MAONOMICS - Grupo Editorial Record

Propaganda
MAONOMICS
Por que os comunistas chineses se saem
melhores capitalistas do que nós
LORETTA
NAPOLEONI
Tradução de Pedro Jorgensen
Rio de Janeiro | 2014
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 3
29/5/2014 15:52:57
PREFÁCIO
Podem os acontecimentos no norte da África e no Oriente Médio em
2011 ser tomados como um marco adequado à indispensável avaliação
crítica do sistema econômico e político ocidental? Pode tal análise ser
efetuada usando-se o modelo asiático de desenvolvimento não como
uma alternativa ao tradicional paradigma socioeconômico ocidental,
mas como algo distinto, novo, único? Desde o início da globalização,
essa nova fórmula tem se mostrado bem-sucedida em todos os países
emergentes que a adotaram.
Esse inusitado exercício poderia nos ajudar a compreender os
nossos erros e encontrar explicações razoáveis para a aparente falta de
sintonia entre o nosso modelo econômico e o mundo em que vivemos.
Quem sabe poderia também lançar alguma luz sobre a obscura complexidade da economia globalizada. Em nossa caminhada rumo a um
mundo multipolar, fica cada vez mais claro que não há um modelo de
desenvolvimento ideal, tampouco um sistema econômico e político que
sirva a qualquer país. Complexidade gera singularidade.
A comparação entre o desempenho econômico de dois modelos distintos de desenvolvimento, o ocidental e o chinês, é, pois, um exercício
fundamental, capaz de abrir uma janela sobre o novo mundo e nos dar
um vislumbre do futuro. O fato é que, enquanto o Ocidente luta para
se recuperar economicamente e o Oriente Médio se incendeia — uma
explosão causada pela injustiça econômica e social —, a Ásia cresce aceleradamente. Pela primeira vez em gerações, a riqueza começa a dar
7
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 7
29/5/2014 15:52:57
poder às pessoas: O crescimento econômico gera melhores padrões
de vida, novas oportunidades de negócios e um grau mais elevado de
independência. Entre nós, no entanto, poucos têm notícia do lento
movimento rumo à participação política impelido pelo crescimento
econômico da Ásia e um número ainda menor está ciente da transformação fundamental, em curso no continente, do paradigma socioeconômico conhecido como “capitalismo e democracia” — um terremoto
político causado não por uma revolução, mas pela manutenção de uma
forma centralizada de governo que muitos ainda definem como comunismo.
Ao mesmo tempo que o vírus da liberdade infecta os países do norte
da África — governados por democracias de araque e regimes ditatoriais — e as massas se empenham em derrubar líderes oligárquicos há
décadas sustentados pelo Ocidente democrático, a fórmula do autoritarismo oriental combinado à liberdade econômica — que nós no
Ocidente há tanto tempo criticamos sem compreender — torna-se uma
alternativa atraente ao obsoleto modelo socioeconômico de desenvolvimento ocidental. Faça a si mesmo as seguintes perguntas: Se eu fosse,
hoje, um egípcio, qual regime econômico preferiria imitar: o ocidental
ou o asiático? Confiaria nas lideranças e corporações ocidentais que há
décadas fazem negócios com a elite oligárquica que me oprime e me
rouba? Ou buscaria os políticos e empresas dos países emergentes, pessoas que até poucas décadas atrás eram tão pobres e espoliadas quanto
eu sou?
A máquina de propaganda que cega o mundo quer nos fazer crer
que o calvário por que passa o Oriente Médio não tem nada a ver
com o nosso modelo político e econômico e, mais ainda, que nós não
fomentamos regimes repressivos e ditatoriais fantasiados de seguidores
da liberdade econômica e da democracia. Em 2010, a União Europeia
vendeu à Líbia de Khadafi quase 400 milhões de euros em armamentos
que, em 2011, ele usou contra o seu próprio povo. O preço da nossa
8
PREFÁCIO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 8
29/5/2014 15:52:57
democracia parece ser a defesa de regimes antidemocráticos em países
distantes, como a Arábia Saudita, uma monarquia repressiva onde as
mulheres têm muito menos direitos que os homens. Imagine as consequências econômicas da queda da Casa de Saud, o segundo maior produtor mundial de petróleo depois da Rússia e o maior exportador para
o Ocidente: nosso bem-estar poderia desaparecer num piscar de olhos.
A crise do crédito e a recessão expuseram a instabilidade endêmica
da nossa economia, evidenciando as suas idiossincrasias e contradições.
O levante árabe parece ter revelado a fragilidade das nossas democracias
quando privadas da energia abundante e barata fornecida por oligarcas
e ditadores que, de quebra, asseguram a solvência da nossa indústria
bélica. Numa sociedade verdadeiramente democrática, um mundo
ideal, quem compraria as nossas armas e a nossa proteção política?
O mundo vem mudando rapidamente, rápido demais para aqueles
que se mantêm aferrados a um passado já distante. No espaço de uma
década, o Ocidente foi uma vez mais tomado de surpresa por acontecimentos perfeitamente previsíveis. E, uma vez mais, nos sentimos
totalmente a descoberto. À medida que as notícias das atrocidades
praticadas pelos modernos ditadores árabes contra as suas populações
chegam às nossas salas de estar, à medida que a imprensa revela a verdadeira natureza das democracias do norte da África e que Khadafi volta
a ser um louco sedento de sangue, os ocidentais veem desvanecer as
suas certezas. O Egito é uma democracia, ainda que governada por um
ditador; a China é um país comunista, embora defenda o capitalismo.
A máquina de propaganda escondeu a tempestade política que se
acumulava no norte da África e no Oriente Médio. Focados o tempo
todo nas atrocidades e na falta de democracia na China, os nossos
líderes e nossos meios de comunicação ignoraram o péssimo currículo
de Mubarak, do Egito, em matéria de direitos humanos, a impiedosa
repressão da oposição por Khadafi, o roubo da riqueza tunisiana por
Ben Ali e muito mais. Essa mesma máquina de propaganda escondeu
PREFÁCIO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 9
9
29/5/2014 15:52:58
de nós a verdadeira natureza do milagre econômico chinês e as dificuldades do nosso próprio modelo.
