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C A PA
A aposta egípcia
Das perseguições de Diocleciano à queda de Mubarak.
Das alianças com os primeiros seguidores de Maomé à incógnita representada
pela Irmandade Muçulmana. Antonios Naguib, patriarca dos Coptas Católicos
de Alexandria, retoma o longo itinerário dos cristãos na terra dos faraós.
Uma história cheia de surpresas
de Gianni Valente
rimeiro, o massacre de Alexandria, com dezenas de
mortos no atentado à igreja
copta ortodoxa dos Santos, na
noite de 31 de dezembro. Depois,
a revolta nas ruas e praças egípcias, os conflitos, os mortos, o fim
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do regime de Mubarak e o início
de uma transição cujo destino ainda é incerto. Para os cristãos do
Egito, como para todos os outros
egípcios, este é realmente um
tempo repleto de questionamentos. Um tempo em que se mes-
clam anseios, medos e esperanças despretensiosas. E em que o
máximo de realismo coincide
com uma prece de agradecimento
e abandono à misericórdia de
Deus. Como testemunha, na entrevista a seguir, Antonios Na-
EGITO
Praça Tahrir, no Cairo, onde durante dezoito
dias centenas de milhares de manifestantes
antigovernistas deram início à revolta contra
o presidente Hosni Mubarak; no destaque,
um manifestante mostra um crucifixo
e um exemplar do Alcorão durante
uma manifestação contra a evacuação
da praça dois dias depois da queda de
Mubarak, domingo 13 de fevereiro de 2011
deradas insuficientes. O final, como todos sabem, foi a deposição
de Mubarak.
Como pôde haver uma explosão tão inesperada?
Na verdade, não podemos dizer que foi inesperada. Muitos
analistas apontavam há tempos
os elementos que preparavam para essa explosão, que foi como a
erupção de um vulcão. Diversos
guib, patriarca dos coptas católi- fatores se somaram para leva o
povo à insurreição: o abuso do
cos de Alexandria.
poder, a corrupção, o monopólio
Vo s s a B e a t i t u d e , o q u e da indústria e das terras por parte
ocorreu no Egito? E como o de alguns homens de negócios. E
senhor viveu os últimos acon- também todos os problemas sociais: desemprego dos jovens, imtecimentos?
ANTONIOS NAGUIB: Vive- possibilidade de encontrar habitamos dias angustiosos, que o mun- ção a preço razoável e, por consedo inteiro pôde acompanhar pela guinte, dificuldades para formar
mídia. Os partidos e os grupos de uma família; e, ainda, o aumento
oposição ao regime e ao governo contínuo dos preços dos alimentos e dos serviços.
começaram a organizar
Houve muitos
enor mes manifestamortos. Mas, em alções, a partir de 25 de
guns momentos,
janeiro. Pediam a “muhouve o medo de
dança”, uma mudança
que estourasse uma
radical e imediata do reguerra civil bem
gime, da Constituição,
mais sangrenta.
do governo e do presiEm todas as igrejas
dente. O presidente
de todas as denominaMubarak procurou sações foram oferecidas
tisfazer os manifestanorações diárias pela paz
tes e a opinião pública
no país. Hoje, agradecom concessões parcemos a Deus onipociais, que foram consi- Antonios Naguib
tente pela maneira como as coisas
se passaram, e rezamos pela paz e
pelo bem de nosso amado Egito,
para que o país possa enxergar um
futuro melhor e mais luminoso.
Quem foram os verdadeiros protagonistas da revolta?
Como o senhor vê o papel da
Ir mandade Muçulmana no
momento atual e no futuro? E
o papel do exército?
Os primeiros a quem temos de
agradecer são os jovens patriotas
que guiaram toda a população na
recusa de uma situação errada que
reinava no país há tempo demais.
Quanto aos membros da Irmandade Muçulmana, eles não escondiam
a sua oposição radical. Mas não foram eles que guiaram o levante. O
exército quis evitar o confronto armado com a população, e acredito
que tenha tido um papel decisivo
para levar Mubarak à deposição.
Foi uma revolta espontânea ou houve interferências
externas com o objetivo de
desestabilizar o Egito?
