impérios em guerra 1911 1923

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IMPÉRIOS EM GUERRA
19111923
Rober t Gerwar th e Erez Manela
(Org.)
Tr a d u ç ã o d e
Miguel Mata
ÍNDICE
Lista de autores
Lista de mapas
/LVWDGHÀJXUDV
Introdução
Robert Gerwarth e Erez Manela
1. O Império Otomano
Mustafa Aksakal
2. O Império Italiano
Richard Bosworth e Giuseppe Finaldi
3. O Império Alemão
Heather Jones
4. A Áustria-Hungria
3HWHU+DVOLQJHU
5. O Império Russo
Joshua Sanborn
6. O Império Francês
5LFKDUG6)RJDUW\
9
13
15
25
53
81
113
149
181
211
7. A África imperial britânica
Bill Nasson
8. Os domínios, a Irlanda e a Índia
Stephen Garton
9. O Império Português
Filipe Ribeiro de Meneses
10. O Japão imperial e a Grande Guerra
Frederick R. Dickinson
11. A China e o império
Xu Guoqi
12. O Império dos Estados Unidos
Christopher Capozzola
13. Os impérios na conferência de paz de Paris
Leonard V. Smith
Índice remissivo
247
285
331
361
389
425
457
497
1
O IMPÉRIO OTOMANO
Mustafa Aksakal
«UM FIM MENOS ABRUPTO E INFORTUNADO»
Na sua última década, o Império Otomano foi «uma experiência
de bastante sucesso em multinacionalismo destruída pelas grandes
potências na Primeira Guerra Mundial»1, ou um Estado falhado que
contraiu empréstimos que não podia pagar, que oprimiu os seus
súbditos, que agrediu as suas populações não muçulmanas e lhes
alimentou o desejo de independência, precipitando a intervenção
das grandes potências e abrindo o caminho para a destruição do
império? Ou, como tem sido defendido, o Império Otomano, «à
semelhança de outros impérios multinacionais e multirreligiosos»,
tornou-se simplesmente «um anacronismo», um império cujos líderes aceitaram «o inevitável» e decidiram «descartar a ideia de império
Donald Quartaet, recensão a Kemal H. Karpat, 7KH3ROLWLFL]DWLRQRI ,VODP5HFRQVWUXFWLQJ
,GHQWLW\6WDWH)DLWKDQG&RPPXQLW\LQWKH/DWH2WWRPDQ(PSLUH (Nova Iorque, Oxford University Press, 2001), American Historical Review, 107 (Outubro 2002), p. 1328.
1
53
MUSTAFA AKSAKAL
e optar por uma república nacional»?2 É possível, como também já
foi sugerido, que o desaparecimento do império, a partir de 1850,
tenha sido um «fracasso inevitável» devido às suas desvantagens
industriais comparativas, à dimensão relativamente pequena da sua
população (logo, com poucos efetivos militares), à sua localização
geoestratégica cobiçada e às suas múltiplas etnias numa época em
que a legitimidade dependia do apelo ao nacionalismo.3 Halide
Edib, romancista, pensadora feminista, funcionária governamental
HRÀFLDOPLOLWDURWRPDQDHVFUHYHQGRHPUHWUDWRXRÀPGRV
otomanos em termos que apenas dão uma ligeira ideia da catástrofe
humana que ocorreu:
[Em 1918], tive a consciência de que o Império Otomano
tinha caído com estrondo e que os líderes unionistas responsáveis
QmRHUDPRV~QLFRVTXHWLQKDPÀFDGRVRWHUUDGRVVRERVHXSHVR
esmagador. Embora a desintegração tivesse começado quase um
século antes e eu acreditasse convictamente que com ou sem guerra o império estaria sempre condenado, com a ajuda de uma polítiFDSUHYLGHQWHWDOYH]WLYHVVHXPÀPPHQRVDEUXSWRHLQIRUWXQDGR
0DVPHVPRDVVLPRFDUiFWHUGHÀQLWLYRGDPRUWHGRLPSpULRHUD
um facto inevitável.4
As respostas a todas estas perguntas dependem das fontes que se
examinam. Pelos relatos diplomáticos, principalmente europeus, os
historiadores poderiam chegar à conclusão de que foi a má gestão
GRLPSpULRTXHJDUDQWLXRVHXÀP4XDQGRVHSULYLOHJLDPDVIRQWHV
2
Feroz Ahmad, «The late Ottoman Empire», in Marian Kent (ed.), The Great Powers and
the End of the Ottoman Empire, 2.ª ed. (Londres, Frank Cass, 1996), p. 5.
3
Erik J. Zürcher, «The Ottoman Empire 1850-1922: Unavoidable Failure?», in Zürcher,
7KH <RXQJ 7XUN /HJDF\ DQG 1DWLRQ%XLOGLQJ )URP WKH 2WWRPDQ (PSLUH WR $WDWüUN·V 7XUNH\
(Londres, I. B. Tauris, 2010), pp. 59-72.
4
Halide Edib, 7KH7XUNLVK2UGHDO%HLQJWKH)XUWKHU0HPRLUVRI +DOLGé Edib (Nova Iorque,
Century Co., 1928), p. 3.
54
O IMPÉRIO OTOMANO
otomanas, tende a surgir um panorama diferente, em que o império é
uma «vítima do imperialismo europeu», perenemente fustigado pelas
práticas predatórias das grandes potências europeias que desejavam
a sua partilha num jogo conhecido pelo nome de «Questão Oriental»
desde que Catarina, a Grande, assestou os olhos em «Czargrado» (isto
é, Constantinopla/Istambul) e Napoleão Bonaparte declarou que
quem possuísse Constantinopla governaria o mundo.
Estas visões opostas do império foram expressas pelos observadores durante todo o século XIX e até à Primeira Guerra Mundial e
têm enformado as análises dos historiadores. O presente capítulo
não é o lugar apropriado para resolver esta dicotomia, mas suscito
a questão porque está implícita em qualquer interpretação dos anos
ÀQDLVGRLPSpULR,PSRUWDQRWDUEUHYHPHQWHTXHQHPRSDUDGLJPD
do «Estado falhado otomano» nem o da «vítima do imperialismo
HXURSHXª SRGHP H[SOLFDU R ÀP GR LPSpULR (QWUH H antes do aparecimento do imperialismo europeu, o império viveu
um período de «fazer ou morrer».5 Além disso, o aparecimento do
nacionalismo étnico no Império Otomano não pode ser exclusivamente atribuído às intrigas europeias; o nacionalismo e a tendência
para o Estado-nação foram fenómenos globais e não exclusivos
do Império Otomano.6 Contudo, também é inquestionável que a
intervenção europeia em nome das populações cristãs do império
politizou as relações entre muçulmanos e cristãos nos territórios
otomanos de forma a alimentar a violência étnica e religiosa.
O presente capítulo traça os principais desenvolvimentos ocorridos no império sem considerar o seu desaparecimento, em 1923,
um dado adquirido, e trata os líderes e os povos do império como
atores num palco próprio, agindo sob condições de guerra e, a par5
Virginia H. Aksam2WWRPDQ:DUV$Q(PSLUH%HVLHJHG (Nova Iorque, Pearson
Longman, 2007), p. 7.
6
Andreas Wimmer, :DYHVRI :DU1DWLRQDOLVP6WDWH)RUPDWLRQDQG(WKQLF([FOXVLRQLQWKH
Modern World (Cambridge, Cambridge University Press, 2013), pp. 1-5.
55
MUSTAFA AKSAKAL
WLUGHGHJXHUUDWRWDO(VWHFDStWXORDERUGDR©ÀPDEUXSWRH
infortunado» do império.
UM ACONTECIMENTO CURIOSO
A CAMINHO DE TARSO
Quando o arquiduque Francisco Fernando se preparava
SDUD YLVLWDU 6DUDMHYR QR ÀQDO GH -XQKR GH XP LQFLGHQWH
FXULRVRS{VHPSkQLFRDVJHQWHVGH7DUVRXPDFLGDGHRWRPDQD
localizada a mais de mil quilómetros para leste, perto de Adana.
O quartel-general da gendarmaria recebeu do governo de Istambul
um saco de correio selado. Segundo as instruções que o acompanhavam, só deveria ser aberto no momento da mobilização.
