RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA EM BUSCA DE UMA

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UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA
EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O
ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A
PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO
(SÉCULO I D.C.)
GOIÂNIA - GO
2014
TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E
DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG
Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás
(UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações
(BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data.
1. Identificação do material bibliográfico:
[ X ] Dissertação
[ ] Tese
2. Identificação da Tese ou Dissertação
Autor (a): Rodrigo Santos Monteiro Oliveira
E-mail:
[email protected]
Seu e-mail pode ser disponibilizado na página?
Vínculo empregatício do autor
Agência de fomento:
[ X ]Sim
[ ] Não
Não
Coordenação de Aperfeiçoa- Sigla:
CAPES
mento de Pessoal de Nível Superior
UF:
GO CNPJ: 00889834/0001-08
País:
Brasil
Título:
Em busca de uma simpatia universal: o entendimento do Principado de Otávio
Augusto a partir da obra Astronômicas de Marco Manílio (século I d.C.)
Palavras-chave:
Astrologia, Estoicismo, Otávio Augusto, Principado
Título em outra In search of an universal sympathy: the understanding of the Emlíngua:
pire of Octavian Augustus from the work Astronômicas of Marcus
Manilius (First Century AD)
Palavras-chave em outra língua:
Astrology, Stoicism, Octavian Augustus, Empire
Área de concentração:
Cultura, Fronteira e Identidades
Data defesa: (dd/mm/aaaa)
25/04/2014
Programa de Pós-Graduação:
História
Orientador (a): Luciane Munhoz de Omena
E-mail:
Co-orientador
(a):*
E-mail:
*Necessita do CPF quando não constar no SisPG
3. Informações de acesso ao documento:
Concorda com a liberação total do documento [ X ] SIM
[ ] NÃO1
Havendo concordância com a disponibilização eletrônica, torna-se imprescindível o envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação.
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________________________________________
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1
Data: ____ / ____ / _____
Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação
do curso. Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de embargo.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS
FACULDADE DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA
MESTRADO
RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA
EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O
ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A
PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO
(SÉCULO I D.C.)
Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal
de Goiás como requisito para a obtenção do grau
de Mestre em História.
Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e
Identidades.
Linha de Pesquisa: História, Memória e
Imaginários Sociais.
Orientadora:
Professora
Munhoz de Omena.
GOIÂNIA - GO
2014
Doutora
Luciane
Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP)
O48e
Oliveira, Rodrigo Santos Monteiro.
Em busca de uma simpatia universal [manuscrito] : o
entendimento do principado de Otávio Augusto a partir da obra
astronômicas de Marco Manílio (século I d.C.)/ Rodrigo Santos
Monteiro Oliveira. – 2014.
116 f. : 30 cm.
“Orientadora: Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena”.
Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Goiás,
Programa de Pós-Graduação em História, 2014.
Inclui referências bibliográficas.
1. Astrologia. 2. Estóicos. 3. Destino e fatalismo. I. Título.
CDU 133.52(043)
RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA
EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O
ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A
PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO
(SÉCULO I D.C.)
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre
em História, avaliada em ____/____/ 2014, pela Banca Examinadora constituída pelos
seguintes professores:
_____________________________________________________________
Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena (UFG) – Presidente
_____________________________________________________________
Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) – Membro
_____________________________________________________________
Professora Doutora Marina Regis Cavicchioli (UFBA) – Membro
_____________________________________________________________
Professora Doutora Renata Cristina de S. Nascimento
(UFG – Campus Jataí /PUC - GO) – Suplente
AGRADECIMENTOS
São tantos agradecimentos que devo realizar! Muitos participaram deste
processo e fizeram dele, em certa medida, uma ótima e leve experiência. Primeiramente,
agradeço a Deus por ter me abençoado durante toda a minha trajetória de vida, o que
possibilitou a realização deste trabalho. Agradeço às professoras Doutoras Ana Teresa
Marques Gonçalves e Luciane Munhoz de Omena. A primeira por se apresentar sempre
disposta a me orientar e ajudar com as dificuldades da pesquisa, e algumas de vida,
desde a época da graduação; e a segunda por ter me auxiliado em algumas etapas do
trabalho. Também agradeço as, e pelas professoras Doutoras Renata Cristina de S.
Nascimento e Marina Regis Cavicchioli por atenderem ao meu pedido de participar da
avaliação do meu trabalho e contribuírem imensamente para a melhoria do mesmo.
À minha família, devo incontáveis agradecimentos. Aos meus pais, Edson da
Silva Oliveira e Renata Santos Monteiro Oliveira, por sempre estarem presentes e me
apoiarem incondicionalmente. A eles eu agradeço, pois permitiram não somente a
feitura desta dissertação como também o meu crescimento enquanto ser humano. Aos
meus irmãos, Felipe Santos Monteiro Oliveira e Rafael Santos Monteiro Oliveira, meus
melhores amigos, agradeço pelos conselhos e por se apresentarem dispostos a me
ajudar. Às minhas cunhadas, Brunna Beatriz de Sousa Borges e Camila Garcia Ferreira,
agradeço pelo simples fato de fazerem dos meus irmãos pessoas mais felizes: a
felicidade deles é a minha felicidade.
Como se não fosse o bastante ter uma família maravilhosa, fui contemplado com
mais uma. Agradeço por ter tido a oportunidade de conhecer a Senhora Márcia das
Graças Alvarenga Fernandes e o Senhor José Carlos Fernandes, que me adotaram
prontamente e me fizeram parte desta grande e linda família. Aos cunhad@s, Leopoldo
e Simone, Cassiana, Marcela e William, Rebeca, Ingrid e Pâmella, por serem bons
amigos e sempre me receberem com felicidade. A eles agradeço também pelas minhas
princesas/sobrinhas mais que perfeitas: Sabrina (Bina), Alice (Lice) e Laís (Lala).
E como teria sido triste esta etapa da minha vida se com alguns amig@s eu não
pudesse ter divido a carga. Agradeço ao amigo que me acompanhou desde o ensino
médio com a mesma paixão pela História, Igor Xavier, e que hoje descansa em paz.
Agradeço àqueles que fizeram parte da minha vida e que hoje, mesmo distantes,
continuam tendo o meu carinho e admiração: Poliane da Paixão Gonçalves Pinto e
Heverton Rodrigues. Às amigas irmãs Paula Roberta Soares e Barbara Vieira de Brito,
pois sei que sempre poderei contar com o apoio. Aos amig@s que fiz já no final da
minha graduação: Thalita Santana, Marillia Amanda, Paulo Sérgio e Mariah Freitas
Monteiro, agradeço pelas boas risadas. Aos colegas que, assim como eu, se
disponibilizaram a estudar História Antiga, Macsuelber Cunha, Wendryll Tavares,
Marcelo M. De Souza, Samuel Nunes, Thiago Eustáquio, Ana Paula Franchi, Suianny
Bueno, Erick Otto, Gustavo Goés, Luana Neres, Edson Arantes, Giselle da Mata e Alice
Souza, e com os quais tive o privilégio de conversar/debater. Agradeço à Juliana Prado
por ter me recebido inúmeras vezes em sua casa quando ao Rio de Janeiro ia para
participar de algum congresso, e pela amizade. Sou grato por ser amigo da Mariana
Carrijo Medeiros, uma pessoa especial com a qual tive, e tenho, o prazer de conviver.
Agradeço por ter me dado ânimo em alguns momentos, por ter me feito rir quase todo o
tempo, e por se mostrar essa pessoa única e cativante. Espero que a vida continue
possibilitando nossa amizade e que possamos continuar próximos por muitos e muitos
anos.
Agradeço à minha família que ficou com uma parte do meu coração no Rio de
Janeiro e dos quais eu sinto muita saudade, especialmente a minha Dinda, Regina Lima
Santos de Souza, ao meu tio Rogério Silva Souza, e as minhas primas Roberta Lima
Santos de Souza e Rafaela Lima Santos de Souza.
Por último, não por ser a de menor importância, mas sim para fechar com chave
de ouro, agradeço à Amanda Alvarenga Fernandes por existir em minha vida. Em todos
os momentos e circunstâncias eu sabia que podia contar com sua ajuda e com o seu
amor. Agradeço por me ensinar o que é amar e permitir que eu possa continuar amando
(e que assim seja até os meus últimos dias). Sem você este trabalho não teria sido
possível.
A todos que de alguma forma se fizeram presentes em minha vida, serei
eternamente grato!
RESUMO
Marco Manílio, escritor do I século d.C., estrutura, a partir de sua obra intitulada
Astronômicas, o universo. Seu manual, que aborda conceitos e temas que atualmente
dividimos entre astrologia e astronomia, nos traz uma compreensão organizacional dos
corpos celestes, além de uma explanação acerca das relações existentes entre eles. Tais
relações não abrangem somente a porção que compreendemos como Céu, mas também
influenciam na elaboração e ação da vida terrena, ou seja, astros e homens estão
interligados por uma teia de relações infinitas. Sendo assim, visamos entender a obra
maniliana a partir de alguns pontos-chave: 1- a estrutura da obra, seu público e o
conhecimento apreendido; 2- a compreensão da filosofia estóica (ou uma tentativa de
aproximação do que isto seria), na busca de entendermos o porquê de sua utilização e;
3- o entendimento do período no qual Manílio estava inserido, o Principado de Otávio
Augusto. Esta divisão foi feita a fim de tornar o trabalho inteligível àqueles que
possuem a intenção de estudar um período – já tão discutido – a partir de um novo
olhar. A astrologia maniliana, confirmada pela utilização do Estoicismo, explica este
mundo romano do século I com uma intenção de estabelecer uma harmonia quista por
aqueles que atravessavam um período de desestabilidade marcado pelas constantes
Guerras Civis.
ABSTRACT
Marco Manílio, writer of the first century of our era, structure, from his work
Astronômicas, the universe. Your manual, that showing concepts and themes that we
currently divide between astrology and astronomy, bring us an organizacional
comprehension of the heavenly bodies, beyond an explanation about the relationship
between them. This relations not only cover the portion that we understand as Heaven,
but also influence in the elaboration and action of the earthly life, or, in other words,
stars and humans are interconnected by an infinite relation web. In that case, we
understand this work from some key points: 1- the structure of Manílio’s work, his
public and the knowledge gained; 2- the comprehension about stoic philosophy (or, an
approximation of what it was), in seeking to understand the choice of your utilization
and, 3- the understanding of the Manílio’s time, the Empire of Otávio Augusto. This
division was made in order to make this dissertation intelligible for those who have the
intention of studying this period – already too much discussed – from a new look. The
manilian astrology, confirmed by the utilisation of the Stoicism, explains this roman
world of the first century with an intention of establish a conquest harmony for those
who crossed a period of destabilization marked by constants Civil Wars.
Do caos nasce uma estrela dançarina. (F. Nietzsche).
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS
04
RESUMO
06
ABSTRACT
07
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO 1 - O pensamento astrológico de Manílio: Respondendo às
necessidades de seu tempo
1.1. O poema, o autor e sua trajetória
10
1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio
1.2.1. A astrologia: permanências, transformações e sua utilização
1.3. A beleza celeste ensinável: entre o lúdico e o científico
CAPÍTULO 2 - A Filosofia Estóica na elaboração maniliana de seu manual
astrológico: uma aproximação entre os eventos celestes e os terrestres
2.1. A Filosofia Estóica
17
18
25
28
35
48
50
2.1.1. O Estoicismo Antigo
51
2.1.2. O Estoicismo Médio
54
2.1.3. O Estoicismo Imperial
56
2.2. As partes de um todo: física, lógica e ética estóica
57
2.2.1. A Física
59
2.2.2. A Ética/Moral
64
2.2.3. A Lógica
CAPÍTULO 3 - A percepção astrológica de Manílio e a elaboração do seu tempo:
Uma busca por estabilidade
3.1. Desestabilidade no final da República: as Guerras Civis
3.1.1. Um “novo” conflito: Marco Antônio
3.1.2. Um “novo” conflito: Otávio Augusto
3.2. Um confronto pelo bem da Res Publica: Otávio versus Marco Antônio
69
74
75
76
87
90
CONSIDERAÇÕES FINAIS
103
ANEXOS
108
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
110
A) DOCUMENTOS TEXTUAIS
110
B) OBRAS REFERÊNCIAS
111
C) OBRAS GERAIS
111
INTRODUÇÃO
A busca por compreender o mundo em que vive faz do homem, na maioria dos
casos, um ser que está em constante análise do seu mundo e/ou de si mesmo. Tal
função, empreendida a partir da comparação com o meio externo em que está situado,
oferece ao homem informações necessárias para sua sobrevivência. Sendo assim, este se
apresenta à vida como um observador das causas externas, ao mesmo tempo em que
abandona a passividade de seu ponto de vista e se torna ativamente um “descobridor e
organizador” do seu meio. A História que o homem escreve diante dos “outros” que lhe
são apresentados depende da sua interpretação, ou seja, do seu olhar na construção de
personagens e eventos. Toda afirmação histórica está associada a um ponto de vista,
uma noção que nasceu nos tempos modernos, e, assim como nos mostra Reinhart
Koselleck, a História intenta, dessa maneira, “fazer afirmações verdadeiras e, apesar
disso, admitir e considerar a relatividade delas” (KOSELLECK, 2006, p.161).
A partir destes diferentes pontos de vista se constrói um discurso capaz de
agregar certezas e dúvidas que são produzidas a partir da busca incessante pela verdade.
Tal verdade, enquanto significação absoluta, não pode ser empreendida e alcançada,
pois cabe ao homem limitar-se ao seu tempo, à sua vivência e ao seu olhar para o
passado. Até o século XVIII, os historiadores desenvolveram a crença da obrigação em
apenas afirmar a verdade. Desse modo, o historiador não deveria se deixar contaminar
pelo seu contexto, buscando anular sua vivência e suas experiências completamente,
aplicando à História uma noção de verdade única. Na modernidade, a História se torna
um conceito reflexivo, pois se iniciou uma percepção desta a partir do presente do
historiador: o passado não pode mais ser apreendido de maneira total, “pois a
articulação temporal da História passa a depender do ponto de vista ao qual for
relacionada” (KOSELLECK, 2006, p.168).
O conhecimento histórico, a partir de tais ideias, passou a ir além do que se
encontrava na documentação textual. O historiador começou a aceitar em seu trabalho
as hipóteses, antes refutadas, pois “toda fonte ou, mais precisamente, todo vestígio que
se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma História que
é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, e sempre algo diferente dele”
(KOSELLECK, 2006, p.186). A documentação passou a ser mais uma possibilidade de
alcançar certo passado, pois tal não nos revela a História como realmente foi e nem nos
10 diz o que escrever, mesmo que nos impeça de realizar afirmações que não poderíamos
fazer. É tal processo crítico que diferencia o historiador dos demais, pois evita com que
ele acredite cegamente no que o documento selecionado mostra. Porém, o processo
crítico não é algo natural, e sim, vai de encontro à natureza humana de se conformar
com o que lhe é dito. A crítica é um exercício que o historiador pratica a partir de um
esforço próprio, gerado pelo acúmulo de conhecimento e busca incessante pela verdade,
mesmo que esta seja inalcançável. A História se faz por vestígios e, por isso, deve
receber um tratamento crítico daqueles que se disponibilizam em analisá-la. As fontes
históricas se formam a partir do olhar do historiador, fazendo com que sejam
extremamente diversificadas, ou seja, se formam a partir da distância entre passado e
presente, dependendo dos questionamentos realizados. Os eventos do passado não
podem ser observados diretamente, pela simples razão de já terem deixado de existir
(PROST, 1993, p.66).
No caso da História, as perguntas ocupam uma posição decisiva. Não existem fatos
históricos por natureza, pois eles são construídos pelas questões produzidas pelo
historiador do presente. Temos que nos atentar que tais questões não são ingênuas, já
que são elaboradas a partir de intencionalidades particulares ou coletivas dos homens
em seus tempos. Todas as vezes que o historiador formula seus questionamentos, já
produz, também, hipóteses sobre eles. Para formular suas questões, pressupomos que o
historiador possua um conhecimento, mesmo que mínimo, do que deseja estudar. Os
documentos e vestígios só podem ser classificados de tal forma, pois foram
questionados da maneira mais apropriada. O trabalho do historiador depende de sua
formação crítica na formulação de suas perguntas, tendo como referência o documento
com o qual deseja trabalhar. Ou seja, são diversificados os objetos com os quais este,
disposto a analisar o passado, pode trabalhar, uma vez que o registro da ação do homem
(ponto principal na análise histórica) foi mantida a partir de suportes variados, como
documentos escritos (literatura, manuais, biografias...) e materiais (moedas, esculturas,
pinturas...).
É a partir de tais constatações que nos posicionamos enquanto produtores de um
conhecimento histórico. Desde a graduação, somos exigidos a nos relacionar com o que
estudamos a partir de um posicionamento crítico e analítico. Explicando-nos de uma
maneira mais clara, foi exigido de nós, por alguns professores com os quais tivemos
contato, que não nos envolvêssemos de maneira pessoal com o passado sobre o qual
iríamos estudar. A função do historiador, a nosso ver e a partir de tais exigências, se
11 mostrou como um ato frio e solitário, no qual estudar o passado seria simplesmente uma
ação de conhecimento do outro.
Sempre nos interessamos por História Antiga, desde o Ensino Médio. Ao
entrarmos na faculdade e nos depararmos com a pluralidade do que seria estudar tal
período, logo nos entusiasmamos e mal pudemos esperar o momento de iniciar nossas
pesquisas. Percebemos que para construir e produzir um conhecimento histórico, nossos
questionamentos deveriam ser levados em voga como a primazia do nosso trabalho. A
partir de então, e sob a orientação das Professoras Doutoras Ana Teresa Marques
Gonçalves e Luciane Munhoz de Omena, iniciamos nossos estudos, percebendo que a
relação com o passado caminharia entre o conhecido e o desconhecido, ou seja, entre o
“nós” e o “eles”. Estudar História Antiga não é uma tarefa fácil! Até mesmo sua
denominação é discutível, pois é um termo útil e arriscado, já que tal foi elaborado pelo
nosso presente. Assim sendo, esta classificação designaria o início da nossa História
Contemporânea, apresentando a História como um encadeamento evolutivo que
culminaria na vitória civilizadora do Ocidente europeu. Assim como pontua Norberto
Luiz Guarinello, “se tivermos em mente que a disciplina da História desenvolveu-se ao
longo do século XIX, em grande parte a serviço dos Estados-Nacionais emergentes
[...]”, perceberemos a necessidade desta em se encaixar em um contexto que visava o
progresso e a civilização e, por isso, “Oriente próximo, Grécia e Roma foram assim
colocados numa espécie de sucessão, num processo civilizatório que culminaria na
civilização Ocidental europeia” (GUARINELLO, 2003, p.56).
Ao nos depararmos com esta análise, percebemos, mais uma vez, que o presente
do historiador nunca poderia ser anulado, pois seus questionamentos ao passado partem
da sua própria vivência. Sendo assim, poderíamos classificar como passado apenas o
que para nós já se foi, ou seja, apenas o que já não é mais presente e permanece, dessa
maneira, no campo das experiências. Deparamo-nos, então, com a “missão” de estudar o
passado a partir da seleção que faríamos, sendo a nossa tarefa escolher com qual
documento iríamos trabalhar. Após sermos apresentados a muitos documentos, ao final
do nosso segundo ano de graduação, começamos a ler a obra Astronômicas de Marco
Manílio. O interesse foi imediato. A possibilidade que este manual astrológico
apresentava em permitir que analisássemos o passado a partir de um prisma
completamente novo, principalmente por retratar um período já tão estudado – o
Principado de Otávio Augusto –, fez da nossa escolha algo mais fácil. A primeira leitura
foi um enorme desafio, pois para entender a obra maniliana não bastaria possuir apenas
12 conhecimento sobre o seu contexto de produção ou sobre a vivência deste autor, mas
nós deveríamos entender, também, sobre a astrologia na qual Manílio baseou seu
trabalho.
Lendo algumas traduções da obra, percebemos que o título foi adaptado, pois, de
acordo com Francisco Calero (1996, p.47), os estudos feitos por Manílio em seu
trabalho se assemelhariam mais com o que entendemos atualmente como astrologia do
que com a astronomia contemporânea. Por isso, a obra foi denominada com o título de
Astrologia ao invés do conhecido Astronômicas. Sendo assim, nosso primeiro interesse
foi entender qual a diferenciação entre estes dois conhecimentos em nossa
contemporaneidade. Em 1975, ganhadores do prêmio Nobel escreveram um artigo
intitulado “Objeções à Astrologia”, no qual discutiam a validação de tal conhecimento:
Cientistas de vários campos ficaram apreensivos com o aumento da
aceitação da astrologia em várias partes do mundo. Nós, abaixo
assinados – astrônomos, astrofísicos e cientistas de outras áreas –,
desejamos aconselhar cautela ao público contra a aceitação sem
questionamentos das previsões e conselhos dados em particular ou
publicamente pelos astrólogos. Aqueles que desejam acreditar na
astrologia devem compreender que não existe uma base científica em
seus princípios [...]. Por que as pessoas acreditam na astrologia?
Nestes tempos incertos várias pessoas buscam o conforto de ter uma
orientação para tomar decisões. Elas gostariam de acreditar em um
destino predeterminado por forças astrais que está além do seu
controle. Entretanto, devemos encarar o mundo e precisamos
compreender que o nosso futuro está em nós mesmos e não nas
estrelas. Pode se imaginar nesta época de esclarecimento e educação
amplos que seria desnecessário desmascarar crenças baseadas em
magia e superstição. Porém, a aceitação da astrologia permeia a
sociedade atual (BOK; JEROME, 1975, p. 9-10).
Tal argumento nos mostra que o saber astrológico é encarado como
charlatanismo pelos cientistas da contemporaneidade. A ciência moderna é, para estes
autores, a única maneira de alcançar a verdade, seja ela qual for. Como apresenta Peter
Marshall, em seu trabalho intitulado A Astrologia no Mundo, diversos cientistas
atacaram as editoras de livros e a mídia por disseminarem a astrologia que apenas
contribui para “o crescimento do irracionalismo e do obscurantismo”, ou seja, se
iniciava uma perseguição, “mas de uma comunidade supostamente fria e racional de
13 cientistas que decididamente se sentiu indignada quando teve de encarar tal assunto”
(MARSHALL, 2006, p.388), pois tal conhecimento não se ajustava à sua compreensão
de mundo.
Podemos observar isto até mesmo na literatura do final da década de 1970.
Douglas Adams escreveu seu aclamado livro O Guia do Mochileiro das Galáxias e nele
destacou como a astrologia era identificada pelos intelectuais de sua época. Em um
diálogo entre duas personagens, Tricia e Gail Andrews, percebemos o posicionamento
científico perante tão difamada forma de conhecimento:
- Olha – disse Tricia –, sinto muito se a senhora está triste. Sei que
deve estar achando que fui muito dura hoje pela manhã, mas a
astrologia, no final das contas, não passa de uma diversão popular e,
até aí, tudo bem. Faz parte do showbiz e é uma coisa que a senhora faz
muito bem, lhe desejo boa sorte. É divertido. Contudo, não é uma
ciência e não devemos confundir as coisas. Acho que isso é algo que
nós duas conseguimos demonstrar muito bem hoje cedo e ainda
proporcionamos diversão popular aos outros, que é exatamente o
nosso trabalho (ADAMS, 2004, p. 20).
Mas seria a astrologia encarada dessa mesma forma na Antiguidade,
especificamente em Roma? Seria tal conhecimento repudiado ou aceito? Percebemos
que as denominações, hoje antônimas, de astrologia e astronomia para o homem romano
não se diferenciavam. Ambas eram estudadas por aqueles que buscavam compreender
os eventos celestes e deles inferir origens, causas e resultados para a vida terrena. A
partir de tais questões iniciamos nosso trabalho de pesquisa, tentando entender, também,
a relação da obra maniliana com seu contexto de produção. Foi assim que, não
satisfeitos com as respostas que obtivemos durante a graduação, resolvemos estender a
pesquisa para o Mestrado, a fim de conseguir maior profundidade no tema estudado.
Esta dissertação deve ser entendida como fruto deste esforço que, para nossa
surpresa, não foi solitário. Por isso, conseguimos, ao longo destes quase dois anos,
desenvolver os capítulos que aqui apresentamos. O primeiro tem como objetivo expor a
obra estudada, seu autor e suas possíveis intenções. Para isso, iniciamos o capítulo com
a apresentação de quem foi Manílio, das divisões do texto maniliano em cinco livros e
com os rastros deixados desde sua escrita até os nossos dias. Sendo assim, entender o
que seria tal conhecimento astrológico também é de extrema importância para esta etapa
do trabalho. Por último, explicamos que Astronômicas possuía dois pontos principais
14 quanto ao gênero e à forma da sua obra: desejava escrever um manual ensinável do
conhecimento astrológico, ao mesmo tempo em que tal contemplasse de forma bela as
maravilhas do tema narrado.
No segundo capítulo, apresentamos uma das características mais marcantes da
obra: a utilização da filosofia estóica pelo poeta. Para melhor apresentar tal utilização e
o porquê desta ser importante na elaboração de tal manual, analisamos a filosofia, desde
sua origem até a sua utilização por Manílio, mostrando também as divisões existentes
do Estoicismo: a física, a moral/ética e a lógica. A partir disto, conhecendo a obra, seu
autor, e a relação deste com a filosofia estóica, pensamos que o leitor deste trabalho está
munido com o conhecimento necessário para compreender o terceiro e último capítulo.
Dessa maneira, apresentamos nesta última parte a relação d’Astronômicas com o
contexto em que foi produzida, especificamente com o início do Principado de Otávio
Augusto. Tal personagem é central em nossa análise, pois, além de ser apresentado
como um bom exemplo pelo próprio Manílio, nos permite entender as articulações
necessárias entre Princeps, Senado e povo romano. Ou seja, conseguimos entender um
pouco mais sobre tais relações a partir do jogo empreendido por este Imperador na
busca da manutenção de uma Res publica enfraquecida pelas constantes Guerras Civis,
ao mesmo tempo em que procurou legitimar seu governo perante os demais estamentos
sociais. Entendemos que o Imperador desempenhava o papel de protagonista em toda
essa trama, porém, entendemos também que o cenário, as alegorias e os personagens
secundários poderiam desempenhar papéis de grande importância. Um jogo era
estipulado e muitos jogavam ao tentarem se manter próximos da irradiação que o poder
emanava. Augusto em seus atos solenes como restaurador da República era
simplesmente um dos jogadores, pois soube como agir perante os demais líderes
romanos. O Senado1, que também se mantinha neste jogo, sabia o momento de contraatacar e posicionar-se em favor de seus próprios interesses, mesmo perante o Imperador.
Enquanto isso, povo e províncias (nos utilizando desses termos generalizantes), mesmo
que distantes, também se arriscavam nessa modulação intensa de poder. Os astros,
através das leis secretas e do destino que salvaguardam, já determinavam os
acontecimentos terrenos: mesmo que esses superassem as expectativas humanas. Mas
quem melhor, assim como aponta Marco Manílio (Astronômicas, Livro II, v. 115-116),
para compreender todo o Universo do que aqueles que dele foram criados?
1 Devemos ter o conhecimento de que o grupo senatorial não era homogêneo em sua composição. Grupos
com interesses diversos se formavam e cada um defendia o líder com o qual se identificava.
15 Sendo assim, a astrologia é apresentada como a melhor maneira de explicar o
mundo maniliano, já que o Céu e a Terra estão interligados por uma teia de relações
infinitas. Mesmo que voltada mais à imaginação do que à razão, tal conhecimento
possui uma qualidade única de englobar todas as coisas, pois se volta “tanto para os
números quanto para as artes, tanto para o observador do céu noturno quanto para o
explorador da psique, tanto para o matemático quanto para o artista” (MARSHALL,
2006, p.400). Dessa maneira, cabe a nós tentarmos compreender tal período a partir da
ótica de Marco Manílio em sua obra intitulada Astronômicas (século I d.C.).
16 CAPÍTULO 1
O pensamento astrológico de Manílio:
Respondendo às necessidades de seu tempo
É curioso perceber a pluralidade de informações que os documentos nos
mostram sobre o passado. Nosso trabalho pode ser utilizado como um exemplo disto,
pois nos apresenta, a partir da seleção da obra Astronômicas, um período já bastante
estudado sob uma ótica singular com a qual outros autores podem, ou não, corroborar.
Este é um dos grandes desafios do historiador que tenta, por meio destas possibilidades
apresentadas, entender o passado utilizando-se das documentações disponíveis. Estas, a
partir do trabalho investigativo e interpretativo do historiador, liberam vestígios do
acontecido nos possibilitando apreender o ocorrido a partir de olhares e situações
particulares. É por um destes olhares que analisamos o período de início do Principado
romano, especificamente o denominado por Suetônio como o “Século de Augusto”
(SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A Vida dos doze Césares, parte C). O
período especificado é conhecido pelos grandes conflitos decorrentes das constantes
Guerras Civis que assolavam Roma e dividiam em grupos uma aristocracia já
enfraquecida. Sendo assim, a paz era idealizada e muitos, assim como o próprio Otávio,
se colocaram em posição de liderança em prol da restauração da Res Publica. Com sua
vitória em Ácio em 31 a.C. sobre Marco Antônio, Otávio desponta como aquele digno
de liderar e restaurar Roma a partir do diálogo constante com a tradição, o Senado e o
povo romano. Assim, cabia a este governante ser lembrado e descrito pelos escritos de
sua época, sendo seus feitos rememorados à posterioridade2.
Neste sentido, destacamos uma obra específica que baseia nossa argumentação
durante o trabalho apresentado: Astronômicas, de Marco Manílio (século I d.C.). A obra
maniliana foi selecionada, pois traz em si conhecimentos acerca do período do início do
Principado romano a partir de um estudo astrológico – estudo este entendido e escrito
pelo autor como um poema. Tal documento é no mínimo peculiar, mas apresenta um
vasto conhecimento não só referente às estrelas, mas ao seu contexto de produção.
2Como
podemos perceber nos documentos textuais posteriores ao século I d.C., como as obras de
Suetônio, Plutarco e Dion Cássio.
17 1.1. O poema, o autor e sua trajetória
Para alcançar seu objetivo, Manílio divide seu trabalho em cinco livros que
apresentam o saber astrológico, salientando a ação dos corpos celestes sobre a vida
humana. A obra maniliana é importante para os estudiosos da Antiguidade e da
astrologia, pois foi a primeira obra conservada que apresenta esse plano sistemático do
saber astrológico, mesmo que não tenha sido a primeira produzida. É certo que Manílio
não foi o primeiro a empreender o desafio de escrever sobre o Universo e todas as
divisões do plano celeste, porém podemos acreditar que talvez tenha sido o primeiro a
realizar tal tarefa na forma de versos. Não acreditamos no ineditismo de Manílio, pois o
próprio autor faz alusões à língua grega durante sua obra (Manílio. Astronômicas, Livro
II), mostrando que, para realizar seu objetivo, se utilizou de outros trabalhos anteriores
ao seu.
