A produção de verdades acerca da gramática em práticas

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A produção de verdades acerca da gramática
em práticas discursivas
de professores de língua portuguesa
Carmen Brunelli de Moura
Universidade Potiguar
[email protected]
Marluce Pereira da Silva
Universidade Federal da Paraíba
[email protected]
Resumo
Neste trabalho apresentamos breves reflexões sobre a perspectiva dos
docentes de um Curso de Especialização instados em uma das
atividades realizadas, a discutirem as concepções de gramática que
norteiam suas aulas de Língua Portuguesa Indagamos os professores
sobre a forma de orientarem suas práticas frente à taxonomia
gramatical que norteia as aulas de português. Objetivamos
problematizar a concepção de gramática que constrói sentidos em suas
práticas pedagógicas. Analisamos fragmentos de algumas das
atividades solicitadas a esses professores e percebemos que, em seu
dizer-fazer pedagógico, os docentes adotam tanto práticas originárias
da gramática normativa quanto da perspectiva descritiva que orientam
o ensino da gramática. Foi possível observar, nessa discursividade,
outros posicionamentos que rompem com essa regularidade
enunciativa e materializam uma concepção de gramática e de
linguagem que privilegia atividades de uso efetivo da língua materna.
Palavras-chave: Gramática e linguagem, Ensino de língua portuguesa,
Discursividade.
Abstract
In this paper we present brief reflections about the perspectives of
professors in a specialization course, who were pushed into discussing
the conceptions of grammar that guide their Portuguese classes. We
questioned these professors about how they direct their practice before
Horizontes de Linguística Aplicada, ano 11, n. 2, jul./dez. 2012
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A produção de verdades acerca da gramática
the grammatical taxonomy that guides Portuguese classes. We aim to
discuss this conception of grammar that builds meanings in their
pedagogical practices. We analyzed fragments of some activities that
were requested from them and noticed that these professors adopt
either normative or descriptive grammar originated practices. Such
practices guide the teaching of grammar in their pedagogical statemake. It was also possible to observe in this discursiveness other
different attitudes, which break up with this enunciative regularity and
which materialize a conception of grammar and language that grants a
privilege to activities of effective use of the mother tongue.
Key-words: Grammar and Language, Teaching of Portuguese,
Discursiveness.
1. Introdução
Não vamos nos demorar muito no limiar
da porta, passemos, por conseguinte, ao
vestíbulo. Nietzsche
As palavras em epígrafe de Nietzsche nos lembram que
as verdades com as quais lidamos no cotidiano de sala de aula
são fluidas, incertas, flutuantes. Essas características parecem
relevantes quando tentamos articular nossas pesquisas com um
tempo em que “nem tudo é verdadeiro; mas em todo lugar e a
todo momento existe uma verdade a ser dita e a ser vista”
(FOUCAULT, 2003, p.113). Ou seja, não é mais possível
fixarmo-nos no limiar da porta à espreita das verdades,
esperando que elas venham até nós e nos digam seus propósitos.
É preciso pensar a verdade não como algo dado, mas como algo
construído historicamente, discursivamente; verdade aqui
compreendida como alguma coisa que se suscita. Verdades são
acontecimentos que não implicam a busca de causas ou
consequências, mas uma procura por singularidades, aberturas,
imprevisibilidades, realidades.
Nesse relato de uma experiência vivenciada em sala de
aula, refletimos sobre os sentidos de estar presente em uma
miríade de acontecimentos entrelaçados com a tarefa de
lançarmos um olhar para os discursos produzidos por alunos40
Horizontes de Linguística Aplicada, ano 11, n. 2, jul./dez. 2012
Carmen B. Moura e Marluce P. Silva
professores1 em uma atividade que fora solicitada, inicialmente,
com o propósito de aferir nota à disciplina Teorias e ensino da
gramática. Esse alunado pertencia ao Curso de Especialização
em Língua Portuguesa: leitura, produção de textos e gramática,
da Universidade Federal do Rio Grande do Norte realizado nas
cidades de Natal/RN e Nova Cruz/RN, em 2008. A maioria das
turmas era composta por docentes de língua portuguesa2 das
redes pública e privada. As aulas ocorriam aos finais de semana
nesses municípios.
Durante as discussões dos textos em sala de aula, a
professora percebia que os alunos-professores interessavam-se
pela leitura de textos atinentes à teoria e ao ensino de gramática
na sala de aula de Língua Portuguesa. A professora apreendia
ainda que as discussões dos textos suscitavam inquietações por
parte dos alunos-professores, o que poderia traduzir sentidos do
quanto o modelo de ensino da gramática que os autores desses
textos criticavam também os incomodava.