Porém, foi aberto e revelou ordens de mobilização que deveriam
ser entregues a todas as aldeias circundantes. Naturalmente, a
notícia deu origem a confusão e a boatos de conscrição e guerra
iminentes.7 Porque é que Istambul tomou medidas de mobilização
QRÀQDOGH-XQKRGHGLDVantes de um sérvio bósnio de 19 anos
matar o arquiduque de Habsburgo e a mulher, e antes de se tornar
evidente que o assassínio do casal resultaria numa guerra entre a Áustria-Hungria e a Sérvia ou talvez mesmo numa guerra generalizada
e mundial? Estaria o Estado otomano predisposto para a guerra,
FRPRUHÁHWLDRDQ~QFLRSUHPDWXURGDVRUGHQVGHFRQVFULomRSHODV
autoridades de Tarso? Ou tratou-se simplesmente de um lapso
burocrático num procedimento de rotina, a que não deve ser dada
muita importância?
Quando a Áustria-Hungria declarou guerra à Sérvia, no dia 28
de julho de 1914 – e passada uma semana, a Alemanha declarou
7
BOA, DH.EUM.EMN 85/18 12 Haziran 1330 (25 de Junho de 1914) e 15 Haziran
1330 (28 de Junho de 1914).
56
O IMPÉRIO OTOMANO
guerra à Rússia, à França e à Bélgica –, os alicerces imperiais otomanos ainda estavam a tremer sob o efeito de uma sucessão de
grandes crises internas e internacionais e de três guerras ocorridas
a partir de 1911. A dinastia otomana sobreviveu até 1922, depois
de um período de vida que ultrapassou o dos Habsburgos, Hohenzollerns e Romanovs, mas milhões de otomanos, na sua maioria
civis, não tiveram a mesma sorte. A Casa de Osman governou os
domínios otomanos a partir de cerca de 1299. Começou por se
estabelecer nas regiões norte e ocidental da Anatólia e depois, no
século XIV, penetrou no sudeste europeu, e no primeiro quartel do
século XVI conquistou as terras árabes orientais. Nessa época, o
sultão otomano arrogou-se o título de califa, ou seja, líder mundial
dos muçulmanos. O último sultão da Casa de Osman, Mehmed VI,
foi exilado em 1922, seguindo-se a proclamação da república
turca, em 29 de outubro de 1923 – nove anos exatos depois do
ataque naval otomano à Rússia, no mar Negro, que mergulhou o
LPSpULRQRFRQÁLWRPXQGLDO2FDOLIDGRIRLDEROLGRHPPDUoRGH
1924. O enterro de Mehmed VI em Damasco, fora das fronteiras
da república de Ataturk, simbolizou os esforços do novo regime
para a excisão do passado otomano da nova Turquia.
A história de vida de Gavrilo Princip, o assassino de Francisco
Fernando, interligou-se com a história de vida do império. Princip nasceu na Bósnia otomana em 1894. A organização pela qual
desferiu o ataque, a Jovem Bósnia, exigia a união da Bósnia com
a Sérvia, um Estado que conquistara a sua independência formal
aos otomanos em 1878, mas sem a Bósnia de Princip. A Bósnia,
juntamente com a Herzegovina, foi ocupada pelos Habsburgos em
1878 e anexada em 1908.
57
MUSTAFA AKSAKAL
A PRIMAVERA OTOMANA E AS GUERRAS DE 1911-1913
A revolução constitucional otomana de julho de 1908 resultou
em eleições em todo o império e no estabelecimento do primeiro
parlamento desde 1878, dando início a uma breve primavera
otomana. «O país despertou de imediato», escreveu um jovem
correspondente russo do Pravda, Leon Trotsky, em dezembro de
1908.8 No início, a «revolução popular a partir de cima»,9 em 1908,
pareceu-se bastante com um golpe militar, mas a abertura temporária demonstrou o potencial da viabilidade política do império.10
O acontecimento foi celebrado com grandes comícios e festividades.
Os deputados eleitos para o parlamento representavam as várias
regiões do império. Uma multidão de novas organizações, clubes e
jornais advogou a unidade e a conciliação entre os grupos étnicos
do império (o otomanismo) e a descentralização.116HJXQGRR)ÖUNDL
.
Ibad, um partido político otomanista, «hoje, o governo da Turquia
[7UNL\H KNPHWL] e a nação otomana são formados por turcos,
árabes, albaneses, curdos, arménios, gregos ortodoxos [rum], judeus,
búlgaros e muitos outros elementos diferentes. Todos os elementos
estão unidos e aliados uns aos outros».12 Todavia, os golpistas, que
forçaram a proclamação da constituição – o Comité para a União
e o Progresso –, demonstraram pouco apego à política democrá8
Leon Trotsky, 7KH%DONDQ:DUV7KH:DU&RUUHVSRQGHQFHRI /HRQ7URWVN\, trad.
Brian Pearce, ed. George Weissman e Duncan Williams (Nova Iorque, Nonad Press,
1980), p. 4.
9
Nader Sohrabi, 5HYROXWLRQDQG&RQVWLWXWLRQDOLVPLQWKH2WWRPDQ(PSLUHDQG,UDQ (Cambridge,
Cambridge University Press, 2011), p. 114.
10
Y. DoJÚan Cetinkaya, «1908 Devrimi ve Toplumsal Seferberlik», in Ferdan Ergut (ed.),
,,0HV̧UXWL\HW·L<HQLGHQ'üşünmek (Istambul, Tarih VakfÖ, 2010), p. 3.
11
Michelle U. Campos, 2WWRPDQ%URWKHUV0XVOLPV&KULVWLDQVDQG-HZVLQ(DUO\7ZHQWLHWK
&HQWXU\3DOHVWLQH (Stanford, Stanford University Press, 2011); Ilham Khuri-Makdisi, The
(DVWHUQ0HGLWHUUDQHDQDQGWKH0DNLQJRI *OREDO5DGLFDOLVP (Berkeley e Los Angeles,
University of California Press, 2010).
12
Citado
. in G|khan Kaya,
. ,,0HV̧UXWL\HW'|neminin DemokratlarÖ2VPDQOÖ Demokrat FÖrkasÖ
( FÖUNDL,bad) (Istambul, Iletişim, 2011), p. 199.
58
O IMPÉRIO OTOMANO
tica. Em Adana, a violência étnica em larga escala e os assassínios
políticos, incluindo de jornalistas, traíram as esperanças de 1908.
Em 1911, o apoio popular ao novo governo liderado pelo Comité
para a União e o Progresso estava em queda acentuada e no parlamento o poder deslocou-se para uma nova formação política, o
Partido da Liberdade e do Entendimento.13
Em setembro, a Itália conquistou aos otomanos Trípoli, no
norte de África (Líbia), sem causa maior do que uma ambição
imperial, dando origem a protestos contra a injustiça em todos os
territórios otomanos e não só.14 Para sufocar a resistência local,
as autoridades italianas enforcaram publicamente 14 agitadores.
Em Esmirna, uma peça de teatro emotiva denunciou o ataque
italiano e galvanizou o apoio popular.15 Na esperança de granjear
apoios diplomáticos europeus, os políticos e os especialistas em
direito internacional otomanos apontaram a ilegitimidade do ato
italiano, mas sem grande sucesso.16 Um ano depois, em outubro
de 1912, quando ainda estava em guerra com a Itália, Istambul
enfrentou uma nova crise militar. Um exército combinado de tropas búlgaras, gregas, montenegrinas e sérvias apoderou-se das três
províncias europeias otomanas, Kosovo, Monastir e Salonica, no
.
.
Ali Birinci, HüUUL\HW YH , tilâf FÖrkasÖ ,, 0HV̧UXWL\HW 'HYULQGH ,WWLKDW YH 7HUDNNL·\H .DUVÝÖ
Çikanlar (Istambul, Dergâh, YayÖnlarÖ, 1990), p. 72.
14
Timothy W. Childs, ,WDOR7XUNLVK'LSORPDF\DQGWKH:DURYHU/LE\D (Nova
Iorque, Brill, 1999), p. 36. Sobre as reações fora do império, veja-se Firoozeh Kashani-Sabet, )URQWLHU)LFWLRQV6KDSLQJWKH,UDQLDQ1DWLRQ (Princeton, Princeton University Press, 1999), p. 144; Mohammad Hassan Kavousi Araghi e Nasrollah Salehi (eds.),
-LKDGLHK7KH+RO\:DU)DWZDVRI WKH*UDQG8ODPDDQG0XMWDKHGVLQ:RUOG:DU, (Teerão, Unit
for Documentary Publication, 1997).
.
15
Mehmed Sezai, &LKDGÖ 0XNDGGHV \DKXG 7UDEOXVJDUE·GD 2VPDQOÖ, WDO\D &HQJL (Esmirna,
.
Keşişyan MatbaasÖ, 1327/1911); Günver Güneş, «II. Meşrutiyet D|neminde Izmir’de
Tiyatro YaşamÖª, Ankara Üniversitesi OsmanlÖ Tarihi
. AraştÖUPDYH8\JXODPD0HUNH]L'HUJLVL,
18 (2005), pp. 151-71; Ö. Faruk Huyugüzel, ,zmir Fikir ve Sanat AdamlarÖ (Ancara, Kültür BakanlÖJÚÖ, 2000), pp. 400-01.