O mundo está mudando ao ritmo dos trens-bala e nós temos de
abrir os olhos para não acabar esmagados sob seus vagões. A demografia está redefinindo o Oriente Médio, uma região altamente instável
que experimentou, nas últimas três décadas, um surto de crescimento
populacional. Foi a explosão da juventude combinada a pressões econômicas — não o terrorismo islâmico — que pôs abaixo os impiedosos
regimes ditatoriais norte-africanos. Não se viram, na Tunísia e no Egito,
brandir de espadas contra o Ocidente nem homens barbados pregando
a charia, somente jovens armados com iPhones e BlackBerries. Graças
ao Facebook, ao YouTube e ao Myspace, eles desafiaram a propaganda
tradicional dos meios de comunicação, colocando diante de nós, ocidentais, uma realidade nova e profundamente incômoda.
Uma revolução diferente está em curso na Ásia sem que tenhamos a
menor ideia de sua natureza e objetivos. Bilhões de asiáticos vêm alcançando os nossos padrões de vida e serão, em pouco tempo, a força motriz
de mudanças econômicas e financeiras que causarão grande impacto em
nossas vidas cotidianas. Ainda que nunca vejamos a juventude chinesa
contestando o status quo, ou que imagens desse gênero nunca cheguem
às nossas telas, os nossos destinos estarão firmemente entrelaçados.
E, para entender o que nos espera na virada da esquina, precisamos
deixar de lado a arrogância e o fanatismo, nos elevar acima da propaganda e olhar para a China e a Ásia com humildade e esperança.
10
PREFÁCIO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 10
29/5/2014 15:52:58
INTRODUÇÃO
Quase um quarto de século após o fim da Guerra Fria, as democracias
ocidentais se veem de braços dados com a primeira crise econômica da
globalização. Enquanto isso, a China comunista consegue não apenas
limitar o seu impacto, como tirar partido da contração da demanda
mundial para pôr em movimento reformas sociais e econômicas verdadeiramente revolucionárias, como o aumento da segurança no trabalho
e o esboço de um novo sistema monetário internacional potencialmente
atrelado à sua moeda.1
O “norte verdadeiro” da estabilidade econômica vem se deslocando
para a China graças a uma série de cataclismos financeiros que estão
redefinindo a estrutura macroeconômica do planeta. O último deles,
a crise do crédito e a recessão, catapultou a China para o status de um
dos países mais poderosos do mundo. Hoje ninguém pode negar que o
“New Deal” chinês foi, nessa imensa tempestade recessiva, a tábua de
salvação que impediu que o mundo mergulhasse numa nova Grande
Depressão. E muitos estão convencidos de que as mudanças atualmente
em curso precipitarão o fim da supremacia econômica dos Estados
Unidos.
As transformações na China não se limitam, no entanto, à reestruturação da economia com base nos princípios do livre-comércio. O crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) caminha de mãos dadas com
reformas sociais e políticas impensáveis sob o maoismo, um estranho
par num país ainda comunista. Da defesa dos direitos humanos ao
11
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 11
29/5/2014 15:52:58
desenvolvimento de fontes de energia renovável, sem falar do indispensável respeito às regras da Organização Mundial do Comércio (OMC) e
das aspirações à democracia participativa, esse país parece plenamente
comprometido com a produção de um novo modelo de sociedade.
Ainda que a democracia do tipo ocidental não pareça, no momento,
figurar entre os objetivos da China, não deixa de ser verdade que,
durante pelo menos uma década, o país se distanciou do totalitarismo
do pós-guerra para mirar exclusivamente um futuro econômico brilhante. Seria, então, possível falarmos de um capitalismo-comunismo,
ou capicomunismo — um híbrido político e econômico que pudesse vir
a ser o modelo para o século XXI?
Uma visita a cidades como Xangai e Pequim nos proporciona um
vislumbre das metrópoles de amanhã e a percepção do que significa a
nova modernidade chinesa. O dinamismo dessas cidades é uma autêntica “viagem” para qualquer um, estrangeiros em especial. Milhares de
jovens ocidentais escolhem morar em Xangai, onde se sentem às portas
de um novo mundo. Quem já viveu algum tempo na China tem a clara
percepção da iminência do futuro e a certeza de estar participando da
sua criação; para esses, a China representa um viveiro de transformações
socioeconômicas e de ideias políticas.
As metrópoles ocidentais, ainda atoladas no pós-modernismo, projetam uma imagem totalmente diferente. Uma sensação de decadência
permeia as suas instituições; seu mecanismo político está oxidado pelo
tempo e pelos efeitos da desregulação. Somos velhos, dizem os semblantes dos usuários de sistemas de transportes a cada dia mais lotados
e ineficientes; somos velhos, dizem os nossos jovens, condenados ao
trabalho precário e ao desemprego; somos velhos, diz uma Europa cuja
perspectiva de riqueza parece reduzir-se ao seu patrimônio histórico
e cultural, um continente inteiro convertido no maior museu do planeta.
A nossa economia é velha e até a nossa democracia dá sinais de senilidade. Os jovens ocidentais que conseguem emprego recebem salários
12
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 12
29/5/2014 15:52:58
demasiado baixos em relação ao custo de vida; seus pais, a geração de
ouro dos baby boomers, continuam a sustentá-los. A discriminação
contra os imigrantes alocados em serviços de baixa qualificação é a
ordem do dia; eles são os bodes expiatórios da inépcia da nossa classe
política, já não mais uma elite representativa da vontade popular, mas
uma casta exclusivamente empenhada em perpetuar-se no poder. E a
imprensa parece incapaz de exercer a liberdade que, no passado, inspirou tantas lutas e custou tantas vidas.