O início das manifestações dos
jovens, em 25 de janeiro, era pacífico e muito correto. Depois, outros elementos se infiltraram, e começaram os atos de vandalismo. A
retirada das forças de polícia abriu
as portas para todos os malfeitores. Mas foi então que vimos a coisa mais interessante: em todas ¬
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as ruas, os jovens e os adultos, cristãos e muçulmanos, numa solidariedade maravilhosa, se organizaram espontaneamente em “comitês populares” para defender a população e seus bens, e assim foi
possível trazer de volta a segurança
e a tranquilidade.
Mas qual foi o peso das
pressões ocidentais – em particular dos Estados Unidos –
e do exército na deposição de
Mubarak? E como o povo
egípcio avalia essas pr essões?
em leis, onde a liberdade de cada
um seja respeitada e as relações
entre as pessoas sejam reguladas
com base na cidadania compartilhada e comum, com direitos e deveres iguais para todos. As manifestações expressavam esse tipo
de exigência política. Este pode
realmente, e finalmente, ser o caminho para evitar divisões e conflitos entre os grupos sociais e religiosos, garantindo a todos a possibilidade de expressar-se e de dar
sua contribuição para o bem comum. Sem que haja categorias e
nha convidado os cristãos a
não participar das manifestações. Vocês têm medo de que
a desestabilização do regime
possa, com o tempo, trazer
novos problemas para os
cristãos, como aconteceu no
Iraque?
O que me enche de segurança
é o fato de ter voltado a ver acontecer nestes dias uma coisa que
não víamos faz tempo: uma unidade concreta entre os cidadãos,
velhos e jovens, cristãos e muçulmanos, sem distinções e discrimi-
À esquerda, o prêmio Nobel Mohamed El Baradei na praça Tahrir, em 30 de janeiro de 2011; à direita, Mohamed Hussein Tantawi,
ex-ministro da Defesa e vice-primeiro-ministro, hoje sucessor de Mubarak, durante as negociações com os manifestantes da praça Tahrir,
em 4 de fevereiro de 2011
Não posso dizer se as pressões
ocidentais, e de modo particular a
pressão dos Estados Unidos, tiveram realmente um peso efetivo na
decisão definitiva de Mubarak de
renunciar. Porque, se as manifestações tivessem parado com as
suas primeiras concessões, ele
não se retiraria antes do fim de
seu mandato. Foram os jovens e
os outros manifestantes, decididos a não aceitar menos que a renúncia total e definitiva, que o levaram à decisão final. Se não a tivesse tomado, creio que o exército decretaria e declararia a sua expulsão do poder.
E agora? Na sua opinião,
como tudo isso vai acabar?
A meu ver, existe realmente a
possibilidade de que se inicie um
processo que leve gradualmente o
Egito a ter uma posição própria
entre os países modernos. Um
país civil e democrático baseado
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grupos discriminados na sociedade e na política. O Egito se encontra numa encruzilhada importante
do ponto de vista político, econômico e social. A reconstrução do
país poderá realmente reavivar as
raízes de uma civilização que marcou o mundo por séculos.
Como os cristãos viveram
este tempo?
Com e como todos os nossos
concidadãos, vivemos estes eventos dramáticos com um profundo
sentimento de apreensão. Como
eu disse, todas as Igrejas se voltam
ao nosso único socorro: a Misericórdia divina. Depositamos toda a
nossa confiança em Deus, e agora
imploramos que dê luz e coragem
aos líderes dos grupos e das organizações, para que caminhem juntos na via da reconstrução.
No início dos protestos, os
líderes cristãos eram prudentes. Houve mesmo quem te-
nações, no propósito comum de
agir pelo bem do Egito, pela salvação e pela segurança do país.
Espero que esses sentimentos
possam permanecer e criar raízes
nos corações. Essa experiência
abriu os olhos de muita gente.
Hoje, todos veem que quem fomenta as divisões e os conflitos
com os outros egípcios baseandose nas diferenças religiosas na
verdade visa destruir a unidade e
desestabilizar o Egito.