.
16
Hasan SÖrrÖ, +XNXNX'üYYHO1RNWDL1D]DUÖnda OsmanlÖ,WDO\D0XKDUHEHVL (Constantina,
Matbaa-i Ebüzziya, 1330/1914).
13
59
MUSTAFA AKSAKAL
meio de grandes atrocidades perpetradas contra os civis por todos
os beligerantes.17 Em julho de 1913, durante a segunda guerra dos
Balcãs, as tropas otomanas reconquistaram Edirne/Adrianópolis,
uma antiga capital imperial, ignorando as enérgicas admoestações
das grandes potências. Porém, apesar da reconquista de Edirne,
o império perdeu territórios que detinha desde o século XIV,
e também estava a perder a sua população cristã. As estimativas da
população otomana para 1872 colocam o total (excluindo o Egito)
em cerca de 29 milhões de pessoas, com pouco mais de metade
residente nos territórios europeus do império. Em 1872, quase
metade da população era não muçulmana. Em 1906, a população
estava reduzida a cerca de 21 milhões, sendo os não muçulmanos
cerca de um quarto.18
Para alguns, a derrota nas guerras dos Balcãs provou, sem a
mínima dúvida, a deslealdade dos cristãos do império. Os cristãos
tinham fornecido um quarto das forças otomanas na primeira
guerra dos Balcãs e, na opinião de alguns, fora o seu desempenho
que causara a derrota e não o facto de os exércitos otomanos terem
enfrentado forças muito mais numerosas na maioria dos teatros de
guerra.19 O ex-governador otomano de Salonica – um importante
centro urbano também perdido – publicou uma carta aberta em
TXHDÀUPRXTXHRVFULVWmRVRUWRGR[RVGRLPSpULRDOpPGHWHUHP
falhado no cumprimento do serviço militar, não se tinham juntado
aos muçulmanos do império com donativos para o esforço de
17
5HSRUWRI WKH,QWHUQDWLRQDO&RPPLVVLRQWR,QTXLUHLQWRWKH&DXVHVDQG&RQGXFWRI WKH%DONDQ
Wars (Washington, Carnegie
. Endowment for International Peace, 1914).
18
Cem
Behar,
OsmanlÖ
,
mparatorluJÚX·QXQYH7üUNL\H·QLQ1üIXVX (Ancara, Devlet
.
Istatistik Enstitüsü, 1996), pp. 38, 55-58.
19
Fikret AdanÖr, «Non-Muslims in the Ottoman Army and the Ottoman Defeat in the
Balkan War of 1912-1913», in Ronald Grigor Suny, Fatma Müge G|oek, Norman
M. Naimark (eds.), $4XHVWLRQRI *HQRFLGH$UPHQLDQVDQG7XUNVDWWKH(QGRI WKH2WWRPDQ
Empire (Oxford, Oxford University Press, 2011), p. 120; Edward J. Erickson, Defeat in
'HWDLO7KH2WWRPDQ$UP\LQWKH%DONDQV (Westport, Praeger, 2003).
60
O IMPÉRIO OTOMANO
Fig. 1. Refugiados na Trácia, c. 1915. A turbulência de 1911-1923 transformou milhões
de pessoas em refugiados e desalojados.
guerra.20 As empresas pertencentes a muçulmanos comercializaram
os seus produtos com anúncios hostis aos súbditos e aos negócios
não muçulmanos. A partir de 1912, a designação «otomano» na
SXEOLFLGDGH LPSUHVVD SDVVRX D WHU R VLJQLÀFDGR ©H[FOXVLYRª GH
«muçulmano/turco».21 No campo, os citadinos e os aldeãos depararam-se com uma nova geração de refugiados. Ouviram dos próprios
sobreviventes os relatos das limpezas étnicas (ver Fig. 1). Segundo os
UHJLVWRVRÀFLDLVRWRPDQRVDWpFKHJDUDPDRLPSpULR
refugiados muçulmanos dos Balcãs, um número que até 1920 se
poderá ter elevado a cerca de 640 000.22
20
Mustafa Aksakal, 7KH2WWRPDQ5RDGWR:DULQ7KH2WWRPDQ(PSLUHDQGWKH)LUVW
World War (Cambridge, Cambridge University Press, 2008), p. 53.
21
Yavuz K|se, «Between Protest and Envy: Foreign Companies and Ottoman Muslim
Society», in Eleni Gari, M. Erdem KabadayÖ e Christoph K. Neumann (eds.), Popular
Protest and Political Participation, Studies in Honor of Suraiya Faroqhi (Istambul, Istanbul
Bilgi University Press),
p. 265.
.
22
Behar, OsmanlÖ ,mparatorluJÚX·QXQYH7üUNL\H·QLQ1üIXVX, p. 62; Onur YÖldÖrÖm,
'LSORPDF\DQG'LVSODFHPHQW5HFRQVLGHULQJWKH7XUFR*UHHN([FKDQJHRI 3RSXODWLRQV
(Nova Iorque, Routledge, 2006), p. 89.
61
MUSTAFA AKSAKAL
O homem de proa dos militares otomanos durante a Primeira
Guerra Mundial, o ministro da Guerra, Enver Paxá (1881-1922), fez
DVXDDSUHQGL]DJHPQDJXHUUDGHJXHUULOKDGD/tELDHQRVFRQÁLWRV
VDQJUHQWRVQRV%DOFmVHIRLXPGRVRÀFLDLVUHYROXFLRQiULRVTXH
derrubaram o sultão Abdul Hamid II, em 1908-1909). Enver (bei
até janeiro de 1914 e depois paxá) e os seus associados – muitos dos
quais eram originários dos Balcãs – interpretaram estes confrontos
como agressões cristãs.23 Todas as partes recorreram à linguagem
UHOLJLRVDSRUH[HPSORRUHLGD*UpFLDDÀUPRXTXHRVVHXVH[pUFLWRV
estavam a travar «a luta santa da justiça e da liberdade pelos povos
oprimidos do Oriente».24
Estas experiências de violência imbuíram Enver e largos segmentos da sociedade de um profundo sentimento de vitimização.25
Como disse um jornal, «a nossa honra e a dignidade do nosso povo
não podem ser preservadas com os velhos livros do direito internacional, só com a guerra».26$YLROrQFLDDÀUPRXRMRUQDOVySRGHULD
ser debelada com uma violência ainda maior. Entre janeiro e junho
de 1914, cerca de 200 000 cristãos ortodoxos foram expulsos das
regiões costeiras ocidentais da Anatólia e da Trácia.
Para outros, como os membros do Partido da Liberdade e do
(QWHQGLPHQWRRXÀJXUDVLPSRUWDQWHVFRPR$PLU6KDNLE$UVODQ
e Sati’ al-Husri (que desempenharam papéis de liderança no nacionalismo pan-árabe depois da guerra), o otomanismo – movimento
centrado na coexistência dos povos otomanos de diferentes religiões
e etnias no quadro imperial – continuava a oferecer uma via viável
M. Şükrü HanioJÚlu (ed.), .HQGL 0HNWXSODUÖnda Enver Paşa (Istambul, Der YayÖnlarÖ,
1989), p. 242.
24
Citado in Mark Biondich, 7KH%DONDQV5HYROXWLRQ:DUDQG3ROLWLFDO9LROHQFHVLQFH
(Oxford, Oxford University Press, 2011), p. 75.
25
Enver Pascha, Um Tripolis (Munique, Hugo Bruckmann, 1918).
26
Ahenk, 13 de outubro de 1912, citado in Zeki ArÖkan, «Balkan Savaşi Kamuoyuy», in
%LOGLULOHU'|rdüncü Askeri Tarih Semineri (Ancara, Genelkurmay BasÖmevi, 1989), p. 176.
23
62
O IMPÉRIO OTOMANO
para o futuro.27 De facto, no princípio de 1915, Shakib Arslan cheÀRXXPDXQLGDGHGHYROXQWiULRViUDEHVQDSULPHLUDFDPSDQKDGR
Canal de Suez, conduzida por Kemal Paxá contra o Egito dominado
pelos britânicos. Para alguns, o otomanismo continuou a ser um
quadro viável durante e até depois da Primeira Guerra Mundial,
mas a partir de 1912-1913 permaneceu marginal.28
A noção de que a multietnicidade do império, numa época de
nacionalismo e de imperialismo europeu, ameaçava a própria existência do Império Otomano não era obviamente nova em 1912.