Enfim, havia uma discursividade em torno de que o
ensino da língua deveria ser realizado, segundo o depoimento de
alguns docentes, como uma “forma de interação comunicativa”.
O que reafirmava os sentidos que remetiam ao estudo da
gramática para conduzir à “obtenção de maior qualidade de
vida” para os usuários da língua, conforme proposto por
Travaglia (1999, p. 241). Essa postura dos docentes nos levava a
questionar: em que medida os sentidos expressos nesse
depoimento se instituem na prática de sala de aula, ou ainda, se
todos os alunos do curso adotavam tal posição acerca do ensino
da gramática.
Pautada nas discussões dos textos trabalhados ao longo
do curso, a professora ministrante solicitou, como atividade final
da disciplina, o relato escrito dos alunos-professores de um fato
vinculado ao ensino da gramática vivenciado por eles nas
respectivas salas de aula de Língua Portuguesa. Para tanto, esses
alunos precisariam justificar o fato mencionado com reflexões
1
Com a denominação alunos-professores ou docentes referimo-nos aos trinta
alunos do Curso de Especialização.
2
Apenas uma docente era graduada em Pedagogia.
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A produção de verdades acerca da gramática
embasadas nos textos teóricos abordados nas aulas do Curso de
Especialização. Em meio aos acontecimentos discursivos
narrados, houve episódios que chamaram a atenção da
professora, pois, ao solicitar tal atividade, ela percebeu que os
alunos ficaram muito entusiasmados com a possibilidade que
lhes foi dada de relatar suas práticas didático-pedagógicas, a
ponto de a convidarem a ouvir suas experiências das aulas de
Língua Portuguesa antes de as registrarem por escrito. A maioria
deles, ao relatar oralmente as atividades de ensino, antes da
produção do texto escrito, mostrou posicionamentos críticos em
relação a algumas reflexões suscitadas pelos textos. Na atividade
escrita, a professora esperava encontrar também esses
posicionamentos nos textos apresentados. No entanto, para sua
surpresa, apenas um relato experienciado constituía ou
expressava tal criticidade. Os dizeres no texto escrito não
produziam sentidos de práticas discursivas que constituíram
subjetividades dos alunos-professores, quando se posicionaram
durante as aulas. O que havia era uma regularidade enunciativa,
ou seja, pontos singulares aos enunciados, uma “vontade de
verdade” (FOUCAULT, 2004) de reconhecer certos discursos,
certas verdades, que pareciam inerentes ao contexto escolar e
precisavam ser exploradas. Desse modo, poderíamos
compreender as condições de formação daquele discurso em
relação ao ensino da gramática. No entanto, seria possível
descrever outros discursos cujos sentidos rompessem com essa
regularidade?
De acordo com Antunes (2003), essa é uma tarefa
urgente, uma vez que na sala de aula ainda são recorrentes
práticas ancoradas em atividades nas quais o professor faz uso
do ensino de uma gramática descontextualizada, fragmentada,
irrelevante, excêntrica, inflexível, prescritiva, apoiada em textos
artificiais. Como há uma relação intrínseca entre fazer e dizer, a
concepção de linguagem também determina as práticas do
professor em relação à gramática a ser adotada em sala de aula.
Foi essa orientação apresentada pela autora e a
concepção de linguagem e de gramática proposta por Travaglia
(1999, 2009), Geraldi (1984) e Neves (2003) que nos levaram a
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olhar para os textos, produzidos inicialmente para nota, para
descrever o ponto de vista desses alunos-professores acerca da
gramática, o atravessamento ou ponto de articulação com outras
concepções de gramática. Ou seja, com base nas perspectivas
desses autores sobre o ensino de gramática, conhecer a
concepção que perpassa o discurso dos alunos-professores em
formação.
É imprescindível enfatizar que além de reafirmar a
concepção mais adequada, constitui propósito maior discutirmos
o caráter social dos usos da linguagem, no sentido de
analisarmos as práticas que orientam professores egressos dos
cursos de Letras a se posicionarem quanto ao ensino da
gramática.