O fato é que o regime autoritário de Mubarak, nas suas
declarações oficiais, combatia os conflitos religiosos e,
apesar de tudo, era considerado por muitos observadores um fator de “proteção”
dos cristãos, vítimas de violências recorrentes nas últimas décadas. Não existe
mesmo o risco de daqui a um
tempo nos lembrarmos com
Entrevista com o patriarca Antonios Naguib
O que me enche de segurança é o fato
de ter voltado a ver acontecer nestes dias
uma coisa que não víamos faz tempo:
uma unidade concreta entre os cidadãos,
velhos e jovens, cristãos e muçulmanos,
sem distinções e discriminações.
Espero que esses sentimentos possam
criar raízes nos corações
Acima, uma imagem do atentado à igreja
copta ortodoxa dos Santos,
em Alexandria, em 31 de dezembro
de 2010, em que um carro-bomba matou
vinte e uma pessoas; à direita,
a manifestação de protesto
da comunidade copta ortodoxa
de Alexandria, em 1º de janeiro de 2011
saudade, digamos assim, da
rígida onipresença das forças
de segurança?
É verdade que muitos cristãos
pensavam que o regime de Mubarak garantia a eles uma certa proteção, e temiam que a mudança
de regime pudesse levar a Irmandade Muçulmana ao poder. Até
agora, esse perigo permanece um
pouco distante, embora não tenha sido removido por completo.
Por outro lado, as forças armadas
declararam claramente que sua
tarefa é provisória, com a finalidade de preparar o caminho para
pleno restabelecimento do governo civil.
Pouco antes da revolta geral, o Egito esteve no centro
de atenções e polêmicas inter nacionais por causa do
massacre de cristãos coptas
em Alexandria, em 31 de dezembro passado. Na sua opinião, há uma ligação entre as
duas coisas?
Avaliei essa hipótese desde o
primeiro momento. Porque tinha
visto ocorrências semelhantes das
décadas de 1980 e 1990, quando
era bispo em Minya. Na época, vivemos cerca de cinco anos de ataques mortais contra os cristãos.
Os autores dos ataques queriam
subverter o regime, mas não conseguiram. Por isso, começaram a
atacar diretamente a polícia e os
representantes do governo, até
matar o grande imã de Al-Azhar.
O alvo era o regime, os cristãos
eram apenas uma ponte para esse objetivo.
Nestes últimos eventos, ouvi
dizer que a ordem para que as forças policiais se retirassem nos três
primeiros dias do levante, abrindo
caminho, assim, para todos os
atos de vandalismo de que vocês
têm conhecimento, partiu do ministro dos Assuntos Internos, que
queria provar dessa forma que a
sua pessoa era indispensável para
o presidente e para o regime. Naqueles dias, apesar da total ausência da polícia, que normalmente
ocupava postos de vigilância ¬
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em frente de cada igreja, não houve nenhum ataque às igrejas. Esse
fato deu peso à hipótese, que circulou particularmente entre os
cristãos, de que o próprio ministro
dos Assuntos Internos tenha planejado o massacre de Alexandria,
para justificar um reforço das forças policiais. Em todo caso, a espontaneidade dos levantes juvenis
e populares acabou com qualquer
eventual cálculo criminoso.
Depois do massacre de
Alexandria de 31 de dezembro, a grande mídia interna-
grandes teólogos: Orígenes, Santo
Alexandre, São Cirilo e Santo Atanásio. Até que, em 451, a Igreja
copta, ao lado da etíope, da síria e
da armênia, rejeitou as decisões do
Concílio de Calcedônia.
Qual é o reflexo das origens
apostólicas da Igreja egípcia
na vida e nas devoções dos
fiéis?
A devoção a São Marcos é fortíssima. Ele é venerado por todos
como o apóstolo fundador. Além
disso, o Egito foi também um dos
países em que Jesus viveu, quando, logo depois do
seu nascimento,
Maria e José se refugiaram aqui para
escapar de Herodes. Todo o percurso da Sagrada
Família é demarcado com lugares e
santuários que hoje são meta de peregrinações.
cado Copta Católico. Mas a visão
do vínculo com a Igreja de Roma
continua a ser um ponto controverso nas relações com os nossos
irmãos da Igreja copta ortodoxa.
