o que conta para terroristas e aqueles que vêm apoiá-los. É
percepção e dor e não a verdade, que leva ao terrorismo” (STERN, 2004, p.
53). “Palestinos que moravam em Gaza durante a primeira Intifada falam da
pressão social em favor da adesão à causa, mesmo para jovens que não
225
Líder da ala política do Hamas e presidente da Sociedade de engenheiros de Gaza. Na mesma
entrevista ele dá apoio a minha hipótese de como o muçulmano vê com maus olhos a globalização:
“Globalização é apenas mais um sistema de colonização. É a tentativa dos Estados Unidos de dominar o
resto do mundo pela economia em vez de militarmente” (STERN, 2004, p. 36). Outro exemplo dessa
relação está na seguinte declaração: “O Hamas, assim como os outros principais movimentos islâmicos,
dá boas-vindas ao que ele vê como avanços “científicos neutros” do Ocidente e não enfrenta qualquer
problema de princípios em tomá-los emprestados ou empregá-los. Entretanto, recusa-se a incentivar o
que considera a “moralidade materialista” da modernidade ocidental e a falta de espiritualidade: a
marginalização do divino e a secularização da humanidade” (HROUB, 2009, p. 147; ver também
CRENSHAW, 2007, p. 31).
226
Na mesma página, a nota 69 diz: “Segundo a Human Rights Watch, 670 palestinos foram mortos
nos primeiros dois anos e meio da Primeira Intifada – o período mais intenso do levante [...] o número
de baixas fatais palestinas alcançava 762 no final de 1990 e 1124 em 13 de setembro de 1993, data
oficial do término da Primeira Intifada”.
169
moravam nos acampamentos” (Ibidem, p. 42). E se obtêm sucesso em sua
abordagem é porque “conseguem convencer seus seguidores de que Islã é o
que eles pregam, mesmo que estejam lendo textos verdadeiros de forma
tendenciosa” (Ibidem). Por isso, “todo terrorista religioso se envolve com
hermenêutica (interpretação de textos)”, com o diferencial que terroristas
islamistas atraem mais seguidores pelo emprego do que Stern chama de
“instrumentos de organização” (STERN, 2004, p. 42), que em parte são as
recompensas, a promoção social da própria família que agora deu ao Islã um
herói, emprego, assistencialismo e a possibilidade de ascensão social (Ibidem,
pp. 4,38,45,54,224). Só Saddam Hussein oferecia às famílias dos mártires
palestinos a soma de US$ 10.000 a US$ 25.000 (STERN, 2004, p. 146).
Falando da devoção religiosa como motivação para o martírio, Chen
(2012, p. 112) nos diz que “nos documentos da Segunda Intifada, o Hamas
apresenta o Paraíso não como uma recompensa necessária por um ato de
autoimolação, mas como um fim em si mesmo”. No primeiro estágio de sua
atuação, o Movimento “raramente” recorria “a fontes religiosas islâmicas”,
diferentemente dos documentos da segunda fase que “progressivamente
tecem em suas narrativas versos corânicos e mais passagens da tradição
islâmica (hadith) referentes aos mártires, martírio, e Jihad”. Ele ilustra o que
está afirmando ao citar como exemplo, os textos do Corão 2:154; 3:169; 9:14;
9:24.
Outro líder do Hamas, o xeque Younis a-Astal, interpreta como desejável
a pobreza do muçulmano, a fim de que sua alma permaneça viva. “O Islã nos
diferencia, porque prepara as pessoas para morrerem por Alá. Eles estão
sempre prontos a morrer por Alá” (STERN, 2004, p. 34). Stern interpreta e
amplia o sentido de pobreza como “desesperança, privação, inveja e
humilhação”, sinalizadores para fazer “morte e paraíso parecerem mais
atraentes [de modo que] todo bom muçulmano compreende que é melhor
morrer lutando do que viver sem esperança” (Ibidem).
170
3.5 O Hamas na fase e na função política
“O Hamas e outros grupos terroristas [...] usam religião para justificar
aspirações de poder político para recuperar territórios palestinos ocupados por
Israel” (STERN, 2004, p.29). 227 O fato de fazer resistência à ocupação
israelense, em si, já toca o sentimento religioso do povo palestino muçulmano
que, como vimos, tem fortes ligações com a terra. Mesmo não sendo religiosos,
outros grupos souberam usar o sentimento popular a seu favor. 228
A cada dia sangrento, um lacrimoso Arafat aparecia diante das
câmeras dos noticiários ocidentais torcendo as mãos e
negando que incitasse a violência. Em vez disso, com um dos
dedos ele apontava para meu pai, para Marwan Barghouti e os
refugiados. Ele garantia ao mundo que estava fazendo todo o
possível para pôr fim ao levante. Com o outro dedo, porém, o
tempo todo ele apertava bem firme o gatilho (YOUSEF, 2010,
pp. 153,154).
Na sua gênese, o Movimento não pensava em termos políticos mais
abrangentes, com organização formal, plataforma política e responsabilidade
diante de interlocutores internacionais. Nem mesmo havia consenso entre os
pares no mundo árabe, em relação ao sofrimento daquele povo. Se o Egito da
Irmandade preocupava-se com os palestinos, bin Laden falou em “mudança da
missão [...] e da inclusão da Palestina nos interesses” somente no que Stern
chamou de “sua segunda convocação”, por meio de um fatwa em 1996 – nove
anos após a criação do Hamas, 48 anos depois da criação do Estado de Israel
(STERN, 2004, p. 238). Analistas acreditam que a AP tem interesse em manter
os palestinos nos campos de refugiados, sem qualquer direito, sem recursos,
227
Stern registra: “O Hamas considera território palestino todo o atual Israel (estatuto do Hamas,
cap. 2, art. 9). Para uma tradução em ingles, ver Muhammad Maqdsi, “Charter of the Islamic Resistance
Movement (Hamas) of Palestine”, Journal of Palestine Studies, 22.4 (Summer 1993), pp. 122-34”.
228
Considerando a existência de outras minorias que não compartilham do anseio de mesma
natureza, como cristãos e os próprios secularistas.
171
sem respostas, porque, assim, os recursos financeiros continuam irrigando
suas contas bancárias e a atividade encontra razão de ser.
O Hamas triunfou nas eleições legislativas ocorridas em 25 de janeiro de
2006. O seu lema fazia do Hamas o “Partido da Mudança e da Reforma”,
“expressão criada para manifestar-se em comícios, obteve 74 dos 132
assentos no Conselho Legislativo Palestino, bem mais que os 45 obtidos pelo
Fatah” (ALVARIÑO, 2007, pp. 189-190). O Hamas não estava preparado para
a vida política como veio a enfrentar. “O Hamas simplesmente não tinha ideia
de como funcionava o jogo do governo” (YOUSEF, 2010, p. 249). Que havia
interesses pelo poder político, não é preciso discutir, mas nem todos
compartilhavam do mesmo alvo. Um exemplo é encontrado no pai de Yousef, o
xeque Hassan Yousef , “muito mais interessado no Deus do alcorão do que na
política”. Segundo ele, “Alá havia nos dado a responsabilidade de erradicar os
judeus, e meu pai não questionava isso” (Ibidem, p. 78). 229
Como os objetivos declarados do partido dominante, o Fatah, e o partido
em ascensão, o Hamas, eram os mesmos, era desnecessário chamar a
atenção dos eleitores para questões óbvias e os organizadores da campanha
“se concentraram em apresentar um programa político alternativo, realista e
viável para os problemas políticos e sociais que afligem a população palestina
e denunciar a ineficiência e a corrupção do governo do partido Fatah”
(KALOUT, 2006, pp. 8-10).
O Hamas, no que se refere à política islâmica e a suas diversas
abordagens da política ... apresentou um caso contemporâneo
singular de um movimento islâmico que se mostrou engajado
na luta pela libertação contra uma ocupação estrangeira.
Movimentos islâmicos têm sido motivados por inúmeras razões,
a grande maioria das quais teve seu enfoque nos regimes
corruptos de seus próprios países (HROUB, 2009, p. 17).
Assim, “a campanha do Hamas não se pautou em questões de guerra e
paz com o Estado de Israel. No transcurso da campanha, o Movimento Hamas
229
Chamo a atenção para esta expressão “erradicar os judeus”. Voltarei a ela mais à frente quando
tratar do conteúdo da Carta do Hamas.
172
não mencionou a destruição total do Estado Hebreu” (KALOUT, 2006, p. 8).