Depois da guerra contra a Rússia, em 1877-1878, o sultão Abdul
Hamid II declarou inaceitável que regiões de importância estratégica
para a defesa da capital fossem habitadas por não muçulmanos.29
Em 1908, alguns líderes do Comité para a União e o Progresso já
tinham decidido que o império seria «sem nacionalidades» e que não
«se tornaria uma nova Áustria», uma referência ao $XVJOHLFK de 1867,
que convertera o Império Habsburgo numa monarquia dual, e a
reformas mais recentes. O seu objetivo era a criação de «um EstadoQDomRWXUFRXQLÀFDGRFRPHVFRODVWXUFDVXPDDGPLQLVWUDomRWXUFD
[e] um sistema judicial turco».30 Porém, apesar de o Comité para a
União e o Progresso ter desencadeado com êxito a revolução de
1908, decorridos dois anos tinha perdido uma grande parte do seu
apoio e agarrava-se ao poder político recorrendo à coerção e às
fraudes eleitorais. Foram as guerras contra a Itália e nos Balcãs que
devolveram os unionistas ao poder; sem estas guerras, é bastante
Shakib Arslan, SÖrah DharÖ\DK (Beirute, Da-r Al-TalÖ-’yah, 1969), pp. 236-92.
Sobre a evolução e a persistência residual do otomanismo, veja-se Abigail Jacobson,
)URP(PSLUHWR(PSLUH-HUXVDOHPEHWZHHQ2WWRPDQDQG%ULWLVK5XOH(Siracusa, Syracuse University Press, 2011); veja-se também Michael Provence, «Ottoman Modernity, Colonialism,
and Insurgency in the Arab Middle East», ,QWHUQDWLRQDO-RXUQDORI 0LGGOH(DVW6WXGLHV, 43
(2011), pp. 205-25.
29
AdanÖr, «Non-Muslims in the Ottoman Army and the Ottoman Defeat in the Balkan
War of 1912-1913», p. 115.
30
Relato de uma conversa com o Dr. NazÖm, citada in M. Şükrü HanioJÚ lu, Preparation for
D5HYROXWLRQ7KH<RXQJ7XUNV (Oxford, Oxford University Press, 2001), p. 260.
27
28
63
MUSTAFA AKSAKAL
possível que o declínio do Comité para a União e o Progresso tivesse
continuado e que a política adotada não fosse a sua, mas a de terceiros. Todavia, a convergência da derrota traumática, da liderança
PLOLWDULVWDHGD3ULPHLUD*XHUUD0XQGLDOUHYHORXVHFDWDVWUyÀFD
A GRANDE GUERRA COMO UMA GRANDE
OPORTUNIDADE
O Comité para a União e o Progresso aproveitou-se das crises
militares de 1911-1913. Os líderes da organização, que eram uma
FRPELQDomRGHMRYHQVRÀFLDLVHFLYLVDFUHGLWDYDPQDWRPDGDGD
LQLFLDWLYD,QÁXHQFLDGRVSHORGLVFXUVRLQWHUQDFLRQDOVREUHDSVHXdociência do darwinismo social, os apoiantes do Comité advogaram
uma postura de ousadia. Esta atitude, como vimos, fora patenteada
por Enver Bei e pelos seus homens na revolução constitucional de
1908, na resistência armada à Itália e na segunda guerra dos Balcãs,
TXHUHFXSHURX(GLUQH$OpPGRPDLVHPMDQHLURGHDOJXQVRÀciais tinham tomado de assalto os escritórios do grão-vizir, matado
o ministro da Guerra e derrubado o governo, substituindo-o por
XPGRPLQDGRSHOR&RPLWp2QRYRJDELQHWHDSRLDGRSRURÀFLDLV
treinados pelo general alemão Colmar von der Goltz, solicitou os
serviços de um militar alemão para reformar o exército. A missão
militar alemã chegou a Istambul em dezembro de 1913, juntando-se
DRVRÀFLDLVGHPDULQKDEULWkQLFRVHGDJHQGDUPDULDIUDQFHVDTXH
já se encontravam ao serviço do império. Enquanto prosseguia a
reforma militar, o governo procurou cobertura internacional sob a
forma de uma aliança militar. Depois de ter sido rejeitado ao procurar uma aliança com Londres, em 1913, o grão-vizir Said Halim
iniciou conversações com Berlim. Said Halim e Enver esperavam
que uma aliança com a Alemanha lhes oferecesse segurança militar
contra ataques como o da Itália e dos Estados balcânicos e a cober-
64
O IMPÉRIO OTOMANO
tura necessária para o desenvolvimento e a industrialização do país.
A Alemanha e o próprio Japão ofereciam modelos de sucesso para
esta visão de rápida «modernização militar».31
Uma aliança militar daria também a Istambul uma posição mais
forte em quaisquer negociações diplomáticas, como as relacionadas
com as exigências das grandes potências de melhoramento das condições de vida e da segurança pessoal nas províncias da Anatólia Oriental,
habitada por uma população maioritariamente arménia e curda. Além
disso, grandes segmentos da imprensa apoiaram as políticas agressivas
e ativistas do Comité para a União e o Progresso. «A nossa entrada na
[Primeira] Guerra [Mundial] não foi obra de um indivíduo isolado»,
UHFRUGDULDXPRÀFLDOGHDOWDSDWHQWH©PDVRUHVXOWDGRGHYiULRVIDWRUHV
complexos», em especial, «a nossa imprensa» e a «opinião pública».32
Foi a conjuntura da crise de julho que induziu Berlim a aceitar
uma aliança militar com a Turquia, concluída no dia 2 de agosto de
1914. Para os líderes otomanos, o tratado de aliança, válido por sete
anos, foi um importante feito diplomático. A derrota da Alemanha
– e a guerra total no limiar da qual tinham acabado de entrar – era
difícil de imaginar em 1914. A Turquia solicitou e recebeu da Alemanha ouro, homens e material, e estava determinada a preservar a
aliança mesmo com risco de guerra. No dia 29 de outubro de 1914,
no mar Negro, a marinha otomana atacou a Rússia.
O impacto militar imediato da operação foi fraco, mas as consequências foram enormes face à destruição e à devastação que se seguiram. A guerra na Europa alastrara a uma grande parte do Mediterrâneo
Oriental e durante os quatro anos seguintes incineraria o tecido social do
Império Otomano. Ao pisar a fogueira da guerra, a liderança otomana
demonstrou empenhamento para com os seus aliados alemães. Berlim
.
Murat Belge, Militarist ModernleşPH $OPDQ\D -DSRQ\D YH 7üUNL\H (Istambul, Iletişim,
2011).
.
32
Kâzim Karabekir, &LKDQ+DUELQH1HGHQ*LUGLN1DVLO*LUGLN1DVLO, dare Ettik, vol. II
(Istambul, Tecelli, 1937), pp. 32-86.
31
65
MUSTAFA AKSAKAL
teria de honrar os interesses otomanos em qualquer negociação de
paz, desde que, obviamente, estivesse sentada à mesa das negociações
quer como vencedor quer ao nível dos seus adversários. «Quando
penso em tudo o que a Rússia vem fazendo há séculos para provocar
a nossa destruição e em tudo o que a Grã-Bretanha fez nos últimos
anos», declarou Kemal Paxá, o ministro da Marinha, «considero que
esta nova crise acabou por ser uma bênção. Acredito que o dever
absoluto dos turcos [Türklerin] é viver como uma nação honrada ou
sair em glória do palco da história.»33 Goltz Paxá expressou-se sobre
o acontecimento em termos similarmente grandiosos: «Bravo, a Velha
Turquia tem a oportunidade […], com uma arremetida súbita, de se
reerguer aos píncaros da antiga glória. Que não a perca!»34
Nos primeiros cinco meses da sua participação na guerra, Istambul lançou três campanhas – uma ideológica e duas militares. Em
novembro de 1914, o sultão otomano proclamou que a contenda era
uma guerra santa e apelou não só aos seus súbditos muçulmanos mas
também aos muçulmanos residentes nos impérios britânico, francês
e russo para que apoiassem o esforço de guerra otomano e dos seus
aliados, os impérios alemão e dos Habsburgos. A proclamação tinha
sido solicitada, em particular, pelo imperador Guilherme II da Alemanha; a liderança otomana pareceu ter cedido aos desejos do imperador,
mas Istambul tinha a sua própria agenda para a proclamação da MLKDG.
Na perspetiva otomana, a declaração da MLKDG destinava-se menos à
mobilização das populações muçulmanas dos impérios coloniais da
Entente – da Índia e do Egito britânicos, do Cáucaso e da Ásia Central
russos e do norte de África francês – do que a mobilizar as próprias
populações muçulmanas do império sob a bandeira otomana.35
33
Arquivo do Estado-Maior General turco (ATASE), BDH, Klas|r 87, Yeni Dosya
449, Fihrist 1-2 e 1-3, 2 de novembro de 1914.