Eles dizem: unidade na fé, sim, na
caridade, sim, mas submissão, como inferior perante um superior,
não. Dizem que essa era a situação dos primeiros séculos, que
mais tarde se sintetizou na Pentarquia, a estrutura dos cinco Patriarcados, entre os quais o de Roma, que, segundo eles, tinha um
primado na caridade, mas não na
jurisdição.
Abrindo um parêntese, no
recente Sínodo sobre o
Oriente Médio, o cardeal Levada anunciou que quer recolher sugestões e propostas dos chefes das Igrejas
orientais a respeito do tema
do primado, para procurar
novas oportunidades para o
diálogo com os ortodoxos
sobre esse ponto. Essa ini-
À esquerda,
São Pedro entrega
o Evangelho
a São Marcos,
evangeliário copta
de 1250 conservado
no Instituto Católico
de Paris
À direita,
o patriarca
Shenouda III
cional passou a falar também
dos cristãos coptas do Egito.
Normalmente sem explicar
bem quem são eles.
Os coptas são cristãos do Egito
que, segundo a tradição, receberam
a fé cristã do apóstolo São Marcos.
Depois, com Diocleciano, o grande
perseguidor, veio a era dos mártires, que deu início (no ano de 284)
ao calendário copta. No século IV,
com a liberdade religiosa, a fé cristã
se difundiu por todo o Egito. A Igreja de Alexandria naquela época tinha um papel eminente, com seus
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São Marcos era discípulo
de Pedro. Recebeu do Príncipe dos Apóstolos a ordem de
escrever seu Evangelho. Portando, existe desde as origens um vínculo entre a Igreja copta e o bispo de Roma.
Até 451, a Igreja era praticamente uma só; depois é que vieram as separações. A partir da
primeira metade do século XVIII,
uma pequena parte dos coptas
confessou sua comunhão com o
bispo de Roma, e em 1895 o papa Leão XIII constituiu o Patriar-
ciativa foi adiante? Vocês,
patriarcas católicos orientais, foram contatados pela
Congregação para a Doutrina da Fé?
Até agora, não. No Sínodo, manifestou-se o desejo de uma maior
participação dos patriarcas católicos
Entrevista com o patriarca Antonios Naguib
orientais da vida da Igreja Católica.
Foram feitas algumas propostas práticas, como a de admitir os patriarcas orientais no Sacro Colégio que
elege o Papa em virtude de seu próprio ofício patriarcal, sem que seja
preciso criá-los cardeais. Seriam sinais de um maior envolvimento, mas
segundo a qual a natureza
humana de Jesus seria absorvida pela divina. O que resta
dessas doutrinas na espiritualidade copta?
Na realidade, desde aquela época, as controvérsias giravam em
torno de aspectos terminológicos,
Celebração litúrgica da Sexta-feira Santa em uma igreja copta do Cairo
Naqueles dias, os postos de vigilância da polícia
que ficam em frente das igrejas foram retirados,
mas não houve nenhum ataque às igrejas.
Esse fato deu peso à hipótese, que circulou entre
os cristãos, de que o próprio ministro
dos Assuntos Internos tenha planejado
o massacre de Alexandria de 31 de dezembro,
para justificar um reforço das forças policiais
não representam uma solução. E
certamente não são coisas que podem satisfazer os nossos irmãos ortodoxos. Para eles, o critério é o da
autocefalia, ou seja, da autonomia
de cada Igreja local. E a questão do
primado deve ser posta nos termos
em que era compartilhada nas relações entre os apóstolos e entre seus
primeiros sucessores.
