UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO (SÉCULO I D.C.) GOIÂNIA - GO 2014 TERMO DE CIÊNCIA E DE AUTORIZAÇÃO PARA DISPONIBILIZAR AS TESES E DISSERTAÇÕES ELETRÔNICAS (TEDE) NA BIBLIOTECA DIGITAL DA UFG Na qualidade de titular dos direitos de autor, autorizo a Universidade Federal de Goiás (UFG) a disponibilizar, gratuitamente, por meio da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD/UFG), sem ressarcimento dos direitos autorais, de acordo com a Lei nº 9610/98, o documento conforme permissões assinaladas abaixo, para fins de leitura, impressão e/ou download, a título de divulgação da produção científica brasileira, a partir desta data. 1. Identificação do material bibliográfico: [ X ] Dissertação [ ] Tese 2. Identificação da Tese ou Dissertação Autor (a): Rodrigo Santos Monteiro Oliveira E-mail: [email protected] Seu e-mail pode ser disponibilizado na página? Vínculo empregatício do autor Agência de fomento: [ X ]Sim [ ] Não Não Coordenação de Aperfeiçoa- Sigla: CAPES mento de Pessoal de Nível Superior UF: GO CNPJ: 00889834/0001-08 País: Brasil Título: Em busca de uma simpatia universal: o entendimento do Principado de Otávio Augusto a partir da obra Astronômicas de Marco Manílio (século I d.C.) Palavras-chave: Astrologia, Estoicismo, Otávio Augusto, Principado Título em outra In search of an universal sympathy: the understanding of the Emlíngua: pire of Octavian Augustus from the work Astronômicas of Marcus Manilius (First Century AD) Palavras-chave em outra língua: Astrology, Stoicism, Octavian Augustus, Empire Área de concentração: Cultura, Fronteira e Identidades Data defesa: (dd/mm/aaaa) 25/04/2014 Programa de Pós-Graduação: História Orientador (a): Luciane Munhoz de Omena E-mail: Co-orientador (a):* E-mail: *Necessita do CPF quando não constar no SisPG 3. Informações de acesso ao documento: Concorda com a liberação total do documento [ X ] SIM [ ] NÃO1 Havendo concordância com a disponibilização eletrônica, torna-se imprescindível o envio do(s) arquivo(s) em formato digital PDF ou DOC da tese ou dissertação. O sistema da Biblioteca Digital de Teses e Dissertações garante aos autores, que os arquivos contendo eletronicamente as teses e ou dissertações, antes de sua disponibilização, receberão procedimentos de segurança, criptografia (para não permitir cópia e extração de conteúdo, permitindo apenas impressão fraca) usando o padrão do Acrobat. ________________________________________ Assinatura do (a) autor (a) 1 Data: ____ / ____ / _____ Neste caso o documento será embargado por até um ano a partir da data de defesa. A extensão deste prazo suscita justificativa junto à coordenação do curso. Os dados do documento não serão disponibilizados durante o período de embargo. UNIVERSIDADE FEDERAL DE GOIÁS FACULDADE DE HISTÓRIA PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA MESTRADO RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO (SÉCULO I D.C.) Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em História da Universidade Federal de Goiás como requisito para a obtenção do grau de Mestre em História. Área de Concentração: Culturas, Fronteiras e Identidades. Linha de Pesquisa: História, Memória e Imaginários Sociais. Orientadora: Professora Munhoz de Omena. GOIÂNIA - GO 2014 Doutora Luciane Dados Internacionais de Catalogação da Publicação (CIP) O48e Oliveira, Rodrigo Santos Monteiro. Em busca de uma simpatia universal [manuscrito] : o entendimento do principado de Otávio Augusto a partir da obra astronômicas de Marco Manílio (século I d.C.)/ Rodrigo Santos Monteiro Oliveira. – 2014. 116 f. : 30 cm. “Orientadora: Profa. Dra. Luciane Munhoz de Omena”. Dissertação (mestrado) – Universidade Federal de Goiás, Programa de Pós-Graduação em História, 2014. Inclui referências bibliográficas. 1. Astrologia. 2. Estóicos. 3. Destino e fatalismo. I. Título. CDU 133.52(043) RODRIGO SANTOS MONTEIRO OLIVEIRA EM BUSCA DE UMA SIMPATIA UNIVERSAL: O ENTENDIMENTO DO PRINCIPADO DE OTÁVIO AUGUSTO A PARTIR DA OBRA ASTRONÔMICAS DE MARCO MANÍLIO (SÉCULO I D.C.) Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em História, avaliada em ____/____/ 2014, pela Banca Examinadora constituída pelos seguintes professores: _____________________________________________________________ Professora Doutora Luciane Munhoz de Omena (UFG) – Presidente _____________________________________________________________ Professora Doutora Ana Teresa Marques Gonçalves (UFG) – Membro _____________________________________________________________ Professora Doutora Marina Regis Cavicchioli (UFBA) – Membro _____________________________________________________________ Professora Doutora Renata Cristina de S. Nascimento (UFG – Campus Jataí /PUC - GO) – Suplente AGRADECIMENTOS São tantos agradecimentos que devo realizar! Muitos participaram deste processo e fizeram dele, em certa medida, uma ótima e leve experiência. Primeiramente, agradeço a Deus por ter me abençoado durante toda a minha trajetória de vida, o que possibilitou a realização deste trabalho. Agradeço às professoras Doutoras Ana Teresa Marques Gonçalves e Luciane Munhoz de Omena. A primeira por se apresentar sempre disposta a me orientar e ajudar com as dificuldades da pesquisa, e algumas de vida, desde a época da graduação; e a segunda por ter me auxiliado em algumas etapas do trabalho. Também agradeço as, e pelas professoras Doutoras Renata Cristina de S. Nascimento e Marina Regis Cavicchioli por atenderem ao meu pedido de participar da avaliação do meu trabalho e contribuírem imensamente para a melhoria do mesmo. À minha família, devo incontáveis agradecimentos. Aos meus pais, Edson da Silva Oliveira e Renata Santos Monteiro Oliveira, por sempre estarem presentes e me apoiarem incondicionalmente. A eles eu agradeço, pois permitiram não somente a feitura desta dissertação como também o meu crescimento enquanto ser humano. Aos meus irmãos, Felipe Santos Monteiro Oliveira e Rafael Santos Monteiro Oliveira, meus melhores amigos, agradeço pelos conselhos e por se apresentarem dispostos a me ajudar. Às minhas cunhadas, Brunna Beatriz de Sousa Borges e Camila Garcia Ferreira, agradeço pelo simples fato de fazerem dos meus irmãos pessoas mais felizes: a felicidade deles é a minha felicidade. Como se não fosse o bastante ter uma família maravilhosa, fui contemplado com mais uma. Agradeço por ter tido a oportunidade de conhecer a Senhora Márcia das Graças Alvarenga Fernandes e o Senhor José Carlos Fernandes, que me adotaram prontamente e me fizeram parte desta grande e linda família. Aos cunhad@s, Leopoldo e Simone, Cassiana, Marcela e William, Rebeca, Ingrid e Pâmella, por serem bons amigos e sempre me receberem com felicidade. A eles agradeço também pelas minhas princesas/sobrinhas mais que perfeitas: Sabrina (Bina), Alice (Lice) e Laís (Lala). E como teria sido triste esta etapa da minha vida se com alguns amig@s eu não pudesse ter divido a carga. Agradeço ao amigo que me acompanhou desde o ensino médio com a mesma paixão pela História, Igor Xavier, e que hoje descansa em paz. Agradeço àqueles que fizeram parte da minha vida e que hoje, mesmo distantes, continuam tendo o meu carinho e admiração: Poliane da Paixão Gonçalves Pinto e Heverton Rodrigues. Às amigas irmãs Paula Roberta Soares e Barbara Vieira de Brito, pois sei que sempre poderei contar com o apoio. Aos amig@s que fiz já no final da minha graduação: Thalita Santana, Marillia Amanda, Paulo Sérgio e Mariah Freitas Monteiro, agradeço pelas boas risadas. Aos colegas que, assim como eu, se disponibilizaram a estudar História Antiga, Macsuelber Cunha, Wendryll Tavares, Marcelo M. De Souza, Samuel Nunes, Thiago Eustáquio, Ana Paula Franchi, Suianny Bueno, Erick Otto, Gustavo Goés, Luana Neres, Edson Arantes, Giselle da Mata e Alice Souza, e com os quais tive o privilégio de conversar/debater. Agradeço à Juliana Prado por ter me recebido inúmeras vezes em sua casa quando ao Rio de Janeiro ia para participar de algum congresso, e pela amizade. Sou grato por ser amigo da Mariana Carrijo Medeiros, uma pessoa especial com a qual tive, e tenho, o prazer de conviver. Agradeço por ter me dado ânimo em alguns momentos, por ter me feito rir quase todo o tempo, e por se mostrar essa pessoa única e cativante. Espero que a vida continue possibilitando nossa amizade e que possamos continuar próximos por muitos e muitos anos. Agradeço à minha família que ficou com uma parte do meu coração no Rio de Janeiro e dos quais eu sinto muita saudade, especialmente a minha Dinda, Regina Lima Santos de Souza, ao meu tio Rogério Silva Souza, e as minhas primas Roberta Lima Santos de Souza e Rafaela Lima Santos de Souza. Por último, não por ser a de menor importância, mas sim para fechar com chave de ouro, agradeço à Amanda Alvarenga Fernandes por existir em minha vida. Em todos os momentos e circunstâncias eu sabia que podia contar com sua ajuda e com o seu amor. Agradeço por me ensinar o que é amar e permitir que eu possa continuar amando (e que assim seja até os meus últimos dias). Sem você este trabalho não teria sido possível. A todos que de alguma forma se fizeram presentes em minha vida, serei eternamente grato! RESUMO Marco Manílio, escritor do I século d.C., estrutura, a partir de sua obra intitulada Astronômicas, o universo. Seu manual, que aborda conceitos e temas que atualmente dividimos entre astrologia e astronomia, nos traz uma compreensão organizacional dos corpos celestes, além de uma explanação acerca das relações existentes entre eles. Tais relações não abrangem somente a porção que compreendemos como Céu, mas também influenciam na elaboração e ação da vida terrena, ou seja, astros e homens estão interligados por uma teia de relações infinitas. Sendo assim, visamos entender a obra maniliana a partir de alguns pontos-chave: 1- a estrutura da obra, seu público e o conhecimento apreendido; 2- a compreensão da filosofia estóica (ou uma tentativa de aproximação do que isto seria), na busca de entendermos o porquê de sua utilização e; 3- o entendimento do período no qual Manílio estava inserido, o Principado de Otávio Augusto. Esta divisão foi feita a fim de tornar o trabalho inteligível àqueles que possuem a intenção de estudar um período – já tão discutido – a partir de um novo olhar. A astrologia maniliana, confirmada pela utilização do Estoicismo, explica este mundo romano do século I com uma intenção de estabelecer uma harmonia quista por aqueles que atravessavam um período de desestabilidade marcado pelas constantes Guerras Civis. ABSTRACT Marco Manílio, writer of the first century of our era, structure, from his work Astronômicas, the universe. Your manual, that showing concepts and themes that we currently divide between astrology and astronomy, bring us an organizacional comprehension of the heavenly bodies, beyond an explanation about the relationship between them. This relations not only cover the portion that we understand as Heaven, but also influence in the elaboration and action of the earthly life, or, in other words, stars and humans are interconnected by an infinite relation web. In that case, we understand this work from some key points: 1- the structure of Manílio’s work, his public and the knowledge gained; 2- the comprehension about stoic philosophy (or, an approximation of what it was), in seeking to understand the choice of your utilization and, 3- the understanding of the Manílio’s time, the Empire of Otávio Augusto. This division was made in order to make this dissertation intelligible for those who have the intention of studying this period – already too much discussed – from a new look. The manilian astrology, confirmed by the utilisation of the Stoicism, explains this roman world of the first century with an intention of establish a conquest harmony for those who crossed a period of destabilization marked by constants Civil Wars. Do caos nasce uma estrela dançarina. (F. Nietzsche). SUMÁRIO AGRADECIMENTOS 04 RESUMO 06 ABSTRACT 07 INTRODUÇÃO CAPÍTULO 1 - O pensamento astrológico de Manílio: Respondendo às necessidades de seu tempo 1.1. O poema, o autor e sua trajetória 10 1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio 1.2.1. A astrologia: permanências, transformações e sua utilização 1.3. A beleza celeste ensinável: entre o lúdico e o científico CAPÍTULO 2 - A Filosofia Estóica na elaboração maniliana de seu manual astrológico: uma aproximação entre os eventos celestes e os terrestres 2.1. A Filosofia Estóica 17 18 25 28 35 48 50 2.1.1. O Estoicismo Antigo 51 2.1.2. O Estoicismo Médio 54 2.1.3. O Estoicismo Imperial 56 2.2. As partes de um todo: física, lógica e ética estóica 57 2.2.1. A Física 59 2.2.2. A Ética/Moral 64 2.2.3. A Lógica CAPÍTULO 3 - A percepção astrológica de Manílio e a elaboração do seu tempo: Uma busca por estabilidade 3.1. Desestabilidade no final da República: as Guerras Civis 3.1.1. Um “novo” conflito: Marco Antônio 3.1.2. Um “novo” conflito: Otávio Augusto 3.2. Um confronto pelo bem da Res Publica: Otávio versus Marco Antônio 69 74 75 76 87 90 CONSIDERAÇÕES FINAIS 103 ANEXOS 108 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 110 A) DOCUMENTOS TEXTUAIS 110 B) OBRAS REFERÊNCIAS 111 C) OBRAS GERAIS 111 INTRODUÇÃO A busca por compreender o mundo em que vive faz do homem, na maioria dos casos, um ser que está em constante análise do seu mundo e/ou de si mesmo. Tal função, empreendida a partir da comparação com o meio externo em que está situado, oferece ao homem informações necessárias para sua sobrevivência. Sendo assim, este se apresenta à vida como um observador das causas externas, ao mesmo tempo em que abandona a passividade de seu ponto de vista e se torna ativamente um “descobridor e organizador” do seu meio. A História que o homem escreve diante dos “outros” que lhe são apresentados depende da sua interpretação, ou seja, do seu olhar na construção de personagens e eventos. Toda afirmação histórica está associada a um ponto de vista, uma noção que nasceu nos tempos modernos, e, assim como nos mostra Reinhart Koselleck, a História intenta, dessa maneira, “fazer afirmações verdadeiras e, apesar disso, admitir e considerar a relatividade delas” (KOSELLECK, 2006, p.161). A partir destes diferentes pontos de vista se constrói um discurso capaz de agregar certezas e dúvidas que são produzidas a partir da busca incessante pela verdade. Tal verdade, enquanto significação absoluta, não pode ser empreendida e alcançada, pois cabe ao homem limitar-se ao seu tempo, à sua vivência e ao seu olhar para o passado. Até o século XVIII, os historiadores desenvolveram a crença da obrigação em apenas afirmar a verdade. Desse modo, o historiador não deveria se deixar contaminar pelo seu contexto, buscando anular sua vivência e suas experiências completamente, aplicando à História uma noção de verdade única. Na modernidade, a História se torna um conceito reflexivo, pois se iniciou uma percepção desta a partir do presente do historiador: o passado não pode mais ser apreendido de maneira total, “pois a articulação temporal da História passa a depender do ponto de vista ao qual for relacionada” (KOSELLECK, 2006, p.168). O conhecimento histórico, a partir de tais ideias, passou a ir além do que se encontrava na documentação textual. O historiador começou a aceitar em seu trabalho as hipóteses, antes refutadas, pois “toda fonte ou, mais precisamente, todo vestígio que se transforma em fonte por meio de nossas interrogações nos remete a uma História que é sempre algo mais ou algo menos que o próprio vestígio, e sempre algo diferente dele” (KOSELLECK, 2006, p.186). A documentação passou a ser mais uma possibilidade de alcançar certo passado, pois tal não nos revela a História como realmente foi e nem nos 10 diz o que escrever, mesmo que nos impeça de realizar afirmações que não poderíamos fazer. É tal processo crítico que diferencia o historiador dos demais, pois evita com que ele acredite cegamente no que o documento selecionado mostra. Porém, o processo crítico não é algo natural, e sim, vai de encontro à natureza humana de se conformar com o que lhe é dito. A crítica é um exercício que o historiador pratica a partir de um esforço próprio, gerado pelo acúmulo de conhecimento e busca incessante pela verdade, mesmo que esta seja inalcançável. A História se faz por vestígios e, por isso, deve receber um tratamento crítico daqueles que se disponibilizam em analisá-la. As fontes históricas se formam a partir do olhar do historiador, fazendo com que sejam extremamente diversificadas, ou seja, se formam a partir da distância entre passado e presente, dependendo dos questionamentos realizados. Os eventos do passado não podem ser observados diretamente, pela simples razão de já terem deixado de existir (PROST, 1993, p.66). No caso da História, as perguntas ocupam uma posição decisiva. Não existem fatos históricos por natureza, pois eles são construídos pelas questões produzidas pelo historiador do presente. Temos que nos atentar que tais questões não são ingênuas, já que são elaboradas a partir de intencionalidades particulares ou coletivas dos homens em seus tempos. Todas as vezes que o historiador formula seus questionamentos, já produz, também, hipóteses sobre eles. Para formular suas questões, pressupomos que o historiador possua um conhecimento, mesmo que mínimo, do que deseja estudar. Os documentos e vestígios só podem ser classificados de tal forma, pois foram questionados da maneira mais apropriada. O trabalho do historiador depende de sua formação crítica na formulação de suas perguntas, tendo como referência o documento com o qual deseja trabalhar. Ou seja, são diversificados os objetos com os quais este, disposto a analisar o passado, pode trabalhar, uma vez que o registro da ação do homem (ponto principal na análise histórica) foi mantida a partir de suportes variados, como documentos escritos (literatura, manuais, biografias...) e materiais (moedas, esculturas, pinturas...). É a partir de tais constatações que nos posicionamos enquanto produtores de um conhecimento histórico. Desde a graduação, somos exigidos a nos relacionar com o que estudamos a partir de um posicionamento crítico e analítico. Explicando-nos de uma maneira mais clara, foi exigido de nós, por alguns professores com os quais tivemos contato, que não nos envolvêssemos de maneira pessoal com o passado sobre o qual iríamos estudar. A função do historiador, a nosso ver e a partir de tais exigências, se 11 mostrou como um ato frio e solitário, no qual estudar o passado seria simplesmente uma ação de conhecimento do outro. Sempre nos interessamos por História Antiga, desde o Ensino Médio. Ao entrarmos na faculdade e nos depararmos com a pluralidade do que seria estudar tal período, logo nos entusiasmamos e mal pudemos esperar o momento de iniciar nossas pesquisas. Percebemos que para construir e produzir um conhecimento histórico, nossos questionamentos deveriam ser levados em voga como a primazia do nosso trabalho. A partir de então, e sob a orientação das Professoras Doutoras Ana Teresa Marques Gonçalves e Luciane Munhoz de Omena, iniciamos nossos estudos, percebendo que a relação com o passado caminharia entre o conhecido e o desconhecido, ou seja, entre o “nós” e o “eles”. Estudar História Antiga não é uma tarefa fácil! Até mesmo sua denominação é discutível, pois é um termo útil e arriscado, já que tal foi elaborado pelo nosso presente. Assim sendo, esta classificação designaria o início da nossa História Contemporânea, apresentando a História como um encadeamento evolutivo que culminaria na vitória civilizadora do Ocidente europeu. Assim como pontua Norberto Luiz Guarinello, “se tivermos em mente que a disciplina da História desenvolveu-se ao longo do século XIX, em grande parte a serviço dos Estados-Nacionais emergentes [...]”, perceberemos a necessidade desta em se encaixar em um contexto que visava o progresso e a civilização e, por isso, “Oriente próximo, Grécia e Roma foram assim colocados numa espécie de sucessão, num processo civilizatório que culminaria na civilização Ocidental europeia” (GUARINELLO, 2003, p.56). Ao nos depararmos com esta análise, percebemos, mais uma vez, que o presente do historiador nunca poderia ser anulado, pois seus questionamentos ao passado partem da sua própria vivência. Sendo assim, poderíamos classificar como passado apenas o que para nós já se foi, ou seja, apenas o que já não é mais presente e permanece, dessa maneira, no campo das experiências. Deparamo-nos, então, com a “missão” de estudar o passado a partir da seleção que faríamos, sendo a nossa tarefa escolher com qual documento iríamos trabalhar. Após sermos apresentados a muitos documentos, ao final do nosso segundo ano de graduação, começamos a ler a obra Astronômicas de Marco Manílio. O interesse foi imediato. A possibilidade que este manual astrológico apresentava em permitir que analisássemos o passado a partir de um prisma completamente novo, principalmente por retratar um período já tão estudado – o Principado de Otávio Augusto –, fez da nossa escolha algo mais fácil. A primeira leitura foi um enorme desafio, pois para entender a obra maniliana não bastaria possuir apenas 12 conhecimento sobre o seu contexto de produção ou sobre a vivência deste autor, mas nós deveríamos entender, também, sobre a astrologia na qual Manílio baseou seu trabalho. Lendo algumas traduções da obra, percebemos que o título foi adaptado, pois, de acordo com Francisco Calero (1996, p.47), os estudos feitos por Manílio em seu trabalho se assemelhariam mais com o que entendemos atualmente como astrologia do que com a astronomia contemporânea. Por isso, a obra foi denominada com o título de Astrologia ao invés do conhecido Astronômicas. Sendo assim, nosso primeiro interesse foi entender qual a diferenciação entre estes dois conhecimentos em nossa contemporaneidade. Em 1975, ganhadores do prêmio Nobel escreveram um artigo intitulado “Objeções à Astrologia”, no qual discutiam a validação de tal conhecimento: Cientistas de vários campos ficaram apreensivos com o aumento da aceitação da astrologia em várias partes do mundo. Nós, abaixo assinados – astrônomos, astrofísicos e cientistas de outras áreas –, desejamos aconselhar cautela ao público contra a aceitação sem questionamentos das previsões e conselhos dados em particular ou publicamente pelos astrólogos. Aqueles que desejam acreditar na astrologia devem compreender que não existe uma base científica em seus princípios [...]. Por que as pessoas acreditam na astrologia? Nestes tempos incertos várias pessoas buscam o conforto de ter uma orientação para tomar decisões. Elas gostariam de acreditar em um destino predeterminado por forças astrais que está além do seu controle. Entretanto, devemos encarar o mundo e precisamos compreender que o nosso futuro está em nós mesmos e não nas estrelas. Pode se imaginar nesta época de esclarecimento e educação amplos que seria desnecessário desmascarar crenças baseadas em magia e superstição. Porém, a aceitação da astrologia permeia a sociedade atual (BOK; JEROME, 1975, p. 9-10). Tal argumento nos mostra que o saber astrológico é encarado como charlatanismo pelos cientistas da contemporaneidade. A ciência moderna é, para estes autores, a única maneira de alcançar a verdade, seja ela qual for. Como apresenta Peter Marshall, em seu trabalho intitulado A Astrologia no Mundo, diversos cientistas atacaram as editoras de livros e a mídia por disseminarem a astrologia que apenas contribui para “o crescimento do irracionalismo e do obscurantismo”, ou seja, se iniciava uma perseguição, “mas de uma comunidade supostamente fria e racional de 13 cientistas que decididamente se sentiu indignada quando teve de encarar tal assunto” (MARSHALL, 2006, p.388), pois tal conhecimento não se ajustava à sua compreensão de mundo. Podemos observar isto até mesmo na literatura do final da década de 1970. Douglas Adams escreveu seu aclamado livro O Guia do Mochileiro das Galáxias e nele destacou como a astrologia era identificada pelos intelectuais de sua época. Em um diálogo entre duas personagens, Tricia e Gail Andrews, percebemos o posicionamento científico perante tão difamada forma de conhecimento: - Olha – disse Tricia –, sinto muito se a senhora está triste. Sei que deve estar achando que fui muito dura hoje pela manhã, mas a astrologia, no final das contas, não passa de uma diversão popular e, até aí, tudo bem. Faz parte do showbiz e é uma coisa que a senhora faz muito bem, lhe desejo boa sorte. É divertido. Contudo, não é uma ciência e não devemos confundir as coisas. Acho que isso é algo que nós duas conseguimos demonstrar muito bem hoje cedo e ainda proporcionamos diversão popular aos outros, que é exatamente o nosso trabalho (ADAMS, 2004, p. 20). Mas seria a astrologia encarada dessa mesma forma na Antiguidade, especificamente em Roma? Seria tal conhecimento repudiado ou aceito? Percebemos que as denominações, hoje antônimas, de astrologia e astronomia para o homem romano não se diferenciavam. Ambas eram estudadas por aqueles que buscavam compreender os eventos celestes e deles inferir origens, causas e resultados para a vida terrena. A partir de tais questões iniciamos nosso trabalho de pesquisa, tentando entender, também, a relação da obra maniliana com seu contexto de produção. Foi assim que, não satisfeitos com as respostas que obtivemos durante a graduação, resolvemos estender a pesquisa para o Mestrado, a fim de conseguir maior profundidade no tema estudado. Esta dissertação deve ser entendida como fruto deste esforço que, para nossa surpresa, não foi solitário. Por isso, conseguimos, ao longo destes quase dois anos, desenvolver os capítulos que aqui apresentamos. O primeiro tem como objetivo expor a obra estudada, seu autor e suas possíveis intenções. Para isso, iniciamos o capítulo com a apresentação de quem foi Manílio, das divisões do texto maniliano em cinco livros e com os rastros deixados desde sua escrita até os nossos dias. Sendo assim, entender o que seria tal conhecimento astrológico também é de extrema importância para esta etapa do trabalho. Por último, explicamos que Astronômicas possuía dois pontos principais 14 quanto ao gênero e à forma da sua obra: desejava escrever um manual ensinável do conhecimento astrológico, ao mesmo tempo em que tal contemplasse de forma bela as maravilhas do tema narrado. No segundo capítulo, apresentamos uma das características mais marcantes da obra: a utilização da filosofia estóica pelo poeta. Para melhor apresentar tal utilização e o porquê desta ser importante na elaboração de tal manual, analisamos a filosofia, desde sua origem até a sua utilização por Manílio, mostrando também as divisões existentes do Estoicismo: a física, a moral/ética e a lógica. A partir disto, conhecendo a obra, seu autor, e a relação deste com a filosofia estóica, pensamos que o leitor deste trabalho está munido com o conhecimento necessário para compreender o terceiro e último capítulo. Dessa maneira, apresentamos nesta última parte a relação d’Astronômicas com o contexto em que foi produzida, especificamente com o início do Principado de Otávio Augusto. Tal personagem é central em nossa análise, pois, além de ser apresentado como um bom exemplo pelo próprio Manílio, nos permite entender as articulações necessárias entre Princeps, Senado e povo romano. Ou seja, conseguimos entender um pouco mais sobre tais relações a partir do jogo empreendido por este Imperador na busca da manutenção de uma Res publica enfraquecida pelas constantes Guerras Civis, ao mesmo tempo em que procurou legitimar seu governo perante os demais estamentos sociais. Entendemos que o Imperador desempenhava o papel de protagonista em toda essa trama, porém, entendemos também que o cenário, as alegorias e os personagens secundários poderiam desempenhar papéis de grande importância. Um jogo era estipulado e muitos jogavam ao tentarem se manter próximos da irradiação que o poder emanava. Augusto em seus atos solenes como restaurador da República era simplesmente um dos jogadores, pois soube como agir perante os demais líderes romanos. O Senado1, que também se mantinha neste jogo, sabia o momento de contraatacar e posicionar-se em favor de seus próprios interesses, mesmo perante o Imperador. Enquanto isso, povo e províncias (nos utilizando desses termos generalizantes), mesmo que distantes, também se arriscavam nessa modulação intensa de poder. Os astros, através das leis secretas e do destino que salvaguardam, já determinavam os acontecimentos terrenos: mesmo que esses superassem as expectativas humanas. Mas quem melhor, assim como aponta Marco Manílio (Astronômicas, Livro II, v. 115-116), para compreender todo o Universo do que aqueles que dele foram criados? 1 Devemos ter o conhecimento de que o grupo senatorial não era homogêneo em sua composição. Grupos com interesses diversos se formavam e cada um defendia o líder com o qual se identificava. 15 Sendo assim, a astrologia é apresentada como a melhor maneira de explicar o mundo maniliano, já que o Céu e a Terra estão interligados por uma teia de relações infinitas. Mesmo que voltada mais à imaginação do que à razão, tal conhecimento possui uma qualidade única de englobar todas as coisas, pois se volta “tanto para os números quanto para as artes, tanto para o observador do céu noturno quanto para o explorador da psique, tanto para o matemático quanto para o artista” (MARSHALL, 2006, p.400). Dessa maneira, cabe a nós tentarmos compreender tal período a partir da ótica de Marco Manílio em sua obra intitulada Astronômicas (século I d.C.). 