2. Concepções de linguagem e de gramática: o que nos
dizem os autores
Para discutirmos o ensino e a concepção (ou
concepções) da gramática que produzem sentidos nos textos dos
alunos-professores se faz relevante, inicialmente, situarmos as
visões de linguagem associadas às práticas de sala de aula de
Língua Portuguesa e, consequentemente, ao próprio ensino de
gramática. A seguir, conhecer as concepções de gramática que
perpassam essas visões e, concomitante a isso, os enunciados
retirados dos textos dos alunos que justificam o dizer dos autores
(POSSENTI, 1997, GERALDI, 2000, TRAVAGLIA, 2009).
Vamos acompanhar os discursos acerca de algumas orientações
didáticas que norteiam o ensino de gramática nas escolas de
ensino fundamental e médio. Isso porque após a “virada
linguística”, caracterizada pela reação à unidade entre as
palavras e as coisas e à filosofia mentalista, parece-nos
impossível ignorar que os discursos não podem ser apenas
concebidos como descrição da realidade. Os discursos devem ser
apreendidos como constituintes de nossas práticas sociais e,
portanto, ao descrever alguém ou algo, é a linguagem que
produz essa “realidade” e institui algo.
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A produção de verdades acerca da gramática
Assim, ao lado de outros autores que assinalam o quanto
é difícil para os professores propiciarem um ensino eficaz da
gramática nas aulas de Língua Portuguesa, Travaglia (2009)
apresenta uma tentativa de proposta para o ensino de gramática
nas aulas de língua. Para o estudioso, os objetivos delineados
pelo professor esbarram numa questão central: “para que se dão
aulas de Português a falantes nativos de Português?”. Nessa
direção, também se configura como questão proeminente a
concepção que os professores atribuem à língua e à linguagem,
uma vez que tal compreensão irá definir como o docente
organizará suas aulas de língua portuguesa, sobretudo o ensino
da gramática.
De acordo com vários autores (POSSENTI, 1997,
GERALDI, 2000, TRAVAGLIA, 2009), há três possibilidades
de se conceber a linguagem, a saber: i) a linguagem como
expressão do pensamento; ii) a linguagem como instrumento de
comunicação e iii) a linguagem como forma ou processo de
interação. Na primeira concepção, a relação entre o sujeito e a
linguagem resume-se em uma atividade monológica na qual o
objetivo principal do sujeito é apropriar-se das regras que
traduzam seus pensamentos de forma lógica. Desse modo,
contextos e intersubjetividade são indiferentes, estão apenas
justapostos, uma vez que a linguagem é concebida como um
sistema fechado.Enquanto, nesta concepção, evidenciam-se
efeitos de fala e de escrita ideais e bem estruturadas, na segunda
concepção – a linguagem como instrumento de comunicação -,
corroboram efeitos de uma linguagem como instrumento de
comunicação entre sujeitos que devem ter em comum uma
língua e serem capazes de utilizá-la para transmitir mensagens e
também para decodificá-la. No entanto, nessa relação entre pelo
menos dois sujeitos não se constitui em interação, uma vez que
os falantes são afastados do uso efetivo da língua. Ou seja, a
finalidade da linguagem como comunicação é a transmissão de
uma mensagem de um emissor para um receptor. Novamente há
uma atividade monológica, pois os falantes são deslocados do
processo de produção da língua e, consequentemente, de tudo
que é social e histórico.
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Quanto à terceira concepção, Travaglia (2009) aponta
que a linguagem como processo de interação deveria estar
presente nos discursos dos professores e em suas práticas em
sala de aula, uma vez que, nesta, a intenção não está mais na
exteriorização do pensamento nem na transmissão de
mensagens. O interesse agora é com a realização de ações entre
sujeitos falantes de uma língua que tentam convencer seus
interlocutores de uma verdade. É a linguagem como um lugar de
interação, de criação, de transformação, no qual os sujeitos se
posicionam, inventam-se e reinventam novas subjetividades.
Ao concebermos a linguagem como um processo, um
“movimento em constante fluxo” (SILVA, 1994, p. 249),
entendemos que as concepções de linguagem como expressão
do pensamento e instrumento de comunicação já não são
suficientes para dar conta dos sentidos produzidos entre
interlocutores nas práticas sociais em que se inserem. Do mesmo
modo, são as aulas de ensino da gramática que se pautam nessas
concepções e evidenciam verdades instituídas por poderes
totalizadores. O ensino deve se ancorar em verdades cujos
significados “não expressam, nas suas diferentes concepções,
aproximações a um suposto ‘correto’, ‘verdadeiro’, ‘melhor’”,
conforme Costa (1998, p.41) ou sobre a manutenção de uma
dicotomia entre certo e errado. Essa dicotomia não se constitui
uma proposta anticientífica e antinatural em relação ao uso da
gramática, mas em um jogo discursivo e interacional que
desenvolva as competências dos sujeitos.