A partir da rejeição do
Concílio de Calcedônia, as
comunidades cristãs autóctones do Egito ficaram ligadas
ao monofisismo, a doutrina
que esse Concílio condenou,
mais que substanciais. Como
acontece ainda hoje, as disputas
doutrinais eram alimentadas também por questões políticas. Naquele tempo, o Egito estava sob o
domínio dos bizantinos, que tinham aceitado o Concílio de Calcedônia e queriam preencher as
sedes episcopais com bispos “calcedônios” politicamente fiéis a
eles, a começar pela sede patriarcal de Alexandria. Os egípcios
identificavam a fé “calcedônia” como um sinal distintivo da fé imperial, e, estimulados sobretudo pelos monges, se organizaram numa
Igreja do povo, deixando aos calcedônios o controle de uma hierarquia filoimperial protegida pelas
guarnições bizantinas. Mas, do
ponto de vista doutrinal, já no século VI foram rejeitadas no Egito
as doutrinas que afirmavam a fusão entre a natureza humana e a
natureza divina de Jesus. Em
1988, os representantes da Igreja
copta ortodoxa e da Igreja católica
subscreveram uma declaração cristológica pactuada para expressar
sua fé compartilhada em Jesus
Cristo, “perfeito na Sua Divindade
e perfeito na Sua Humanidade”,
que “tornou a Sua Humanidade
uma coisa só com a Sua Divindade, sem mistura ou confusão”.
No seu modo de ver, o que
define, na vida concreta, a espiritualidade da Igreja copta?
Neste ponto, é preciso fazer
uma distinção. Nós, coptas católicos, nos formamos com a ajuda
de professores e educadores católicos. Portanto, nos enriquecemos com todas as novas contribuições teológicas e espirituais
que apareceram no catolicismo
ao longo dos séculos. Por sua própria postura, o nosso pensamento se atualiza constantemente, estimulado pelos ensinamentos que
recebemos tanto do Papa quanto
das Congregações, dos Concílios,
dos teólogos e dos santos.
E os coptas ortodoxos?
Para eles, é diferente. Nós,
coptas católicos, distinguimos o
patrimônio espiritual ascéticomonástico do patrimônio teológico-dogmático. Para eles, a teologia coincide com a Sagrada Escritura, com os Padres da Igreja e
com a rica tradição espiritual monástica. Assim, tudo permanece
sempre igual ao início; não existe
a diferenciação a que assistimos
na Igreja Católica através dos séculos. E devo dizer que para nós,
coptas católicos, a proximidade
com essa realidade dos nossos irmãos coptas ortodoxos é uma ajuda, pois a nossa formação “à maneira ocidental” contém um risco
de intelectualismo. Já entre eles
tudo é muito mais simples e essencial. O ponto que nos une é a
liturgia. Podemos dizer que a fé
no Egito é preservada e transmitida não pela teologia, pela cul- ¬
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CAPA
tura civil, pelos grandes pregadores, mas pelo apego visceral à liturgia vivido pelos cristãos desta
terra. A liturgia é a nossa verdadeira pátria espiritual.
E as peregrinações?
As peregrinações também ocupam um espaço privilegiado na vida dos nossos fiéis. Nelas encontramos gente de todas as partes do
Egito; nelas descobrimos ser uma
única família, na fé e na veneração
dos santos. Nós, coptas católicos,
peregrinamos também aos santuários ortodoxos e aos lugares pelos
quais, segundo a tradição, passou
a Sagrada Família.
É verdade que os muçulmanos também participam?
Claro. Eles participam das peregrinações para se encontrar
com São Jorge e a Virgem Maria,
que é citada no Alcorão como a
mais honrada entre todas as mulheres, e que, também para eles,
deu à luz milagrosamente a seu filho, que eles consideram o maior
dos profetas. Portanto, a Virgem
Maria é uma ponte de unidade.
Além deles, Santa Teresinha também. No Cairo, há uma basílica
dedicada a Teresinha que é muito
frequentada pelos muçulmanos.
É ver dade? Como isso é
possível?
É a sua santa menina predileta.
O santuário fica num bairro muito
popular. Quando alguém fica
doente, passa por uma necessidade urgente, tem problemas de trabalho ou de família, um amigo ou
uma amiga cristã lhe diz: vamos
rezar a Santa Teresinha. Eles vão
lá, param diante da imagem da
santa, acendem velas, e rezam
com muito ardor. Muitas vezes os
vi até chorar. E realmente os milagres acontecem, e as histórias se
espalham, de amigo para amigo.
Assim, esse se tornou um santuário frequentado igualmente por
muçulmanos e cristãos. Temos
até livrinhos em árabe que contam a sua história. Uma santa tão
jovem, tão indefesa... eles têm um
grande apreço por ela.
As relações com os muçulmanos sempr e foram uma
prova do caráter autóctone,
“egípcio”, da Igreja copta.