Kalout enumera seis pontos que considera essenciais na condução do Hamas
ao poder, em detrimento do Fatah, que, há quarenta anos, dominava o cenário
político na Palestina:
a) a saída de Arafat de cena; b) a divisão do Partido Fatah em
diversas facções; c) a incompetência administrativa do governo
Ahmed Qorei; d) as falhas da ANP de promover reformas
internas amplas; e) as dificuldades para eliminar a corrupção, o
clientelismo e o autoritarismo; f) a inviabilidade da promoção de
assistência social a contento para a humilhada população
palestina (KALOUT, 2006, p. 8).
A questão sobre o comportamento e o novo papel político do Hamas
pode ser mais bem respondida hoje do que em 2006, quando subiu ao poder.
Mas é sabido que membros do Hamas “ficaram insatisfeitos com os cessarfogo ou cessações de hostilidades” do Movimento contra Israel e esses
membros saíram para se juntar aos movimentos salafi-jihadi, expressão que
“as pessoas das ruas da Faixa de Gaza usam [numa] referência comum para
todos esses movimentos [...] ‘Jaljalat’, como no estrondo ruidoso do trovão”
(ABU-RABI, 2011, p. 129). Mas não aprofundarei os comentários sobre
questões políticas posteriores a eleição, pois não quero me distanciar da
proposta da pesquisa e por isso passarei às observações de cunho religioso
tecidas sobre o principal documento do Movimento.
3.6 O Estatuto do Hamas: Corão, violência e os novos tempos
Não são poucos os argumentos que defendem a legitimidade palestina
de lutar por seu direito à terra, com autodeterminação. Concordo em que os
palestinos não podem ser responsabilizados pelos danos que os judeus
sofreram na Europa, nem por qualquer projeto sionista, independentemente de
como tenha sido implantado.
O Islã não é uma religião com vocação política, nem um imenso partido
político com simpatia por religião. No Islã, ambos os interesse caminham de
173
mãos dadas e durante a história serviram-se mutuamente. Neste caso estamos
falando da sharia, a lei islâmica que rege a vida de todo muçulmano fiel. Não é
possível, neste trabalho, aprofundar explicações detalhadas sobre as diferentes
escolas de interpretação e de composição da sharia, mais do que foi feito.
Todavia, penso ser desejável registrar alguns apontamentos sobre o
pensamento e a visão do assunto por quem esteve intestinamente envolvido no
Hamas. Refiro-me a Mustafa Abu Sway.
Abu Sway discute a relação entre o sionismo e a narrativa islâmica na
ótica da sharia, considerando o longo período entre Basileia 230 e Oslo. 231 Nesta
ótica, a Terra Santa é considerada waqf, um dote ou dotação, para usufruto
das gerações presentes e futuras do povo muçulmano. “É por definição uma
propriedade que pertence a Deus até o Dia do Juízo” (ABU-RABI, 2011, p.
134). Em defesa dessa posição e do próprio conceito, ele evoca o Corão 5:20-1
e a concordância do artigo 11 do Decreto do Hamas. 232 Embora a Palestina
não seja um estado islâmico na melhor acepção do termo, é o Islã que
predomina em seus territórios, o que aquece os ânimos do povo e os enche de
segurança e esperança, já que a literatura e o discurso islâmicos apoiam a
causa tal como é defendida pela resistência do Hamas (Ibidem, pp. 132,134).
Abu Sway acredita que os mesmos discursos e a mesma literatura que
reafirma essa posição “contribuem para a psique islamista que rejeita Oslo”,
uma vez que os acordos são contrários ao que prevê a waqf, ou seja, que as
terras passarão “para o controle de uma entidade não muçulmana, uma
entidade que tentou ilegalmente alterar sua situação” (ABU-RABI, 2011, p. 134;
FLINT, 2009, p. 309), portanto, é dever do povo lutar contra esse pecado. Ele
230
Por Basileira (Suíça), Abu Sway está considerando a cidade onde, em 1897, Theodor Herzl
organizou o primeiro congresso sionista. As terras que Israel ocuparia eram parte do estado islâmico
turco-otomano (ainda não estavam sob o mandato Britânico, que viria 15 anos depois, com o fim da
Primeira Guerra). Herzl, então, foi ao califa da Turquia e ofereceu dinheiro para ajudar com problemas
financeiros em troca da permissão para a imigração do povo judeu. O califa negou e Herzl procurou
outro caminho.
231
O Acordo de Oslo, assinado em 1993, pôs fim aos conflitos da Primeira Intifada, iniciada seis anos
antes, em 9 de dezembro de 1987.
232
O artigo diz: “O Movimento da Resistência Islâmica acredita que a terra da Palestina é uma
dotação [waqf] islâmica para as gerações muçulmanas até o Dia do Juízo” (ABU-RABI, 2011, p. 134).
174
interpreta a punição divina contra “os judeus [que] se recusaram a adentrar a
terra porque isso significava que eles teriam de lutar contra o povo que vivia
nela, que era conhecido por sua grande força” (Ibidem, p. 133), e o faz como
interpretação dos versos 5.20,21,26. Assim, é a obediência, “submissão à
vontade de Deus, e não códigos genéticos específicos, que determinou sua
relação com a terra” (Ibidem). Assim, os palestinos muçulmanos e não os
judeus seriam os legítimos herdeiros da terra, e isso com base no Corão, na
submissão e disposição em lutar pela terra, waqf, dotação. “A Terra Santa, ou
qualquer terra, é um veículo por meio do qual alguém cumpre o pacto com
Deus” (Id.).
Abu Sway também apela para a história contada na sura da ascensão,
Al-Isra, “considerada por todos os eruditos muçulmanos por estabelecer o
caráter islâmico da Terra Santa antes mesmo da chegada histórica dos
muçulmanos durante a época do segundo califa, Omar Ibn al-Khattab, em 638
d.C.” (ABU-RABI, 2011, pp. 133,134). Além do Corão, Sway trata da situação
legal da Terra Santa na shari’ah. A citação é longa, mas significativa. Por ela,
pode-se ver a impossibilidade de uma solução duradoura de Dois Estados:
Depois de assinar um acordo com o bispo Sofrônio, em
Jerusalém, Omar Ibn al-Khattab se recusou a distribuir a terra
entre o exército muçulmano e declarou-a uma dotação (waqf)
islâmica para beneficio das gerações futuras, permitindo às
pessoas usá-la sem possuí-la. A categoria da waqf na lei
islâmica é por definição uma propriedade que pertence a Deus
até o Dia do Juízo. [...] Em concordância com esse conceito, o
artigo 11 do decreto do Hamas diz: “O Movimento da
Resistência Islâmica acredita que a terra da Palestina é uma
dotação [waqf] islâmica para as gerações muçulmanas até o
Dia do Juízo”. A literatura e o discurso islâmicos, de modo
semelhante, são cheios de referencias à Palestina como uma
dotação ou bem de custódia islâmico. Essas referências
contribuem para a psique islamita que rejeita Oslo, porque os
acordos significam que a vasta maioria dessa waqf passará, ou
já passou, para o controle de uma entidade não muçulmana,
175
uma entidade que tentou ilegalmente alterar sua situação
(ABU-RABI, 2011, p. 134; a terceira ênfase foi acrescentada).
Essa posição deve alimentar os sentimentos de Al-Faruqi 233 quando diz
que “o Islã ainda condenaria um programa sionista cujo objetivo não fosse a
Palestina, mas uma parte não muçulmana do mundo”. Mais ainda: “o Islã
condenaria um Estado sionista mesmo que ele fosse estabelecido em uma ilha
isolada ou no lado escuro da Lua” (ABU-RABI, 2011, p. 116).
“No pensamento político islâmico, a ideia dominante é de que os
tratados com o inimigo podem ser realizados se forem temporários” (ABURABI, 2011, p. 135). Sendo o Hamas um movimento religioso, também, a não
ser que crie um mecanismo de enfraquecimento dos sentimentos e convicções
dessa natureza (religiosa), terá que esbarrar, vez ou outra, no código legal do
Islã que é a sharia. A sharia dá espaço para uma trégua temporária ou um
cessar-fogo, mas essa decisão é vista como um paliativo até que a questão (ou
o conflito) possa ser retomada com vantagem para a causa islâmica. Nas
palavras de Abu Sway, “a trégua [deve ser] do interesse da comunidade
muçulmana” (Ibidem). E ele toma como exemplo dentro da história do Islã um
acordo assinado pelo Profeta com não-muçulmanos de sua tribo Quraish e o
acordo que chama de o “mais relevante para o conflito na Palestina”, que foi
assinado por Salah al-Din al-Ayyubi com os Cruzados em 1948. 234 Ambos os
tratados foram temporários (ABU-RABI, 2011, p. 135).