É nesse sentido que pretendemos apreender que
concepção de linguagem e, consequentemente, de gramática,
perpassa o discurso desses alunos-professores, pois o modo
como o professor concebe a linguagem implica no
direcionamento de sua prática na sala de aula. Nada mais
coerente que começar pelo óbvio, segundo afirma Possenti
(1997):
[...] se não para ensinar gramática, pelo menos para
defender tal ensino, é preciso - ou parece decente que
seja assim - saber o que é gramática. Acontece que a
noção de gramática é controvertida: nem todos os
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A produção de verdades acerca da gramática
que se dedicam ao estudo desse aspecto das línguas a
definem da mesma maneira. (POSSENTI, 1997,
p.63)
Assim, como há três concepções de linguagem e essas
direcionam a prática do professor, com a gramática não é
diferente. Travaglia (2001) argumenta que a metodologia
utilizada pelo professor está intimamente relacionada com aquilo
que o docente entende por ensino da gramática e pelo modo
como ensina a gramática. E acrescenta que essas concepções
geram certo conflito na vida do professor, pois ele se percebe
entre um saber prescritivo imposto pela gramática e um saber
descritivo-produtivo gerado pelos estudos linguísticos.
É necessário que o professor compreenda que toda
língua tem uma gramática e, para compreender o uso que os
falantes fazem de sua língua, é igualmente necessário definir o
melhor modo de estudar a gramática a fim de que a escola não
crie “[...] no aluno a falsa e estéril noção de que falar e ler ou
escrever não tem nada que ver com gramática” (NEVES, 2000,
p.52). Também não é possível atrelar o ensino da gramática ao
“[...] ensino de metalinguagem, de teoria gramatical ou
linguística desenvolvido por meio de atividades de gramática
teórica” (TRAVAGLIA, 2011, p. 94), pois esta prática
dificilmente desenvolveria a competência comunicativa dos
sujeitos. Sobre isso Neves, em entrevista ao jornal
UNESPCIÊNCIA, de dezembro de 2009, afirma que a gramática
não se constitui em um aglomerado de regras nem na decoreba
dessas regras. A gramática é linguagem em funcionamento e
produção de sentidos.
Para tentar compreender esses pensamentos, passaremos
a elucidar as concepções de gramática com base em uma
discursividade (TRAVAGLIA, 2009; POSSENTI, 1997;
FRANCHI, 1991) que evidencia efeitos de correntes
tradicionais, estruturalistas e gerativistas e enunciativas, para
tentar demonstrar aspectos singulares entre essas concepções e
as implicações destas nas visões de linguagem..
Na primeira concepção, a gramática é concebida “como
um manual com regras de bom uso da língua a serem seguidas
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por aqueles que querem se expressar adequadamente”
(TRAVAGLIA, 1996, p.111). Nesse sentido, saber gramática
implica reconhecer normas prescritas por especialistas e
seguidas pelos sujeitos que devem dominá-las para falar e
escrever bem a norma culta. As outras variedades da língua não
são consideradas ou são analisadas como “erradas” ou
desprestigiadas socialmente. Assim, “[...] a língua é só a
variedade dita padrão ou culta e que todas as outras formas de
uso da língua são desvios, erros, deformações, degenerações
[...]” (TRAVAGLIA, 2001, p.26). Decorre daí uma tendência
entre professores que é a produção de práticas ancoradas na
prescrição de normas que devem ser assimiladas pelos alunos
para eles se comunicarem mais adequadamente.
Nessa perspectiva, a gramática normativa é concebida
como algo definitivo e acabado que legitima verdades instituídas
por uma classe social de prestígio na sociedade a serem seguidas
por todos. Embora os estudos linguísticos venham cada vez mais
ocupando espaços antes destinados aos estudos tradicionais, as
práticas pautadas no jogo entre o que é gramatical e não
gramatical ainda se fazem presentes na sala de aula e se
distanciam do texto, considerado objeto de estudo pelos
Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) de Língua Portuguesa.
A outra concepção de gramática é designada de
descritiva por delinear o funcionamento da língua e sua
estrutura. Essa gramática foi produzida com base nas teorias
estruturalistas, nas quais há privilégio da descrição, e a gerativotransformacional, que aponta para os enunciados ideais
produzidos por um falante-ouvinte também ideal. Conforme
Travaglia (2009, p. 27), esta concepção se baseia em um
“conjunto de regras que o cientista encontra nos dados que
analisa, à luz de determinada teoria e método”.