16 CAPÍTULO 1 O pensamento astrológico de Manílio: Respondendo às necessidades de seu tempo É curioso perceber a pluralidade de informações que os documentos nos mostram sobre o passado. Nosso trabalho pode ser utilizado como um exemplo disto, pois nos apresenta, a partir da seleção da obra Astronômicas, um período já bastante estudado sob uma ótica singular com a qual outros autores podem, ou não, corroborar. Este é um dos grandes desafios do historiador que tenta, por meio destas possibilidades apresentadas, entender o passado utilizando-se das documentações disponíveis. Estas, a partir do trabalho investigativo e interpretativo do historiador, liberam vestígios do acontecido nos possibilitando apreender o ocorrido a partir de olhares e situações particulares. É por um destes olhares que analisamos o período de início do Principado romano, especificamente o denominado por Suetônio como o “Século de Augusto” (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A Vida dos doze Césares, parte C). O período especificado é conhecido pelos grandes conflitos decorrentes das constantes Guerras Civis que assolavam Roma e dividiam em grupos uma aristocracia já enfraquecida. Sendo assim, a paz era idealizada e muitos, assim como o próprio Otávio, se colocaram em posição de liderança em prol da restauração da Res Publica. Com sua vitória em Ácio em 31 a.C. sobre Marco Antônio, Otávio desponta como aquele digno de liderar e restaurar Roma a partir do diálogo constante com a tradição, o Senado e o povo romano. Assim, cabia a este governante ser lembrado e descrito pelos escritos de sua época, sendo seus feitos rememorados à posterioridade2. Neste sentido, destacamos uma obra específica que baseia nossa argumentação durante o trabalho apresentado: Astronômicas, de Marco Manílio (século I d.C.). A obra maniliana foi selecionada, pois traz em si conhecimentos acerca do período do início do Principado romano a partir de um estudo astrológico – estudo este entendido e escrito pelo autor como um poema. Tal documento é no mínimo peculiar, mas apresenta um vasto conhecimento não só referente às estrelas, mas ao seu contexto de produção. 2Como podemos perceber nos documentos textuais posteriores ao século I d.C., como as obras de Suetônio, Plutarco e Dion Cássio. 17 1.1. O poema, o autor e sua trajetória Para alcançar seu objetivo, Manílio divide seu trabalho em cinco livros que apresentam o saber astrológico, salientando a ação dos corpos celestes sobre a vida humana. A obra maniliana é importante para os estudiosos da Antiguidade e da astrologia, pois foi a primeira obra conservada que apresenta esse plano sistemático do saber astrológico, mesmo que não tenha sido a primeira produzida. É certo que Manílio não foi o primeiro a empreender o desafio de escrever sobre o Universo e todas as divisões do plano celeste, porém podemos acreditar que talvez tenha sido o primeiro a realizar tal tarefa na forma de versos. Não acreditamos no ineditismo de Manílio, pois o próprio autor faz alusões à língua grega durante sua obra (Manílio. Astronômicas, Livro II), mostrando que, para realizar seu objetivo, se utilizou de outros trabalhos anteriores ao seu. O alvo central de Manílio foi o de ao mesmo tempo narrar sobre a beleza do Universo e sobre todas as partes deste, e realizar seu trabalho digno da beleza apresentada, além de ensinar certo conhecimento por pensar que tal seria sua função e que caberia ao homem conhecer sobre o todo do qual faz parte. Para isso, e por uma preocupação didática, Manílio divide sua obra em cinco livros. Analisando-a de uma maneira mais ampla, encontramos ensinamentos mais gerais acerca do conhecimento dos astros, noções básicas de astrologia, e estudos mais aprofundados que proporcionam o entendimento da influência zodiacal sobre os indivíduos e a conjunção astral também existente. A autora Elisa Romano nos mostra uma divisão mais específica da obra: o livro Astronômicas se enquadra dentro da tradição didascálica greco-romana, na qual a obra contém um proêmio (prelúdio inicial), a exposição da matéria e algumas digressões. A divisão dos livros é de forma tripartida para esta autora, ou seja, há uma divisão em três blocos: o primeiro bloco (livro I) é dedicado de forma autônoma ao conhecimento astronômico sistematizado por Arato; o segundo bloco (livros II, III e IV) constitui o poema astrológico em si, na predominância do rigor científico e na ausência dos mitos, havendo uma exaltação da filosofia estóica (Manílio era um filósofo estóico); e o último bloco, constituído apenas pelo livro V, é uma adição aos planos iniciais do poema (ROMANO, 1979, p.39-58). De acordo com Marcelo V. Fernandes, a obra de Manílio contemplava duas grandes áreas próprias da astrologia antiga: “a meteorologiké, acerca dos fenômenos celestes, e a poietiké, acerca das influências dos astros; esta última parte, por sua vez, 18 divide-se noutras duas: o pinakikón, uma isagoge, ou introdução descritiva, à ciência astrológica, e o apotelesmaticón, a parte decretória, ou decisiva” (FERNANDES, 2006, p.11). Detalhando mais os temas apresentados durante cada livro, percebemos que Manílio realiza um trabalho crescente quanto às suas elaborações escrita e didática na passagem do conhecimento astrológico. No primeiro livro, o autor apresenta uma introdução a este saber, preparando o aluno para receber o ensinamento proposto. Assim como apresenta Fernandes, neste primeiro momento, Manílio “tem por tema um ‘retrato’ da esfera celeste, o poeta apresenta o saber astrológico como o termo do desenvolvimento intelectual humano” (FERNANDES, 2006, p.27). Tal saber é tão sublime que apenas por dádiva do Céu, que é o próprio deus, o homem seria capaz de conhecê-lo. Antes deste contato, os fenômenos celestes eram apenas dignos de manifestar no ser humano admiração e medo. Dessa forma, Manílio chama o homem para conhecer sobre o Universo e entender seu passado e futuro e, com isso, se encaixar no seu presente. Depois de apresentar sobre a formação do Universo pela junção dos quatro elementos básicos (fogo, água, ar e terra)3, o autor tratou de apresentar sobre os círculos celestes (trópicos, círculos polares, Via Láctea, etc.) e sobre as constelações zodiacais (Áries, Touro, Gêmeos, etc.), e as não zodiacais (Adrômeda, Órion, etc.). Sobre o primeiro grupo, Manílio apresenta caracterizações bem interessantes ao descrever a sequência do círculo zodiacal: Resplandecente em sua dourada, o Carneiro (Áries) abre o caminho e olha para trás maravilhado com a chegada do Boi (Touro), que com a face e torso abaixados convoca Gêmeos; a estes segue o Caranguejo (Câncer), e o Leão ao Caranguejo, e a Virgem ao Leão. Depois a Balança (Libra) equilibra a luz do dia com a extensão da noite; puxa o Escorpião, ansioso com sua constelação cintilante em cuja cauda o homem com corpo de cavalo (Sargitário) visa com um arco retesado uma flecha alada, sempre pronta a disparar. Em seguida vem o Capricórnio, enrolado dentro do seu asterismo comprimido, e depois dele, com um vaso virado para baixo, o Aguadeiro (Aquário) verte a água necessária aos Peixes, que nadam ligeiro nela; e desta forma chegamos à retaguarda dos signos que são reunidos pelo Carneiro (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 328-340). 3 Teoria estóica melhor apresentada no segundo capítulo. 19 Após referir-se aos signos, Manílio apresentou o homem como digno de conhecer sobre os mistérios do Universo, já que é parte da própria divindade que ordena todo o caos. Mostrou que após o momento de medo e admiração, o homem passa a tentar compreendê-los e, com o desenvolvimento da razão, consegue entender o mundo à sua volta. Para isso, elencou razões pela qual o mundo, e toda a porção celeste, não foram criados pelo acaso como assim proclamavam os epicuristas4, mas pela ordem vigente e reguladora capaz de erguer as fortalezas do Universo. Encerra o livro narrando sobre os cometas pressagiadores dos desastres futuros, e com tal conclusão, parte para o livro II, entendendo que toda a introdução necessária sobre o conhecimento astrológico foi dada. No segundo livro, ainda com caráter introdutório, as definições dos signos zodiacais são realizadas com maior profundidade, estabelecendo também as relações entre eles. Classifica-os quanto ao gênero (masculino ou feminino), em diurnos ou noturnos, terrestres, aquáticos, férteis ou inférteis, erguidos, sentados, outonais, primaverais, veraneais e invernais, e estabelece relações entre dois, três, quatro ou seis signos de uma vez, mostrando quais se prejudicam e quais não. Para conhecer o destino, o homem não poderia se basear apenas nas qualidades isoladas de cada signo, mas era preciso levar em conta as relações entre eles e, por isso, formam-se ângulos relacionais que originam quatro triângulos, três quadrados e dois hexágonos (anexo I). A influência que cada signo tem sobre cada parte do corpo humano também é apresentada. Para explicar sobre tal influência dos signos, Manílio apresenta a divisão celeste em doze partes, sendo cada uma possuidora de uma força particular. Para tal assunto, Manílio pede atenção, pois a matéria não é simples e é nova: Examina agora uma coisa aparentemente simples, porém grande na sua importância e que só admite ser designada por uma palavra grega: as dodecatemórias (duodécima parte), nome que já aponta sua razão. Como cada signo celeste consta de trinta partes, divide-se o número todo por doze; o próprio cálculo ensina, então, que cada fração é de duas partes e meia. Dentro destes limites, pois, é que se estabelece a dodecatemória; em todos os signos há tais doze partes, as quais o criador do firmamento atribuiu a um mesmo número de astros Escola filosófica que surgiu na Grécia durante o século IV a.C. Fundada por Epicuro de Samos, pregava a vivência em conformidade e acreditava na formação de todas as coisas pelas pequenas partículas hoje denominadas como átomos. Foi também conhecida como filosofia do Jardim, pois foi ensinada em muitos deles. 4 20 brilhantes, para que os signos celestes se encontrassem associados numa ordem alternada, e para que o céu fosse semelhante a si mesmo, e os astros todos fizessem parte uns dos outros, e por meio das combinações entre eles a concórdia regesse todo o conjunto, e para que, em razão da causa comum, a proteção fosse recíproca entre eles. Na terra, são criados sob tal lei os que nascem; por isso, conquanto nasçam sob o mesmo signo, apresentam costumes diferentes e vontades opostas; e frequentemente a natureza se desencaminha, para pior, e aos nascer de um menino segue o de uma menina: os dois nascimentos reúnem-se sob a mesma estrela; o fato é que cada astro sofre variação por causa das divisões que tem, e muda, nas dodecatemórias, as suas influências específicas (MANÍLIO. Astronômicas Livro II, v. 831-855). Cada signo influencia em um específico momento da vida humana, sendo a saúde, a infância, a vida adulta e todas as demais etapas correspondidas a uma casa zodiacal. Encerrando o tema, Manílio parte para o terceiro livro, no qual inicia a explicação sobre as doze casas celestes, os athla, com relação ao círculo móvel dos signos zodiacais. Assim como mostra Fernandes (2006, p. 34), cada casa regula uma atividade, ou sorte, sendo a sequência descrita do seguinte modo: A primeira foi dada à Fortuna. É com este título que ela é nomeada em nossa arte, porque ela contém em si, como os mais próximos dela, os alicerces da casa e todas as coisas que se referem à casa: qual limite no número de escravos tenha sido concedido, e no número de terras possuídas, e quão grandes construções é dado erguer, conforme estejam de acordo as errantes estrelas do fulgente céu. Em seguida, a partir daí vem o lugar da Milícias, onde por um só título se compreende tudo o que concerne às armas [...]. A terceira posição deve ser contada para os trabalhos urbanos [...]. O trabalho dos julgamentos, a natureza o colocou no quarto posto, bem como ali pôs a fortuna do fórum [...]. A quinta posição ao longo dos signos é dedicada ao casamento [...]. Na sexta posição, conta-se a rica abundância, e junto a ela está a conservação dos bens [...]. A sétima é tida como horrível em razão dos violentos perigos, se as estrelas errantes, localizadas ao longo dos signos, entram em desacordo. A nobreza ocupa a oitava parte, onde fica posição da honra [...]. O nono lugar é dono de toda a sorte dúbia dos nascidos, e dos temores 21 paternos, e de tudo, em geral, relativo ao cuidado das crianças. Deste será vizinho aquele que compreende a conduta da vida, no qual é sorteado o caráter, e com quais exemplos toda casa é formada [...]. A principal parte está localizada na décima primeira parte, que governa sempre a nossa totalidade e nossas forças, e é onde reside nossa saúde [...]. A última atividade, que encerra, segundo a ordem, a soma total, é a que diz respeito à conquista das coisas, lote que contém todos os resultados de nossos votos, e garante que não sejam em vão os esforços e habilidades que cada um apresenta em seu próprio benefício ou no dos outros (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 117-180). Antes de encerrar o livro, explicando sobre os signos trópicos, o poeta ainda se atém na descrição do poder dos signos, isoladamente, sobre a duração da vida. No quarto livro, Manílio introduz um novo princípio para conhecer as influências dos signos sobre o nascimento: a divisão dos decanos, de origem egípcia. Os decanos, assim como apresenta Marshall (2006, p. 245), “consistem de um grupo de estrelas ou uma estrela visível dentro de um amplo cinturão equatorial que nasce em ‘determinadas horas da noite’ durante um período de dez dias”. O nascer dos decanos durante a noite era usado para dividir a duração da escuridão em horas e foram assumidos prontamente pelos astrólogos romanos, que dividiram cada signo do zodíaco em três segmentos de 10o, totalizando, dessa maneira, a divisão do céu em trinta e seis decanos. Além disso, retomando o que já foi dito no Livro I, Manílio segue na defesa da filosofia estóica ao perceber o homem como produto da própria divindade que é o Universo em si, e que este deveria usar a razão para melhor viver conforme a natureza. Ainda sobre a influência dos signos no plano terrestre, o poeta enumera os graus perniciosos destes e apresenta o mundo e sua divisão geográfica em relação à influência que cada signo possuía sobre cada região. Ao encerrar esta explicação, inicia o quinto livro ainda explicando sobre a influência das constelações, agora as extrazodiacais, sobre a vida humana. Uma lacuna no livro é percebida, pois o autor se propõe a tratar sobre os planetas, um tema que não é apresentado na obra. Aborda acerca da paranatellonta, as estrelas que nascem e se põem ao mesmo tempo em que as seções da eclíptica, porém ao Norte e ao Sul delas, e, assim como apresenta novamente Fernandes (2006, p.41), apresenta “as inclinações, as profissões, os costumes determinados pelo poder dos astros, ensejam ao poeta da mitologia, que ele aceita e desenvolve, chegando mesmo a prolongar, [...] o mito de Perseu e Andrômeda”. Justifica o próprio Manílio: 22 Aquele que nasce no momento em que Andrômeda se eleva do mar se mostrará cruel, ministrará castigos e guardará o penoso cárcere; aos seus pés, verá com arrogância as mães dos desgraçados prisioneiros, prostradas no chão, à sua soleira, e os pais a pernoitar, desejando dar o último beijo nos filhos e assim trazer o último suspiro deles para o fundo de seus próprios corações. Daí vem também uma forma de sanguinário negociante da morte e do acendimento das piras, para o qual, frequentemente de machado em punho o suplício é fonte de lucros; ele, enfim, seria capaz de limitar à posição de espectador da própria menina presa aos rochedos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro V, v. 619-630). Termina seu livro com uma metáfora do plano celeste como uma cidade, demonstrando com isso a organicidade da qual Manílio não abre mão ao descrever o Universo: Também, assim como nas grandes cidades o povo se distribui, detendo os Senadores a primeira categoria, e a ordem equestre a posição seguinte, e se pode ver o povo seguir-se ao cavaleiro, e ao povo o vil populacho, enfim a turba sem nome, assim também existe, no grande espaço celeste, uma espécie de República que a natureza criou, fundando no céu uma cidade. Estrelas há semelhantes aos próceres; outras há próximas destas primeiras, há enfim, honras e tudo o que é de direito dessas primeiras ordens: a mais numerosa é a do povo, que se move no elevado cimo do céu; se a natureza lhe tivesse dado forças em conformidade com o seu número, o éter mesmo não conseguiria suportar as suas próprias chamas, e o mundo seria inteiramente consumido pelo fogo do Olimpo em chamas (MANÍLIO. Astronômicas, Livro V, v. 734-746). Mas quem foi Manílio? Percebemos alguns problemas referentes ao entendimento de quem seria Marco Manílio e, ainda, de como podemos afirmar uma datação precisa da escrita de sua obra. Pontuado por Marcelo Vieira Fernandes (2006, p.10), o “nome do poeta, entretanto, é menos certo, já que a tradição dos manuscritos hesita entre os menos prováveis Mallius e Manlius e o mais provável e ordinariamente reconhecido Marcus Manilius”. Como percebido, utilizamos a nomenclatura defendida por Fernandes como a mais provável para o nome do poeta. A origem de Manílio também não nos é certa. O mesmo autor nos mostra duas hipóteses para se referenciar a origem do escritor: a primeira nos mostra Manílio como 23 um escravo, filho do Manílio de Antioquia, trazido a Roma por volta do ano 90 a.C.; e a segunda o trata como um estrangeiro de origem desconhecida (FERNANDES, 2006, p.10). Assim como pontua Francisco Calero (1996, p.8-9), muito já foi discutido sobre a pátria de Manílio. Oriental de maneira geral (já que tal saber astrológico tem sua origem na Babilônia), grego, africano, romano ou, ao menos, itálico, são diversas as possibilidades da origem do poeta. Nenhuma tese se sustenta devido à falta de referências documentais, e por isto, o tratamos em nosso trabalho como itálico, já que o próprio Manílio opõe sua língua à grega: “Assim, nossa língua segue muito próxima à riqueza da grega” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro II, v. 889-890). Sendo assim, apenas sabemos sobre este autor o que foi comentado por outros autores, que realizaram referências a Manílio tardiamente. Em 998 d.C. aparece a primeira menção do nome Manílio. O clérigo Gelbert d’Aurillac, futuro Papa Silvestre II, escreveu a um correspondente na Itália, perguntando por uma cópia de um trabalho que descreve como “M. Manilius de astrologia” (VOLK, 2009, p.1). Os séculos se passaram e apenas ouviremos sobre Manílio em 1417, quando o humanista italiano Poggio Bracciolini atende o Concílio de Constança5 e usa essa oportunidade para ir caçar manuscritos nas bibliotecas da Germânia, França e Suíça. Entre os vários trabalhos que Poggio recuperou estava Astronomica, e sua cópia pode ser encontrada na Biblioteca Nacional de Madrid. Em 1579 apareceu a primeira grande edição do poema, feita por Escalígero, e mais tarde, no século XVIII apareceram outras edições: em 1739, pelo inglês Bentley; e em 1786, Pingré traduz a obra para o francês. Já no século XX, temos diversas edições do poema, sendo a mais reconhecida feita por Housman que, de acordo com Fernandes (2006, p. 42), é uma das melhores edições em inglês. Assim como apresenta Francisco Calero (1996, p.41), podemos afirmar que a obra maniliana não foi muito lida nos cinco primeiros séculos de nossa era. Porém, é no período de Otávio Augusto que focamos nosso trabalho. Na verdade, não nos atentamos apenas para o tempo em que este governou, mas também nos acontecimentos anteriores marcados pelos conflitos entre Otávio Augusto e Marco Antônio, durante as denominadas Guerras Civis. No dia 5 de novembro de 1414 começou o Concílio de Constança, convocado pelo rei alemão Sigismundo e pelo antipapa João 23, que acabou com a cisão na Igreja e condenou, por acusação de heresia, João Wiclef, João Hus e Jerônimo de Praga a morrerem queimados. A eleição devolveu ao cristianismo ocidental um pontífice legítimo: Otto de Colonna, que adotou o nome Martinho 5º. 5 24 O período citado foi de grande conturbação na organização e manutenção da República romana. Roma vivia um período de desestabilidade interna agravada pela disputa constante entre grupos de elevadas camadas. Otávio e Marco Antônio iniciam um confronto que mexe com a estrutura política romana, modificando o espaço sóciopolítico da República para o que nós, historiadores, chamamos de Império. Temos que salientar que tal mudança não foi sentida e confirmada pelos próprios romanos. Mesmo após a vitória, Otávio não inaugurou outra ordem, ou se proclamou líder soberano. O que ele fez foi conquistar a Pax Romana – não absoluta – e devolver o poder ao Senado e povo de Roma, sendo assim reconhecido como o grande restaurador da República. A partir disto, Manílio percebe a necessidade de escrever sobre uma organização universal capaz de interligar todos os eventos através de uma teia simpática universal. Ou seja, entendemos que a utilização da filosofia estóica na elaboração do seu trabalho não foi despropositada, já que atende à necessidade de organizar um espaço físico e político já tão abalado pelas constantes Guerras Civis. 1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio Temos que lembrar de que tal período – da dinastia Júlio-Claudiana – foi marcado pela forte presença deste saber astrológico. Este foi considerado um assunto demonstrativo de muita eloquência, como no caso apresentado pela obra Satyricon, de Petrônio, quando Trimalquião esbanja conhecimento ao tentar falar sobre astrologia em seu banquete (Petrônio. Satyricon, A ceia de Trimalquião, XXXV). Mesmo antes do Principado de Nero, já com Otávio, a astrologia foi muito utilizada até mesmo pelos grandes líderes romanos. Suetônio, em sua obra que narra a vida dos primeiros Imperadores Romanos (com exceção de César que assim não é classificado, pois ocupou o cargo de Ditador), intitulada A Vida dos Doze Césares, mostra o momento em que Otávio, acompanhado por Agripa, visita o astrólogo Teógenes em Apolônia: Em Apolônia, Augusto e Agripa visitaram juntos a casa de Teógenes, o astrólogo, e subiram as escadas até o seu observatório; ambos desejavam consultá-lo a respeito de suas futuras carreiras. Agripa foi o primeiro e ouviu a profecia de sua quase incrivelmente boa sorte, enquanto Augusto, esperando uma resposta bem menos encorajadora, sentiu receio em revelar o momento do seu nascimento. Quando, enfim, após muita hesitação, suplicou murmurando a informação pela 25 qual ambos o pressionavam, Teógenes levantou-se e voou até seus pés; e isto deu a Augusto uma fé tão implícita em seu destino que até se aventurou em publicar seu horóscopo, e lançou uma moeda de prata com o Capricórnio, o signo sob o qual nascera (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A Vida dos doze Césares, XCV). Otávio divulga seu horóscopo adotando o signo de Capricórnio como um emblema pessoal6. Porém, ele não foi o único Imperador que se utilizou de tal artifício como propaganda. Assim como destaca Peter Marshall, Septímio Severo também foi um entusiasta desta utilização, pois: [...] lançou mão da astrologia para legitimar sua regência. Teve seu horóscopo traçado no teto das salas do palácio, mas foi cuidadoso ao fazer com que seu ascendente fosse colocado em um local diferente em cada sala para que ninguém pudesse fazer seus próprios cálculos, particularmente sobre o momento da sua morte (MARSHALL, 2004, p.291). A historiadora Ana Teresa M. Gonçalves nos mostra em seu trabalho o quanto a astrologia era importante para este Imperador, que para estabelecer alianças consultava as estrelas: Sabemos também que Septímio foi um governante bastante ligado aos astros, aos poderes mágicos, aos horóscopos, ou seja, a tudo aquilo que poderia lhe dar vistas de como melhor governar e indicações de que ele era o Imperador determinado e protegido pelas divindades. Segundo a História Augusta, Severo demonstrava acreditar bastante na ação de forças sobrenaturais no desenrolar da vida humana. Ele teria se casado com Júlia Domna porque ela tinha um horóscopo que indicava que seria a esposa de um Imperador (HA, Vida de Severo, III.2) e foi após interpretar o horóscopo de Geta que ele resolveu colocá-lo na linha sucessória junto com Caracala, dando-lhe o nome de Antonino e os títulos sucessivos de César e Augusto (HA, Vida de Antonino Geta, II.1) (GONÇALVES, 2007, p.1). Percebemos, com isso, uma dualidade apresentada a partir daqueles que detinham tal saber. Mesmo que professassem benesses às vidas dos que os procuravam, os astrólogos também detinham o conhecimento dos infortúnios e até mesmo da morte que assolaria a pessoa que os procurou. Por isso, a relação com tais conhecedores dos Este assunto está melhor explanado no terceiro capítulo ao falarmos sobre o contexto histórico narrado por Manílio. 6 26 segredos do Universo não foi sempre estável. Em alguns momentos, inclusive durante o Principado do próprio Otávio, os astrólogos foram banidos de Roma, pois foram acusados de charlatanismo e de ameaçarem a paz instaurada na capital após as Guerras Civis. Pierre Grimal nos mostra que Agripa expulsou os astrólogos em 33 a.C.: Otávio, fiel à sua política inicial, achava ser o único intérprete da vontade dos deuses e desconfiava do perigo que para ele representava a presença, em Roma, de uma infinidade de adivinhos cujas predições poderiam construir uma arma preciosa nas mãos dos opositores (GRIMAL, 1992, p.37). Tal decisão foi empreendida mesmo que alguns anos antes ambos tivessem se utilizado do saber destes “adivinhos” para comprovar a apoteose de César a partir do sinal dado por um cometa, e para cunhar moedas com um novo tema que abordasse a nova era na qual Roma estava entrando, a Idade do Ouro (GRIMAL, 1992, p.30). Ou seja, a relação com tais estudiosos do saber astrológico foi conturbada, pois em algumas circunstâncias atendiam aos interesses dos Imperadores e em outras não, sendo estas instâncias dignas de punição e negação de tal prática. Temos que entender que práticas de adivinhação ou interpretação dos presságios eram realizadas desde a República Romana. Os haruspisces7 eram devotados em interpretar os presságios e sua atividade era aceita pelo Estado, e os Senadores formavam o colégio dos augúrios8 que buscavam também presságios, só que nos pássaros, e guardavam os livros da profecia sibilina. A astrologia emergiu com maior força no início do Principado, mas temos que entender que nem todos ficaram impressionados com este novo interesse. Como nos mostra Marshall: Plínio, o Velho, lamentou: ‘A mais fraudulenta das artes permeou o mundo inteiro por várias eras [...] tendo sucesso (com a medicina) adicionando a astrologia porque não existe qualquer um que não tenha interesse em saber sobre o seu destino ou que não acredite que o mais verdadeiro relato dele seja obtido por meio da observação das estrelas’ (MARSHALL, 2004, p.291). Assim como aponta Volk (2009, p.7), a vida intelectual no início do Principado foi caracterizada pela grande variedade de interesses, conhecimentos, teorias e modelos Corresponde à designação dada a um tipo de sacerdote da Roma antiga que praticava a adivinhação, ou a divinação, analisando as entranhas dos animais mortos em sacrifícios. 8 Áugures romanos foram eleitos como escribas e formaram um collegium de sacerdotes que partilham os deveres e responsabilidades da posição. Sob o pretexto que os auspícios não eram favoráveis, um áugure poderia impedir até uma execução publica. 7 27 de divulgação de inúmeros saberes. Dessa maneira, a variedade de conhecimentos que formam o tema astrologia, e o ecletismo que possuía, apresenta-nos a possibilidade do interesse latente no aprendizado de tal saber. Abarca em sua composição não somente o estudo das estrelas por si só, mas a matemática, a geografia, a medicina, entre outros saberes. Além disso, a cultura romana é conhecida por possuir, dentro de certos limites que não desrespeitassem o mos maiorum, um caráter expansivo, quer dizer, de incorporar em seus rituais e crenças saberes advindos de outras regiões. Assim como apresenta Richard Hingley, a heterogeneidade é uma das causas de manutenção do Império, mesmo que tal fosse controlada. Não havia uma “mudança de identidade” e sim uma adaptação. Sendo assim, a proposta elencada por este autor mostra que as modificações culturais eram frutos também do diálogo, e não somente da força. O processo que acontecia entre as culturas que se chocavam era de negociação e interação social na formação da identidade romana: A cultura romana, na época de Augusto, agia como uma poderosa cultura de incorporação imperial, mas como Emma Dench recentemente argumentou, representava também, a um só e mesmo tempo, uma “cultura de exclusão social por demais carregada ideologicamente e cada vez mais internacional” (HINGLEY, 2010, p.81-82). Tal interação e troca pode ser averiguada a partir da própria astrologia, já que este conhecimento não era originário de Roma, e sim, foi “transportado” e transformado desde sua origem para atender os interesses de quem iria utilizá-lo, sendo o nosso caso a maneira feita por Manílio. 1.2.1. A astrologia: permanências, transformações e sua utilização O saber astrológico surge na Mesopotâmia, e lá “eles usavam seus conhecimentos astronômicos para estabelecer calendários e determinar datas de festivais religiosos” (LUCK, 1985, p.309). O conjunto do conhecimento astronômico na Mesopotâmia estava contido em uma compilação de duas tábuas conhecidas como mul.Apin, que foram encontradas na biblioteca de Assurbanipal, em Nínive. De acordo com Peter Marshall (2006, p.214), tal nome significa “Estrela do Arado” e faz referência à constelação do Triângulo, que fica entre Áries e Andrômeda. A primeira cópia encontrada deste trabalho data de 687 a.C., e é considerado o primeiro manual 28 sobre o conhecimento astrológico conhecido. Iniciou-se neste mesmo período a manutenção de diários com informações acerca dos eventos celestes e políticos servindo aos interesses dos reis babilônicos que se utilizavam de tais informações para proclamar festas e guerras. Foi com a invasão persa, em 539 a.C., que se iniciou a confecção dos mapas astrais a partir da elaboração das constelações zodiacais. Com a dominação assíria, tal conhecimento foi expandido e levado para outros territórios e povos. No Egito, este conhecimento foi bem recebido e agregado aos rituais, ensinamentos e cultura. Thoth, deus ligado aos viajantes e ao conhecimento, identificado pelos gregos como Hermes e pelos romanos como Mercúrio9, tornou-se o pai fundador da astrologia. Assim como aponta Marshall: Diz-se que Thoth nasceu do deus Rá. Uma passagem antiga declara: ‘Eu sou Thoth, filho mais velho de Rá [...]