As tréguas têm ocorrido com períodos de retorno ao conflito, uma vez
que as negociações não avançam para o rumo desejado, que são o retorno
aos limites das fronteiras de 1967, libertação de mais prisioneiros, permissão e
acesso para que os refugiados retornem a seus lares e sejam indenizados.
233
Ismai’l Raji al-Faruqi (1921-1986), proeminente islamita palestino-americano, foi professor na
Universidade de Temple, Filadélfia e na Universidade Al-Azhar, no Cairo. Foi reconhecido por seus pares
como uma autoridade sobre o Islã e a religião comparada. Escreveu sobre nacionalismo árabe, o
movimento e o monoteísmo islâmico e a Palestina.
234
De fato o autor registra o ano de “1948” e também registra “os cruzados”. Ou houve um erro na
datação, caso se refira a Saladino (1139-1193), ou o autor está chamando de cruzado a algum outro
grupo invasor, talvez os próprios judeus. O acordo em questão foi assinado em Ramlah, próximo de Lyd,
uma cidade costeira da Palestina.
176
Sendo temporários os acordos feitos até aqui, o conflito sempre estará na
agenda. “O Hamas enxerga a criação de um mini-Estado palestino na
Cisjordânia e na Faixa de Gaza como uma solução provisória” (ABU-RABI,
2011, p. 135, ênfase acrescentada).
Na ocasião das eleições de 2006, mais especificamente em 27 de junho
daquele ano, Hamas e Fatah adotaram conjuntamente o chamado “Documento
dos Prisioneiros” 235 (ABU-RABI, 2011, p. 137). O Documento dá orientações
para a “criação de um Estado palestino dentro das fronteiras anteriores a
1967 236 ao lado de Israel, enquanto afirma o direito dos refugiados palestinos
de retornarem a Israel propriamente dito” (Ibidem). Abu Sway considera o
documento um importante avanço na maneira de o Hamas fazer política, já que
o Documento se distancia da Carta ou Constituição do Hamas, que, por seu
conteúdo, sempre imprimiu no Hamas e nos palestinos a imagem de
terroristas. Avi Pazner, o porta-voz israelense, disse sobre a Constituição: “É
claro que não poderemos negociar com uma organização em cuja carta de
princípios está mencionada a destruição de Israel” (FLINT, 2009, p. 282).
Os trechos que esta pesquisa identificou como relevantes estão
registrados no ANEXO 1. 237 Parafraseando o título de artigo de Bernard Lewis,
a raiz da raiva dos palestinos muçulmanos escorre pelo texto, sempre
amparado com boas doses de textos do Corão, do qual não se distanciam em
momento algum. Nada do que pode parecer estranho a uma mentalidade
“ocidental” (ainda que não concorde plenamente com este termo) escapa a
uma justificativa extraída do texto sagrado e, quando possível, é feita a adição
235
Flint menciona o que chama de Documento de Reconciliação Nacional, elaborado na prisão de
Hadarim por presos palestinos líderes de cinco facções. A iniciativa foi de Marwan Barghouri, principal
líder do Fatah, Abdel Halek Natsche do Hamas e mais três delas: Frente Popular para a Libertação da
Palestina, Frente Democrática para a Libertação da Palestina e Jihad Islâmico (FLINT, 2009, p. 307).
236
237
As chamadas “fronteiras anteriores a 1967” são referência a Guerra de 1967 ou Dos Seis Dias.
Disponível
em
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/documentos/integra-do-estatuto-do-
hamas/ no dia 05/06/2009. Sob o título de Íntegra do Estatuto do Hamas (traduzido pela Organização
Sionista Unificada do Brasil), adverte que esta é a tradução literal do Estatuto (Carta) de fundação
Hamas, tornada pública em 1988 e amplamente divulgada pelos sites palestinos oficiais. Esta tradução
foi realizada a partir do original em árabe e não de traduções para o inglês disponível em
http://www.islamonline.net/Arabic/doc/2004/03/article11.SHTML
177
de um hadith, um dito do Profeta ou de seus companheiros. É difícil dissociar
do Hamas a afirmação de que a violência praticada pelo grupo não está
ancorada no texto do Corão, ainda que a ocupação israelense seja ilegal (de
que não discordo). O que não se sustenta diante da pesquisa é atribuir
exclusivamente à ocupação os revides “legítimos” por parte do Movimento.
Abu Sway menciona Mahmoud Al-Ramahi, um legislador do Hamas,
para distanciar o novo Hamas eleito, do conteúdo da Carta de 1988 dizendo
que “o decreto do Hamas foi escrito de modo apressado e que certos aspectos
dele poderiam ser modificados” (ABU-RABI, 2011, p. 137). 238
Para Kalout, a menção à destruição do Estado de Israel no Estatuto do
Movimento Hamas não passa de retórica “e as potências ocidentais, assim
como Israel, sabem perfeitamente disso” (KALOUT, 2006, p. 69). Para ele, o
Hamas deve contar com pedras, paus e homens-bomba, pois é o que existe
em seu paiol e eles não são “páreo para o terceiro maior arsenal nuclear do
planeta”. Declarações inflamadas como essas já não compõem o repertório do
programa, nem do discurso do Movimento, após a sua eleição, e não demorará
para que o Estatuto seja revisto (Ibidem). Kalout tem razão em termos, pois o
Hamas tem recebido armas e munições do Irã e, só em dezembro de 2012,
treze mil soldados foram alistados no seu exército. 239
Mas para que isso ocorra será preciso haver mudanças profundas na
mentalidade do grupo. Yousef diz que na “transição do Hamas para uma
organização terrorista” uma herança do Islã havia impregnado a motivação dos
guerreiros, pois “os fedayeen tinham toda a força do Alcorão como apoio”
(YOUSEF, 2010, p. 73). E “mesmo aqueles que reconheciam a impossibilidade
da missão do Hamas” no que diz respeito a sua inferioridade frente ao poderio
bélico de Israel “se agarravam à crença de que Alá um dia derrotaria Israel,
ainda que tivesse de fazê-lo de maneira sobrenatural” (Ibidem, p. 74). O
racismo “de alguns líderes” do Movimento não sai com acordos de paz e até
mesmo os mais moderados estavam “muito mais interessado no Deus do
alcorão do que na política [já que] Alá havia nos dado a responsabilidade de
238
239
Hroub fala da Carta de 1988 e de um “Memorando Introdutório de 1993” (p. 188).
“Tensão entre palestinos e israelenses”, acessado em 14 de janeiro de 2014 no
noticias.uol.com.br fala do alistamento e mostra fotos do treinamento na Faixa de Gaza.
178
erradicar os judeus” (Ibidem, p. 78) e era isso o que contava, mesmo para
aqueles que não tinham nada contra seus vizinhos.
E, finalmente, quem nos traz uma teologia mais aproximada de toda a
questão em si é Hussain Fadlallah. 240 Em seu texto “O Islã e a lógica do Poder”
ele faz a distinção entre poder e fraqueza, advogando que o discurso islâmico
sobre o poder precisa ser transformado em ação, “um movimento educacional
abrangente”, ao ponto de exercer influência em vários níveis da sociedade
(ABU-RABI, 2011, p. 134). É uma nova retórica para a volta às fontes,
requentada no discurso ouvido após a Guerra dos Seis Dias, de que os países
árabes haviam sido derrotados porque seus governos eram infiéis. Era preciso
humilhar-se a Allah e observar os preceitos da religião, para que a vitória possa
ser vislumbrada. “A razão para a fraqueza dos muçulmanos em nossa era é a
divisão do mundo muçulmano em pequenos Estados independentes em termos
de suas economias, políticas, cultura, paz e guerra” (ABU-RABI, 2011, p. 103).
Fadlallah constrói seu argumento de fora para dentro, ou seja, começa
reunindo conceitos universais como “fortalecer nossa consciência”, “avaliar a
natureza regional das diferenças” e “compreender o Islã em seu conceito
unificador geral” e aos poucos passa por noções de “guerra emancipatória”
(ABU-RABI, 2011, p. 104), aproximando muito do que vimos em Sorel, no
Capítulo 1. Só então, Fadlallah assenta as bases fundamentais do seu
pensamento, as quais não são firmadas em outro lugar, senão no Corão.