O alvo central de Manílio foi o de ao mesmo tempo narrar sobre a beleza do
Universo e sobre todas as partes deste, e realizar seu trabalho digno da beleza
apresentada, além de ensinar certo conhecimento por pensar que tal seria sua função e
que caberia ao homem conhecer sobre o todo do qual faz parte. Para isso, e por uma
preocupação didática, Manílio divide sua obra em cinco livros. Analisando-a de uma
maneira mais ampla, encontramos ensinamentos mais gerais acerca do conhecimento
dos astros, noções básicas de astrologia, e estudos mais aprofundados que proporcionam
o entendimento da influência zodiacal sobre os indivíduos e a conjunção astral também
existente. A autora Elisa Romano nos mostra uma divisão mais específica da obra: o
livro Astronômicas se enquadra dentro da tradição didascálica greco-romana, na qual a
obra contém um proêmio (prelúdio inicial), a exposição da matéria e algumas
digressões. A divisão dos livros é de forma tripartida para esta autora, ou seja, há uma
divisão em três blocos: o primeiro bloco (livro I) é dedicado de forma autônoma ao
conhecimento astronômico sistematizado por Arato; o segundo bloco (livros II, III e IV)
constitui o poema astrológico em si, na predominância do rigor científico e na ausência
dos mitos, havendo uma exaltação da filosofia estóica (Manílio era um filósofo estóico);
e o último bloco, constituído apenas pelo livro V, é uma adição aos planos iniciais do
poema (ROMANO, 1979, p.39-58).
De acordo com Marcelo V. Fernandes, a obra de Manílio contemplava duas
grandes áreas próprias da astrologia antiga: “a meteorologiké, acerca dos fenômenos
celestes, e a poietiké, acerca das influências dos astros; esta última parte, por sua vez,
18 divide-se noutras duas: o pinakikón, uma isagoge, ou introdução descritiva, à ciência
astrológica, e o apotelesmaticón, a parte decretória, ou decisiva” (FERNANDES, 2006,
p.11).
Detalhando mais os temas apresentados durante cada livro, percebemos que
Manílio realiza um trabalho crescente quanto às suas elaborações escrita e didática na
passagem do conhecimento astrológico. No primeiro livro, o autor apresenta uma
introdução a este saber, preparando o aluno para receber o ensinamento proposto. Assim
como apresenta Fernandes, neste primeiro momento, Manílio “tem por tema um
‘retrato’ da esfera celeste, o poeta apresenta o saber astrológico como o termo do
desenvolvimento intelectual humano” (FERNANDES, 2006, p.27). Tal saber é tão
sublime que apenas por dádiva do Céu, que é o próprio deus, o homem seria capaz de
conhecê-lo. Antes deste contato, os fenômenos celestes eram apenas dignos de
manifestar no ser humano admiração e medo. Dessa forma, Manílio chama o homem
para conhecer sobre o Universo e entender seu passado e futuro e, com isso, se encaixar
no seu presente. Depois de apresentar sobre a formação do Universo pela junção dos
quatro elementos básicos (fogo, água, ar e terra)3, o autor tratou de apresentar sobre os
círculos celestes (trópicos, círculos polares, Via Láctea, etc.) e sobre as constelações
zodiacais (Áries, Touro, Gêmeos, etc.), e as não zodiacais (Adrômeda, Órion, etc.).
Sobre o primeiro grupo, Manílio apresenta caracterizações bem interessantes ao
descrever a sequência do círculo zodiacal:
Resplandecente em sua dourada, o Carneiro (Áries) abre o caminho e
olha para trás maravilhado com a chegada do Boi (Touro), que com a
face e torso abaixados convoca Gêmeos; a estes segue o Caranguejo
(Câncer), e o Leão ao Caranguejo, e a Virgem ao Leão. Depois a
Balança (Libra) equilibra a luz do dia com a extensão da noite; puxa o
Escorpião, ansioso com sua constelação cintilante em cuja cauda o
homem com corpo de cavalo (Sargitário) visa com um arco retesado
uma flecha alada, sempre pronta a disparar. Em seguida vem o
Capricórnio, enrolado dentro do seu asterismo comprimido, e depois
dele, com um vaso virado para baixo, o Aguadeiro (Aquário) verte a
água necessária aos Peixes, que nadam ligeiro nela; e desta forma
chegamos à retaguarda dos signos que são reunidos pelo Carneiro
(MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 328-340).
3
Teoria estóica melhor apresentada no segundo capítulo.
19 Após referir-se aos signos, Manílio apresentou o homem como digno de
conhecer sobre os mistérios do Universo, já que é parte da própria divindade que ordena
todo o caos. Mostrou que após o momento de medo e admiração, o homem passa a
tentar compreendê-los e, com o desenvolvimento da razão, consegue entender o mundo
à sua volta. Para isso, elencou razões pela qual o mundo, e toda a porção celeste, não
foram criados pelo acaso como assim proclamavam os epicuristas4, mas pela ordem
vigente e reguladora capaz de erguer as fortalezas do Universo. Encerra o livro narrando
sobre os cometas pressagiadores dos desastres futuros, e com tal conclusão, parte para o
livro II, entendendo que toda a introdução necessária sobre o conhecimento astrológico
foi dada.
No segundo livro, ainda com caráter introdutório, as definições dos signos
zodiacais são realizadas com maior profundidade, estabelecendo também as relações
entre eles. Classifica-os quanto ao gênero (masculino ou feminino), em diurnos ou
noturnos, terrestres, aquáticos, férteis ou inférteis, erguidos, sentados, outonais,
primaverais, veraneais e invernais, e estabelece relações entre dois, três, quatro ou seis
signos de uma vez, mostrando quais se prejudicam e quais não. Para conhecer o destino,
o homem não poderia se basear apenas nas qualidades isoladas de cada signo, mas era
preciso levar em conta as relações entre eles e, por isso, formam-se ângulos relacionais
que originam quatro triângulos, três quadrados e dois hexágonos (anexo I).
A influência que cada signo tem sobre cada parte do corpo humano também é
apresentada. Para explicar sobre tal influência dos signos, Manílio apresenta a divisão
celeste em doze partes, sendo cada uma possuidora de uma força particular. Para tal
assunto, Manílio pede atenção, pois a matéria não é simples e é nova:
Examina agora uma coisa aparentemente simples, porém grande na
sua importância e que só admite ser designada por uma palavra grega:
as dodecatemórias (duodécima parte), nome que já aponta sua razão.
Como cada signo celeste consta de trinta partes, divide-se o número
todo por doze; o próprio cálculo ensina, então, que cada fração é de
duas partes e meia. Dentro destes limites, pois, é que se estabelece a
dodecatemória; em todos os signos há tais doze partes, as quais o
criador do firmamento atribuiu a um mesmo número de astros
Escola filosófica que surgiu na Grécia durante o século IV a.C. Fundada por Epicuro de Samos, pregava
a vivência em conformidade e acreditava na formação de todas as coisas pelas pequenas partículas hoje
denominadas como átomos. Foi também conhecida como filosofia do Jardim, pois foi ensinada em muitos
deles.
4
20 brilhantes, para que os signos celestes se encontrassem associados
numa ordem alternada, e para que o céu fosse semelhante a si mesmo,
e os astros todos fizessem parte uns dos outros, e por meio das
combinações entre eles a concórdia regesse todo o conjunto, e para
que, em razão da causa comum, a proteção fosse recíproca entre eles.
Na terra, são criados sob tal lei os que nascem; por isso, conquanto
nasçam sob o mesmo signo, apresentam costumes diferentes e
vontades opostas; e frequentemente a natureza se desencaminha, para
pior, e aos nascer de um menino segue o de uma menina: os dois
nascimentos reúnem-se sob a mesma estrela; o fato é que cada astro
sofre variação por causa das divisões que tem, e muda, nas
dodecatemórias,
as
suas
influências
específicas
(MANÍLIO.
Astronômicas Livro II, v. 831-855).
Cada signo influencia em um específico momento da vida humana, sendo a
saúde, a infância, a vida adulta e todas as demais etapas correspondidas a uma casa
zodiacal. Encerrando o tema, Manílio parte para o terceiro livro, no qual inicia a
explicação sobre as doze casas celestes, os athla, com relação ao círculo móvel dos
signos zodiacais. Assim como mostra Fernandes (2006, p. 34), cada casa regula uma
atividade, ou sorte, sendo a sequência descrita do seguinte modo:
A primeira foi dada à Fortuna. É com este título que ela é nomeada em
nossa arte, porque ela contém em si, como os mais próximos dela, os
alicerces da casa e todas as coisas que se referem à casa: qual limite
no número de escravos tenha sido concedido, e no número de terras
possuídas, e quão grandes construções é dado erguer, conforme
estejam de acordo as errantes estrelas do fulgente céu. Em seguida, a
partir daí vem o lugar da Milícias, onde por um só título se
compreende tudo o que concerne às armas [...]. A terceira posição
deve ser contada para os trabalhos urbanos [...]. O trabalho dos
julgamentos, a natureza o colocou no quarto posto, bem como ali pôs
a fortuna do fórum [...]. A quinta posição ao longo dos signos é
dedicada ao casamento [...]. Na sexta posição, conta-se a rica
abundância, e junto a ela está a conservação dos bens [...]. A sétima é
tida como horrível em razão dos violentos perigos, se as estrelas
errantes, localizadas ao longo dos signos, entram em desacordo. A
nobreza ocupa a oitava parte, onde fica posição da honra [...]. O nono
lugar é dono de toda a sorte dúbia dos nascidos, e dos temores
21 paternos, e de tudo, em geral, relativo ao cuidado das crianças. Deste
será vizinho aquele que compreende a conduta da vida, no qual é
sorteado o caráter, e com quais exemplos toda casa é formada [...]. A
principal parte está localizada na décima primeira parte, que governa
sempre a nossa totalidade e nossas forças, e é onde reside nossa saúde
[...]. A última atividade, que encerra, segundo a ordem, a soma total, é
a que diz respeito à conquista das coisas, lote que contém todos os
resultados de nossos votos, e garante que não sejam em vão os
esforços e habilidades que cada um apresenta em seu próprio
benefício ou no dos outros (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v.
117-180).
Antes de encerrar o livro, explicando sobre os signos trópicos, o poeta ainda se
atém na descrição do poder dos signos, isoladamente, sobre a duração da vida. No
quarto livro, Manílio introduz um novo princípio para conhecer as influências dos
signos sobre o nascimento: a divisão dos decanos, de origem egípcia. Os decanos, assim
como apresenta Marshall (2006, p. 245), “consistem de um grupo de estrelas ou uma
estrela visível dentro de um amplo cinturão equatorial que nasce em ‘determinadas
horas da noite’ durante um período de dez dias”. O nascer dos decanos durante a noite
era usado para dividir a duração da escuridão em horas e foram assumidos prontamente
pelos astrólogos romanos, que dividiram cada signo do zodíaco em três segmentos de
10o, totalizando, dessa maneira, a divisão do céu em trinta e seis decanos. Além disso,
retomando o que já foi dito no Livro I, Manílio segue na defesa da filosofia estóica ao
perceber o homem como produto da própria divindade que é o Universo em si, e que
este deveria usar a razão para melhor viver conforme a natureza.
Ainda sobre a influência dos signos no plano terrestre, o poeta enumera os graus
perniciosos destes e apresenta o mundo e sua divisão geográfica em relação à influência
que cada signo possuía sobre cada região. Ao encerrar esta explicação, inicia o quinto
livro ainda explicando sobre a influência das constelações, agora as extrazodiacais,
sobre a vida humana. Uma lacuna no livro é percebida, pois o autor se propõe a tratar
sobre os planetas, um tema que não é apresentado na obra. Aborda acerca da
paranatellonta, as estrelas que nascem e se põem ao mesmo tempo em que as seções da
eclíptica, porém ao Norte e ao Sul delas, e, assim como apresenta novamente Fernandes
(2006, p.41), apresenta “as inclinações, as profissões, os costumes determinados pelo
poder dos astros, ensejam ao poeta da mitologia, que ele aceita e desenvolve, chegando
mesmo a prolongar, [...] o mito de Perseu e Andrômeda”. Justifica o próprio Manílio:
22 Aquele que nasce no momento em que Andrômeda se eleva do mar se
mostrará cruel, ministrará castigos e guardará o penoso cárcere; aos
seus pés, verá com arrogância as mães dos desgraçados prisioneiros,
prostradas no chão, à sua soleira, e os pais a pernoitar, desejando dar o
último beijo nos filhos e assim trazer o último suspiro deles para o
fundo de seus próprios corações. Daí vem também uma forma de
sanguinário negociante da morte e do acendimento das piras, para o
qual, frequentemente de machado em punho o suplício é fonte de
lucros; ele, enfim, seria capaz de limitar à posição de espectador da
própria menina presa aos rochedos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro
V, v. 619-630).
Termina seu livro com uma metáfora do plano celeste como uma cidade,
demonstrando com isso a organicidade da qual Manílio não abre mão ao descrever o
Universo:
Também, assim como nas grandes cidades o povo se distribui, detendo
os Senadores a primeira categoria, e a ordem equestre a posição
seguinte, e se pode ver o povo seguir-se ao cavaleiro, e ao povo o vil
populacho, enfim a turba sem nome, assim também existe, no grande
espaço celeste, uma espécie de República que a natureza criou,
fundando no céu uma cidade. Estrelas há semelhantes aos próceres;
outras há próximas destas primeiras, há enfim, honras e tudo o que é
de direito dessas primeiras ordens: a mais numerosa é a do povo, que
se move no elevado cimo do céu; se a natureza lhe tivesse dado forças
em conformidade com o seu número, o éter mesmo não conseguiria
suportar as suas próprias chamas, e o mundo seria inteiramente
consumido
pelo
fogo
do
Olimpo
em
chamas
(MANÍLIO.
Astronômicas, Livro V, v. 734-746).
Mas quem foi Manílio? Percebemos alguns problemas referentes ao
entendimento de quem seria Marco Manílio e, ainda, de como podemos afirmar uma
datação precisa da escrita de sua obra. Pontuado por Marcelo Vieira Fernandes (2006,
p.10), o “nome do poeta, entretanto, é menos certo, já que a tradição dos manuscritos
hesita entre os menos prováveis Mallius e Manlius e o mais provável e ordinariamente
reconhecido Marcus Manilius”. Como percebido, utilizamos a nomenclatura defendida
por Fernandes como a mais provável para o nome do poeta.
A origem de Manílio também não nos é certa. O mesmo autor nos mostra duas
hipóteses para se referenciar a origem do escritor: a primeira nos mostra Manílio como
23 um escravo, filho do Manílio de Antioquia, trazido a Roma por volta do ano 90 a.C.; e a
segunda o trata como um estrangeiro de origem desconhecida (FERNANDES, 2006,
p.10). Assim como pontua Francisco Calero (1996, p.8-9), muito já foi discutido sobre a
pátria de Manílio. Oriental de maneira geral (já que tal saber astrológico tem sua origem
na Babilônia), grego, africano, romano ou, ao menos, itálico, são diversas as
possibilidades da origem do poeta. Nenhuma tese se sustenta devido à falta de
referências documentais, e por isto, o tratamos em nosso trabalho como itálico, já que o
próprio Manílio opõe sua língua à grega: “Assim, nossa língua segue muito próxima à
riqueza da grega” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro II, v. 889-890).
Sendo assim, apenas sabemos sobre este autor o que foi comentado por outros
autores, que realizaram referências a Manílio tardiamente. Em 998 d.C. aparece a
primeira menção do nome Manílio. O clérigo Gelbert d’Aurillac, futuro Papa Silvestre
II, escreveu a um correspondente na Itália, perguntando por uma cópia de um trabalho
que descreve como “M. Manilius de astrologia” (VOLK, 2009, p.1). Os séculos se
passaram e apenas ouviremos sobre Manílio em 1417, quando o humanista italiano
Poggio Bracciolini atende o Concílio de Constança5 e usa essa oportunidade para ir
caçar manuscritos nas bibliotecas da Germânia, França e Suíça. Entre os vários
trabalhos que Poggio recuperou estava Astronomica, e sua cópia pode ser encontrada na
Biblioteca Nacional de Madrid.
Em 1579 apareceu a primeira grande edição do poema, feita por Escalígero, e
mais tarde, no século XVIII apareceram outras edições: em 1739, pelo inglês Bentley; e
em 1786, Pingré traduz a obra para o francês. Já no século XX, temos diversas edições
do poema, sendo a mais reconhecida feita por Housman que, de acordo com Fernandes
(2006, p. 42), é uma das melhores edições em inglês. Assim como apresenta Francisco
Calero (1996, p.41), podemos afirmar que a obra maniliana não foi muito lida nos cinco
primeiros séculos de nossa era.
Porém, é no período de Otávio Augusto que focamos nosso trabalho. Na
verdade, não nos atentamos apenas para o tempo em que este governou, mas também
nos acontecimentos anteriores marcados pelos conflitos entre Otávio Augusto e Marco
Antônio, durante as denominadas Guerras Civis.
No dia 5 de novembro de 1414 começou o Concílio de Constança, convocado pelo rei alemão
Sigismundo e pelo antipapa João 23, que acabou com a cisão na Igreja e condenou, por acusação de
heresia, João Wiclef, João Hus e Jerônimo de Praga a morrerem queimados. A eleição devolveu ao
cristianismo ocidental um pontífice legítimo: Otto de Colonna, que adotou o nome Martinho 5º.
5
24 O período citado foi de grande conturbação na organização e manutenção da
República romana. Roma vivia um período de desestabilidade interna agravada pela
disputa constante entre grupos de elevadas camadas. Otávio e Marco Antônio iniciam
um confronto que mexe com a estrutura política romana, modificando o espaço sóciopolítico da República para o que nós, historiadores, chamamos de Império. Temos que
salientar que tal mudança não foi sentida e confirmada pelos próprios romanos. Mesmo
após a vitória, Otávio não inaugurou outra ordem, ou se proclamou líder soberano. O
que ele fez foi conquistar a Pax Romana – não absoluta – e devolver o poder ao Senado
e povo de Roma, sendo assim reconhecido como o grande restaurador da República. A
partir disto, Manílio percebe a necessidade de escrever sobre uma organização universal
capaz de interligar todos os eventos através de uma teia simpática universal. Ou seja,
entendemos que a utilização da filosofia estóica na elaboração do seu trabalho não foi
despropositada, já que atende à necessidade de organizar um espaço físico e político já
tão abalado pelas constantes Guerras Civis.
1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio
Temos que lembrar de que tal período – da dinastia Júlio-Claudiana – foi
marcado pela forte presença deste saber astrológico. Este foi considerado um assunto
demonstrativo de muita eloquência, como no caso apresentado pela obra Satyricon, de
Petrônio, quando Trimalquião esbanja conhecimento ao tentar falar sobre astrologia em
seu banquete (Petrônio. Satyricon, A ceia de Trimalquião, XXXV). Mesmo antes do
Principado de Nero, já com Otávio, a astrologia foi muito utilizada até mesmo pelos
grandes líderes romanos. Suetônio, em sua obra que narra a vida dos primeiros
Imperadores Romanos (com exceção de César que assim não é classificado, pois
ocupou o cargo de Ditador), intitulada A Vida dos Doze Césares, mostra o momento em
que Otávio, acompanhado por Agripa, visita o astrólogo Teógenes em Apolônia:
Em Apolônia, Augusto e Agripa visitaram juntos a casa de Teógenes,
o astrólogo, e subiram as escadas até o seu observatório; ambos
desejavam consultá-lo a respeito de suas futuras carreiras. Agripa foi o
primeiro e ouviu a profecia de sua quase incrivelmente boa sorte,
enquanto Augusto, esperando uma resposta bem menos encorajadora,
sentiu receio em revelar o momento do seu nascimento. Quando,
enfim, após muita hesitação, suplicou murmurando a informação pela
25 qual ambos o pressionavam, Teógenes levantou-se e voou até seus
pés; e isto deu a Augusto uma fé tão implícita em seu destino que até
se aventurou em publicar seu horóscopo, e lançou uma moeda de prata
com o Capricórnio, o signo sob o qual nascera (SUETÔNIO. A Vida
de Otávio César Augusto, A Vida dos doze Césares, XCV).
Otávio divulga seu horóscopo adotando o signo de Capricórnio como um
emblema pessoal6. Porém, ele não foi o único Imperador que se utilizou de tal artifício
como propaganda. Assim como destaca Peter Marshall, Septímio Severo também foi
um entusiasta desta utilização, pois:
[...] lançou mão da astrologia para legitimar sua regência. Teve seu
horóscopo traçado no teto das salas do palácio, mas foi cuidadoso ao
fazer com que seu ascendente fosse colocado em um local diferente
em cada sala para que ninguém pudesse fazer seus próprios cálculos,
particularmente sobre o momento da sua morte (MARSHALL, 2004,
p.291).
A historiadora Ana Teresa M. Gonçalves nos mostra em seu trabalho o quanto a
astrologia era importante para este Imperador, que para estabelecer alianças consultava
as estrelas:
Sabemos também que Septímio foi um governante bastante ligado aos
astros, aos poderes mágicos, aos horóscopos, ou seja, a tudo aquilo
que poderia lhe dar vistas de como melhor governar e indicações de
que ele era o Imperador determinado e protegido pelas divindades.
Segundo a História Augusta, Severo demonstrava acreditar bastante
na ação de forças sobrenaturais no desenrolar da vida humana. Ele
teria se casado com Júlia Domna porque ela tinha um horóscopo que
indicava que seria a esposa de um Imperador (HA, Vida de Severo,
III.2) e foi após interpretar o horóscopo de Geta que ele resolveu
colocá-lo na linha sucessória junto com Caracala, dando-lhe o nome
de Antonino e os títulos sucessivos de César e Augusto (HA, Vida de
Antonino Geta, II.1) (GONÇALVES, 2007, p.1).
Percebemos, com isso, uma dualidade apresentada a partir daqueles que
detinham tal saber. Mesmo que professassem benesses às vidas dos que os procuravam,
os astrólogos também detinham o conhecimento dos infortúnios e até mesmo da morte
que assolaria a pessoa que os procurou. Por isso, a relação com tais conhecedores dos
Este assunto está melhor explanado no terceiro capítulo ao falarmos sobre o contexto histórico narrado
por Manílio.
6
26 segredos do Universo não foi sempre estável. Em alguns momentos, inclusive durante o
Principado do próprio Otávio, os astrólogos foram banidos de Roma, pois foram
acusados de charlatanismo e de ameaçarem a paz instaurada na capital após as Guerras
Civis. Pierre Grimal nos mostra que Agripa expulsou os astrólogos em 33 a.C.:
Otávio, fiel à sua política inicial, achava ser o único intérprete da
vontade dos deuses e desconfiava do perigo que para ele representava
a presença, em Roma, de uma infinidade de adivinhos cujas predições
poderiam construir uma arma preciosa nas mãos dos opositores
(GRIMAL, 1992, p.37).
Tal decisão foi empreendida mesmo que alguns anos antes ambos tivessem se
utilizado do saber destes “adivinhos” para comprovar a apoteose de César a partir do
sinal dado por um cometa, e para cunhar moedas com um novo tema que abordasse a
nova era na qual Roma estava entrando, a Idade do Ouro (GRIMAL, 1992, p.30). Ou
seja, a relação com tais estudiosos do saber astrológico foi conturbada, pois em algumas
circunstâncias atendiam aos interesses dos Imperadores e em outras não, sendo estas
instâncias dignas de punição e negação de tal prática.
Temos que entender que práticas de adivinhação ou interpretação dos presságios
eram realizadas desde a República Romana. Os haruspisces7 eram devotados em
interpretar os presságios e sua atividade era aceita pelo Estado, e os Senadores
formavam o colégio dos augúrios8 que buscavam também presságios, só que nos
pássaros, e guardavam os livros da profecia sibilina. A astrologia emergiu com maior
força no início do Principado, mas temos que entender que nem todos ficaram
impressionados com este novo interesse. Como nos mostra Marshall:
Plínio, o Velho, lamentou: ‘A mais fraudulenta das artes permeou o
mundo inteiro por várias eras [...] tendo sucesso (com a medicina)
adicionando a astrologia porque não existe qualquer um que não tenha
interesse em saber sobre o seu destino ou que não acredite que o mais
verdadeiro relato dele seja obtido por meio da observação das estrelas’
(MARSHALL, 2004, p.291).
Assim como aponta Volk (2009, p.7), a vida intelectual no início do Principado
foi caracterizada pela grande variedade de interesses, conhecimentos, teorias e modelos
Corresponde à designação dada a um tipo de sacerdote da Roma antiga que praticava a adivinhação, ou
a divinação, analisando as entranhas dos animais mortos em sacrifícios. 8 Áugures romanos foram eleitos como escribas e formaram um collegium de sacerdotes que partilham os
deveres e responsabilidades da posição. Sob o pretexto que os auspícios não eram favoráveis, um áugure
poderia impedir até uma execução publica.
7
27 de divulgação de inúmeros saberes. Dessa maneira, a variedade de conhecimentos que
formam o tema astrologia, e o ecletismo que possuía, apresenta-nos a possibilidade do
interesse latente no aprendizado de tal saber. Abarca em sua composição não somente o
estudo das estrelas por si só, mas a matemática, a geografia, a medicina, entre outros
saberes. Além disso, a cultura romana é conhecida por possuir, dentro de certos limites
que não desrespeitassem o mos maiorum, um caráter expansivo, quer dizer, de
incorporar em seus rituais e crenças saberes advindos de outras regiões. Assim como
apresenta Richard Hingley, a heterogeneidade é uma das causas de manutenção do
Império, mesmo que tal fosse controlada. Não havia uma “mudança de identidade” e
sim uma adaptação. Sendo assim, a proposta elencada por este autor mostra que as
modificações culturais eram frutos também do diálogo, e não somente da força. O
processo que acontecia entre as culturas que se chocavam era de negociação e interação
social na formação da identidade romana:
A cultura romana, na época de Augusto, agia como uma poderosa
cultura de incorporação imperial, mas como Emma Dench
recentemente argumentou, representava também, a um só e mesmo
tempo, uma “cultura de exclusão social por demais carregada
ideologicamente e cada vez mais internacional” (HINGLEY, 2010,
p.81-82).
Tal interação e troca pode ser averiguada a partir da própria astrologia, já que
este conhecimento não era originário de Roma, e sim, foi “transportado” e transformado
desde sua origem para atender os interesses de quem iria utilizá-lo, sendo o nosso caso a
maneira feita por Manílio.
1.2.1. A astrologia: permanências, transformações e sua utilização
O saber astrológico surge na Mesopotâmia, e lá “eles usavam seus
conhecimentos astronômicos para estabelecer calendários e determinar datas de festivais
religiosos” (LUCK, 1985, p.309). O conjunto do conhecimento astronômico na
Mesopotâmia estava contido em uma compilação de duas tábuas conhecidas como
mul.Apin, que foram encontradas na biblioteca de Assurbanipal, em Nínive. De acordo
com Peter Marshall (2006, p.214), tal nome significa “Estrela do Arado” e faz
referência à constelação do Triângulo, que fica entre Áries e Andrômeda. A primeira
cópia encontrada deste trabalho data de 687 a.C., e é considerado o primeiro manual
28 sobre o conhecimento astrológico conhecido. Iniciou-se neste mesmo período a
manutenção de diários com informações acerca dos eventos celestes e políticos servindo
aos interesses dos reis babilônicos que se utilizavam de tais informações para proclamar
festas e guerras. Foi com a invasão persa, em 539 a.C., que se iniciou a confecção dos
mapas astrais a partir da elaboração das constelações zodiacais.
Com a dominação assíria, tal conhecimento foi expandido e levado para outros
territórios e povos. No Egito, este conhecimento foi bem recebido e agregado aos
rituais, ensinamentos e cultura. Thoth, deus ligado aos viajantes e ao conhecimento,
identificado pelos gregos como Hermes e pelos romanos como Mercúrio9, tornou-se o
pai fundador da astrologia. Assim como aponta Marshall:
Diz-se que Thoth nasceu do deus Rá. Uma passagem antiga declara:
‘Eu sou Thoth, filho mais velho de Rá [...]. Desci para a Terra com os
segredos daquilo que pertence ao horizonte’. Thoth pronunciou as
palavras ditas por Rá para criar o mundo e foi o criador e regulador
das leis da harmonia cósmica. Observou os Céus e a estabilidade do
universo dependeu do seu conhecimento sobre matemática celeste
(MARSHALL, 2006, p.239).
O contato entre os egípcios e os gregos fez com que o saber astrológico viajasse
para a parte Ocidental do mundo conhecido, chegando até Roma. A própria palavra
astrologia origina-se do grego, assim como nos mostra Georg Luck:
A palavra grega mathesis “aprendendo” pode dizer especificamente
astrologia, enquanto mathematikos não quer dizer matemático e sim
astrólogo. No mundo antigo, como hoje, astrologia é baseada em
matemática e astronomia (LUCK, 1985, p.309).
Em Roma, este conhecimento foi aceito quando atendia aos interesses da
liderança vigente e quando não feria a manutenção dos costumes e da tradição. Júlio
César modificou o calendário romano tendo como base o produzido pelos egípcios.
Mesmo que o conhecimento astrológico tenha surgido na Babilônia, atribui-se ao Egito
Os estrangeiros, logo que seus territórios eram anexados ao Império, incorporavam-se através da
interpretatio de seus costumes, e passavam a pertencer àquela realidade romana, mesmo que modificada.
As prerrogativas históricas para a aceitação ou proibição dos cultos estrangeiros em Roma baseavam-se
na supracitada interpretatio, tradição de reinterpretação das religiosidades estrangeiras, praticada desde a
República. Os romanos desenvolveram muito cedo esse costume de agregar divindades, mitos e cultos de
seus vizinhos mediterrânicos a partir de uma resignificação que “traduzisse” o simbolismo original para a
cultura latina, substituindo valores estrangeiros por valores romanos. Esta não era uma prática incomum,
tendo sido largamente utilizada também pelos gregos. Tanto a interpretatio graeca quanto a interpretatio
latina constituíam a premissa para uma nova religiosidade ser aceita na cidade de Roma.
9
29 a elaboração deste saber da maneira como foi apresentada aos demais povos da época.
A astrologia, assim como afirma Rupert Gleadow, “como uma técnica eficaz, chegou à
Grécia na segunda metade do século IV a.C.” (GLEADOW, 1999, p.7). Como apresenta
Marshall:
A obra Teogonia, do poeta Hesíodo, que data do século VIII a.C.,
contém versões gregas dos mitos babilônicos, e os gregos começaram
a traduzir os nomes babilônicos das estrelas já no século VI a.C. Após
as invasões da Grécia pelos persas, no primeiro quarto do século V, os
contatos culturais entre os dois povos continuaram, filtrando as idéias
indianas babilônicas e egípcias [...]. Estas novas influências caíram em
solo fértil. Os gregos há muito estavam interessados em presságios
derivados de eventos celestes; seu primeiro grande escritor, Homero,
cerca de 800 a.C., forneceu vários exemplos em sua Odisséia e Ilíada
[...]. Várias crenças astrológicas ocidentais, especialmente a respeito
da natureza do cosmo podem ser investigadas até chegar aos filósofos
gregos. No passado houve uma opinião eurocêntrica preconcebida de
que a astrologia ocidental tinha se originado na Grécia. Na verdade, o
historiador da ciência O. Neugebauer afirmou que a “a principal
estrutura da teoria astrológica é sem duvida helênica”, enquanto o
estudioso clássico Jim Tester declarou que a astrologia era “uma
criação bem recente e principalmente grega”. Contudo, os próprios
gregos agradeceram pelas fontes de informação anteriores da Ásia
Menor, Oriente Médio e Norte da África (MARSHAL, 2006, p.262).