Desde a chegada deles.
Naquele tempo, no século VII,
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Como cristãos do Egito – católicos,
protestantes e ortodoxos, sem diferenças –,
vemos que todo apelo por pressões diplomáticas,
iniciativas punitivas ou sanções econômicas
contra o Egito em razão dos episódios que
envolvem os cristãos egípcios é o dano mais grave
que possa ser feito aos próprios cristãos
os coptas eram não apenas marginalizados, mas perseguidos pelos bizantinos, que eram os dominadores. Como eu disse, Alexandria tinha um patriarca bizantino
imposto pelo império. Quando
chegaram os conquistadores muçulmanos, os coptas os acolheram como libertadores. Seu primeiro governador, Amr ibn al-As,
garantiu que respeitaria a fé dos
coptas e seus lugares de culto, o
que de fato aconteceu sob seu governo e de seus primeiros sucessores. Assim, os monges e os bispos coptas puderam retomar a
orientação espiritual do povo e
também um posicionamento sociopolítico reconhecido na nova
ordem muçulmana.
Mas depois as coisas se degradaram.
A época dos soberanos mamelucos e, depois, a dos sultões tur-
cos foram marcadas pela violência e por repetidas tentativas de
eliminar os coptas. Boa parte deles se deslocou para as regiões ao
sul, onde podiam viver uma vida
um pouco mais tranquila.
E hoje? Ainda existem
áreas ou grupos sociais em
que os cristãos se concentram?
Hoje os cristãos vivem no país
inteiro, das costas do norte às
fronteiras com o Sudão. São raros os municípios em que todos os
habitantes são cristãos. De modo
geral, eles vivem misturados com
o resto do povo egípcio. Antes
havia bairros do Cairo onde os
cristãos eram maioria, mas hoje
esse fenômeno também vai diminuindo. Não temos enclaves. E
não somos identificados como
uma classe social. Há cristãos em
todas as camadas da sociedade,
Entrevista com o patriarca Antonios Naguib
À esquerda, devoção
na igreja de Minya,
um dos lugares em que
a Sagrada Família
pernoitou durante
a fuga para o Egito
Abaixo, o mosteiro copta
de Santo Antônio,
em Zafarana
Acima, o incipit do Evangelho
de Marcos, num manuscrito
copta de 1204-1205,
proveniente do mosteiro
de Santo Antônio e atualmente
conservado na Biblioteca
Apostólica Vaticana.
O códice contém a versão
copta do texto grego
dos Evangelhos e, na margem,
a tradução em língua árabe.
A miniatura representa
o arcanjo Miguel com
o evangelista Marcos
desde os fellah, os camponeses,
até a elite rica. Sempre numa proporção que não supera dez por
cento. Os ricos, até bastante conhecidos internacionalmente, representam um número muito pequeno, se comparado ao dos ricos
muçulmanos. E entre os coptas
católicos há pouquíssimos ricos,
quase não existem... [ri, ndr].
Mas é um fato que, a partir
do século XIX, surgiu entre
os coptas um certo nacionalismo, que os levava a identificar-se como os verdadeiros
herdeiros dos antigos egípcios e a considerar os muçulmanos “estrangeiros”. A burguesia copta batizava seus filhos com nomes de faraós.
Para dizer a verdade, isso existe
na mentalidade copta. O que sem-
pre digo é que este é um dado real:
os cristãos coptas estavam no Egito antes da chegada dos muçulmanos. Mas não é preciso fazer disso
um fator de oposição em relação
aos outros egípcios. Como é possível apagar catorze séculos de convivência? Se assim fosse, os muçulmanos também poderiam dizer:
no fundo, vocês chegaram aqui
“apenas” sete séculos antes de
nós... No máximo, um argumento
como esse deve ser usado para definir um terreno comum que nos
una no presente e no futuro, como
nos uniu na alegria e na dor durante catorze séculos, até hoje. Lutamos juntos pela independência,
sofremos juntos nas últimas guerras, em que o sangue dos cristãos
foi derramado juntamente com o
dos muçulmanos.
Os coptas não sentiram
grande pesar quando, no Egito moderno, os quartéis das
potências ocidentais foram
desmantelados.