. Desci para a Terra com os segredos daquilo que pertence ao horizonte’. Thoth pronunciou as palavras ditas por Rá para criar o mundo e foi o criador e regulador das leis da harmonia cósmica. Observou os Céus e a estabilidade do universo dependeu do seu conhecimento sobre matemática celeste (MARSHALL, 2006, p.239). O contato entre os egípcios e os gregos fez com que o saber astrológico viajasse para a parte Ocidental do mundo conhecido, chegando até Roma. A própria palavra astrologia origina-se do grego, assim como nos mostra Georg Luck: A palavra grega mathesis “aprendendo” pode dizer especificamente astrologia, enquanto mathematikos não quer dizer matemático e sim astrólogo. No mundo antigo, como hoje, astrologia é baseada em matemática e astronomia (LUCK, 1985, p.309). Em Roma, este conhecimento foi aceito quando atendia aos interesses da liderança vigente e quando não feria a manutenção dos costumes e da tradição. Júlio César modificou o calendário romano tendo como base o produzido pelos egípcios. Mesmo que o conhecimento astrológico tenha surgido na Babilônia, atribui-se ao Egito Os estrangeiros, logo que seus territórios eram anexados ao Império, incorporavam-se através da interpretatio de seus costumes, e passavam a pertencer àquela realidade romana, mesmo que modificada. As prerrogativas históricas para a aceitação ou proibição dos cultos estrangeiros em Roma baseavam-se na supracitada interpretatio, tradição de reinterpretação das religiosidades estrangeiras, praticada desde a República. Os romanos desenvolveram muito cedo esse costume de agregar divindades, mitos e cultos de seus vizinhos mediterrânicos a partir de uma resignificação que “traduzisse” o simbolismo original para a cultura latina, substituindo valores estrangeiros por valores romanos. Esta não era uma prática incomum, tendo sido largamente utilizada também pelos gregos. Tanto a interpretatio graeca quanto a interpretatio latina constituíam a premissa para uma nova religiosidade ser aceita na cidade de Roma. 9 29 a elaboração deste saber da maneira como foi apresentada aos demais povos da época. A astrologia, assim como afirma Rupert Gleadow, “como uma técnica eficaz, chegou à Grécia na segunda metade do século IV a.C.” (GLEADOW, 1999, p.7). Como apresenta Marshall: A obra Teogonia, do poeta Hesíodo, que data do século VIII a.C., contém versões gregas dos mitos babilônicos, e os gregos começaram a traduzir os nomes babilônicos das estrelas já no século VI a.C. Após as invasões da Grécia pelos persas, no primeiro quarto do século V, os contatos culturais entre os dois povos continuaram, filtrando as idéias indianas babilônicas e egípcias [...]. Estas novas influências caíram em solo fértil. Os gregos há muito estavam interessados em presságios derivados de eventos celestes; seu primeiro grande escritor, Homero, cerca de 800 a.C., forneceu vários exemplos em sua Odisséia e Ilíada [...]. Várias crenças astrológicas ocidentais, especialmente a respeito da natureza do cosmo podem ser investigadas até chegar aos filósofos gregos. No passado houve uma opinião eurocêntrica preconcebida de que a astrologia ocidental tinha se originado na Grécia. Na verdade, o historiador da ciência O. Neugebauer afirmou que a “a principal estrutura da teoria astrológica é sem duvida helênica”, enquanto o estudioso clássico Jim Tester declarou que a astrologia era “uma criação bem recente e principalmente grega”. Contudo, os próprios gregos agradeceram pelas fontes de informação anteriores da Ásia Menor, Oriente Médio e Norte da África (MARSHAL, 2006, p.262). A partir do contato entre os romanos e os diversos povos que dominaram, incluindo egípcios e gregos, a astrologia chegou a Roma como um saber bem atrativo. A elite romana se interessou em aprender acerca de tal conhecimento a partir do entendimento que este não seria somente um processo de adivinhação despropositado, sem regras e/ou modelos a serem seguidos. A astrologia possuía, em sua elaboração, dados científicos que hoje separamos da astronomia. Temos que nos atentar ao fato de que a astrologia não se desvinculava da astronomia para o homem antigo, especificamente para Manílio. Em nossos dias, temos a tendência a acreditar que a astrologia seria algo místico e ilusório – comparado ao charlatanismo – e que a astronomia seria o estudo do Universo sistematizado. Porém, na Antiguidade, não percebemos tal separação. Assim como pontua Georg Luck, em seu trabalho intitulado Arcana Mundi: Magic and the Occult in the Greek and Roman Worlds, a astrologia é 30 “um dos mais antigos saberes, é sem dúvida mais antiga que a astronomia, mas não se pode separar as duas inteiramente” (LUCK, 1985, p. 309). O autor chega a afirmar que: [...] as palavras latinas astrologia e astronomia designam o que chamamos hoje de astrologia [...]. No mundo antigo, assim como hoje, astrologia está baseada em matemática e astronomia (LUCK, 1985, p.309). Por ser esse saber tão múltiplo, o detentor do conhecimento astrológico se apresentava para os demais como um homem de grande inteligência. Assim como pontua Luck, “a astrologia era primeiramente um saber e/ou uma disciplina baseada na matemática e muito complexa nas regras de interpretação” (LUCK, 1985, p.313), e, por isso, era prestigiada entre grupos de intelectuais. Entender o Universo era algo complexo, e a tentativa de fazê-lo somente poderia ser empreendida por aqueles com uma capacidade intelectual elevada, ou seja, a poucos merecedores. Mais uma vez suscitamos o exemplo de Trimalquião, personagem da obra de Petrônio que escreveu no período do Principado de Nero. O personagem, um liberto enriquecido, se mostrou como uma pessoa muito culta e para enfatizar tal posição começa a falar sobre astrologia: Eu realmente, vejo profundamente em todas as coisas, e, graças aos seus ensinamentos, nada há que eu não saiba explicar. Este céu, que oferece moradia a doze divindades, toma outros tantos diferentes aspectos, e é, antes de tudo, Áries. Por isso, os que nascem sob este signo possuem rebanhos numerosos e lã em quantidade; além disso, são teimosos, descarados e, quando investem contra alguém, agridem de verdade. Áries preside ao nascimento de grande número de pedantes e tagarelas. O fino humorismo do astrólogo foi vivamente aplaudido (PETRÔNIO. Satyricon, A Ceia de Trimalquião, XXXV). O personagem continua sua explanação sobre os signos e suas principais características. Fala dos nascidos sob o signo de Touro como verdadeiros vilões, leoninos como glutões e piscianos dotados para atividades na cozinha. O que vale salientar nesta passagem é a busca do personagem de se legitimar perante seus convidados como um homem de grande inteligência. Sendo assim, a astrologia como 31 um saber tão plural seria a melhor saída, já que o conhecimento astrológico não era considerado apenas superstição10, e sim abarcava o plano científico e prático. Temos que entender também o tom satírico que permeia a escrita e leitura da obra de Petrônio. Enquadrada no gênero da sátira latina11, o autor se utiliza da ironia para compor seus personagens e, especificamente, a cena do banquete de Trimalquião. A partir desta ironia, temos que considerar também que a utilização do conhecimento astrológico poderia representar uma desvalorização de tal saber, já que fora utilizado por um liberto enriquecido a fim de se encaixar em um grupo do qual não fazia parte. Mesmo que este tenha sido o objetivo do autor, percebemos que a astrologia era um conhecimento inserido no imaginário dos romanos desta época, seja pela fascinação que proporcionava ou pela não aceitação. Um sentimento de descrédito em relação aos processos de adivinhação do passado, já no primeiro século de nossa era, crescia. Há então uma busca por outras maneiras de se compreender as relações dos homens com o meio natural, em específico com os astros, surgindo assim a astrologia como um saber exato e “fundada sobre uma experiência de duração quase infinita” (CUMONT, 1987, p.143). Este processo novo de “adivinhação” advindo da Ásia, no princípio, havia conquistado apenas a aristocracia romana, mas, com o tempo, foi se popularizando. A astrologia, de acordo com Franz Cumont (1987, p.147), não se baseava apenas na ciência, mas também nas artes e, por isso, a denominamos como uma techné e não como uma ciência da maneira que entendemos tal termo atualmente. Além disso, falarmos como se apenas existisse um tipo de astrologia é generalizante. Temos que compreender que este saber possuía divisões quanto à sua utilização e método de como era utilizado. Discernimos aqui o que entendemos como Devemos neste ponto realizar uma diferenciação entre religio e superstitio: “O conceito de religio (não exatamente traduzível pelo nosso termo moderno “religião”) referia-se às honras devidas e sancionadas pelo Estado feitas aos deuses. Em contraste, o que os romanos chamavam de superstitio (não exatamente traduzível como superstição) era conceitualmente oposto à religio e referia-se a honras e rituais excessivos ou impróprios feitos aos deuses” (COLLINS, p.215, 2009). 11 “A sátira, efetivamente, surge da observação dos vícios e das distorções sociais e morais. Ninguém melhor do que o poeta Juvenal soube apontar a causa motivadora do escritor satírico: a indignatio, isto é, a revolta contra o vilipendio dos principios sagrados do bem, da justiça, do amor, da pátria, da religião, da família. Numa gama variada de sentimentos, que vai da violência da invectiva até ao fino humorismo, o autor satírico serve-se do ridículo para a finalidade catártica da correção dos costumes. A sátira, portanto, quer pela sua fonte psicológica (a indignação) quer pelo seu meio expressivo (o ridículo) quer pela sua finalidade (a moralização), não pode ser imitação livresca, porque é a imitação da vida contemporânea ao poeta, o retrato de uma sociedade colhida em sua flagrante atualidade, a descrição de vícios e defeitos peculiares aos homens daquele tempo e daquele lugar” (D’ONÓFRIO, 1968, p.16). 10 32 astrologia a partir da obra em questão. De acordo com Katharina Volk, em seu livro intitulado Manilius and his intellectual background, a astrologia no tempo de Manílio poderia ser entendida como o estudo dos movimentos celestes e a relação destes com a vida humana, sendo: [...] uma forma de adivinhação [...] e implica na crença de que a observação de eventos no céu pode fornecer insights sobre – e permitir a predestinação de – eventos na Terra (VOLK, 2009, p.59). Percebemos que as estrelas tinham igualmente informações sobre o futuro e o passado, possuindo, portanto, um papel guia na vida do homem. Dessa maneira, a autora inicia a definição das divisões da astrologia, nos mostrando, primeiramente, a separação em astrologia “soft” ou “hard”. De acordo com A.A. Long (1982, apud: VOLK, 2009, p 60), a astrologia “soft” tem as estrelas como sinais de circunstâncias específicas, enquanto a “hard” (o oposto) mostra as estrelas como sinalizadoras dos acontecimentos terrenos, sendo necessária a existência de um cosmos ordenado. As estrelas possuem regras secretas e: Estas estrelas que governam com leis silenciosas [...] são os meios pelos quais o deus – o governante do universo, que em alguns momentos é identificado como o próprio universo – governa a vida humana (VOLK, 2009, p.61). Na própria obra de Manílio, percebemos a importância das estrelas para o entendimento da vida humana, que é regida pelo Destino: O destino rege o mundo, tudo se mantém sob uma lei constante, e o tempo, na sua longa sucessão, está marcado por acontecimentos certos. Ao nascer, estamos destinados a morrer [...] (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v.17-20). Sendo assim, as estrelas não são importantes apenas para Manílio, mas para todo aquele que deseja conhecer “os segredos do Universo” e realizar estudos astrológicos. Porém, a obra maniliana não traz uma preocupação com a física das causas celestes, e sim um “questionamento epistemológico” (VOLK, 2009, p.65) de como podemos entender o comportamento das estrelas e a implicação disto na vida humana. Temos que distinguir, neste ponto também, duas outras teorias astrológicas: a astrologia mundane e a individual. A primeira estuda como os corpos celestes afetam o mundo inteiro, enquanto a segunda se baseia nas individualidades de cada região e na 33 relação destas com os astros. Manílio utiliza-se da astrologia individual para escrever seu manual, se importando com as diferentes expressões e relações que cada corpo celeste tem em determinadas regiões. Assim como apresentado por Luck, e nos baseando na obra maniliana, o astrólogo seria uma espécie de “terapeuta”, pois elaboraria em sua explicação uma maneira de levar o seu cliente, no caso o aluno, a se entender perante o vasto Universo, dando-lhe objetivos para viver. Ou seja, dessa forma, a astrologia seria a maneira pela qual o homem se conectaria novamente com a natureza e viveria conforme sua vontade, já que seria esta a guardadora dos segredos sobre a humanidade como um todo e sua relação com os demais corpos celestes (LUCK, 1985, p.337). Dentro desta astrologia individual, percebemos a divisão de mais dois modelos: o katarchic e o genethlialogical. A astrologia katarchic se baseia na interpretação dos astros para averiguar a ocorrência de fatos particulares em tempos determinados. Já a astrologia genethlialogical seria aquela em que “a maioria das pessoas está familiarizada hoje em dia, e se baseia em determinar a posição das estrelas no preciso momento de nascimento” (VOLK, 2009, p.67), importante para a confecção do horóscopo. Manílio utiliza este segundo modelo, pois seu posicionamento se mantém determinante, buscando as peculiaridades, ou seja, as diferentes formas e relações que os astros mantêm com os seres humanos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v.892894). O que Manílio salienta em sua obra é a ideia de que mesmo sendo o ser humano parte de um todo maior que sua existência, ele deveria exercer seu papel individual, buscando sempre viver em harmonia com o Universo. Sendo assim, quis mostrar para seus leitores/alunos12 que mesmo sendo uma pequena parte de uma elaboração gigantesca, seu papel era importante para a manutenção e a perpetuação da organização harmônica entre Céu e Terra. O convite feito não se limitaria em apenas entender o Universo estudado, mas em fazer parte dele. Cabe a nós, neste momento, entendermos a possibilidade apresentada por Manílio, e que para o romano parece-nos ter sido natural, de confeccionar um trabalho que se encaixe em dois grupos que para nós, em nossa contemporaneidade, seriam distintos: a literatura e a escrita científica. 12 Explicação a respeito da identificação do leitor da obra maniliana como um possível aluno – página 37 34 1.3. A beleza celeste ensinável: entre o lúdico e o científico O processo de escrita que Manílio utilizou foi apresentado pelo autor como uma tarefa complicada. Escrever de uma maneira bela ao mesmo tempo em que explica sobre as formas, distâncias e origens do universo, foi, pelo menos na visão manialiana, um grande desafio. Assim como o próprio afirma: É fácil dar a vela com os ventos favoráveis, e revolver o solo fecundo com técnicas variadas, e ao ouro e ao marfim acrescentar ornato, quando a rude matéria mesma já tem brilho. Escrever poemas sobre assuntos sedutores é comum, bem como compor uma obra simples. Quanto a mim, porém, tenho de lutar com números, desconhecidos nomes de coisas e frações de tempo, com as diferentes circunstâncias e movimentos do céu, e a ascensão das constelações, e com as partes nas suas próprias partes. Se conhecer essas coisas já é muito, que será então de exprimi-las? E numa poesia adequada a elas? E de submetêlas a um metro fixo? Aproxima-te, ó quem quer que sejas que possas aplicar ouvido e olhos à minha empresa, e ouve as palavras verdadeiras. Presta atenção, e não procures doces carmes: a matéria mesma recusa o ornato, satisfeita com ser ensinada. E, se alguns nomes forem referidos em língua estrangeira, culpa será do tema, não do vate: nem tudo se pode verter, designando-se melhor em sua própria língua (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 32-52). A empreitada que Manílio se dispõe a realizar é a de apresentar um trabalho sobre o conhecimento celeste, ou seja, a organização dos planetas, das estrelas e sua influência disso no plano terrestre, ao mesmo tempo em que tenta construir sua obra digna da beleza sobre a qual narra. Esta intenção dupla, que a nós pode parecer estranha, para Manílio não foi. Precisão, ensinamento e beleza andam juntos na elaboração deste trabalho, fazendo de Manílio ao mesmo tempo um poeta e um professor do saber astrológico13. Sua missão seria não somente transmitir tal conhecimento a partir de um manual rígido e voltado somente para o ensino, mas também classificá-lo como um bom escritor. Podemos entender tal necessidade a partir do meio em que Manílio vivia, pois o florescimento literário do período era notável, sendo inclusive o próprio Princeps Estas características apresentadas não eram estranhas para o homem romano que tinha como base de sua educação a retórica, ou seja, a “arte do bem falar”. A retórica é uma ciência (no sentido de um estudo estruturado) e uma arte (no sentido de uma prática assente numa experiência, com uma técnica). São cinco os pontos aos quais o produtor de um discurso deve se atentar: invenção, organização do conteúdo – disposição, elocução, memorização e a ação de declamar o discurso. 13 35 financiador daqueles que se dispusessem a narrar seus bem feitos e os que o cercavam. Sendo assim, o autor pode ter se inserido em um ambiente no qual apenas as obras de fino trato ganhariam o destaque devido. Seu tema era importante demais para ser ignorado (de acordo com o próprio autor – livro IV) e, por isso, pensamos que Manílio possa ter optado por essa abordagem para que pudesse, dessa maneira, competir com outros escritores que, assim como ele, se disponibilizavam a escrever sobre o mundo que os cercava, seja a maneira utilizada qual fosse. Temos que lembrar que é um período no qual surgiram grandes escritores, como Vitrúvio e seu tratado sobre a arquitetura, Veléio Patérculo e sua História Romana, Ovídio e seus polêmicos textos sobre as mulheres e a “arte de amar”, e Virgílio, responsável pela Eneida. Manílio se encontrava imerso em um contexto no qual a escrita atingia uma supervalorização, pois esta foi considerada mais um meio, entre vários, de comunicação e propaganda14. Mesmo em uma sociedade de maioria não letrada, a literatura desempenhava um papel importantíssimo, pois alcançava a elite romana e a persuadia. A comunicação entre o Imperador e os outros cidadãos romanos, fossem eles próximos ou distantes – como é o caso das províncias – era de extrema importância. Assim como pontua Richard Miles (2005, p.29), a comunicação deve ser entendida como um processo que se apresenta a partir de um ou mais níveis. Não se pode dizer que a comunicação é simplesmente uma interação entre duas pessoas ou mais, pois pode ser feita de maneiras verbais ou não, influenciando na criação de outras crenças e comportamentos. Temos que atentar para o poder que a palavra escrita possuía: grande parte de nossa interpretação sobre o passado foi feita a partir da escrita. Não dispensamos aqui a utilidade, e a necessidade, dos documentos materiais como uma maneira de analisarmos o passado, porém percebemos que a escrita foi, e ainda é, uma poderosa aliada no trabalho do historiador. O falado sobreviveu graças à escrita. Porém, não podemos definir uma sociedade pelos letrados. A “alfabetização” não é uma ferramenta universal da cultura, mas é inseparável da educação. No Império, a palavra escrita desempenhava um papel – quase – central: na passagem das leis, no comando dos exércitos, etc. O Imperador tinha contato com seus subordinados, muitas vezes, por correspondência (MILES, 2005, p.37). Sem a palavra escrita seria impossível a manutenção do Império. “[...] o simples, mas importante, ato de organizar, selecionar e divulgar informações, usando de persuasão, síntese e de imagens que estão na memória dos receptores das mensagens” (GONÇALVES. 2002: 74). 14 36 O conhecimento era poder e o Império romano soube articular bem as informações do governante aos governados (e o inverso também): datas importantes, grandes eventos de construção e astrológicos eram registrados (MILES, 2005, p.38). Entretanto, a tarefa de Manílio não foi nada fácil. Como o próprio autor nos mostra durante o livro IV, escrever sobre tal conhecimento foi difícil, pois a matéria em si não demandava ornato, mesmo que sua apresentação merecesse ser igualmente bela: Mas quem seria capaz de referir, sob lei da poesia, tantos números tantas vezes, tantas somas dizer, e ao longo de assuntos iguais variar o estilo da linguagem? Enquanto cantamos o que é verdadeiro, escrever palavras duras não é, quando nelas tocamos, razão para enfado; mas lhe faltará graça e no vazio cai o esforço que o ouvido despreza. Mas por mim, que na poesia apresento as leis do destino e os sagrados movimentos do céu, deve ser falado conforme tais leis; e não para que se imagine, mas para que se mostre, é que a figura permite. (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v. 511-521) São inúmeras as críticas feitas à obra maniliana quanto à sua caracterização como poema. Autores como Jean Bayet (1996), Ernst Bickel (1982) e Gian Biagio Conte (1994) mostram esta obra como digna de receber tal característica, pois apontam Manílio como “um poeta de metáforas precisas, de expressões bem acabadas, de potência visual e pensamento forte, de tal modo que o aproximam não só de Lucrécio, mas também de Ovídio e Virgílio” (FERNANDES, 2006, p. 12). Conte chega a afirmar que a obra Astronômicas abarcaria em uma mesma escrita certo refinamento que, porém, foi encoberto pela obscuridade com que trata a matéria, tornando Manílio “um dos poetas mais difíceis da literatura latina” (CONTE, 1994, apud: FERNANDES, 2006, p. 12). Assim como Conte, José Escalígero (1579), primeiro grande editor da obra maniliana, também mostra as qualidades desta, porém sem ignorar seus defeitos quanto à sua proposta como poema: Sobre Manílio ainda não decidi se era preferível que fosse lido publicamente nas escolas, ou se lamentável que até agora tenha disso desprezado, poeta engenhosíssimo, escritor elegantíssimo, que foi capaz de ornar assuntos obscuros com tão luminosa expressão, e uma matéria extremamente fatigante com um estilo agradável, parelho a Ovídio em suavidade, superior em grandeza; só perde num ponto: não é capaz de largar a mão das contas e (coisa que, tão sem razão quanto 37 injustamente, se objetou a Ovídio algumas vezes) não sabe parar, no que erra não pelo juízo, mas pela fertilidade, bem como pela complacência para com o estilo; nesse ponto, não juízo, mas senso Quintiliano adverte ter também faltado a Ovídio. Existe ainda um outro vício não leve em nosso poeta, que é ser desmedido na repetição de palavras, quando poderia ou usá-las com mais parcimônia, ou empregar outras em seu lugar. Assim, a ouvidos críticos incomodam os sidera15, caelum16, mundus17, per templa18 tantas e tantas vezes reprisados, e outros não poucos, que três, quatro vezes enfia em três, quatro versos contínuos. Não sendo esse um vício mediano num escritor elegante, desse mal estão isentos os principais poetas, Virgílio e Ovídio. Feita essa única exceção, nada faltaria nesse autor para a perfeição duma obra acabada. Acima de tudo, todos os seus proêmios e parêcbases19 não estão postos ao acaso. Nada mais divino do que eles, mais copioso, mais grave e mais agradável pode ser dito (ESCALÍGERO, 1579, apud: FERNANDES, 2006, p.13-14) Assim como aponta Francisco Calero20, devido aos problemas supracitados, todos os editores concordam na dificuldade de entender e traduzir esta obra (CALERO, 1996, p.44). De fato, para tentar compreender este poema é necessário “saber coisas demais” (PICHON, 1909, p.523), especialmente quando somos separados do documento por um espaço temporal de dois milênios, sendo este não muito lido ou retido nas mãos de poucos filólogos e especialistas. Sendo assim, Marcelo V. Fernandes bem nos mostra que a dificuldade no entendimento de tal obra não se dá somente pelo tema ou pela repetição de termos, mas por impor ao leitor contemporâneo um esforço que não está habituado, “que é religar a ciência e poesia, dois termos de uma relação mais bem compreendida pelos antigos, ao que parece, do que pelo leitor atual” (FERNANDES, 2006, p.14). Manílio, durante sua obra, tentou mostrar sua eloquência a partir de como narra sobre o saber astrológico, o que nos mostra, dessa maneira, a importância que este dava para a forma na qual seu escrito seria apresentado. Por exemplo, durante sua narrativa, o Estrelas. Céu. 17 Mundo. 18 Pelo tempo. 19 O mesmo que digressões, ou seja, um desvio de rumo e/ou assunto. 20 Na introdução que fez à sua tradução da obra Astronômicas para o espanhol, em parceria com María José Echarte. 15 16 38 autor se utiliza da mitologia para mostrar, com isso, certo grau de elocução, dando a beleza necessária para seu texto. Assim como aponta Fernandes: A poesia redefine, então, o espaço reservado aos antigos mitos, que agora são vistos da perspectiva de quem não acredita neles; funcionam como ilustração da poesia douta, numa espécie de jogo que o poeta pratica como que por necessidade do gênero poético. No caso particular de Manílio, o jogo de erudição aparece, por exemplo, a cada vez que o poeta tem a oportunidade de inserir um mito ou uma breve alusão a par de suas explicações “cientificas” ou técnicas, e nesse ponto é que os Phaenomena21 parecem lhe servir ainda mais como modelo (FERNANDES, 2006, p.22). A mitologia foi utilizada a fim de registrar a capacidade de Manílio em cumprir com seu propósito de escrever sobre o universo da maneira mais bela possível. Temos que entender que o mito foi uma importante ferramenta na propagação de ideais ou conhecimentos na Antiguidade. Em uma análise superficial acerca do que seja o mito, sabemos que, de acordo com Walter Burkert (1991, p. 20), este se mostra como uma “forma de relato tradicional estruturado numa seqüência de ações executadas por ‘agentes’ antropomórficos, sendo a modalidade mais remota e difundida de ‘falar dos deuses” no mundo antigo, com suas raízes na tradição oral’. Observamos nesta colocação, a importância da oralidade para o “homem antigo”. Os relatos orais serviam como objetos indiscutíveis para a formação e compreensão da sociedade. O mito tornase fruto destes relatos, designando “uma história sagrada” (ELIADE, 2000, p.11) que realiza uma narrativa iniciada em tempos primordiais, manifestando uma realidade que passa a existir. Devemos entender que o mito apresentado formulou-se de uma constante variável, ou seja, não houve uma formulação chave que desencadeou a aparição do mito e sim suscetíveis modificações ocorridas pela oralidade, comportandose então como a suma dessas variantes. A origem dos mitos se dá pelos relatos orais que unidos formam um corpo, ou seja, o próprio mito. O mito sobrevive apenas se continuar a ser contado. Enquanto o relato poético não se modifica com o passar do tempo, o mito se transforma de acordo com os autores e o tempo, possibilitando a compreensão da “realidade” vivida pelo grupo que ouve e Obra de Arato na qual, de acordo com estudiosos da obra Astronômicas, Manílio se baseou. “Arato (c. 270 a.C.), natural de Solos, na Sicília, autor dos Phaenomena - Fenômenos), poema didático em hexâmetros que contém a descrição das constelações e dos fenômenos celestes e também uma segunda parte que dá conta dos signos meteorológicos” (FERNANDES, 2006, p. 22). 21 39 que conta essa nova formulação mítica. Há diferentes tipos de relatos, de acordo com Jean Pierre Vernant (2000, p.15), que devem ser entendidos para compreender qual o papel do mito nas sociedades antigas. O primeiro apresentado é o relato histórico que possui em sua constituição o compromisso com a verdade, ou seja, narrar apenas o “real”. O relato literário, por sua vez, é formado a partir da utilização da ficção “fantástica” e sua formulação se dá através do talento de seu criador – forma utilizada por Manílio. Por último temos o relato mítico que é construído pela transmissão e pela memória, por ser uma narrativa primordial, de tempos remotos, nos quais não havia autores. Os mitos não são apenas relatos. Contêm tesouros de pensamentos, formam lingüísticas, imaginações cosmológicas, preceitos morais etc. (VERNANT, 2000, p.16). As perguntas sobre o que havia antes de existir algo, os gregos responderam através dos mitos. Este se mostra como uma janela para a compreensão da sociedade, pois podemos detectar traços sociais em sua composição, no comportamento das divindades, que espelham a realidade vivida pelos seus autores. Discernimos, neste momento, três conceitos chaves para a compreensão do mito: Oralidade, Memória e Tradição. Como o primeiro conceito já foi abordado anteriormente na questão de sua inserção na formação mítica, tratamos, portanto, apenas dos dois últimos. A memória se torna importante para a compreensão do mito, pois esta é compreendida a partir de um escrito, ou através da oralidade, empregando em sua concepção um caráter ideológico, ou seja, a vontade de um grupo. Como bem define Maurice Halbwachs (1990, p.20), a memória é formada por um grupo e sua interpretação dos fatos, portanto, pelas suas lembranças, às quais formam o que o autor denomina de memória coletiva. Verificamos, desta maneira, que o mito se comportava como resultado desta memória: a formação da narrativa mítica se dá pela impressão de seu criador, pelas lembranças e pela conjuntura em que vive. Desta maneira, a memória tenta resgatar o que foi produzido na tradição. Mas o que seria essa tradição? Utilizamos a ideia de construção coletiva de costumes e práticas, que ao serem realizadas ou/e seguidas como referência tornam-se modelo tradicional. O mito utiliza-se da tradição do grupo em que foi cunhado, sendo a memória inerente na formação mítica. A tradição ritualiza certos acontecimentos e costumes, realizando desta maneira a junção da memória com o mito, sendo que esta se modifica atendendo os anseios e necessidades expressivas do grupo em que ocorre sua formulação. 