Examinando com atenção, torna-se claro que a origem da senilidade ocidental coincide com a do renascimento socioeconômico da
China: a queda do Muro de Berlim.
Quem, de fato, venceu a Guerra Fria?
A vitória de pirro do Ocidente
Retornemos ao fatídico ano de 1989, marcado por dois acontecimentos
aparentemente antagônicos: a violenta repressão aos protestos da praça
Tiananmen e a queda do Muro de Berlim. Ambos puseram em movimento o processo de globalização e influenciaram as futuras políticas
econômicas planetárias. A esquerda ocidental implodiu e o neoliberalismo tornou-se o modelo socioeconômico e político triunfante em
todo o mundo. Na euforia da vitória neoliberal, poucos suspeitaram
que a globalização poderia representar o fim da supremacia econômica
do Ocidente. Vinte anos depois, quando as reformas e ajustes produzidos por esses dois acontecimentos redesenham o mapa geopolítico
em favor da China comunista, é fácil ver a queda do Muro de Berlim
como uma vitória de Pirro. Há vinte anos, no entanto, as expectativas e
a interpretação oficial daquelas traumáticas mudanças eram totalmente
diferentes.
Até hoje o Ocidente só enxerga, na reação armada de Pequim aos
protestos da praça Tiananmen, a repressão violenta da democracia
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 13
13
29/5/2014 15:52:58
ao estilo ocidental, e, na derrubada do Muro de Berlim, o seu triunfo
sobre o mundo comunista. O Ocidente ainda sustenta que a Guerra
Fria terminou com a clara vitória do sistema democrático; vê como felizardos os ex-soviéticos que adotaram a democracia e desafortunados os
chineses que até hoje se conservam comunistas. Em tal cenário, a China
substitui o inimigo soviético: um regime ditatorial que não respeita os
direitos humanos, um país hipócrita que falsifica dados econômicos e
explora abjetamente seus trabalhadores, uma nação inapta ao papel de
primeira superpotência do mundo globalizado. Tudo isso se atribui,
naturalmente, à falta de democracia, sem a qual não pode haver bemestar nem progresso.
O problema é que essa linha de raciocínio repousa sobre vários
equívocos, quando não sobre mitos consumados.
Considerando-se os objetivos econômicos alcançados nos últimos
vinte anos, a China lidou muito melhor com o processo de globalização do que as democracias ocidentais. Desde o distante ano de 1989,
o padrão de vida médio na China melhorou radicalmente, ao passo
que na Europa Oriental e territórios da antiga União Soviética, onde a
democracia ao estilo ocidental se enraizou, a pobreza e o analfabetismo
voltaram a crescer. E nem se fale de Iraque e Afeganistão, onde a exportação da democracia pela força das armas levou à guerra civil.
Uma das potências que, naquele distante ano de 1989, saíram supostamente “derrotadas” da Guerra Fria hoje apresenta a sua candidatura
à liderança da economia globalizada. Um paradoxo? Não. Um erro de
interpretação, produto da miopia e da arrogância política do Ocidente,
acostumado a ver em cada manifestação de dissenso vinda do mundo
comunista — um sistema percebido como antitético ao ocidental —
o desejo de copiar o seu modelo de sociedade. Um erro que, vinte anos
depois, precisa ser corrigido.
14
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 14
29/5/2014 15:52:58
Os diversos significados de democracia
Ao gritar “democracia” em Tiananmen, como em Berlim, os chineses
não estavam exigindo um governo idêntico ao nosso, mas acesso ao
nosso padrão de vida. Em 1989, nem os chineses nem os povos aprisionados atrás da Cortina de Ferro sabiam grande coisa sobre a democracia ocidental, da qual só tinham uma visão romantizada, distorcida
pelos meios de propaganda ocidental e comunista. O que eles queriam
era uma melhora significativa de suas condições econômicas, o que,
dada a patente riqueza do Ocidente democrático, confundiam com
uma mudança de paradigma político. Era muito difundida a ideia de
que os países precisavam adotar a democracia para se tornarem ricos.
“Não é com eleições que as pessoas sonham, mas com liberdade econômica”, costumava dizer o presidente do Banco Nacional da Hungria
quando trabalhei para ele em 1981. “No pregão dos desejos comunistas,
a propriedade privada vale mais do que o direito de voto.” E, em nome
dessas conquistas econômicas, as pessoas estão dispostas a tudo.
O que faltava ao bloco comunista não eram as urnas, mas a motivação do lucro — exatamente aquilo que Karl Marx descrevia como o
fulcro do sistema capitalista e que, como todos sabemos, tem funcionado bastante bem sob governos democráticos. Salvo a China, nenhum
país comunista entendeu a força e a importância dessa necessidade econômica.
Uma das mais surpreendentes verdades surgidas do reexame do
que aconteceu nos últimos vinte anos é que o Muro de Berlim não caiu
porque a forma de governo favorita do Ocidente venceu a Guerra Fria,
mas porque o então chamado socialismo real não entendeu a teoria
marxista. O erro dos soviéticos foi eliminar o lucro da equação econômica, achando que essa amputação era suficiente para dar vida à
ditadura do proletariado — a única parte da análise marxista baseada
não na observação dos fatos, mas em uma série de hipóteses. Um erro
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 15
15
29/5/2014 15:52:58
de interpretação paradoxal, uma vez que a melhor análise do lucro capitalista é precisamente aquela realizada por Karl Marx. Quem o estudar
com atenção verá que ele jamais sonhou em eliminar o fulcro do sistema produtivo; ao contrário, seu objetivo era fazer com que a classe
trabalhadora se apossasse dele, beneficiando-se na proporção da sua
contribuição, isto é, de acordo com o excedente de valor produzido.