A partir do contato entre os romanos e os diversos povos que dominaram,
incluindo egípcios e gregos, a astrologia chegou a Roma como um saber bem atrativo.
A elite romana se interessou em aprender acerca de tal conhecimento a partir do
entendimento que este não seria somente um processo de adivinhação despropositado,
sem regras e/ou modelos a serem seguidos. A astrologia possuía, em sua elaboração,
dados científicos que hoje separamos da astronomia. Temos que nos atentar ao fato de
que a astrologia não se desvinculava da astronomia para o homem antigo,
especificamente para Manílio. Em nossos dias, temos a tendência a acreditar que a
astrologia seria algo místico e ilusório – comparado ao charlatanismo – e que a
astronomia seria o estudo do Universo sistematizado. Porém, na Antiguidade, não
percebemos tal separação. Assim como pontua Georg Luck, em seu trabalho intitulado
Arcana Mundi: Magic and the Occult in the Greek and Roman Worlds, a astrologia é
30 “um dos mais antigos saberes, é sem dúvida mais antiga que a astronomia, mas não se
pode separar as duas inteiramente” (LUCK, 1985, p. 309). O autor chega a afirmar que:
[...] as palavras latinas astrologia e astronomia designam o que
chamamos hoje de astrologia [...]. No mundo antigo, assim como hoje,
astrologia está baseada em matemática e astronomia (LUCK, 1985,
p.309).
Por ser esse saber tão múltiplo, o detentor do conhecimento astrológico se
apresentava para os demais como um homem de grande inteligência. Assim como
pontua Luck, “a astrologia era primeiramente um saber e/ou uma disciplina baseada na
matemática e muito complexa nas regras de interpretação” (LUCK, 1985, p.313), e, por
isso, era prestigiada entre grupos de intelectuais. Entender o Universo era algo
complexo, e a tentativa de fazê-lo somente poderia ser empreendida por aqueles com
uma capacidade intelectual elevada, ou seja, a poucos merecedores. Mais uma vez
suscitamos o exemplo de Trimalquião, personagem da obra de Petrônio que escreveu no
período do Principado de Nero. O personagem, um liberto enriquecido, se mostrou
como uma pessoa muito culta e para enfatizar tal posição começa a falar sobre
astrologia:
Eu realmente, vejo profundamente em todas as coisas, e, graças aos
seus ensinamentos, nada há que eu não saiba explicar. Este céu, que
oferece moradia a doze divindades, toma outros tantos diferentes
aspectos, e é, antes de tudo, Áries. Por isso, os que nascem sob este
signo possuem rebanhos numerosos e lã em quantidade; além disso,
são teimosos, descarados e, quando investem contra alguém, agridem
de verdade. Áries preside ao nascimento de grande número de
pedantes e tagarelas. O fino humorismo do astrólogo foi vivamente
aplaudido (PETRÔNIO. Satyricon, A Ceia de Trimalquião, XXXV).
O personagem continua sua explanação sobre os signos e suas principais
características. Fala dos nascidos sob o signo de Touro como verdadeiros vilões,
leoninos como glutões e piscianos dotados para atividades na cozinha. O que vale
salientar nesta passagem é a busca do personagem de se legitimar perante seus
convidados como um homem de grande inteligência. Sendo assim, a astrologia como
31 um saber tão plural seria a melhor saída, já que o conhecimento astrológico não era
considerado apenas superstição10, e sim abarcava o plano científico e prático.
Temos que entender também o tom satírico que permeia a escrita e leitura da
obra de Petrônio. Enquadrada no gênero da sátira latina11, o autor se utiliza da ironia
para compor seus personagens e, especificamente, a cena do banquete de Trimalquião.
A partir desta ironia, temos que considerar também que a utilização do conhecimento
astrológico poderia representar uma desvalorização de tal saber, já que fora utilizado
por um liberto enriquecido a fim de se encaixar em um grupo do qual não fazia parte.
Mesmo que este tenha sido o objetivo do autor, percebemos que a astrologia era um
conhecimento inserido no imaginário dos romanos desta época, seja pela fascinação que
proporcionava ou pela não aceitação.
Um sentimento de descrédito em relação aos processos de adivinhação do
passado, já no primeiro século de nossa era, crescia. Há então uma busca por outras
maneiras de se compreender as relações dos homens com o meio natural, em específico
com os astros, surgindo assim a astrologia como um saber exato e “fundada sobre uma
experiência de duração quase infinita” (CUMONT, 1987, p.143). Este processo novo de
“adivinhação” advindo da Ásia, no princípio, havia conquistado apenas a aristocracia
romana, mas, com o tempo, foi se popularizando. A astrologia, de acordo com Franz
Cumont (1987, p.147), não se baseava apenas na ciência, mas também nas artes e, por
isso, a denominamos como uma techné e não como uma ciência da maneira que
entendemos tal termo atualmente.
Além disso, falarmos como se apenas existisse um tipo de astrologia é
generalizante. Temos que compreender que este saber possuía divisões quanto à sua
utilização e método de como era utilizado. Discernimos aqui o que entendemos como
Devemos neste ponto realizar uma diferenciação entre religio e superstitio: “O conceito de religio (não
exatamente traduzível pelo nosso termo moderno “religião”) referia-se às honras devidas e sancionadas
pelo Estado feitas aos deuses. Em contraste, o que os romanos chamavam de superstitio (não exatamente
traduzível como superstição) era conceitualmente oposto à religio e referia-se a honras e rituais
excessivos ou impróprios feitos aos deuses” (COLLINS, p.215, 2009).
11 “A sátira, efetivamente, surge da observação dos vícios e das distorções sociais e morais. Ninguém
melhor do que o poeta Juvenal soube apontar a causa motivadora do escritor satírico: a indignatio, isto é,
a revolta contra o vilipendio dos principios sagrados do bem, da justiça, do amor, da pátria, da religião, da
família. Numa gama variada de sentimentos, que vai da violência da invectiva até ao fino humorismo, o
autor satírico serve-se do ridículo para a finalidade catártica da correção dos costumes. A sátira, portanto,
quer pela sua fonte psicológica (a indignação) quer pelo seu meio expressivo (o ridículo) quer pela sua
finalidade (a moralização), não pode ser imitação livresca, porque é a imitação da vida contemporânea ao
poeta, o retrato de uma sociedade colhida em sua flagrante atualidade, a descrição de vícios e defeitos
peculiares aos homens daquele tempo e daquele lugar” (D’ONÓFRIO, 1968, p.16).
10
32 astrologia a partir da obra em questão. De acordo com Katharina Volk, em seu livro
intitulado Manilius and his intellectual background, a astrologia no tempo de Manílio
poderia ser entendida como o estudo dos movimentos celestes e a relação destes com a
vida humana, sendo:
[...] uma forma de adivinhação [...] e implica na crença de que a
observação de eventos no céu pode fornecer insights sobre – e
permitir a predestinação de – eventos na Terra (VOLK, 2009, p.59).
Percebemos que as estrelas tinham igualmente informações sobre o futuro e o
passado, possuindo, portanto, um papel guia na vida do homem. Dessa maneira, a
autora inicia a definição das divisões da astrologia, nos mostrando, primeiramente, a
separação em astrologia “soft” ou “hard”. De acordo com A.A. Long (1982, apud:
VOLK, 2009, p 60), a astrologia “soft” tem as estrelas como sinais de circunstâncias
específicas, enquanto a “hard” (o oposto) mostra as estrelas como sinalizadoras dos
acontecimentos terrenos, sendo necessária a existência de um cosmos ordenado. As
estrelas possuem regras secretas e:
Estas estrelas que governam com leis silenciosas [...] são os meios
pelos quais o deus – o governante do universo, que em alguns
momentos é identificado como o próprio universo – governa a vida
humana (VOLK, 2009, p.61).
Na própria obra de Manílio, percebemos a importância das estrelas para o
entendimento da vida humana, que é regida pelo Destino:
O destino rege o mundo, tudo se mantém sob uma lei constante, e o
tempo, na sua longa sucessão, está marcado por acontecimentos
certos. Ao nascer, estamos destinados a morrer [...] (MANÍLIO.
Astronômicas, Livro IV, v.17-20).
Sendo assim, as estrelas não são importantes apenas para Manílio, mas para todo
aquele que deseja conhecer “os segredos do Universo” e realizar estudos astrológicos.
Porém, a obra maniliana não traz uma preocupação com a física das causas celestes, e
sim um “questionamento epistemológico” (VOLK, 2009, p.65) de como podemos
entender o comportamento das estrelas e a implicação disto na vida humana.
Temos que distinguir, neste ponto também, duas outras teorias astrológicas: a
astrologia mundane e a individual. A primeira estuda como os corpos celestes afetam o
mundo inteiro, enquanto a segunda se baseia nas individualidades de cada região e na
33 relação destas com os astros. Manílio utiliza-se da astrologia individual para escrever
seu manual, se importando com as diferentes expressões e relações que cada corpo
celeste tem em determinadas regiões. Assim como apresentado por Luck, e nos
baseando na obra maniliana, o astrólogo seria uma espécie de “terapeuta”, pois
elaboraria em sua explicação uma maneira de levar o seu cliente, no caso o aluno, a se
entender perante o vasto Universo, dando-lhe objetivos para viver. Ou seja, dessa
forma, a astrologia seria a maneira pela qual o homem se conectaria novamente com a
natureza e viveria conforme sua vontade, já que seria esta a guardadora dos segredos
sobre a humanidade como um todo e sua relação com os demais corpos celestes
(LUCK, 1985, p.337).
Dentro desta astrologia individual, percebemos a divisão de mais dois modelos:
o katarchic e o genethlialogical. A astrologia katarchic se baseia na interpretação dos
astros para averiguar a ocorrência de fatos particulares em tempos determinados. Já a
astrologia genethlialogical seria aquela em que “a maioria das pessoas está
familiarizada hoje em dia, e se baseia em determinar a posição das estrelas no preciso
momento de nascimento” (VOLK, 2009, p.67), importante para a confecção do
horóscopo. Manílio utiliza este segundo modelo, pois seu posicionamento se mantém
determinante, buscando as peculiaridades, ou seja, as diferentes formas e relações que
os astros mantêm com os seres humanos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v.892894).
O que Manílio salienta em sua obra é a ideia de que mesmo sendo o ser humano
parte de um todo maior que sua existência, ele deveria exercer seu papel individual,
buscando sempre viver em harmonia com o Universo. Sendo assim, quis mostrar para
seus leitores/alunos12 que mesmo sendo uma pequena parte de uma elaboração
gigantesca, seu papel era importante para a manutenção e a perpetuação da organização
harmônica entre Céu e Terra. O convite feito não se limitaria em apenas entender o
Universo estudado, mas em fazer parte dele. Cabe a nós, neste momento, entendermos a
possibilidade apresentada por Manílio, e que para o romano parece-nos ter sido natural,
de confeccionar um trabalho que se encaixe em dois grupos que para nós, em nossa
contemporaneidade, seriam distintos: a literatura e a escrita científica.
12 Explicação a respeito da identificação do leitor da obra maniliana como um possível aluno – página 37
34 1.3. A beleza celeste ensinável: entre o lúdico e o científico
O processo de escrita que Manílio utilizou foi apresentado pelo autor como uma
tarefa complicada. Escrever de uma maneira bela ao mesmo tempo em que explica
sobre as formas, distâncias e origens do universo, foi, pelo menos na visão manialiana,
um grande desafio. Assim como o próprio afirma:
É fácil dar a vela com os ventos favoráveis, e revolver o solo fecundo
com técnicas variadas, e ao ouro e ao marfim acrescentar ornato,
quando a rude matéria mesma já tem brilho. Escrever poemas sobre
assuntos sedutores é comum, bem como compor uma obra simples.
Quanto a mim, porém, tenho de lutar com números, desconhecidos
nomes de coisas e frações de tempo, com as diferentes circunstâncias
e movimentos do céu, e a ascensão das constelações, e com as partes
nas suas próprias partes. Se conhecer essas coisas já é muito, que será
então de exprimi-las? E numa poesia adequada a elas? E de submetêlas a um metro fixo? Aproxima-te, ó quem quer que sejas que possas
aplicar ouvido e olhos à minha empresa, e ouve as palavras
verdadeiras. Presta atenção, e não procures doces carmes: a matéria
mesma recusa o ornato, satisfeita com ser ensinada. E, se alguns
nomes forem referidos em língua estrangeira, culpa será do tema, não
do vate: nem tudo se pode verter, designando-se melhor em sua
própria língua (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 32-52).
A empreitada que Manílio se dispõe a realizar é a de apresentar um trabalho
sobre o conhecimento celeste, ou seja, a organização dos planetas, das estrelas e sua
influência disso no plano terrestre, ao mesmo tempo em que tenta construir sua obra
digna da beleza sobre a qual narra. Esta intenção dupla, que a nós pode parecer estranha,
para Manílio não foi. Precisão, ensinamento e beleza andam juntos na elaboração deste
trabalho, fazendo de Manílio ao mesmo tempo um poeta e um professor do saber
astrológico13. Sua missão seria não somente transmitir tal conhecimento a partir de um
manual rígido e voltado somente para o ensino, mas também classificá-lo como um bom
escritor. Podemos entender tal necessidade a partir do meio em que Manílio vivia, pois
o florescimento literário do período era notável, sendo inclusive o próprio Princeps
Estas características apresentadas não eram estranhas para o homem romano que tinha como base de
sua educação a retórica, ou seja, a “arte do bem falar”. A retórica é uma ciência (no sentido de um estudo
estruturado) e uma arte (no sentido de uma prática assente numa experiência, com uma técnica). São
cinco os pontos aos quais o produtor de um discurso deve se atentar: invenção, organização do conteúdo –
disposição, elocução, memorização e a ação de declamar o discurso.
13
35 financiador daqueles que se dispusessem a narrar seus bem feitos e os que o cercavam.
Sendo assim, o autor pode ter se inserido em um ambiente no qual apenas as obras de
fino trato ganhariam o destaque devido. Seu tema era importante demais para ser
ignorado (de acordo com o próprio autor – livro IV) e, por isso, pensamos que Manílio
possa ter optado por essa abordagem para que pudesse, dessa maneira, competir com
outros escritores que, assim como ele, se disponibilizavam a escrever sobre o mundo
que os cercava, seja a maneira utilizada qual fosse. Temos que lembrar que é um
período no qual surgiram grandes escritores, como Vitrúvio e seu tratado sobre a
arquitetura, Veléio Patérculo e sua História Romana, Ovídio e seus polêmicos textos
sobre as mulheres e a “arte de amar”, e Virgílio, responsável pela Eneida. Manílio se
encontrava imerso em um contexto no qual a escrita atingia uma supervalorização, pois
esta foi considerada mais um meio, entre vários, de comunicação e propaganda14.
Mesmo em uma sociedade de maioria não letrada, a literatura desempenhava um papel
importantíssimo, pois alcançava a elite romana e a persuadia. A comunicação entre o
Imperador e os outros cidadãos romanos, fossem eles próximos ou distantes – como é o
caso das províncias – era de extrema importância. Assim como pontua Richard Miles
(2005, p.29), a comunicação deve ser entendida como um processo que se apresenta a
partir de um ou mais níveis. Não se pode dizer que a comunicação é simplesmente uma
interação entre duas pessoas ou mais, pois pode ser feita de maneiras verbais ou não,
influenciando na criação de outras crenças e comportamentos.
Temos que atentar para o poder que a palavra escrita possuía: grande parte de
nossa interpretação sobre o passado foi feita a partir da escrita. Não dispensamos aqui a
utilidade, e a necessidade, dos documentos materiais como uma maneira de analisarmos
o passado, porém percebemos que a escrita foi, e ainda é, uma poderosa aliada no
trabalho do historiador. O falado sobreviveu graças à escrita. Porém, não podemos
definir uma sociedade pelos letrados. A “alfabetização” não é uma ferramenta universal
da cultura, mas é inseparável da educação. No Império, a palavra escrita desempenhava
um papel – quase – central: na passagem das leis, no comando dos exércitos, etc. O
Imperador tinha contato com seus subordinados, muitas vezes, por correspondência
(MILES, 2005, p.37). Sem a palavra escrita seria impossível a manutenção do Império.
“[...] o simples, mas importante, ato de organizar, selecionar e divulgar informações, usando de
persuasão, síntese e de imagens que estão na memória dos receptores das mensagens” (GONÇALVES.
2002: 74).
14
36 O conhecimento era poder e o Império romano soube articular bem as informações do
governante aos governados (e o inverso também): datas importantes, grandes eventos de
construção e astrológicos eram registrados (MILES, 2005, p.38).
Entretanto, a tarefa de Manílio não foi nada fácil. Como o próprio autor nos
mostra durante o livro IV, escrever sobre tal conhecimento foi difícil, pois a matéria em
si não demandava ornato, mesmo que sua apresentação merecesse ser igualmente bela:
Mas quem seria capaz de referir, sob lei da poesia, tantos números
tantas vezes, tantas somas dizer, e ao longo de assuntos iguais variar o
estilo da linguagem? Enquanto cantamos o que é verdadeiro, escrever
palavras duras não é, quando nelas tocamos, razão para enfado; mas
lhe faltará graça e no vazio cai o esforço que o ouvido despreza. Mas
por mim, que na poesia apresento as leis do destino e os sagrados
movimentos do céu, deve ser falado conforme tais leis; e não para que
se imagine, mas para que se mostre, é que a figura permite.
(MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v. 511-521)
São inúmeras as críticas feitas à obra maniliana quanto à sua caracterização
como poema. Autores como Jean Bayet (1996), Ernst Bickel (1982) e Gian Biagio
Conte (1994) mostram esta obra como digna de receber tal característica, pois apontam
Manílio como “um poeta de metáforas precisas, de expressões bem acabadas, de
potência visual e pensamento forte, de tal modo que o aproximam não só de Lucrécio,
mas também de Ovídio e Virgílio” (FERNANDES, 2006, p. 12). Conte chega a afirmar
que a obra Astronômicas abarcaria em uma mesma escrita certo refinamento que,
porém, foi encoberto pela obscuridade com que trata a matéria, tornando Manílio “um
dos poetas mais difíceis da literatura latina” (CONTE, 1994, apud: FERNANDES,
2006, p. 12).
Assim como Conte, José Escalígero (1579), primeiro grande editor da obra
maniliana, também mostra as qualidades desta, porém sem ignorar seus defeitos quanto
à sua proposta como poema:
Sobre Manílio ainda não decidi se era preferível que fosse lido
publicamente nas escolas, ou se lamentável que até agora tenha disso
desprezado, poeta engenhosíssimo, escritor elegantíssimo, que foi
capaz de ornar assuntos obscuros com tão luminosa expressão, e uma
matéria extremamente fatigante com um estilo agradável, parelho a
Ovídio em suavidade, superior em grandeza; só perde num ponto: não
é capaz de largar a mão das contas e (coisa que, tão sem razão quanto
37 injustamente, se objetou a Ovídio algumas vezes) não sabe parar, no
que erra não pelo juízo, mas pela fertilidade, bem como pela
complacência para com o estilo; nesse ponto, não juízo, mas senso
Quintiliano adverte ter também faltado a Ovídio. Existe ainda um
outro vício não leve em nosso poeta, que é ser desmedido na repetição
de palavras, quando poderia ou usá-las com mais parcimônia, ou
empregar outras em seu lugar. Assim, a ouvidos críticos incomodam
os sidera15, caelum16, mundus17, per templa18 tantas e tantas vezes
reprisados, e outros não poucos, que três, quatro vezes enfia em três,
quatro versos contínuos. Não sendo esse um vício mediano num
escritor elegante, desse mal estão isentos os principais poetas, Virgílio
e Ovídio. Feita essa única exceção, nada faltaria nesse autor para a
perfeição duma obra acabada. Acima de tudo, todos os seus proêmios
e parêcbases19 não estão postos ao acaso. Nada mais divino do que
eles, mais copioso, mais grave e mais agradável pode ser dito
(ESCALÍGERO, 1579, apud: FERNANDES, 2006, p.13-14)
Assim como aponta Francisco Calero20, devido aos problemas supracitados,
todos os editores concordam na dificuldade de entender e traduzir esta obra (CALERO,
1996, p.44). De fato, para tentar compreender este poema é necessário “saber coisas
demais” (PICHON, 1909, p.523), especialmente quando somos separados do
documento por um espaço temporal de dois milênios, sendo este não muito lido ou
retido nas mãos de poucos filólogos e especialistas. Sendo assim, Marcelo V. Fernandes
bem nos mostra que a dificuldade no entendimento de tal obra não se dá somente pelo
tema ou pela repetição de termos, mas por impor ao leitor contemporâneo um esforço
que não está habituado, “que é religar a ciência e poesia, dois termos de uma relação
mais bem compreendida pelos antigos, ao que parece, do que pelo leitor atual”
(FERNANDES, 2006, p.14).
Manílio, durante sua obra, tentou mostrar sua eloquência a partir de como narra
sobre o saber astrológico, o que nos mostra, dessa maneira, a importância que este dava
para a forma na qual seu escrito seria apresentado. Por exemplo, durante sua narrativa, o
Estrelas.
Céu.
17 Mundo.
18 Pelo tempo.
19 O mesmo que digressões, ou seja, um desvio de rumo e/ou assunto.
20 Na introdução que fez à sua tradução da obra Astronômicas para o espanhol, em parceria com María
José Echarte.
15
16
38 autor se utiliza da mitologia para mostrar, com isso, certo grau de elocução, dando a
beleza necessária para seu texto. Assim como aponta Fernandes:
A poesia redefine, então, o espaço reservado aos antigos mitos, que
agora são vistos da perspectiva de quem não acredita neles; funcionam
como ilustração da poesia douta, numa espécie de jogo que o poeta
pratica como que por necessidade do gênero poético. No caso
particular de Manílio, o jogo de erudição aparece, por exemplo, a cada
vez que o poeta tem a oportunidade de inserir um mito ou uma breve
alusão a par de suas explicações “cientificas” ou técnicas, e nesse
ponto é que os Phaenomena21 parecem lhe servir ainda mais como
modelo (FERNANDES, 2006, p.22).
A mitologia foi utilizada a fim de registrar a capacidade de Manílio em cumprir
com seu propósito de escrever sobre o universo da maneira mais bela possível. Temos
que entender que o mito foi uma importante ferramenta na propagação de ideais ou
conhecimentos na Antiguidade. Em uma análise superficial acerca do que seja o mito,
sabemos que, de acordo com Walter Burkert (1991, p. 20), este se mostra como uma
“forma de relato tradicional estruturado numa seqüência de ações executadas por
‘agentes’ antropomórficos, sendo a modalidade mais remota e difundida de ‘falar dos
deuses” no mundo antigo, com suas raízes na tradição oral’. Observamos nesta
colocação, a importância da oralidade para o “homem antigo”. Os relatos orais serviam
como objetos indiscutíveis para a formação e compreensão da sociedade. O mito tornase fruto destes relatos, designando “uma história sagrada” (ELIADE, 2000, p.11) que
realiza uma narrativa iniciada em tempos primordiais, manifestando uma realidade que
passa a existir. Devemos entender que o mito apresentado formulou-se de uma
constante variável, ou seja, não houve uma formulação chave que desencadeou a
aparição do mito e sim suscetíveis modificações ocorridas pela oralidade, comportandose então como a suma dessas variantes. A origem dos mitos se dá pelos relatos orais que
unidos formam um corpo, ou seja, o próprio mito.
O mito sobrevive apenas se continuar a ser contado. Enquanto o relato poético
não se modifica com o passar do tempo, o mito se transforma de acordo com os autores
e o tempo, possibilitando a compreensão da “realidade” vivida pelo grupo que ouve e
Obra de Arato na qual, de acordo com estudiosos da obra Astronômicas, Manílio se baseou. “Arato (c.
270 a.C.), natural de Solos, na Sicília, autor dos Phaenomena - Fenômenos), poema didático em
hexâmetros que contém a descrição das constelações e dos fenômenos celestes e também uma segunda
parte que dá conta dos signos meteorológicos” (FERNANDES, 2006, p. 22).
21
39 que conta essa nova formulação mítica. Há diferentes tipos de relatos, de acordo com
Jean Pierre Vernant (2000, p.15), que devem ser entendidos para compreender qual o
papel do mito nas sociedades antigas. O primeiro apresentado é o relato histórico que
possui em sua constituição o compromisso com a verdade, ou seja, narrar apenas o
“real”. O relato literário, por sua vez, é formado a partir da utilização da ficção
“fantástica” e sua formulação se dá através do talento de seu criador – forma utilizada
por Manílio. Por último temos o relato mítico que é construído pela transmissão e pela
memória, por ser uma narrativa primordial, de tempos remotos, nos quais não havia
autores.
Os mitos não são apenas relatos. Contêm tesouros de pensamentos, formam
lingüísticas, imaginações cosmológicas, preceitos morais etc. (VERNANT, 2000, p.16).
As perguntas sobre o que havia antes de existir algo, os gregos responderam através dos
mitos. Este se mostra como uma janela para a compreensão da sociedade, pois podemos
detectar traços sociais em sua composição, no comportamento das divindades, que
espelham a realidade vivida pelos seus autores.
Discernimos, neste momento, três conceitos chaves para a compreensão do mito:
Oralidade, Memória e Tradição. Como o primeiro conceito já foi abordado
anteriormente na questão de sua inserção na formação mítica, tratamos, portanto, apenas
dos dois últimos. A memória se torna importante para a compreensão do mito, pois esta
é compreendida a partir de um escrito, ou através da oralidade, empregando em sua
concepção um caráter ideológico, ou seja, a vontade de um grupo. Como bem define
Maurice Halbwachs (1990, p.20), a memória é formada por um grupo e sua
interpretação dos fatos, portanto, pelas suas lembranças, às quais formam o que o autor
denomina de memória coletiva. Verificamos, desta maneira, que o mito se comportava
como resultado desta memória: a formação da narrativa mítica se dá pela impressão de
seu criador, pelas lembranças e pela conjuntura em que vive.
Desta maneira, a memória tenta resgatar o que foi produzido na tradição. Mas o
que seria essa tradição? Utilizamos a ideia de construção coletiva de costumes e
práticas, que ao serem realizadas ou/e seguidas como referência tornam-se modelo
tradicional. O mito utiliza-se da tradição do grupo em que foi cunhado, sendo a
memória inerente na formação mítica. A tradição ritualiza certos acontecimentos e
costumes, realizando desta maneira a junção da memória com o mito, sendo que esta se
modifica atendendo os anseios e necessidades expressivas do grupo em que ocorre sua
formulação.
40 O mito mostra-se a partir das variantes, sendo que suas formas de expressão não
se encontram apenas ligadas aos relatos religiosos, assim como nos mostra Junito de
Sousa Brandão (1995, p. 40), mas também às literaturas, poesias e artes figurativas,
consideradas pelo autor como formas profanas. Esta afirmação nos é contestável, pois
não podemos definir estas formas artísticas como de algo profano, sendo que a religião
é intrínseca à formação do homem antigo clássico, dentro de todas as instâncias sociais.
As artes também tinham sua porção religiosa, o que não as permite ser separadas pela
categoria de profanas e sagradas no mundo antigo.
Observamos então que o mito possui uma característica funcionalista, qual seja
de fundamentar “os usos e as normas básicas do convívio, propondo uma justificação
narrativa tradicionalmente aceita por todos”, pois de cumprir nas culturas antigas “uma
função indispensável; expressa, acentua e codifica a crença; protege e reforça a moral;
vigia a eficiência do ritual e de certas regras práticas para a orientação do homem”
(GRIMAL, 2000, p.15). O mito, então, não seria apenas uma fábula, e sim um modo
pragmático de compreensão social que privilegiava a sabedoria moral. Além disso, a
mitologia adquire um caráter simbólico realizando uma contraposição entre fantasia e
realidade, pois o mito torna-se representação22 do real. Então classificamos que há uma
materialização do imaginário, enquanto estrutura mental, na formação do mito, pois este
imaginário utilizando-se de uma imagem representativa do real se reporta, muitas vezes,
aos interesses sociais de certo período. Assim como aponta José D’ Assunção Barros, o
imaginário pode transparecer a partir de um interesse ideológico:
[...] as imagens, as cosmovisões e os símbolos podem ser produzidos
também por circunstâncias políticas, por necessidades sociais e até
locais, por artimanhas da poesia e da literatura, por arquitetura política
pensada ou intuída, ou podem mesmo ser ocasionadas por grandes
eventos que caem como raios na vida das sociedades. (BARROS,
p.97, 2004)
O mito, dessa maneira, “não fala senão naquilo que começou realmente, naquilo
que se manifestou completamente, as personagens do mito são seres sobrenaturais”
(ELIADE, 2000, p.47). Porém, mesmo tendo tal função, Manílio se utiliza da mitologia
a fim apenas de demonstrar eloquência. Destacamos alguns trechos da obra maniliana:
22
A palavra representação origina-se da língua latina, advinda do vocábulo representare, que tem como
significado “tornar presente” ou “apresentar de novo”. Sua utilização conceitual pode designar duas
vertentes: se mostrar como uma substituição do real ou através de uma evocação mimética, realizando,
com isso, uma cópia do real. O conceito, para nossa compreensão do que seja imaginário, se associa à
ideia de interpretação da realidade.
41 Próxima é a vez do Cisne, o qual Júpiter mesmo pôs no céu, como
recompensa pela imagem com que seduziu Leda, que assim o
admirava, crédula, quando o deus, em níveo cisne transformado,
desceu e lhe prestou seu dorso de plumas (MANÍLIO, Astronômicas,
Livro I, v. 427-431).
[...]
Acaso, se os destinos não ditassem as leis da vida e da morte, teriam
os fogos fugidos de Enéias, Tróia, em razão dum só homem não
derrubado, teria triunfado de seu próprio destino? Ou teria a loba de
Marte nutrido os irmãos abandonados, teria Roma renascido de suas
quedas, teriam os pastores levado os raios aos montes do Capitólio, ou
teria Júpiter podido encerrar-se em sua acrópole, teria sido o mundo
dominado por gente dominada? (MANÍLIO, Astronômicas, Livro IV,
v.30-38).