40 O mito mostra-se a partir das variantes, sendo que suas formas de expressão não se encontram apenas ligadas aos relatos religiosos, assim como nos mostra Junito de Sousa Brandão (1995, p. 40), mas também às literaturas, poesias e artes figurativas, consideradas pelo autor como formas profanas. Esta afirmação nos é contestável, pois não podemos definir estas formas artísticas como de algo profano, sendo que a religião é intrínseca à formação do homem antigo clássico, dentro de todas as instâncias sociais. As artes também tinham sua porção religiosa, o que não as permite ser separadas pela categoria de profanas e sagradas no mundo antigo. Observamos então que o mito possui uma característica funcionalista, qual seja de fundamentar “os usos e as normas básicas do convívio, propondo uma justificação narrativa tradicionalmente aceita por todos”, pois de cumprir nas culturas antigas “uma função indispensável; expressa, acentua e codifica a crença; protege e reforça a moral; vigia a eficiência do ritual e de certas regras práticas para a orientação do homem” (GRIMAL, 2000, p.15). O mito, então, não seria apenas uma fábula, e sim um modo pragmático de compreensão social que privilegiava a sabedoria moral. Além disso, a mitologia adquire um caráter simbólico realizando uma contraposição entre fantasia e realidade, pois o mito torna-se representação22 do real. Então classificamos que há uma materialização do imaginário, enquanto estrutura mental, na formação do mito, pois este imaginário utilizando-se de uma imagem representativa do real se reporta, muitas vezes, aos interesses sociais de certo período. Assim como aponta José D’ Assunção Barros, o imaginário pode transparecer a partir de um interesse ideológico: [...] as imagens, as cosmovisões e os símbolos podem ser produzidos também por circunstâncias políticas, por necessidades sociais e até locais, por artimanhas da poesia e da literatura, por arquitetura política pensada ou intuída, ou podem mesmo ser ocasionadas por grandes eventos que caem como raios na vida das sociedades. (BARROS, p.97, 2004) O mito, dessa maneira, “não fala senão naquilo que começou realmente, naquilo que se manifestou completamente, as personagens do mito são seres sobrenaturais” (ELIADE, 2000, p.47). Porém, mesmo tendo tal função, Manílio se utiliza da mitologia a fim apenas de demonstrar eloquência. Destacamos alguns trechos da obra maniliana: 22 A palavra representação origina-se da língua latina, advinda do vocábulo representare, que tem como significado “tornar presente” ou “apresentar de novo”. Sua utilização conceitual pode designar duas vertentes: se mostrar como uma substituição do real ou através de uma evocação mimética, realizando, com isso, uma cópia do real. O conceito, para nossa compreensão do que seja imaginário, se associa à ideia de interpretação da realidade. 41 Próxima é a vez do Cisne, o qual Júpiter mesmo pôs no céu, como recompensa pela imagem com que seduziu Leda, que assim o admirava, crédula, quando o deus, em níveo cisne transformado, desceu e lhe prestou seu dorso de plumas (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 427-431). [...] Acaso, se os destinos não ditassem as leis da vida e da morte, teriam os fogos fugidos de Enéias, Tróia, em razão dum só homem não derrubado, teria triunfado de seu próprio destino? Ou teria a loba de Marte nutrido os irmãos abandonados, teria Roma renascido de suas quedas, teriam os pastores levado os raios aos montes do Capitólio, ou teria Júpiter podido encerrar-se em sua acrópole, teria sido o mundo dominado por gente dominada? (MANÍLIO, Astronômicas, Livro IV, v.30-38). Nestes, podemos observar a utilização da mitologia apenas como uma maneira de tornar bela uma matéria tão enrijecida. O próprio autor mostra que o conhecimento mitológico deveria ser utilizado principalmente para tal fim, pois a explicação de todas as coisas no universo viria da racionalidade emanada do deus criador, transposta no ser humano já que este era apresentado como parte do divino. Manílio destaca: Alguns falaram das variadas formas dos astros; e as constelações que se espalham deslizando pela extensão do céu, eles as referiam ao gênero particular de cada uma e às duas causas: Perseu, a libertar da pena Andrômeda e sua mãe, que sofria, e seu pai; e a filha raptada a Licáon; e Cinosura; e pelo empréstimo do disfarce, o Cisne; e Erígona, às estrelas conduzida em virtude de sua pia devoção; e pelo seu golpe, o Escorpião; e, pelo espólio, o Leão; pela mordida, Câncer; os peixes, pela transformação da deusa de Citera; o Lanígero, a conduzir os signos pelo mar conquistado; e as restantes constelações, que derivam de variadas origens, os poetas imaginaram que se revolviam no sumo éter. Em seus poemas, o céu nada é senão uma fábula, e a terra é que compôs o céu, do qual depende. [...] Pois cantarei o deus senhor da natureza, de mente silenciosa, espalhado pelo céu, pela terra e o mar, a governar com igual lei a ingente máquina; e cantarei que o universo inteiro vive por um consenso recíproco e é guiado pelo movimento da razão, já que um só espírito 42 habita em todas as suas partes e irriga o mundo [...] (MANÍLIO, Astronômicas, Livro II, v.31-79). Sendo assim, apoiando-nos na definição de Fernandes, podemos explicar esteticamente o trabalho de Manílio como um texto que “embora muitas vezes cerrado e difícil, numa espécie de tour de force que prolonga as definições e os exemplos como a querer explicar tudo, é também muitas vezes claro, luminoso, em proêmios e excursos considerados dignos de antologia” (FERNANDES, 2006, p.27). Dessa maneira, devemos encarar a possibilidade de Manílio não ser um astrólogo, mas um douto poeta capaz de narrar e descrever eventos diversos. A autora Katherina Volk defende tal ideia, pois percebe que Manílio não se aprofunda no conhecimento astrológico em si, e sim apenas narra-o, buscando primeiramente atingir o objetivo de escrever um poema. Essa autora trabalha com a suposição de que Manílio não foi um astrônomo ou astrólogo, mas, em primeiro lugar, um poeta, sendo este conhecimento sobre os fenômenos celestes algo derivativo (VOLK, 2009, p.11). Não era esperado, na Roma Antiga, que poetas didáticos fossem especialistas nas matérias que se propunham a escrever. A autora aponta: Manílio não foi um cientista, porém, como Arato, foi um poeta didático – isso é, um escritor de educação elevada e bem versado em vários campos do saber dos seus dias, especialmente, nos que traz em seu escrito (VOLK, 2009, p.11). Dessa maneira, diferente das divisões que hoje fazemos, e assim como nos mostra Volk, “para Manílio, cosmologia, astrologia, política, poesia e filosofia estavam interligadas” (VOLK, 2009, p.12), sendo, devido a isso também, a fascinação que a obra nos causa por narrar o presente maniliano a partir de temas e elementos tão diferentes. O próprio Manílio se apresenta como um poeta (como já destacado) que apenas é responsável por escrever acerca de uma matéria específica, sendo esta abarcadora de outros diversos eventos e saberes. A partir de tais ideias percebemos uma intenção didática por parte do autor em ensinar sobre as divisões e mistérios do Universo, ao mesmo tempo em que mostra a organização do plano terrestre, mantendo-a em constante harmonia. Dessa maneira, o poema maniliano é classificado como didático, sendo tal termo utilizado para exprimir um valor ligado à transmissão de certo conhecimento. A classificação como um poema didático foi adotada pelos estudiosos que se comprometeram a analisar Astronômicas devido a algumas características da obra. 43 Como já dito, Manílio teve uma preocupação de estruturar seu trabalho abarcando interesses duplos, sejam eles quais forem. Realizou a proeza da escrita de um poema digno da beleza sobre a qual narra enquanto propagou um ensinamento, uma matéria específica, sem se desligar de seu contexto. Dessa maneira, entender o que esse poema didático era e sua organização se mostra necessário para que, desse modo, possamos compreender o porquê da escolha deste modelo pelo nosso autor. A narrativa, seja de que período for, tem como análise primária a constatação do estilo adotado, pois este demonstra também algumas das intenções que o autor não explicita, propositalmente ou não, durante a escrita. Sendo assim, podemos perceber que uma das intenções de Manílio seria a de ensinar, ou seja, a de apresentar seu trabalho como um manual de certo saber, neste caso sobre a astrologia. Assim como mostra Volk, “o poema didático ensina algo, seja um saber (por exemplo, a física epicurista de Lucrécio, astrologia de Manílio) ou uma habilidade prática (exemplo, agricultura em Hesíodo, a arte de amar de Ovídio)” (VOLK, 2009, p.175). Dessa forma, o poema didático apresenta, assim como qualquer outro texto, uma dupla dificuldade, pois para analisá-lo é necessário entender o seu contexto de produção e para quem se fala (seu público alvo). Nosso contexto já está delimitado: explanamos sobre o período do início do Principado romano, especificamente o período conhecido como “Século de Augusto”. Porém, mesmo assim, ainda caímos em generalizações, pois não conseguimos posicionar geograficamente e precisamente para qual grupo a obra maniliana foi direcionada. Podemos entender que se manteve na Península Itálica, pois o próprio Manílio escreve, e como já citado: “E, se alguns nomes forem referidos em língua estrangeira, culpa será do tema, não do vate: nem tudo se pode verter, designando-se melhor em sua própria língua” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 49-52). Ou seja, a preocupação em se justificar pelo uso de expressões em língua estrangeira nos possibilita pensar que estivesse falando para um público latino, pelo menos. O poema didático expressa um conhecimento para alguém e, dessa forma, elege em sua composição dois personagens principais ao longo de sua narrativa: o professor, ou seja, aquele que ensina; e o aluno, a quem o ensinamento é direcionado. Tal articulação pode ser percebida pela utilização da primeira pessoa na elaboração do texto, o que nos dá a impressão de um discurso falado a alguém de maneira direta. A reação do aluno não nos é certa: 44 É um pouco óbvio, pensar, que os dois protagonistas do poema didático – professor e aluno – não são criados iguais. Após tudo, é típico que apenas o professor fale, enquanto as reações dos alunos (de algum), deve ser imaginada, e como resultado disso, nosso drama é na verdade um monólogo estendido apresentado para um (grande) ouvinte silenciado (VOLK, 2009, p.177). A obra maniliana se encaixa neste modelo, pois mesmo que não especificando a quem endereça suas “aulas”, Manílio impõe sua fala perante uma segunda pessoa. Podemos constatar isso a partir da análise do livro IV, no qual Manílio incentiva o seu leitor/aluno a não perder as forças no aprendizado do conhecimento astrológico, pois sua recompensa será grandiosa: Não meças o tamanho da matéria, mas atenta, sim, para as forças que a razão, e não o peso do teu corpo, tem: a razão a tudo vence. Não hesites em creditar ao homem o poder de ver o divino [...] (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v. 931-934). O objetivo de Manílio não é transformar seu aluno em um profissional do saber astrológico. O poema didático não pode ser equiparado a um manual autodidático que tenha como objetivo tornar seu detentor um futuro professor do saber ensinado. Os leitores destes poemas podem ser considerados amadores que apenas se apaixonam pelo tema proposto e, por isso, buscam aprender sobre ele. Dessa maneira, eles podem instruir-se sobre as estrelas sem terem a intenção de se transformarem em grandes astrônomos. Manílio ensina aquilo que acredita que é sua incumbência ensinar, ou seja, falar sobre o Universo é necessário, pois cabe ao homem conhecer sobre a vastidão celeste e, com isso, entender um pouco melhor sobre sua existência: “Quem poderia conhecer o céu, senão que por dádiva do céu, / e descobrir o deus, senão aquele que, ele próprio, é parte dos deuses?” (MANÍLIO. Astronômicas, Livro II, v. 141-144). Neste intento de produzir um poema astrológico, Manílio acaba por conceber uma obra literária didática. Fernandes mostra o trabalho maniliano como um modelo de poema didático e este poema que ensina tem muitas vezes “um valor filosófico e moral” (FERNANDES, 2006, p.15), valor este presente na obra. O poema didático possui, em sua formulação: [...] painéis ilustrativos, que ordinariamente permeiam a instrução; as digressões (ou parêcbases), que parecem cumprir a função propriamente do deleite (difícil conexão entre o dulce da poesia e o uerum da ciência); os proêmios (pois o poeta didático, tendo de 45 preparar antes o ouvinte, não pode fazer como o épico, que pode muitas vezes começar in medias res); a afirmação do valor da ciência, a garantia de competência do mestre, o enaltecimento da razão como aquilo que liberta da ignorância o espírito; a organização cuidadosa do material da instrução em livros ou seções menores; a legitimidade do discurso didático baseada na idéia de utilidade da instrução; o uso das máximas e provérbios, do tom sentencioso; etc. (FERNANDES, 2006, p.17). Temos que entender que tal classificação como “gênero”, a propósito do poema didático, é: [...] em primeiro lugar, em consideração ao modo tradicional, entre classicistas, de assim distingui-la de outros gêneros; em segundo lugar, em razão de se encontrar tal distinção já em Diomedes, que toma o didático (didascalice) como uma das três espécies do gênero, ou antes modo, exegético ou narrativo de poesia (FERNANDES, 2006, p.16). Assim, percebemos que a necessidade de ensinar era latente ao objetivo de Manílio. Esta seria a maneira pela qual alcançaria o público pretendido, seja ele qual fosse, a fim de não somente apresentar a beleza do Universo, mas introduzir o(s) aluno(s) em um conhecimento, ainda que superficial, de um saber, sendo no caso a astrologia. Percebemos também que a pessoa autoral, ou seja, Manílio, desempenha um papel duplo na confecção do seu trabalho. Seu papel na produção d’ Astronômicas não seria passivo, pois a vontade do mundus sobre a qual tanto narra pode ser considerada um elemento da ficção, muito utilizado para legitimar sua escrita e levar seu aluno a buscar mais sobre o conhecimento astrológico. Sendo assim, e nos apoiando na tese de Fernandes (2012, p. 40), a persona doctoris da obra estudada gera uma tensão que se transfere à natureza de suas funções: [...] de um lado, ela é o vate, a quem cumpre mostrar os saberes astrológicos ao discípulo por meio de poesia, já que essa é uma determinação celeste que deve ser cumprida, por assim dizer, com piedade (Livro IV); de outro, ela é o vate-poeta, a quem cumpre confeccionar o opus, segundo os limites e imposições celestes, mas que por vezes “excursiona” ou “voa”, como poeta, para fora de tais limites, pois, como tal persona reconhece (Livro I) (FERNANDES, 2012, p.40-41). 46 Se por um lado Manílio se mostra livre e ousado para narrar sobre os eventos celestes e a respeito da organização de todo o Universo, por outro lado não deixa de cumprir a determinação da ordem celeste. Dessa maneira, Manílio afirma piamente que não lhe compete confeccionar expressões que acrescentem à matéria celeste aquilo que ela mesma já tem para proporcionar. Assim, a obra maniliana, e o próprio autor, se mostram como um campo vasto e aberto para o estudo da Antiguidade. O poema de Manílio traz especificidades necessárias de serem apontadas para que, dessa maneira, possamos buscar compreender o mundo deste autor. Uma dessas é a utilização da filosofia estóica durante toda a descrição e explicação dos fenômenos celestes que refletem e corroboram para os acontecimentos na Terra. Como já apresentamos, o trabalho de Manílio é plural, pois abarca desde o conhecimento astrológico e astronômico em si, como também a matemática, a geografia e a própria filosofia. A utilização de tal saber como forma de embasamento para sua explicação do plano astral deve ser entendida como proposital no que concerne a uma explicação e legitimação de sua postura perante o que narra. Sendo assim, em nosso trabalho também se faz necessário entendermos o estoicismo que, assim como toda produção humana, se modificou no tempo desde a sua criação até a sua apropriação por Manílio no século I d.C. Manílio responde aos interesses e anseios de seu tempo apoiando-se no passado, nos astros e na filosofia para completar tal resposta da melhor maneira possível. 47 CAPÍTULO 2 A Filosofia Estóica na elaboração maniliana de seu manual astrológico: uma aproximação entre os eventos celestes e os terrestres O ser humano tenta, de inúmeras maneiras, explicar o espaço que o cerca compreendido como mundo. Para isso, criou, e continua a criar, inúmeras regras, costumes, religiões e diretrizes para se viver bem e em harmonia com o plano em que vive. Ou seja, o ser humano existe em uma busca incessante de se encaixar no espaço no qual habita da melhor maneira possível, o que o leva a se questionar sobre a sua vivência. Tal questionamento pode ser percebido desde a Antiguidade, especificamente no que compreendemos como Antiguidade Clássica, espaço temporal e físico no qual surgem inúmeros cultos, divindades e filosofias a serem pregadas e seguidas. Dentre tantas, destacamos em nosso trabalho uma filosofia em específico, pois tal é utilizada amplamente na produção d’ Astronômicas, de Marco Manílio: o Estoicismo. Em seu objetivo de explicar a organicidade do universo e exprimir isto em forma de um poema tão belo quanto a matéria sobre a qual narra, Manílio engendra em sua elaboração um universo harmônico e capaz de conectar todos os seres, vivos e não vivos, em um esquema no qual estes se interligam por fazerem parte de um único ser: o deus que é o próprio universo. Cada ser adota uma porção deste criador, que ao mesmo tempo é a sua criação, interligando-se com os demais e, com isso, gerando uma “simpatia universal”. Manílio, poeta do I século d.C., estrutura, a partir de sua obra, o universo. Seu manual, que aborda conceitos e temas que atualmente dividimos entre astrologia e astronomia23, nos traz uma compreensão organizacional dos corpos celestes além de uma explanação acerca das relações existentes entre eles. Tais relações não abrangem somente a porção que compreendemos como Céu, mas também influenciam na elaboração e ação da vida terrena, ou seja, astros e homens estão interligados por uma teia de relações infinitas. É a partir desta ideia que iniciamos este capítulo. Visamos entender a obra maniliana a partir do prisma de compreensão estóica (uma tentativa de aproximação do que isto seria). Tal filosofia será nosso suporte para compreender a organização do universo de acordo com Manílio que acreditou que tudo se interligava através de uma denominada, e já explicitada, “simpatia universal”. 23 Ver item 1.2. A astrologia e os astrólogos no tempo de Manílio, capítulo I. 48 Porém, antes de adentrarmos na explanação e associação Astronômicas/Estoicismo, temos que entender um pouco mais sobre o que seria este corpo de princípios estóico, pois, assim como toda produção humana, tal foi se modificando com o passar dos anos e com as apropriações que foram sendo feitas. A filosofia manteve algumas posturas, sendo por isso denominada com o mesmo nome desde a sua criação, mas se modificou para poder atender às novas necessidades de seus praticantes. Além disso, temos que salientar a dificuldade que é apresentada para aqueles que se interessam em estudar a história da filosofia estóica. Assim como aponta Rachel Gazolla, a sobrevivência histórica de tal dependeu da doxografia24 que nos restou, ou seja, da compilação feita por estudiosos que não eram mais estóicos e, por isso, selecionaram as informações que lhes eram úteis. “Muitas vezes, as teses resgatadas misturam-se às concepções do compilador” (GAZOLLA, 1999, p.17), e, por isso, não é incomum perceber características pós-platônicas, aristotélicas, céticas ou cristãs nas problematizações estóicas que nos chegaram. Sendo assim, a autora expõe: Diante das notícias e leituras sedimentadas, o leitor atual, para não se tornar um intérprete em quarto grau da Stoa, deve atentar para: a) os possíveis anacronismos de parte da doxografia, inserida na herança de afirmações contrárias às posições estóicas; b) a sedimentação de certas perspectivas temáticas – exaustivamente discutidas em outras escolas filosóficas – que norteiam, dada a fixidez, a leitura dos fragmentos estóicos; c) a facilidade técnico-didática de uma ordenação histórica da Stoa em três períodos que, não necessariamente, cria a mesma facilidade para a compreensão dos fragmentos compilados (GAZOLLA, 1999, p. 18). Dessa maneira, cabe a nós, historiadores, tentar estudar as mudanças desta escola filosófica sem cair nos anacronismos que seus interpretadores e compiladores do passado embutiram durante os estudos feitos. A distância temporal dos que primeiro noticiaram sobre o estoicismo, Cícero e Plutarco no século I d.C., também é apresentada como mais um problema na elaboração dos estudos atuais sobre o Estoicismo. Doxografia é o relato das idéias de um autor quando interpretadas por outro autor, ao contrário do fragmento, que é a citação literal das palavras de um autor por outro. 24 49 2.1. A Filosofia Estóica Estudiosos da filosofia estóica, como Jean Brun (1986) e Frédérique Ildefonse (2006), se esforçaram em entender tal filosofia como uma produção contínua que, entretanto, respondeu aos anseios do tempo em que foi articulada e utilizada. Dessa maneira, são apresentadas três divisões temporais do Estoicismo, sendo cada uma responsável por uma modificação na explicação estóica de mundo, ou realizadora de uma nova apropriação de uma regra já existente. Como já apresentamos, essa divisão tripartida é fruto da análise contextual em que cada grupo utilizador desta filosofia se encontrava. Assim como aponta Brun: “O estoicismo não foi somente a filosofia de Zenão de Cício, o fundador da doutrina, mas foi igualmente uma escola abrangendo os alunos e os escolarcas que a dirigiram” (BRUN, 1986, p.15). Sendo assim, são apresentadas três grandes divisões, ou períodos, na história da escola: [...] o estoicismo antigo que tem o seu centro de atividades em Atenas no século III a.C. e de que retemos três grandes nomes: Zenão de Cício, Cleanto e Crisipo. O estoicismo médio no século II a.C., onde o sistema perde o seu primeiro rigor e começa a latinizar-se; Diógenes, o Babilônico, Antipatro de Tarso, Panécio de Rodes e Possidônio de Apaméia são os seus principais nomes. O estoicismo da época imperial nos I e II séculos d.C. é essencialmente romano e abandona quase completamente a lógica e a física para se interessar apenas pela moral. Podemos reter como nomes principais: Sêneca, [...], Musónio Rufo e, sobretudo, Epicteto e Marco Aurélio (BRUN, 1986, p. 15). Porém, outra divisão nos é apresentada, mesmo que também feita de forma tripartida, e tal corresponde a um movimento de expansão geográfica que resultou nas diferenciações da filosofia com o passar do tempo. Assim como apresenta Ildefonse: Jacques Brunschwig25, por sua vez, propõe uma distinção entre três períodos: um período ateniense de início, que se estende até o final do século II a.C., em que o estoicismo é uma instituição estável, sucessivamente dirigida por eruditos oficialmente designados, cuja sede fica em Atenas, apesar de eles próprios não serem atenienses; os alunos chegam a Atenas vindos de Chipre, Ásia Menos, Oriente Indicação do autor citado: Jacques Brunschwig, “Les Stoiciens”, in Monique Canto-Sperber (dir.), Philosophie grecque, p. 513. 25 50 Médio; um segundo período, no qual o estoicismo abandona essa centralização ateniense: Panécio dirige um centro em Rodes, frequentado por Possidônio de Apaméia (o primeiro ensinando também em Roma, e o segundo fazendo viagens científicas em volta do Mediterrâneo); o período do estoicismo romano, com Sêneca (465), que foi preceptor de Nero, Epicteto (55-135) e Marco Aurélio (121-180). A filosofia estóica acaba por tocar, de maneira mais difusa, categorias sociais muito variadas, como atestam as duas personalidades emblemáticas que o representam: Epicteto, antigo escravo alforriado, que ensina em Nicópolis, cidade de Épiro; e Marco Aurélio, Imperador (ILDEFONSE, 2006, p.15). A partir disto, prosseguimos no entendimento de cada período destacado da filosofia estóica, a fim de entender as transformações realizadas com o passar do tempo, e como Manílio se apropriou de tal na produção de seu manual astrológico. Assim como já destacado no primeiro capítulo, temos que nos lembrar de que o poema maniliano abarca dois interesses diferentes: exprimir em palavras belas a vastidão do Universo ao mesmo tempo em que ensina sobre as divisões deste e também sobre o Estoicismo. Quer dizer, a filosofia estóica também é um elemento ensinado por Manílio, pois este percebeu que apenas assim a compreensão do universo por parte do seu aluno/leitor seria feita da melhor maneira possível. 2.1.1. O Estoicismo Antigo O primeiro período, conhecido como estoicismo antigo, tem como principal representante Zenão de Cício (336-264), fundador da escola. Vindo da ilha de Chipre26, Zenão chega a Atenas provavelmente em 314 a.C., e ao desembarcar se depara com uma cidade repleta e efervescente de escolas filosóficas. Assim como ele, os outros dois representantes deste período, Cleanto e Crisipo, também haviam chegado do Oriente, Ásia Menor (o primeiro de Troade e o segundo da Cilícia), e, por isso, podemos julgar que o início da escola teve grande influência oriental. A família de Zenão provavelmente possuía uma origem fenícia, já que recebia zombarias dos seus contemporâneos que insistiam em chamá-lo de “pequeno fenício”. Cício, cidade localizada na ilha de Chipre, era uma praça forte grega que pertenceu a colonos fenícios (BRUN, 1986, p.16). 26 51 Filho de um mercador, Manasses, Zenão comprava púrpura na Fenícia27, mas o navio que a transportava naufragou diante do Pireu. Após esta perda, encaminhando-se para Atenas, folheou na casa de um livreiro a obra Memoráveis de Xenófanes e se apaixonou pela escrita, determinando-se a ser como aqueles homens tão notáveis. Crates, o Cínico, passava neste exato momento e assim Zenão decidiu segui-lo e aprender sobre a filosofia. Outra versão mostra que antes de conhecer o livreiro, Zenão havia se consultado com um Oráculo e, questionando qual seria o melhor caminho para seguir na vida, foi orientado a manter uma relação com os mortos: e isso fez Zenão, que buscou ler os filósofos antigos. Mas seja qual for a versão, sabemos que o fundador do estoicismo acabou por se tornar um discípulo de Crates, pertencente à linha dos filósofos cínicos dos quais Diógenes foi o mais célebre. A doutrina cínica foi fundada por volta de 400 a.C., por um dos discípulos de Sócrates, Antístenes, e apresentava-se como uma filosofia do escândalo e do sarcasmo. Tais características são atribuídas, pois estes filósofos se utilizavam destas para denunciar algumas atitudes que reprovavam em seus contemporâneos. O caráter crítico dos cínicos influenciou bastante o estoicismo: “sem embargo, há acordo geral em apreciar o poderoso impacto que o criticismo cínico produziu nos fundadores do Estoicismo” (PUENTE OJEA, 1974, p.81). Gonzalo Puente Ojea continua: O Estoicismo original está impregnado da filosofia cínica, ao ponto de que a designação de doutrinas cínica-estóicas seria mais pertinente para referir-se à atitude básica dos fundadores da Stoa, em especial à atitude de Zenão [...] (PUENTE OJEA, 1974, p.83) Os filósofos cínicos desprezavam a opinião pública e pregavam a vida em conformidade com a natureza, lição que Zenão transportou ao Estoicismo mesmo tendo abandonado os ensinamentos de Crates, por não concordar com o impudor de seu professor. Aos 42 anos, aproximadamente, Zenão inicia o ensino do Estoicismo e funda uma escola: [...] os seus alunos foram primeiramente designados por Zenonianos, depois segundo o costume de dar a uma escola o nome do lugar onde estava estabelecida, chamou-se-lhes de Estóicos. Estoicismo deriva, 27 Atual Síria. 