34
Bundesarchiv-Militärarchiv, N 80-1, fo. 201, 9 de novembro de 1914.
35
Mustafa Aksakal, «“Jihad Made in Germany?” The Ottoman Origins of the 1914
Jihad», :DULQ+LVWRU\, 18 (abril de 2011), pp. 184-99.
66
O IMPÉRIO OTOMANO
De seguida, Istambul lançou duas operações ofensivas em antigos
WHUULWyULRVRWRPDQRV1RÀQDOGHR7HUFHLUR([pUFLWRSHQHtrou em território perdido para a Rússia em 1878. No princípio de
XPDIRUoDFKHÀDGDSRU.HPDO3D[iWHQWRXDWUDYHVVDURFDQDO
de Suez e entrar no Egito, ocupado pela Grã-Bretanha desde 1882.
Ambas as campanhas fracassaram e nenhuma inspirou revoluções
aos muçulmanos dos impérios russo e britânico. A campanha na
Rússia, cujo objetivo era a conquista da cidade de Sarikamiş, resultou
num desastre militar. O Terceiro Exército Otomano, combatendo
debaixo de temperaturas negativas e devastado pelas doenças, perdeu dezenas de milhares de homens em poucos dias.36 Na memória
FROHWLYDWXUFDGDJXHUUDRÀDVFRGH6DULNDPLVÝpDLPDJHPHVSHOKDGD
do triunfo de Gallipoli em 1915-1916. Além disso, Sarikamiş foi
SHUVRQLÀFDGDSRU(QYHUHUHSUHVHQWRXRVIUDFDVVRVHDGHFDGrQFLD
GRLPSpULRHQTXDQWR*DOOLSROLIRLSHUVRQLÀFDGDSRU0XVWDID.HPDO
H UHSUHVHQWRX D YLWyULD GHÀQLGRUD GD UHS~EOLFD R ©PRPHQWR GH
glória dos turcos». Porém, no rescaldo da derrota, as culpas foram
atribuídas à população arménia da região e aos batalhões de voluntários arménios que se tinham juntado aos russos.
VIOLÊNCIA E VIABILIDADE
Em 1909, o novo parlamento aprovou uma lei do serviço militar obrigatório aplicável a todos os otomanos, muçulmanos e não
muçulmanos. Em 1911, quase um quarto dos jovens que entram
para o serviço militar era não muçulmano. Todavia, as guerras de
36
Existem estimativas muito variadas sobre os efetivos do Terceiro Exército e sobre as
suas baixas em Sarikamiş. Veja-se Hikmet Ö]GHPLU7KH2WWRPDQ$UP\'LVHDVH
DQG'HDWKRQWKH%DWWOHÀHOG, trad. Saban Kardaş (Salt Lake City, University of Utah Press,
2008), pp. 50-67; Michael A. Reynolds, 6KDWWHULQJ (PSLUHV 7KH &ODVK DQG &ROODSVH RI WKH
2WWRPDQ(PSLUHV (Cambridge, Cambridge University Press, 2011), p. 125. Reynolds coloca os efetivos do Terceiro Exército em 95 000, Özdemir em 112 000.
67
MUSTAFA AKSAKAL
1911-1913 e as pressões que colocaram sobre as relações entre
muçulmanos e cristãos no seio do império minaram as tentativas
GHXVDURH[pUFLWRLPSHULDOFRPRXPDHQWLGDGHXQLÀFDGRUDXPD
«escola da nação» (termo posteriormente usado por Mustafa Kemal
ao referir-se aos militares da república). Com a declaração da mobilização, em agosto de 1914, o exército recrutou todos os homens
com idades compreendidas entre os 20 e os 45 anos – cerca de três
PLOK}HVDWpDRÀPGDJXHUUD$PDLRULDGRVFRQVFULWRVHUDRULXQGD
da Anatólia, mas talvez mais de um quarto viesse dos territórios
árabes do império.37 As populações foram de imediato atingidas
pela escassez de alimentos e de mão de obra. Dezenas de soldados
sucumbiram às doenças mesmo antes da entrada do império na
JXHUUDQRÀQDOGHHPXLWRVGHVHUWDUDP
A possibilidade de coexistência imperial, que ainda era concretizável em agosto de 1914, foi destruída pela guerra. A eclosão
GRFRQÁLWRQHVVHPrVLQWHQVLÀFRXGHLPHGLDWRDVDFXVDo}HVGH
deslealdade ao império lançadas aos não muçulmanos e aos não
turcos. Os arménios e os curdos foram apresentados como aliados
potenciais da Rússia; os judeus, da Grã-Bretanha; os cristãos árabes,
da França; os muçulmanos árabes (à volta de Husayn, xerife de
Meca), da Grã-Bretanha; e os cristãos ortodoxos, da Grécia. Emergiu uma dinâmica de violência, que se agudizou com o decurso da
guerra: o Estado tomou medidas preventivas contra as populações
GHFXMDOHDOGDGHGHVFRQÀDYDTXHDQWDJRQL]DUDPUHJL}HVLQWHLUDV
2VFRQÁLWRVTXHUHVXOWDUDPGHVWDVSROtWLFDVHVWDWDLVFRPELQDGRV
com as condições de fome e as doenças provocadas durante os quatro anos de guerra, dissolveram tudo o que restava da cola imperial.
Os conscritos arménios, em particular, foram suspeitos de
deserção para os russos logo que a guerra começou. Os pequenos
movimentos arménios pró-independentistas existiam desde a década
37
Beşikçi, The Ottoman Mobilization of Manpower in the First World War, p. 253.
68
O IMPÉRIO OTOMANO
de 70 do século anterior, mas nem as elites nem o patriarcado
arménios, sedeado em Istambul, nem os cerca de 2,1 milhões arménios, na sua maioria camponeses, tinham apoiado nenhum grupo
revolucionário.38 Todavia, antes mesmo de a derrota de Sarikamiş
VHWRUQDUHYLGHQWHRVPLOLWDUHVDUPpQLRVIRUDPLGHQWLÀFDGRVFRPR
potenciais desertores para os russos. Alguns foram fuzilados preYHQWLYDPHQWH²©SRUDFLGHQWHªFRPRGLVVH$OL5Ö]DXPVROGDGR39
(VWDVVXVSHLWDVSDUHFHUDPFRQÀUPDUVHTXDQGRYiULRVEDWDOK}HVGH
YROXQWiULRVDUPpQLRVFKHÀDGRVSRUXPH[GHSXWDGRGRSDUODPHQWR
otomano alinharam pelo exército russo.40$OL5Ö]DQmRDFUHGLWDYD
na possibilidade de os arménios e os russos voltarem a ser «irmãos
e concidadãos» e jurou que se tivesse oportunidade «envenenaria
e mataria três ou quatro arménios». Os laços que tinham unido os
grupos étnicos e religiosos do império estavam a ser rapidamente
destruídos.41
Em 25 de fevereiro de 1915, depois do desastre de Sarikamiş,
o ministro da Guerra, Enver, ordenou que todos os arménios de
uniforme fossem desarmados e enviados para batalhões de trabalho,
transformando-os em «alvos estáticos».42 Depois das terríveis derrotas
de Sarikamiş e do Suez e confrontados com um ataque naval nos
estreitos, os unionistas declararam, em abril de 1915, que o exército
38
Richard G. Hovannisian, «The Armenian Question in the Ottoman Empire, 1876-1914», in Richard G. Hovannisian (ed.), Armenian People from Ancient to Modern Times
(Nova Iorque, St Martin’s Press, 2004), vol. II, pp. 234-35; Dikran Mesrob Kaligian$U
PHQLDQ2UJDQL]DWLRQDQG,GHRORJ\XQGHU2WWRPDQ5XOH (New Brunswick, Transaction Publishers, 2009), pp. 227-36; M. Şükrü HanioJÚ lu, $%ULHI +LVWRU\RI WKH/DWH2WWRPDQ
Empire (Princeton, Princeton University Press, 2008), pp. 197-202.
39
. Ali RÖza Eti, Bir OnbaVÝÖnÖn DoJÚ u Cephesi GünlüJÚ X (2000; Istambul, Türkiye
Iş BankasÖ, 2009), p. 104.
40
G. Pasdermadjian :K\ $UPHQLD 6KRXOG EH )UHH $UPHQLD·V 5{le in the Present War
(Boston, Hairenik Publishing Company, 1918).
41
Eti, Bir OnbaVÝÖnÖn DoJÚ u Cephesi GünlJÚ u, p. 135.