Nestes, podemos observar a utilização da mitologia apenas como uma maneira
de tornar bela uma matéria tão enrijecida. O próprio autor mostra que o conhecimento
mitológico deveria ser utilizado principalmente para tal fim, pois a explicação de todas
as coisas no universo viria da racionalidade emanada do deus criador, transposta no ser
humano já que este era apresentado como parte do divino. Manílio destaca:
Alguns falaram das variadas formas dos astros; e as constelações que
se espalham deslizando pela extensão do céu, eles as referiam ao
gênero particular de cada uma e às duas causas: Perseu, a libertar da
pena Andrômeda e sua mãe, que sofria, e seu pai; e a filha raptada a
Licáon; e Cinosura; e pelo empréstimo do disfarce, o Cisne; e
Erígona, às estrelas conduzida em virtude de sua pia devoção; e pelo
seu golpe, o Escorpião; e, pelo espólio, o Leão; pela mordida, Câncer;
os peixes, pela transformação da deusa de Citera; o Lanígero, a
conduzir os signos pelo mar conquistado; e as restantes constelações,
que derivam de variadas origens, os poetas imaginaram que se
revolviam no sumo éter. Em seus poemas, o céu nada é senão uma
fábula, e a terra é que compôs o céu, do qual depende. [...] Pois
cantarei o deus senhor da natureza, de mente silenciosa, espalhado
pelo céu, pela terra e o mar, a governar com igual lei a ingente
máquina; e cantarei que o universo inteiro vive por um consenso
recíproco e é guiado pelo movimento da razão, já que um só espírito
42 habita em todas as suas partes e irriga o mundo [...] (MANÍLIO,
Astronômicas, Livro II, v.31-79).
Sendo assim, apoiando-nos na definição de Fernandes, podemos explicar
esteticamente o trabalho de Manílio como um texto que “embora muitas vezes cerrado e
difícil, numa espécie de tour de force que prolonga as definições e os exemplos como a
querer explicar tudo, é também muitas vezes claro, luminoso, em proêmios e excursos
considerados dignos de antologia” (FERNANDES, 2006, p.27).
Dessa maneira, devemos encarar a possibilidade de Manílio não ser um
astrólogo, mas um douto poeta capaz de narrar e descrever eventos diversos. A autora
Katherina Volk defende tal ideia, pois percebe que Manílio não se aprofunda no
conhecimento astrológico em si, e sim apenas narra-o, buscando primeiramente atingir o
objetivo de escrever um poema. Essa autora trabalha com a suposição de que Manílio
não foi um astrônomo ou astrólogo, mas, em primeiro lugar, um poeta, sendo este
conhecimento sobre os fenômenos celestes algo derivativo (VOLK, 2009, p.11). Não
era esperado, na Roma Antiga, que poetas didáticos fossem especialistas nas matérias
que se propunham a escrever. A autora aponta:
Manílio não foi um cientista, porém, como Arato, foi um poeta
didático – isso é, um escritor de educação elevada e bem versado em
vários campos do saber dos seus dias, especialmente, nos que traz em
seu escrito (VOLK, 2009, p.11).
Dessa maneira, diferente das divisões que hoje fazemos, e assim como nos
mostra Volk, “para Manílio, cosmologia, astrologia, política, poesia e filosofia estavam
interligadas” (VOLK, 2009, p.12), sendo, devido a isso também, a fascinação que a obra
nos causa por narrar o presente maniliano a partir de temas e elementos tão diferentes. O
próprio Manílio se apresenta como um poeta (como já destacado) que apenas é
responsável por escrever acerca de uma matéria específica, sendo esta abarcadora de
outros diversos eventos e saberes. A partir de tais ideias percebemos uma intenção
didática por parte do autor em ensinar sobre as divisões e mistérios do Universo, ao
mesmo tempo em que mostra a organização do plano terrestre, mantendo-a em
constante harmonia. Dessa maneira, o poema maniliano é classificado como didático,
sendo tal termo utilizado para exprimir um valor ligado à transmissão de certo
conhecimento.
A classificação como um poema didático foi adotada pelos estudiosos que se
comprometeram a analisar Astronômicas devido a algumas características da obra.
43 Como já dito, Manílio teve uma preocupação de estruturar seu trabalho abarcando
interesses duplos, sejam eles quais forem. Realizou a proeza da escrita de um poema
digno da beleza sobre a qual narra enquanto propagou um ensinamento, uma matéria
específica, sem se desligar de seu contexto. Dessa maneira, entender o que esse poema
didático era e sua organização se mostra necessário para que, desse modo, possamos
compreender o porquê da escolha deste modelo pelo nosso autor. A narrativa, seja de
que período for, tem como análise primária a constatação do estilo adotado, pois este
demonstra também algumas das intenções que o autor não explicita, propositalmente ou
não, durante a escrita. Sendo assim, podemos perceber que uma das intenções de
Manílio seria a de ensinar, ou seja, a de apresentar seu trabalho como um manual de
certo saber, neste caso sobre a astrologia. Assim como mostra Volk, “o poema didático
ensina algo, seja um saber (por exemplo, a física epicurista de Lucrécio, astrologia de
Manílio) ou uma habilidade prática (exemplo, agricultura em Hesíodo, a arte de amar de
Ovídio)” (VOLK, 2009, p.175).
Dessa forma, o poema didático apresenta, assim como qualquer outro texto, uma
dupla dificuldade, pois para analisá-lo é necessário entender o seu contexto de produção
e para quem se fala (seu público alvo). Nosso contexto já está delimitado: explanamos
sobre o período do início do Principado romano, especificamente o período conhecido
como “Século de Augusto”. Porém, mesmo assim, ainda caímos em generalizações,
pois não conseguimos posicionar geograficamente e precisamente para qual grupo a
obra maniliana foi direcionada. Podemos entender que se manteve na Península Itálica,
pois o próprio Manílio escreve, e como já citado: “E, se alguns nomes forem referidos
em língua estrangeira, culpa será do tema, não do vate: nem tudo se pode verter,
designando-se melhor em sua própria língua” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v.
49-52). Ou seja, a preocupação em se justificar pelo uso de expressões em língua
estrangeira nos possibilita pensar que estivesse falando para um público latino, pelo
menos.
O poema didático expressa um conhecimento para alguém e, dessa forma, elege
em sua composição dois personagens principais ao longo de sua narrativa: o professor,
ou seja, aquele que ensina; e o aluno, a quem o ensinamento é direcionado. Tal
articulação pode ser percebida pela utilização da primeira pessoa na elaboração do
texto, o que nos dá a impressão de um discurso falado a alguém de maneira direta. A
reação do aluno não nos é certa:
44 É um pouco óbvio, pensar, que os dois protagonistas do poema
didático – professor e aluno – não são criados iguais. Após tudo, é
típico que apenas o professor fale, enquanto as reações dos alunos (de
algum), deve ser imaginada, e como resultado disso, nosso drama é na
verdade um monólogo estendido apresentado para um (grande)
ouvinte silenciado (VOLK, 2009, p.177).
A obra maniliana se encaixa neste modelo, pois mesmo que não especificando a
quem endereça suas “aulas”, Manílio impõe sua fala perante uma segunda pessoa.
Podemos constatar isso a partir da análise do livro IV, no qual Manílio incentiva o seu
leitor/aluno a não perder as forças no aprendizado do conhecimento astrológico, pois
sua recompensa será grandiosa:
Não meças o tamanho da matéria, mas atenta, sim, para as forças que
a razão, e não o peso do teu corpo, tem: a razão a tudo vence. Não
hesites em creditar ao homem o poder de ver o divino [...] (MANÍLIO.
Astronômicas, Livro IV, v. 931-934).
O objetivo de Manílio não é transformar seu aluno em um profissional do saber
astrológico. O poema didático não pode ser equiparado a um manual autodidático que
tenha como objetivo tornar seu detentor um futuro professor do saber ensinado. Os
leitores destes poemas podem ser considerados amadores que apenas se apaixonam pelo
tema proposto e, por isso, buscam aprender sobre ele. Dessa maneira, eles podem
instruir-se sobre as estrelas sem terem a intenção de se transformarem em grandes
astrônomos. Manílio ensina aquilo que acredita que é sua incumbência ensinar, ou seja,
falar sobre o Universo é necessário, pois cabe ao homem conhecer sobre a vastidão
celeste e, com isso, entender um pouco melhor sobre sua existência: “Quem poderia
conhecer o céu, senão que por dádiva do céu, / e descobrir o deus, senão aquele que, ele
próprio, é parte dos deuses?” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro II, v. 141-144).
Neste intento de produzir um poema astrológico, Manílio acaba por conceber
uma obra literária didática. Fernandes mostra o trabalho maniliano como um modelo de
poema didático e este poema que ensina tem muitas vezes “um valor filosófico e moral”
(FERNANDES, 2006, p.15), valor este presente na obra. O poema didático possui, em
sua formulação:
[...] painéis ilustrativos, que ordinariamente permeiam a instrução; as
digressões (ou parêcbases), que parecem cumprir a função
propriamente do deleite (difícil conexão entre o dulce da poesia e o
uerum da ciência); os proêmios (pois o poeta didático, tendo de
45 preparar antes o ouvinte, não pode fazer como o épico, que pode
muitas vezes começar in medias res); a afirmação do valor da ciência,
a garantia de competência do mestre, o enaltecimento da razão como
aquilo que liberta da ignorância o espírito; a organização cuidadosa do
material da instrução em livros ou seções menores; a legitimidade do
discurso didático baseada na idéia de utilidade da instrução; o uso das
máximas e provérbios, do tom sentencioso; etc. (FERNANDES, 2006,
p.17).
Temos que entender que tal classificação como “gênero”, a propósito do poema
didático, é:
[...] em primeiro lugar, em consideração ao modo tradicional, entre
classicistas, de assim distingui-la de outros gêneros; em segundo
lugar, em razão de se encontrar tal distinção já em Diomedes, que
toma o didático (didascalice) como uma das três espécies do gênero,
ou antes modo, exegético ou narrativo de poesia (FERNANDES,
2006, p.16).
Assim, percebemos que a necessidade de ensinar era latente ao objetivo de
Manílio. Esta seria a maneira pela qual alcançaria o público pretendido, seja ele qual
fosse, a fim de não somente apresentar a beleza do Universo, mas introduzir o(s)
aluno(s) em um conhecimento, ainda que superficial, de um saber, sendo no caso a
astrologia. Percebemos também que a pessoa autoral, ou seja, Manílio, desempenha um
papel duplo na confecção do seu trabalho. Seu papel na produção d’ Astronômicas não
seria passivo, pois a vontade do mundus sobre a qual tanto narra pode ser considerada
um elemento da ficção, muito utilizado para legitimar sua escrita e levar seu aluno a
buscar mais sobre o conhecimento astrológico. Sendo assim, e nos apoiando na tese de
Fernandes (2012, p. 40), a persona doctoris da obra estudada gera uma tensão que se
transfere à natureza de suas funções:
[...] de um lado, ela é o vate, a quem cumpre mostrar os saberes
astrológicos ao discípulo por meio de poesia, já que essa é uma
determinação celeste que deve ser cumprida, por assim dizer, com
piedade (Livro IV); de outro, ela é o vate-poeta, a quem cumpre
confeccionar o opus, segundo os limites e imposições celestes, mas
que por vezes “excursiona” ou “voa”, como poeta, para fora de tais
limites, pois, como tal persona reconhece (Livro I) (FERNANDES,
2012, p.40-41).
46 Se por um lado Manílio se mostra livre e ousado para narrar sobre os eventos
celestes e a respeito da organização de todo o Universo, por outro lado não deixa de
cumprir a determinação da ordem celeste. Dessa maneira, Manílio afirma piamente que
não lhe compete confeccionar expressões que acrescentem à matéria celeste aquilo que
ela mesma já tem para proporcionar.
Assim, a obra maniliana, e o próprio autor, se mostram como um campo vasto e
aberto para o estudo da Antiguidade. O poema de Manílio traz especificidades
necessárias de serem apontadas para que, dessa maneira, possamos buscar compreender
o mundo deste autor. Uma dessas é a utilização da filosofia estóica durante toda a
descrição e explicação dos fenômenos celestes que refletem e corroboram para os
acontecimentos na Terra. Como já apresentamos, o trabalho de Manílio é plural, pois
abarca desde o conhecimento astrológico e astronômico em si, como também a
matemática, a geografia e a própria filosofia. A utilização de tal saber como forma de
embasamento para sua explicação do plano astral deve ser entendida como proposital no
que concerne a uma explicação e legitimação de sua postura perante o que narra. Sendo
assim, em nosso trabalho também se faz necessário entendermos o estoicismo que,
assim como toda produção humana, se modificou no tempo desde a sua criação até a sua
apropriação por Manílio no século I d.C. Manílio responde aos interesses e anseios de
seu tempo apoiando-se no passado, nos astros e na filosofia para completar tal resposta
da melhor maneira possível.
47 CAPÍTULO 2
A Filosofia Estóica na elaboração maniliana de seu manual astrológico:
uma aproximação entre os eventos celestes e os terrestres
O ser humano tenta, de inúmeras maneiras, explicar o espaço que o cerca
compreendido como mundo. Para isso, criou, e continua a criar, inúmeras regras,
costumes, religiões e diretrizes para se viver bem e em harmonia com o plano em que
vive. Ou seja, o ser humano existe em uma busca incessante de se encaixar no espaço no
qual habita da melhor maneira possível, o que o leva a se questionar sobre a sua
vivência. Tal questionamento pode ser percebido desde a Antiguidade, especificamente
no que compreendemos como Antiguidade Clássica, espaço temporal e físico no qual
surgem inúmeros cultos, divindades e filosofias a serem pregadas e seguidas. Dentre
tantas, destacamos em nosso trabalho uma filosofia em específico, pois tal é utilizada
amplamente na produção d’ Astronômicas, de Marco Manílio: o Estoicismo. Em seu
objetivo de explicar a organicidade do universo e exprimir isto em forma de um poema
tão belo quanto a matéria sobre a qual narra, Manílio engendra em sua elaboração um
universo harmônico e capaz de conectar todos os seres, vivos e não vivos, em um
esquema no qual estes se interligam por fazerem parte de um único ser: o deus que é o
próprio universo. Cada ser adota uma porção deste criador, que ao mesmo tempo é a sua
criação, interligando-se com os demais e, com isso, gerando uma “simpatia universal”.
Manílio, poeta do I século d.C., estrutura, a partir de sua obra, o universo. Seu
manual, que aborda conceitos e temas que atualmente dividimos entre astrologia e
astronomia23, nos traz uma compreensão organizacional dos corpos celestes além de
uma explanação acerca das relações existentes entre eles. Tais relações não abrangem
somente a porção que compreendemos como Céu, mas também influenciam na
elaboração e ação da vida terrena, ou seja, astros e homens estão interligados por uma
teia de relações infinitas. É a partir desta ideia que iniciamos este capítulo. Visamos
entender a obra maniliana a partir do prisma de compreensão estóica (uma tentativa de
aproximação do que isto seria). Tal filosofia será nosso suporte para compreender a
organização do universo de acordo com Manílio que acreditou que tudo se interligava
através de uma denominada, e já explicitada, “simpatia universal”.
23
Ver item 1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio, capítulo I.
48 Porém,
antes
de
adentrarmos
na
explanação
e
associação
Astronômicas/Estoicismo, temos que entender um pouco mais sobre o que seria este
corpo de princípios estóico, pois, assim como toda produção humana, tal foi se
modificando com o passar dos anos e com as apropriações que foram sendo feitas. A
filosofia manteve algumas posturas, sendo por isso denominada com o mesmo nome
desde a sua criação, mas se modificou para poder atender às novas necessidades de seus
praticantes.
Além disso, temos que salientar a dificuldade que é apresentada para aqueles que
se interessam em estudar a história da filosofia estóica. Assim como aponta Rachel
Gazolla, a sobrevivência histórica de tal dependeu da doxografia24 que nos restou, ou
seja, da compilação feita por estudiosos que não eram mais estóicos e, por isso,
selecionaram as informações que lhes eram úteis. “Muitas vezes, as teses resgatadas
misturam-se às concepções do compilador” (GAZOLLA, 1999, p.17), e, por isso, não é
incomum perceber características pós-platônicas, aristotélicas, céticas ou cristãs nas
problematizações estóicas que nos chegaram. Sendo assim, a autora expõe:
Diante das notícias e leituras sedimentadas, o leitor atual, para não se
tornar um intérprete em quarto grau da Stoa, deve atentar para: a) os
possíveis anacronismos de parte da doxografia, inserida na herança de
afirmações contrárias às posições estóicas; b) a sedimentação de certas
perspectivas temáticas – exaustivamente discutidas em outras escolas
filosóficas – que norteiam, dada a fixidez, a leitura dos fragmentos
estóicos; c) a facilidade técnico-didática de uma ordenação histórica
da Stoa em três períodos que, não necessariamente, cria a mesma
facilidade
para
a
compreensão
dos
fragmentos
compilados
(GAZOLLA, 1999, p. 18).
Dessa maneira, cabe a nós, historiadores, tentar estudar as mudanças desta
escola filosófica sem cair nos anacronismos que seus interpretadores e compiladores do
passado embutiram durante os estudos feitos. A distância temporal dos que primeiro
noticiaram sobre o estoicismo, Cícero e Plutarco no século I d.C., também é apresentada
como mais um problema na elaboração dos estudos atuais sobre o Estoicismo.
Doxografia é o relato das idéias de um autor quando interpretadas por outro autor, ao contrário do
fragmento, que é a citação literal das palavras de um autor por outro.
24
49 2.1. A Filosofia Estóica
Estudiosos da filosofia estóica, como Jean Brun (1986) e Frédérique Ildefonse
(2006), se esforçaram em entender tal filosofia como uma produção contínua que,
entretanto, respondeu aos anseios do tempo em que foi articulada e utilizada. Dessa
maneira, são apresentadas três divisões temporais do Estoicismo, sendo cada uma
responsável por uma modificação na explicação estóica de mundo, ou realizadora de
uma nova apropriação de uma regra já existente. Como já apresentamos, essa divisão
tripartida é fruto da análise contextual em que cada grupo utilizador desta filosofia se
encontrava.
Assim como aponta Brun: “O estoicismo não foi somente a filosofia de Zenão
de Cício, o fundador da doutrina, mas foi igualmente uma escola abrangendo os alunos
e os escolarcas que a dirigiram” (BRUN, 1986, p.15). Sendo assim, são apresentadas
três grandes divisões, ou períodos, na história da escola:
[...] o estoicismo antigo que tem o seu centro de atividades em Atenas
no século III a.C. e de que retemos três grandes nomes: Zenão de
Cício, Cleanto e Crisipo. O estoicismo médio no século II a.C., onde o
sistema perde o seu primeiro rigor e começa a latinizar-se; Diógenes,
o Babilônico, Antipatro de Tarso, Panécio de Rodes e Possidônio de
Apaméia são os seus principais nomes. O estoicismo da época
imperial nos I e II séculos d.C. é essencialmente romano e abandona
quase completamente a lógica e a física para se interessar apenas pela
moral. Podemos reter como nomes principais: Sêneca, [...], Musónio
Rufo e, sobretudo, Epicteto e Marco Aurélio (BRUN, 1986, p. 15).
Porém, outra divisão nos é apresentada, mesmo que também feita de forma
tripartida, e tal corresponde a um movimento de expansão geográfica que resultou nas
diferenciações da filosofia com o passar do tempo. Assim como apresenta Ildefonse:
Jacques Brunschwig25, por sua vez, propõe uma distinção entre três
períodos: um período ateniense de início, que se estende até o final do
século II a.C., em que o estoicismo é uma instituição estável,
sucessivamente dirigida por eruditos oficialmente designados, cuja
sede fica em Atenas, apesar de eles próprios não serem atenienses; os
alunos chegam a Atenas vindos de Chipre, Ásia Menos, Oriente
Indicação do autor citado: Jacques Brunschwig, “Les Stoiciens”, in Monique Canto-Sperber (dir.),
Philosophie grecque, p. 513.
25
50 Médio; um segundo período, no qual o estoicismo abandona essa
centralização ateniense: Panécio dirige um centro em Rodes,
frequentado por Possidônio de Apaméia (o primeiro ensinando
também em Roma, e o segundo fazendo viagens científicas em volta
do Mediterrâneo); o período do estoicismo romano, com Sêneca (465), que foi preceptor de Nero, Epicteto (55-135) e Marco Aurélio
(121-180). A filosofia estóica acaba por tocar, de maneira mais difusa,
categorias
sociais
muito
variadas,
como
atestam
as
duas
personalidades emblemáticas que o representam: Epicteto, antigo
escravo alforriado, que ensina em Nicópolis, cidade de Épiro; e Marco
Aurélio, Imperador (ILDEFONSE, 2006, p.15).
A partir disto, prosseguimos no entendimento de cada período destacado da
filosofia estóica, a fim de entender as transformações realizadas com o passar do tempo,
e como Manílio se apropriou de tal na produção de seu manual astrológico. Assim como
já destacado no primeiro capítulo, temos que nos lembrar de que o poema maniliano
abarca dois interesses diferentes: exprimir em palavras belas a vastidão do Universo ao
mesmo tempo em que ensina sobre as divisões deste e também sobre o Estoicismo.
Quer dizer, a filosofia estóica também é um elemento ensinado por Manílio, pois este
percebeu que apenas assim a compreensão do universo por parte do seu aluno/leitor
seria feita da melhor maneira possível.
2.1.1. O Estoicismo Antigo
O primeiro período, conhecido como estoicismo antigo, tem como principal
representante Zenão de Cício (336-264), fundador da escola. Vindo da ilha de Chipre26,
Zenão chega a Atenas provavelmente em 314 a.C., e ao desembarcar se depara com
uma cidade repleta e efervescente de escolas filosóficas. Assim como ele, os outros dois
representantes deste período, Cleanto e Crisipo, também haviam chegado do Oriente,
Ásia Menor (o primeiro de Troade e o segundo da Cilícia), e, por isso, podemos julgar
que o início da escola teve grande influência oriental. A família de Zenão
provavelmente possuía uma origem fenícia, já que recebia zombarias dos seus
contemporâneos que insistiam em chamá-lo de “pequeno fenício”.
Cício, cidade localizada na ilha de Chipre, era uma praça forte grega que pertenceu a colonos fenícios
(BRUN, 1986, p.16).
26
51 Filho de um mercador, Manasses, Zenão comprava púrpura na Fenícia27, mas o
navio que a transportava naufragou diante do Pireu. Após esta perda, encaminhando-se
para Atenas, folheou na casa de um livreiro a obra Memoráveis de Xenófanes e se
apaixonou pela escrita, determinando-se a ser como aqueles homens tão notáveis.
Crates, o Cínico, passava neste exato momento e assim Zenão decidiu segui-lo e
aprender sobre a filosofia.
Outra versão mostra que antes de conhecer o livreiro, Zenão havia se consultado
com um Oráculo e, questionando qual seria o melhor caminho para seguir na vida, foi
orientado a manter uma relação com os mortos: e isso fez Zenão, que buscou ler os
filósofos antigos. Mas seja qual for a versão, sabemos que o fundador do estoicismo
acabou por se tornar um discípulo de Crates, pertencente à linha dos filósofos cínicos
dos quais Diógenes foi o mais célebre.
A doutrina cínica foi fundada por volta de 400 a.C., por um dos discípulos de
Sócrates, Antístenes, e apresentava-se como uma filosofia do escândalo e do sarcasmo.
Tais características são atribuídas, pois estes filósofos se utilizavam destas para
denunciar algumas atitudes que reprovavam em seus contemporâneos. O caráter crítico
dos cínicos influenciou bastante o estoicismo: “sem embargo, há acordo geral em
apreciar o poderoso impacto que o criticismo cínico produziu nos fundadores do
Estoicismo” (PUENTE OJEA, 1974, p.81). Gonzalo Puente Ojea continua:
O Estoicismo original está impregnado da filosofia cínica, ao ponto de
que a designação de doutrinas cínica-estóicas seria mais pertinente
para referir-se à atitude básica dos fundadores da Stoa, em especial à
atitude de Zenão [...] (PUENTE OJEA, 1974, p.83)
Os filósofos cínicos desprezavam a opinião pública e pregavam a vida em
conformidade com a natureza, lição que Zenão transportou ao Estoicismo mesmo tendo
abandonado os ensinamentos de Crates, por não concordar com o impudor de seu
professor.
Aos 42 anos, aproximadamente, Zenão inicia o ensino do Estoicismo e funda
uma escola:
[...] os seus alunos foram primeiramente designados por Zenonianos,
depois segundo o costume de dar a uma escola o nome do lugar onde
estava estabelecida, chamou-se-lhes de Estóicos. Estoicismo deriva,
27
Atual Síria.
52 como efeito, da palavra grega stoa que significa pórtico, porque Zenão
ensinava perto do Pórtico Poecilo [...] (BRUN, 1986, p.17).
Rapidamente, Zenão começou a ganhar o respeito de seus contemporâneos e
ministrar suas aulas sem por elas cobrar nada. Sendo assim, entre seus alunos, o filósofo
tinha pessoas de diversos estamentos sociais. Sua principal lição era a vida segundo as
diretrizes da natureza, sendo esta a maior virtude, o soberano bem e a eterna felicidade
que somente seria alcançada pelo sábio.
Um dia, ao sair da escola, Zenão caiu e partiu um dedo. Entendendo aquilo como
um sinal, ele se estrangulou, pondo um fim à própria vida. Diógenes Laércio (século III
a.C.) comentou o evento:
Foi assim que ele morreu. Saindo da escola, ele tropeçou e fraturou
um dedo. Batendo com a mão na terra, ele pronunciou os versos
extraídos de Niobé: Eu chego. Por que me chamas? E logo morreu,
retendo sua respiração (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos
filósofos ilustres, VII, 28).
Seu discípulo, Cleanto (331-230 a.C.), foi o sucessor de seus ensinamentos.
Antigo pugilista, Cleanto chegou a Atenas apenas com quatro dracmas nos bolsos. Pela
não cobrança monetária de Zenão, ele logo passou a seguir os ensinamentos estóicos e
foi considerado apenas um sucessor, e não um inovador da escola. Foi um período de
desestabilidade, pois houve uma descentralização do ensinamento. Vários discípulos
começaram a ensinar a doutrina fora de Atenas, sendo a culpa disto depositada na
personalidade tão apática de Cleanto. Viveu por quase um século e ao descobrir um
tumor na gengiva, optou por parar de se alimentar, deixando-se morrer de fome, pois
acreditava que já havia vivido demais.
Foi com Crisipo (280-210 a.C.) que a escola estóica restabeleceu certa unidade,
“em primeiro lugar, devido à sua personalidade, depois, pela sua douta dialética que lhe
permitiu entrar em luta com seus adversários” (BRUN, 1986, p.19). Diógenes chegou a
afirmar que se “não houvesse Crisipo, não haveria Pórtico” (DIÓGENES LAÉRCIO.
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 183). Émile Bréhier destacou que “ele
fundou pela segunda vez o estoicismo, defendendo-o contra os dissidentes, como
Aríston, e contra os adversários” (BRÉHIER, 1951, apud: ILDEFONSE, 2006, p.22).
Ildefonse o descreve:
Dedicado trabalhador, era de uma prolixidade impressionante: a
senhora que estava a seu serviço afirmava que ele escrevia quinhentas
53 linhas por dia. São-lhe atribuídos mais de 705 “livros” (uma única
obra compreendia em geral vários “livros”, ou seja, vários cilindros),
dos quais nos restam apenas fragmentos. Praticante da citação, ele
teria chegado a citar quase integralmente a Medéia, de Eurípedes, em
uma de suas obras (ILDEFONSE, 2006, p.22).
Continuador e inovador do estoicismo, Crisipo ainda seguia os ensinamentos de
Zenão, respeitando as três divisões da filosofia feitas por ele: a ética, a física e a
lógica28. Crisipo, assim como apresenta Ildefonse ao citar Plutarco, desenvolveu uma
ordem que deveria ser seguida no que diz respeito ao ensinamento da filosofia estóica:
Crisipo acha que é necessário ensinar primeiro a lógica aos jovens, em
segundo lugar a ética e, depois, a física, reservando para o final a
questão dos deuses. Ele representou várias vezes, mas bastará citar o
que se encontra no segundo livro Sobre as vidas; seguem-se suas
palavras: “Primeiro, parece-me, seguindo o que os antigos disseram de
exato, que existem três espécies de considerações filosóficas: as
lógicas, as morais e as físicas; em seguida, é necessário colocar na
primeira fila a lógica, na segunda a moral e, na terceira, a física; e a
doutrina dos deuses, dentro da física, a última; é por este motivo que
se chamam de mistérios os ensinamentos transmitidos sobre os
deuses” (PLUTARCO, Sobre as contradições dos estóicos, IX, apud:
ILDEFONSE, 2006, p.25).
Mesmo que a ordem apresentada por Crisipo seja diferente da elencada por
Zenão, ambos mantinham como centro de análise, e união entre as três partes, a
racionalidade. Zenão unifica estes saberes sob a categoria de logos, sendo este o
responsável pela unidade orgânica das três partes. Tal logos seria a razão que governa a
matéria (hylè), que sofre as ações do universo chamado de “deus”, ou seja, um
demiurgo que age e forma o orbe. Sendo assim, este deus seria o “grande artesão” do
tudo, um fogo modelador que procede metodicamente a gênese do mundo29.
2.1.2. O Estoicismo Médio
Após a morte de Crisipo o nome que despontou entre os alunos da escola foi o
de Panécio (185-112 a.C.) Assim como destaca Brun:
Tais concepções são explicadas neste capítulo a partir do ponto 2.2
Tal idéia também analisada neste capítulo em comparação à que é apresentada por Manílio em sua obra
Astronômicas.
28
29
54 Com Panécio, chegamos verdadeiramente ao que está convencionado
chamar estoicismo médio. A doutrina de Zenão estende-se no Oriente
até à Babilônia, é bem conhecida em Alexandria, vai ganhar Roma
que começa a helenizar-se, sendo o grego a língua das pessoas cultas
(BRUN, 1986, p.21).
Panécio nasceu em Rodes, aprendeu sobre a filosofia em Atenas com Antipater e
partiu para Roma, lugar onde se tornou amigo de Cipião Emiliano30, acompanhando-o
em Alexandria e pela expedição ao longo da costa ocidental africana. Assim como
apresenta Brun, tal relação entre estes dois homens tão distintos possuía um sintoma
significativo, pois com a expansão territorial empreendida pelos romanos havia a
necessidade de produzir uma moral pessoal que legitimasse a ação das legiões e juristas
romanos. Dessa maneira, estes homens “encontraram no humanismo universalista dos
estóicos uma doutrina capaz de responder às suas aspirações” (BRUN, 1986, p.21). Isso
também explica as boas relações que Panécio manteve com outros homens célebres. A
filosofia estóica se modificou e atribuiu à porção compreendida como moral, ou ética,
maior valor.
Além disto, este estoicismo se voltou a atender os interesses de uma elite
republicana situada em Roma, e se ligou à filosofia ática, principalmente aos
ensinamentos de Sócrates:
[...] se tratava de destruir o vínculo do estoicismo com o cinismo,
vinculo que não só repugnava sua sensibilidade aristocrática, senão
que, sobretudo, entorpecia a construção de uma ideologia diretamente
legitimadora de um compromisso com os poderes sociais e políticos
dominantes. Uma vez que a filiação socrática do estoicismo permitia
incorporar muitos elementos teóricos procedentes de uma tradição
filosófica helênica, úteis para educar e civilizar [...] (PUENTE OJEA,
1974, p.136-137).