A teoria marxista é fundamentalmente uma doutrina econômica,
não a exegese de uma forma de governo, mas os soviéticos primeiro e,
pouco depois, os norte-americanos, transformaram-na na antítese da
democracia. O marxismo, distorcido pela ideologia política leninista,
convertido por Stálin numa ditadura repressiva e, finalmente, privado
de senso de proporção pelas rivalidades da Guerra Fria, tornou-se, na
URSS, outra coisa: um regime totalitário. E esse regime tornou-se, por
sua vez, sinônimo de comunismo como antítese do capitalismo. Não
admira que essa parte do mundo onde ele foi aplicado — e onde a perda
da motivação do lucro eliminou também todo incentivo ao crescimento
— tenha se transformado num deserto econômico!
Ainda que nós, vinte anos depois, continuemos a celebrar a vitória
do Ocidente democrático sobre o Oriente totalitário, a verdade é que
a aventura econômica soviética desmoronou por si mesma. Como
veremos, a retórica ideológica de Reagan e Thatcher, assim como os fundamentos do neoliberalismo e a moldura democrática construída pelo
Ocidente ao seu redor, não tem absolutamente nada a ver com a queda
do Muro de Berlim. A opinião ainda hoje dominante — a equação que
liga a desintegração da URSS ao triunfo da democracia — é uma fabricação da propaganda ocidental.
Essa certeza é, para todos nós, uma fonte inesgotável de segurança
política. Ela nos leva a acreditar que a “nossa democracia” é superior
não apenas ao marxismo como sinônimo do totalitarismo soviético,
mas também, e acima de tudo, à versão atual do comunismo chinês.
Contudo, o sucesso da China confirma que não é Marx aquele que
16
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 16
29/5/2014 15:52:58
a história provou estar errado. Ao contrário dos soviéticos, os chineses
conseguiram criar uma forma de comunismo que funciona economicamente, que evolui e que, como confirmam os dados econômicos, assegura mais progresso e bem-estar do que os outros sistemas: De 2009 a
2010, período de elevado desemprego e crescimento zero nas democracias ocidentais, a renda per capita dos chineses cresceu em termos reais
e o PIB subiu 9%.
Os críticos contestam esses dados com uma objeção ideológica:
a China é uma ditadura corrupta que não respeita os direitos humanos.
Essa crítica, que se refere a outro país que não a China contemporânea,
é, por conseguinte, não apenas velha e enferrujada, mas parcialmente
inexata. No que concerne aos direitos humanos, a China deu passos
gigantescos na via do respeito crescente pelo indivíduo. Estamos ainda
longe da linha de chegada, mas hoje ninguém — nem a Organização
das Nações Unidas (ONU), nem o Banco Mundial, nem as mais respeitáveis organizações não governamentais (ONGs) — nega que os
direitos humanos na China estão no caminho certo.
O Ocidente, ao contrário, parece estar se movendo na direção contrária, por um caminho pavimentado de hipocrisia. Somos os incorruptíveis paladinos da justiça internacional, mesmo quando exportamos
nossas ideias na barriga dos B-52 e fazemos acordos todos os dias com
o crime organizado. Como explicar a intervenção armada no Iraque
baseada em informações falsas? E que dizer do uso da tortura, das “rendições extraordinárias” aprovadas pelo governo Bush e empregadas
também pelos ingleses e do campo de detenção de Guantânamo —
instituições em patente contradição com a Declaração dos Direitos do
Homem e a Convenção de Genebra?
Lamentavelmente, são inúmeros, quase cotidianos, os exemplos
de violação dos direitos humanos por parte do Ocidente. O mesmo
se pode dizer da corrupção e da fraude, encontradas em toda a parte:
o caso Madoff, em Wall Street; o pagamento, pela Agência Central
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 17
17
29/5/2014 15:52:58
de Inteligência (CIA), ao irmão de Karzai para manter contato com
os senhores da guerra no Afeganistão; o envolvimento da Blackstone,
empresa norte-americana de contratação de mercenários, com negócios escusos no Iraque; os escândalos diários do governo Berlusconi;
a apropriação de dinheiro público por membros do Parlamento britânico; a ligação de Sarkozy com doações dos herdeiros da L’Oréal. Como
idosos acometidos de demência senil, estamos andando para trás e perdendo no caminho a memória dos nossos entes queridos — os valores
conquistados em séculos de lutas sociais.
A China, ao contrário, caminha para diante, melhorando a cada dia.
Todavia, de acordo com os nossos critérios, tais conquistas nada significam porque a China não é democrática. Aqui, chegamos ao cerne do
problema: essa apreciação da falta de liberdade política da população
chinesa é, uma vez mais, fruto de um equívoco conceitual. Para os chineses que ocuparam a praça Tiananmen em 1989, sob o pôster gigante
de Mao, democracia era sinônimo de igualdade econômica, logo, de
iguais oportunidades de crescimento, algo que foi conquistado por um
amplo segmento da população chinesa nos últimos vinte anos.
Ao contrário do que ocorria com seus camaradas soviéticos, para
os chineses “democracia” não era uma palavra nova, tampouco um
conceito político “importado”, como “eleições”. Mao usou, em seus
discursos, a palavra democracia centenas de milhares de vezes para
explicar que o governo existe para promover os interesses do povo,
em declarada oposição a “outros” líderes que o oprimem, como era o
caso dos colonizadores ocidentais antes da Revolução Chinesa de 1949.
A ideia de que o Estado “serve ao povo” está até hoje profundamente
enraizada na sociedade chinesa. Será que podemos dizer o mesmo das
nossas próprias democracias, abaladas quase diariamente por escândalos políticos?
Há também outro elemento crítico: para os chineses, a origem da
democracia é revolucionária, não eleitoral. Zhou Youguang, que aos
18
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 18
29/5/2014 15:52:58
103 anos de idade é testemunha de um considerável lapso da turbulenta
história da China, lembra-nos que Zhou Enlai sempre afirmou o caráter
democrático do Partido Comunista Chinês (PCC, também conhecido
como Partido Comunista da China).2 Não há nada mais democrático, no
imaginário coletivo dos chineses, do que uma revolução que derruba os
maus governantes. E os critérios pelos quais eles avaliam a negligência
dos governos são quase todos econômicos. Há 5 mil anos, dinastia após
dinastia, a China tem vivido de acordo com esses princípios.