O alcorão começa a mobilizar ativamente os oprimidos a partir
do interior, por muitos canais que se concentram em esvaziar
as almas de qualquer sentimento de fraqueza, que é a razão
de sua obediência a seus opressores. Esse estilo se intensifica
em muitos versos, até o ponto em que o alcorão convoca os
oprimidos a abandonarem seu senso de inferioridade perante
os opressores e a não serem enganados por eles. Pede-se que
os oprimidos se comparem aos opressores e cheguem à
conclusão de que os arrogantes não possuem nenhum poder
240
Sayyid Muhammad Hussain Fadlallah (n. 1935) é proveniente da uma família libanesa, mas
nascido em Najaf, no Iraque. Possui o título de Grande Aiatolá, é um proeminente pensador islamista
xiita libanês, considerado o pai espiritual do Hezbollah libanês.
179
esotérico, misterioso ou sobrenatural. Eles são simplesmente
seres humanos finitos. Logo, por que submeter-se a eles?
(ABU-RABI, 2011, pp. 106,107)
Essa literatura de autoajuda árabe lembra bem o conceito de construção
do outro, como vimos em Chaui. Mais uma vez é demonstrado como a
mecânica de interpretação alhures pode ser forjada com o uso do Corão e
aplicado à prática da violência. Fadlallah sabe da desconfiança contra a
interpretação e admite que “alguns podem questionar a interpretação anterior
dos versos corânicos 241 dizendo que eles combatem a adoração de outros
seres que não Deus, e não têm nada a ver com o opressor e o oprimido” (ABURABI, 2011, p. 107). Ele então recorre à acusação dos pagãos – sempre os
outros – que são responsáveis pela desgraça no mundo e especialmente no
mundo islâmico. “Ao dar-lhes poder para agir com força contra seus
opressores, o Alcorão permite que os oprimidos lutem por seu direito de
permanecer em sua terra e praticar livremente sua religião” (ABU-RABI, 2011,
p. 108), e segue citando o Corão. 242
Em sua defesa, segue costurando argumentos extraídos de versículos
que exaltam o orgulho muçulmano, a grandeza de Allah e o erro generalizado,
para não dizer imersão no pecado, em que todos, menos os fiéis soldados de
Allah estão. O Corão garante tal retórica para estimular a convicção de ser
“natural e legitimamente justificável combater e matar os inimigos da liberdade
e da vida, pois essa é a maneira realista de construir uma vida e garantir que
ela continue com base em uma lei justa” (ABU-RABI, 2011, p. 108).
Assim, o Alcorão agita as almas dos fracos e ajuda-os a gerar
seu próprio poder para lutar contra seus os opressores,
confiando acima de tudo em Deus e em si mesmos. O Alcorão
241
Referindo-se a interpretação de 7:194: “Por certo, os que invocais, além de Allah, são servos
como vós. Então, invocai-os! Que eles vos atendam, se sois verídicos”.
242
“Pois se Deus não tivesse capacitado as pessoas a se defenderem umas contra as outras, todos os
monastérios e igrejas e sinagogas e mesquita – em [todas as] quais o nome de Deus é louvado em
abundância – [já] teriam certamente sido destruídas” [ele cita 22:39-40, que apresentei resumidamente]
(ABU-RABI, 2011, p. 108).
180
argumenta que as pessoas fracas têm esse poder, mas
ignoram porque são possuídas pelo poder de seus opressores,
e isso leva, em última instancia, à sua falha. Notamos que
alguns versos corânicos sugerem que a vitória sobre os
opressores representa um grande valor islâmico, conforme
expressado no seguinte verso: “E que, sempre que a tirania os
aflige, se defendam” (42:39). [...] De modo semelhante, muitos
outros apontam que os oprimidos não são responsáveis pelo
caos que resulta de sua luta contra a opressão, pois a principal
responsabilidade recai sobre os opressores, que são a causa
de todo o caos (ABU-RABI, 2011, pp. 108,109).
No caso, judeus em primeiro lugar e dependendo do país os cristãos
também [e mais uma vez cita o texto de 42:41-2.]. “Alá não tinha dificuldades
em lidar com assassinatos; na verdade, ele até os encorajava” (YOUSEF,
2012, p. 200). Em outras palavras, é preciso considerar em que nível os
acordos de paz podem interferir na consciência do povo, uma vez que é
reconhecido que a guerra não ocorre apenas nas escaramuças e nas torturas
realizadas nas prisões israelenses. Yousef, direto do centro nervoso do Hamas,
admite: “Nossos inimigos são as ideologias, e elas não se importam com
incursões e toques de recolher. Não podemos explodi-las com um tanque”
(YOUSEF, 2010, p. 261).
Hroub, defendendo o Hamas contra acusações feitas pelo teor da Carta,
diz que hoje ela está obsoleta. “Ela foi escrita no início de 1998 por um
indivíduo e apresentada ao público sem uma apropriada consulta, revisão ou
consenso de todo o Hamas, o que fez seus líderes lamentarem” (HROUB,
2009, p. 62). Segundo ele, o seu conteúdo admitidamente antissionista e que
reflete “uma visão de mundo ingênua” tem aquele perfil, porque o seu autor era
da “velha guarda da Irmandade Muçulmana na Faixa de Gaza”, um indivíduo
“completamente à parte do mundo externo” (Ibidem). Que mundo? Eles fazem
o seu mundo. Radicais islâmicos consideram o tal “mundo externo” imerso no
pecado, haram, e não podem comprometer-se com ele. A visão de mundo
desses grupos vem do Corão, isto não está longe de ser notado.
“Entretanto” – segue Hroub –
181
o discurso do Hamas se tornou mais elaborado e adaptável às
realidades modernas. Suas ideias sobre Israel foram, desse
modo,
reformuladas
dentro
dos
parâmetros
da
ocupação/ocupante, com a força motriz da resistência a Israel
dirigida contra seus ataques, e não contra a religião (HROUB,
2009, p. 67).
Morris (2014, p. 218) mostra que não é bem assim. Citando discurso de
Ismail Haniyeh, “primeiro-ministro” do Hamas em Gaza, na ocasião do 25º
aniversário do Movimento em dezembro de 2007 (com presença de 250 mil
pessoas, diz: “Nós nunca reconheceremos Israel [...] nós nunca vamos desistir
de uma polegada da Palestina”.
Todos nós desejamos isso: que a religião, qualquer que seja, tenha
consciência do seu papel espiritual na vida dos seres humanos, que respeite
aqueles que não compartilham dos seus pressupostos e que possa colocar-se
acima dos mais elevados valores humanos, considerando as maiores
conquistas feitas até hoje, independentemente de quem as tenha trazido à luz.
Se aos olhos de pesquisadores os conflitos de fronteira são única a
razão da violência do Hamas, há que se reconsiderar essa premissa, pois,
internamente, essa não é a única razão para os tais, uma vez que “o povo
palestino [é] tão oprimido por seus próprios líderes quanto por Israel”
(YOUSEF, 2010, p. 274). Nas palavras de um morador ilustre da região, “a
razão do nosso sofrimento não era a ocupação. Nosso problema era muito
maior do que exércitos e política” (YOUSEF, 2010, p. 144).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A presente pesquisa foi realizada sobre um campo complexo, “campo
minado”. A sensibilidade e numerosas “razões” envolvidas na questão eram
conhecidas desde o princípio, mas não considerei que o desafio devesse ser
abandonado por causa disso.
182
Penso ter apresentado os resultados da pesquisa ajustados ao
referencial teórico e dentro da metodologia proposta. Do modo como apreendi
e apliquei a teoria mimética ao estudo da violência do Hamas, considerei o que
me pareceu serem os pontos necessários de ambos os lados, a saber:
1. A ocupação israelense com o que de negativo ela provoca na
sociedade palestina, independentemente de credo ou coloração
política;
2. O histórico de interpretações enviesadas do Corão, conforme o
pensamento militante propõe, por outro lado.
Entendo que a pesquisa não privilegiou nenhuma das realidades: nem a
visão israelense nem a palestina, apresentando, por vezes, autores que se
colocam em ambos os lados. Entendo como função do pesquisador buscar a
mediação entre pesos equivalentes, a fim de chegar a um consenso ou a um
resultado justo, esclarecido e honesto para o seu trabalho. Do mesmo modo,
autores com linhas de pensamento distintas foram usados, ora encontrando a
visão de um lado e ora de outro. O trabalho de seleção das fontes das
declarações procurou privilegiar a hipótese levantada na Introdução, seguindo
um roteiro e o recorte proposto e apresentado previamente à banca. Do
contrário, a extensão do trabalho não poderia ser medida. Confirmou-se que
“havendo suficiente repetição no padrão que aponte para a pergunta de
partida, a hipótese se confirmará e a teoria se manterá” (p. 34). E houve.