52 como efeito, da palavra grega stoa que significa pórtico, porque Zenão ensinava perto do Pórtico Poecilo [...] (BRUN, 1986, p.17). Rapidamente, Zenão começou a ganhar o respeito de seus contemporâneos e ministrar suas aulas sem por elas cobrar nada. Sendo assim, entre seus alunos, o filósofo tinha pessoas de diversos estamentos sociais. Sua principal lição era a vida segundo as diretrizes da natureza, sendo esta a maior virtude, o soberano bem e a eterna felicidade que somente seria alcançada pelo sábio. Um dia, ao sair da escola, Zenão caiu e partiu um dedo. Entendendo aquilo como um sinal, ele se estrangulou, pondo um fim à própria vida. Diógenes Laércio (século III a.C.) comentou o evento: Foi assim que ele morreu. Saindo da escola, ele tropeçou e fraturou um dedo. Batendo com a mão na terra, ele pronunciou os versos extraídos de Niobé: Eu chego. Por que me chamas? E logo morreu, retendo sua respiração (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 28). Seu discípulo, Cleanto (331-230 a.C.), foi o sucessor de seus ensinamentos. Antigo pugilista, Cleanto chegou a Atenas apenas com quatro dracmas nos bolsos. Pela não cobrança monetária de Zenão, ele logo passou a seguir os ensinamentos estóicos e foi considerado apenas um sucessor, e não um inovador da escola. Foi um período de desestabilidade, pois houve uma descentralização do ensinamento. Vários discípulos começaram a ensinar a doutrina fora de Atenas, sendo a culpa disto depositada na personalidade tão apática de Cleanto. Viveu por quase um século e ao descobrir um tumor na gengiva, optou por parar de se alimentar, deixando-se morrer de fome, pois acreditava que já havia vivido demais. Foi com Crisipo (280-210 a.C.) que a escola estóica restabeleceu certa unidade, “em primeiro lugar, devido à sua personalidade, depois, pela sua douta dialética que lhe permitiu entrar em luta com seus adversários” (BRUN, 1986, p.19). Diógenes chegou a afirmar que se “não houvesse Crisipo, não haveria Pórtico” (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 183). Émile Bréhier destacou que “ele fundou pela segunda vez o estoicismo, defendendo-o contra os dissidentes, como Aríston, e contra os adversários” (BRÉHIER, 1951, apud: ILDEFONSE, 2006, p.22). Ildefonse o descreve: Dedicado trabalhador, era de uma prolixidade impressionante: a senhora que estava a seu serviço afirmava que ele escrevia quinhentas 53 linhas por dia. São-lhe atribuídos mais de 705 “livros” (uma única obra compreendia em geral vários “livros”, ou seja, vários cilindros), dos quais nos restam apenas fragmentos. Praticante da citação, ele teria chegado a citar quase integralmente a Medéia, de Eurípedes, em uma de suas obras (ILDEFONSE, 2006, p.22). Continuador e inovador do estoicismo, Crisipo ainda seguia os ensinamentos de Zenão, respeitando as três divisões da filosofia feitas por ele: a ética, a física e a lógica28. Crisipo, assim como apresenta Ildefonse ao citar Plutarco, desenvolveu uma ordem que deveria ser seguida no que diz respeito ao ensinamento da filosofia estóica: Crisipo acha que é necessário ensinar primeiro a lógica aos jovens, em segundo lugar a ética e, depois, a física, reservando para o final a questão dos deuses. Ele representou várias vezes, mas bastará citar o que se encontra no segundo livro Sobre as vidas; seguem-se suas palavras: “Primeiro, parece-me, seguindo o que os antigos disseram de exato, que existem três espécies de considerações filosóficas: as lógicas, as morais e as físicas; em seguida, é necessário colocar na primeira fila a lógica, na segunda a moral e, na terceira, a física; e a doutrina dos deuses, dentro da física, a última; é por este motivo que se chamam de mistérios os ensinamentos transmitidos sobre os deuses” (PLUTARCO, Sobre as contradições dos estóicos, IX, apud: ILDEFONSE, 2006, p.25). Mesmo que a ordem apresentada por Crisipo seja diferente da elencada por Zenão, ambos mantinham como centro de análise, e união entre as três partes, a racionalidade. Zenão unifica estes saberes sob a categoria de logos, sendo este o responsável pela unidade orgânica das três partes. Tal logos seria a razão que governa a matéria (hylè), que sofre as ações do universo chamado de “deus”, ou seja, um demiurgo que age e forma o orbe. Sendo assim, este deus seria o “grande artesão” do tudo, um fogo modelador que procede metodicamente a gênese do mundo29. 2.1.2. O Estoicismo Médio Após a morte de Crisipo o nome que despontou entre os alunos da escola foi o de Panécio (185-112 a.C.) Assim como destaca Brun: Tais concepções são explicadas neste capítulo a partir do ponto 2.2 Tal idéia também analisada neste capítulo em comparação à que é apresentada por Manílio em sua obra Astronômicas. 28 29 54 Com Panécio, chegamos verdadeiramente ao que está convencionado chamar estoicismo médio. A doutrina de Zenão estende-se no Oriente até à Babilônia, é bem conhecida em Alexandria, vai ganhar Roma que começa a helenizar-se, sendo o grego a língua das pessoas cultas (BRUN, 1986, p.21). Panécio nasceu em Rodes, aprendeu sobre a filosofia em Atenas com Antipater e partiu para Roma, lugar onde se tornou amigo de Cipião Emiliano30, acompanhando-o em Alexandria e pela expedição ao longo da costa ocidental africana. Assim como apresenta Brun, tal relação entre estes dois homens tão distintos possuía um sintoma significativo, pois com a expansão territorial empreendida pelos romanos havia a necessidade de produzir uma moral pessoal que legitimasse a ação das legiões e juristas romanos. Dessa maneira, estes homens “encontraram no humanismo universalista dos estóicos uma doutrina capaz de responder às suas aspirações” (BRUN, 1986, p.21). Isso também explica as boas relações que Panécio manteve com outros homens célebres. A filosofia estóica se modificou e atribuiu à porção compreendida como moral, ou ética, maior valor. Além disto, este estoicismo se voltou a atender os interesses de uma elite republicana situada em Roma, e se ligou à filosofia ática, principalmente aos ensinamentos de Sócrates: [...] se tratava de destruir o vínculo do estoicismo com o cinismo, vinculo que não só repugnava sua sensibilidade aristocrática, senão que, sobretudo, entorpecia a construção de uma ideologia diretamente legitimadora de um compromisso com os poderes sociais e políticos dominantes. Uma vez que a filiação socrática do estoicismo permitia incorporar muitos elementos teóricos procedentes de uma tradição filosófica helênica, úteis para educar e civilizar [...] (PUENTE OJEA, 1974, p.136-137). Possidônio (135-51 a.C.) foi quem substituiu Panécio e continuou o seu trabalho. Nascido em Apaméia, na Síria, se instalou em Roma onde construiu relações com Pompeu e Cícero, porém sem inovar no ensinamento da doutrina. Foi este momento da escola que influenciou, com maior peso, a obra maniliana, já que foi este o contexto, aproximadamente, em que Manílio escreveu. Públio Cornélio Cipião Emiliano Africano, dito o Jovem (em latim Publius Cornelius Scipio Aemilianus Africanus, 185 a.C. — 129 a.C.), foi um general e político romano que lutou na Terceira Guerra Púnica contra Cartago, concluindo-a vitoriosamente e destruindo Cartago após três anos de assédio. 30 55 2.1.3. O Estoicismo Imperial Após três séculos desde que Zenão começou a ensinar o estoicismo, Roma agora detinha o centro do ensino da doutrina, já que Atenas foi suplantada por este vasto Império. O período em questão foi bem diferente dos demais, assim como apresenta Brun: Os escritores, os historiadores e os filósofos que não são aduladores do Imperador, são perseguidos ou exilados: Nero proíbe Lucano de ler as suas obras em público, o estóico Musónio Rufo é exilado; em 93, Domiciano expulsará os filósofos por um senado-consulto. Por outro lado, faz-se sentir a influência do Oriente: numerosos cultos, mais ou menos estranhos são importados por Roma. Finalmente, não esqueçamos que no meio dos paganismos de toda a espécie e das diferentes escolas filosóficas, o cristianismo nascente vem trazer a sua mensagem (BRUN, 1986, p.22). Os três principais representantes deste período foram Sêneca (4 a.C. – 65 d.C.), Epicteto (50-130 d.C.) e Marco Aurélio (121-180 d.C.). Os dois últimos nos chamam atenção por representarem os opostos em relação ao estamento social que ocupavam. O primeiro era um escravo, enquanto o segundo foi um Imperador. Epicteto encontrou na filosofia uma justificativa para sua vida miserável e, por isso, pregava a liberdade interior através de uma vida submissa à razão. Ou seja, cada homem deveria se preocupar com suas ações, opiniões, desejos e movimentos, sendo as demais, e externas, aceitas para que assim se pudesse viver conforme a natureza. Alguns historiadores, como Reinholdo Aloysio Ullmann (1996, p.122), destacam que o estoicismo sofreu influências do cristianismo tão crescente nesta época. Porém, mesmo que ambos fossem estudados e ensinados neste período, não podemos falar que se relacionavam dessa maneira, já que, a exemplo do próprio Marco Aurélio, os cristãos eram duramente perseguidos e representavam “um simples espírito de oposição” (MARCO AURÉLIO. Pensamentos, XI, 3). De acordo com Puente Ojea (1974), este “último estoicismo” ocorre em um período de instauração do Principado, no qual houve “a precariedade da existência e a crise da responsabilidade moral” (PUENTE OJEA, 1974, p.44). Por este motivo, surgiu a noção de que o mundo inteiro estaria sendo governado “por um poder inconstante e 56 cruel, pela Tyche” (PUENTE OJEA, 1974, p.45). A vida passa a ser regida pela Fortuna (conhecida também como a razão cósmica): A vida de cada um de nós está dirigida pela cega deusa. Contra este sentimento de incongruência ética, insuportável à larga, o estoicismo vai oferecer precisamente, uma interpretação original da vida, segunda a qual o irracional é somente aparência, pois o cosmo é regido pela razão (PUENTE OJEA, 1974. p.45). Ainda de acordo com esse autor, o estoicismo imperial se formava em um mundo duplo: [...] o sistema político imperial – civitas humana articulada em classes dominantes e classes exploradas, sujeitas ambas à via da ordem jurídica – e a ordem cósmica racional – civitas divina ancorada na atividade da consciência individual como lócus privilegiado da razão (PUENTE OJEA, 1974, p.237). Dessa maneira, percebemos que as nuances na filosofia estóica foram ocorrendo de acordo com o contexto em que era utilizada. Manílio, como mais um apropriador desta doutrina, também soube se utilizar, da melhor maneira que encontrou, de tais ensinamentos, realizando a explanação por ele tão quista do universo e de seus segredos. A partir disto, devemos entender as três divisões apresentadas que, unidas, formam a filosofia estóica (física, ética e lógica), identificando, através da explicação de cada, como Manílio se utilizou destas. 2.2. As partes de um todo: física, lógica e ética estóica Alexander Jones, em seu trabalho, nos dá uma possível explicação do porquê a astrologia seria tão valorizada pelos filósofos estóicos. O autor aponta que: No Estoicismo, assim como no epicurismo, um entendimento da localização física da humanidade no universo era parte integrante de um sistema de pensamento que sustentava os compromissos éticos da seita (JONES, 2006, p.363). Jones continua sua explanação a respeito disto, mostrando que “é um lugar comum a enorme afinidade dos estóicos com a astrologia” (JONES, 2006, p.373). Peter Marshall nos apresenta o fato de que foi após as campanhas de Alexandre, o Grande, que a astrologia recebeu maior influência estóica. Assim como ele nos mostra: 57 Os estóicos, que estavam entre os maiores lógicos e físicos do seu tempo, integraram totalmente a astrologia em seu sistema. Mantiveram a tradição platônica de um sistema de mundo esférico, com a Terra no centro do universo e os corpos celestes movendo-se em torno dela em movimentos circulares. Reafirmaram também a crença de Platão de que os céus revelavam a presença divina e que os deuses habitavam os planetas (MARSHALL, 2006, p.281). Sendo assim, entender as partes de tal filosofia se faz importante a fim de entendermos como esta era utilizada na elaboração de uma concepção e organização astrológica. Especificamos, neste caso, o trabalho feito por Manílio que uniu estes dois saberes com um propósito de ensinar a “verdade” sobre o universo. A forte discordância que Manílio faz em relação à teoria epicurista de formação do universo é, para nós, um indício da predileção maniliana pela filosofia estóica. O Epicurismo foi uma escola filosófica fundada por Epicuro por volta de 306 a.C., e seu propósito principal não era o de se opor ao Estoicismo, mas sim explicar a formação de todas as coisas pelas porções mínimas, não visíveis aos olhos humanos: os átomos. Assim como aponta Reinholdo A. Ullmann: O Jardim (maneira pela qual a filosofia foi denominada por ser o local onde ocorriam as aulas) não era um lugar de ociosidade, mas de treinamento para os que iriam a outros lugares semear suas idéias epicuristas. Ali se formavam pregadores e forjavam missionários. Se a Academia e o Liceu se caracterizavam pela theouría, isto é, pela especulação, o Jardim visava à vida cotidiana, concreta e prática. O Jardim constituía o centro irradiador da propaganda epicuréia (ULLMANN, 1996, p. 15). Porém, mesmo que não propositadamente oposta ao Estoicismo, a física epicurista que apresentava a ideia de que tudo era formado pelos átomos debatia diretamente com a física estóica. Ullmann expõe: A física de Epicuro trata da teoria dos átomos e de suas implicações na constituição do universo, em geral; versa, também, sobre o homem, composto de corpo e alma, que, ambos, nada mais são do que átomos: ocupa-se, ainda, dos deuses, igualmente formados por átomos muito sutis (ULLMANN, 1996, p.53). 58 Sendo assim, a explicação epicurista da criação pelos átomos ordenados ao acaso não correspondia aos anseios manilianos de organização e harmonia universal, que encontrou nos preceitos estóicos ideias concordantes com sua explicação de mundo. 2.2.1. A Física Tomando o caminho contrário ao de Crisipo, que apresenta a física por último em sua explicação das partes do Estoicismo, iniciamos com tal, pois debate diretamente com a doutrina epicurista apresentada acima. Percebemos que se posicionar perante a vastidão do universo era de extrema necessidade para o filósofo estóico, já que este se comportava conforme a natureza. Esta, para os estóicos, surgiu do que entendiam como física (bem diferente do que entendemos em nossos dias). A física estóica se originou da palavra physis, do grego phuerin que significa crescer, “quem diz natureza, diz vida” (BRUN, 1986, p.47). Diógenes Laércio afirmou: [...] eles chamam natureza que ao que o mundo contém, quer ao que produz as coisas terrestres. A natureza é uma maneira de ser que se move por si mesma segundo razões seminais, produzindo e contendo as coisas que nascem dela nos tempos definidos e formando coisas semelhantes àquelas donde foi destacada (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 68). Dessa maneira, a natureza estóica é teorizada e apresentada como divina, comportando-se em uma eterna normatividade, pois possuía em sua elaboração uma prevista ordenação e força constitutiva dos seres. Tal sacralidade da natureza é abstrata, pois não apresenta a presença das divindades míticas, e ampara o homem, enquanto sua universalidade, já que o apresenta pelo uso do logos, fazendo-o parte do cosmo e, com isso, interligando-o a todos os outros seres. Sendo assim, a natureza humana, ou seja, o controle de seus impulsos e funcionamentos particulares se interligavam à natureza universal, fazendo de todos os homens seres logikós e, por isso, partes do todo cósmico que também é criador. Sendo assim, o homem é parte deste cosmo divino e, a partir disto, cabe a ele entender os mistérios do universo. A natureza já não se esconde em nenhuma parte; nós a conhecemos inteiramente, somos os senhores do céu, que conquistamos, observamos o nosso criador como parte que somos dele, e, filhos dos astros, dele nos aproximamos [...] Que há de admirar se os homens podem conhecer o céu, se neles próprios está o céu e cada um é uma 59 pequena cópia da imagem do deus? [...] Prole que rege todas as coisas, o homem é o único dotado da capacidade de examinar a matéria, do poder da fala e do entendimento, e é ainda instruído em diversas habilidades: ele se refugiou nas cidades, domou a terra para que ela desse frutos, domesticou animais e abriu a passagem no mar; firme e de cabeça erguida no alto da fortaleza, dirige para as estrelas, como um vencedor, os seus olhos semelhantes às estrelas, observa mais de perto o Olimpo e interroga Júpiter; não contente só com o dos deuses (dos astros), também perscruta o céu no seu âmago e, tomando em consideração um corpo que é da mesma espécie que o seu, procura a si mesmo nos astros [...] O céu mesmo chama as nossas atenções para as estrelas e, como ele não oculta os poderes que tem, não admite que eles passem despercebidos. Quem julgaria ser um crime conhecer aquilo que é permitido conhecer? Não desprezes as tuas forças como se elas estivessem presas numa alma pequena: o que há de poderoso em ti não tem medida. Assim como uma pouca quantidade de ouro supera em valor numerosos montes de bronze; assim como o diamante, um nada de pedra, é mais precioso que o ouro; assim também a pupila, pequenina que seja, vê todo o céu perfeitamente, e aquilo com que os olhos exercem a visão é muito pequeno, enquanto o que observam é muito grande; do mesmo modo, a alma, cuja sede está posta dentro do diminuto coração, governa, a partir desse estreito limite, toda a extensão do corpo. Não meças o tamanho da matéria, mas atenta, sim, para as forças que a razão, e não o peso do teu corpo tem: a razão tudo vence (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v. 883932). Percebemos, com isso, que o homem é parte do universo, mundo ou cosmo, divino, pois cabe a ele conhecer, através da razão, seus segredos. Marcelo V. Fernandes bem nos mostra que, a partir da explicação estóica, o homem “é filho dos astros, é parte da divindade que rege o universo. Nessa qualidade, ele sobreleva os demais seres e os domina” (FERNANDES, 2006, p.38). O cosmo seria, então, um “conjunto de seres ordenados em ato dinâmico, atualizado sempre” (GAZOLLA, 2008, p.105). A autora continua: Eles (os estóicos) asseveram o cosmos como ato/potência perene e de uma só vez – sem antes e depois, sem temporalidade, sem vazio entre corpóreos –, e firmam, assim, a “invariável variabilidade do ser”. O 60 cosmos é corpo perene em transformação sem deixar de ser ele mesmo, é ousía31 e é divino. [...] O logos cósmico é o Todo, a ordenação, a Prónoia32, a Heimarméne33, o Nómos34, Zeus. Ele é o próprio Pneuma35 que tudo dirige através de tudo em mistura. No homem, assim também é ele [...]. Desse modo, o divino cósmico na alma humana dá-se a conhecer com limites (GAZOLLA, 2008, p.105 e p. 121-122). O universo, dessa maneira, era entendido pelos estóicos como a divindade que arquitetou o mundo, como a própria ordem dos astros e como a mistura destes dois aspectos, ou seja, o universo era a criação ao mesmo tempo que era o criador. A natureza seria, a partir disto, o “fogo artista” ou um “sopro ígneo e artesão” (Cícero. Da natureza dos deuses, II, 22). Melhor dizendo, a natureza seria a força que se move por si própria, mantendo a razão e a coesão entre todas as coisas criadas. Ildefonse destaca as palavras de Plutarco: Visto que a natureza universal se estende a tudo, tudo que acontece no universo e em qualquer uma de suas partes deverá acontecer em conformidade com esta natureza e com sua razão, segundo uma sequência que não encontra obstáculo; visto que nada existe fora do universo para se opor a seu governo e em nenhuma de suas partes são possíveis um movimento ou estado que não sejam conformidade com esta natureza (PLUTARCO, Sobre as contradições dos estóicos, XXXIV, apud: ILDEFONSE, 2006, P.35). O mundo seria formado por dois princípios: o primeiro passivo, a matéria, substância que por si só não possuía nenhuma qualidade, ou seja, necessitava ser moldada; e o segundo ativo, a razão modeladora que agia na matéria. Assim sendo, o mundo foi formado pelos quatro elementos: fogo e ar (princípios ativos), água e terra (princípios passivos). Manílio apresenta tal concepção em sua obra: O fogo alado, se elevou às regiões mais altas e, abrangendo os mais elevados pontos do céu estrelado, formou uma defesa de chamas para proteção do universo. Em continuidade, o ar, que com seu sopro Pode ser traduzida por essência ou substância. Previsão. 33 Destino. 34 Na mitologia grega é conhecido como o daemon das leis, estatutos e normas ou como um dos aspectos de Zeus. 35 Respiração, espírito e/ou alma. 31 32 61 desceu em ventos brandos e espalhou pelo espaço vazio do mundo o ar que se concentrava no meio. O terceiro elemento aplanou as ondas e as vagas flutuantes, e espargiu o mar assim acalmando, quando ele provinha de todas as partes do oceano, de modo que a água se evolasse e expelisse brisas de vapor, e alimentasse o ar, que dela toma seus germes, e de tal modo que o sopro de tais brisas, avizinhando-se dos astros, pudesse alentar-lhes a chama. Por último, a terra assentou com o peso de sua esfera, e o lodo se juntou, misturando-se à areia instável à medida que a água aos poucos fugia para lugares mais altos; cada vez mais a umidade se apartou, indo formar a água pura, a superfície do mar se abaixou, elevando-se a terra, e então sua água correu e se dispôs junto aos vales profundos; montanhas emergiam da agitação do solo, e por entre as ondas surgiu a esfera da terra, cercada, todavia, pelo vasto oceano em todos os lados. Ela permaneceu estável porque o céu inteiro se afasta dela com a mesma distância, e, descendo por todos os lados, ela fez que não caíssem o seu meio e a sua extremidade (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 190-215). Fogo, deus e artesão são sinônimos na explicação estóica da formação do universo. Assim como aponta Cícero, o fogo artista não é o que destrói, mas o que “procede com método à geração das coisas” (CÍCERO. Da natureza dos deuses, II, 22). Sendo o mundo criado por um logos que compõe a sua criação e dela faz parte, todas as coisas se interligavam para os estóicos, ou seja, todos os seres, vivos ou não vivos, possuíam afinidade entre si. O mundo seria um continuum energético de corpos, já que “tudo, no mundo, se comunica: de próximo a próximo e de próximo a longínquo” (ILDEFONSE, 2006, p.39). Tudo seria animado por uma simpatia universal que compreende-se em uma teia de relações infinitas e, por isso, tudo existiria a partir de uma relação causal com base no destino: Uma das maiores audácias do pensamento estóico é a ruptura da relação causal: as causas são remetidas profundamente a uma unidade que lhes é própria e os efeitos entretêm na superfície os relacionamentos específicos de outro tipo. O destino é primeiramente a unidade ou a ligação das causas físicas entre si; os efeitos incorpóreos são evidentemente submetidos ao destino, na medida em que são efeitos dessas causas (DELEUZE, 1975, p.15). O destino desempenhou um papel importante na filosofia estóica. Com estes filósofos, o destino não era mais considerado apenas uma expressão exclusivamente 62 trágica ou uma força essencialmente extramundana. Este passou a ser uma realidade natural inscrita na estrutura do mundo, “testemunho de uma disposição imutável na ordem das coisas” (BRUN, 1986, p.56). O autor prossegue em sua explicação mostrando que “o destino aparece assim como um nexus causarum, um nó de causas” (BRUN, 1986, p.56), isto é, como “uma ordem e uma conexão que jamais poderão ser forçadas ou transgredidas” (PLUTARCO. Sobre as contradições dos estóicos, I, XXXVIII). O destino, dessa forma, seria a força que animava a simpatia universal, que fazia com que todas as coisas se mantivessem numa relação harmônica de mútua amizade. Sendo assim, cabia ao homem viver conforme a vontade da natureza divina ordenadora de todas as coisas e animada pela força do destino. A ação do homem, a partir desta conformidade, seria plena, enquanto a negação de tal acarretaria em uma vida distante do ideal estóico, ou seja, o homem se afastaria da imagem do sábio para se tornar mais um cego diante da vastidão do universo, tendo como papel ser dominado e desprezado. Mesmo que o destino estivesse traçado, cabia ao homem perceber e interpretar seus objetivos e seu lugar no espaço em que vivia, fazendo de si não apenas passivo à ordem astral, mas também parte da própria divindade. Tudo no mundo seria regido por essa força divina que mantém a regularidade de todas as coisas, fazendo do universo, a partir das leis do destino, inexorável. Durante o livro I, Manílio fez questão de narrar, em uma longa digressão, acerca da não alterável regularidade da natureza e dos movimentos celestes, o que para ele se manifestava como um sinal de que o universo era governado por uma força divina: Assim, para que melhor possas reconhecer as brilhantes constelações: elas não variam nem o pôr nem o retorno ao céu, mas cada uma, constante, eleva-se de acordo com o seu tempo específico e conserva ordenados os momentos do seu nascer e do seu ocaso. Nada, nessa máquina tamanha, é mais admirável do que sua regularidade e o fato de que tudo obedece a leis constantes. Em lugar nenhum uma perturbação lhe causa dano; nada, em parte alguma, é levado a vagar por um caminho mais extenso ou mais breve ou mudar a direção do seu curso. O que mais pode haver de aparência tão complicada e, no entanto, de movimentação tão regular? (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 584-599). Dessa forma, para os estóicos que acreditavam em seu universo divino, ordenado e simpático em relação a todas as coisas criadas, não era aceitável a crença epicurista de criação do mundo pelos átomos e ao acaso. No livro I, Manílio deixa bem claro que não 63 há razão em acreditar que o universo tenha sido criado como os epicuristas pregavam. As fortalezas do universo não poderiam ser explicadas a partir de um emaranhado caótico de pequenas partículas (átomos), já que era uma força reguladora e divina que regia o mundo: Quanto a mim, nenhuma razão me parece tão evidente quanto essa, para mostrar que o mundo se move segundo uma força divina e que ele próprio é o deus, e que não se formou por ordem do acaso, conforme quis que acreditássemos o primeiro que ergueu as fortalezas do universo a partir dos elementos mínimos e a eles reduziu-as [...]. Quem poderia acreditar em tamanha quantidade de obras a partir de tais elementos mínimos, sem o poder de uma divindade, e num mundo criado pela combinação cega entre eles [...]. Tudo o que nasce submete-se, por lei mortal, à mudança [...]. O céu, todavia, permanece incólume e conserva as suas partes todas; nem a longa sucessão do tempo o faz aumentar nem a velhice o diminui [...]. É o deus que não muda no tempo (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 475-500). A partir disto, cabia ao homem que buscava uma boa vida conviver, de forma harmônica, com a natureza, despertando em si a porção divina concedida pelo criador que também se mostrava como sua própria criação. O homem deveria buscar compreender o universo, os astros e toda a natureza à sua volta, pois só assim descobriria o propósito de viver que lhe foi concedido. 2.2.2. A Ética/Moral A vida conforme a natureza era de suma importância para o estóico que via nisso a única maneira do homem viver bem. Assim como já explicitado, o viver harmônico entre homem e natureza era apresentado como a maior virtude e felicidade com a qual o ser humano poderia almejar. Diógenes Laércio mostra que “e é nisso que consiste a virtude e a facilidade da vida feliz”, sendo necessário realizar um “acordo harmonioso do demônio que habita cada um com a vontade do governador do universo” (DIÓGENES LAÉRCIO. Vidas e doutrinas dos filósofos ilustres, VII, 87). Porém, temos que entender que esta busca não era compreendida em uma harmonização entre duas forças diferentes e externas uma à outra. O homem possuía em sua formação parte do divino que também formava esta natureza, ou seja, também era parte desta, mas 64 diferenciava-se pela utilização do logos. Nesta instância, a intervenção do homem passa a ser ativa, já que este agia guiado pela razão. A vivência conforme a razão era de extrema importância para o estóico, sendo esta primeira tendência, a divisão da moral36, apreciada e ensinada por estes filósofos. Manílio nos mostra o quão importante era para o homem viver conforme a natureza, sendo guiado pela razão que era a agente formadora de todas as coisas: De fato, antes deles (sacerdotes que foram os primeiros a interpretar o mundo) o homem rude, sem nenhum discernimento, voltado apenas para a aparência das coisas, carecia da razão e, admirado, ficava absorto numa luz nova no céu, ora aflito por imaginá-la sumir, ora alegre por vê-la nascer; pois nem Titã (o Sol) há de surgir tantas vezes, pondo para fugir as estrelas, nem a variada e incerta duração do dia e da noite, nem as sombras dessemelhantes, quando afastado ou quando mais próximo o Sol, conseguia ele entender a partir das causas. O engenho não inventara ainda as doutas artes, e a terra, sob cultivadores rudes, devastada, cessava de produzir; nesse tempo, o ouro se escondia nas montanhas desertas; o mar, não tirado de seu repouso, furtava à vista novos mundos; e não ousavam os homens confiar ao pélago as suas vidas ou aos ventos os seus votos; cada um julgava saber bastante [...] A sagacidade sempre interessada no conhecimento, a tudo venceu com seus esforços; e a razão não impôs nem fim nem limite aos objetos de seu interesse até que se elevou ao céu, compreendeu a natureza profundamente a partir das verdadeiras causas e percebeu tudo o que existe [...] arrebatou a Júpiter o seu raio e o seu poder de trovejar, e atribuiu o som aos ventos e às nuvens o relâmpago (MANÍLIO. Astronômicas, Livro I, v. 81-129). Manílio não cessa sua explicação a respeito da importância da razão para o homem que busca compreender o mundo a sua volta e, com isso, viver em harmonia com a natureza: Pois cantarei o deus senhor da natureza, de mente silenciosa, espalhado pelo céu, pela terra e o mar, a governar com igual lei a ingente máquina; e cantarei que o universo inteiro vive por um consenso recíproco e é guiado pelo movimento da razão, já que um só “As divisões da moral nos-são dadas por Diógenes Laércio. Os Estóicos distinguem na moral, parte da filosofia: um estudo da tendência, um estudo dos bens e dos males, um estudo da virtude, um estudo do soberano bem, um estudo do primeiro valor, um estudo das condutas convenientes, dos encorajamentos e das dissuasões” (BRUN, 1986, p.75). 