42
Erik Jan Zürcher, «Ottoman Labour Battalions in World War I», in Hans-Lukas Kieser e
Dominik J. Schaller (eds.), Der V|lkermord an den Armeniern und die Shoah (Zurique, Chronos,
2007), pp. 187, 193.
69
MUSTAFA AKSAKAL
estava a destacar soldados para trabalhos agrícolas «porque os arménios foram deportados e os muçulmanos foram conscritos». Se não
IRVVHPGLVSRQLELOL]DGRVVROGDGRVDFROKHLWDÀFDULDHPULVFRHRSDtV
seria assolado por «carestias e fome», o que prejudicaria «o aprovisionamento do exército», logo, abriria a porta a um «desastre» militar.43
Privados dos seus haveres e das suas terras, os arménios foram
conduzidos para sul num trilho de lágrimas: muitos deportados, em
especial, as mulheres e as crianças, morreram de fome e de exaustão
RXIRUDPDVVDVVLQDGRV$KLVWyULDGH+DJRS0ÖQW]XULpWtSLFD+DJRS
nasceu no seio de uma família arménia residente nos arredores da
cidade de Erzincan. Em agosto de 1914, foi incorporado como
SDGHLUR1XQFDPDLVYLXDPXOKHU9RJÚ LGDQHPRVTXDWURÀOKRV
Nurhan, de seis anos, Maranik, de quatro, Anahit, de dois e o bebé
Haço. Foram deportados com a mãe de Hagop, Nanik, de 55 anos,
HRDY{0HONRQHWRGRVRVRXWURVFULVWmRVGDDOGHLDHQXQFDPDLV
se soube nada deles.44
Ao escrever sobre a $JKHW («a Catástrofe») arménia do seu
HVFRQGHULMRHP%HUOLPHP7DODWDÀUPRXTXHVHWLQKDRSRVWR
inicialmente à ordem de deportação porque sabia que as forças da
polícia e da gendarmaria tinham sido conscritas pelo exército e
«substituídas por milícias». «Eu sabia», disse Talat, que incumbir
aquelas forças irregulares da reunião das populações das aldeias
arménias e da sua deportação «iria ter consequências pavorosas».45
Se foram alguma vez autênticas, estas hesitações desapareceram no
princípio de 1915. O propósito declarado subjacente às deportações era impedir toda e qualquer subversão das operações militares
otomanas na Anatólia Oriental. Semelhante à expulsão dos gregos
43
%2$'+6)5$WHOHJUDPDFRGLÀFDGRGRPLQLVWURGR,QWHULRU7DODWSDUDR
comandante do Terceiro Exército, 2 Temmuz 1331 (15 de julho de 1915). Talat contava
com «um mínimo de cinco mil homens».
.
44
Hagop Demirciyan MÖntzuri, ,stanbul AnÖlarÖ (Istambul, Tarih VakfÖ,
1993), p. 133.
45
Enver BolayÖr (ed.), Talât PaşD·QLQ+âtÖralarÖ (Istambul, Güven YayÖnevi, 1946), p. 64.
70
O IMPÉRIO OTOMANO
ortodoxos (em turco otomano: rum) da Anatólia Ocidental, na primavera de 1914, a expulsão dos arménios da Anatólia destinou-se
a eliminar quaisquer vestígios dos movimentos nacionalistas que
pudessem contestar a autoridade otomana. Quando o governo
negociou as suas fronteiras orientais com a Rússia, em maio de
1918, os líderes otomanos opuseram-se à criação de um Estado
arménio. Talat – grão-vizir, logo, «paxá» desde 1917 –, que tinha
nascido num território cedido à Bulgária, postulou que um Estado
arménio se tornaria uma «Bulgária do Oriente», um Estado apostado
na expansão a expensas dos otomanos, e teria de ser evitado a todo
o custo. O «abcesso deve ser removido com a raiz», acrescentou.46
Os líderes árabes e curdos e as populações cuja lealdade o Estado
S{VHPFDXVDWDPEpPIRUDPFRORFDGRVVREYLJLOkQFLDHGHSRUWDdos. Por exemplo, em agosto de 1914, antes de Istambul entrar na
guerra, o governador do distrito de Beqaa, um vale fértil habitado
por comunidades importantes de católicos maronitas, gregos e
ortodoxos, expressou a sua ansiedade face à «população maliciosa
do Monte Líbano, em especial, da cidade de Zahlé». Segundo o seu
relatório, os jornais de Zahlé davam mostras de «um apoio excessivo à França», logo, «feriam o coração da umma47». O que vinha a
acontecer «desde as guerras nos Balcãs». O «afeto pela França» de
Zahlé tinha chegado ao «nível da idolatria». Tal audácia, insistiu o
governador, era inaceitável. Recomendou a exoneração imediata do
governador militar de Zahlé, Ibrahim Abu Hatir Efendi, que estava
a permitir a hostilidade «aberta» ao Estado otomano, e o encerramento do jornal local, =DKODDO)DWDW 48. Bekir Sami, o governador de
Akdes Nimet
. Kurat, TüUNL\H YH 5XV\D ;9,,, <ü]\ÖO 6RQXQGDQ .XUWXOXş Savaşina
.DGDU7ürk Rus ,lişNLOHUL (Ancara, Üniversitesi BasÖmevi, 1970), pp. 661-62,
citando Talat para Halil Bei, 24 de maio de 1918, arquivos do Ministério dos Negócios
Estrangeiros, pasta 124, também citado in Reynolds, 6KDWWHULQJ(PSLUHV, p. 210.
47
A comunidade dos crentes islâmicos (N. do T.).
48
BOA, DH EUM 4. Şube 1/4, JRYHUQRUDWH da Síria para o Ministério do Interior, 13
AJÚustos 1330 (26 de agosto de 1914).
46
71
MUSTAFA AKSAKAL
Beirute, descreveu a dinâmica em ação no Monte Líbano em termos
absolutos: «Os maronitas e os ortodoxos apoiam a França e a Rússia
com o coração e a mente [kalben ve ruhen]».49 Quanto aos drusos,
tinham-se inclinado para a Grã-Bretanha, mas, agora, concluiu o
governador, «por estarem mais ou menos relacionados com o islão,
pendem, no coração, para o Governo Exaltado do sultão.» Todavia,
SURVVHJXLXRJRYHUQDGRURF{QVXOEULWkQLFR©WUDEDOKDQRLWHHGLD
para conquistar os drusos» para o seu lado.
O império entrou na Primeira Guerra Mundial numa fase em
que o seu tecido, no seguimento das guerras dos Balcãs, já se tinha
começado a rasgar. Este ambiente extremamente carregado foi ilusWUDGRSRUXPLQFLGHQWHLQVLJQLÀFDQWHTXHIH]RJRYHUQDGRU%HNLU
Sami perder a cabeça. No dia 11 de setembro de 1914, um homem
chamado Shoufani, da aldeia de Suq al-Gharb, fez uma cena em
público: arriou «uma bandeira otomana hasteada numa loja e espezinhou-a». O polícia local obrigou Shoufani a repor a bandeira e as
FRLVDVÀFDUDPSRUDOL4XDQGR%HNLU6DPLRKRPHPGH,VWDPEXOQR
WHUUHQRVRXEHGRLQFLGHQWHÀFRXIXULEXQGRHLQIRUPRXDFDSLWDOHP
termos gravíssimos. Segundo escreveu, o ato de Shoufani «revelou o
ódio aberto e descarado que as gentes do Monte Líbano nutrem pelo
governo». A menos que fossem tomadas medidas severas, avisou o
governador, voltariam a ocorrer mais «incidentes como este». «Creio
que é chegado o momento de tomar as medidas que se impõem contra
a Montanha [&HEHO·HNDUV̧LWHGDELULOD]ÖPDLWWLKD]Ö]DPDQÖJHOGLJÚine].» O
JRYHUQDGRUSURS{VTXHRJRYHUQRUHYRJDVVHRHVWDWXWRDXWyQRPRGR
Monte Líbano, que vigorava desde 1861. Bekir Sami argumentou que
ao governar de novo diretamente o Monte Líbano, Istambul poderia
apertar o controlo sobre a região e a população.50
BOA, DH EUM 4. Şube 1/4, 8UJHQWH (Müstaceldir), governador Bekir Sami para o
Ministério do Interior, 20 AJÚustos 1330 (2 de setembro de 1914).
50
BOA, DH EUM 4. Şube 1/4, 7HOHJUDPD&RGLÀFDGR (Şifre), governador Bekir Sami para
o Ministério do Interior, 30 AJÚustos 1330 (12 de setembro de 1914).
49
72
O IMPÉRIO OTOMANO
Fig. 2. Queima de ovos de gafanhotos na Palestina, c. 1915. Num único dia, um enxame
do tamanho de Manhattan podia devorar o equivalente à quantidade de alimentos consumida no mesmo período por 42 milhões de seres humanos.