Com isso, a teoria mimética de René Girard pôde ser aplicada ao estudo
do conflito israelo-palestino, com atenção ao Hamas e a resposta que o
movimento dá “a partir do campo religioso”. Há respostas e motivações sociais,
nacionalistas e outras dadas por atores locais; mas primariamente o Hamas
assume, como movimento que se autodenomina “islâmico”, uma motivação que
emana de matriz religiosa e essa matriz é apoiada (ou modelada) por uma
leitura específica do Corão e da tradição do Islã. Essa tradição foi observada
no surgimento do Islã no século VII (cfm. Capítulo 2), ainda que não tenha sido
(ou não seja) o padrão universalmente aceito pela comunidade de fé. A
183
recorrência a versículos é vastamente demonstrada, 243 ainda que em
interpretação enviesada.
Embora não tenha sido o mote principal da pesquisa, ocupei-me da
apresentação do que o Islã anuncia como sendo tolerável e não tolerável em
questões que envolvem o uso da força e da violência (Capítulo 1 mais
enfaticamente). Também tomei o cuidado de evitar generalizações sobre a
população palestina, que sabemos ser plural em sua composição cultural e
religiosa. As respostas dadas pelo povo palestino a ocupação israelense e a
outros fatores que geram o empobrecimento e a opressão do povo palestino
são, diante do que se pode verificar na pesquisa, legítimas. Elementos nos
Capítulos 1 e 3 podem demonstrar isso. Assim, o direito a autodeterminação é
necessário e precisa ser atendido a meu ver, embora não haja resposta fácil
para a solução da questão.
O Hamas, como grupo que luta contra a ocupação do território palestino
feita por colonos judeus, age com os recursos e os meios de que dispõe, com
os recursos que lhe estão à mão, embora sejam notadas ocorrências que
fogem ao eixo central dessa ação de resistência. A situação caótica da
sociedade reflete-se na sua própria organização, fazendo com que seja
impossível controlar todas as ações havidas e atribuídas ao grupo. Mas isso é
detalhe e não deve tirar o foco do montante maior das operações do
Movimento.
No que toca o tempo presente, a eleição do Movimento com 45% dos
votos (HROUB, 2009, p. 115) e o direito a parte dos assentos dentro da
Autoridade Palestina, o recorte temporal da pesquisa não contemplou (19862006), portanto não justifica qualquer consideração no momento. Apenas
esperamos que a eleição seja positiva para a causa palestina, para a
convivência com o vizinho Israel e para a região.
Quanto ao Islã, propriamente dito, penso não haver necessidade de
tecer considerações, haja vista que a ocupação da pesquisa se deu sobre um
segmento minoritário dentro da ampla população aderente a esta fé. Vale,
portanto, o dizer de Demant (2004, p. 365) na penúltima página de seu livro –
“com o islã: diálogo”.
243
Vimos os versículos prova nas pp: 47 (nota 58), 129, 165, 169, 174, 175 e outras indiretamente.
184
E assim como a lei de países civilizados pressupõe que a voz
da consciência de todo mundo dita “Não matarás”, mesmo que
o desejo e os pendores do homem natural sejam às vezes
assassinos, assim a lei da terra de Hitler ditava à consciência
de todos: “Matarás”, embora os organizadores dos massacres
soubessem muito bem que o assassinato era contra os desejos
e os pendores normais da maioria das pessoas. No Terceiro
Reich, o Mal perdera a qualidade pela qual a maior parte das
pessoas o reconhecem – a qualidade da tentação (ARENDT,
1999, p. 167)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ABU-RABI’, Ibrahim M., org. O guia árabe contemporâneo sobre o islã político,
trad. André Oídes. São Paulo: Madras, 2011.
ALCORÃO. Mansour Challita. Alcorão – Livro sagrado do Islã. Rio de Janeiro:
BestBolso, 2010.
ALCORÃO, Tradução do Sentido. Dr. Helmi Nasr. Liga Islâmica Mundial.
Makka. 2003.
ALCORÃO SAGRADO, Samir El Hayek. Os significados dos versículos do
Alcorão Sagrado. São Paulo: Federação das Associações Muçulmanas do
Brasil, s/d.
ALVARIÑO, I. A. España ante el gobierno de Hamas. Barcelona: Revista
CIDOB d’Afers Internacionals, nº 79-80, 2007.
AREND, H. A eleição do Hamas e o princípio democrático. Brasília: Meridiano
47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações Internacionais do
Instituto Brasileiro de Relações Internacionais/IBRI, nº 67, fev. 2006.
AREND, H. O Terrorismo Internacional como Sintoma de Ordenamento.
Brasília: Meridiano 47, Boletim de Análise de Conjuntura em Relações
Internacionais do Instituto Brasileiro de Relações Internacionais/IBRI, nº 69,
2006.
185
ARENDT, H. Eichmann em Jerusalém – um relato sobre a banalidade do mal.
São Paulo: Companhia das letras, 1999.
ARMSTRONG, K. Islã. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
ARMSTRONG, K. Em nome de Deus: o fundamentalismo no judaísmo, no
cristianismo e no islamismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
ATEEK, N. Suicide bombers: What is theologically and morally wrong with
suicide bombing? A Palestinian Christian perspective, in Studies in World
Christianity, vol. 8, no 1, 2002.
AVNERY, U. All Kind of Terrorists, in Media Monitors Network. Califórnia, Nov.
2001. Disponível em: http://www.mediamonitors.net/uri44.html, Acessado em
22 de Abril de 2014.
BAAR, M. O Ocidente na encruzilhada. Portugal, Queluz: Núcleo, 1980.
BARD, M. G. Mitos e Fatos – a verdade sobre o conflito árabe-israelense. São
Paulo: Sêfer, 2004.
BARDIN, L. Análise de conteúdo. Lisboa: Edições 70, 1979.
BERGER, P. O dossel sagrado. São Paulo: Paulus, 1985.
BINGEMER, M.C. Luccheti. Violência e religião, 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora
Puc/Ed. Loyola, 2002.
BLAINEY, G. Uma breve história do mundo, 2a ed. São Paulo: Editora
Fundamento, 2008.
BLOOM, M. Palestinian suicide bombing: public support, Market share, and
outbidding. Political Science Quarterly, vol. 119, 2004, no 1, pp. 61-88.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas, 7ª ed. São Paulo:
Perspectiva, 2011.
BUORO, A. B. [et. al.]. Violência urbana: dilemas e desafios, 3a ed. São Paulo:
Atual, 1999.
CANER, E. M. & CANER, E. F. O islã sem véu: um olhar sobre a vida e a fé
muçulmana. São Paulo: Vida, 2001.
CARRANCA, A.; CAMARGOS, M. O Irã sob o chador, duas brasileiras no país
dos aiatolás. São Paulo: Globo, 2010.
CHEN, T. Exploration of the Hamas Suicide Attacks, in Journal of Middle
Eastern and Islamic Studies (in Asia) vol. 6, no 2, pp. 106-120, 2012.
186
CHEREM,
Y.
As
ambiguidades
do
direito
islâmico
em
contextos
contemporâneos. Belo Horizonte: Horizonte, 2011, jan-mar.2011, v. 9, nº 20.
CRENSHAW, M. The Debate over “New” vs. “Old” Terrorism. Prepared for
presentation at the Annual Meeting of the American Political Science
Association, Chicago, Illinois, Aug 30-Sep 2, 2007.
CROCHÍK, José Leon. Preconceito, indivíduo e cultura. São Paulo: Casa do
Psicólogo, 2006.
DEMANT, P. O mundo muçulmano. São Paulo: Contexto, 2004.
DURKHEIM, E. As formas elementares de vida religiosa (o sistema totêmico na
Austrália), 2ª ed. São Paulo: Paulus, 1989.
FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
1968.
FARAH, P. D. A relação com a terra na obra do escritor palestino Ghassan
Kanafani. Dossiê Estudos Árabes & Islâmicos. Revista Litteris, no 7,
mar.2011.
FARAH, P. D. Islã condena conflitos. São Paulo: Folha de S. Paulo,
16.09.1998.
FILORAMO, G & PRANDI, C. As Ciências das Religiões. São Paulo: Paulus,
1999.
FLINT, G. Miragem de paz – Israel e palestina, processos e retrocessos. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.
FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
GARAUDY, R. Promessas do Islã. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1998.
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.
GEERTZ, C. Observando o islã: o desenvolvimento religioso no Marrocos e na
Indonésia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2004.