Muito pelo contrário. Eles não
viam no poder das potências ocidentais um elemento de proteção
para os cristãos. Para eles, era um
fator de enfraquecimento da Igreja
local, com a passagem de membros da Igreja copta ortodoxa para
a copta protestante. É o mesmo
que dizem em relação aos coptas
católicos. Mas, ao mesmo tempo,
a liberdade religiosa não pode ser
negada. E no Egito moderno não
houve uma dominação que favorecesse o nascimento da Igreja copta
católica. Até hoje somos apenas
250 mil. Não podemos ser acusados de proselitismo.
¬
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Na Igreja copta ortodoxa,
mesmo nos longos períodos
de marginalidade, os leigos
sempre tiveram uma grande
influência na orientação da
vida eclesial.
No início eram eles que dirigiam tudo. Os leigos notáveis tinham dinheiro e posições socialmente influentes; o clero não era
instruído. Os camponeses iam para os mosteiros; os mais devotos
eram ordenados bispos. Foi assim
até o patriarca Cirilo VI, o antecessor do atual patriarca, Shenouda III, que era um santo homem de Deus e começou a atrair
para os mosteiros alguns jovens
universitários, e depois os consagrou bispos para a missão entre o
povo. Esses bispos, ao lado dos
leigos, lançaram as escolas dominicais de catecismo, e de lá partiu
uma corrente de renovação que
envolveu toda a comunidade copta. Uma renovação que floresceu
em torno dos mosteiros. É desse
contexto que vêm os bispos ordenados pelo patriarca Shenouda
III. São mais de cem, e hoje são
eles que dirigem a Igreja. O peso
dos leigos diminuiu, mas continua
a ser muito grande.
Muitas comunidades cristãs
do Oriente são caracterizadas
por uma certa discrição. Tendem a não ser socialmente visíveis demais. No entanto, no
Egito, os coptas mostram uma
certa exuberância, até publicamente. Grandes mosteiros,
grandes catedrais, manifestações públicas.
Certamente a Igreja copta é visível, presente, ativa. Mas não se trata de querer aparecer. O fato é que,
mesmo sendo minoria, são uma minoria muito consistente. São muitos, pelo menos oito milhões; com
certeza não podem esconder-se.
Voltemos à dramática situação atual. O massacre do
último dia do ano impressionou a todos. Mas os coptas já
tinham sofrido ataques e violências, desde a década de
1980. O que mudou, em relação à época anterior?
Existe hoje um fenômeno geral
de crescimento das correntes fundamentalistas e islamistas, que no
Sínodo definimos como “islã polí28
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tico”. Esse fenômeno tem diferentes formas e manifestações.
Alguns desses grupos se esforçam
para fazer uma lavagem cerebral
nos jovens, de modo a pôr em
prática projetos de domínio, local
e mundialmente. Não o escondem, dizem-no claramente, escrevem sobre o assunto. E, dadas as
condições difíceis vividas em nossos países, têm sucesso. Entre estes, há quem defenda uma menta-
versas ramificações; os diversos
grupos muitas vezes tomam caminhos diferentes e entram em conflito. Não dá para pôr todos no
mesmo saco. Cada geração segue
por um caminho. É preciso distinguir um grupo do outro. Hoje,
além de tudo, existem novos grupos salafitas que atacam os outros, inclusive a Irmandade Muçulmana, em nome de sua pretensa maior pureza islâmica.
Crianças brincam na entrada da igreja copta dedicada à Virgem Maria, em Alexandria
lidade de rejeição e de ódio ao outro. Desse húmus podem sair grupelhos que decidem realizar atentados como o de Alexandria.
A Irmandade Muçulmana
está por trás da violência
contra os cristãos, como alguns afirmam?
A Irmandade Muçulmana nasceu de uma ideologia que promovia a renovação do islã, para voltar à pureza das origens. Logo isso se tornou uma orientação política, que pretendia voltar ao modo de vida dos tempos do Profeta,
pela imposição integral da Sharia
e da dominação islamista na sociedade. Mas depois as coisas mudaram. Mesmo dentro da Irmandade Muçulmana se criaram di-
O grande mérito histórico do
Sínodo para o Oriente Médio foi
ter definido essa situação com clareza, numa perspectiva de comunhão dentro da Igreja, com os outros cristãos e também com os outros concidadãos, para construir
sociedades baseadas no direito,
no respeito aos valores comuns e
na igualdade na cidadania.