Quanto à terceira concepção, Travaglia (2009, p.28)
argumenta que é uma gramática que o usuário da língua percebe
como um “conjunto das regras que o falante de fato aprendeu e
das quais lança mão ao falar”. É a gramática que não depende da
sistematização e apreensão de regras impostas por um segmento
da sociedade, mas do reconhecimento de que saber a gramática
de uma língua é saber utilizá-la em situações reais. Portanto, a
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gramática internalizada implica competência gramatical, textual
e discursiva dos usuários de uma língua. Essa concepção de
gramática indica a noção de linguagem como prática social, de
natureza discursiva, e o estudo que não dissocia estrutura
linguística e história e que busca compreender os usos da língua
em determinados contextos.
Tentaremos ilustrar como essas concepções se
materializariam nos discursos dos alunos-professores.
3. Ensino de gramática: a visão dos alunos-professores
Após a realização das atividades na sala de aula, a
professora ministrante da disciplina solicitou aos alunosprofessores que produzissem um texto. Dele, procedemos
recortes de enunciados que ilustrassem a reflexão aqui proposta
sobre ensino de gramática e sobre o modo como esses alunosprofessores se posicionam acerca do ensino de gramática. A
experiência vivenciada por uma aluna-professora ocorreu em
uma sala de aula de uma turma do 8º ano na qual ela ministrava
o conteúdo gramatical “orações sem sujeito”. Após as
explicações em torno das regras gramaticais dadas por essa
docente à turma, um aluno manifestou-se contrário sobre à
inexistência do sujeito no enunciado: “Há alunos na fila da
cantina”. O aluno afirmou, com veemência, que havia um sujeito
representado pela expressão “os alunos”. No seu relato, a
docente revela que se muniu da orientação gramatical para tentar
convencer o seu aluno da classificação do sujeito.
A aluna-professora, pautada em prescrições gramaticais,
argumenta para o seu aluno que o “verbo haver” não possuía um
sujeito, pois aquele termo estava colocado no enunciado com o
sentido de existir e, depois, que não haveria um termo com o
qual o verbo pudesse concordar; logo, não haveria sujeito. No
entanto, novamente, os dizeres da professora não convencem o
aluno que continua não aceitando tal classificação. É nesse
momento que ela define a concepção de gramática norteadora de
sua prática docente, quando relata:
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[...] ao ver que ele continuava sem aceitar, eu recorri
à gramática que muito ajudou quando explica que o
verbo deve flexionar em número e pessoa para
concordar com o termo ao qual se refere. Logo, a
gramática normativa ajudou muito na justificativa da
impessoalidade do verbo no contexto citado, porém,
o aluno não aceitou e não se convenceu (grifos
nossos).
A concepção de gramática adotada pela docente traduz
sentidos de outros já-ditos, numa compreensão de que as regras
da língua não podem ser questionadas. Seus usuários devem
seguir suas regras, pois são elas que propiciam a todos
expressarem-se adequadamente. Descrita como gramática
normativa, a professora nega a heterogeneidade linguística, uma
vez que, em sua orientação didática, não atribui qualquer
relevância ao uso que o aluno faz da língua ou da oralidade. É
notável o quanto esta concepção de gramática é legitimada em
discursos dos professores de Língua Portuguesa e presente
também na situação aqui narrada. No seu relato, a docente
afirma não conseguir convencer o aluno apenas com suas
explicações orais durante a aula, mas sim quando recorre à
gramática normativa que “muito” a ajudou a explicar a
impessoalidade do verbo “haver” questionada pelo aluno.
No entanto, a aluna-professora parece apreender o
quanto o ensino prescritivo não responde satisfatoriamente aos
questionamentos de seu aluno e menos ainda que esta atividade
irá permitir ao aluno desenvolver sua competência
comunicativa. A concepção de ensino da gramática deve levar
em consideração que, se o aluno não aprender a utilizar
adequadamente os recursos da língua em diferentes interações
comunicativas, consequentemente, isso trará implicações para a
melhoria de sua qualidade de vida, visto que o falante que tem a
possibilidade de se posicionar nas relações sociais,
provavelmente estará apto a entender as estratégias
argumentativas, significativas e de relação social e cultural
instauradas no seu falar (TRAVAGLIA, 1999). A professora
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A produção de verdades acerca da gramática
parece perceber também que a gramática, que “muito a ajudou
na sua explicação,” não alcançou êxito junto ao aluno que “não
aceitou e não se convenceu”, o que justifica a ineficácia de um
ensino gramatical desarticulado de uma concepção de linguagem
como prática social. Conforme afirma outro aluno-professor do
Curso “[...] a gramática existe não em função de si mesma, mas
em função do que as pessoas falam, ouvem, leem e escrevem nas
práticas sociais de uso da língua”.