Hoje, como há vinte anos, a democracia é assunto da competência
do partido: não existe fora dele e, em hipótese alguma, em oposição
a ele. Em seu livro Out of Mao’s Shadow,3 que reexamina os acontecimentos da praça Tiananmen em 1989, o advogado Pu Ziquiang, um
dos participantes dos protestos, descreve as motivações dos estudantes
da seguinte maneira: “Nós queríamos ajudar o governo e o partido a
corrigir os erros que haviam cometido.” Não se tratava de derrubá-los
nem de substituí-los por outro sistema político. Os estudantes e trabalhadores chineses pediam uma abertura do sistema capaz de proporcionar a melhora dos padrões de vida no país. “Democracia” era apenas
o nome dessa liberalização, um instrumento para assegurar as oportunidades que pertenciam, por direito, à população chinesa.
Teria o significado da queda do Muro de Berlim e dos acontecimentos de Tiananmen se perdido por completo na tradução política?
Nada poderia ser mais fácil. Na verdade, soviéticos e chineses sabiam
pouco ou nada sobre a nossa forma de governo. O Ocidente, por sua
vez, ignorava por completo as diferentes interpretações do comunismo. Para nós, a democracia é um animal político que se alimenta de
mudanças regulares de governo; se tivéssemos de escolher um termo
para defini-la, ele seria “sufrágio universal”. Os chineses, por sua vez,
escolheriam “capitalismo”.
Convém, aqui, dar um passo atrás e lembrar que, na cultura política ocidental, economia e bem-estar não têm qualquer relação com
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 19
19
29/5/2014 15:52:58
o sistema de governo. A antiga democracia ateniense, nascida em uma
sociedade em que os escravos comandavam a economia, pertencia aos
homens livres, que a construíram sobre a base da livre discussão de
valores políticos e filosóficos — longe, muito longe das demandas do
comércio e da agricultura. Quando a expansão econômica se tornou
uma necessidade e foi preciso justificar a agressão militar, os atenienses
recorreram à ideologia. Por isso, apresentaram a colonização da Magna
Graecia como a exportação do modelo ateniense de liberdade e justiça,
expressão da sua generosidade. Trata-se de um movimento retórico até
hoje utilizado pelas democracias modernas: a invasão do Iraque teria
sido uma generosa dádiva da democracia ocidental, embrulhada em
papel de presente militar.
Prosperidade e democracia são coisas tão desconexas em nosso
mundo que, num sistema abalado por crises devastadoras, ninguém
sonha em derrubar a classe dominante e nem sequer admite que ela é
parte do problema. Todo mundo sabe que os padrões de vida ocidentais
se deterioraram nos últimos vinte anos, mas, em vez de nos dirigirmos
aos governos com reivindicações políticas concretas, nós esperamos
que eles melhorem na arte da persuasão. Na Europa como nos Estados
Unidos, foi o livre-comércio que trouxe a riqueza, não os governos
representativos. Os fundadores dos Estados Unidos da América eram
devotados livre-cambistas que pregavam a liberdade de mercado e a
não ingerência do Estado no comércio.
Na Europa, a associação entre prosperidade e democracia foi forjada após a Segunda Guerra Mundial, quando da reconstrução do continente, sobre a base do modelo democrático, com recursos do Plano
Marshall — o coquetel que impulsionou o seu milagre econômico.
Aqui também o livre-comércio e a reconstrução criaram a prosperidade, ainda que a versão da Guerra Fria desenvolvida pela propaganda
ocidental nos tenha feito acreditar que foi a democracia que gerou o
crescimento econômico.
20
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 20
29/5/2014 15:52:58
Palavras como “democracia” e “prosperidade” perdem seus significados na tradução política entre os extremos opostos do mundo: no
Ocidente, “democracia” é sinônimo de boa governança, mesmo quando
a história sugere o contrário; no Oriente, democracia e prosperidade
vêm a ser dois aspectos de um mesmo fenômeno.
Casais felizes e infelizes
Na aldeia global, o casamento da democracia com a prosperidade
é, pois, uma união infeliz. Eis aqui o principal limite daquela que
Churchill chamava de “a pior forma de governo, à exceção de todas as
que já foram testadas”. Essa máxima, que pode ter sido verdadeira numa
Europa oprimida por regimes ditatoriais e dilacerada pela Segunda
Guerra Mundial e depois pela Guerra Fria, soa totalmente fora de lugar
no contexto da economia globalizada e da ascensão da China. Num sistema em que a elite financeira decide o destino do mundo e divide entre
si — auxiliada pelos políticos — a maior parte da riqueza produzida, o
que significa “democracia”?
As causas da corrupção desenfreada na Europa e dos escândalos que
envolvem os nossos políticos podem ser resumidas no anacronismo da
nossa atual forma de governo. Nos últimos vinte anos, a democracia
não conseguiu evoluir; ao contrário, manteve aquela segura distância
da economia, tão cara aos atenienses, que Platão critica severamente
em A república. Desde a queda do Muro de Berlim, a teoria neoliberal,
cujo mantra é que o mercado regula a economia melhor do que os
governos, manteve separadas a política e a economia. Não admira que a
globalização tenha se mostrado uma proposta vencedora para a China,
país em que o governo ainda dirige a transformação econômica, e uma
proposta perdedora para nós, do Ocidente, onde a direção da economia
é delegada ao mercado, uma costumeira fonte de corrupção. A última
crise do capitalismo global parece nos dizer que, ao menos nessa fase
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 21
21
29/5/2014 15:52:58
de sua evolução, a presença de um Estado forte é necessária. A experiência chinesa demonstra que a economia funciona melhor quando
o governo permanece nas mãos daqueles que representam, no grau
mais elevado possível, os interesses do povo, não os da elite. A palavra
“comunista” não é sinônimo de politburo, mas de presença vigilante do
Estado na economia como avalista dos interesses da população.