Possidônio (135-51 a.C.) foi quem substituiu Panécio e continuou o seu trabalho.
Nascido em Apaméia, na Síria, se instalou em Roma onde construiu relações com
Pompeu e Cícero, porém sem inovar no ensinamento da doutrina. Foi este momento da
escola que influenciou, com maior peso, a obra maniliana, já que foi este o contexto,
aproximadamente, em que Manílio escreveu.
Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, dito o Jovem (em latim Publius Cornelius Scipio
Aemilianus Africanus, 185 a.C. — 129 a.C.), foi um general e político romano que lutou na Terceira
Guerra Púnica contra Cartago, concluindo-a vitoriosamente e destruindo Cartago após três anos de
assédio.
30
55 2.1.3. O Estoicismo Imperial
Após três séculos desde que Zenão começou a ensinar o estoicismo, Roma agora
detinha o centro do ensino da doutrina, já que Atenas foi suplantada por este vasto
Império. O período em questão foi bem diferente dos demais, assim como apresenta
Brun:
Os escritores, os historiadores e os filósofos que não são aduladores
do Imperador, são perseguidos ou exilados: Nero proíbe Lucano de ler
as suas obras em público, o estóico Musónio Rufo é exilado; em 93,
Domiciano expulsará os filósofos por um senado-consulto. Por outro
lado, faz-se sentir a influência do Oriente: numerosos cultos, mais ou
menos estranhos são importados por Roma. Finalmente, não
esqueçamos que no meio dos paganismos de toda a espécie e das
diferentes escolas filosóficas, o cristianismo nascente vem trazer a sua
mensagem (BRUN, 1986, p.22).
Os três principais representantes deste período foram Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.),
Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Os dois últimos nos chamam
atenção por representarem os opostos em relação ao estamento social que ocupavam. O
primeiro era um escravo, enquanto o segundo foi um Imperador. Epicteto encontrou na
filosofia uma justificativa para sua vida miserável e, por isso, pregava a liberdade
interior através de uma vida submissa à razão. Ou seja, cada homem deveria se
preocupar com suas ações, opiniões, desejos e movimentos, sendo as demais, e externas,
aceitas para que assim se pudesse viver conforme a natureza. Alguns historiadores,
como Reinholdo Aloysio Ullmann (1996, p.122), destacam que o estoicismo sofreu
influências do cristianismo tão crescente nesta época. Porém, mesmo que ambos fossem
estudados e ensinados neste período, não podemos falar que se relacionavam dessa
maneira, já que, a exemplo do próprio Marco Aurélio, os cristãos eram duramente
perseguidos e representavam “um simples espírito de oposição” (MARCO AURÉLIO.
Pensamentos, XI, 3).
De acordo com Puente Ojea (1974), este “último estoicismo” ocorre em um
período de instauração do Principado, no qual houve “a precariedade da existência e a
crise da responsabilidade moral” (PUENTE OJEA, 1974, p.44). Por este motivo, surgiu
a noção de que o mundo inteiro estaria sendo governado “por um poder inconstante e
56 cruel, pela Tyche” (PUENTE OJEA, 1974, p.45). A vida passa a ser regida pela Fortuna
(conhecida também como a razão cósmica):
A vida de cada um de nós está dirigida pela cega deusa. Contra este
sentimento de incongruência ética, insuportável à larga, o estoicismo
vai oferecer precisamente, uma interpretação original da vida, segunda
a qual o irracional é somente aparência, pois o cosmo é regido pela
razão (PUENTE OJEA, 1974. p.45).
Ainda de acordo com esse autor, o estoicismo imperial se formava em um
mundo duplo:
[...] o sistema político imperial – civitas humana articulada em classes
dominantes e classes exploradas, sujeitas ambas à via da ordem
jurídica – e a ordem cósmica racional – civitas divina ancorada na
atividade da consciência individual como lócus privilegiado da razão
(PUENTE OJEA, 1974, p.237).
Dessa maneira, percebemos que as nuances na filosofia estóica foram ocorrendo
de acordo com o contexto em que era utilizada. Manílio, como mais um apropriador
desta doutrina, também soube se utilizar, da melhor maneira que encontrou, de tais
ensinamentos, realizando a explanação por ele tão quista do universo e de seus
segredos.
A partir disto, devemos entender as três divisões apresentadas que, unidas,
formam a filosofia estóica (física, ética e lógica), identificando, através da explicação de
cada, como Manílio se utilizou destas.
2.2. As partes de um todo: física, lógica e ética estóica
Alexander Jones, em seu trabalho, nos dá uma possível explicação do porquê a
astrologia seria tão valorizada pelos filósofos estóicos. O autor aponta que:
No Estoicismo, assim como no epicurismo, um entendimento da
localização física da humanidade no universo era parte integrante de
um sistema de pensamento que sustentava os compromissos éticos da
seita (JONES, 2006, p.363).
Jones continua sua explanação a respeito disto, mostrando que “é um lugar
comum a enorme afinidade dos estóicos com a astrologia” (JONES, 2006, p.373). Peter
Marshall nos apresenta o fato de que foi após as campanhas de Alexandre, o Grande,
que a astrologia recebeu maior influência estóica. Assim como ele nos mostra:
57 Os estóicos, que estavam entre os maiores lógicos e físicos do seu
tempo,
integraram
totalmente
a
astrologia
em
seu
sistema.
Mantiveram a tradição platônica de um sistema de mundo esférico,
com a Terra no centro do universo e os corpos celestes movendo-se
em torno dela em movimentos circulares. Reafirmaram também a
crença de Platão de que os céus revelavam a presença divina e que os
deuses habitavam os planetas (MARSHALL, 2006, p.281).
Sendo assim, entender as partes de tal filosofia se faz importante a fim de
entendermos como esta era utilizada na elaboração de uma concepção e organização
astrológica. Especificamos, neste caso, o trabalho feito por Manílio que uniu estes dois
saberes com um propósito de ensinar a “verdade” sobre o universo. A forte discordância
que Manílio faz em relação à teoria epicurista de formação do universo é, para nós, um
indício da predileção maniliana pela filosofia estóica. O Epicurismo foi uma escola
filosófica fundada por Epicuro por volta de 306 a.C., e seu propósito principal não era o
de se opor ao Estoicismo, mas sim explicar a formação de todas as coisas pelas porções
mínimas, não visíveis aos olhos humanos: os átomos. Assim como aponta Reinholdo A.
Ullmann:
O Jardim (maneira pela qual a filosofia foi denominada por ser o local
onde ocorriam as aulas) não era um lugar de ociosidade, mas de
treinamento para os que iriam a outros lugares semear suas idéias
epicuristas. Ali se formavam pregadores e forjavam missionários. Se a
Academia e o Liceu se caracterizavam pela theouría, isto é, pela
especulação, o Jardim visava à vida cotidiana, concreta e prática. O
Jardim constituía o centro irradiador da propaganda epicuréia
(ULLMANN, 1996, p. 15).
Porém, mesmo que não propositadamente oposta ao Estoicismo, a física
epicurista que apresentava a ideia de que tudo era formado pelos átomos debatia
diretamente com a física estóica. Ullmann expõe:
A física de Epicuro trata da teoria dos átomos e de suas implicações
na constituição do universo, em geral; versa, também, sobre o homem,
composto de corpo e alma, que, ambos, nada mais são do que átomos:
ocupa-se, ainda, dos deuses, igualmente formados por átomos muito
sutis (ULLMANN, 1996, p.53).
58 Sendo assim, a explicação epicurista da criação pelos átomos ordenados ao
acaso não correspondia aos anseios manilianos de organização e harmonia universal,
que encontrou nos preceitos estóicos ideias concordantes com sua explicação de mundo.
2.2.1. A Física
Tomando o caminho contrário ao de Crisipo, que apresenta a física por último
em sua explicação das partes do Estoicismo, iniciamos com tal, pois debate diretamente
com a doutrina epicurista apresentada acima. Percebemos que se posicionar perante a
vastidão do universo era de extrema necessidade para o filósofo estóico, já que este se
comportava conforme a natureza. Esta, para os estóicos, surgiu do que entendiam como
física (bem diferente do que entendemos em nossos dias). A física estóica se originou da
palavra physis, do grego phuerin que significa crescer, “quem diz natureza, diz vida”
(BRUN, 1986, p.47). Diógenes Laércio afirmou:
[...] eles chamam natureza que ao que o mundo contém, quer ao que
produz as coisas terrestres. A natureza é uma maneira de ser que se
move por si mesma segundo razões seminais, produzindo e contendo
as coisas que nascem dela nos tempos definidos e formando coisas
semelhantes àquelas donde foi destacada (DIÓGENES LAÉRCIO.
Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 68).
Dessa maneira, a natureza estóica é teorizada e apresentada como divina,
comportando-se em uma eterna normatividade, pois possuía em sua elaboração uma
prevista ordenação e força constitutiva dos seres. Tal sacralidade da natureza é abstrata,
pois não apresenta a presença das divindades míticas, e ampara o homem, enquanto sua
universalidade, já que o apresenta pelo uso do logos, fazendo-o parte do cosmo e, com
isso, interligando-o a todos os outros seres. Sendo assim, a natureza humana, ou seja, o
controle de seus impulsos e funcionamentos particulares se interligavam à natureza
universal, fazendo de todos os homens seres logikós e, por isso, partes do todo cósmico
que também é criador. Sendo assim, o homem é parte deste cosmo divino e, a partir
disto, cabe a ele entender os mistérios do universo.
A natureza já não se esconde em nenhuma parte; nós a conhecemos
inteiramente, somos os senhores do céu, que conquistamos,
observamos o nosso criador como parte que somos dele, e, filhos dos
astros, dele nos aproximamos [...] Que há de admirar se os homens
podem conhecer o céu, se neles próprios está o céu e cada um é uma
59 pequena cópia da imagem do deus? [...] Prole que rege todas as coisas,
o homem é o único dotado da capacidade de examinar a matéria, do
poder da fala e do entendimento, e é ainda instruído em diversas
habilidades: ele se refugiou nas cidades, domou a terra para que ela
desse frutos, domesticou animais e abriu a passagem no mar; firme e
de cabeça erguida no alto da fortaleza, dirige para as estrelas, como
um vencedor, os seus olhos semelhantes às estrelas, observa mais de
perto o Olimpo e interroga Júpiter; não contente só com o dos deuses
(dos astros), também perscruta o céu no seu âmago e, tomando em
consideração um corpo que é da mesma espécie que o seu, procura a si
mesmo nos astros [...] O céu mesmo chama as nossas atenções para as
estrelas e, como ele não oculta os poderes que tem, não admite que
eles passem despercebidos. Quem julgaria ser um crime conhecer
aquilo que é permitido conhecer? Não desprezes as tuas forças como
se elas estivessem presas numa alma pequena: o que há de poderoso
em ti não tem medida. Assim como uma pouca quantidade de ouro
supera em valor numerosos montes de bronze; assim como o
diamante, um nada de pedra, é mais precioso que o ouro; assim
também a pupila, pequenina que seja, vê todo o céu perfeitamente, e
aquilo com que os olhos exercem a visão é muito pequeno, enquanto o
que observam é muito grande; do mesmo modo, a alma, cuja sede está
posta dentro do diminuto coração, governa, a partir desse estreito
limite, toda a extensão do corpo. Não meças o tamanho da matéria,
mas atenta, sim, para as forças que a razão, e não o peso do teu corpo
tem: a razão tudo vence (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v. 883932).
Percebemos, com isso, que o homem é parte do universo, mundo ou cosmo,
divino, pois cabe a ele conhecer, através da razão, seus segredos. Marcelo V. Fernandes
bem nos mostra que, a partir da explicação estóica, o homem “é filho dos astros, é parte
da divindade que rege o universo. Nessa qualidade, ele sobreleva os demais seres e os
domina” (FERNANDES, 2006, p.38). O cosmo seria, então, um “conjunto de seres
ordenados em ato dinâmico, atualizado sempre” (GAZOLLA, 2008, p.105). A autora
continua:
Eles (os estóicos) asseveram o cosmos como ato/potência perene e de
uma só vez – sem antes e depois, sem temporalidade, sem vazio entre
corpóreos –, e firmam, assim, a “invariável variabilidade do ser”. O
60 cosmos é corpo perene em transformação sem deixar de ser ele
mesmo, é ousía31 e é divino.
[...]
O logos cósmico é o Todo, a ordenação, a Prónoia32, a Heimarméne33,
o Nómos34, Zeus. Ele é o próprio Pneuma35 que tudo dirige através de
tudo em mistura. No homem, assim também é ele [...]. Desse modo, o
divino cósmico na alma humana dá-se a conhecer com limites
(GAZOLLA, 2008, p.105 e p. 121-122).
O universo, dessa maneira, era entendido pelos estóicos como a divindade que
arquitetou o mundo, como a própria ordem dos astros e como a mistura destes dois
aspectos, ou seja, o universo era a criação ao mesmo tempo que era o criador. A
natureza seria, a partir disto, o “fogo artista” ou um “sopro ígneo e artesão” (Cícero. Da
natureza dos deuses, II, 22). Melhor dizendo, a natureza seria a força que se move por si
própria, mantendo a razão e a coesão entre todas as coisas criadas. Ildefonse destaca as
palavras de Plutarco:
Visto que a natureza universal se estende a tudo, tudo que acontece no
universo e em qualquer uma de suas partes deverá acontecer em
conformidade com esta natureza e com sua razão, segundo uma
sequência que não encontra obstáculo; visto que nada existe fora do
universo para se opor a seu governo e em nenhuma de suas partes são
possíveis um movimento ou estado que não sejam conformidade com
esta natureza (PLUTARCO, Sobre as contradições dos estóicos,
XXXIV, apud: ILDEFONSE, 2006, P.35).
O mundo seria formado por dois princípios: o primeiro passivo, a matéria,
substância que por si só não possuía nenhuma qualidade, ou seja, necessitava ser
moldada; e o segundo ativo, a razão modeladora que agia na matéria. Assim sendo, o
mundo foi formado pelos quatro elementos: fogo e ar (princípios ativos), água e terra
(princípios passivos). Manílio apresenta tal concepção em sua obra:
O fogo alado, se elevou às regiões mais altas e, abrangendo os mais
elevados pontos do céu estrelado, formou uma defesa de chamas para
proteção do universo. Em continuidade, o ar, que com seu sopro
Pode ser traduzida por essência ou substância.
Previsão.
33 Destino.
34 Na mitologia grega é conhecido como o daemon das leis, estatutos e normas ou como um dos aspectos
de Zeus.
35 Respiração, espírito e/ou alma.
31
32
61 desceu em ventos brandos e espalhou pelo espaço vazio do mundo o
ar que se concentrava no meio. O terceiro elemento aplanou as ondas
e as vagas flutuantes, e espargiu o mar assim acalmando, quando ele
provinha de todas as partes do oceano, de modo que a água se
evolasse e expelisse brisas de vapor, e alimentasse o ar, que dela toma
seus germes, e de tal modo que o sopro de tais brisas, avizinhando-se
dos astros, pudesse alentar-lhes a chama. Por último, a terra assentou
com o peso de sua esfera, e o lodo se juntou, misturando-se à areia
instável à medida que a água aos poucos fugia para lugares mais altos;
cada vez mais a umidade se apartou, indo formar a água pura, a
superfície do mar se abaixou, elevando-se a terra, e então sua água
correu e se dispôs junto aos vales profundos; montanhas emergiam da
agitação do solo, e por entre as ondas surgiu a esfera da terra, cercada,
todavia, pelo vasto oceano em todos os lados. Ela permaneceu estável
porque o céu inteiro se afasta dela com a mesma distância, e, descendo
por todos os lados, ela fez que não caíssem o seu meio e a sua
extremidade (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 190-215).
Fogo, deus e artesão são sinônimos na explicação estóica da formação do
universo. Assim como aponta Cícero, o fogo artista não é o que destrói, mas o que
“procede com método à geração das coisas” (CÍCERO. Da natureza dos deuses, II, 22).
Sendo o mundo criado por um logos que compõe a sua criação e dela faz parte, todas as
coisas se interligavam para os estóicos, ou seja, todos os seres, vivos ou não vivos,
possuíam afinidade entre si. O mundo seria um continuum energético de corpos, já que
“tudo, no mundo, se comunica: de próximo a próximo e de próximo a longínquo”
(ILDEFONSE, 2006, p.39). Tudo seria animado por uma simpatia universal que
compreende-se em uma teia de relações infinitas e, por isso, tudo existiria a partir de
uma relação causal com base no destino:
Uma das maiores audácias do pensamento estóico é a ruptura da
relação causal: as causas são remetidas profundamente a uma unidade
que lhes é própria e os efeitos entretêm na superfície os
relacionamentos específicos de outro tipo. O destino é primeiramente
a unidade ou a ligação das causas físicas entre si; os efeitos
incorpóreos são evidentemente submetidos ao destino, na medida em
que são efeitos dessas causas (DELEUZE, 1975, p.15).
O destino desempenhou um papel importante na filosofia estóica. Com estes
filósofos, o destino não era mais considerado apenas uma expressão exclusivamente
62 trágica ou uma força essencialmente extramundana. Este passou a ser uma realidade
natural inscrita na estrutura do mundo, “testemunho de uma disposição imutável na
ordem das coisas” (BRUN, 1986, p.56). O autor prossegue em sua explicação
mostrando que “o destino aparece assim como um nexus causarum, um nó de causas”
(BRUN, 1986, p.56), isto é, como “uma ordem e uma conexão que jamais poderão ser
forçadas ou transgredidas” (PLUTARCO. Sobre as contradições dos estóicos, I,
XXXVIII). O destino, dessa forma, seria a força que animava a simpatia universal, que
fazia com que todas as coisas se mantivessem numa relação harmônica de mútua
amizade. Sendo assim, cabia ao homem viver conforme a vontade da natureza divina
ordenadora de todas as coisas e animada pela força do destino. A ação do homem, a
partir desta conformidade, seria plena, enquanto a negação de tal acarretaria em uma
vida distante do ideal estóico, ou seja, o homem se afastaria da imagem do sábio para se
tornar mais um cego diante da vastidão do universo, tendo como papel ser dominado e
desprezado. Mesmo que o destino estivesse traçado, cabia ao homem perceber e
interpretar seus objetivos e seu lugar no espaço em que vivia, fazendo de si não apenas
passivo à ordem astral, mas também parte da própria divindade.
Tudo no mundo seria regido por essa força divina que mantém a regularidade de
todas as coisas, fazendo do universo, a partir das leis do destino, inexorável. Durante o
livro I, Manílio fez questão de narrar, em uma longa digressão, acerca da não alterável
regularidade da natureza e dos movimentos celestes, o que para ele se manifestava como
um sinal de que o universo era governado por uma força divina:
Assim, para que melhor possas reconhecer as brilhantes constelações:
elas não variam nem o pôr nem o retorno ao céu, mas cada uma,
constante, eleva-se de acordo com o seu tempo específico e conserva
ordenados os momentos do seu nascer e do seu ocaso. Nada, nessa
máquina tamanha, é mais admirável do que sua regularidade e o fato
de que tudo obedece a leis constantes. Em lugar nenhum uma
perturbação lhe causa dano; nada, em parte alguma, é levado a vagar
por um caminho mais extenso ou mais breve ou mudar a direção do
seu curso. O que mais pode haver de aparência tão complicada e, no
entanto, de movimentação tão regular? (MANÍLIO. Astronômicas,
Livro I, v. 584-599).
Dessa forma, para os estóicos que acreditavam em seu universo divino, ordenado
e simpático em relação a todas as coisas criadas, não era aceitável a crença epicurista de
criação do mundo pelos átomos e ao acaso. No livro I, Manílio deixa bem claro que não
63 há razão em acreditar que o universo tenha sido criado como os epicuristas pregavam.
As fortalezas do universo não poderiam ser explicadas a partir de um emaranhado
caótico de pequenas partículas (átomos), já que era uma força reguladora e divina que
regia o mundo:
Quanto a mim, nenhuma razão me parece tão evidente quanto essa,
para mostrar que o mundo se move segundo uma força divina e que
ele próprio é o deus, e que não se formou por ordem do acaso,
conforme quis que acreditássemos o primeiro que ergueu as fortalezas
do universo a partir dos elementos mínimos e a eles reduziu-as [...].
Quem poderia acreditar em tamanha quantidade de obras a partir de
tais elementos mínimos, sem o poder de uma divindade, e num mundo
criado pela combinação cega entre eles [...]. Tudo o que nasce
submete-se, por lei mortal, à mudança [...]. O céu, todavia, permanece
incólume e conserva as suas partes todas; nem a longa sucessão do
tempo o faz aumentar nem a velhice o diminui [...]. É o deus que não
muda no tempo (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 475-500).
A partir disto, cabia ao homem que buscava uma boa vida conviver, de forma
harmônica, com a natureza, despertando em si a porção divina concedida pelo criador
que também se mostrava como sua própria criação. O homem deveria buscar
compreender o universo, os astros e toda a natureza à sua volta, pois só assim
descobriria o propósito de viver que lhe foi concedido.
2.2.2. A Ética/Moral
A vida conforme a natureza era de suma importância para o estóico que via nisso
a única maneira do homem viver bem. Assim como já explicitado, o viver harmônico
entre homem e natureza era apresentado como a maior virtude e felicidade com a qual o
ser humano poderia almejar. Diógenes Laércio mostra que “e é nisso que consiste a
virtude e a facilidade da vida feliz”, sendo necessário realizar um “acordo harmonioso
do demônio que habita cada um com a vontade do governador do universo”
(DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 87). Porém,
temos que entender que esta busca não era compreendida em uma harmonização entre
duas forças diferentes e externas uma à outra. O homem possuía em sua formação parte
do divino que também formava esta natureza, ou seja, também era parte desta, mas
64 diferenciava-se pela utilização do logos. Nesta instância, a intervenção do homem passa
a ser ativa, já que este agia guiado pela razão.
A vivência conforme a razão era de extrema importância para o estóico, sendo
esta primeira tendência, a divisão da moral36, apreciada e ensinada por estes filósofos.
Manílio nos mostra o quão importante era para o homem viver conforme a natureza,
sendo guiado pela razão que era a agente formadora de todas as coisas:
De fato, antes deles (sacerdotes que foram os primeiros a interpretar o
mundo) o homem rude, sem nenhum discernimento, voltado apenas
para a aparência das coisas, carecia da razão e, admirado, ficava
absorto numa luz nova no céu, ora aflito por imaginá-la sumir, ora
alegre por vê-la nascer; pois nem Titã (o Sol) há de surgir tantas
vezes, pondo para fugir as estrelas, nem a variada e incerta duração do
dia e da noite, nem as sombras dessemelhantes, quando afastado ou
quando mais próximo o Sol, conseguia ele entender a partir das
causas. O engenho não inventara ainda as doutas artes, e a terra, sob
cultivadores rudes, devastada, cessava de produzir; nesse tempo, o
ouro se escondia nas montanhas desertas; o mar, não tirado de seu
repouso, furtava à vista novos mundos; e não ousavam os homens
confiar ao pélago as suas vidas ou aos ventos os seus votos; cada um
julgava saber bastante [...] A sagacidade sempre interessada no
conhecimento, a tudo venceu com seus esforços; e a razão não impôs
nem fim nem limite aos objetos de seu interesse até que se elevou ao
céu, compreendeu a natureza profundamente a partir das verdadeiras
causas e percebeu tudo o que existe [...] arrebatou a Júpiter o seu raio
e o seu poder de trovejar, e atribuiu o som aos ventos e às nuvens o
relâmpago (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 81-129).
Manílio não cessa sua explicação a respeito da importância da razão para o
homem que busca compreender o mundo a sua volta e, com isso, viver em harmonia
com a natureza:
Pois cantarei o deus senhor da natureza, de mente silenciosa,
espalhado pelo céu, pela terra e o mar, a governar com igual lei a
ingente máquina; e cantarei que o universo inteiro vive por um
consenso recíproco e é guiado pelo movimento da razão, já que um só
“As divisões da moral nos-são dadas por Diógenes Laércio. Os Estóicos distinguem na moral, parte da
filosofia: um estudo da tendência, um estudo dos bens e dos males, um estudo da virtude, um estudo do
soberano bem, um estudo do primeiro valor, um estudo das condutas convenientes, dos encorajamentos e
das dissuasões” (BRUN, 1986, p.75).
36
65 espírito habita em todas as suas partes e irriga o mundo [...]
(MANÍLIO. Astronômica, Livro II, v. 74-79).
Sendo assim, a tendência estóica se misturava ao entendimento do soberano bem
e à virtude no que explica, a partir da sabedoria, uma compreensão una das implicações
dos acontecimentos: a vida que é a razão e que é o deus. Dessa maneira, o bem e a
virtude são alcançados por aquele que vive em conformidade com o ser racional criador
de tudo e, com isso, poderiam ser definidos como o “útil”. De acordo com Brun, o útil,
para os estóicos, não era um valor técnico, “pois este não é o valor de que o homem é a
medida; o útil é o que está conforme ao sentido da vida, ao sentido do destino, ao
sentido da vontade do deus” (BRUN, 1986, p.77). O soberano bem não poderia ser
separado da compreensão de virtude, pois, no pensamento estóico, não se pode ser
primeiro virtuoso e só assim esperar o bem: ambos se cruzam imediatamente quanto à
realização pelo homem. A virtude, assim como aponta o autor supracitado, “é a
presença do bem numa pessoa, é uma perfeição em comum com o todo. Por isso a
virtude é una e total” (BRUN, 1986, p.78), e não divisível em grau ou intensidade: ela é
algo que existe no ser humano ou não. A excelência estóica não estaria, dessa forma,
ligada à conclusão dos objetivos propostos em vida, mas sim no viver, ou seja, no
caminho que o homem trilhava para alcançar seus resultados. Do que adiantaria para o
homem acumular, desenfreadamente, bens e riquezas se isso não o conectaria ao
supremo bem e nem faria dele um ser mais virtuoso? Manílio assim também se
questionou e apresentou que a harmonia e conformidade com as “coisas da natureza”
seriam a melhor maneira de atingir a plenitude:
Por que consumimos com tanta ansiedade os anos de nossa vida e nos
torturamos com o medo e com a cega cobiça? Envelhecidos por
eternas preocupações, enquanto procuramos o tempo, nós o perdemos
e, não pondo um fim a nossos desejos, sempre agimos como quem há
de viver e não vivemos nunca. Cada um, apesar dos bens que tem, é
ainda mais pobre, porque quer mais e não considera o que tem,
somente aquilo que não tem deseja. Embora a natureza peça pouco
para si, aumentamos com os nossos desejos a causa para uma grande
ruína e com os nossos lucros adquirimos o luxo e por causa do luxo
partimos para o roubo. Então a mais alta recompensa da riqueza é
esbanjar a própria riqueza? Libertai, ó mortais, os vossos espíritos,
aliviai-vos das preocupações e esvaziai a vida de tantas queixas
supérfluas. O fado rege o mundo, tudo se mantém sob uma lei
66 constante e o tempo, na sua longa sucessão, está marcado por
acontecimentos certos. Ao nascer, estamos destinados a morrer: nosso
fim depende do nosso princípio. Desse momento decorrem as riquezas
e os reinos, e ainda a pobreza, que mais vezes se origina, e as artes e
os costumes dados aos que nasceram e também os seus vícios e os
seus méritos, os seus prejuízos e os seus ganhos. Ninguém poderá
carecer do que lhe foi dado nem ter o que lhe foi negado, ou
constranger a fortuna por meio de rogos, ou escapar-lhe quando ela o
acossa: cada um deve suportar a própria sorte (MANÍLIO.
Astronômicas, Livro IV, v.1-22).
A ética do Estoicismo se definia, portanto, “por uma inscrição dentro da ordem
cósmica e natural, que é uma ordem racional”, ou seja, “a ética é racional, e o ideal do
sábio é erradicar as paixões e alcançar a impassibilidade e a autarquia: ele deve bastarse mantendo-se mestre de si mesmo” (ILDEFONSE, 2006, p.142-143). O sábio
comanda os seus próprios desejos; ele sabe que “de todas as coisas do mundo umas
dependem de nós, outras não” (EPICTETO. Pensamentos, I, apud: BRUN, 1986, p. 86).
Dessa maneira, cabia ao homem, que buscava ser este sábio, expurgar todas as paixões e
desejos que são contrários ao convívio harmônico e conforme a natureza. O homem
estóico não deveria se comportar como escravo das paixões, não deveria ter medo da
dor, do desejo e nem dos prazeres, não se deixando contaminar por tais doenças da
alma:
Com o estoicismo encontramo-nos na presença de uma concepção
quase intelectualista da paixão. Uma vez que a paixão é
essencialmente desatino, loucura, podemos dizer que ela tem, antes de
mais, por origem, o erro de julgamento, uma opinião falsa, uma
adesão indevida a uma representação falsa. A paixão não é pois, mais
a obra dos deuses mas a do homem (BRUN, 1986, p.83).
A partir da ideia do sábio estóico ter a sua vida guiada pela razão, que era divina,
e pela recusa aos prazeres e paixões, percebemos que a ética do Estoicismo mostrava
que o homem seria, então, um cidadão universal, melhor dizendo, defendia a ideia de
um cosmopolitismo. Todos seriam, a partir da simpatia universal com a qual todos os
seres estavam ligados, não somente cidadãos de sua cidade natal, mas sim do mundo.
Todos viveriam na República de Zeus, unidos e sob uma lei comum. Jean Pierre
Vernant nos mostra como seria entendida tal elaboração:
67 Simetricamente organizado ao redor de um centro, os espaços
políticos, uma vez de formar como nas monarquias orientais uma
pirâmide dominada pelo rei e, de alto a baixo, com uma hierarquia de
poderes, prerrogativas e funções, delineia-se segundo um esquema
geometrizado de relações reversíveis, cuja ordem se baseia no
equilíbrio e na reciprocidade de iguais (VERNANT, 1973, p. 169).
Sendo assim, percebemos que os desejos provocavam maior ou menor grau de
servidão no homem, “e é este o núcleo que os estóicos querem tocar, pois um homem
submetido à escravidão de uma paixão não pode escolher, portanto está afastado da
escolha para a ação moral por um subjugo, a priori” (GAZOLLA, 1999, p. 160).
Porém, assim como continua Rachel Gazolla, “é preciso frisar, todavia, que não há uma
insensibilidade aos acontecimentos, uma altivez estóica ou frieza diante dos males,
como passou a significar o adjetivo estóico”, pois o que percebemos é a existência de
uma “ausência de agitação violenta da alma, sinal da negação do tempo acumulador de
desejos insaciáveis” (GAZOLLA, 1999, p.170).
Pela vida em conformidade com a natureza divina, criadora do universo a partir
da razão, os estóicos percebiam que o homem deveria viver sem pressa de alcançar o
futuro ou preso ao passado. O tempo deveria ser vivido no presente e de forma sábia, já
que tudo estava programado conforme a força do destino. Victor Goldschmidt, autor
apresentado por Gazolla, apresentou tal ideia ao escrever:
A perfeição não é solidária do tempo que escoa e que parece inflar e
alongar-se [...] o próprio da paixão é sujeitar-nos ao tempo irreal, em
que o passado sobrevive para comunicar sua “existência” e seu
conteúdo
ao
futuro
(GOLDSCHMIDT,
1953,
p.202,
apud:
GAZOLLA, 1999, p.169).