GELLNER, E. Pós-modernismo, razão e religião. Lisboa: Instituto Piaget, 1992.
GIRARD, R. A violência e o sagrado, 2ª ed. São Paulo: Unesp [Paz e Terra],
1990.
___________. O bode expiatório. São Paulo: Paulus, 2004.
____________; ANTONELLO, P; CASTRO ROCHA, J. C. Evolução e conversão,
1ª ed. São Paulo: É Realizações Editora, 2011.
187
GOFFMAN, E. Estigma, notas sobre a manipulação da identidade deteriorada,
4ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988.
GRIFFEL, F. Introduction. In AMANAT, A; GRIFFEL, F. Sharia: Islamic Law in
the Contemporary Context. Stanford: Stanford University Press, 2007.
HALLIDAY, F. The Crisis of Universalism: America and Radical Islam after 9/11,
in Open Democracy. Londres: set.2004b. O artigo foi acessado em
30.04.2014 e está disponível em http://www.tni.org/print/66418.
HALLIDAY, F. Terrorism in historical perspective, in Open Democracy. Londres:
abr.2011. Artigo acessado em 15.04.2014 e disponível para leitura em
http://www.opendemocracy.net/conflict/article_1865.jsp#"two".
HANIF, S. The difference between freedom-fighters and terrorists is not
perception but terminology, in Media Monitors Network, California, 2003.
Disponível em http://www.mediamonitors.net/sabiahanif1.html, acessado em
15.04.2014.
HASS, A. Israeli attacks on Palestinian olive groves kept top secret by state.
Disponível em http://www.haaretz.com/news/diplomacy-defense/.premium1.554690 acessado em 28.10.13.
HASSAN, N. An Arsenal of Believers. In The New Yorker, Nov 19, 2001, pp. 3641. Acessado em 23.05.2014 e disponível no endereço http://www.newyorker.
com/archive/2001/11/19/011119fa_FACT1?currentPage=1.
HORKHEIMER, M. Teoria tradicional e teoria crítica, Col. Os Pensadores, vol.
XLVIII. São Paulo: Abril, 1975.
HOURANI, A. Uma história dos povos árabes. São Paulo: Companhia das
Letras, 1994.
HROUB, K, Hamas, um guia para iniciantes. Rio de Janeiro: Difel [Bertrand
Brasil], 2009.
KALOUT, H. A. O Hamas no poder. Brasília: Meridiano 47, Boletim de Análise
de Conjuntura em Relações Internacionais do Instituto Brasileiro de
Relações Internacionais/IBRI, nº 66, 2006.
KAMEL, A. Sobre o Islã – a afinidade entre muçulmanos, judeus e cristãos e as
origens do terrorismo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2007.
KAPELIOUK, A. L’implantation de colonies israéliennes dans les territoires
occupés crée des faits accomplis “irréversibles”. Le Monde Diplomatique,
188
06.1972.
Disponível
em
http://www.monde-
diplomatique.fr/1972/06/KAPELIOUK/17438 e acessado em 06.05.14.
KARAM, C. A Origem do ‘Estado de Israel’ e suas Motivações, in Brasil de
Fato. São Paulo: abril de 2010. Disponível em http://www.brasildefato.
com.br/node/4627 e acessado em 15.04.2014.
KENNEDY, J. C. E se Jesus não tivesse nascido? São Paulo: Vida, 2003.
KEPEL, G. The origins and development of the jihadist movement: from anticommunism to terrorism. Asian Affairs, vol. XXXIV, no II, pp. 91-108, Jul.2003.
KINBERLY, J. Construting the nation in opposition: human rights as strategic
building blocks. Boston: Northeastern University, 2010.
KNOWLTON, S. C. Sírios e Libaneses: Mobilidade social e espacial. São
Paulo: Anhamb, 1961.
LEWIS, B. Os assassinos – os primórdios do terrorismo no Islã. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Ed., 2003.
LUNA, S. V. Planejamento de pesquisa. São Paulo: Educ, 2011.
MARTUCCELLI, D. Reflexões sobre a violência na condição moderna. In
Tempo Social, Revista de Sociologia da USP, vol. 11(1), maio de 1999. São
Paulo: USP, 1999.
MORIN, E. O mundo moderno e a questão judaica. Rio de Janeiro: Bertrand
Brasil, 2007.
MORRIS, B. Um Estado, Dois Estados. São Paulo: Sêfer, 2014.
MORRIS, B. Cansei do conflito israelense-palestino. Infoglobo, 25.02.2014,
entrevista
a
Renata
Malkes.
Acessado
em
http://oglobo.globo.com/mundo/benny-morris-cansei-do-conflito-israelensepalestino-1-11703121 no dia 26.02.2014.
NASR, S. H., Islam and the question of violence, in Journal, vol. 13, nº 2. AlIslam.org, publicado por Ahlul Bayt Digital Islamic Library Project. Disponível
em http://www.al-islam.org/al-serat/vol-13-no-2/islam-and-question-violenceseyyed-hossein-nasr no dia 04.02.2014.
NOBRE, M. A teoria crítica, Col. Filosofia passo-a-passo, vol. 47. Rio de
Janeiro: Zahar, 2004.
OLIVEIRA, R. C. Identidade, etnia e estrutura social. São Paulo: Pioneira,
1976.
189
PAPE, R. A. The Strategic Logic of Suicide Terrorism. In American Political
Science Review. Cambridge, v. 97, no 3, pp. 343-361, ago.2003.
PIAZZA, W. O. Religiões da humanidade, 2ª ed. ampliada. São Paulo: Edições
Loyola, 1991.
PINHEIRO, P. S. & ALMEIDA, G. A. Violência urbana, Folha Explica. São
Paulo: Publifolha, 2003.
PINKER, S. Os anjos bons da nossa natureza – por que a violência diminuiu.
São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
PIPES, D. CAIR: Islamists Fooling the Establishment. Middle East Quarterly,
2006. Disponível em http://www.danielpipes.org/3437/cair-islamists-foolingthe-establishment e acessado em 06.05.20.14.
PEREIRA, J. B. B., org. Religiosidade no Brasil. São Paulo: Edusp, 2012.
PIERUCCI, A. Máquina de guerra religiosa: o islã visto por Weber. São Paulo:
Cebrap, Novos Estudos, nº 62, mar.2002, pp. 73-96.
PIPES, D. How Dare You Defame Islam, in Middle East Forum, nov. 1999.
Disponível em http://www.danielpipes.org/321/how-dare-you-defame-islam
acessado em 06.05.2014.
PLANTINGA, A. Deus, a liberdade e o mal. São Paulo: Ed. Vida Nova, 2012.
REIS, J. J. Rebelião escrava no Brasil, a história do levante dos malês (1835).
São Paulo: Editora Brasiliense, 1986.
REIS, L. G. Produção de monografia, da teoria à prática, 3ª ed. Brasília: SenacDF, 2010.
RIBEIRO, L. M. P. Negros islâmicos no Brasil escravocrata. São Paulo:
Cadernos CERU, série 2, v. 22, nº 1, jun.2011.
RICHARDSON, D. Segredos do Alcorão. Camanducaia: Missão Horizontes
América Latina, 2007.
SAID, E. W. A questão da Palestina. São Paulo: Ed. Unesp, 2012.
SANTOS, B. S. Para uma sociologia das ausências e uma sociologia das
emergências, Revista Crítica de Ciências Sociais, nº 63, out.2002, pp. 237280. Lisboa: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Centro
de Estudos Sociais, 2002.
SHAUL K; EVEN, S. Who are the Palestinian suicide bombers? In Terrorism
and Political Violence, vol.16, no 4, 2004, pp. 815-840 [Taylor and Francis].
190
SILVA, S. V. Justiça social: um diálogo entre Cristianismo e islamismo. Rio de
Janeiro: PUC-Rio, 1997.
SOREL, G. Reflexões sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes, 1992.
START. National Consortium for the Study of Terrorism and Responses to
Terrorism (START). (2012).Global Terrorism Database [Data file]. Retrieved
from http://www.start.umd.edu/gtd.
STEPANYANTS, M. Sufism in the Context of Modern Politics. Acessado em
http://www.iop.or.jp/Documents/0919/stepanyants.pdf a 14.06.2014.
STERN, J. Terror em nome de Deus. Por que os militantes religiosos matam.
São Paulo: Barcarolla, 2004.
SUTTI, P. RICARDO, S. As diversas faces do terrorismo. São Paulo: Ed.
Harbra, 2003.
TRUZZI, O. M. S. Patrícios: Sírios e libaneses em São Paulo. São Paulo:
Hucitec, 1997.