Para nós um absurdo, o par capitalismo-comunismo, ou capicomunismo, é, para os chineses, um fato da vida; um casal feliz, abençoado
por Karl Marx. Por quê? Porque os líderes chineses leram O capital, de
Marx, e entenderam que ele é uma análise do capitalismo, não uma proposta para a sua destruição. Marx não escreveu que era necessário derrubar o sistema de produção para substituí-lo por outro; não exortou
as pessoas a incendiar as fábricas e retornar à economia agrícola; não
falou de protecionismo nem do fim do comércio internacional. Antes,
descreveu a substituição da liderança do capitalismo pela ditadura do
proletariado como a evolução natural desse sistema até o seu ponto
mais elevado: a sociedade sem classes. E é nessa direção que hoje se
move a sociedade chinesa.
Em 1989, Deng Xiaoping tinha consciência de que as verdadeiras
motivações por trás dos protestos da praça Tiananmen podiam ser provenientes da confusão da população a respeito do verdadeiro significado do capitalismo e da democracia. Sua resposta foi, portanto, abrir
economicamente o país, disseminar a motivação do lucro e incentivar a
produção. “Enriqueçam” foi o novo mantra que ecoou por toda a China,
ainda abalada pela sangrenta repressão. Como veremos, camponeses
que mal conseguiam sobreviver obtiveram o direito de se deslocar e de
vender a sua produção; outros habitantes do campo puderam se tornar
trabalhadores migrantes e ganhar, em poucos anos, o suficiente para
voltar para casa e começar negócios próprios. Essas revolucionárias
mudanças políticas e sociais começaram a se desenhar ainda no fim da
década de 1970, poucos anos após a morte de Mao. O ano de 1989 foi
22
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 22
29/5/2014 15:52:58
uma pausa, que durou até 1992, quando Deng venceu a batalha dentro
do partido e a experiência decolou outra vez, ganhando grande impulso
num curto lapso de tempo e produzindo êxitos.
A história nos ensina que o capitalismo evolui naturalmente para a
globalização, porque o motor do crescimento é a exploração progressiva de novos recursos. A democracia também tende para a globalização. Todavia, os inúmeros desastres econômicos dos últimos séculos
estão aí para nos lembrar que o binômio capitalismo-democracia não
é funcional nesse estágio da globalização; o capicomunismo pode estar
mais bem-equipado para explorar as fases ascendentes e descendentes
da economia globalizada.
Por trás da crise do crédito e da recessão assoma, pois, uma profunda revolução que vem despedaçando as suposições do passado,
dentre elas a proeminência social, econômica e política da democracia
ocidental como forma ideal de governo; uma sublevação histórica que,
acima de tudo, redefine o conceito de modernidade.
Teria Karl Marx vencido a Guerra Fria?
Certo é que, para entender as mudanças em curso, faz-se necessário reinterpretar a teoria marxista no contexto de Pequim. Até aqui, o
modelo chinês parece ser uma lente adequada à análise da decadência
da sociedade ocidental e do declínio do nosso capitalismo. Uma lente
capaz de nos ajudar a corrigir os erros dos últimos vinte anos.
INTRODUÇÃO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 23
23
29/5/2014 15:52:58
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 24
29/5/2014 15:52:58
PRÓLOGO
DEPRESSÕES EM CURSO
O espectro da depressão ronda o planeta — mas não em todos os
lugares. De Pequim à Cidade do Cabo, de Singapura ao Rio de Janeiro,
não é o mundo inteiro que vive à base de Prozac. No Oriente e abaixo
do equador, as pessoas estão mais felizes ou, pelo menos, mais satisfeitas: gastam menos, poupam e curtem a vida. Os depressivos vivem
no Ocidente. Aqui, a incerteza do amanhã atormenta e corrói as democracias capitalistas e a crise econômica transforma continentes inteiros
em sanatórios de ansiosos. Os afetados por essa psicose são, em primeiro lugar, os que têm entre 18 e 35 anos de idade, cujas perspectivas
de futuro parecem anuviadas por um conjunto de realidades desestimulantes.
Já na China, as pessoas estão vivendo com taxas bem mais altas de
desenvolvimento e também de felicidade.
Por que razão o Oriente e o Ocidente reagem de maneira diferente
aos problemas da globalização? Na raiz dessa disparidade psicológica e
econômica estão a influência do passado e as expectativas em relação
ao futuro.
Nós, ocidentais, somos demasiadamente oprimidos e facilmente
debilitados por lembranças, aturdidos por sonhos, a ponto de nos tornarmos incapazes de viver o presente. De acordo com os psiquiatras, a
nossa solução preferida para escapar da vida cotidiana é o consumo —
comprar como terapia.
25
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 25
29/5/2014 15:52:58
Quem vive no sul global não tem necessidade desse recurso para
viver o dia a dia; ao contrário, vive de acordo com o lema carpe diem.
Suas palavras mágicas são “hoje” e “agora”. São menos ricos e mais
felizes do que nós, e não é só: suas economias nacionais estão crescendo,
enquanto as nossas não dão sinal de parar de encolher.
Recessão e depressão andam de mãos dadas. E, não demora, cairão
juntas no abismo. O que as estatísticas dizem é bastante claro: o número
de suicídios vem crescendo novamente nos países ocidentais, o primeiro aumento desde o começo da década de 1980 — a última recessão.
E, no entanto, pouco bastaria para nos tranquilizarmos: um ponto de
referência estável, uma ponta de esperança, um simples fato — o fim da
crise, por exemplo.