Retomemos a concepção de gramática denominada
descritiva, por se preocupar em fazer “uma descrição da
estrutura e funcionamento da língua” (TRAVAGLIA, 1996,
p.112). Nessa concepção, há o reconhecimento de variedades
linguísticas e, diferentemente da primeira concepção, o objetivo
é descrever as formas possíveis de utilização da língua para a
comunicação entre seus falantes. Os efeitos de sentido
produzidos pelas sequências discursivas nesta concepção devem
ser levados em consideração, uma vez que o léxico em suas
várias realizações na língua não é estável, regular. Como diz
Foucault (2004b), os enunciados podem ser idênticos do ponto
de vista gramatical e estrutural, mas são enunciativamente
diferentes, pois uma “frase não constitui o mesmo enunciado se
for articulada por alguém durante uma conversa, ou impressa em
um romance; se for escrita um dia, há séculos, e se reaparece
agora em uma formulação oral” (FOUCAULT, 2008, p.113).
Na tentativa de continuar compreendendo as concepções
de gramática que subjazem os discursos dos alunos-professores
em seus textos, parece-nos que essa concepção de gramática
perpassa muitas experiências. E o texto de um desses docentes
chamou nossa atenção por apresentar sentidos que parecem
seguir uma direção contrária ao relato aqui analisado. Esse
docente inicia sua reflexão afirmando que:
[...] é comum surgirem dúvidas em relação às
questões de uso e aplicação das regras gramaticais,
uma vez que há uma disparidade entre a gramática
internalizada e as regras estabelecidas segundo a
norma padrão.
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Neste excerto já é possível compreender uma
discursividade que traduz sentidos em torno da apropriação de
uma concepção de gramática que vai além da normativa, pois o
docente declara que se o professor não se equipar de outros
conhecimentos acerca do ensino da gramática, serão frustradas
suas tentativas de tentar responder aos questionamentos dos
alunos conforme relatado na experiência anterior. Dado esse
mote em sala de aula, a reflexão acerca dos usos da Língua
Portuguesa e sobre a sua “gramática” caminhou para o
entendimento de que ensinar regras que devem ser seguidas é
uma atividade diferente de ensinar regras que podem ser
seguidas, dependendo dos usos e das situações comunicativas.
E isso parece estar bem evidente para o aluno-professor
quando inicia sua reflexão acerca dos “verbos de ligação” que
são descritos na gramática normativa como: ser, estar,
permanecer, ficar, continuar, tornar-se e parecer. Essa
classificação, segundo declarações de um dos docentes, não
esclarece e tampouco acata as expectativas dos alunos a respeito
da utilização desses verbos em situações específicas. O excerto
exemplifica o questionamento de um aluno de uma turma do 8º
ano a respeito do verbo “ficar”. Segundo o dizer de um dos
docentes em seu texto:
[...] o verbo é citado nas gramáticas normativas como
verbo não significativo, ou seja, de ligação e por isso
não expressaria “ação”, como se explica na frase:
“Carlos ficou com a minha prima”.
Para responder aos questionamentos do aluno, o docente
não teve como referência a gramática normativa como, em geral,
alguns professores fazem. Ele revelou, em sua prática, que não
existe uma única variedade de língua, e que esse ponto de vista
parece não se sustentar mais em uma sala de aula. O docente, ao
contrário, procurou mostrar ao aluno que há outros modos de
ensinar e aprender e que não precisam reproduzir a clássica
metodologia da definição, classificação, mas que há “outros
sentidos para o verbo ficar (namorar), em que ele funciona como
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A produção de verdades acerca da gramática
ação e sua classificação diverge dos conceitos da gramática
normativa”, conforme explica o professor.