TUTU, Desmond. Deus não é cristão e outras provocações. Rio de Janeiro:
Thomas Nelson, 2012.
VÁRIOS autores. O preconceito. São Paulo: Imesp [Imprensa Oficial do
Estado], 1997.
VERNET, J. As origens do Islã. São Paulo: Ed. Globo, 2004.
VILHENA, J.; ZAMORA, M. H. (orgs.). As cidades e as formas de viver 2:
religiões, fé e fundamentalismos. Rio de Janeiro: Museu da República, 2007.
WALZER, M. Guerras Justas e injustas – un razonamiento moral com ejemplos
históricos. Barcelona: Paidós, 2001.
WARRAQ, I. Why I am not a muslim. Amherst, NY: Prometheus Books, 1995.
WATZAL, L. UN Report on Palestine: Military Occupation, Apartheid, and Torture. In
PalestineChronicle.com de 23.04.2014. Acessado em 30.04.2014.
WEBER, M. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva,
vol. 1, 4ª ed. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília, 1999.
WEINBERG, J. A. A pena, a tinta e o sangue: a guerra das ideias e o Islã.
Porto Alegre: Edipucrs, 2007.
YE’OR, B. Islam and Dhimmitude: where civilizations colide. Cranbury, NJ:
Associated University Presses, 2002.
191
YOUSEF, M. H. & BRACKIN, R. Filho do Hamas. Rio de Janeiro: Sextante,
2010.
ANEXO 1: Porções do Estatuto do Hamas 244
[foi mantida a grafia original]
Israel existirá e continuará existindo até que o Islã o faça desaparecer,
como fez desaparecer a todos aqueles que existiram anteriormente a ele. [...]
As almas dos combatentes da Jihad encontrarão as almas de todos os
guerreiros santos que sacrificaram suas vidas pela terra da Palestina [...]
Por este Pacto, o Movimento de Resistência Islâmica (Hamas) mostra a
sua cara, apresenta sua identidade [...] porque nossa luta contra os judeus é
muito longa e muito séria, e exige todos os esforços sinceros. [...]
Art. 3 [...] (Tais muçulmanos) reconhecem seus deveres para consigo
mesmos, suas famílias e sua pátria, temendo a Alá em tudo. Eles fizeram
levantar a bandeira da jihad diante dos opressores a fim de livrar a terra e os
crentes de suas depravações, impurezas e maldades. “Atiramos a verdade
contra a falsidade e arrebentamos a cabeça dela e, vedes, ela desaparece.”
(Alcorão 21:18). [...]
Art. 7 [...] O Movimento de Resistência Islâmica é um elo da corrente da
jihad contra a invasão sionista. Acha-se conectado e vinculado ao (corajoso)
levante do mártir “Izz Al-Din Al-Kassam e sua irmandade, os combatentes da
jihad da Irmandade Muçulmana no ano de 1936. Em seguida está relacionado
e conectado a outro elo, a jihad dos palestinos, o empenho e a jihad da
Irmandade Muçulmana na guerra de 1948, e às operações da jihad da
Irmandade Muçulmana de 1968 em diante. [...] O Profeta [...] disse; “A hora do
julgamento não chegará até que os muçulmanos combatam os judeus e
244
Disponível
em
http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/documentos/integra-do-estatuto-do-
hamas/ acessado em 05.06.2009. “O Pacto é a constituição política do Hamas e o seu credo. Ele nunca
foi substituído ou anulado e, embora recorrentemente pressionado a fazê-lo, o Hamas nunca o alterou
ou indicou uma prontidão para alterar qualquer uma das suas disposições” (MORRIS, 2014, p. 192). “No
Pacto de 25 páginas, as Cruzadas e os cruzados são mencionados explicitamente 9 vezes; a palavra jihad
aparece 11 vezes. Saladino, o guerreiro curdo que conduziu os exércitos muçulmanos na destruição do
Reino de Jerusalém, é mencionado 4 vezes” (Ibidem, p. 198).
192
terminem por mata-los e mesmo que os judeus se abriguem por detrás de
árvores e pedras, cada árvore e cada pedra gritará: Oh! Muçulmanos, Oh!
Servos de Alá, há um judeu por detrás de mim, venha e mate-o, exceto se se
tratar da árvore Gharkad, porque ela é uma árvore dos judeus.”
Art. 11 [...] Qualquer ato que não esteja de acordo com essa Lei Islâmica
em relação à Palestina é nulo e revogado.” Essa é a única verdade. Por isso,
Louvai o Grande Nome do Senhor.” (Alcorão 56 –95/96). [...]
Art. 12 Nacionalismo, segundo o Movimento de Resistência Islâmica, é
parte do credo religioso. Não existe nada que fale mais eloquentemente e mais
profundamente de nacionalismo do que se segue quando o inimigo usurpa
território muçulmano, quando travar a Jihad e confrontar o inimigo se torna um
dever pessoal de cada muçulmano, homem e mulher. Uma mulher pode sair
para lutar contra o inimigo (mesmo) sem a permissão do marido e um escravo
sem a permissão do seu senhor. Não existe nada igual em qualquer outro
sistema político – é um fato indiscutível. Enquanto vários outros nacionalismos
se baseiam em fatores físicos, humanos e regionais, o nacionalismo do
Movimento de Resistência Islâmica é caracterizado por todos os fatores acima
e mais – e o mais importante – é caracterizado por motivos divinos que
promovem um pacto entre esse nacionalismo, o espírito e a vida, desde que se
torna relativo à fonte do espírito e a Ele que dá a vida. (O Movimento de
Resistência Islâmica) está levantando a bandeira divina nos céus da pátria, de
modo a criar laços indissolúveis entre o firmamento e a terra. “O caminho certo
surge claramente do erro; por isso quem renuncia à falsidade e crê em Alá, é
como agarrar firmemente um apoio, que nunca se quebra, e Alá tudo ouve e
vê.” (Alcorão 2 – 256). [...]
Art. 13 As iniciativas, as assim chamadas soluções pacíficas e
conferências internacionais para resolver o problema palestino se acham em
contradição com os princípios do Movimento de Resistência Islâmica, pois
ceder uma parte da Palestina é negligenciar parte da fé islâmica. O
nacionalismo do Movimento de Resistência Islâmica é parte da fé (islâmica). É
à luz desse princípio que seus membros são educados e lutam a jihad (Guerra
Santa) a fim de erguer a bandeira de Alá sobre a pátria. “E Alá tem total
controle sobre Seus feitos; mas muita gente não sabe.” (Alcorão 12-21)
193
[...] Não há solução para o problema palestino a não ser pela jihad
(guerra santa). Iniciativas de paz, propostas e conferências internacionais são
perda de tempo e uma farsa. O povo palestino é muito importante para que se
brinque com seu futuro, seus direitos e seu destino. Como consta do ahadith:
“O povo de Al-Sha’m é o açoite (de Alá) na Sua terra. Por meio dele, Ele se
vinga de quem Ele quer, dentre os Seus servos. Os hipócritas não podem ser
superiores aos crentes, e devem morrer em desgraça e aflição.” (registrado por
Al-Tabarani, que se acha em linha com Maomé, e por Ahmad (Ibn Hanbal), que
se possui uma linha incompleta com Maomé, e que pode ser o registro mais
preciso, podendo ser confiáveis, em ambos os casos, a transmissão das
palavras do Profeta – Alá, por si, é onisciente). [...]
Art. 15 No dia em que o inimigo conquista alguma parte da terra
muçulmana, a jihad (guerra santa) passa a ser uma obrigação de cada
muçulmano. Diante da ocupação da Palestina pelos judeus é necessário
levantar a bandeira da jihad (guerra santa). Isso exige a propagação da
consciência islâmica nas massas, localmente (na Palestina), no mundo árabe e
no mundo islâmico. É necessário instilar o espírito da jihad (guerra santa) em
toda a nação, reunir todas as fileiras dos combatentes da jihad (guerra santa)
envolvendo os inimigos. [...]
Faz-se (também) necessário introduzir mudanças essenciais nos
currículos, a fim de eliminar as influências da invasão intelectual infligida pelos
orientalistas e missionários. [...] É necessário colocar nas mentes de todas as
gerações de muçulmanos que o problema da Palestina é um problema
religioso, e que assim deve ser tratado, pois (a Palestina) contém lugares
sagrados islâmicos, a mesquita de Al Aksa, que está inseparavelmente ligada,
enquanto durarem o céu e a terra, à sagrada mesquita de Meca, devido á
vigem noturna do Profeta (da mesquita de Meca à de Al Aksa), e a sua
conseqüente ascensão ao céu. (enfase acrescentada) [...]