A autora nos explica a ideia apresentada por Goldschmidt:
Esse belo comentário deste autor indica que, na saída do compasso
universal, o insensato mergulha na temporalidade propriamente
humana, perde-se no tempo agitador das paixões da alma, permanece
servo da memória e da esperança, isto é, do passado e do futuro.
Escravo das paixões, sua memória deseja o que não mais tem, do
mesmo modo que lamenta o que ainda não obteve. Inalcançáveis
ambos, passado e futuro, fica o presente dissolvido pelo peso das
lembranças e esperanças (GAZOLLA, 1999, p.170).
68 Dessa forma, Manílio nos mostra que, assim como já exposto na citação do
Livro IV (v. 1-22), cabia ao homem viver conforme as vontades do destino, do deus
racional criador do todo, que “escondia” nas estrelas os seus segredos.
Pois, qualquer que seja o gênero de coisas, quantos quer que sejam os
sofrimentos, todos os trabalhos e ofícios, quaisquer que sejam os
acontecimentos que podem preencher a vida humana em sua
totalidade, a natureza os encerrou na sorte, e os dispôs em tantas
partes quantos foram os signos que estabeleceu, e atribuiu a cada parte
suas propriedades específicas e sua função particular, e numa ordem
fixa distribuiu entre as estrelas toda a fortuna do homem, de modo que
uma fração, sempre limítrofe com a mesma parte, permanecesse junto
aos signos vizinhos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 80-90).
Por tanto, o homem deveria respeitar as contingências estipuladas por este deus
criador e próprio universo, possuindo, todavia, uma postura ativa e capaz de descobrir
os segredos salvaguardados nas estrelas.
2.2.3. A Lógica
Sobre a última divisão feita da filosofia estóica, temos que destacar que o
processo de produção do conhecimento de mundo que tais filósofos empreendiam se
baseava no empirismo. Porém, temos que salientar também que a empiria estóica
possuía um alcance diferenciado quanto à sua concepção. Como já explicitado, para os
estóicos o mundo era um ser vivo, como um deus, que regia tudo que foi criado a partir
da razão, gerando, com isso, tensão e simpatia que, para o homem, se traduziam em uma
convivência harmônica e de acordo com a natureza. Sendo assim, a empiria estóica não
seria aquela a lidar com aspectos qualitativos, mas um empirismo de compenetração do
homem e do mundo.
[...] sentir é ter os sentidos e a alma modificados pelo que é exterior;
esta modificação pode ser em harmonia com o que provoca, e neste
caso estamos na verdade, ou pode estar em desacordo, e nesse caso
estamos no erro e na paixão (BRUN, 1986, p.36).
A empiria estóica se mostra diferente das demais, especificamente da aristotélica
que, a partir de seu raciocínio, versa sobre o encadeamento de conceitos, como: se eu
sou um homem e todos os homens são mortais, logo eu sou mortal (a = b e b = c, logo a
= c). Já o raciocínio estóico versa sobre as implicações de relações temporais, ou seja, o
69 produto definidor da origem: se uma mulher tem leite é porque deu à luz. Dessa
maneira, o tempo estóico se mostrava diferente, pois este, além da expressão da
sabedoria divina, é expressão do dinamismo da vida universal e da sua harmonia. Com
isso, o homem no tempo se torna único, não podendo ser imitado ou possuir um igual:
“o que existe são dois indivíduos e jamais serão idênticos” (BRUN, 1986, p.37).
Manílio escreveu sobre isso ao identificar que ainda os nascidos sob o mesmo
signo não seriam iguais:
Na terra, os que nascem são criados sob tal lei (dos dodecatemórias);
por isso, conquanto nasçam sob o mesmo signo, apresentam costumes
diferentes e vontades opostas; e frequentemente a natureza se
desencaminha, para pior, e ao nascer de um menino segue o de uma
menina: os dois nascimentos reúnem-se sob uma mesma estrela; o fato
é que cada astro sofre variação por causa das divisões que tem, e
muda, nas dodecatemórias, as suas influências específicas (MANÍLIO.
Astronômicas, Livro II, v.845-855).
Assim sendo, o empirismo estóico se baseava pela harmonia entre uma
experiência exterior e uma experiência individual, ou seja, entre a harmonia da natureza
do universo com a natureza do ser humano. Dessa forma, o estóico apreendia o mundo a
partir da representação das coisas que observava e sentia. Tal representação teria um
objeto por substrato, o representado, o que se diferenciava da imaginação, pois esta
repousava sobre o nada. Assim como nos mostra Brun, através das palavras de Cícero, a
representação seria “uma impressão que reproduz aquilo donde provem e não pode
exprimir aquilo de que não provenha” (CÍCERO. Primeiros Acadêmicos, Lucullus, VI,
apud: BRUN, 1986, p. 40). A representação seria, para o filósofo estóico, o primeiro
elemento de interação entre indivíduos e o mundo. Tal interação implicava em uma
relação entre dois seres vivos (o homem e o deus criador) e, por isso, a sabedoria
buscada pelo estóico aludiria “igualmente em aquiescência à vida do mundo, ao
desenrolar dos acontecimentos, fundada na razão. Tal tarefa é ação da dialética”
(BRUN, 1986, p.43).
A dialética seria, então, a sagacidade e/ou a capacidade de opor argumentos ao
que não é senão verossímil a fim de não ceder. Tendo papel importante em toda
elaboração filosófica estóica de explicação do mundo, a dialética explicava a lógica. Tal
implicava, ao mesmo tempo, uma visão de mundo que a sustém:
70 [...] implica um nominalismo que afirma que só o indivíduo possui
realidade enquanto os conceitos são apenas palavras; implica uma
teoria da simpatia universal segundo a qual todos os indivíduos estão
numa interação mútua; implica um teoria do destino, justificando as
ligações temporais de causalidade (BRUN, 1986, p.45).
A lógica estóica propunha ao filósofo um papel de professor, pois educar os
demais quanto à vida conforme a natureza era importante (Manílio empreendeu tal
tarefa em sua obra). Por isso, a dialética desempenhou uma enorme função dentro da
escola e na formação e continuação dos ensinamentos.
Se há um meio para educar os homens, este se efetiva pelo exercício
do logos em sua expressão argumentativa, isto é, na arte da dialética e
na da retórica, ambas pertinentes a lógica. Nessas duas artes, os
estóicos são mestres, e Crisipo, em particular, foi consagrado como o
grande dialético pós-platônico. Não é sem razão, portanto, que o peso
dado à causa eficiente sobrepõe a causa final. Não se trata, para o
estóico, de trabalhar a fim de obter algo posteriormente, mas
simplesmente de trabalhar, exercitando o logos segundo os princípios
doutrinários (GAZOLLA, 1999, p.92).
Ao discutirmos sobre a obra maniliana no primeiro capítulo, apresentando sobre
o autor, sua obra, o tema que aborda e suas possíveis intenções, e unindo isso com a
explicação e ligação deste com a filosofia estóica – assunto abordado no decorrer de
todo o capítulo II, aqui apresentado –, propomo-nos, a partir disto, a realizar uma
análise mais ampla, além da própria obra, unindo o autor a seu contexto. Na verdade, o
objetivo primário que impulsionou a produção deste trabalho é o de entender como a
obra em questão colabora com o entendimento do período do início do Principado,
especificamente a respeito do Principado de Otávio Augusto. O que salientamos aqui, a
partir de uma abordagem mais teórica, é que Manílio como um homem de seu tempo,
escreveu sobre a sua própria vivência. Ou seja, o autor escreveu a partir de suas
experiências, de seu lugar comum, sobre um tema que lhe interessava, sendo neste caso
a astrologia. A obra, dessa forma, é utilizada como uma possível aproximação do
período que desejamos compreender. Possível, pois não pensamos que um documento,
por maior valor que tenha (valor atribuído pelos historiadores), possa expressar o
contexto de sua produção de uma maneira completa. Este apenas apresenta o que para o
autor era, conscientemente ou não, importante.
71 Para tal intento, o de apresentar o contexto maniliano, percebemos através da
obra como o romano, especificamente Manílio, perpetuava certos ensinamentos e
exemplos a partir da eternidade das estrelas, rememorando feitos e homens do passado.
Assim como pontua Jaques Le Goff:
A história, enquanto produtora de memórias, ou seja, enquanto
engendradora de atos de poder, de zonas de conflito e de exempla, não
está, assim, tão longe da retórica das técnicas de persuasão, e por isso,
freqüentemente, os autores recorrem à formação de discursos em sua
prosa (LE GOFF, 1994, apud: GONÇALVES, 2010, p.103).
Para nós, a memória seria produtora de exempla, pois Manílio se propõe a eleger
modelos exemplares para a ordenação e manutenção da tradição no que diz respeito
principalmente à postura do bom líder. Percebemos tal ideia na explanação feita pelo
autor da Via Láctea como lar dos grandes homens que morreram. Entre estes se
encontrava Heitor, herói de Tróia que era ligado à dinastia Júlia de Augusto37. A partir
disto, compreendemos que Manílio elege grandes heróis e feitos, originários da
memória e da tradição romana, para legitimar o governo vigente. Desta forma, “o ato da
memória é um ato de poder e o campo da memória é um campo de conflitos”
(GUARINELLO, 1994, apud: GONÇALVES, 2010, p.103), sendo que esta é construída
e negada a partir dos interesses de quem a utiliza – no caso de Manílio, a memória
(conjunto de exempla) se baseia na confirmação e legitimação do Principado de
Augusto, perpetuando também este modelo a seus sucessores.
A partir disto, percebemos que Manílio empreendeu em seu poema um esforço
de explicar seu contexto a partir da eleição de exemplos capazes de aludirem a um
modelo ideal da organização e manutenção da ordem e paz romana. E é este o ponto
central da análise realizada no capítulo seguinte. Como já explicitado, em sua busca de
escrever um poema capaz de abordar conceitos e elaborações astrológicas na tentativa
de ensiná-las ao seus leitores/alunos, ao mesmo tempo em que se utilizava da filosofia
estóica como base para sua produção escrita, Manílio tentou exprimir tal conhecimento
seguindo uma forma específica a partir de uma beleza almejada. Dentro deste objetivo
duplo, o autor da obra Astronômicas apresenta o contexto em que viveu, remetendo-se a
eventos já ocorridos durante o processo de sua escrita. Por isso, no terceiro capítulo nos
centramos em entender o final das constantes Guerras Civis que assolavam Roma,
especificamente durante o segundo triunvirato, e o início do Principado com Otávio
37
“... e a raça Júlia, descendente de Vênus” (MANÍLIO. Astrologia, Livro I).
72 Augusto. Outros personagens são destacados, como Marco Antônio, a fim de melhor
entendermos o momento histórico sobre o qual decidimos nos debruçar, buscando,
dessa forma, compreender a visão manialiana a respeito de tais aspectos.
73 CAPÍTULO 3
A percepção astrológica de Manílio e a elaboração do seu tempo: Uma
busca por estabilidade
Como explicitado nos capítulos anteriores, ao desenvolver seu poema
astrológico, Manílio apresenta ao seu leitor/aluno um pouco do momento em que vivia.
Tal momento é compreendido pelo período denominado como o início do Principado
romano, a partir de Otávio. Vale salientar mais uma vez que, mesmo que para nós
historiadores tenha sido instituído um novo modelo político a partir de Augusto e da
denominação de tal sucessão temporal como “Principado”, devemos perceber que o
romano não foi sensível a tal mudança, pelo menos não o que viveu neste período
analisado. Espelhando-nos na figura de Otávio, sabemos que este Princeps ao assumir
as magistraturas e ter o reconhecimento do Senado não instituiu um novo modelo
político, mas ao contrário:
Quando Augusto ganhou supremo poder como princeps, ele colocou o
sistema político romano em um caminho que não se desviou para a
duração do império: enquanto a retórica de um retorno para a
democracia da República aparecia nos textos da elite, os eventos
históricos demonstravam que esta não era mais uma alternativa viável.
(REVELL, 2009, p.80).
Assim como apresenta Geoffrey Sumi, ao assumir seu posto, Otávio se declarou
como o restaurador da Res Publica, além de receber grandes honrarias consolidando seu
papel como Imperador. Ele se utilizava de valores republicanos para criar uma “nova
forma” de governo: “Augusto adapta os requerimentos da tradição e dos valores da
República romana para sua própria necessidade e autopreservação política e dinâmica
[...]” (SUMI, 2005, p.221). Tal pensamento foi mantido, pois o “estabelecimento da
República constituiu para o romano a garantia da liberdade do cidadão, ou melhor, de
uma cidade livre” (TITO LÍVIO, I, 2, apud: MENDES, 1988, p.11).
Entretanto, nossa análise não abordará apenas a duração do Principado de Otávio
Augusto. Percebemos durante a leitura da obra maniliana a necessidade de estendermos
nosso olhar a um período anterior dominado pelas constantes Guerras Civis.
Apresentamos tal preocupação, pois observamos a insistência de Manílio em apresentar
74 o universo da forma mais ordenada e simétrica possível, ou seja, percebemos que o
autor d’Astronômicas tenta transformar a sua realidade a fim de garantir seu próprio
ponto de vista, que seria a ordenação de tudo pelo deus que é o próprio universo, e a
supremacia de Otávio como um líder digno de comandar todo o mundo.
Para realizarmos nosso objetivo, destacamos dois personagens principais a fim
de melhor entendermos os conflitos existentes durante o primeiro e o segundo
Triunviratos: o próprio Otávio e Marco Antônio – seu companheiro triúnviro.
3.1. Desestabilidade no final da República: as Guerras Civis
Temos que entender, primeiramente, o que aconteceu antes do enfrentamento
entre estes dois líderes romanos, pois o contexto em que ambos nasceram é conhecido
por grandes perturbações na ordem política que ocasionaram – e foram ocasionadas por
– Guerras Civis. O momento era de aliança entre outros três homens, de igual
importância para a Res Publica, no intuito de estabilizar a desordem na qual os romanos
se encontravam. Foram estes: Pompeu, Crasso e Júlio César. O objetivo de restaurar a
paz logo foi suprimido pelas vontades e desejos pessoais de cada um. Pompeu e Júlio
César desempenharam, neste momento, um confronto no qual cada um lutava pelos seus
interesses ao defender que seriam melhores líderes para uma Roma abalada e instável
devido às dificuldades ocorridas da necessidade de governar e manter o domínio sobre o
território conquistado nas margens do mar Mediterrâneo.
Pompeu, grande líder militar e reconhecidamente um homem político de muita
importância, ligado ao grupo dos optimates38, defendia uma manutenção dos órgãos
políticos e das leis que já existiam, pois acreditava que os conflitos ocorriam devido às
mudanças que os romanos tentavam engendrar em seus costumes de vida. Para ele,
deveriam ser impedidas as mudanças das instituições governamentais, a perda das
tradições que regiam o mos maiorum, e a ascensão ao poder de “homens novos”, isto é,
políticos oriundos de famílias fora dos círculos tradicionais (famílias não patrícias).
Por outro lado, Júlio César ganhava cada vez mais respeito e admiração perante
as camadas mais humildes da população. Sua política de restauração da Res Publica
baseava-se em expandir o território romano e, com isso, trazer conquistas e glória
Grupo mais conservador do Senado que defendia a conservação da República a partir da legitimação do
Senado como autoridade máxima. Sendo assim, todas as políticas empreendidas por este grupo visavam
impedir as mudanças das instituições governamentais e da tradição que regia o mos maiorum.
38
75 militar. Sua grande conquista territorial foi a anexação da Gália e, ao atravessar o rio
Reno, restabeleceu as fronteiras, impedindo o avanço dos germanos39. Mesmo assim,
sua impopularidade entre os seus pares crescia. A tensão entre ele e alguns componentes
do Senado, mais conservadores, dava a Pompeu certa vantagem.
Após a morte de Crasso em 53 a.C., durante a desastrosa campanha na Pártia, e a
de Júlia – filha de Júlio César e esposa de Pompeu –, nada mais unia os dois triúnviros.
A travessia do Rubicão empreendida por César em 49 a.C., a contragosto do Senado, foi
o estopim de todo o conflito, sendo a sorte lançada40 para ambos.
O confronto direto começou em 49 a.C.. O Senado, liderado por Catão41,
ordenou o regresso de César no intuito de lhe tirar todas as honrarias e magistraturas.
Em desobediência, César atravessou o Rubicão, ao norte da Península Itálica,
expandindo os limites territoriais romanos. Os optimates convenceram Pompeu da
afronta que tal atitude de César foi à Res publica e, a partir de então aliados, marcharam
contra o inimigo. Depois de alguns confrontos42, César termina vitorioso retornando a
Roma e adquirindo o cargo de Ditador43, estabelecendo, importante salientar, uma
aliança com Marco Antônio.
3.1.1. Um “novo” conflito: Marco Antônio
Depois de algumas medidas aceitas pelo Senado, mas que feriam a tradição
política romana, como a ditadura vitalícia, César foi assassinado antes de uma reunião
do Senado, nos Idos de Março, em 44 a.C. Alguns senadores, liderados por Marco Júnio
Bruto e Caio Longino Cássio – protegidos do próprio César –, se uniram e o
assassinaram. Dessa maneira, mais conflitos surgiram, fazendo de Roma um palco de
lutas entre generais com poderes bélicos e políticos equivalentes. Assim como apresenta
Norma Musco Mendes:
Ameaça aos romanos; provenientes do noroeste da Península Itálica.
Referenciando-nos à célebre frase dita por César na ocasião: alea jacta est ("a sorte está lançada").
41 Roma, 95 a.C. — Útica, 46 a.C.. Importante político romano conhecido por sua inflexibilidade quanto à
manutenção da moral romana. Adepto da filosofia estóica e contrário a César.
42 A Batalha de Dirráquio em 10 de julho de 48 a.C.; Batalha de Farsalos, travada na Grécia, no dia 9 de
agosto de 48 a.C.
43 Uma magistratura; o ditador era nomeado pelos cônsules do ano, autorizados para tal por um senatus
consultum emitido pelo Senado romano em circunstâncias de crise militar e/ou econômica. O cargo era o
único posto da hierarquia política da República que não obedecia aos princípios de colegialidade e
responsabilidade. Tinha a durabilidade de seis meses, posteriormente sendo estendido até um ano. 39
40
76 Sua morte (a de César), sem deixar de lado as noções
desenvolvidas pelos gregos sobre o tiranicídio, é entendida por nós
como resultado da ação de um grupo de senadores que se sentia
ultrajado em sua dignidade e em seus interesses pela ditadura vitalícia
de César, pois sabemos que para um senador romano a República era
uma forma de governo e um estilo de vida. (MENDES, 2006, p.24)
Foi durante estes embates que nasceu Marco Antônio. Nascido em 83 a.C.,
Antônio se valia do sucesso familiar para manter e legitimar seu poder perante a camada
aristocrática romana. Nas palavras de Adrian Goldsworthy:
Desde o início, Antônio esteve cercado por uma alta
expectativa de conquistas das gerações passadas. Roma era o mais
forte Estado no mundo e era liderada por uma liderança aristocrática.
Ser nascido em uma família senatorial fazia de uma criança
importante, particularmente se essa família estiver no centro da vida
pública […]. Antônio nunca duvidou que ter nascido de seus pais
significasse que ele seria um dos mais valorosos homens de sua
geração. Ele nasceu para a glória. (GOLDSWORTHY, 2010, p.93-94)
Seu avô, também chamado Marco Antônio, foi reconhecidamente um bom líder
romano (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, I). Grande orador,
obteve importantes conquistas militares, sendo a campanha contra a pirataria na região
da Sicília um marco em suas vitórias já que foi digna de receber o triunfo em Roma.
Sendo assim, em 102 a.C., se tornou o Governador da província da Sicília e iniciou um
processo de obtenção de diversas magistraturas: Cônsul em 99 a.C. e Censor em 97
a.C..
Já o pai de Antônio não teve tal reconhecimento. Pertencente ao Senado de
Sula44, não foi um grande líder militar nem um bom orador. Sua campanha contra a
pirataria em Creta, em 72 a.C., não foi bem sucedida e, para completar, não teve voz
perante o Senado. Pela derrota em Creta, o pai de Antônio ficou conhecido como
Creticus45, nome que o lembrava constantemente de seu infortúnio. Em uma de suas
batalhas contra a pirataria acabou morto, deixando Marco Antônio e sua mãe, Júlia
(advinda de uma família importante e prima de Júlio César), desamparados.
Ditador opositor a Mário (mandante do assassinato do avô de Marco Antônio), o que gerou guerras
civis.
45 “Os romanos chamaram-no, sarcasticamente, de Creticus – comandantes bem sucedidos recebiam com
frequência um nome para comemorar a vitória sobre o povo que derrotaram ou do território que
conquistaram” (GOLDSWORTHY, 2010, p.73), o que não foi bem o caso.
44
77 Aos onze anos Marco Antônio perdeu seu pai, porém, rapidamente ganhou um
padrasto, Públio Cornélio L. Sura (Cônsul em 71 a.C.). A partir dessa nova aliança,
Marco Antônio conseguiu apoio para continuar sua educação, tendo contato com a vida
política:
A vida pública romana era competitiva. Havia mais magistrados
jovens que postos ocupados por mais velhos, e nota-se o quão difícil
era manter um Consulado. Muitos senadores nunca ocuparam uma
magistratura. Membros de pequenos grupos ligados às famílias bem
estabelecidas
providenciavam
um
desproporcional
número
de
cônsules. Essas famílias tinham boa reputação e os votantes tendiam a
preferir
os
nomes
de
quem
eles
reconheciam
[…].
(GOLDSWORTHY, 2010, p.36-37)
Como podemos perceber, a vida pública romana era aberta, o que possibilitava o
aprendizado dos adolescentes em formação. Antônio, assim como o pai biológico, não
teve méritos por sua oratória. Contudo, compensava essa falha com um rigoroso
treinamento físico, associando sua família a Hércules como um ancestral46:
Agradava-lhe (a Marco Antônio) que o comparassem com Hércules:
“a barba bem formada, o peitoral amplo e o nariz curvo lhe
outorgavam um aspecto forte, viril, tal como a gente conhece pelas
pinturas de Hércules, cujo as imagens se assemelhavam”. (ZANKER,
2005, p.67-68)47.
Sua maneira de se apresentar já demonstrava uma exposição de seus atributos
físicos:
Antônio tinha sua própria maneira de se destacar. Ao ir crescendo, ele
cultivou uma fina barba e ao invés de deixar sua túnica abaixo dos
joelhos, a vestia acima para mostrar suas pernas musculosas.
Encorajado por uma história de que era descendente de Hércules, às
vezes Antônio usava uma pele de animal cobrindo o corpo e uma
espada […] (GOLDSWORTHY, 2010, p.98-99).
A juventude de Antônio foi um momento conturbado e do qual não temos
muitas informações. Sabemos de sua amizade com Caio Scribonius Cúrio, que o
introduziu em uma vida desregrada com bebidas, mulheres e excessos:
46 Disto já se falava desde a Antiguidade, isto é, que a família dos Antônios descendia de um Anton, filho
de Hércules, do qual ele conservava o porte e o nome; esta opinião Marco Antônio procurava confirmar
não somente pela figura e pela forma natural do seu corpo, mas também pela maneira de se adereçar e de
se vestir (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, V).
47 O autor se apoia nos escritos de Plutarco, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas.
78 Tornando-se Antônio um belo rapaz, na flor da idade, travou relações
com Cúrio; ao que se diz esta amizade e conhecimento foi uma
calamidade, pois era ele um homem perdido e viciado em tudo o que
há de mais torpe, e para ter Antônio ao seu dispor, levou-o a fazer
grandes despesas com mulheres, dando banquetes e festas, de modo
que em pouco tempo ele ficou endividado; tão grande era a quantia
que dificilmente ele poderia pagá-la, demasiado grande para sua
idade, isto é, duzentos e cinqüenta talentos; o mesmo Cúrio era o
causador dessa dívida, e por isso seu pai, vindo a sabê-lo, afastou
Antônio de junto dele e proibiu-lhe entrar em sua casa. Foi então ele
buscar a companhia de Clódio, o mais temerário e o pior dos homens
que então se davam ao governo das coisas públicas e por algum tempo
participou da sua temeridade, que punha em grande sobressalto toda a
cidade de Roma; mas afastou-se dele bem depressa, pois cansou-se e
aborreceu-se com o seu furor e também porque começou a temer o
poder dos que estavam contra ele (PLUTARCO, Vida de Marco
Antônio, Vidas Paralelas, II).
Tal proximidade foi nociva, permitindo Cícero afirmar que eles mantinham um
relacionamento afetivo, assim como nos apresenta Plutarco (GOLDSWORTHY, 2010,
p.101). Por ter grandes dívidas em Roma, feitas pelo estilo de vida extravagante que
seus amigos o ensinaram a ter, Antônio partiu para a Grécia dando continuidade à sua
educação. Durante este tempo, entre os 20 e os 26 anos, Antônio se acostumou com o
estilo de vida oriental:
Partiu então da Itália e foi à Grécia, onde passou o tempo em
exercícios militares e no estudo da eloqüência. Usava da maneira de
falar que se denomina asiática, a qual florescia e estava em grande
voga naquele tempo, e tinha também grande conformidade com seus
costumes, e sua maneira de viver que era vaidosa, cheia de
fanfarronice
e
de
ambição
desigual
e
pouco
comunicativa
(PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, III).
Aos 26 anos de idade, Antônio ainda não tinha tomado posse de nenhum cargo
político e não havia participado de nenhum embate militar. Isto era incomum, pois os
jovens iniciavam suas carreiras cedo a fim de estabelecer sua posição perante os demais.
Acostumado com a vida que levava em solo grego, Antônio foi ter sua primeira
experiência militar apenas em 57 a.C. Gabínio, Cônsul, que marchava em direção à
Síria e depois foi ao Egito a pedido de Ptolomeu, convidou-o a se juntar a ele nesta
79 jornada. Antônio, acreditando que havia nascido para a grandeza (PLUTARCO. Vida de
Marco Antônio, Vidas Paralelas, III), não aceitou ser apenas um soldado comum e, por
isso, Gabínio lhe concedeu o comando da cavalaria. Plutarco mostra o papel de destaque
que Antônio obteve durante estas excursões:
Antônio então para lá foi mandado, com a cavalaria, e não somente
conquistou essa passagem, mas também tomou Pelúsio, que é uma
cidade grande e poderosa, com todos os soldados que lá se
encontravam. E, fazendo isso, tornou ao mesmo tempo fácil e seguro o
caminho para o resto do exército e a esperança da vitória. Os mesmos
inimigos, na cidade, gozavam da sua gentileza e bondade e do desejo
que tinha ele de se ver honrado; pois, Ptolomeu incontinente ao entrar
na cidade, pensou em passar à espada muitos dos egípcios que lá se
encontravam, pelo grande ódio que nutria contra seus habitantes, mas
Antônio a isso se opôs e não permitiu que ele o fizesse. Em todas as
outras batalhas e escaramuças, que foram muitas, Antônio praticou
muitos atos de bravura, próprios de um genial comandante; como
quando ele cercou e rodeou por trás os inimigos, deu a vitória aos que
combatiam de frente e por isso recebeu o prêmio e o estipêndio de
honra, que era devido à sua virtude. Também tornou-se conhecida de
todos a humanidade e a honestidade que ele usou para com Arquelau,
pois tendo sido seu familiar e hóspede, ele lhe fez guerra, por coação
de seu general, mas, depois de sua morte, fez procurar seu corpo e o
honrou com pomposos funerais e obséquios dignos de um rei. Por
estas e outras razões, ele deixou de si mesmo uma gloriosa lembrança
em Alexandria, e foi julgado como uma pessoa muito gentil pelos
romanos que estiveram nessa viagem. Tinha além disso uma
dignidade liberal, apresentando todo seu aspecto exterior certa beleza
de porte e de atitude, tinha a barba forte e espessa, a fronte larga, o
nariz aquelíneo, e em seu rosto transparecia tal virilidade como a que
se vê representada em medalhas e imagens pintadas e modeladas,
como as de Hércules (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas
Paralelas, IV-V).
Mesmo tendo obtido sucesso durante estas campanhas militares e, com isso,
enriquecido, Antônio não voltou a Roma. Em 52 a.C., ele se juntou ao exército de Júlio
César e não ao de Crasso, sucessor de Gabínio. Não se sabe ao certo como tal
80 aproximação ocorreu, porém especulamos que ligações entre as famílias importantes
eram comuns e, por isso, a aproximação de Antônio e César não seria algo inconcebível.
Para manter Antônio por perto, César forneceu a ele uma assistência financeira,
integrando-o ao Senado e garantindo-lhe cargos, como Tribuno da Plebe e, mais tarde,
ingressando-o em colégios sacerdotais. Depois disso, Antônio retornou a Roma e, aos
30 anos, ocupou outros cargos, como o de Questor. Desta maneira, Antônio se
encontrava presente na capital para presenciar o conflito entre Júlio César e Pompeu.
Baseado em toda a assistência que obteve, era óbvia a escolha que Antônio faria: ficaria
do lado de César e, com isso, enfrentaria a ira do Senado mais conservador.
É importante salientarmos a aliança entre estes dois homens: César, um grande
general em busca do apoio do Senado pela sua causa, poderia ter se aliado a qualquer
um para defender seus propósitos. Ao invés disso, contribuiu para o desenvolvimento de
Antônio, um homem cuja vida política e militar acabara de começar. Partindo do
pressuposto de que César enfrentava um grande problema em Roma devido ao seu
confronto com Pompeu e de que, por isso, deveria agir sabiamente até mesmo na
escolha de seus aliados, podemos compreender que Marco Antônio possivelmente não
seria o despreparado e desqualificado que as fontes insistem em nos mostrar. Algum
valor ele tinha, mesmo que familiar, pois se assim não fosse não teria tido as
oportunidades no exército de Gabínio e muito menos teria sido assistido por César.
As constantes batalhas políticas travadas pelos opositores de César e parte do
Senado impossibilitavam uma estabilização da Res Publica. Antônio passava, então, a
enfrentar boa parte do Senado:
Os amigos de César, então, fizeram outras propostas e pedidos, que
pareciam razoáveis e úteis, aos quais, porém, Catão se opôs; e
Lêntulo, um dos Cônsules, fez Antônio sair à força do Senado. Contra
ele dirigiu então o mesmo Antônio graves palavras de protesto e de
crítica: depois vestiu a roupa de um escravo e correu a toda pressa
para César, com Quinto Cássio, tomando uma carruagem. Apenas lá
chegaram, puseram-se a gritar em altas vozes que em Roma tudo
estava convulsionado, pois não era mais permitido aos Tribunos do
povo falar livremente, pois eram expulsos com grande perigo de suas
vidas aqueles que ousavam defender o direito e a eqüidade. Por isso,
César lançou-se imediatamente contra a Itália com seu exército;
diz Cícero em suas Filípicas que assim como Helena foi causa da
81 guerra de Tróia, assim Antônio foi autor da guerra civil […]
(PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, VIII).