O Monte Líbano foi colocado sob vigilância apertada porque se
GHVFRQÀDYDGH©TXHFRPDLQÁXrQFLDGRF{QVXO>IUDQFrV@HP%HLUXWH
e a conivência da companhia de caminhos de ferro pudessem ser
introduzidas armas no Monte Líbano». Por isso, foi decidido que
«todo o comboio que saísse de Beirute» para Zahlé «deveria ser
colocado sob vigilância contínua e secreta».51
A região de Alepo ao Suez, o território de língua árabe do império, foi subordinada ao controlo militar de Kemal Paxá, comandante
do Quarto Exército. A escassez aguda de alimentos grassava por
todo o império, mas era de sobremaneira horrível na Síria, em
51
BOA, DH EUM 4. Şube 1/4, JRYHUQRUDWH da Síria para o Ministério do Interior, 19
AJÚustos 1330 (1 de setembro de 1914).
73
MUSTAFA AKSAKAL
especial, no Monte Líbano. O regime de Kemal recrutou homens
para o exército e para os batalhões de trabalho e lançou impostos de
JXHUUDHVSHFLDLVSDUDÀQDQFLDURVGRLVDWDTXHVDRFDQDOGH6XH]HDR
Egito. Em 1915, a região foi assolada por uma praga de gafanhotos
que comeram todos os rebentos e o bloqueio naval anglo-francês
impediu o socorro a partir do exterior. A escassez de comboios e o
seu controlo rígido pelas autoridades militares impediram a rápida
distribuição do abastecimento alimentar. Em dezembro de 1915, a
IRPHJHQHUDOL]RXVH$WpDRÀPGDJXHUUDPRUUHXXPVpWLPRGD
população da Síria – mais de meio milhão de pessoas (ver Fig. 2
para tentativas de destruição de ovos de gafanhotos usando lançachamas).
Shakib Arslan, talvez o mais importante intelectual árabe da
época, agiu como elemento de ligação crucial entre Kemal Paxá e a
população árabe sob o seu domínio. Shakib também conhecia bem
Enver e Talat. No relato que fez do seu tempo como assistente de
Kemal, Shakib diz que não se poupou a esforços para mudar as
ideias de Kemal sobre as detenções e deportações de líderes árabes.
2S{VVH HP HVSHFLDO j GHSRUWDomR H DR HQIRUFDPHQWR S~EOLFR
GHÀJXUDViUDEHVLPSRUWDQWHVHP%HLUXWHHPDJRVWRGHH
em Damasco, em maio de 1916. Shakib avisou Kemal de que as
execuções «serão a razão para a separação entre árabes e turcos».52
Segundo a conclusão de um especialista, «os atos de Kemal na
Síria foram de natureza comparável, ainda que não em dimensão,
às políticas aplicadas aos arménios na Anatólia Oriental. Ambas
emanaram do receio de uma insurreição nacionalista encorajada
pelas potências inimigas». Porém, em ambos os casos, «a ameaça
foi mais imaginada do que real».53
Sha-kib Arsla-n, al-Amïr, SïUDK=aWL\\DK (Beirute, Da-r al-Ta-l’yyia lil’taba’a wa al-nashr,
1969), p. 171.
53
Hasan KayalÖ, $UDEVDQG<RXQJ7XUNV2WWRPDQLVP$UDELVPDQG,VODPLVPLQWKH2WWRPDQ
(PSLUH (Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 1997), p. 197.
52
74
O IMPÉRIO OTOMANO
Só investigações adicionais poderão dizer se o Estado usou os
alimentos como arma contra a população do Monte Líbano e da
Síria, como muitos acusaram na época. Do que não há dúvida é de
que as privações provocadas pela guerra e pelas políticas do Estado
enfraqueceram a legitimidade otomana nas terras árabes. Ohannes
Paxá, um cristão arménio, assumiu o cargo de governador do Monte
Líbano em 1913, quando ainda era um «verdadeiro otomanista».
1RÀPGDJXHUUDDVXDIpQRLPSpULRHVWDYDPRUWD54 Na memória
coletiva libanesa, a palavra otomana para «mobilização» ainda é recor.
dada com um arrepio.55 O soldado Ihsan, um recruta de Jerusalém,
fez eco destes sentimentos. No dia 17 de dezembro de 1915, escreveu
no seu diário: «Se o governo tivesse um mínimo de dignidade, teria
DUPD]HQDGRRWULJRSDUDRGLVWULEXLUSHORS~EOLFRDSUHoRÀ[RRX
poderia tê-lo fornecido a partir das reservas militares. Se estas condições persistirem, as pessoas revoltar-se-ão e derrubarão o governo.»56
Como escreveu recentemente Salim Tamari, «quatro anos miseráveis
de tirania» acabaram por «apagar quatro séculos de património otomano rico e complexo».57
O bloqueio naval anglo-francês, com navios fundeados ao largo
da Síria, agravou a fome. Em 1913-1914, o império importou
FHUFDGHWRQHODGDVOtTXLGDVGHFHUHDLV$JXHUUDS{VÀPjV
LPSRUWDo}HVHDFRQVFULomRHRFRQÀVFRGHDQLPDLVOHYDGRVDFDER
pelos militares reduziram a força de trabalho agrícola. O número
de hectares semeados caiu para cerca de metade. Todos quantos
não tinham idade para cumprir o serviço militar foram sujeitos à
Elizabeth F. Thompson, -XVWLFH,QWHUUXSWHG7KH6WUXJJOHIRU&RQVWLWXWLRQDO*RYHUQPHQWLQWKH
Middle East (Cambridge, MA, Harvard University Press, 2013), p. 118.
55
Najwa al-Qattan, «Safarbalik: Ottoman Syria and the Great War», in Thomas Philipp e
Christoph Schumann (eds.), )URPWKH6\ULDQ/DQGWRWKH6WDWHVRI 6\ULDDQG/HEDQRQ (Beirute
e Würzburg, Ergon, 2004), pp. 163-73.
56
Salim Tamari (ed.), <HDURI WKH/RFXVW$6ROGLHU·V'LDU\DQGWKH(UDVXUHRI 3DOHVWLQH·V2WWRPDQ
Past (Berkeley e Los Angeles, University of California Press, 2011), p. 143.
57
,GHP, ,ELGHP, p. 5.
54
75
MUSTAFA AKSAKAL
conscrição agrícola: as crianças em idade escolar, os idosos e as
mulheres converteram-se em trabalhadores rurais. Com a conscrição
a enquadrar cada vez mais homens nas forças militares, o Ministério
do Trabalho criou um batalhão de trabalho feminino que incorporou
milhares de mulheres.58
3HUDQWHRDODVWUDPHQWRGDIRPHQD6tULDRF{QVXOIUDQFrVQR
Cairo alertou o seu governo para os milhares de vítimas mortais
e sugeriu o envio de socorro através da assistência alimentar.
No entanto, a resposta britânica deixou claro que o propósito do
bloqueio era o agravamento das condições: «O secretário de Estado
dos Negócios Estrangeiros de Sua Majestade expressa a sua mais
sincera esperança de que o governo francês não encoraje nenhum
esquema semelhante […] Os aliados da Entente estão pura e simplesmente a ser chantageados para remediar a escassez de abastecimento
que o bloqueio se destina precisamente a provocar.» Os franceses
concluíram que os seus aliados britânicos «consideram a fome um
agente que levará os árabes à revolta».59
Desde a sua nomeação, em 1908, para grande xerife de Meca – o
guardião das cidades santas de Meca e Medina –, Husayn ibn Ali
procurara governar a Arábia com a mínima interferência possível
de Istambul. Em troca deste domínio semiautónomo, Husayn prometeu zelar pela ordem pública e garantir a estabilidade da região.
Em agosto de 1914, com a eclosão da guerra na Europa, o governador
local pediu a exoneração imediata de Husayn. Segundo o governador, se a guerra continuasse, o xerife juntar-se-ia indubitavelmente a
.
Zafer Toprak, ,WWLKDG7HUDNNLYH&LKDQ+DUEL6DYDş Ekonomist ve TüUNL\H·GH'HYOHWçLOLN
(Istambul, Homer Kitabevi, 2003), pp. 81-98; Yavuz Selim KarakÖVÝla, :RPHQ
:DUDQG:RUNLQWKH2WWRPDQ(PSLUH6RFLHW\IRUWKH(PSOR\PHQWRI 2WWRPDQ0XVOLP:RPHQ
(Istambul, Ottoman Bank and Research Center, 2005) e «OsmanlÖ Ordusunda
KadÖn Askerler», Tarih ve Toplum (junho, 1999), pp. 14-24.