36 65 espírito habita em todas as suas partes e irriga o mundo [...] (MANÍLIO. Astronômica, Livro II, v. 74-79). Sendo assim, a tendência estóica se misturava ao entendimento do soberano bem e à virtude no que explica, a partir da sabedoria, uma compreensão una das implicações dos acontecimentos: a vida que é a razão e que é o deus. Dessa maneira, o bem e a virtude são alcançados por aquele que vive em conformidade com o ser racional criador de tudo e, com isso, poderiam ser definidos como o “útil”. De acordo com Brun, o útil, para os estóicos, não era um valor técnico, “pois este não é o valor de que o homem é a medida; o útil é o que está conforme ao sentido da vida, ao sentido do destino, ao sentido da vontade do deus” (BRUN, 1986, p.77). O soberano bem não poderia ser separado da compreensão de virtude, pois, no pensamento estóico, não se pode ser primeiro virtuoso e só assim esperar o bem: ambos se cruzam imediatamente quanto à realização pelo homem. A virtude, assim como aponta o autor supracitado, “é a presença do bem numa pessoa, é uma perfeição em comum com o todo. Por isso a virtude é una e total” (BRUN, 1986, p.78), e não divisível em grau ou intensidade: ela é algo que existe no ser humano ou não. A excelência estóica não estaria, dessa forma, ligada à conclusão dos objetivos propostos em vida, mas sim no viver, ou seja, no caminho que o homem trilhava para alcançar seus resultados. Do que adiantaria para o homem acumular, desenfreadamente, bens e riquezas se isso não o conectaria ao supremo bem e nem faria dele um ser mais virtuoso? Manílio assim também se questionou e apresentou que a harmonia e conformidade com as “coisas da natureza” seriam a melhor maneira de atingir a plenitude: Por que consumimos com tanta ansiedade os anos de nossa vida e nos torturamos com o medo e com a cega cobiça? Envelhecidos por eternas preocupações, enquanto procuramos o tempo, nós o perdemos e, não pondo um fim a nossos desejos, sempre agimos como quem há de viver e não vivemos nunca. Cada um, apesar dos bens que tem, é ainda mais pobre, porque quer mais e não considera o que tem, somente aquilo que não tem deseja. Embora a natureza peça pouco para si, aumentamos com os nossos desejos a causa para uma grande ruína e com os nossos lucros adquirimos o luxo e por causa do luxo partimos para o roubo. Então a mais alta recompensa da riqueza é esbanjar a própria riqueza? Libertai, ó mortais, os vossos espíritos, aliviai-vos das preocupações e esvaziai a vida de tantas queixas supérfluas. O fado rege o mundo, tudo se mantém sob uma lei 66 constante e o tempo, na sua longa sucessão, está marcado por acontecimentos certos. Ao nascer, estamos destinados a morrer: nosso fim depende do nosso princípio. Desse momento decorrem as riquezas e os reinos, e ainda a pobreza, que mais vezes se origina, e as artes e os costumes dados aos que nasceram e também os seus vícios e os seus méritos, os seus prejuízos e os seus ganhos. Ninguém poderá carecer do que lhe foi dado nem ter o que lhe foi negado, ou constranger a fortuna por meio de rogos, ou escapar-lhe quando ela o acossa: cada um deve suportar a própria sorte (MANÍLIO. Astronômicas, Livro IV, v.1-22). A ética do Estoicismo se definia, portanto, “por uma inscrição dentro da ordem cósmica e natural, que é uma ordem racional”, ou seja, “a ética é racional, e o ideal do sábio é erradicar as paixões e alcançar a impassibilidade e a autarquia: ele deve bastarse mantendo-se mestre de si mesmo” (ILDEFONSE, 2006, p.142-143). O sábio comanda os seus próprios desejos; ele sabe que “de todas as coisas do mundo umas dependem de nós, outras não” (EPICTETO. Pensamentos, I, apud: BRUN, 1986, p. 86). Dessa maneira, cabia ao homem, que buscava ser este sábio, expurgar todas as paixões e desejos que são contrários ao convívio harmônico e conforme a natureza. O homem estóico não deveria se comportar como escravo das paixões, não deveria ter medo da dor, do desejo e nem dos prazeres, não se deixando contaminar por tais doenças da alma: Com o estoicismo encontramo-nos na presença de uma concepção quase intelectualista da paixão. Uma vez que a paixão é essencialmente desatino, loucura, podemos dizer que ela tem, antes de mais, por origem, o erro de julgamento, uma opinião falsa, uma adesão indevida a uma representação falsa. A paixão não é pois, mais a obra dos deuses mas a do homem (BRUN, 1986, p.83). A partir da ideia do sábio estóico ter a sua vida guiada pela razão, que era divina, e pela recusa aos prazeres e paixões, percebemos que a ética do Estoicismo mostrava que o homem seria, então, um cidadão universal, melhor dizendo, defendia a ideia de um cosmopolitismo. Todos seriam, a partir da simpatia universal com a qual todos os seres estavam ligados, não somente cidadãos de sua cidade natal, mas sim do mundo. Todos viveriam na República de Zeus, unidos e sob uma lei comum. Jean Pierre Vernant nos mostra como seria entendida tal elaboração: 67 Simetricamente organizado ao redor de um centro, os espaços políticos, uma vez de formar como nas monarquias orientais uma pirâmide dominada pelo rei e, de alto a baixo, com uma hierarquia de poderes, prerrogativas e funções, delineia-se segundo um esquema geometrizado de relações reversíveis, cuja ordem se baseia no equilíbrio e na reciprocidade de iguais (VERNANT, 1973, p. 169). Sendo assim, percebemos que os desejos provocavam maior ou menor grau de servidão no homem, “e é este o núcleo que os estóicos querem tocar, pois um homem submetido à escravidão de uma paixão não pode escolher, portanto está afastado da escolha para a ação moral por um subjugo, a priori” (GAZOLLA, 1999, p. 160). Porém, assim como continua Rachel Gazolla, “é preciso frisar, todavia, que não há uma insensibilidade aos acontecimentos, uma altivez estóica ou frieza diante dos males, como passou a significar o adjetivo estóico”, pois o que percebemos é a existência de uma “ausência de agitação violenta da alma, sinal da negação do tempo acumulador de desejos insaciáveis” (GAZOLLA, 1999, p.170). Pela vida em conformidade com a natureza divina, criadora do universo a partir da razão, os estóicos percebiam que o homem deveria viver sem pressa de alcançar o futuro ou preso ao passado. O tempo deveria ser vivido no presente e de forma sábia, já que tudo estava programado conforme a força do destino. Victor Goldschmidt, autor apresentado por Gazolla, apresentou tal ideia ao escrever: A perfeição não é solidária do tempo que escoa e que parece inflar e alongar-se [...] o próprio da paixão é sujeitar-nos ao tempo irreal, em que o passado sobrevive para comunicar sua “existência” e seu conteúdo ao futuro (GOLDSCHMIDT, 1953, p.202, apud: GAZOLLA, 1999, p.169). A autora nos explica a ideia apresentada por Goldschmidt: Esse belo comentário deste autor indica que, na saída do compasso universal, o insensato mergulha na temporalidade propriamente humana, perde-se no tempo agitador das paixões da alma, permanece servo da memória e da esperança, isto é, do passado e do futuro. Escravo das paixões, sua memória deseja o que não mais tem, do mesmo modo que lamenta o que ainda não obteve. Inalcançáveis ambos, passado e futuro, fica o presente dissolvido pelo peso das lembranças e esperanças (GAZOLLA, 1999, p.170). 68 Dessa forma, Manílio nos mostra que, assim como já exposto na citação do Livro IV (v. 1-22), cabia ao homem viver conforme as vontades do destino, do deus racional criador do todo, que “escondia” nas estrelas os seus segredos. Pois, qualquer que seja o gênero de coisas, quantos quer que sejam os sofrimentos, todos os trabalhos e ofícios, quaisquer que sejam os acontecimentos que podem preencher a vida humana em sua totalidade, a natureza os encerrou na sorte, e os dispôs em tantas partes quantos foram os signos que estabeleceu, e atribuiu a cada parte suas propriedades específicas e sua função particular, e numa ordem fixa distribuiu entre as estrelas toda a fortuna do homem, de modo que uma fração, sempre limítrofe com a mesma parte, permanecesse junto aos signos vizinhos (MANÍLIO. Astronômicas, Livro III, v. 80-90). Por tanto, o homem deveria respeitar as contingências estipuladas por este deus criador e próprio universo, possuindo, todavia, uma postura ativa e capaz de descobrir os segredos salvaguardados nas estrelas. 2.2.3. A Lógica Sobre a última divisão feita da filosofia estóica, temos que destacar que o processo de produção do conhecimento de mundo que tais filósofos empreendiam se baseava no empirismo. Porém, temos que salientar também que a empiria estóica possuía um alcance diferenciado quanto à sua concepção. Como já explicitado, para os estóicos o mundo era um ser vivo, como um deus, que regia tudo que foi criado a partir da razão, gerando, com isso, tensão e simpatia que, para o homem, se traduziam em uma convivência harmônica e de acordo com a natureza. Sendo assim, a empiria estóica não seria aquela a lidar com aspectos qualitativos, mas um empirismo de compenetração do homem e do mundo. [...] sentir é ter os sentidos e a alma modificados pelo que é exterior; esta modificação pode ser em harmonia com o que provoca, e neste caso estamos na verdade, ou pode estar em desacordo, e nesse caso estamos no erro e na paixão (BRUN, 1986, p.36). A empiria estóica se mostra diferente das demais, especificamente da aristotélica que, a partir de seu raciocínio, versa sobre o encadeamento de conceitos, como: se eu sou um homem e todos os homens são mortais, logo eu sou mortal (a = b e b = c, logo a = c). Já o raciocínio estóico versa sobre as implicações de relações temporais, ou seja, o 69 produto definidor da origem: se uma mulher tem leite é porque deu à luz. Dessa maneira, o tempo estóico se mostrava diferente, pois este, além da expressão da sabedoria divina, é expressão do dinamismo da vida universal e da sua harmonia. Com isso, o homem no tempo se torna único, não podendo ser imitado ou possuir um igual: “o que existe são dois indivíduos e jamais serão idênticos” (BRUN, 1986, p.37). Manílio escreveu sobre isso ao identificar que ainda os nascidos sob o mesmo signo não seriam iguais: Na terra, os que nascem são criados sob tal lei (dos dodecatemórias); por isso, conquanto nasçam sob o mesmo signo, apresentam costumes diferentes e vontades opostas; e frequentemente a natureza se desencaminha, para pior, e ao nascer de um menino segue o de uma menina: os dois nascimentos reúnem-se sob uma mesma estrela; o fato é que cada astro sofre variação por causa das divisões que tem, e muda, nas dodecatemórias, as suas influências específicas (MANÍLIO. Astronômicas, Livro II, v.845-855). Assim sendo, o empirismo estóico se baseava pela harmonia entre uma experiência exterior e uma experiência individual, ou seja, entre a harmonia da natureza do universo com a natureza do ser humano. Dessa forma, o estóico apreendia o mundo a partir da representação das coisas que observava e sentia. Tal representação teria um objeto por substrato, o representado, o que se diferenciava da imaginação, pois esta repousava sobre o nada. Assim como nos mostra Brun, através das palavras de Cícero, a representação seria “uma impressão que reproduz aquilo donde provem e não pode exprimir aquilo de que não provenha” (CÍCERO. Primeiros Acadêmicos, Lucullus, VI, apud: BRUN, 1986, p. 40). A representação seria, para o filósofo estóico, o primeiro elemento de interação entre indivíduos e o mundo. Tal interação implicava em uma relação entre dois seres vivos (o homem e o deus criador) e, por isso, a sabedoria buscada pelo estóico aludiria “igualmente em aquiescência à vida do mundo, ao desenrolar dos acontecimentos, fundada na razão. Tal tarefa é ação da dialética” (BRUN, 1986, p.43). A dialética seria, então, a sagacidade e/ou a capacidade de opor argumentos ao que não é senão verossímil a fim de não ceder. Tendo papel importante em toda elaboração filosófica estóica de explicação do mundo, a dialética explicava a lógica. Tal implicava, ao mesmo tempo, uma visão de mundo que a sustém: 70 [...] implica um nominalismo que afirma que só o indivíduo possui realidade enquanto os conceitos são apenas palavras; implica uma teoria da simpatia universal segundo a qual todos os indivíduos estão numa interação mútua; implica um teoria do destino, justificando as ligações temporais de causalidade (BRUN, 1986, p.45). A lógica estóica propunha ao filósofo um papel de professor, pois educar os demais quanto à vida conforme a natureza era importante (Manílio empreendeu tal tarefa em sua obra). Por isso, a dialética desempenhou uma enorme função dentro da escola e na formação e continuação dos ensinamentos. Se há um meio para educar os homens, este se efetiva pelo exercício do logos em sua expressão argumentativa, isto é, na arte da dialética e na da retórica, ambas pertinentes a lógica. Nessas duas artes, os estóicos são mestres, e Crisipo, em particular, foi consagrado como o grande dialético pós-platônico. Não é sem razão, portanto, que o peso dado à causa eficiente sobrepõe a causa final. Não se trata, para o estóico, de trabalhar a fim de obter algo posteriormente, mas simplesmente de trabalhar, exercitando o logos segundo os princípios doutrinários (GAZOLLA, 1999, p.92). Ao discutirmos sobre a obra maniliana no primeiro capítulo, apresentando sobre o autor, sua obra, o tema que aborda e suas possíveis intenções, e unindo isso com a explicação e ligação deste com a filosofia estóica – assunto abordado no decorrer de todo o capítulo II, aqui apresentado –, propomo-nos, a partir disto, a realizar uma análise mais ampla, além da própria obra, unindo o autor a seu contexto. Na verdade, o objetivo primário que impulsionou a produção deste trabalho é o de entender como a obra em questão colabora com o entendimento do período do início do Principado, especificamente a respeito do Principado de Otávio Augusto. O que salientamos aqui, a partir de uma abordagem mais teórica, é que Manílio como um homem de seu tempo, escreveu sobre a sua própria vivência. Ou seja, o autor escreveu a partir de suas experiências, de seu lugar comum, sobre um tema que lhe interessava, sendo neste caso a astrologia. A obra, dessa forma, é utilizada como uma possível aproximação do período que desejamos compreender. Possível, pois não pensamos que um documento, por maior valor que tenha (valor atribuído pelos historiadores), possa expressar o contexto de sua produção de uma maneira completa. Este apenas apresenta o que para o autor era, conscientemente ou não, importante. 71 Para tal intento, o de apresentar o contexto maniliano, percebemos através da obra como o romano, especificamente Manílio, perpetuava certos ensinamentos e exemplos a partir da eternidade das estrelas, rememorando feitos e homens do passado. Assim como pontua Jaques Le Goff: A história, enquanto produtora de memórias, ou seja, enquanto engendradora de atos de poder, de zonas de conflito e de exempla, não está, assim, tão longe da retórica das técnicas de persuasão, e por isso, freqüentemente, os autores recorrem à formação de discursos em sua prosa (LE GOFF, 1994, apud: GONÇALVES, 2010, p.103). Para nós, a memória seria produtora de exempla, pois Manílio se propõe a eleger modelos exemplares para a ordenação e manutenção da tradição no que diz respeito principalmente à postura do bom líder. Percebemos tal ideia na explanação feita pelo autor da Via Láctea como lar dos grandes homens que morreram. Entre estes se encontrava Heitor, herói de Tróia que era ligado à dinastia Júlia de Augusto37. A partir disto, compreendemos que Manílio elege grandes heróis e feitos, originários da memória e da tradição romana, para legitimar o governo vigente. Desta forma, “o ato da memória é um ato de poder e o campo da memória é um campo de conflitos” (GUARINELLO, 1994, apud: GONÇALVES, 2010, p.103), sendo que esta é construída e negada a partir dos interesses de quem a utiliza – no caso de Manílio, a memória (conjunto de exempla) se baseia na confirmação e legitimação do Principado de Augusto, perpetuando também este modelo a seus sucessores. A partir disto, percebemos que Manílio empreendeu em seu poema um esforço de explicar seu contexto a partir da eleição de exemplos capazes de aludirem a um modelo ideal da organização e manutenção da ordem e paz romana. E é este o ponto central da análise realizada no capítulo seguinte. Como já explicitado, em sua busca de escrever um poema capaz de abordar conceitos e elaborações astrológicas na tentativa de ensiná-las ao seus leitores/alunos, ao mesmo tempo em que se utilizava da filosofia estóica como base para sua produção escrita, Manílio tentou exprimir tal conhecimento seguindo uma forma específica a partir de uma beleza almejada. Dentro deste objetivo duplo, o autor da obra Astronômicas apresenta o contexto em que viveu, remetendo-se a eventos já ocorridos durante o processo de sua escrita. Por isso, no terceiro capítulo nos centramos em entender o final das constantes Guerras Civis que assolavam Roma, especificamente durante o segundo triunvirato, e o início do Principado com Otávio 37 “... e a raça Júlia, descendente de Vênus” (MANÍLIO. Astrologia, Livro I). 72 Augusto. Outros personagens são destacados, como Marco Antônio, a fim de melhor entendermos o momento histórico sobre o qual decidimos nos debruçar, buscando, dessa forma, compreender a visão manialiana a respeito de tais aspectos. 73 CAPÍTULO 3 A percepção astrológica de Manílio e a elaboração do seu tempo: Uma busca por estabilidade Como explicitado nos capítulos anteriores, ao desenvolver seu poema astrológico, Manílio apresenta ao seu leitor/aluno um pouco do momento em que vivia. Tal momento é compreendido pelo período denominado como o início do Principado romano, a partir de Otávio. Vale salientar mais uma vez que, mesmo que para nós historiadores tenha sido instituído um novo modelo político a partir de Augusto e da denominação de tal sucessão temporal como “Principado”, devemos perceber que o romano não foi sensível a tal mudança, pelo menos não o que viveu neste período analisado. Espelhando-nos na figura de Otávio, sabemos que este Princeps ao assumir as magistraturas e ter o reconhecimento do Senado não instituiu um novo modelo político, mas ao contrário: Quando Augusto ganhou supremo poder como princeps, ele colocou o sistema político romano em um caminho que não se desviou para a duração do império: enquanto a retórica de um retorno para a democracia da República aparecia nos textos da elite, os eventos históricos demonstravam que esta não era mais uma alternativa viável. (REVELL, 2009, p.80). Assim como apresenta Geoffrey Sumi, ao assumir seu posto, Otávio se declarou como o restaurador da Res Publica, além de receber grandes honrarias consolidando seu papel como Imperador. Ele se utilizava de valores republicanos para criar uma “nova forma” de governo: “Augusto adapta os requerimentos da tradição e dos valores da República romana para sua própria necessidade e autopreservação política e dinâmica [...]” (SUMI, 2005, p.221). Tal pensamento foi mantido, pois o “estabelecimento da República constituiu para o romano a garantia da liberdade do cidadão, ou melhor, de uma cidade livre” (TITO LÍVIO, I, 2, apud: MENDES, 1988, p.11). Entretanto, nossa análise não abordará apenas a duração do Principado de Otávio Augusto. Percebemos durante a leitura da obra maniliana a necessidade de estendermos nosso olhar a um período anterior dominado pelas constantes Guerras Civis. Apresentamos tal preocupação, pois observamos a insistência de Manílio em apresentar 74 o universo da forma mais ordenada e simétrica possível, ou seja, percebemos que o autor d’Astronômicas tenta transformar a sua realidade a fim de garantir seu próprio ponto de vista, que seria a ordenação de tudo pelo deus que é o próprio universo, e a supremacia de Otávio como um líder digno de comandar todo o mundo. Para realizarmos nosso objetivo, destacamos dois personagens principais a fim de melhor entendermos os conflitos existentes durante o primeiro e o segundo Triunviratos: o próprio Otávio e Marco Antônio – seu companheiro triúnviro. 3.1. Desestabilidade no final da República: as Guerras Civis Temos que entender, primeiramente, o que aconteceu antes do enfrentamento entre estes dois líderes romanos, pois o contexto em que ambos nasceram é conhecido por grandes perturbações na ordem política que ocasionaram – e foram ocasionadas por – Guerras Civis. O momento era de aliança entre outros três homens, de igual importância para a Res Publica, no intuito de estabilizar a desordem na qual os romanos se encontravam. Foram estes: Pompeu, Crasso e Júlio César. O objetivo de restaurar a paz logo foi suprimido pelas vontades e desejos pessoais de cada um. Pompeu e Júlio César desempenharam, neste momento, um confronto no qual cada um lutava pelos seus interesses ao defender que seriam melhores líderes para uma Roma abalada e instável devido às dificuldades ocorridas da necessidade de governar e manter o domínio sobre o território conquistado nas margens do mar Mediterrâneo. Pompeu, grande líder militar e reconhecidamente um homem político de muita importância, ligado ao grupo dos optimates38, defendia uma manutenção dos órgãos políticos e das leis que já existiam, pois acreditava que os conflitos ocorriam devido às mudanças que os romanos tentavam engendrar em seus costumes de vida. Para ele, deveriam ser impedidas as mudanças das instituições governamentais, a perda das tradições que regiam o mos maiorum, e a ascensão ao poder de “homens novos”, isto é, políticos oriundos de famílias fora dos círculos tradicionais (famílias não patrícias). Por outro lado, Júlio César ganhava cada vez mais respeito e admiração perante as camadas mais humildes da população. Sua política de restauração da Res Publica baseava-se em expandir o território romano e, com isso, trazer conquistas e glória Grupo mais conservador do Senado que defendia a conservação da República a partir da legitimação do Senado como autoridade máxima. Sendo assim, todas as políticas empreendidas por este grupo visavam impedir as mudanças das instituições governamentais e da tradição que regia o mos maiorum. 38 75 militar. Sua grande conquista territorial foi a anexação da Gália e, ao atravessar o rio Reno, restabeleceu as fronteiras, impedindo o avanço dos germanos39. Mesmo assim, sua impopularidade entre os seus pares crescia. A tensão entre ele e alguns componentes do Senado, mais conservadores, dava a Pompeu certa vantagem. Após a morte de Crasso em 53 a.C., durante a desastrosa campanha na Pártia, e a de Júlia – filha de Júlio César e esposa de Pompeu –, nada mais unia os dois triúnviros. A travessia do Rubicão empreendida por César em 49 a.C., a contragosto do Senado, foi o estopim de todo o conflito, sendo a sorte lançada40 para ambos. O confronto direto começou em 49 a.C.. O Senado, liderado por Catão41, ordenou o regresso de César no intuito de lhe tirar todas as honrarias e magistraturas. Em desobediência, César atravessou o Rubicão, ao norte da Península Itálica, expandindo os limites territoriais romanos. Os optimates convenceram Pompeu da afronta que tal atitude de César foi à Res publica e, a partir de então aliados, marcharam contra o inimigo. Depois de alguns confrontos42, César termina vitorioso retornando a Roma e adquirindo o cargo de Ditador43, estabelecendo, importante salientar, uma aliança com Marco Antônio. 3.1.1. Um “novo” conflito: Marco Antônio Depois de algumas medidas aceitas pelo Senado, mas que feriam a tradição política romana, como a ditadura vitalícia, César foi assassinado antes de uma reunião do Senado, nos Idos de Março, em 44 a.C. Alguns senadores, liderados por Marco Júnio Bruto e Caio Longino Cássio – protegidos do próprio César –, se uniram e o assassinaram. Dessa maneira, mais conflitos surgiram, fazendo de Roma um palco de lutas entre generais com poderes bélicos e políticos equivalentes. Assim como apresenta Norma Musco Mendes: Ameaça aos romanos; provenientes do noroeste da Península Itálica. Referenciando-nos à célebre frase dita por César na ocasião: alea jacta est ("a sorte está lançada"). 41 Roma, 95 a.C. — Útica, 46 a.C.. Importante político romano conhecido por sua inflexibilidade quanto à manutenção da moral romana. Adepto da filosofia estóica e contrário a César. 42 A Batalha de Dirráquio em 10 de julho de 48 a.C.; Batalha de Farsalos, travada na Grécia, no dia 9 de agosto de 48 a.C. 43 Uma magistratura; o ditador era nomeado pelos cônsules do ano, autorizados para tal por um senatus consultum emitido pelo Senado romano em circunstâncias de crise militar e/ou econômica. O cargo era o único posto da hierarquia política da República que não obedecia aos princípios de colegialidade e responsabilidade. Tinha a durabilidade de seis meses, posteriormente sendo estendido até um ano. 39 40 76 Sua morte (a de César), sem deixar de lado as noções desenvolvidas pelos gregos sobre o tiranicídio, é entendida por nós como resultado da ação de um grupo de senadores que se sentia ultrajado em sua dignidade e em seus interesses pela ditadura vitalícia de César, pois sabemos que para um senador romano a República era uma forma de governo e um estilo de vida. (MENDES, 2006, p.24) Foi durante estes embates que nasceu Marco Antônio. Nascido em 83 a.C., Antônio se valia do sucesso familiar para manter e legitimar seu poder perante a camada aristocrática romana. Nas palavras de Adrian Goldsworthy: Desde o início, Antônio esteve cercado por uma alta expectativa de conquistas das gerações passadas. Roma era o mais forte Estado no mundo e era liderada por uma liderança aristocrática. Ser nascido em uma família senatorial fazia de uma criança importante, particularmente se essa família estiver no centro da vida pública […]. Antônio nunca duvidou que ter nascido de seus pais significasse que ele seria um dos mais valorosos homens de sua geração. Ele nasceu para a glória. (GOLDSWORTHY, 2010, p.93-94) Seu avô, também chamado Marco Antônio, foi reconhecidamente um bom líder romano (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, I). Grande orador, obteve importantes conquistas militares, sendo a campanha contra a pirataria na região da Sicília um marco em suas vitórias já que foi digna de receber o triunfo em Roma. Sendo assim, em 102 a.C., se tornou o Governador da província da Sicília e iniciou um processo de obtenção de diversas magistraturas: Cônsul em 99 a.C. e Censor em 97 a.C.. Já o pai de Antônio não teve tal reconhecimento. Pertencente ao Senado de Sula44, não foi um grande líder militar nem um bom orador. Sua campanha contra a pirataria em Creta, em 72 a.C., não foi bem sucedida e, para completar, não teve voz perante o Senado. Pela derrota em Creta, o pai de Antônio ficou conhecido como Creticus45, nome que o lembrava constantemente de seu infortúnio. Em uma de suas batalhas contra a pirataria acabou morto, deixando Marco Antônio e sua mãe, Júlia (advinda de uma família importante e prima de Júlio César), desamparados. Ditador opositor a Mário (mandante do assassinato do avô de Marco Antônio), o que gerou guerras civis. 45 “Os romanos chamaram-no, sarcasticamente, de Creticus – comandantes bem sucedidos recebiam com frequência um nome para comemorar a vitória sobre o povo que derrotaram ou do território que conquistaram” (GOLDSWORTHY, 2010, p.73), o que não foi bem o caso. 44 77 Aos onze anos Marco Antônio perdeu seu pai, porém, rapidamente ganhou um padrasto, Públio Cornélio L. Sura (Cônsul em 71 a.C.). A partir dessa nova aliança, Marco Antônio conseguiu apoio para continuar sua educação, tendo contato com a vida política: A vida pública romana era competitiva. Havia mais magistrados jovens que postos ocupados por mais velhos, e nota-se o quão difícil era manter um Consulado. Muitos senadores nunca ocuparam uma magistratura. Membros de pequenos grupos ligados às famílias bem estabelecidas providenciavam um desproporcional número de cônsules. Essas famílias tinham boa reputação e os votantes tendiam a preferir os nomes de quem eles reconheciam […]. (GOLDSWORTHY, 2010, p.36-37) Como podemos perceber, a vida pública romana era aberta, o que possibilitava o aprendizado dos adolescentes em formação. Antônio, assim como o pai biológico, não teve méritos por sua oratória. Contudo, compensava essa falha com um rigoroso treinamento físico, associando sua família a Hércules como um ancestral46: Agradava-lhe (a Marco Antônio) que o comparassem com Hércules: “a barba bem formada, o peitoral amplo e o nariz curvo lhe outorgavam um aspecto forte, viril, tal como a gente conhece pelas pinturas de Hércules, cujo as imagens se assemelhavam”. (ZANKER, 2005, p.67-68)47. Sua maneira de se apresentar já demonstrava uma exposição de seus atributos físicos: Antônio tinha sua própria maneira de se destacar. Ao ir crescendo, ele cultivou uma fina barba e ao invés de deixar sua túnica abaixo dos joelhos, a vestia acima para mostrar suas pernas musculosas. Encorajado por uma história de que era descendente de Hércules, às vezes Antônio usava uma pele de animal cobrindo o corpo e uma espada […] (GOLDSWORTHY, 2010, p.98-99). A juventude de Antônio foi um momento conturbado e do qual não temos muitas informações. Sabemos de sua amizade com Caio Scribonius Cúrio, que o introduziu em uma vida desregrada com bebidas, mulheres e excessos: 46 Disto já se falava desde a Antiguidade, isto é, que a família dos Antônios descendia de um Anton, filho de Hércules, do qual ele conservava o porte e o nome; esta opinião Marco Antônio procurava confirmar não somente pela figura e pela forma natural do seu corpo, mas também pela maneira de se adereçar e de se vestir (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, V). 