No passado, ante os ataques e a violência sofridos
pelos coptas, a Igreja no Egito nunca atribuiu a culpa à
maioria islâmica ou ao islã
em geral. E hoje?
Depois da tragédia de Alexandria, houve uma reafirmação ainda mais forte do destino comum
que é compartilhado por cristãos e
Entrevista com o patriarca Antonios Naguib
muçulmanos no Egito. Tudo o que
foi dito, na televisão e no jornal,
mesmo pelos intelectuais e pelos
guias da comunidade muçulmana,
a começar pelo grande imã de AlAzhar, seguiu nessa linha, mais do
que antes.
Houve fortes reações às
palavras do Papa, chegando
até a suspensão das relações
de diálogo com a Santa Sé,
por iniciativa da Universidade de Al-Azhar, o maior centro de ensino religioso do islã sunita. Como foi esse episódio?
Uma emissora de tevê [a Al Jazeera, ndr] transmitiu as notícias
de modo distorcido, dizendo que
o Papa tinha chamado os Estados
e os governos do Ocidente a se
posicionarem para defender os
cristãos perseguidos no Egito e no
Oriente Médio. O Papa nunca dis-
se isso. Mas essa falsa versão de
suas palavras foi tomada como se
fosse a versão oficial. E transformou-se no pretexto de que Al-Azhar precisava para suspender o
diálogo com a Santa Sé.
Enfim, as palavras do Papa
foram desvirtuadas. Mas
houve realmente campanhas
or ganizadas no Ocidente,
que chegaram até o Parlamento Europeu, onde foi pedida a suspensão da ajuda
prestada aos países que não
defendem os cristãos.
Essa é uma atitude errada. E
acaba por confirmar as interpretações errôneas das palavras do
Papa. Como cristãos do Egito –
católicos, protestantes e ortodoxos, sem diferenças –, vemos que
todo apelo por pressões diplomáticas, iniciativas punitivas ou sanções econômicas contra o Egito
em razão dos episódios que envolvem os cristãos egípcios é o
dano mais grave que possa ser
feito aos próprios cristãos. Eu
gostaria de ter dito isso em Bruxelas, no Parlamento Europeu,
quando me convidaram a falar
das perseguições dos cristãos no
Oriente Médio. Mas não quis deixar o país, nas circunstâncias trágicas destes dias.
Como os coptas ortodoxos
avaliaram essas iniciativas e
os apelos do Papa?
Eles também ficaram condicionados pela versão distorcida que
se espalhou. E oficialmente assumiram o mesmo critério de juízo
expresso pelo imã de Al-Azhar.
Nós, como católicos, temos um
vínculo de fé e hierarquia com o
bispo de Roma. Mas certamente
não temos nenhuma obrigação de
nos sentirmos vinculados às inicia-
À direita, sacerdotes coptas em oração na
Catedral copta ortodoxa de São Marcos,
no Cairo
Abaixo, devoção na gruta de Doronka,
na cidade de Asyut, um dos lugares em
que pernoitou a Sagrada Família durante
a fuga para o Egito. Para cá, todos os
anos, por ocasião da festa da Assunção
da Virgem, dezenas de milhares
de cristãos coptas se dirigem em
peregrinação ao lado de milhares
de muçulmanos igualmente atraídos
pela santidade do lugar
tivas de grupos ou organismos europeus, ocidentais ou internacionais. São importantes e devem ser
valorizadas as contribuições que
podem vir de qualquer parte, mas
os objetivos precisam ser promover um clima positivo e identificar
terrenos comuns de convivência e
colaboração, e não piorar as tensões e os conflitos.
Para terminar, eu lhes pediria
em primeiro lugar que rezassem
pela paz e pela tranquilidade do
Egito e de todos os países que sofrem com a instabilidade e a violência. E lhes agradeço por seu
interesse e sua proximidade. q
30DIAS Nº 1/2 - 2011
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