59
Elizabeth Thompson, &RORQLDO&LWL]HQV5HSXEOLFDQ5LJKWV3DWHUQDO3ULYLOHJHDQG*HQGHU
LQ)UHQFK6\ULDDQG/HEDQRQ, The History and Society of the Modern Middle East (Nova
Iorque, Columbia University Press, 2000), pp. 19-23; para as citações, veja-se p. 22.
58
76
O IMPÉRIO OTOMANO
uma potência estrangeira.60 O peso da guerra global e total ameaçava
SURYRFDURXWUDÀVVXUDLPSHULDO
Quando Husayn se sublevou contra Istambul, em junho de
1916, a sua posição já se tinha tornado insustentável. Depois de
oito meses de campanha, não obstante grandes perdas humanas
e materiais, a Entente desistiu da conquista de Dardanelos e de
Constantinopla. Na sua principal operação no Iraque, um exército
britânico comandado pelo general Charles Townshend e que incluía
um grande contingente de tropas indianas avançara de Bassorá
e conquistara Bagdade, mas fora derrotado em Kut, em abril de
1916 – os serviços de informação britânicos tinham contado com o
apoio da população xiita, cuja lealdade ao Estado otomano (sunita)
considerava ténue. Dadas as circunstâncias, a pressão britânica centrou-se no xerife. Entalado entre o reinado de terror de Kemal Paxá
e a ameaça de uma invasão militar britânica pelo mar Vermelho,
Husayn aceitou a oferta britânica de criação de um Estado árabe sob
a sua liderança. Equipados com dinheiro, material e informações
fornecidos pelos britânicos, vários milhares de árabes pegaram em
armas contra as forças otomanas. Porém, as esperanças da Entente
de que a iniciativa de Husayn galvanizasse uma revolta árabe de
Meca a Damasco saíram frustradas. A Síria, devastada pela fome,
revelou-se apertadamente controlada por Kemal e a insurreição de
+XVD\Q QmR FRQVHJXLX JHUDU QHQKXP GHVDÀR VpULR j DXWRULGDGH
imperial na região.
A revolução de 1917, na Rússia, permitiu que os otomanos
regressassem a Erzurum e a Trebizonda, anteriormente ocupadas
pelo exército russo, e se apoderassem de territórios adicionais no
&iXFDVR &RQWXGR FRP D HYROXomR GR FRQÁLWR R LPSpULR QmR
conseguiu igualar os recursos nem a superioridade numérica da
Entente. Em dezembro de 1917, as tropas britânicas conquistaram
60
KayalÖ, $UDEVDQG<RXQJ7XUNV, p. 184.
77
MUSTAFA AKSAKAL
Jerusalém. Em outubro de 1918, as forças britânicas estavam em
Alepo, no norte da Síria, e um segundo exército britânico avançava
sobre a capital otomana depois de romper a frente em Salonica.
Os otomanos, como os seus aliados, estavam derrotados. No dia 30
de outubro, uma delegação otomana assinou o armistício a bordo
de um navio de guerra britânico. Alguns dias depois, outro grupo
de otomanos, incluindo Kemal, Enver e Talat, fugiu de Istambul
para a Europa a bordo de outro navio – desta vez, alemão.
CONCLUSÃO: O LENTO FIM DO IMPÉRIO
Nas terras árabes ocupadas e nos territórios da Anatólia não
ocupados, o processo de substituição do império pelo Estado-nação
não foi de todo simples. Com o armistício em vigor, o governo
otomano procurou preservar o território ainda não ocupado. E os
combates não cessaram. Na primeira metade de 1919, forças britânicas e francesas ocuparam Istambul, tropas gregas desembarcaram
no oeste do Egeu e forças italianas no Sul. No Leste, estavam prestes
a nascer Estados arménios e curdos independentes.
No seu momento wilsoniano, as autoridades e as organizações
cívicas e políticas otomanas evocaram o décimo segundo ponto do
presidente dos EUA, que advogava «uma soberania segura» para a
«parte turca do atual Império Otomano». Flanqueado por cartazes
com o décimo segundo ponto de Wilson, Halide Edib e muitos
outros oradores falaram perante uma multidão de 200 000 pessoas,
em maio de 1919. Com o governo do sultão ocupado por forças
britânicas e francesas, as elites locais, ex-chefes militares e soldados
desmobilizados formaram organizações de resistência. Começaram
de forma desgarrada, mas em 1919 tornaram-se mais coordenadas.
Ficaram progressivamente centralizadas sob o comando de Mustafa
Kemal, herói de Gallipoli e ex-rival e adversário político de Enver
78
O IMPÉRIO OTOMANO
Paxá. A ideologia subjacente ao movimento baseava-se na identidade
religiosa e não étnica nem nacional. Em agosto de 1920, o governo
do sultão em Istambul aceitou assinar um tratado de paz na cidade
suíça de Sèvres. As notícias do tratado galvanizaram o movimento
de resistência, que o rejeitou, garantiu a ajuda dos bolcheviques e
derrotou as forças arménias no Leste. De seguida, travou sucessivos
confrontos com os exércitos gregos, que culminaram na conquista
de Esmirna, no meio de grande violência, em setembro de 1922.
A assembleia de Ancara votou a abolição do sultanato, mas manteve a
do califado ainda durante dois anos. O sultanato otomano chegou ao
ÀP$QFDUDHQYLRXUHSUHVHQWDQWHVD/DXVDQQHSDUDDVQHJRFLDo}HV
de paz. O tratado resultante, assinado em julho de 1923, reconheceu
a soberania do governo de Ancara nos territórios que restavam ao
império. Depois de muita destruição, o décimo segundo ponto de
Wilson, no tocante às «partes turcas do atual Império Otomano»,
tornou-se realidade. Quanto às «outras nacionalidades», foi implementado um sistema de mandatos britânicos e franceses, mas que
não ofereceu, de todo, «a possibilidade absolutamente livre de desenvolvimento autónomo», como declarara inequivocamente Wilson.
As debilidades estruturais que afetaram o império a partir do
século XIX – a insegurança militar, as questões não resolvidas da
pluralidade étnica e religiosa, a falta de desenvolvimento econóPLFR²WDPEpPGHÀQLUDPHPYiULRVJUDXVRVUHJLPHVLQVWiYHLV
que substituíram os otomanos. Além disso, o número colossal de
vítimas e de pessoas deslocadas e as migrações forçadas geraram
consequências socioeconómicas a longo prazo: as populações urbanas só regressaram aos seus níveis de antes da guerra nos anos 50.
Na Anatólia/Turquia, a qualidade de vida caiu a pique; nos anos
20, o PIB era metade do anterior à guerra.61 Em 1913, a população
61
Michael Twomey, «Economic Change», in Camron Michael Amin, Benjamin C. Fortna
e Elizabeth B. Frierson (eds.), 7KH0RGHUQ0LGGOH(DVW$6RXUFHERRNIRU+LVWRU\ (Oxford,
Oxford University Press), p. 528.
79
MUSTAFA AKSAKAL
da Anatólia otomana era de quase 16 milhões de pessoas; em 1927,
ainda estava abaixo dos 14 milhões.62 Os efeitos transformadores
GDJXHUUDVREUHD6tULDQmRIRUDPPHQRUHVRFRQÁLWRGHL[RXXPD
paisagem devastada e uma «ordem social desfeita».63
As guerras que afetaram o Império Otomano em 1911-1922
geraram condições que destruíram o tecido imperial do Estado. Vale
a pena recordar o desejo retrospetivo de Halide Edib de que tivesse
H[LVWLGRXPD©SROtWLFDSUHYLGHQWHª$KLVWyULDGDGpFDGDÀQDOGR
império permanece profundamente politizada. A «tragédia política»
e o «cataclismo» que David Stevenson reconhece na sua história da
Europa tem uma versão otomana: a tragédia foi os líderes otomanos
colocados no poder pelas guerras de 1911-1913 deixarem de ver
soluções políticas e optarem por soluções militares. Fizeram-no por
causa da experiência do império desde o século XIX. Desistiram da
diplomacia e das instituições do sistema internacional e optaram
por remodelar o império e os seus povos numa «nação em armas».
Nem todos os povos do império se mostraram dispostos ou tiveram
a oportunidade de servir a «nação em armas» e esta nova orientação
DQXQFLRXRÀPGRLPSpULR
62
Estas estatísticas são contestáveis, mas as tendências gerais que indicam parecem
consistentes com as fontes
disponíveis. Sobre estes números referentes à população,
.
veja-se Behar, OsmanlÖ ,mparatorluJÚX·QXQYH7üUNL\H·QLQ1üfusu, p. 65.
63
Thompson, Colonial Citizens, p. 19.
80
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