Em um momento foi exigido que César se desfizesse de seu exército, porém
Antônio e Cássio vetaram tal proposta, já que percebiam nela uma tentativa de
enfraquecer César e, com isso, fortalecer Pompeu. A defesa que Antônio fazia a César
era tão intensa que ele chegou a ser acusado pela agressividade contra Pompeu.
Nos eventos já descritos, César tomou Roma de Pompeu e o expulsou da
Península Itálica. Marco Antônio, com isso, se tornou um dos homens de confiança de
Júlio César, juntamente com Lépido e Dolabela. Ocupando tal lugar de prestígio,
Antônio não mudou seu comportamento, continuou a seguir o estilo flamboyant48 da
vida oriental. Manteve uma relação conturbada com Fúlvia e, sem nenhuma discrição,
desfilava pela cidade com suas amantes: “Esperava-se pelo menos um pouco de
discrição, e isto era algo que Antônio mostrava não conhecer mesmo quando
necessário” (GOLDSWORTHY, 2010, p.179).
Não era nenhum segredo a desaprovação que Cícero fazia deste estilo de vida, o
que irritou, e muito, Antônio. Enquanto ainda não havia ocupado nenhum cargo, Cícero
acusava-o abertamente de lascivo e causador da Guerra Civil entre Pompeu e César. No
momento em que Antônio começou a ocupar cargos de confiança, a partir de sua aliança
com César, Cícero se viu ameaçado. Pediu exílio para fora da Itália, mas seu pedido não
foi aceito e, além de tudo, foi acusado de corroborar com os interesses de Pompeu que,
no caso, eram defendidos pelo seu filho Sexto Pompeu.
Cícero relata a resposta de Antônio ao seu pedido de exilamento:
Seus planos são corretos. Para qualquer um que se interesse em
continuar neutro em tais disputas, nunca deveria deixar sua terra natal,
enquanto o homem que parte mostra tomar partido de um lado ou de
outro. No entanto, não cabe a mim determinar quando alguém tem o
direito legal de partir. A missão que César me deu foi de não permitir
que ninguém saia da Itália. Realmente, não importa o que eu ache dos
seus planos, desde que eu não estou permitido de deixar que parta.
Penso que deves escrever diretamente a César pedindo sua permissão.
Tenho certeza que será bem sucedido, especialmente assegurando sua
amizade a nós (CÍCERO, Cartas para Ático, X).
48 Árvore típica do Oriente Mediterrâneo, conhecida pela sua coloração e beleza. Devido a isto, é
comparada a um estilo de vida dos que vivem apenas pelo prazer e se associam aos costumes orientais.
82 A derrota de Pompeu provocou no Senado um grande temor, pois a maioria
apoiava o adversário de César. Nesta batalha, não é claro o papel que Antônio
desempenhou, porém sua importância é destacada por Plutarco (Vida de Marco Antônio,
Vidas Paralelas, XI) que o mostra como comandante do flanco esquerdo – mesmo que
não tenha desempenhado nenhum papel decisivo na batalha.
Ao chegar a Roma, o Senado, que antes estava contra César não demorou em lhe
prestar lealdade, dando-lhe o cargo de Ditador pela segunda vez e estendendo a
magistratura para um ano, ao invés dos seis meses habituais. Mesmo tendo sucesso
militar, Antônio foi chamado por César para desempenhar cargos políticos na Itália.
Mais uma vez temos exemplificada a importância que Marco Antônio tinha perante sua
relação com César. Como já explicitado, César sabia que para manter a estabilidade de
seu governo deveria agir em harmonia com as vontades do Senado, pelo menos de sua
maioria, buscando não desrespeitar a tradição. Ao confiar a Antônio cargos políticos,
César fazia deste seu representante perante os demais.
Foi-lhe concedido o cargo de Magister Equitum (Mestre Equestre), decisão que
foi seguida por grande controvérsia, pois mesmo aos trinta e cinco anos, Antônio ainda
era novo para ocupar tal cargo e, como agravante, não tinha ocupado magistraturas
importantes, tendo sido apenas Questor e Tribuno. Este novo cargo dava a Antônio
grande poder, o que também preocupava o Senado. César não se arriscaria por Antônio
se este não tivesse mostrado o mínimo de habilidade necessária para se manter na vida
política. Ao que tudo indica, Marco Antônio era para César um de seus aliados mais
prezados e, com isso, digno de desempenhar diversas magistraturas. Dessa maneira,
trabalhamos com a hipótese de um mascaramento das qualidades de Antônio pelas
fontes a fim de satisfazer as necessidades de outro líder romano, também protegido de
César: Otávio. Ou seja, uma manipulação das informações com o propósito de glorificar
as ações do segundo e destacá-las pela comparação com as de um homem de igual
reconhecimento.
Mesmo ocupante de um dos cargos de maior prestígio em Roma, Antônio não se
desvinculou da companhia de atores e amantes. Apareceu, em uma das Assembleias
Populares, bêbado e recebeu a desaprovação dos outros componentes não sendo muito
bem quisto por todos, pois, além disto, se projetava como merecedor de todas as glórias.
Sobre suas bebedeiras, Veléio Patérculo destaca: “Lépido era o pior de todos os
generais, Antônio era melhor que muitos quando estava sóbrio” (VELÉIO
PATÉRCULO, História Romana, II).
83 Suas ações apenas pioravam aos olhos dos aristocratas! Além das companhias
ruins, exigia que fosse constantemente escoltado por soldados, até mesmo para as
reuniões no Senado – o que era considerado ultrajante. Seus atos de egoísmo foram
também destacados, assim como nos mostra Goldsworthy:
Antônio confiscou uma grande casa para morar nela, assim como
outros espólios, e tendia a tomar decisões que o favorecessem ou
favorecesse seus amigos, incluindo alguns dos atores e outros
considerados sem reputação (GOLDSWORTHY, 2010, p.210-211).
Durante as festas dos Lupercalia49, Antônio desempenhou papel decisivo para a
desaprovação referente à sua pessoa. De acordo com Plutarco:
Os romanos celebravam a festa e a solenidade a que chamam de
Lupercália, e César, coberto com um manto triunfal, estava na tribuna,
na qual se costumavam fazer os discursos ao povo, e de lá
contemplava o movimento dos que corriam. Nesse dia, é costume que
muitos jovens de famílias nobres e mesmo os que desempenham
nesses anos os mais altos cargos da magistratura, corram nus, pela
cidade, untados com azeite de oliva, e batam por brincadeira nos que
encontram pelo caminho, com correias de couro branco que têm nas
mãos. Antônio era um dos que devia correr. Deixou, porém, as antigas
cerimônias e costumes daquela solenidade e sem mais correu para a
tribuna onde César estava sentado, tendo nas mãos uma coroa
de louros, em redor da qual estava presa uma faixa, a que chamam de
diadema, e era antigamente o sinal dos reis. Chegou bem perto dele e
se fez levantar por uns dos que com ele corriam e tentou por a coroa
sobre a cabeça de César, querendo dizer que ele merecia ser rei. César
fingindo não vê-lo voltou o rosto e com isso todo o povo se rejubilou e
aplaudiu com muitas palmas. Antônio novamente tentou aproximá-la
de sua cabeça e de novo César desviou-a, e assim estiveram alguns
minutos em tentativas, um e outro; todas as vezes que Antônio tentava
fazê-lo receber essa coroa de louros, um pequeno número de seus
sequazes aplaudia, e todas as vezes que César a recusava, todo o povo
unanimemente batia palmas. Era isto uma coisa realmente notável,
que aqueles que tinham experimentado o que fazem os reis aos seus
súditos detestavam e aborreciam o mesmo nome de rei como a
49 Comemorada no dia 15 de fevereiro, a festividade deveria garantir fertilidade e a purificação que
Roma necessitava no fim do ano (março).
84 abolição e a destruição de sua liberdade. Pelo que César, perturbado,
levantou-se e descobrindo seu pescoço apresentou-o, dizendo alto que
lhe cortassem a cabeça se quisessem. Esta coroa foi depois colocada
sobre a cabeça de uma das estátuas de César, mas alguns tribunos do
povo a arrancaram, e por isso o povo muito os louvou, e os
acompanhou com grande séquito até suas casas, para lhes prestar uma
homenagem, batendo, ao mesmo tempo, muitas palmas. César, porém,
os destituiu do seu cargo (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio,
Vidas Paralelas, XVI).
Tais atitudes mostravam o quão impulsivo era Antônio, qualidade não
valorizada pelo Senado. César não queria ser reconhecido rei, e assim fez entender ao
rejeitar a coroa que Antônio insistia em lhe dar. Entretanto, Antônio mostrou com essa
brincadeira a valorização que prestava aos costumes orientais, desprezando os valores
tradicionais ligados ao mos maiorum e à Res Publica.
Antônio, não satisfeito com o papel que vinha desempenhando, se voltou contra
alguns interesses de seus próprios partidários. Impediu a eleição de Dolabela como
Cônsul e nada falou para César sobre a conspiração de Cássio e Bruto. A conspiração
aconteceu, César morreu e Antônio se viu sem apoio:
Antônio foi Cônsul, mas ele também era de uma família importante,
algo que ele repetiu diversas vezes em seus discursos. Ele esperava ser
um dos líderes de Roma e ganhar magistraturas e honras. Porém, ele
ainda precisava de dinheiro, pois o que tinha ganhado com a Guerra
Civil havia acabado, e seu estilo de vida necessitava de um gasto
dispendioso (GOLDSWORTHY, 2010, p. 220).
Primeiramente, tentou uma aliança com Cássio e Bruto, concedendo-lhes
comandos de províncias e outras benesses. Entretanto, ao perceber que a opinião do
povo era contrária aos assassinos, colocou-se prontamente em lugar de oposição. A
única saída que percebeu ter foi a de se proclamar vingador da morte de César. Assumir
tal postura como aquele que vingaria os atos acometidos a outro não era algo incomum
em Roma. Na verdade, o ato era legalizado e permitido a partir de algumas instâncias,
como furto, mutilação de membros, entre outros crimes. Geralmente, os parentes ou
pessoas próximas da vítima eram os que se posicionavam com o direito, e dever, de
vingar a fatalidade ocorrida. No nosso caso, Antônio se colocou como vingador de
César assumindo que seu assassinato foi um atentado não somente particular, mas
também uma ferida à tradição e à paz da Res Publica. Sendo assim, por direito, Antônio
85 (e posteriormente Otávio) se declarou como aquele que faria justiça ao então
assassinado César, tendo a permissão do Senado para fazê-lo50.
Durante a caminhada fúnebre feita ao assassinado, Antônio manifestou o quanto
César tinha sido honrado em vida:
Mas a opinião que ele concebeu de si mesmo, depois de ter ouvido a
voz do povo e sondado a sua vontade, com a esperança que prometia a
si mesmo de que ele seria com certeza o primeiro homem do mundo,
quando tivesse vencido a Bruto, afastou-lhe logo da mente estes
primeiros discursos. No dia em que se levava o corpo para a
sepultura, ele fez um elogio fúnebre em plena praça, exaltando a
César, como era costume antigamente louvar os grandes personagens
por ocasião de seus funerais. Vendo que o povo sentia com isso muita
satisfação, e se exaltava, ouvindo falar de César e engrandecer os seus
feitos, ele entremeou na sua oração palavras de comiseração e tocou
em coisas que movem o coração à piedade e à compaixão,
aumentando e exagerando os fatos. Quando chegou ao término do
discurso, ele distendeu à vista do povo as vestes do falecido, ainda
ensangüentadas e rasgadas pelos golpes de espada que ele tinha
recebido, chamando àqueles que haviam praticado o crime de
assassinos, de homens malditos e condenados. De tal modo então o
povo se enfureceu, que tomaram o corpo de César e o queimaram na
praça com os bancos e as mesas dos cambistas, que reuniram de todos
os lados. Depois tomaram tições, quando o fogo estava alto e correram
às casas dos que o haviam matado, para incendiá-las e obrigá-los a
lutar. Por isso, Bruto e seus cúmplices, para garantir as suas vidas,
foram obrigados a sair da cidade. Então os amigos de César foram ter
com Antônio e sua mulher, confiando nele, fê-lo ir à sua casa e pôs em
suas mãos grande parte do seu dinheiro, que podia elevar-se a quatro
mil talentos, e tomou ainda todos os papéis de César, entre os quais
estavam os registros e as memórias de tudo o que ele havia feito e
determinado (PLUTARCO, Vidas Paralelas, XVIII).
Cássio e Bruto rapidamente fugiram de Roma em direção ao Oriente. Antônio se
colocou, então, como poder máximo na capital, proclamando que suas ações apenas
condiziam com as intenções de César. Leu seu testamento perante o Senado e se
50 Sobre o assunto: CANTARELLA, Eva. Los Suplicios Capitales em Grecia y Roma. Madrid: Akal,
1996, p.287-311.
86 posicionou como cumpridor de tais diretrizes, ao mesmo tempo em que se tornara seu
vingador.
3.1.2. Um “novo” conflito: Otávio Augusto
Neste tempo conturbado, outra figura surgiu com maior força: Otávio. Filho da
sobrinha de Júlio César, Otaviano foi adotado e educado pessoalmente por ele. Tratado
como um filho, o favoritismo que César despendia a seu protegido não era segredo.
Diferente de Marco Antônio que iniciou suas atividades políticas depois dos vinte e
cinco anos de idade (uma idade considerada avançada para se iniciar neste meio),
Otávio já acompanhava César em suas reuniões e obteve seu primeiro cargo aos
dezenove anos51.
Vinte anos mais novo que Antônio, Otávio ganhava a confiança de boa parte do
Senado e o apoio de homens como Cícero, um grande opositor de Marco. Após a morte
de Júlio César, e a contragosto do seu padrasto Filipo, Otávio assumiu o nome de César,
pois percebeu o quão legitimador isso seria para sua ascensão política. Assim como
Antônio, também se proclamou um vingador da morte de seu pai e, apenas com 19
anos, já representava um desafio a seu rival, mesmo que não diretamente.
A imagem que os documentos nos trazem de Otávio é oposta à de Antônio.
Nascido para o sucesso, como mostra Suetônio, Otávio se destacou desde muito novo.
Pelos laços familiares sanguíneos e por sua adoção, este homem é apresentado como um
exemplo de líder, tendo sido seu nascimento alertado por bons presságios e sonhos,
assim como destaca Suetônio:
Augusto nasceu no décimo mês e passou, consequentemente, por filho
de Apolo. Antes de dar à luz, Ácia sonhou que suas entranhas subiam
para os astros e se desprendiam por toda a extensão da terra e do céu.
O pai de Augusto, Otávio, também sonhou que o esplendor do sol saía
do seio de Ácia. No dia em que ele nasceu, estava sendo discutida na
Cúria a conspiração de Catilina, e uma vez que Otávio, em virtude do
parto de sua mulher, tivesse chegado muito tarde, é fato notoriamente
público que Públio Nigídio, quando soube da causa deste atraso,
declarou que havia nascido um senhor para o Universo. Otávio, mais
tarde, quando conduzia seu exército através das regiões longínquas da
51 Entrou para o colégio sacerdotal e teve o cargo de áugure.
87 Trácia, consultou a respeito do seu filho, cumprindo no bosque
sagrado do deus os ritos bárbaros. Recebeu dos sacerdotes a mesma
resposta: assim que o vinho fora espalhado no altar dele jorrou uma
chama tão grande que ultrapassou a cumeeira do templo, projetandose no céu. Pois, semelhante prodígio não acontecera senão para
Alexandre Magno, ao sacrificar-se nos mesmos altares. Na noite
seguinte, acreditou ver seu filho de um tamanho sobre-humano,
armado do raio e do cetro, revestido dos despojos de Júpiter Altíssimo
e Boníssimo, como também coroado de esplendores em um carro que
se apresentava ornado de loureiros, puxado por doze cavalos de uma
imaculada brancura (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A
vida dos dozes Césares, parte XCIV).
Dessa maneira, sendo digno de honra, Otávio desempenhou um papel decisivo
na História Romana, pois iniciou, de acordo com os historiadores atuais, o período do
Principado. Suetônio não se limita a descrever os bons presságios a respeito do
nascimento de Otávio:
Quinto Catulo, depois de haver consagrado o Capitólio, teve visões
durante duas noites consecutivas: na primeira, assistiu a Júpiter
Altíssimo e Boníssimo separar um dos numerosos meninos, de toga
pretexta, que brincava em torno do altar e colocar-lhe no seio o
estandarte da República, que ele empunhava. Na segunda, percebeu o
mesmo menino nos joelhos de Júpiter Capitolino. Uma vez que havia
ordenado o seu afastamento, foi nisso impedido por um aviso do deus,
dizendo-lhe que o educasse para a proteção da República. No dia
seguinte, quando encontrou Augusto, que ele jamais vira em parte
alguma, contemplou-o, mas não sem surpresa, pois, segundo afirmou,
era dotado de uma perfeita semelhança com o menino com o qual
havia sonhado (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A vida
dos doze Césares, parte XCIV).
Otávio seria, então, aquele que desempenharia um papel decisivo na
continuidade da Res Publica romana, mesmo que tendo definido um novo momento
histórico. Seriam as estrelas, expressões do deus criador, o próprio universo, as
confirmadoras de tal importância e, por isso, a astrologia seria um meio de propagar tal
ideia.
Através de um manual do saber astrológico, Manílio discorre sobre diversos
temas a respeito da organização universal (posicionamento das estrelas, planetas,
88 origem do universo, etc.), entretanto sempre salientando a ligação entre todas as coisas a
partir da noção estóica de harmonia universal. Esta ocorre devido à inexorabilidade do
universo, ou seja, a sua imutabilidade, fazendo com que este se comporte como uma
máquina, determinando as porções do bom e do ruim e mantendo o equilíbrio entre
todas as coisas. É neste universo que Manílio apresenta Otávio como o líder romano por
excelência:
Para eles (povos estrangeiros) o céu não é menor nem pior em luz,
nem menos numerosas nascem as constelações em seu orbe. Também
não são inferiores quanto ao resto: são dominados por um único astro,
Augusto, estrela que por sorte coube ao nosso orbe, o maior legislador
agora na terra, depois no céu (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v.
473-478).
Otávio é um governante tão bom que permite a Manílio narrar sobre esta difícil
matéria que seria o universo:
A mim, ó César, da pátria primeiro homem e pai, tu que reges o
mundo submisso às tuas augustas leis e que mereces, tu próprio como
um deus, o céu concedido antes a teu pai, e me inspiras e fortaleces
para cantar tamanhas coisas (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 812).
Dessa maneira, esta foi a imagem daquele que era digno de governar Roma e
restabelecê-la após as derradeiras Guerras Civis. Otávio, nesta obra, foi reconhecido
como o mais qualificado para governar, sendo seu signo, Capricórnio, apenas mais um
indício de confirmação:
Capricórnio, ao contrário, dirige seu olhar para si mesmo (qual outro,
em efeito, poderia admirar mais importante, se foi ele quem brilhou
com tão bom presságio no nascimento de Augusto) (MANÍLIO,
Astronômicas, Livro II, v. 507-509).
A partir de tal excerto, podemos definir que os três primeiros livros da obra
maniliana (no total de cinco) foram escritos durante o Principado de Augusto. A
expressão “o maior legislador agora na terra”, utilizada no Livro I, designa que este
Imperador se encontrava vivo naquele período, e ainda a exaltação de seu signo se torna
uma propaganda inerente à legitimação do poder imperial, já que apresenta Otávio
como o líder, não só de Roma, mas de todo o mundo, escolhido pelos astros.
Paul Zanker nos confirma a utilização que o próprio Otávio fazia de seu signo
para legitimar sua posição perante o Senado e o povo romano:
89 A partir daquele instante teve confiança em seu destino e publicou seu
horóscopo e, posteriormente, fez cunhar uma moeda de prata com seu
signo zodiacal, Capricórnio. Em efeito, o signo de Capricórnio
apareceu em moedas que os seguidores de Otávio levavam.
Posteriormente, o signo zodiacal de seu nascimento apareceu nas
outras moedas, tanto com o motivo de suas vitórias pacificadoras, para
recordar que Augusto estava predestinado pelos astros à redenção do
Estado. A partir do ano 30 a.C., o dia de seu nascimento foi celebrado
oficialmente em Roma como um dia venturoso (ZANKER, 2005,
p.71).
A partir desta oposição de imagens, o palco estava arrumado e a disputa entre
eles foi algo inevitável. Ambos queriam provar, assim como no primeiro Triunvirato,
que seriam melhores líderes. Antônio, de um lado, unia forças e exércitos mesmo não
possuindo grande experiência nisso. Otávio, do outro, fazia o mesmo, porém cuidando
também de suas alianças políticas. Utilizando-se de sua ligação com César, Otávio
divinizou-o com o beneplácito do Senado e, com isso, se transformou em filius divi.
3.2. Um confronto pelo bem da Res Publica: Otávio versus Marco Antônio
Ambos começaram a formar imagens distintas perante o Senado. Antônio, um
estranho ao seu próprio exército, não possuía o carisma necessário nas disputas políticas
e punia demais seus comandados. Enquanto isso, Otávio se mostrava como um general
clemente – característica importante – que buscava a paz e a estabilidade da Res
Publica. A diferença entre as lideranças foi tão clara que a Quarta legião e a legião
Marcia desertaram do comando de Antônio e passaram para o lado de Otávio (DION
CÁSSIO. História Romana, 45. 1-13).
Deixando as diferenças de lado, Otávio e Antônio se uniram contra inimigos em
comum: os assassinos de César. Aliando forças a Lépido, estabeleceram o segundo
Triunvirato, apoiado e formalizado pela Lex Titia, um senatus consultum de 27 de
novembro de 43 a.C.. Tal associação não foi muito bem quista e “os triúnviros eram
odiados, mas também temidos, e nenhuma voz falou contra eles no Senado”
(GOLDSWORTHY, 2010, p.98-99).
Plutarco confirma:
O domínio desses três personagens ficou sendo chamado triunvirato,
para muitas coisas odiosas e raiva dos romanos, mas disso dava-se a
90 maior parte da censura a Antônio, pois ele era mais velho do que
César, e mais poderoso do que Lépido, e porque voltara a viver
dissoluta e luxuosamente, como antes, logo que se viu fora de suas
incumbências: e além da má fama de que gozava por causa da sua
intemperança, ele era ainda muito odiado por causa da residência onde
morava, que tinha sido do grande Pompeu, personagem não menos
estimado e afamado pela sua temperança e por sempre ter vivido
honestamente e com simplicidade do que pelos seus triunfos
(PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, XXIV).
Sendo assim, Otávio e Antônio deixaram Lépido na Península Itálica e foram de
encontro ao confronto com Cássio e Bruto, na Macedônia. A batalha não foi fácil para
nenhum dos lados:
Otávio, vendo que não havia mais dinheiro suficiente para Antônio,
quis repartir as finanças com ele, e dividiram também o exército para
irem ambos à Macedônia, fazer a guerra contra Bruto e Cássio e
deixaram, no momento, o governo de Roma a Lépido. Depois de
terem atravessado o mar começaram a guerra, estando acampados
perto do inimigo, isto é, Antônio contra Cássio e César contra Bruto,
César nada conseguia; coisa diferente, porém, passava-se com
Antônio que vencia sempre, e fazia tudo: na primeira batalha César foi
derrotado por Bruto, e perdeu o campo, de modo que com dificuldade
pôde se salvar, fugindo rapidamente para escapar aos que o
perseguiam. Todavia, ele escreve em seus Comentários, que ele se
havia retirado antes que a carga tivesse começado, por uma visão que
tivera em sonho um de seus familiares: Antônio derrotou Cássio,
embora alguns tenham escrito que ele não estivera presente ao
combate, mas lá chegou depois da derrota, quando seus homens já
perseguiam o inimigo. Cássio foi morto por sua grande instância e
pedido, por um de seus servos, um fiel homem de nome Píndaro, ao
qual ele tinha dado liberdade, e isto, porque ele não fora advertido em
tempo que Bruto tinha vencido, do seu lado. Poucos dias, combateram
eles de novo e Bruto foi, então, derrotado e suicidou-se. Antônio teve
a principal glória da vitória, considerando-se que, então, Otávio estava
enfermo. Tendo encontrado o corpo de Bruto, disse-lhe algumas
injúrias, reprovando-lhe a morte de seu irmão Caio que ele tinha feito
morrer na Macedônia, como vingança pela cruel morte de Cícero, mas
91 no entretanto ele disse que culpava mais a Hortênsio que a ele; e por
isso fê-lo morrer sobre o túmulo de seu irmão. Ao contrário, lançou
sua cota de armas sobre o corpo de Bruto, que era muito rica. Depois
ele deu ordem a um de seus servos libertos que cuidasse da sua
sepultura, tendo depois sabido que o servo não fizera queimar a cota
de armas juntamente com o corpo, porque valia muito dinheiro, e que
ele tinha desviado muito da soma destinada aos funerais e à sepultura,
assim mandou matá-lo (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas
Paralelas, XXV).
A não clemência de Antônio para com seus inimigos, que também eram
romanos, causou grande desaprovação no Senado. Da batalha, o jovem César voltou
com a fama inabalada, mesmo com as baixas que obteve, enquanto Antônio se mostrou
desestruturado. Mesmo que a batalha de Filipos tenha sido, em grande parte, vencida
por Antônio, suas ações não condiziam com as de um bom líder. O Senado temia
Antônio e encontrou em Otávio força para enfrentar o que considerava um mal para a
Res Publica.
A desestabilidade entre os três era visível e mesmo delimitando territórios de
comando (Otávio ficou com a Gália e se manteve na Itália, Lépido na África e Antônio
nas províncias orientais), os confrontos ocorreram. Lépido rapidamente foi “descartado”
pelos outros dois52, o que gerou mais desgastes nesta relação já tão problemática. Além
disso, para selar a aliança, Antônio se casou com Otávia, irmã de Otávio, e, como bem
sabemos, não honrou tal compromisso.
Antônio não escondeu suas amantes, fazendo da mãe de um dos herdeiros da
Capadócia, Gafira, uma delas. Em 41 a.C., nesta época ainda casado oficialmente com
Fúlvia, Antônio solicitou a companhia de Cleópatra até Tarso, na Sicília, pois o Egito
era a principal fonte de grãos e monetário do leste mediterrâneo, sendo imprescindível
manter boas relações com este reino. Todavia, os dois acabaram se envolvendo
amorosamente e gerando filhos – gêmeos –, Cléopatra Selene II e Alexandre Hélio.
Cleópatra, com isso, garantiu a continuação de seu reinado e também a soberania
perante o Oriente: seu filho com César, Cesário, se torna o herdeiro do Egito.
O casal passou o inverno de 41-40 a.C. junto em Alexandria. Promoviam
grandes banquetes, jogos de montaria, entre outras festividades ligadas à tradição
macedônica. Antônio apenas deixou Cleópatra para enfrentar os Partos que invadiram a
52 Possivelmente pela associação e acordos que fez com Sexto Pompeu.
92 Síria e, não fazendo segredo dessa relação, continuou a manchar ainda mais a sua
reputação.
Mesmo assim, Otávio não declarou guerra ao seu colega de Triunvirato.
Manteve a divisão do Império e celebrou a concordia por toda a Itália. Além disso,
ambos ainda tinham um problema em comum que necessitava de uma solução rápida e
definitiva: Sexto Pompeu. Enquanto Antônio enfrentava os Partos sem obter resultado
positivo, Otávio combateu este inimigo53. Tal batalha não foi fácil, porém o exército
otaviano comandado por Marco Vipsânio Agripa derrotou a frota de Sexto Pompeu ao
largo do cabo de Náuloco, fazendo com que o inimigo fugisse. Ao chegar no Oriente,
Sexto foi assassinado em julgamento feito por Marco Tício, um homem do grupo de
Marco Antônio. Tal execução não foi bem vista pelo Senado que, mais uma vez,
desaprovou as condutas de Antônio e de seus subordinados.
Enquanto isso, se esbaldava na companhia de Cleópatra, sendo este
comportamento condenado por Otávio, como nos lembra Paul Zanker:
Depois de uma ruptura definitiva, as acusações contra Antônio
chegaram ao seu nível mais baixo: diziam que o Oriente o degenerara,
que era ímpio e afeminado, que estava constantemente embriagado
por Cleópatra (ZANKER, p.81, 2005).
Dion Cássio54 nos mostra a imagem que Antônio apresentava:
Seu quartel militar chamado de palácio real. Levava um punhal
oriental na cintura e se vestia de forma completamente diferente ao
que era de costume em sua pátria. Em público, inclusive, se mostrava
em um leito (como Dioniso) ou em um trono dourado (como um rei).
Junto com Cleópatra se fez representar em pinturas e em estátuas
como Osíris e Dioníso, e ela aparecia como Selene e Ísis. (DION
CÁSSIO. História Romana, 50.5)
Percebemos a partir da utilização desta fonte que a imagem de Antônio
construída como inimigo público no século I a.C. perdurou até o século III d.C..
Acolher o mau exemplo de Antônio também era importante, pois ensinava futuros
líderes do que não deveriam fazer. Otávio, enquanto isso, continuou como um exemplo
de excelente governante, contrastando sua imagem com a de seu rival e, com isso,
aumentando seu prestígio. O mau exemplo e o bom exemplo, respectivamente, eram
Filho de Pompeu, também se ligava ao grupo dos mais conservadores. Antes de entrarem no confronto
armado, Otávio, Antônio e Sexto tentaram a diplomacia. Em 39 a.C., os triúnviros assinaram um
armistício com Sexto conhecido como Pacto de Messina, que não durou muito tempo.
54 Notável historiador romano e escritor da História Romana, em 80 volumes.
53
93 necessários e, por isso, foram estabelecidos. A paz apenas poderia advir do confronto
nas Guerras Civis entre homens de posição social semelhantes e, para isso, um deveria
representar as desventuras e desvios pelos quais Roma passava, já que a pax deorum
havia sido quebrada.
Entendemos que o momento era de grande instabilidade na Res Publica romana.
Manílio escreve em seu manual acerca de tais eventos, observando a necessidade de
ordenação que apenas os astros, regidos por um deus que comanda todas as coisas de
forma harmônica, poderiam fornecer ao ser humano:
Não te admires com as graves desgraças dos homens e de sua
realidade: não aprendemos a dar crédito ao céu. Os cometas também
anunciam perturbações civis e guerras entre o mesmo sangue. Em
nenhuma outra ocasião o céu susteve mais incêndios do que quando as
armas leais aos sanguinários chefes (Bruto e Cássio) encheram com
seu exército os campo de Filipos, e na areia ainda dificilmente seca o
soldado romano se pôs de pé sobre os ossos e membros dos
companheiros, dilacerados pouco antes; o Império, usando de suas
próprias forças, entrou em conflito consigo mesmo, e Augusto, o pai,
seguindo os passos de seu pai, venceu. Mas ainda não era o fim:
restavam os combates de Ácio, travados por um exército dotal;
duvidava-se sobre a sorte dos acontecimentos, procurava-se no mar o
chefe do Olimpo, quando Roma hesitou, diante da possibilidade de se
submeter ao jugo de uma mulher (Cleópatra), e os próprios raios se
bateram com o sistro de Ísis; ao soldado fugitivo restavam os
combates contra escravos, quando Pompeu, o filho, pegando em armas
e imitando os inimigos paternos, apoderou-se dos mares que seu pai
havia defendido contra estes. Mas tenha sido isso o bastante para o
destino: que agora as guerras cessem e a discórdia, presa por cadeias
duras como diamante, tenha freios eternos, encerrada no cárcere; que
seja invencível o pai da pátria (Augusto), sob seu comando esteja
Roma e, quando ela o der como deus ao céu, não sinta sua ausência na
terra (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 907-928).