Vemos, portanto, que esse docente elabora sentidos em
seu relato atravessados por uma prática orientada pela gramática
descritiva, pois ele busca mostrar ao aluno não apenas a
existência de uma variedade linguística, mas também de outras
variedades, utilizadas em outras práticas sociais e que são
imprescindíveis para sua mobilidade social. É possível
apreender nos discursos desse docente que ainda não abandona
as prescrições da gramática normativa, visto que ele declara que
o verbo “ficar” com sentido de namorar tem outra
“classificação” que não se encontra na gramática que traduz a
língua padrão. A posição que o aluno-professor assume nesse
momento indica um regime de verdade (FOUCAULT, 1985)
que está atrelado a poderes que passam a controlar, regular,
apoiar uma política geral de verdade (FOUCAULT, 1985) que
ratifica alguns discursos e os faz funcionar como verdadeiros em
certas situações. A prática desse docente parece reproduzir uma
metalinguagem ao assumir os procedimentos impostos por essa
visão de linguagem e de gramática.
A atitude desse docente não é única. Neves (2003), com
o propósito de investigar que concepção o professor tem da
gramática da língua e a partir dela definir o que deve ser
“ensinado ou exercitado”, lança mão da seguinte pergunta “para
que você ensina gramática?”, direcionada a professores.
A pesquisadora afirma que conseguiu depreender das
respostas dos professores dois conceitos em torno da gramática:
1. Gramática como um conjunto de regras de bom uso
(gramática normativa).
2. Gramática como descrição das entidades da língua e
suas funções (gramática descritiva).
O que reflete, segundo Neves (2003), que nenhum
professor revelou conceber a gramática como um sistema de
regras da língua em funcionamento. Essa concepção é descrita
por Travaglia (1996) como conjunto de variedades utilizadas por
uma sociedade e está associada à terceira concepção de
gramática proposta por ele e denominada de internalizada. Essa
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gramática consiste em um saber não escolarizado e é por meio
dela que o falante constrói um número infinito de frases. Essa
concepção perpassa o discurso dos PCN ao ser afirmado:
[...] as escolhas feitas ao dizer, ao produzir um
discurso, não são aleatórias - ainda que possam ser
inconscientes -, mas decorrentes das condições em
que o discurso é realizado. Quer dizer: quando um
sujeito interage verbalmente com outro, o discurso se
organiza a partir das finalidades e intenções do
locutor, dos conhecimentos que acredita que o
interlocutor possua sobre o assunto, do que supõe
serem suas opiniões e convicções, simpatias e
antipatias, da relação de afinidade e do grau de
familiaridade que têm, da posição social e
hierárquica que ocupam. (BRASIL, 1998, p.21).
Essa relação que os sujeitos estabelecem entre si, e que
se traduz na proposta dos PCN, implica que tais sujeitos façam
escolhas e produzam efeitos de sentidos que correspondem aos
momentos de rupturas, ressignificações, de uso efetivo da
linguagem, de posicionamento, de endereçamento, de
negociação. Nessa concepção de gramática internalizada, existe
a possibilidade de o professor fazer escolhas em relação às
regras a serem seguidas sem que este se submeta ou assujeite-se
a concepções fechadas. A gramática internalizada traduz
sentidos em torno da dimensão ética e de responsabilidade do
professor, quando propicia um trabalho em sala de aula. E este é
um trabalho de “ativação e amadurecimento progressivo (ou da
construção progressiva), na própria atividade linguística, de
hipóteses sobre o que seja a linguagem e de seus princípios e
regras" (TRAVAGLIA, 1996, p. 113).
Ao observarmos o corpus, notamos que nossos alunosprofessores ainda confirmam a pesquisa realizada por Neves
(2003), mas já é possível entrever um discurso de verdade como
acontecimento (FOUCAULT, 2004), entendido como um
rompimento com as evidências e do qual emergem liberdades,
deslocamentos, iniciativas, pensamentos e atuações diferentes.
Ou seja, um discurso cujos sentidos expressam mais abertura,
Horizontes de Linguística Aplicada, ano 11, n. 2, jul./dez. 2012
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A produção de verdades acerca da gramática
uma outra realidade, uma singularidade que decorre da
utilização dessa concepção de gramática e do questionamento
das lacunas existentes nas práticas com as outras duas
concepções. Este é o caso de uma professora-aluna do Curso de
Especialização que relata episódios ocorridos e decorrentes da
adoção por parte da docente de um “método da gramática pela
gramática”.
No primeiro episódio, a docente narrou que preparava
seu material na sala de professores e, para isso, ela tirava cópias
de um artigo publicado na revista Veja com o propósito de
trabalhar sequências argumentativas com alunos do 3º ano do
Ensino Médio. Ela afirmou que seu propósito era produzir
atividades em sala de aula que permitissem aos alunos um
trabalho com e sobre a linguagem. A natureza dessa prática para
o ensino da gramática deveria auxiliar, segundo a docente, os
alunos a compreenderem e a fazerem uso da língua materna de
maneira mais eficaz e contextualizada, em práticas efetivas de
uso da língua.