Psique e mercado, globalização e ansiedade parecem estar conectados. Teóricos da psicanálise como Zygmunt Bauman descrevem a
completa ausência de pontos de referência estáveis em que o indivíduo
globalizado é obrigado a viver como “modernidade líquida”, um limbo
cujo horizonte é a pura sobrevivência e que pressupõe nos adaptarmos
às práticas do grupo e desaparecer no meio da multidão. Não admira
que tenhamos medo de enfrentar a realidade do dia a dia.
Não por acaso, a “modernidade líquida” é também um dos aspectos
centrais do consumismo: subproduto do mercado de massa, terreno
fértil para as campanhas de propaganda com que as multinacionais
nos bombardeiam sem parar. As mais bem-sucedidas são as que promovem a perfeita união da psique com a economia. Elas apertam os
botões certos: aqueles que controlam o comportamento da massa, que
nos fazem esticar automaticamente o braço para pegar determinado
produto na prateleira do supermercado, não o que está ao seu lado.
Muitos psicanalistas identificam o consumismo como a causa primária da enfermidade que assola as regiões mais ricas do planeta: o indivíduo se debate para lidar com o consumo diário, essa fonte inexaurível
de estresse. É o cão tentando morder o próprio rabo: nós consumimos
26
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 26
29/5/2014 15:52:58
para fugir ao estresse da realidade cotidiana e o consumo é a fonte de
um estresse permanente. Ficamos aprisionados num círculo vicioso.
A solução? Prozac.
Desde 1988, ano em que a Eli Lilly lançou o Prozac, mais de 40
milhões de pessoas o utilizaram como antidepressivo. Resultados?
Parcos. Um estudo de 2008 publicado no Journal of the Public Library of
Science pelo professor Irving Kirsch, do Departamento de Psicologia da
Universidade de Hull, junto com outros psicólogos norte-americanos
e canadenses, descobriu que os pacientes que tomam Prozac não são
mais felizes do que os que recebem placebo.1 E onde falha o Prozac
falham também o Paxil e o Zoloft. A causa da enfermidade que aflige o
Ocidente não é do tipo que pode ser combatida com antidepressivos —
é o nosso estilo de vida.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), desde o
começo da década de 1990, o número de depressivos vem aumentando
precisamente nos lugares em que o endividamento assumiu proporções
bíblicas — os países ricos — e em geral na proporção direta do aumento
médio das dívidas pessoais. A depressão e a inadimplência proliferam,
portanto, onde reina a democracia — a começar pelos Estados Unidos,
o país mais rico e democrático do mundo, de onde transbordam para as
bolsas de valores da aldeia global —, enquanto perguntamos obsessivamente aos economistas quando e como o PIB e o emprego começarão
a crescer outra vez. Contudo, nem a psicologia nem a economia são
ciências exatas: elas carecem de instrumentos para nos dar qualquer
tipo de certeza.
Ao cair nessa crise, aprendemos da pior maneira que o consumo
desenfreado não é o motor do crescimento, mas a causa da recessão,
levando os indivíduos — e com eles os bancos — a se endividarem para
viver acima de seus meios. Em outras palavras, vivemos uma miragem
que confunde linhas de crédito com riqueza. O mantra que nos “loucos
anos 1990” ecoou em todas as escolas de negócios dos Estados Unidos
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 27
27
29/5/2014 15:52:58
— “Eu valho tanto quanto eu puder tomar emprestado” — tornou-se o
hino da globalização. O código de conduta a que acabamos nos adaptando é absurdo, por falsificar as avaliações de riscos financeiros.
Apesar disso, nossos governos nos exortam a usar nossos cartões
de crédito com a mesma despreocupação de antes da crise. O gasto do
consumidor é o sangue da nossa economia; sem ele, jamais voltaremos
aos trilhos — é o conteúdo da mensagem. Será possível que aqueles que
deveriam estar nos ajudando a subir a encosta são, na verdade, os que
nos puxam o tempo todo para o fundo do abismo? Um paradoxo da
economia contemporânea? Parece que sim.
Há, no entanto, uma significativa diferença entre a economia e a
psicologia. Enquanto esta busca prevenir e tratar distúrbios psíquicos
identificando suas causas, aquela parece incapaz de impedir os desastres financeiros que se sucedem, com frequência cada vez maior, nos
últimos vinte anos. Na verdade, a globalização parece andar de mãos
dadas com a crise financeira. Por quê?
O estudo da mente humana, ao contrário da economia, segue o
ritmo de sua época, razão pela qual incorporou uma forte carga de
modernidade. Nos últimos cinquenta anos, a psicanálise criticou duramente a teoria clássica freudiana. Salvo os personagens de Woody
Allen, ninguém se deita mais no sofá para falar de seus traumas e fantasias sexuais infantis. A psicologia de hoje recorre a uma ampla gama
de abordagens que combinam Prozac com psicoterapia clássica, mas
também com ioga e, se necessário, até com video games.
Ao passo que os psicanalistas — sobretudo graças à contribuição de
Carl Gustav Jung — lograram escapar da gaiola da teoria freudiana do
inconsciente, os economistas ainda estão algemados a Adam Smith, o
pai da economia clássica, ainda que o modelo por ele descrito se baseie
numa realidade que já não existe. Hoje, poucos acreditam que os comportamentos egoístas da multidão produzem a riqueza das nações.
É difícil encontrar um nexo entre os bônus de bilhões de dólares da
28
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 28
29/5/2014 15:52:58
alta finança e o crescimento do PIB; mas o oposto é verdade. E, no
entanto, de 1989 até o início da crise, todas as democracias ocidentais,
assim como uma grande quantidade de novos regimes democráticos,
aplicaram — adotaram in totum — a ideologia do mercado. Nenhum
deles lançou qualquer dúvida sobre os poderes extraordinários da “mão
invisível”, mesmo quando ela criava profundas disparidades de renda,
injustiças sociais, abusos e até fraudes colossais.