47 O autor se apoia nos escritos de Plutarco, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas. 78 Tornando-se Antônio um belo rapaz, na flor da idade, travou relações com Cúrio; ao que se diz esta amizade e conhecimento foi uma calamidade, pois era ele um homem perdido e viciado em tudo o que há de mais torpe, e para ter Antônio ao seu dispor, levou-o a fazer grandes despesas com mulheres, dando banquetes e festas, de modo que em pouco tempo ele ficou endividado; tão grande era a quantia que dificilmente ele poderia pagá-la, demasiado grande para sua idade, isto é, duzentos e cinqüenta talentos; o mesmo Cúrio era o causador dessa dívida, e por isso seu pai, vindo a sabê-lo, afastou Antônio de junto dele e proibiu-lhe entrar em sua casa. Foi então ele buscar a companhia de Clódio, o mais temerário e o pior dos homens que então se davam ao governo das coisas públicas e por algum tempo participou da sua temeridade, que punha em grande sobressalto toda a cidade de Roma; mas afastou-se dele bem depressa, pois cansou-se e aborreceu-se com o seu furor e também porque começou a temer o poder dos que estavam contra ele (PLUTARCO, Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, II). Tal proximidade foi nociva, permitindo Cícero afirmar que eles mantinham um relacionamento afetivo, assim como nos apresenta Plutarco (GOLDSWORTHY, 2010, p.101). Por ter grandes dívidas em Roma, feitas pelo estilo de vida extravagante que seus amigos o ensinaram a ter, Antônio partiu para a Grécia dando continuidade à sua educação. Durante este tempo, entre os 20 e os 26 anos, Antônio se acostumou com o estilo de vida oriental: Partiu então da Itália e foi à Grécia, onde passou o tempo em exercícios militares e no estudo da eloqüência. Usava da maneira de falar que se denomina asiática, a qual florescia e estava em grande voga naquele tempo, e tinha também grande conformidade com seus costumes, e sua maneira de viver que era vaidosa, cheia de fanfarronice e de ambição desigual e pouco comunicativa (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, III). Aos 26 anos de idade, Antônio ainda não tinha tomado posse de nenhum cargo político e não havia participado de nenhum embate militar. Isto era incomum, pois os jovens iniciavam suas carreiras cedo a fim de estabelecer sua posição perante os demais. Acostumado com a vida que levava em solo grego, Antônio foi ter sua primeira experiência militar apenas em 57 a.C. Gabínio, Cônsul, que marchava em direção à Síria e depois foi ao Egito a pedido de Ptolomeu, convidou-o a se juntar a ele nesta 79 jornada. Antônio, acreditando que havia nascido para a grandeza (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, III), não aceitou ser apenas um soldado comum e, por isso, Gabínio lhe concedeu o comando da cavalaria. Plutarco mostra o papel de destaque que Antônio obteve durante estas excursões: Antônio então para lá foi mandado, com a cavalaria, e não somente conquistou essa passagem, mas também tomou Pelúsio, que é uma cidade grande e poderosa, com todos os soldados que lá se encontravam. E, fazendo isso, tornou ao mesmo tempo fácil e seguro o caminho para o resto do exército e a esperança da vitória. Os mesmos inimigos, na cidade, gozavam da sua gentileza e bondade e do desejo que tinha ele de se ver honrado; pois, Ptolomeu incontinente ao entrar na cidade, pensou em passar à espada muitos dos egípcios que lá se encontravam, pelo grande ódio que nutria contra seus habitantes, mas Antônio a isso se opôs e não permitiu que ele o fizesse. Em todas as outras batalhas e escaramuças, que foram muitas, Antônio praticou muitos atos de bravura, próprios de um genial comandante; como quando ele cercou e rodeou por trás os inimigos, deu a vitória aos que combatiam de frente e por isso recebeu o prêmio e o estipêndio de honra, que era devido à sua virtude. Também tornou-se conhecida de todos a humanidade e a honestidade que ele usou para com Arquelau, pois tendo sido seu familiar e hóspede, ele lhe fez guerra, por coação de seu general, mas, depois de sua morte, fez procurar seu corpo e o honrou com pomposos funerais e obséquios dignos de um rei. Por estas e outras razões, ele deixou de si mesmo uma gloriosa lembrança em Alexandria, e foi julgado como uma pessoa muito gentil pelos romanos que estiveram nessa viagem. Tinha além disso uma dignidade liberal, apresentando todo seu aspecto exterior certa beleza de porte e de atitude, tinha a barba forte e espessa, a fronte larga, o nariz aquelíneo, e em seu rosto transparecia tal virilidade como a que se vê representada em medalhas e imagens pintadas e modeladas, como as de Hércules (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, IV-V). Mesmo tendo obtido sucesso durante estas campanhas militares e, com isso, enriquecido, Antônio não voltou a Roma. Em 52 a.C., ele se juntou ao exército de Júlio César e não ao de Crasso, sucessor de Gabínio. Não se sabe ao certo como tal 80 aproximação ocorreu, porém especulamos que ligações entre as famílias importantes eram comuns e, por isso, a aproximação de Antônio e César não seria algo inconcebível. Para manter Antônio por perto, César forneceu a ele uma assistência financeira, integrando-o ao Senado e garantindo-lhe cargos, como Tribuno da Plebe e, mais tarde, ingressando-o em colégios sacerdotais. Depois disso, Antônio retornou a Roma e, aos 30 anos, ocupou outros cargos, como o de Questor. Desta maneira, Antônio se encontrava presente na capital para presenciar o conflito entre Júlio César e Pompeu. Baseado em toda a assistência que obteve, era óbvia a escolha que Antônio faria: ficaria do lado de César e, com isso, enfrentaria a ira do Senado mais conservador. É importante salientarmos a aliança entre estes dois homens: César, um grande general em busca do apoio do Senado pela sua causa, poderia ter se aliado a qualquer um para defender seus propósitos. Ao invés disso, contribuiu para o desenvolvimento de Antônio, um homem cuja vida política e militar acabara de começar. Partindo do pressuposto de que César enfrentava um grande problema em Roma devido ao seu confronto com Pompeu e de que, por isso, deveria agir sabiamente até mesmo na escolha de seus aliados, podemos compreender que Marco Antônio possivelmente não seria o despreparado e desqualificado que as fontes insistem em nos mostrar. Algum valor ele tinha, mesmo que familiar, pois se assim não fosse não teria tido as oportunidades no exército de Gabínio e muito menos teria sido assistido por César. As constantes batalhas políticas travadas pelos opositores de César e parte do Senado impossibilitavam uma estabilização da Res Publica. Antônio passava, então, a enfrentar boa parte do Senado: Os amigos de César, então, fizeram outras propostas e pedidos, que pareciam razoáveis e úteis, aos quais, porém, Catão se opôs; e Lêntulo, um dos Cônsules, fez Antônio sair à força do Senado. Contra ele dirigiu então o mesmo Antônio graves palavras de protesto e de crítica: depois vestiu a roupa de um escravo e correu a toda pressa para César, com Quinto Cássio, tomando uma carruagem. Apenas lá chegaram, puseram-se a gritar em altas vozes que em Roma tudo estava convulsionado, pois não era mais permitido aos Tribunos do povo falar livremente, pois eram expulsos com grande perigo de suas vidas aqueles que ousavam defender o direito e a eqüidade. Por isso, César lançou-se imediatamente contra a Itália com seu exército; diz Cícero em suas Filípicas que assim como Helena foi causa da 81 guerra de Tróia, assim Antônio foi autor da guerra civil […] (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, VIII). Em um momento foi exigido que César se desfizesse de seu exército, porém Antônio e Cássio vetaram tal proposta, já que percebiam nela uma tentativa de enfraquecer César e, com isso, fortalecer Pompeu. A defesa que Antônio fazia a César era tão intensa que ele chegou a ser acusado pela agressividade contra Pompeu. Nos eventos já descritos, César tomou Roma de Pompeu e o expulsou da Península Itálica. Marco Antônio, com isso, se tornou um dos homens de confiança de Júlio César, juntamente com Lépido e Dolabela. Ocupando tal lugar de prestígio, Antônio não mudou seu comportamento, continuou a seguir o estilo flamboyant48 da vida oriental. Manteve uma relação conturbada com Fúlvia e, sem nenhuma discrição, desfilava pela cidade com suas amantes: “Esperava-se pelo menos um pouco de discrição, e isto era algo que Antônio mostrava não conhecer mesmo quando necessário” (GOLDSWORTHY, 2010, p.179). Não era nenhum segredo a desaprovação que Cícero fazia deste estilo de vida, o que irritou, e muito, Antônio. Enquanto ainda não havia ocupado nenhum cargo, Cícero acusava-o abertamente de lascivo e causador da Guerra Civil entre Pompeu e César. No momento em que Antônio começou a ocupar cargos de confiança, a partir de sua aliança com César, Cícero se viu ameaçado. Pediu exílio para fora da Itália, mas seu pedido não foi aceito e, além de tudo, foi acusado de corroborar com os interesses de Pompeu que, no caso, eram defendidos pelo seu filho Sexto Pompeu. Cícero relata a resposta de Antônio ao seu pedido de exilamento: Seus planos são corretos. Para qualquer um que se interesse em continuar neutro em tais disputas, nunca deveria deixar sua terra natal, enquanto o homem que parte mostra tomar partido de um lado ou de outro. No entanto, não cabe a mim determinar quando alguém tem o direito legal de partir. A missão que César me deu foi de não permitir que ninguém saia da Itália. Realmente, não importa o que eu ache dos seus planos, desde que eu não estou permitido de deixar que parta. Penso que deves escrever diretamente a César pedindo sua permissão. Tenho certeza que será bem sucedido, especialmente assegurando sua amizade a nós (CÍCERO, Cartas para Ático, X). 48 Árvore típica do Oriente Mediterrâneo, conhecida pela sua coloração e beleza. Devido a isto, é comparada a um estilo de vida dos que vivem apenas pelo prazer e se associam aos costumes orientais. 82 A derrota de Pompeu provocou no Senado um grande temor, pois a maioria apoiava o adversário de César. Nesta batalha, não é claro o papel que Antônio desempenhou, porém sua importância é destacada por Plutarco (Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, XI) que o mostra como comandante do flanco esquerdo – mesmo que não tenha desempenhado nenhum papel decisivo na batalha. Ao chegar a Roma, o Senado, que antes estava contra César não demorou em lhe prestar lealdade, dando-lhe o cargo de Ditador pela segunda vez e estendendo a magistratura para um ano, ao invés dos seis meses habituais. Mesmo tendo sucesso militar, Antônio foi chamado por César para desempenhar cargos políticos na Itália. Mais uma vez temos exemplificada a importância que Marco Antônio tinha perante sua relação com César. Como já explicitado, César sabia que para manter a estabilidade de seu governo deveria agir em harmonia com as vontades do Senado, pelo menos de sua maioria, buscando não desrespeitar a tradição. Ao confiar a Antônio cargos políticos, César fazia deste seu representante perante os demais. Foi-lhe concedido o cargo de Magister Equitum (Mestre Equestre), decisão que foi seguida por grande controvérsia, pois mesmo aos trinta e cinco anos, Antônio ainda era novo para ocupar tal cargo e, como agravante, não tinha ocupado magistraturas importantes, tendo sido apenas Questor e Tribuno. Este novo cargo dava a Antônio grande poder, o que também preocupava o Senado. César não se arriscaria por Antônio se este não tivesse mostrado o mínimo de habilidade necessária para se manter na vida política. Ao que tudo indica, Marco Antônio era para César um de seus aliados mais prezados e, com isso, digno de desempenhar diversas magistraturas. Dessa maneira, trabalhamos com a hipótese de um mascaramento das qualidades de Antônio pelas fontes a fim de satisfazer as necessidades de outro líder romano, também protegido de César: Otávio. Ou seja, uma manipulação das informações com o propósito de glorificar as ações do segundo e destacá-las pela comparação com as de um homem de igual reconhecimento. Mesmo ocupante de um dos cargos de maior prestígio em Roma, Antônio não se desvinculou da companhia de atores e amantes. Apareceu, em uma das Assembleias Populares, bêbado e recebeu a desaprovação dos outros componentes não sendo muito bem quisto por todos, pois, além disto, se projetava como merecedor de todas as glórias. Sobre suas bebedeiras, Veléio Patérculo destaca: “Lépido era o pior de todos os generais, Antônio era melhor que muitos quando estava sóbrio” (VELÉIO PATÉRCULO, História Romana, II). 83 Suas ações apenas pioravam aos olhos dos aristocratas! Além das companhias ruins, exigia que fosse constantemente escoltado por soldados, até mesmo para as reuniões no Senado – o que era considerado ultrajante. Seus atos de egoísmo foram também destacados, assim como nos mostra Goldsworthy: Antônio confiscou uma grande casa para morar nela, assim como outros espólios, e tendia a tomar decisões que o favorecessem ou favorecesse seus amigos, incluindo alguns dos atores e outros considerados sem reputação (GOLDSWORTHY, 2010, p.210-211). Durante as festas dos Lupercalia49, Antônio desempenhou papel decisivo para a desaprovação referente à sua pessoa. De acordo com Plutarco: Os romanos celebravam a festa e a solenidade a que chamam de Lupercália, e César, coberto com um manto triunfal, estava na tribuna, na qual se costumavam fazer os discursos ao povo, e de lá contemplava o movimento dos que corriam. Nesse dia, é costume que muitos jovens de famílias nobres e mesmo os que desempenham nesses anos os mais altos cargos da magistratura, corram nus, pela cidade, untados com azeite de oliva, e batam por brincadeira nos que encontram pelo caminho, com correias de couro branco que têm nas mãos. Antônio era um dos que devia correr. Deixou, porém, as antigas cerimônias e costumes daquela solenidade e sem mais correu para a tribuna onde César estava sentado, tendo nas mãos uma coroa de louros, em redor da qual estava presa uma faixa, a que chamam de diadema, e era antigamente o sinal dos reis. Chegou bem perto dele e se fez levantar por uns dos que com ele corriam e tentou por a coroa sobre a cabeça de César, querendo dizer que ele merecia ser rei. César fingindo não vê-lo voltou o rosto e com isso todo o povo se rejubilou e aplaudiu com muitas palmas. Antônio novamente tentou aproximá-la de sua cabeça e de novo César desviou-a, e assim estiveram alguns minutos em tentativas, um e outro; todas as vezes que Antônio tentava fazê-lo receber essa coroa de louros, um pequeno número de seus sequazes aplaudia, e todas as vezes que César a recusava, todo o povo unanimemente batia palmas. Era isto uma coisa realmente notável, que aqueles que tinham experimentado o que fazem os reis aos seus súditos detestavam e aborreciam o mesmo nome de rei como a 49 Comemorada no dia 15 de fevereiro, a festividade deveria garantir fertilidade e a purificação que Roma necessitava no fim do ano (março). 84 abolição e a destruição de sua liberdade. Pelo que César, perturbado, levantou-se e descobrindo seu pescoço apresentou-o, dizendo alto que lhe cortassem a cabeça se quisessem. Esta coroa foi depois colocada sobre a cabeça de uma das estátuas de César, mas alguns tribunos do povo a arrancaram, e por isso o povo muito os louvou, e os acompanhou com grande séquito até suas casas, para lhes prestar uma homenagem, batendo, ao mesmo tempo, muitas palmas. César, porém, os destituiu do seu cargo (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, XVI). Tais atitudes mostravam o quão impulsivo era Antônio, qualidade não valorizada pelo Senado. César não queria ser reconhecido rei, e assim fez entender ao rejeitar a coroa que Antônio insistia em lhe dar. Entretanto, Antônio mostrou com essa brincadeira a valorização que prestava aos costumes orientais, desprezando os valores tradicionais ligados ao mos maiorum e à Res Publica. Antônio, não satisfeito com o papel que vinha desempenhando, se voltou contra alguns interesses de seus próprios partidários. Impediu a eleição de Dolabela como Cônsul e nada falou para César sobre a conspiração de Cássio e Bruto. A conspiração aconteceu, César morreu e Antônio se viu sem apoio: Antônio foi Cônsul, mas ele também era de uma família importante, algo que ele repetiu diversas vezes em seus discursos. Ele esperava ser um dos líderes de Roma e ganhar magistraturas e honras. Porém, ele ainda precisava de dinheiro, pois o que tinha ganhado com a Guerra Civil havia acabado, e seu estilo de vida necessitava de um gasto dispendioso (GOLDSWORTHY, 2010, p. 220). Primeiramente, tentou uma aliança com Cássio e Bruto, concedendo-lhes comandos de províncias e outras benesses. Entretanto, ao perceber que a opinião do povo era contrária aos assassinos, colocou-se prontamente em lugar de oposição. A única saída que percebeu ter foi a de se proclamar vingador da morte de César. Assumir tal postura como aquele que vingaria os atos acometidos a outro não era algo incomum em Roma. Na verdade, o ato era legalizado e permitido a partir de algumas instâncias, como furto, mutilação de membros, entre outros crimes. Geralmente, os parentes ou pessoas próximas da vítima eram os que se posicionavam com o direito, e dever, de vingar a fatalidade ocorrida. No nosso caso, Antônio se colocou como vingador de César assumindo que seu assassinato foi um atentado não somente particular, mas também uma ferida à tradição e à paz da Res Publica. Sendo assim, por direito, Antônio 85 (e posteriormente Otávio) se declarou como aquele que faria justiça ao então assassinado César, tendo a permissão do Senado para fazê-lo50. Durante a caminhada fúnebre feita ao assassinado, Antônio manifestou o quanto César tinha sido honrado em vida: Mas a opinião que ele concebeu de si mesmo, depois de ter ouvido a voz do povo e sondado a sua vontade, com a esperança que prometia a si mesmo de que ele seria com certeza o primeiro homem do mundo, quando tivesse vencido a Bruto, afastou-lhe logo da mente estes primeiros discursos. No dia em que se levava o corpo para a sepultura, ele fez um elogio fúnebre em plena praça, exaltando a César, como era costume antigamente louvar os grandes personagens por ocasião de seus funerais. Vendo que o povo sentia com isso muita satisfação, e se exaltava, ouvindo falar de César e engrandecer os seus feitos, ele entremeou na sua oração palavras de comiseração e tocou em coisas que movem o coração à piedade e à compaixão, aumentando e exagerando os fatos. Quando chegou ao término do discurso, ele distendeu à vista do povo as vestes do falecido, ainda ensangüentadas e rasgadas pelos golpes de espada que ele tinha recebido, chamando àqueles que haviam praticado o crime de assassinos, de homens malditos e condenados. De tal modo então o povo se enfureceu, que tomaram o corpo de César e o queimaram na praça com os bancos e as mesas dos cambistas, que reuniram de todos os lados. Depois tomaram tições, quando o fogo estava alto e correram às casas dos que o haviam matado, para incendiá-las e obrigá-los a lutar. Por isso, Bruto e seus cúmplices, para garantir as suas vidas, foram obrigados a sair da cidade. Então os amigos de César foram ter com Antônio e sua mulher, confiando nele, fê-lo ir à sua casa e pôs em suas mãos grande parte do seu dinheiro, que podia elevar-se a quatro mil talentos, e tomou ainda todos os papéis de César, entre os quais estavam os registros e as memórias de tudo o que ele havia feito e determinado (PLUTARCO, Vidas Paralelas, XVIII). Cássio e Bruto rapidamente fugiram de Roma em direção ao Oriente. Antônio se colocou, então, como poder máximo na capital, proclamando que suas ações apenas condiziam com as intenções de César. Leu seu testamento perante o Senado e se 50 Sobre o assunto: CANTARELLA, Eva. Los Suplicios Capitales em Grecia y Roma. Madrid: Akal, 1996, p.287-311. 86 posicionou como cumpridor de tais diretrizes, ao mesmo tempo em que se tornara seu vingador. 3.1.2. Um “novo” conflito: Otávio Augusto Neste tempo conturbado, outra figura surgiu com maior força: Otávio. Filho da sobrinha de Júlio César, Otaviano foi adotado e educado pessoalmente por ele. Tratado como um filho, o favoritismo que César despendia a seu protegido não era segredo. Diferente de Marco Antônio que iniciou suas atividades políticas depois dos vinte e cinco anos de idade (uma idade considerada avançada para se iniciar neste meio), Otávio já acompanhava César em suas reuniões e obteve seu primeiro cargo aos dezenove anos51. Vinte anos mais novo que Antônio, Otávio ganhava a confiança de boa parte do Senado e o apoio de homens como Cícero, um grande opositor de Marco. Após a morte de Júlio César, e a contragosto do seu padrasto Filipo, Otávio assumiu o nome de César, pois percebeu o quão legitimador isso seria para sua ascensão política. Assim como Antônio, também se proclamou um vingador da morte de seu pai e, apenas com 19 anos, já representava um desafio a seu rival, mesmo que não diretamente. A imagem que os documentos nos trazem de Otávio é oposta à de Antônio. Nascido para o sucesso, como mostra Suetônio, Otávio se destacou desde muito novo. Pelos laços familiares sanguíneos e por sua adoção, este homem é apresentado como um exemplo de líder, tendo sido seu nascimento alertado por bons presságios e sonhos, assim como destaca Suetônio: Augusto nasceu no décimo mês e passou, consequentemente, por filho de Apolo. Antes de dar à luz, Ácia sonhou que suas entranhas subiam para os astros e se desprendiam por toda a extensão da terra e do céu. O pai de Augusto, Otávio, também sonhou que o esplendor do sol saía do seio de Ácia. No dia em que ele nasceu, estava sendo discutida na Cúria a conspiração de Catilina, e uma vez que Otávio, em virtude do parto de sua mulher, tivesse chegado muito tarde, é fato notoriamente público que Públio Nigídio, quando soube da causa deste atraso, declarou que havia nascido um senhor para o Universo. Otávio, mais tarde, quando conduzia seu exército através das regiões longínquas da 51 Entrou para o colégio sacerdotal e teve o cargo de áugure. 87 Trácia, consultou a respeito do seu filho, cumprindo no bosque sagrado do deus os ritos bárbaros. Recebeu dos sacerdotes a mesma resposta: assim que o vinho fora espalhado no altar dele jorrou uma chama tão grande que ultrapassou a cumeeira do templo, projetandose no céu. Pois, semelhante prodígio não acontecera senão para Alexandre Magno, ao sacrificar-se nos mesmos altares. Na noite seguinte, acreditou ver seu filho de um tamanho sobre-humano, armado do raio e do cetro, revestido dos despojos de Júpiter Altíssimo e Boníssimo, como também coroado de esplendores em um carro que se apresentava ornado de loureiros, puxado por doze cavalos de uma imaculada brancura (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A vida dos dozes Césares, parte XCIV). Dessa maneira, sendo digno de honra, Otávio desempenhou um papel decisivo na História Romana, pois iniciou, de acordo com os historiadores atuais, o período do Principado. Suetônio não se limita a descrever os bons presságios a respeito do nascimento de Otávio: Quinto Catulo, depois de haver consagrado o Capitólio, teve visões durante duas noites consecutivas: na primeira, assistiu a Júpiter Altíssimo e Boníssimo separar um dos numerosos meninos, de toga pretexta, que brincava em torno do altar e colocar-lhe no seio o estandarte da República, que ele empunhava. Na segunda, percebeu o mesmo menino nos joelhos de Júpiter Capitolino. Uma vez que havia ordenado o seu afastamento, foi nisso impedido por um aviso do deus, dizendo-lhe que o educasse para a proteção da República. No dia seguinte, quando encontrou Augusto, que ele jamais vira em parte alguma, contemplou-o, mas não sem surpresa, pois, segundo afirmou, era dotado de uma perfeita semelhança com o menino com o qual havia sonhado (SUETÔNIO. A Vida de Otávio César Augusto, A vida dos doze Césares, parte XCIV). Otávio seria, então, aquele que desempenharia um papel decisivo na continuidade da Res Publica romana, mesmo que tendo definido um novo momento histórico. Seriam as estrelas, expressões do deus criador, o próprio universo, as confirmadoras de tal importância e, por isso, a astrologia seria um meio de propagar tal ideia. Através de um manual do saber astrológico, Manílio discorre sobre diversos temas a respeito da organização universal (posicionamento das estrelas, planetas, 88 origem do universo, etc.), entretanto sempre salientando a ligação entre todas as coisas a partir da noção estóica de harmonia universal. Esta ocorre devido à inexorabilidade do universo, ou seja, a sua imutabilidade, fazendo com que este se comporte como uma máquina, determinando as porções do bom e do ruim e mantendo o equilíbrio entre todas as coisas. É neste universo que Manílio apresenta Otávio como o líder romano por excelência: Para eles (povos estrangeiros) o céu não é menor nem pior em luz, nem menos numerosas nascem as constelações em seu orbe. Também não são inferiores quanto ao resto: são dominados por um único astro, Augusto, estrela que por sorte coube ao nosso orbe, o maior legislador agora na terra, depois no céu (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 473-478). Otávio é um governante tão bom que permite a Manílio narrar sobre esta difícil matéria que seria o universo: A mim, ó César, da pátria primeiro homem e pai, tu que reges o mundo submisso às tuas augustas leis e que mereces, tu próprio como um deus, o céu concedido antes a teu pai, e me inspiras e fortaleces para cantar tamanhas coisas (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 812). Dessa maneira, esta foi a imagem daquele que era digno de governar Roma e restabelecê-la após as derradeiras Guerras Civis. Otávio, nesta obra, foi reconhecido como o mais qualificado para governar, sendo seu signo, Capricórnio, apenas mais um indício de confirmação: Capricórnio, ao contrário, dirige seu olhar para si mesmo (qual outro, em efeito, poderia admirar mais importante, se foi ele quem brilhou com tão bom presságio no nascimento de Augusto) (MANÍLIO, Astronômicas, Livro II, v. 507-509). A partir de tal excerto, podemos definir que os três primeiros livros da obra maniliana (no total de cinco) foram escritos durante o Principado de Augusto. A expressão “o maior legislador agora na terra”, utilizada no Livro I, designa que este Imperador se encontrava vivo naquele período, e ainda a exaltação de seu signo se torna uma propaganda inerente à legitimação do poder imperial, já que apresenta Otávio como o líder, não só de Roma, mas de todo o mundo, escolhido pelos astros. Paul Zanker nos confirma a utilização que o próprio Otávio fazia de seu signo para legitimar sua posição perante o Senado e o povo romano: 89 A partir daquele instante teve confiança em seu destino e publicou seu horóscopo e, posteriormente, fez cunhar uma moeda de prata com seu signo zodiacal, Capricórnio. Em efeito, o signo de Capricórnio apareceu em moedas que os seguidores de Otávio levavam. Posteriormente, o signo zodiacal de seu nascimento apareceu nas outras moedas, tanto com o motivo de suas vitórias pacificadoras, para recordar que Augusto estava predestinado pelos astros à redenção do Estado. A partir do ano 30 a.C., o dia de seu nascimento foi celebrado oficialmente em Roma como um dia venturoso (ZANKER, 2005, p.71). A partir desta oposição de imagens, o palco estava arrumado e a disputa entre eles foi algo inevitável. Ambos queriam provar, assim como no primeiro Triunvirato, que seriam melhores líderes. Antônio, de um lado, unia forças e exércitos mesmo não possuindo grande experiência nisso. Otávio, do outro, fazia o mesmo, porém cuidando também de suas alianças políticas. Utilizando-se de sua ligação com César, Otávio divinizou-o com o beneplácito do Senado e, com isso, se transformou em filius divi. 3.2. Um confronto pelo bem da Res Publica: Otávio versus Marco Antônio Ambos começaram a formar imagens distintas perante o Senado. Antônio, um estranho ao seu próprio exército, não possuía o carisma necessário nas disputas políticas e punia demais seus comandados. Enquanto isso, Otávio se mostrava como um general clemente – característica importante – que buscava a paz e a estabilidade da Res Publica. A diferença entre as lideranças foi tão clara que a Quarta legião e a legião Marcia desertaram do comando de Antônio e passaram para o lado de Otávio (DION CÁSSIO. História Romana, 45. 1-13). Deixando as diferenças de lado, Otávio e Antônio se uniram contra inimigos em comum: os assassinos de César. Aliando forças a Lépido, estabeleceram o segundo Triunvirato, apoiado e formalizado pela Lex Titia, um senatus consultum de 27 de novembro de 43 a.C.. Tal associação não foi muito bem quista e “os triúnviros eram odiados, mas também temidos, e nenhuma voz falou contra eles no Senado” (GOLDSWORTHY, 2010, p.98-99). Plutarco confirma: O domínio desses três personagens ficou sendo chamado triunvirato, para muitas coisas odiosas e raiva dos romanos, mas disso dava-se a 90 maior parte da censura a Antônio, pois ele era mais velho do que César, e mais poderoso do que Lépido, e porque voltara a viver dissoluta e luxuosamente, como antes, logo que se viu fora de suas incumbências: e além da má fama de que gozava por causa da sua intemperança, ele era ainda muito odiado por causa da residência onde morava, que tinha sido do grande Pompeu, personagem não menos estimado e afamado pela sua temperança e por sempre ter vivido honestamente e com simplicidade do que pelos seus triunfos (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, XXIV). Sendo assim, Otávio e Antônio deixaram Lépido na Península Itálica e foram de encontro ao confronto com Cássio e Bruto, na Macedônia. A batalha não foi fácil para nenhum dos lados: Otávio, vendo que não havia mais dinheiro suficiente para Antônio, quis repartir as finanças com ele, e dividiram também o exército para irem ambos à Macedônia, fazer a guerra contra Bruto e Cássio e deixaram, no momento, o governo de Roma a Lépido. Depois de terem atravessado o mar começaram a guerra, estando acampados perto do inimigo, isto é, Antônio contra Cássio e César contra Bruto, César nada conseguia; coisa diferente, porém, passava-se com Antônio que vencia sempre, e fazia tudo: na primeira batalha César foi derrotado por Bruto, e perdeu o campo, de modo que com dificuldade pôde se salvar, fugindo rapidamente para escapar aos que o perseguiam. Todavia, ele escreve em seus Comentários, que ele se havia retirado antes que a carga tivesse começado, por uma visão que tivera em sonho um de seus familiares: Antônio derrotou Cássio, embora alguns tenham escrito que ele não estivera presente ao combate, mas lá chegou depois da derrota, quando seus homens já perseguiam o inimigo. Cássio foi morto por sua grande instância e pedido, por um de seus servos, um fiel homem de nome Píndaro, ao qual ele tinha dado liberdade, e isto, porque ele não fora advertido em tempo que Bruto tinha vencido, do seu lado. Poucos dias, combateram eles de novo e Bruto foi, então, derrotado e suicidou-se. Antônio teve a principal glória da vitória, considerando-se que, então, Otávio estava enfermo. Tendo encontrado o corpo de Bruto, disse-lhe algumas injúrias, reprovando-lhe a morte de seu irmão Caio que ele tinha feito morrer na Macedônia, como vingança pela cruel morte de Cícero, mas 91 no entretanto ele disse que culpava mais a Hortênsio que a ele; e por isso fê-lo morrer sobre o túmulo de seu irmão. Ao contrário, lançou sua cota de armas sobre o corpo de Bruto, que era muito rica. Depois ele deu ordem a um de seus servos libertos que cuidasse da sua sepultura, tendo depois sabido que o servo não fizera queimar a cota de armas juntamente com o corpo, porque valia muito dinheiro, e que ele tinha desviado muito da soma destinada aos funerais e à sepultura, assim mandou matá-lo (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, XXV). A não clemência de Antônio para com seus inimigos, que também eram romanos, causou grande desaprovação no Senado. Da batalha, o jovem César voltou com a fama inabalada, mesmo com as baixas que obteve, enquanto Antônio se mostrou desestruturado. Mesmo que a batalha de Filipos tenha sido, em grande parte, vencida por Antônio, suas ações não condiziam com as de um bom líder. O Senado temia Antônio e encontrou em Otávio força para enfrentar o que considerava um mal para a Res Publica. A desestabilidade entre os três era visível e mesmo delimitando territórios de comando (Otávio ficou com a Gália e se manteve na Itália, Lépido na África e Antônio nas províncias orientais), os confrontos ocorreram. Lépido rapidamente foi “descartado” pelos outros dois52, o que gerou mais desgastes nesta relação já tão problemática. Além disso, para selar a aliança, Antônio se casou com Otávia, irmã de Otávio, e, como bem sabemos, não honrou tal compromisso. Antônio não escondeu suas amantes, fazendo da mãe de um dos herdeiros da Capadócia, Gafira, uma delas. Em 41 a.C., nesta época ainda casado oficialmente com Fúlvia, Antônio solicitou a companhia de Cleópatra até Tarso, na Sicília, pois o Egito era a principal fonte de grãos e monetário do leste mediterrâneo, sendo imprescindível manter boas relações com este reino. Todavia, os dois acabaram se envolvendo amorosamente e gerando filhos – gêmeos –, Cléopatra Selene II e Alexandre Hélio. Cleópatra, com isso, garantiu a continuação de seu reinado e também a soberania perante o Oriente: seu filho com César, Cesário, se torna o herdeiro do Egito. O casal passou o inverno de 41-40 a.C. junto em Alexandria. Promoviam grandes banquetes, jogos de montaria, entre outras festividades ligadas à tradição macedônica. Antônio apenas deixou Cleópatra para enfrentar os Partos que invadiram a 52 Possivelmente pela associação e acordos que fez com Sexto Pompeu. 