Manílio demonstra, como podemos constatar a partir da exposição deste trecho,
uma preocupação com a organização e manutenção da Res Publica romana. Os
constantes confrontos que desestabilizaram Roma deviam ser interrompidos, pois a
ordem deveria ser restaurada a fim de satisfazer sua necessidade explicativa do
universo. Quer dizer, além de almejar a paz pela força e representação da imagem de
94 Otávio como o melhor líder que Roma poderia ter, Manílio se empenha em apresentar a
harmonia universal (uma característica estóica, como vimos no capítulo 2), confirmando
assim sua teoria astrológica. O autor continua narrando sobre a gravidade da situação
pela qual Roma havia passado durante as Guerras Civis:
O lícito e o ilícito estão misturados, e a perversidade comete suas
crueldades por meio das próprias leis; o crime, agora, é demais para o
castigo. Com efeito, uma vez que as pessoas nascem discordes em
muitos signos, a paz foi subtraída de todo o mundo, e raro é o laço de
fidelidade, e concedido a poucos, e, assim como o céu discorda de si
próprio, assim também a terra diverge de si mesma, e as nações dos
homens são levadas por um destino de inimizade (MANÍLIO,
Astronômicas, Livro II, v.717-725).
E apenas crescia tal inimizade entre Otávio e Marco Antônio. Após o casamento
com Otávia, Antônio não conseguiu manter a discrição de seu caso com Cleópatra,
engravidando-a pela terceira vez. Na tentativa de recuperar seu poder, Antônio obteve
uma pequena vitória na Armênia e fez disso um grande acontecimento, comemorando
um triunfo em Alexandria e vestindo-se como Dioniso. Mais uma vez, os excessos de
Antônio lhe arruinaram, pois um triunfo apenas poderia ser comemorado em Roma e
seguindo preceitos estipulados pelo Senado.
Além disso, Antônio dividiu as províncias entre seus filhos com Cleópatra, com
a própria Cleópatra e com o filho dela e César, Cesário:
Pois mandou ele reunir todo o povo no parque, onde as crianças e os
moços se exercitam em ginástica e jogos de educação física, e sobre
uma tribuna coberta de prata, mandou colocar duas cadeiras de ouro,
uma para ele, outra para Cleópatra, e outras mais abaixo para seus
filhos: depois declarou publicamente diante de todos os presentes,
que, por primeiro, ele criava Cleópatra, rainha do Egito, de Chipre, da
Lídia e da baixa Síria, e igualmente Cesário, rei dos mesmos reinos.
Este Cesário era considerado filho de Júlio César, que tinha deixado
Cleópatra grávida. Em segundo lugar, aos seus filhos e dela, chamou
de reis dos reis e deu como partilha a Alexandre, a Armênia, a Média
e os partos, quando ele os tivesse subjugado e conquistado, e a
Ptolomeu, a Fenícia, a Síria e a Cilícia. Depois fez aparecerem em
público a Alexandre, trajando uma longa veste à maneira dos medos,
com um chapéu alto e pontudo na cabeça, cuja extremidade era reta,
como o usam os reis medas e armênios, e a Ptolomeu, coberto com um
95 manto à Macedônia, com pantufas nos pés, e um chapéu largo cingido
de uma faixa real, pois era assim que costumavam trajar os reis
sucessores de Alexandre, o Grande. Assim, depois que seus filhos lhes
prestaram homenagem, curvando-se diante dele e beijando o pai e a
mãe, imediatamente uma tropa de guardas armênios, organizada
expressamente, cercou um, e uma tropa de macedônios, o outro.
Cleópatra, porém, não somente então, mas sempre que saía em
público, diante do povo, vestia-se de trajes sagrados, como a deusa
Ísis, e dava audiência aos seus súditos, como uma nova Ísis
(PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, LXXI).
As notícias sobre o comportamento de Antônio chegaram a Roma e o Senado
desaprovou tais condutas. A disputa entre ele e Otávio ficou acirrada em 33 a.C.,
quando Antônio proclamou que Cesário era o verdadeiro herdeiro de César. Otávio
reverteu a situação em propaganda positiva para si, mostrando o quanto Antônio era
manipulado por Cleópatra. Otávio se fazia presente em Roma, participava da vida
pública e se colocava lado a lado com os demais Senadores. Enquanto isso, Antônio se
distanciava cada vez mais, deixando sua imagem ser “manchada” pelo excesso da
cultura oriental em seu estilo de vida. O Senado não tinha voz perante Antônio já que
ele estava geograficamente longe demais, o que fazia de Otávio um melhor líder no
momento.
Otávio obteve o consensus55 logo após a quebra do poder no Triunvirato, pois
mostrou-se como um líder benevolente e sábio, buscando restabelecer a República.
Através disto, sua autocracia foi reconhecida tanto pelas camadas populares quanto pelo
Senado. Para conquistar a confiança do Senado e do povo romano, Otávio entregou a
eles de forma cerimonial o controle da República, realizando com isto uma
autopropaganda como líder e conquistando o apoio entre todas as camadas sociais do
período:
Em meu sexto e sétimo consulados, depois de extinguir as guerras
civis e, por consenso de todos, senhor de tudo, passei a República de
meu poder para o arbítrio do Senado e do povo romano. Por esse
mérito pessoal fui chamado de “Augusto” por decreto do Senado; os
umbrais de minha casa foram publicamente cobertos com louros, uma
coroa cívica foi afixada acima de minha porta e um escudo de ouro
O consensus operante desde 32 a.C. não deve ser entendido como algo já existente e produzido,
independente da participação e da propaganda de Otávio, mas como um fenômeno encenado repetidas
vezes (LOBUR, 2008, p. 21).
55
96 posto na cúria Júlia. Atestava a inscrição do escudo que o Senado e o
povo romano o davam a mim pelo valor, pela clemência, pela justiça e
pelo senso do dever. Depois disso, vi-me à frente de todos pela
autoridade, mas nenhum poder tive a mais do que meus outros colegas
também investidos de cargos (AUGUSTO, Res gestae Diui Augusti,
XXXIV).
O consensus iniciou-se com a mudança de opinião a favor de Otávio em 32 a.C.,
através de uma comparação entre ele e Marco Antônio, já que ambos iniciaram
campanhas para se mostrarem grandes líderes. Antônio associou sua imagem a Dioniso
e aos refinamentos orientais, enquanto Otávio, mais prudente, se associou à própria
deusa Roma e às tradições romanas e itálicas. A propaganda que Otávio empreendia era
a mais aceita entre os romanos, pois se mostrava como um resgate da tradição. Já
Antônio, devido à sua ligação estreita com o Egito, não despertava uma boa impressão
para o Senado e, por isso, acabou por ferir a “sensibilidade romana”, ou seja, a
preocupação pela manutenção do mos maiorum.
Suetônio destaca que a relação entre estes dois triúnviros sempre foi incerta:
Sempre foi duvidosa e incerta a sua aliança (de Otávio) com Marco
Antônio, e diversas reconciliações serviram apenas para restabelecêla. Enfim, rompeu-a na intenção de melhor provar que seu colega
degenerara dos costumes nacionais, fez abrir e ler, em plena
assembleia, o testamento que deixara em Roma e no qual figuravam,
entre seus herdeiros, os próprios filhos que Antônio tivera com
Cleópatra. Porém, após ter declarado inimigo público, demitiu todos
os seus parentes e amigos, além de Caio Sósio e Cnéio Domicio, ainda
Cônsules naquela época (SUETÔNIO. A vida dos dozes Césares, A
vida de Otávio César Augusto, parte XVII).
Como mostra Veléio Patérculo, um pela salvação e o outro pela destruição do
mundo, respectivamente, Otávio e Antônio iniciaram um confronto bélico em Ácio
(VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II). A batalha foi dura, mas Otávio,
novamente com o auxílio de Agripa, saiu vencedor, obrigando Cleópatra e Antônio a
fugirem para Alexandria. Um ano depois, ambos cometeram suicídio com medo de
Otávio, que caminhou em direção ao Egito para “conquistar” o território. Todos os
filhos de Cleópatra foram assassinados e assim a paz e o fim da Guerra Civil foram
instaurados.
97 “A visível manifestação deste ‘consensus’, descrito, claramente existente nas
fontes é elevado ao nível de mitologia” (LOBUR, 2008, p.27). A imagem de Otávio
Augusto começa a ser cunhada como a de um herói mitológico fundador de Roma, o
que demonstra o poder que exercia perante toda a sociedade. No escudo de Enéias
(descrito por Virgílio – Eneida, Livro VIII) havia a mensagem “Liderando os italianos
na batalha, juntamente com o Senado e o povo”, demonstrando que Augusto adquirira
consensus no que tange seu poder em Roma56.
Mas o que seria esse consensus? Não possuímos a pretensão de acreditar que
este seria total e absoluto, e sim, se basearia em uma grande aprovação diante da figura
imperial. O texto de Clifford Ando trabalha com este conceito que para nós,
historiadores da contemporaneidade, se apresenta extremamente difícil de compreensão.
Consensus é empregado, no trabalho deste autor, no período do Principado romano, a
fim de facilitar a compreensão do exercício de poder nesta sociedade, representado pelo
Princeps, Senado e províncias. Tal consensus, por mais que instituído e idealizado
como universal, sempre foi a chave para se entender a relação existente entre estes três
grupos fundamentais para a compreensão do que seria o Império Romano. Percebemos,
então, que nenhum grupo ou indivíduo detinha em si poder – enquanto controle – total.
Era necessário articular ideias, conquistar aliados e com isso gerar consensus. Este não
seria dado ou, muito menos, intrínseco a alguém: deveria ser conquistado, legitimado e
cultivado para que existisse. Assim, ter consensus seria mais uma ferramenta de
propaganda do que uma certeza de legitimidade:
Documentos que invocam tal consensus raramente clamam por
representar a visão de todo o mundo; ao invés disso, eles pretendiam
representar a visão de grupos particulares. Ao fazer isso, estes
documentos criavam clivagens dentro da população geral, dividia
lealdades, e permitia a expressão de certa unidade somente quando
expressavam (os Imperadores) o compromisso com o estabelecimento
da ordem (ANDO, 2000, p.135).
O consensus, assim como afirma o autor supracitado, mostrava o limite entre o
poder real do Princeps e seu carisma. Desta maneira, temos uma ideia de unidade
política e geográfica, que se baseia em uma relação comum entre os liderados e seu
Sabemos que este consensus não era absoluto, por mais universal que ele possa ser nomeado. Temos
isso em mente pelo fato das incessantes demonstrações de Otávio como um excelente líder e restaurador
da República. Partimos do pressuposto de que se tal consensus fosse realmente aceito por todos e tido
como algo absoluto, não haveria a necessidade de tal afirmação constante do poder augustano.
56
98 líder, e se opera a partir da língua compartilhada e da cidadania concedida. O Princeps
assumia seu papel afirmando que exercia suas funções em nome e pelas causas da
República, mostrando que todos estavam submetidos às leis: o Imperador tinha como
prioridade em suas preocupações o bem público, ou pelo menos essa era a ideia que se
esforçava para passar. Voltando-nos ao exemplo de Augusto57, mesmo obtendo
inúmeros títulos e crescente poder, ele não se opôs ao Senado dentro de sua política. Ao
contrário, reconhecer a autoridade do Senado era reconhecer sua própria autoridade
(autoridade do Princeps, neste caso), já que era escolhido por este grupo. Utilizar –
quiçá manobrar – o Senado conforme sua vontade era a primeira lição que um bom
Imperador deveria aprender. Augusto se tornou parceiro do Senado e estabeleceu, com
isso, seu governo. Ele sempre entregava o poder e autoridade ao próprio povo de Roma
e ao Senado, diferentemente do que fez César ao reivindicar tal poder para si com a
ditadura vitalícia.
Assim como pontuado por Geoffrey Sumi (2005, p.227), Augusto criou
cerimônias para manter-se no poder, enquanto César não o fez: o segundo era ditador,
cargo passageiro e talvez, por isso, não se preocupou com tais cerimônias. Para o autor,
Augusto é um grande adaptador e não um inovador. Ao abrir mão da ditadura, ele se
afasta do deslize de César e, a partir dessa negação, acaba por aumentar seu próprio
prestígio. Nesse ponto percebemos que a oratória era de extrema importância para um
bom líder. Augusto reforma o fórum e mostra a importância de um bom discurso: ele dá
voz aos Tribunos não apenas para dividir o poder, mas para também ter alguém que lhe
elogie publicamente; seu discurso dava voz aos outros, ou seja, não discursava sozinho,
não apresentava as benesses que fizera sozinho e, dessa maneira, aumentava seu próprio
poder. O próprio nos mostra como isto ocorreu a partir da descrição de seus feitos:
Desempenhando o consulado pela décima vez, o Senado, a ordem
Equestre e todo o povo romano chamaram-me de “Pai da Pátria” e
determinaram que isso devia ser inscrito no vestíbulo de minha casa,
na cúria Júlia e no foro Augusto, sob as quadrigas que me foram
estabelecidas por decreto do Senado (AUGUSTO, Res gestae Diui
Augusti, XXXV).
Com o início do Principado de Augusto as relações entre as províncias e Roma
mudaram. Augusto se mostra como filho e herdeiro de César, fazendo dos clientes do
Podemos nos referir à Otávio de três formas distintas: Caio Otávio: antes da adoção por Júlio César;
Caio Júlio César Otaviano: utilizado após sua adoção por Júlio César ser sancionada; e Augusto: após
receber o título de augusto dado pelo Senado, em 27 a.C. 57
99 pai seus próprios clientes. De acordo com Clifford Ando (2000, p.140), a maior
conquista augustana foi concebida a partir de seu carisma – este, associado à
universalização de seus clientes – e a divinação de César, que apresentam Augusto
como o líder legítimo.
Otávio soube os momentos certos de aceitar cargos e magistraturas e, também,
de negá-los. Foi Cônsul treze vezes58, porém sabemos que em 23 a.C. negou o
Consulado ganhando o imperium, superior ao poder dos Cônsules. Ou seja, articulações
eram necessárias a fim de estabelecer uma boa imagem perante as demais camadas
sociais romanas.
Sendo assim, podemos inferir que, ao escrever seu manual astrológico, Manílio
elege Otávio Augusto como o melhor exemplo de um bom líder romano. Por ter sido
patrocinado por ele (uma das hipóteses lançadas por historiadores como Katharina Volk
– autora citada no Capítulo 1), ou apenas por admirar a maneira com a qual este líder
lidava com os constantes problemas, Manílio nos mostra a importância de Otávio na
consolidação de Roma. Ao descrever sobre a morada dos heróis após a morte, a Via
Láctea, o autor faz questão de engrandecer o Imperador, mostrando que a imortalidade
conquistada por Otávio seria de elevada posição, pois “Augusto desceu do céu e o céu
ocupará, o qual irá reger, tendo entre as constelações a companhia de Júpiter [...]”
(MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 800-801).
O Destino – guardado nas estrelas –, mesmo que possivelmente compreendido,
tem um caráter absoluto (MANÍLIO, Astronômicas, Livro IV, v. 14-16). A partir disto,
ao afirmar que a liderança de Otávio era legitimada pelas estrelas, Manílio confirma que
tal escolha não dependeu apenas da ação humana, mas sim foi já ditada pelo universo.
Assim como nos apresenta Katharina Volk (2009, p.109), “é claro que, no contexto
d’Astronômicas, esse espelho é encontrado no céu”. A organização celeste seria, então,
uma comparação com a cidade de Roma, tendo como estrela principal Otávio. Assim
sendo, a crença maniliana aborda a criação da terra pelo céu e não o contrário. Não
caberia ao homem inventar e criar razões para a existência das estrelas, ou seja, o
homem não deveria abordar os assuntos celestes como uma fábula.
A partir disto, a apresentação da organização celeste seria similar à Res Publica:
Nesse momento, então, é que é possível distinguir claramente os
brilhantes templos celestes, semeados de minúsculos grãos de luz, e
ver o firmamento inteiro cintilando, juncando de estrelas, não menos
58
Em 43 a.C., 33 a.C., entre os anos de 31 a 23 a.C., em 5 a.C., e em 2 a.C..
100 numerosas que as flores num jardim ou que os grãos de areia na praia;
quantas são as ondas que incessantemente fluem, formando-se no mar,
quantos são as milhares de folhas que caem no chão das florestas, é
possível ver voar no céu luzes em número ainda maior que esses.
Também, assim como nas grandes cidades, o povo se distribui,
detendo os Senadores a primeira categoria, e a ordem equestre a
posição seguinte, e se pode ver o povo seguir-se ao cavaleiro, e ao
povo o vil populacho, enfim a turba sem nome, assim também existe,
no grande espaço celeste, uma espécie de República que a natureza
criou, fundado no céu uma cidade. Estrelas há semelhantes aos
próceres; outras há próximas destas primeiras; há enfim, honras e tudo
o que é de direito dessas primeiras ordens: a mais numerosa é a do
povo, que se move no elevado cimo do céu [...] (MANÍLIO,
Astronômicas, Livro V, v. 734-742).
Sendo esta a organização celeste que inspirou o homem a organizar Roma e todo
o vasto Império, Otávio seria, com isso, aquele disposto a dar continuidade e manter a
Res Publica e a pax. Os autores, assim como Manílio, comumente encontravam-se no
meio de um conflito entre aspirações retóricas, motivações pessoais e necessidades
impostas pelos desdobramentos da vida política (FOX, 2010, p.375). E as palavras do
poder não circulavam como as outras. Elas necessitavam de uma comunicação
calculada; procuravam efeitos precisos; não desvendavam senão uma parte da realidade,
pois o poder também devia sua existência à apropriação da informação, dos
conhecimentos exigidos para governar, administrar, e para exercer seu domínio
(BALANDIER, 1980, p.13). Dieter Timpe ressalta que memória, em latim, pode
significar memória, tradição e historiografia, tendo a ver com preservação, adequação e
adaptação. Memória se conecta com suportes materiais e com superestruturas
simbólicas, forjados na junção da natureza individual com as associações sociais
(TIMPE, 2011, p.150-151).
As referências a Otávio feitas por Manílio também utilizam das ligações com
antepassados importantes, como podemos perceber no final do Livro I. Assim, o ato da
escrita era limitado por fatores internos e externos. Dever-se-ia seguir os cânones do
gênero escolhido, atentar-se para os interesses individuais e grupais que definiam uma
espécie de autocensura na composição do relato, vincular-se ou não a um patrocínio
senatorial e/ou imperial, emular outros autores, selecionar artifícios retóricos e temáticas
relevantes... Enfim, proceder à narrativa com o engenho e o talento possíveis. Entre
101 finalidades e costumes, entre disposições e possibilidades, o autor tinha que se
desprender de amarras múltiplas e se ater a tantas outras na elaboração de sua obra. “A
habilidade no controle e na supressão de memórias tornou-se um crucial componente da
autoridade política” (GOWING, 2005, p.2). Por isso, algumas imagens acabaram
fixadas no imaginário político romano. Assim dito, a imagem de Otávio, explorada
também por Manílio, conseguiu se impor como a de um bom líder, mesmo que
saibamos que sua aceitação não foi total. Restaurador da República, mantenedor da paz
e referência de boa liderança a partir da oposição com Marco Antônio, Otávio
conseguiu perpetuar uma boa imagem e, com isso, se manter não somente na memória
romana, mas na História.
102 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso trabalho chega à sua fase final, pelo menos nesta etapa, respondendo a
alguns questionamentos elencados durante a trajetória feita e produzindo novas
possibilidades no entendimento do poema analisado enquanto produto do seu tempo.
Marco Manílio, assim como todo autor que se propõe a escrever acerca de qualquer
tema, nos trouxe propositadamente, ou não, um conhecimento além daquele sobre o
qual decidiu explanar, neste caso, a astrologia. O autor d’Astronômicas, ao explicar as
minúcias da organização e eventos do universo, nos mostra outros saberes os quais nos
centramos na análise da filosofia estóica.
Tal, utilizada dentro da obra, corrobora com a ideia maniliana de organização do
universo enquanto deus racional mantenedor de tudo. A harmonia universal apreendida
do Estoicismo fornece a Manílio instrumentos necessários para explicar da sua maneira
não somente os eventos celestes, mas também os que aconteciam à sua volta, ou seja,
aqueles que influenciavam em sua própria vivência. Como apontado no primeiro
capítulo desta dissertação, em seu propósito duplo (escrever um manual sobre o
conhecimento astrológico ao mesmo tempo em que realizava tal tarefa da maneira mais
bela possível, pois se sentia na obrigação de retratar a beleza do universo como uma
matéria de fino ornato), Manílio se empenha em ensinar ao seu leitor/aluno a se
posicionar perante as adversidades da vida, deixando a passividade de sua existência em
busca de uma atitude mais ativa perante a própria força motora do Destino. Sendo este
um dos propósitos, o autor elenca o entendimento das ações celestes, ligadas por uma
teia simpática e harmônica com os eventos terrenos, como a melhor maneira de entender
o papel de cada um neste plano, já que também são parte do deus criador, e o próprio
universo.
Dessa maneira, ao utilizar os princípios estóicos como ferramenta legitimadora
do seu discurso, Manílio apresenta uma necessidade ordenadora que pode ser entendida
a partir do momento pelo qual passava. As constantes Guerras Civis que assolavam
Roma desde os tempos republicanos chegavam a um momento crítico no qual homens
de igual prestígio se declaravam inimigos por não concordarem com as diretrizes
tomadas, mesmo que o objetivo tenha sido o mesmo, seja qual for, de estabilizar a Res
Publica já tão abalada. Com discursos diversos, cada um defendia seu ponto de vista,
levando o Senado a uma divisão interna e nociva para Roma. Em meio a este caos,
103 Manílio se vê impelido a escrever sobre a harmonia universal que permeava tudo,
elegendo como melhor líder aquele que escolhido pelos próprios astros seria capaz de
trazer a paz tão quista pelos romanos. Este seria Otávio Augusto que em seu embate
final contra Marco Antônio saiu vitorioso e iniciou um período estável em todo o
Império (pelo menos na visão maniliana). Sabemos que a pax conquistada por Otávio
não foi total e nem absoluta, pois diversos autores e o próprio Princeps nos mostraram a
necessidade deste em constantemente continuar uma autopropaganda de sua boa
liderança. A própria obra maniliana pode ser entendida como um instrumento
legitimador da ação do Imperador, mesmo que não tenhamos a confirmação do
patrocínio recebido por Manílio.
Assim como nos mostra Katharina Volk, Manílio apresenta o conhecimento
astrológico primeiramente como uma arte divina e, através da retórica de seu poema,
ensina ao seu aluno a maneira como deveria viver (VOLK, 2009, p.172). Dessa forma,
cabe a nós historiadores interrogarmos tal documento da melhor maneira possível,
buscando entender a necessidade do autor em propagar uma memória a fim de não
esquecer as tribulações do passado e, com isso, olhar para um futuro melhor e guiado
pela força do Destino.
Orientados pelas nossas hipóteses, decidimos estudar esta documentação tão
peculiar não somente para entendermos – a partir de um novo olhar – um período já tão
estudado, mas também porque, devemos salientar, pesaram motivos egoístas em nossa
escolha. Provenientes de uma geração que teoriza a História a fim de aplicar a esta a
melhor crítica possível e, com isso, produzir um conhecimento mais puro sobre o
passado, percebemos que o embate entre o científico e o ficcional que a obra maniliana
nos traz é atual. Em nossa tentativa de compreender o passado, acabamos esbarrando no
nosso presente e lançando mão de nossas expectativas para o futuro. Assim como
apresenta Jeanne Marie Gagnebin:
Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e
Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador
atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem
glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos
sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua
‘narrativa afirma que o inesquecível existe’ mesmo se nós não
podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra a
repetição do horror (que finalmente, se reproduz constantemente).
104 Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente
psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do
passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados.
Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos
dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a
verdade do passado se completa na exigência de um presente que,
também, possa ser verdadeiro (GAGNEBIN, 2006, p.47).
Escrevemos para que possamos esquecer, ou seja, para que possamos não mais
nos preocupar com aquele assunto ou tema e podermos, assim, partir para novos estudos
e discussões, mesmo que tais estejam ligadas ao conteúdo que já produzimos. O homem
antigo escrevia para lembrar, e nessa entoada Manílio escreveu seu poema astrológico a
fim de registrar nas estrelas os eventos passados para que, dessa maneira, deles os
romanos não pudessem se esquecer e, com isso, glorificassem a vinda de um presente e
de um futuro melhor com o início do Principado de Otávio Augusto.
Tudo acontece de acordo com um esquema cósmico, ou seja, a partir de uma
simpatia universal, sendo a astrologia o saber que explora este esquema (LUCK, 1985,
p.331). A escrita maniliana parte de um pensamento racional. O logos se torna essencial
para a fabricação deste manual, que visa na sua escrita ensinar o saber astrológico,
ignorando, em algumas instâncias, o modelo de mythos59.
O Destino, para os estóicos, se apresenta como modulador da vida, sendo os
astros confirmações da ação deste sob a vida dos homens, o que justifica “as ligações
temporais de causalidade” (BRUN, 1986, p.45). A natureza passa a ser teorizada como
divina “em sua eterna normatividade, em sua prevista ordenação e força constitutiva dos
seres” (GAZZOLA, 1999, p. 41). E é nesta perspectiva que Manílio escreve: o ser
humano se torna dominante, pois é parte da divindade do Universo, sendo ele o centro
das relações universais.
A partir deste posicionamento do autor e da exigência do mesmo a todo aquele
que se dispõe a ler sua obra, percebemos que a defesa maniliana de um universo
organizado e harmônico, capaz de sustentar o ser humano em seu presente e no
planejamento de seu futuro, não é somente feita com o objetivo de ensinar sobre os
“Ao contrario do mito, o logos deve corresponder exatamente aos fatos objetivos (...). Enquanto o mito
se volta para o mundo imaginário do arquétipo sagrado ou para um paraíso perdido, o logos olha para
frente, tentando constantemente descobrir algo de novo, refinar conhecimentos anteriores, apresentar
invenções surpreendentes e adquirir maior controle sobre o ambiente” (ARMSTRONG, 2005, p.31-32);
59
105 mistérios da vida humana e/ou sobre o deus criador e próprio universo, mas também
confirmar a legitimidade de Otávio como o melhor líder possível para Roma.
Apenas o céu seria imutável, assim como apresentou Manílio (Astronômicas,
Livro I, v.518), o que mostra que todas as outras coisas, inclusive Roma, estariam
suscetíveis às mudanças. Até mesmo o Princeps estava submetido ao poder das estrelas
e, por isso, Manílio provavelmente confirmou a ação de Otávio ao designá-lo como
aquele que foi escolhido por estas. A astrologia seria, como dito anteriormente, uma
“arte divina” capaz de explicar àquele que decidia estudar o movimento celeste a
melhor maneira de viver sua vida terrena.
Sendo assim, o trabalho maniliano corresponde à produção de um saber, abarca
a busca pela compreensão da vida humana e de sua verdade, ao mesmo tempo que se
perde em palavras e beleza. A narrativa, seja ela utilizada para qualquer fim, apresenta
um potencial de análise histórica, pois traz em si um conhecimento além daquele
exposto. A narrativa, processo necessário em todas as instâncias de produção do
historiador, passa a ser investigada como dual, pois comporta em si a possibilidade de
produção que se pauta em uma verdade (não absoluta), mas que também se distancia
dela, quando não é sua proposta fazê-lo. Tanto a narrativa ficcional quanto a narrativa
histórica/científica utilizam-se de recursos estilísticos para serem entendidas pelo
público ao qual se destinam, porém, possuem missões diferentes, e são produzidas com
propósitos diferentes (mesmo que a narrativa ficcional também transpasse um pouco de
História).
Manílio, mesmo que analisando um conhecimento tão distante e desconhecido
do ser humano, aproxima suas explicações à sua realidade. Sua obra nos trás não
somente o entendimento de como a astrologia era concebida e empregada no Império
romano do século I d.C., mas também nos mostra traços de sua vivência e de suas
experiências. Os princípios estóicos percebidos a partir da leitura dos escritos
manilianos, somente se mostram como um dos pontos de interação entre a obra e o
autor. A obra Astronômicas se torna mais uma, das inúmeras portas para se entender o
Império romano, sejam em seus conflitos, cultura, processos expansionistas e/ou
política. Tal período histórico desperta nos historiadores da atualidade curiosidade
pertinente não somente à organização política, econômica e social, mas também a
respeito do imaginário do homem romano que expressa o seu entendimento de mundo
de inúmeras maneira possíveis. Por isso, o crescimento de estudos que analisam uma
documentação antes tida como secundária, pois não englobavam aspectos práticos da
106 vida humana e nem narravam os “grandes feitos dos grandes homens”, vem ocorrendo
no campo historiográfico. A História e a busca pela verdade do historiador agora se
estendem a outro campo que não apenas apresenta números e feitos, mas também o
meio em que o homem viveu, seus anseios e curiosidades. Dessa forma:
Os historiadores nunca conseguiram se desvincular, completamente,
da “verdade”. Embora já consigam aceitar com mais facilidade a
afirmativa de que nunca alcançarão a verdade plena dos objetos que
estudam (e narram), se apegam aos elementos estéticos e retóricos que
parecem configurar em seus escritos toda a veracidade cabível à
História enquanto ciência factual. Elementos estéticos como as
referências bibliográficas, e demais referências utilizadas no corpo do
texto, são responsáveis por transporem uma realidade histórica sobre a
imaginação literária que o leitor pode vislumbrar enquanto realiza sua
leitura. Tornam-se, portanto, elementos retóricos, e moldam nestes
textos a cientificidade do discurso histórico ao atingirem leitores
descompromissados e leitores sabidos. (FERNANDES; BERBERT,
2011, p. 2-3)
A partir disto, a obra maniliana responde a esta nova perspectiva, explicando
mais do que foi proposto pelo próprio autor. Mesmo que sua tarefa fosse ensinar sobre o
universo e, com isso, ensinar ao seu leitor/aluno a importância de viver em
conformidade com a natureza, Manílio nos mostra mais uma possibilidade de entender o
início do Principado romano, especificamente a legitimação de Otávio como um líder
capaz de governar todo o Império.
107 ANEXOS
Roda Zodiacal60:
Imagens explicativas das possíveis ligações entre os doze signos zodiacais. A roda zodiacal se inicia
em Áries (♈) e segue anti-horário até Peixes (♓).
60
108 Imagens retiradas de:
VOLK, Katharina. Manilius and his intellectual background.
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