A maioria dos políticos de hoje nos incentiva a gastar o dinheiro
que não temos porque nenhum deles sabe invocar uma alternativa ao
obsoleto modelo consumista para mover a economia. Desde a queda
do Muro de Berlim, a economia tornou-se monotemática; ela continua
prisioneira do neoliberalismo, mesmo quando o Ocidente se defronta
com a maior revolução econômica desde os tempos de Adam Smith:
o processo de globalização.
Em vez de dar à economia capitalista mais flexibilidade e capacidade
de enfrentar as demandas de um presente em constante mudança, a desregulação financeira a tornou mais suscetível a abusos. Durante vinte
anos, ninguém se preocupou em estudar, ou criar, um novo modelo,
nem sequer em criticar o modelo atual. Como foi possível a euforia da
vitória sobre o comunismo cegar o Ocidente a ponto de convencer-nos
de que o nosso problemático sistema econômico era perfeito? Uma vez
o neoliberalismo vitorioso na Guerra Fria, todos imaginaram que tal
“solução” era válida para sempre. Na verdade, foi nesse exato momento
que, para usar os termos de Fukuyama, a disciplina econômica atingiu
o fim da linha e os abusos se multiplicaram.2
Hoje nos vemos, pois, empacados numa teoria econômica nascida
da Revolução Industrial e prisioneiros de um sonho, de uma armadilha
do inconsciente, da repressão psicológica. A economia ocidental, tanto
quanto a sua psique, estão presas, como num torno, entre nossas expectativas de futuro e nossos dogmas do passado. Durante vinte anos a
política deflacionista do Banco Central norte-americano atuou como
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 29
29
29/5/2014 15:52:59
um Prozac financeiro, permitindo ao Ocidente ignorar a crise econômica pela supressão de seus sintomas. A recessão e a depressão foram
mantidas sob controle por meio de antidepressivos, que agem sobre os
sintomas sem, no entanto, tratar e eliminar suas causas. Hoje, eles deixaram de funcionar.
Mas qual é a alternativa? Será que já existiu um Jung da economia
capaz de derrubar os dogmas do liberalismo clássico de Adam Smith e
libertar a disciplina da sua gaiola?
Sim, já existiu, e seu nome era Karl Marx.
Assim como a teoria de Jung, o marxismo nasceu da observação
empírica. Seu objeto de estudo é o sistema de produção, o comportamento da força de trabalho e a concentração do capital nas mãos das
elites, uma deterioração que ameaça a sociedade civil. Marx, como
Jung, distanciou-se da interpretação dominante da sua época; a formulação de sua abordagem crítica é tão similar à do psiquiatra suíço que
podemos, na verdade, chamá-lo de “Jung da economia”. Suas análises,
totalmente contra a corrente, constituem um modo diferente de interpretar a economia, rompendo com os métodos tradicionais; ao mesmo
tempo, porém, elas discutem as perspectivas de desenvolvimento do
capitalismo, não a sua destruição.
A modernidade da psicanálise deriva precisamente da dicotomia
entre seus dois fundadores, Freud e Jung, uma tensão que não diminuiu
com o passar do tempo. Na economia, por outro lado, essa dialética
passou por uma mudança histórica. Marx, como Smith, é um de seus
fundadores, mas a teoria marxista, tida como uma alternativa radical,
não uma crítica construtiva ao modelo capitalista liberal, cessou de
influenciar o pensamento econômico ocidental.
Por essa razão, o mundo de hoje não tem mais à disposição um
economista como John Maynard Keynes, cujo pensamento se formou
no interior de uma dialética vibrante e construtiva. O diálogo com os
marxistas de Cambridge foram fundamentais para a formulação da sua
obra-prima Teoria geral do emprego, do juro e da moeda. Os Acordos
30
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 30
29/5/2014 15:52:59
de Bretton Woods e o sistema econômico e financeiro que serviram de
marco para o milagre econômico do pós-guerra devem, portanto, tanto
a Marx e sua crítica do capitalismo quanto à “mão invisível” de Adam
Smith. Depois da queda do Muro de Berlim, no entanto, Marx foi varrido junto com o regime soviético e o socialismo real, e seus livros, condenados a juntar poeira nas bibliotecas. A relação dinâmica que existia
entre o liberalismo clássico e o marxismo se deteriorou e, com ela, a
modernidade da economia. Isso explica por que a economia ocidental
tornou-se monotemática, celebradora de um único modelo.
No Oriente, porém, isso não acontece.
Depois de 1989, o marxismo continuou a ser estudado somente na
China, junto com todas as outras teorias econômicas. Esse trabalho
levou à criação de um modelo novo e moderno, marcado por um severo
pragmatismo. Tal como a psicanálise, o capitalismo “Made in China” se
aproveita de tudo o que funciona (da empresa privada ao controle de
capitais) e é, portanto, mais flexível e atualizado do que a sua versão
ocidental. O modelo chinês é capaz de adaptar a economia a mudanças
súbitas e decisivas, como o processo de globalização, e essa flexibilidade
ajudou o país a se tornar a superpotência da aldeia global e a redefinir
os parâmetros da modernidade.
Como pode ter acontecido que, do monte de entulho teórico do
capitalismo ocidental, nasceu o milagre chinês? No âmago dessa história
está a ascensão prodigiosa de um país que nós, por pura ignorância ou
obsolescência ideológica, continuamos a não compreender e que nos
assusta pelo mero fato de ser diferente. Ao mesmo tempo, este livro
alerta para o colapso previsível e igualmente prodigioso do nosso sistema se insistirmos em celebrar um modelo econômico e político exaurido. Remédios existem, potencialmente eficazes, contra a depressão
econômica e psicológica que aflige o Ocidente. Quer o chamemos capitalismo chinês ou medicina chinesa, tudo de que precisamos é vontade
para adaptá-lo à fisiologia das nossas democracias.
PRÓLOGO: DEPRESSÕES EM CURSO
12A PROVA - MAONOMICS (1).indd 31
31
29/5/2014 15:52:59
Download