Art. 22 [...] Não há um fim para dizer tudo sobre o envolvimento do
inimigo sionista em guerras localizadas e guerras mundiais. Estiveram por
detrás da Primeira Guerra Mundial, por meio da qual obtiveram a destruição do
Califado Islâmico [...] Estiveram, também, por detrás da Segunda Guerra
Mundial[...] Onde há uma guerra no mundo eles se encontram acionando os
194
cordéis por detrás das cortinas. “Quando acendem o fogo da guerra, Alá o
extingue. Eles se esforçam para espalhar o mal na terra, mas Alá não ama
aqueles que praticam o mal” (Alcorão, 5 – 64). [...]
Art. 25 [...] Tudo que se oponha ou contradiz a essa orientação é
fabricado pelo inimigo ou por seus lacaios a fim de provocar confusão, dividir
as fileiras e provocar distração com assuntos laterais. “Oh! Vós que credes, se
um mal intencionado lhe traz informação (sobre alguém), deveis examiná-la
cuidadosamente, para não atingir pessoas (inocentes), devido a ignorância,
para depois vos arrependerdes.” (Alcorão 49 – 6) [...]
Art. 27 [...] A ideologia secularista se acha em total contradição com a
ideologia religiosa, e são as idéias que são as bases das posições, condutas e
decisões. [...] não podemos eliminar a identidade islâmica da Palestina, que é
parte da nossa fé, e quem negligencia essa fé está perdido. “Quem rejeita a
religião de Abrahão é alguém que ficou um tolo”. (Alcorão 2-130). [...] Quando a
OLP adotar o Islã como seu meio de vida, então seremos as suas tropas e o
combustível para o seu fogo que consumirá o inimigo. [...]
Art. 28 [...] O sionismo se encontra por detrás de todo tipo de tráfico de
drogas e do álcool, para facilitar o seu controle e sua expansão. Exigimos que
os países árabes em torno de Israel abram as suas fronteiras aos árabes e
muçulmanos combatentes da Jihad, a fim de cumprirem sua parte, juntando
suas forças às forças dos seus irmãos – a Irmandade Muçulmana na Palestina.
Dos demais países árabes e muçulmanos, exigimos que, no mínimo, facilitem a
passagem através de seus territórios dos combatentes da Jihad. [...]
Art. 29 [...] de forma que cada cidadão muçulmano seja uma reserva de
apoio e reforço para o Movimento, e que disponibilizem profundo apoio
estratégico em termos de recursos humanos e materiais e em informação, a
qualquer tempo e em qualquer lugar. [...] “Alá disse: ‘EU e Meu Mensageiro
acabaremos prevalecendo.’ Alá é forte e todo-poderoso” (Alcorão, 58-21) [...]
A jihad não se limita a pegar em armas e combater o inimigo cara a cara,
pois palavras eloquentes, escritos que persuadem, livros que efetivamente
cumprem com sua finalidade, o apoio e a ajuda – tudo leva a desempenhar a
sincera intenção de levantar a bandeira de Alá e faze-la reinar suprema – tudo
isso é a jihad em prol de Alá. (O Profeta disse: “Quem prepara um guerreiro
195
com todas as armas para lutar por Alá é (também) um guerreiro, e quem dá
apoio à família de um guerreiro (que saiu para combater por Alá) é, também,
um guerreiro.” (registrado por Bukhari, Muslim, Abu Da’ud e Tirmidhi na suas
coleções de Hadith). [...]
Art. 31 O Movimento de Resistência Islâmica é um Movimento humano
que respeita os direitos humanos e se acha comprometido com a tolerância
islâmica para com os seguidores de outras religiões. [...] Somente sob o manto
do Islã é que a salvaguarda e a segurança imperam. A história antiga e a
recente dão provas disso. Os seguidores de outras religiões devem parar de
competir com o Islã pela soberania nesta região, porque quando eles
governam, ocorrem atos de assassinatos, torturas e deportações, e não
permitem que outras religiões possam ter seu curso. Tanto o presente como o
passado estão cheios de provas disso.
Art. 32 [...] Todas as forças e toda capacidade disponível devem ser
reunidas para enfrentar os ferozes ataques dos mongóis, nazistas, para impedir
que a pátria seja perdida, o povo exilado, o mal espalhado sobre a terra e todos
os valores religiosos sejam destruídos. [...]
Art. 34 [...] assinalou esse fato em suas nobres palavras com as quais se
dirigiu ao exaltado companheiro, Um’adh Jabal, dizendo: “Oh! Um’adh, Alá lhe
concederá as Terras de Al-Sha’m 245 após minha morte, que vai de Al-‘Arish 246
ao Eufrates. Seus homens, mulheres e o produto do trabalho de suas mãos
ficarão permanentemente nessas terras até o Dia da Ressurreição, para todos
aqueles que tenham escolhido viver em alguma parte da planície costeira de
Al-Sha’m ou Bayt Al-Makdis (Palestina), que se encontrará em permanente
estado de Jihad, até o Dia da Ressurreição.” [...] Somente o ferro pode romper
o ferro, e a falsa e fabricada fé dos inimigos somente pode ser vencida pela fé
verdadeira do Islã, porque a verdadeira fé religiosa não pode ser atacada
senão pela fé religiosa. E a verdade deverá triunfar porque a verdade é mais
forte. [...] “Já demos Nossa Palavra para Nossos servos, os mensageiros, e
245
Nos escritos islâmicos medievais, Al-Sha’m se refere, grosseiramente, a toda uma área que
corresponde presentemente a Israel, Palestina, Líbano, Jordânia e Síria.
246
Al-‘Arish é a capital de uma província egípcia no Sinai do Norte.
196
que serão ajudados até a vitória e que o Nosso exército acabará triunfando.”
(Alcorão, 37: 171–173).
ANEXO 2: Símbolos do Hamas
O logotipo do Hamas ilustra atitude do grupo no contexto territorial em
relação a Israel. No topo aparece um esboço do território de Israel, Gaza e
Cisjordânia como uma entidade única coberta de verde, cor adotada pelo
Movimento e característica do Islã. No centro está o santuário muçulmano
Domo da Rocha, situado em Jerusalém, cercado por bandeiras da Palestina
com as frases “Não há Deus senão Alá” e “Maomé é o mensageiro de
Alá”. Sob esse conjunto está a palavra “Palestina” e na flâmula a expressão
“Movimento de Resistência Islâmica do Hamas”. As espadas são um motivo
islâmico comum, representando o poder do Islã e do desejo de espalhar a
religião, pela força se necessário. 247
247
http://www.ucg.org/middle-east/telling-symbolism-hamas-logo/
197
A bandeira do Hamas na cor verde traz a Shahada (do árabe
“testemunho”), que é a profissão de fé muçulmana e o primeiro dos cinco
pilares do Islamismo (arkan al-Islam). É uma declaração que pode ser dividida
em duas partes. 248
Logotipo comemorativo dos 25 anos do Hamas destaca o Domo da
Rocha, a totalidade do território do rio Jordão ao mar Mediterrâneo e o míssil
Qassam-M75 representando a resistência (ou o desejo de destruição de Israel).
248
http://pt.wikipedia.org/wiki/Chahada
198
O Hamas no Brasil
O emblema do Hamas no Brasil (Sociedade Islâmica no Maranhão) 249 é
distinto do original palestino e é composto por um livro aberto (referência ao
Corão) com o mapa mundi ao centro, mãos que seguram uma metralhadora,
símbolo da resistência armada, e outra sustentando um lápis, provável
indicação a educação. A Shahada está no alto do símbolo. Mas chama a
atenção é que este emblema assemelha-se em suas cores ao emblema
(logotipo) do grupo de resistência no Líbano, o Hesbollah (abaixo).
A inscrição estilizada principal que compreende a base do logotipo traz a
palavra Hezbollah. O texto superior diz “Então, certamente o partido de Allah
249
Disponível em http://islam-maranhao.blogspot.ca/2011/05/pib-partido-islamico-brasileiro.html
em 05.03.2014. A pesquisa não contemplou o estudo deste grupo. Pessoalmente não acredito que se
trate de uma sucursal do Movimento original; talvez apenas simpatizantes.
199
são os que hão de triunfar”, uma citação do Corão 5:56, enquanto o texto
inferior diz “A Resistência Islâmica no Líbano”. 250
250
http://www.crwflags.com/fotw/flags/lb%7Dhezb.html em 02.07.14.
200
Download