O professor de História, que trabalhava também nessa
turma, olhando para o material mencionado, afirmou que esse
tipo de atividade era “enrolação” da docente. Talvez, por ignorar
que existem outros tipos de ensino da gramática, é que o
acontecimento dessa fala do professor tenha sido possível. Em
outra ocasião, uma aluna-professora relatou que ocorreu fato
semelhante, mas este se deu em sala de aula com alunos da
graduação. Ao realizar um trabalho sem a observância às regras
gramaticais, foi questionada por seus alunos a respeito dessa
postura. Os alunos reivindicavam o estudo do “uso das dez
classes gramaticais até a sintaxe e suas classificações”. Mas a
docente revelou que conseguiu convencê-los de que também
“precisavam ver a gramática como recurso para escrever e
analisar textos e não apenas como nomenclatura para suas
determinadas classificações”. Ao fazer os seus alunos refletirem
sobre o uso da gramática, a aluna-professora abandona o
“conforto” propiciado pela gramática normativa e descritiva e se
lança em um campo um tanto desconhecido, uma vez que essa
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prática ainda é rara para a compreensão de tal estudo. Há apenas
suposições para os fatos da língua.
Assim, a não aceitação daqueles que não seguem as
regras impostas pela gramática normativa nem os enunciados
ideais da gramática descritiva sugere ser uma atitude que passa à
margem da sala de aula dessas duas alunas-professoras. Haja
vista que os relatos delas produzem sentidos que traduzem uma
postura diante do ensino da gramática na sala de aula que poderá
permitir aos alunos desenvolver a competência comunicativa e
compreender o uso dos recursos linguísticos e a adequação deles
às situações de uso.
4. Para concluir
Concluir talvez não seja a expressão mais acertada para
pôr fim à análise de alguns textos dos alunos-professores que
figuram nesse relato, uma vez que a discussão acerca do ensino
da gramática da Língua Portuguesa não é algo que se deva dar
por concluída. Ressaltamos que, ao buscarmos problematizar
questões voltadas para o ensino da gramática, nossa intenção
não se limitava à constatação de um sentido de verdade
hegemônico nos discursos dos alunos-professores em relação à
gramática. Ao contrário, sabíamos que, pela própria
heterogeneidade dos sujeitos presentes neste Curso de
Especialização, haveria algo mais, e esse algo mais seria “uma
verdade talvez adormecida, mas que, no entanto, está somente à
espera de nosso olhar para aparecer, à espera de nossa mão para
ser desvelada” (FOUCAULT, 2003, p.113).
Esse desvelamento produz sentidos acerca do uso da
gramática como um acontecimento, pois embora a maioria dos
relatos dos professores esteja voltada para práticas que têm
como base a gramática normativa ou prescritiva, é possível
observar uma ruptura nas evidências e nos consensos que se
apoiam em verdades. A exemplo daquelas que não reconhecem
o papel de protagonista do professor nas práticas de sala de aula
de Língua Portuguesa, voltadas para a concepção de língua em
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A produção de verdades acerca da gramática
funcionamento. É preciso problematizar a imposição de uma
mesma verdade a todos aqueles que lidam com a língua.
Portanto, nesse entrelaçamento de acontecimentos, é
possível entrever, no outro lado da fronteira, uma janela que se
abre para a mudança, para outra prática em que o professor
amplia seus conhecimentos para além da concepção da
“gramática como norma-padrão”, detentora de uma só verdade,
em relação à língua, e de um ensino de gramática que privilegia
algumas variedades a serem descritas em detrimento de outras.
Essa prática tem como preocupação atividades que resultam de
reflexões desenvolvidas com base situações reais de uso da
língua, imprescindíveis para a qualidade de vida do alunado.
Conforme afirma um docente do curso, a “gramática não deve
ser ensinada como fim em si mesma”, mas deve dar condições
para que o aluno amplie seu léxico, aperfeiçoe seu desempenho
comunicativo e, consequentemente, quanto maior for o domínio
dos mecanismos e recursos da língua, maior será sua mobilidade
social e sua competência discursiva.
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Recebido em: 30/06/2012
Aceito em: 18/02/2013
Title: The production of truths about grammar in discursive
practices of professors of Portuguese
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