92 Síria e, não fazendo segredo dessa relação, continuou a manchar ainda mais a sua reputação. Mesmo assim, Otávio não declarou guerra ao seu colega de Triunvirato. Manteve a divisão do Império e celebrou a concordia por toda a Itália. Além disso, ambos ainda tinham um problema em comum que necessitava de uma solução rápida e definitiva: Sexto Pompeu. Enquanto Antônio enfrentava os Partos sem obter resultado positivo, Otávio combateu este inimigo53. Tal batalha não foi fácil, porém o exército otaviano comandado por Marco Vipsânio Agripa derrotou a frota de Sexto Pompeu ao largo do cabo de Náuloco, fazendo com que o inimigo fugisse. Ao chegar no Oriente, Sexto foi assassinado em julgamento feito por Marco Tício, um homem do grupo de Marco Antônio. Tal execução não foi bem vista pelo Senado que, mais uma vez, desaprovou as condutas de Antônio e de seus subordinados. Enquanto isso, se esbaldava na companhia de Cleópatra, sendo este comportamento condenado por Otávio, como nos lembra Paul Zanker: Depois de uma ruptura definitiva, as acusações contra Antônio chegaram ao seu nível mais baixo: diziam que o Oriente o degenerara, que era ímpio e afeminado, que estava constantemente embriagado por Cleópatra (ZANKER, p.81, 2005). Dion Cássio54 nos mostra a imagem que Antônio apresentava: Seu quartel militar chamado de palácio real. Levava um punhal oriental na cintura e se vestia de forma completamente diferente ao que era de costume em sua pátria. Em público, inclusive, se mostrava em um leito (como Dioniso) ou em um trono dourado (como um rei). Junto com Cleópatra se fez representar em pinturas e em estátuas como Osíris e Dioníso, e ela aparecia como Selene e Ísis. (DION CÁSSIO. História Romana, 50.5) Percebemos a partir da utilização desta fonte que a imagem de Antônio construída como inimigo público no século I a.C. perdurou até o século III d.C.. Acolher o mau exemplo de Antônio também era importante, pois ensinava futuros líderes do que não deveriam fazer. Otávio, enquanto isso, continuou como um exemplo de excelente governante, contrastando sua imagem com a de seu rival e, com isso, aumentando seu prestígio. O mau exemplo e o bom exemplo, respectivamente, eram Filho de Pompeu, também se ligava ao grupo dos mais conservadores. Antes de entrarem no confronto armado, Otávio, Antônio e Sexto tentaram a diplomacia. Em 39 a.C., os triúnviros assinaram um armistício com Sexto conhecido como Pacto de Messina, que não durou muito tempo. 54 Notável historiador romano e escritor da História Romana, em 80 volumes. 53 93 necessários e, por isso, foram estabelecidos. A paz apenas poderia advir do confronto nas Guerras Civis entre homens de posição social semelhantes e, para isso, um deveria representar as desventuras e desvios pelos quais Roma passava, já que a pax deorum havia sido quebrada. Entendemos que o momento era de grande instabilidade na Res Publica romana. Manílio escreve em seu manual acerca de tais eventos, observando a necessidade de ordenação que apenas os astros, regidos por um deus que comanda todas as coisas de forma harmônica, poderiam fornecer ao ser humano: Não te admires com as graves desgraças dos homens e de sua realidade: não aprendemos a dar crédito ao céu. Os cometas também anunciam perturbações civis e guerras entre o mesmo sangue. Em nenhuma outra ocasião o céu susteve mais incêndios do que quando as armas leais aos sanguinários chefes (Bruto e Cássio) encheram com seu exército os campo de Filipos, e na areia ainda dificilmente seca o soldado romano se pôs de pé sobre os ossos e membros dos companheiros, dilacerados pouco antes; o Império, usando de suas próprias forças, entrou em conflito consigo mesmo, e Augusto, o pai, seguindo os passos de seu pai, venceu. Mas ainda não era o fim: restavam os combates de Ácio, travados por um exército dotal; duvidava-se sobre a sorte dos acontecimentos, procurava-se no mar o chefe do Olimpo, quando Roma hesitou, diante da possibilidade de se submeter ao jugo de uma mulher (Cleópatra), e os próprios raios se bateram com o sistro de Ísis; ao soldado fugitivo restavam os combates contra escravos, quando Pompeu, o filho, pegando em armas e imitando os inimigos paternos, apoderou-se dos mares que seu pai havia defendido contra estes. Mas tenha sido isso o bastante para o destino: que agora as guerras cessem e a discórdia, presa por cadeias duras como diamante, tenha freios eternos, encerrada no cárcere; que seja invencível o pai da pátria (Augusto), sob seu comando esteja Roma e, quando ela o der como deus ao céu, não sinta sua ausência na terra (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 907-928). Manílio demonstra, como podemos constatar a partir da exposição deste trecho, uma preocupação com a organização e manutenção da Res Publica romana. Os constantes confrontos que desestabilizaram Roma deviam ser interrompidos, pois a ordem deveria ser restaurada a fim de satisfazer sua necessidade explicativa do universo. Quer dizer, além de almejar a paz pela força e representação da imagem de 94 Otávio como o melhor líder que Roma poderia ter, Manílio se empenha em apresentar a harmonia universal (uma característica estóica, como vimos no capítulo 2), confirmando assim sua teoria astrológica. O autor continua narrando sobre a gravidade da situação pela qual Roma havia passado durante as Guerras Civis: O lícito e o ilícito estão misturados, e a perversidade comete suas crueldades por meio das próprias leis; o crime, agora, é demais para o castigo. Com efeito, uma vez que as pessoas nascem discordes em muitos signos, a paz foi subtraída de todo o mundo, e raro é o laço de fidelidade, e concedido a poucos, e, assim como o céu discorda de si próprio, assim também a terra diverge de si mesma, e as nações dos homens são levadas por um destino de inimizade (MANÍLIO, Astronômicas, Livro II, v.717-725). E apenas crescia tal inimizade entre Otávio e Marco Antônio. Após o casamento com Otávia, Antônio não conseguiu manter a discrição de seu caso com Cleópatra, engravidando-a pela terceira vez. Na tentativa de recuperar seu poder, Antônio obteve uma pequena vitória na Armênia e fez disso um grande acontecimento, comemorando um triunfo em Alexandria e vestindo-se como Dioniso. Mais uma vez, os excessos de Antônio lhe arruinaram, pois um triunfo apenas poderia ser comemorado em Roma e seguindo preceitos estipulados pelo Senado. Além disso, Antônio dividiu as províncias entre seus filhos com Cleópatra, com a própria Cleópatra e com o filho dela e César, Cesário: Pois mandou ele reunir todo o povo no parque, onde as crianças e os moços se exercitam em ginástica e jogos de educação física, e sobre uma tribuna coberta de prata, mandou colocar duas cadeiras de ouro, uma para ele, outra para Cleópatra, e outras mais abaixo para seus filhos: depois declarou publicamente diante de todos os presentes, que, por primeiro, ele criava Cleópatra, rainha do Egito, de Chipre, da Lídia e da baixa Síria, e igualmente Cesário, rei dos mesmos reinos. Este Cesário era considerado filho de Júlio César, que tinha deixado Cleópatra grávida. Em segundo lugar, aos seus filhos e dela, chamou de reis dos reis e deu como partilha a Alexandre, a Armênia, a Média e os partos, quando ele os tivesse subjugado e conquistado, e a Ptolomeu, a Fenícia, a Síria e a Cilícia. Depois fez aparecerem em público a Alexandre, trajando uma longa veste à maneira dos medos, com um chapéu alto e pontudo na cabeça, cuja extremidade era reta, como o usam os reis medas e armênios, e a Ptolomeu, coberto com um 95 manto à Macedônia, com pantufas nos pés, e um chapéu largo cingido de uma faixa real, pois era assim que costumavam trajar os reis sucessores de Alexandre, o Grande. Assim, depois que seus filhos lhes prestaram homenagem, curvando-se diante dele e beijando o pai e a mãe, imediatamente uma tropa de guardas armênios, organizada expressamente, cercou um, e uma tropa de macedônios, o outro. Cleópatra, porém, não somente então, mas sempre que saía em público, diante do povo, vestia-se de trajes sagrados, como a deusa Ísis, e dava audiência aos seus súditos, como uma nova Ísis (PLUTARCO. Vida de Marco Antônio, Vidas Paralelas, LXXI). As notícias sobre o comportamento de Antônio chegaram a Roma e o Senado desaprovou tais condutas. A disputa entre ele e Otávio ficou acirrada em 33 a.C., quando Antônio proclamou que Cesário era o verdadeiro herdeiro de César. Otávio reverteu a situação em propaganda positiva para si, mostrando o quanto Antônio era manipulado por Cleópatra. Otávio se fazia presente em Roma, participava da vida pública e se colocava lado a lado com os demais Senadores. Enquanto isso, Antônio se distanciava cada vez mais, deixando sua imagem ser “manchada” pelo excesso da cultura oriental em seu estilo de vida. O Senado não tinha voz perante Antônio já que ele estava geograficamente longe demais, o que fazia de Otávio um melhor líder no momento. Otávio obteve o consensus55 logo após a quebra do poder no Triunvirato, pois mostrou-se como um líder benevolente e sábio, buscando restabelecer a República. Através disto, sua autocracia foi reconhecida tanto pelas camadas populares quanto pelo Senado. Para conquistar a confiança do Senado e do povo romano, Otávio entregou a eles de forma cerimonial o controle da República, realizando com isto uma autopropaganda como líder e conquistando o apoio entre todas as camadas sociais do período: Em meu sexto e sétimo consulados, depois de extinguir as guerras civis e, por consenso de todos, senhor de tudo, passei a República de meu poder para o arbítrio do Senado e do povo romano. Por esse mérito pessoal fui chamado de “Augusto” por decreto do Senado; os umbrais de minha casa foram publicamente cobertos com louros, uma coroa cívica foi afixada acima de minha porta e um escudo de ouro O consensus operante desde 32 a.C. não deve ser entendido como algo já existente e produzido, independente da participação e da propaganda de Otávio, mas como um fenômeno encenado repetidas vezes (LOBUR, 2008, p. 21). 55 96 posto na cúria Júlia. Atestava a inscrição do escudo que o Senado e o povo romano o davam a mim pelo valor, pela clemência, pela justiça e pelo senso do dever. Depois disso, vi-me à frente de todos pela autoridade, mas nenhum poder tive a mais do que meus outros colegas também investidos de cargos (AUGUSTO, Res gestae Diui Augusti, XXXIV). O consensus iniciou-se com a mudança de opinião a favor de Otávio em 32 a.C., através de uma comparação entre ele e Marco Antônio, já que ambos iniciaram campanhas para se mostrarem grandes líderes. Antônio associou sua imagem a Dioniso e aos refinamentos orientais, enquanto Otávio, mais prudente, se associou à própria deusa Roma e às tradições romanas e itálicas. A propaganda que Otávio empreendia era a mais aceita entre os romanos, pois se mostrava como um resgate da tradição. Já Antônio, devido à sua ligação estreita com o Egito, não despertava uma boa impressão para o Senado e, por isso, acabou por ferir a “sensibilidade romana”, ou seja, a preocupação pela manutenção do mos maiorum. Suetônio destaca que a relação entre estes dois triúnviros sempre foi incerta: Sempre foi duvidosa e incerta a sua aliança (de Otávio) com Marco Antônio, e diversas reconciliações serviram apenas para restabelecêla. Enfim, rompeu-a na intenção de melhor provar que seu colega degenerara dos costumes nacionais, fez abrir e ler, em plena assembleia, o testamento que deixara em Roma e no qual figuravam, entre seus herdeiros, os próprios filhos que Antônio tivera com Cleópatra. Porém, após ter declarado inimigo público, demitiu todos os seus parentes e amigos, além de Caio Sósio e Cnéio Domicio, ainda Cônsules naquela época (SUETÔNIO. A vida dos dozes Césares, A vida de Otávio César Augusto, parte XVII). Como mostra Veléio Patérculo, um pela salvação e o outro pela destruição do mundo, respectivamente, Otávio e Antônio iniciaram um confronto bélico em Ácio (VELÉIO PATÉRCULO. História Romana, II). A batalha foi dura, mas Otávio, novamente com o auxílio de Agripa, saiu vencedor, obrigando Cleópatra e Antônio a fugirem para Alexandria. Um ano depois, ambos cometeram suicídio com medo de Otávio, que caminhou em direção ao Egito para “conquistar” o território. Todos os filhos de Cleópatra foram assassinados e assim a paz e o fim da Guerra Civil foram instaurados. 97 “A visível manifestação deste ‘consensus’, descrito, claramente existente nas fontes é elevado ao nível de mitologia” (LOBUR, 2008, p.27). A imagem de Otávio Augusto começa a ser cunhada como a de um herói mitológico fundador de Roma, o que demonstra o poder que exercia perante toda a sociedade. No escudo de Enéias (descrito por Virgílio – Eneida, Livro VIII) havia a mensagem “Liderando os italianos na batalha, juntamente com o Senado e o povo”, demonstrando que Augusto adquirira consensus no que tange seu poder em Roma56. Mas o que seria esse consensus? Não possuímos a pretensão de acreditar que este seria total e absoluto, e sim, se basearia em uma grande aprovação diante da figura imperial. O texto de Clifford Ando trabalha com este conceito que para nós, historiadores da contemporaneidade, se apresenta extremamente difícil de compreensão. Consensus é empregado, no trabalho deste autor, no período do Principado romano, a fim de facilitar a compreensão do exercício de poder nesta sociedade, representado pelo Princeps, Senado e províncias. Tal consensus, por mais que instituído e idealizado como universal, sempre foi a chave para se entender a relação existente entre estes três grupos fundamentais para a compreensão do que seria o Império Romano. Percebemos, então, que nenhum grupo ou indivíduo detinha em si poder – enquanto controle – total. Era necessário articular ideias, conquistar aliados e com isso gerar consensus. Este não seria dado ou, muito menos, intrínseco a alguém: deveria ser conquistado, legitimado e cultivado para que existisse. Assim, ter consensus seria mais uma ferramenta de propaganda do que uma certeza de legitimidade: Documentos que invocam tal consensus raramente clamam por representar a visão de todo o mundo; ao invés disso, eles pretendiam representar a visão de grupos particulares. Ao fazer isso, estes documentos criavam clivagens dentro da população geral, dividia lealdades, e permitia a expressão de certa unidade somente quando expressavam (os Imperadores) o compromisso com o estabelecimento da ordem (ANDO, 2000, p.135). O consensus, assim como afirma o autor supracitado, mostrava o limite entre o poder real do Princeps e seu carisma. Desta maneira, temos uma ideia de unidade política e geográfica, que se baseia em uma relação comum entre os liderados e seu Sabemos que este consensus não era absoluto, por mais universal que ele possa ser nomeado. Temos isso em mente pelo fato das incessantes demonstrações de Otávio como um excelente líder e restaurador da República. Partimos do pressuposto de que se tal consensus fosse realmente aceito por todos e tido como algo absoluto, não haveria a necessidade de tal afirmação constante do poder augustano. 56 98 líder, e se opera a partir da língua compartilhada e da cidadania concedida. O Princeps assumia seu papel afirmando que exercia suas funções em nome e pelas causas da República, mostrando que todos estavam submetidos às leis: o Imperador tinha como prioridade em suas preocupações o bem público, ou pelo menos essa era a ideia que se esforçava para passar. Voltando-nos ao exemplo de Augusto57, mesmo obtendo inúmeros títulos e crescente poder, ele não se opôs ao Senado dentro de sua política. Ao contrário, reconhecer a autoridade do Senado era reconhecer sua própria autoridade (autoridade do Princeps, neste caso), já que era escolhido por este grupo. Utilizar – quiçá manobrar – o Senado conforme sua vontade era a primeira lição que um bom Imperador deveria aprender. Augusto se tornou parceiro do Senado e estabeleceu, com isso, seu governo. Ele sempre entregava o poder e autoridade ao próprio povo de Roma e ao Senado, diferentemente do que fez César ao reivindicar tal poder para si com a ditadura vitalícia. Assim como pontuado por Geoffrey Sumi (2005, p.227), Augusto criou cerimônias para manter-se no poder, enquanto César não o fez: o segundo era ditador, cargo passageiro e talvez, por isso, não se preocupou com tais cerimônias. Para o autor, Augusto é um grande adaptador e não um inovador. Ao abrir mão da ditadura, ele se afasta do deslize de César e, a partir dessa negação, acaba por aumentar seu próprio prestígio. Nesse ponto percebemos que a oratória era de extrema importância para um bom líder. Augusto reforma o fórum e mostra a importância de um bom discurso: ele dá voz aos Tribunos não apenas para dividir o poder, mas para também ter alguém que lhe elogie publicamente; seu discurso dava voz aos outros, ou seja, não discursava sozinho, não apresentava as benesses que fizera sozinho e, dessa maneira, aumentava seu próprio poder. O próprio nos mostra como isto ocorreu a partir da descrição de seus feitos: Desempenhando o consulado pela décima vez, o Senado, a ordem Equestre e todo o povo romano chamaram-me de “Pai da Pátria” e determinaram que isso devia ser inscrito no vestíbulo de minha casa, na cúria Júlia e no foro Augusto, sob as quadrigas que me foram estabelecidas por decreto do Senado (AUGUSTO, Res gestae Diui Augusti, XXXV). Com o início do Principado de Augusto as relações entre as províncias e Roma mudaram. Augusto se mostra como filho e herdeiro de César, fazendo dos clientes do Podemos nos referir à Otávio de três formas distintas: Caio Otávio: antes da adoção por Júlio César; Caio Júlio César Otaviano: utilizado após sua adoção por Júlio César ser sancionada; e Augusto: após receber o título de augusto dado pelo Senado, em 27 a.C. 57 99 pai seus próprios clientes. De acordo com Clifford Ando (2000, p.140), a maior conquista augustana foi concebida a partir de seu carisma – este, associado à universalização de seus clientes – e a divinação de César, que apresentam Augusto como o líder legítimo. Otávio soube os momentos certos de aceitar cargos e magistraturas e, também, de negá-los. Foi Cônsul treze vezes58, porém sabemos que em 23 a.C. negou o Consulado ganhando o imperium, superior ao poder dos Cônsules. Ou seja, articulações eram necessárias a fim de estabelecer uma boa imagem perante as demais camadas sociais romanas. Sendo assim, podemos inferir que, ao escrever seu manual astrológico, Manílio elege Otávio Augusto como o melhor exemplo de um bom líder romano. Por ter sido patrocinado por ele (uma das hipóteses lançadas por historiadores como Katharina Volk – autora citada no Capítulo 1), ou apenas por admirar a maneira com a qual este líder lidava com os constantes problemas, Manílio nos mostra a importância de Otávio na consolidação de Roma. Ao descrever sobre a morada dos heróis após a morte, a Via Láctea, o autor faz questão de engrandecer o Imperador, mostrando que a imortalidade conquistada por Otávio seria de elevada posição, pois “Augusto desceu do céu e o céu ocupará, o qual irá reger, tendo entre as constelações a companhia de Júpiter [...]” (MANÍLIO, Astronômicas, Livro I, v. 800-801). O Destino – guardado nas estrelas –, mesmo que possivelmente compreendido, tem um caráter absoluto (MANÍLIO, Astronômicas, Livro IV, v. 14-16). A partir disto, ao afirmar que a liderança de Otávio era legitimada pelas estrelas, Manílio confirma que tal escolha não dependeu apenas da ação humana, mas sim foi já ditada pelo universo. Assim como nos apresenta Katharina Volk (2009, p.109), “é claro que, no contexto d’Astronômicas, esse espelho é encontrado no céu”. A organização celeste seria, então, uma comparação com a cidade de Roma, tendo como estrela principal Otávio. Assim sendo, a crença maniliana aborda a criação da terra pelo céu e não o contrário. Não caberia ao homem inventar e criar razões para a existência das estrelas, ou seja, o homem não deveria abordar os assuntos celestes como uma fábula. A partir disto, a apresentação da organização celeste seria similar à Res Publica: Nesse momento, então, é que é possível distinguir claramente os brilhantes templos celestes, semeados de minúsculos grãos de luz, e ver o firmamento inteiro cintilando, juncando de estrelas, não menos 58 Em 43 a.C., 33 a.C., entre os anos de 31 a 23 a.C., em 5 a.C., e em 2 a.C.. 100 numerosas que as flores num jardim ou que os grãos de areia na praia; quantas são as ondas que incessantemente fluem, formando-se no mar, quantos são as milhares de folhas que caem no chão das florestas, é possível ver voar no céu luzes em número ainda maior que esses. Também, assim como nas grandes cidades, o povo se distribui, detendo os Senadores a primeira categoria, e a ordem equestre a posição seguinte, e se pode ver o povo seguir-se ao cavaleiro, e ao povo o vil populacho, enfim a turba sem nome, assim também existe, no grande espaço celeste, uma espécie de República que a natureza criou, fundado no céu uma cidade. Estrelas há semelhantes aos próceres; outras há próximas destas primeiras; há enfim, honras e tudo o que é de direito dessas primeiras ordens: a mais numerosa é a do povo, que se move no elevado cimo do céu [...] (MANÍLIO, Astronômicas, Livro V, v. 734-742). Sendo esta a organização celeste que inspirou o homem a organizar Roma e todo o vasto Império, Otávio seria, com isso, aquele disposto a dar continuidade e manter a Res Publica e a pax. Os autores, assim como Manílio, comumente encontravam-se no meio de um conflito entre aspirações retóricas, motivações pessoais e necessidades impostas pelos desdobramentos da vida política (FOX, 2010, p.375). E as palavras do poder não circulavam como as outras. Elas necessitavam de uma comunicação calculada; procuravam efeitos precisos; não desvendavam senão uma parte da realidade, pois o poder também devia sua existência à apropriação da informação, dos conhecimentos exigidos para governar, administrar, e para exercer seu domínio (BALANDIER, 1980, p.13). Dieter Timpe ressalta que memória, em latim, pode significar memória, tradição e historiografia, tendo a ver com preservação, adequação e adaptação. Memória se conecta com suportes materiais e com superestruturas simbólicas, forjados na junção da natureza individual com as associações sociais (TIMPE, 2011, p.150-151). As referências a Otávio feitas por Manílio também utilizam das ligações com antepassados importantes, como podemos perceber no final do Livro I. Assim, o ato da escrita era limitado por fatores internos e externos. Dever-se-ia seguir os cânones do gênero escolhido, atentar-se para os interesses individuais e grupais que definiam uma espécie de autocensura na composição do relato, vincular-se ou não a um patrocínio senatorial e/ou imperial, emular outros autores, selecionar artifícios retóricos e temáticas relevantes... Enfim, proceder à narrativa com o engenho e o talento possíveis. Entre 101 finalidades e costumes, entre disposições e possibilidades, o autor tinha que se desprender de amarras múltiplas e se ater a tantas outras na elaboração de sua obra. “A habilidade no controle e na supressão de memórias tornou-se um crucial componente da autoridade política” (GOWING, 2005, p.2). Por isso, algumas imagens acabaram fixadas no imaginário político romano. Assim dito, a imagem de Otávio, explorada também por Manílio, conseguiu se impor como a de um bom líder, mesmo que saibamos que sua aceitação não foi total. Restaurador da República, mantenedor da paz e referência de boa liderança a partir da oposição com Marco Antônio, Otávio conseguiu perpetuar uma boa imagem e, com isso, se manter não somente na memória romana, mas na História. 102 CONSIDERAÇÕES FINAIS Nosso trabalho chega à sua fase final, pelo menos nesta etapa, respondendo a alguns questionamentos elencados durante a trajetória feita e produzindo novas possibilidades no entendimento do poema analisado enquanto produto do seu tempo. Marco Manílio, assim como todo autor que se propõe a escrever acerca de qualquer tema, nos trouxe propositadamente, ou não, um conhecimento além daquele sobre o qual decidiu explanar, neste caso, a astrologia. O autor d’Astronômicas, ao explicar as minúcias da organização e eventos do universo, nos mostra outros saberes os quais nos centramos na análise da filosofia estóica. Tal, utilizada dentro da obra, corrobora com a ideia maniliana de organização do universo enquanto deus racional mantenedor de tudo. A harmonia universal apreendida do Estoicismo fornece a Manílio instrumentos necessários para explicar da sua maneira não somente os eventos celestes, mas também os que aconteciam à sua volta, ou seja, aqueles que influenciavam em sua própria vivência. Como apontado no primeiro capítulo desta dissertação, em seu propósito duplo (escrever um manual sobre o conhecimento astrológico ao mesmo tempo em que realizava tal tarefa da maneira mais bela possível, pois se sentia na obrigação de retratar a beleza do universo como uma matéria de fino ornato), Manílio se empenha em ensinar ao seu leitor/aluno a se posicionar perante as adversidades da vida, deixando a passividade de sua existência em busca de uma atitude mais ativa perante a própria força motora do Destino. Sendo este um dos propósitos, o autor elenca o entendimento das ações celestes, ligadas por uma teia simpática e harmônica com os eventos terrenos, como a melhor maneira de entender o papel de cada um neste plano, já que também são parte do deus criador, e o próprio universo. Dessa maneira, ao utilizar os princípios estóicos como ferramenta legitimadora do seu discurso, Manílio apresenta uma necessidade ordenadora que pode ser entendida a partir do momento pelo qual passava. As constantes Guerras Civis que assolavam Roma desde os tempos republicanos chegavam a um momento crítico no qual homens de igual prestígio se declaravam inimigos por não concordarem com as diretrizes tomadas, mesmo que o objetivo tenha sido o mesmo, seja qual for, de estabilizar a Res Publica já tão abalada. Com discursos diversos, cada um defendia seu ponto de vista, levando o Senado a uma divisão interna e nociva para Roma. Em meio a este caos, 103 Manílio se vê impelido a escrever sobre a harmonia universal que permeava tudo, elegendo como melhor líder aquele que escolhido pelos próprios astros seria capaz de trazer a paz tão quista pelos romanos. Este seria Otávio Augusto que em seu embate final contra Marco Antônio saiu vitorioso e iniciou um período estável em todo o Império (pelo menos na visão maniliana). Sabemos que a pax conquistada por Otávio não foi total e nem absoluta, pois diversos autores e o próprio Princeps nos mostraram a necessidade deste em constantemente continuar uma autopropaganda de sua boa liderança. A própria obra maniliana pode ser entendida como um instrumento legitimador da ação do Imperador, mesmo que não tenhamos a confirmação do patrocínio recebido por Manílio. Assim como nos mostra Katharina Volk, Manílio apresenta o conhecimento astrológico primeiramente como uma arte divina e, através da retórica de seu poema, ensina ao seu aluno a maneira como deveria viver (VOLK, 2009, p.172). Dessa forma, cabe a nós historiadores interrogarmos tal documento da melhor maneira possível, buscando entender a necessidade do autor em propagar uma memória a fim de não esquecer as tribulações do passado e, com isso, olhar para um futuro melhor e guiado pela força do Destino. Orientados pelas nossas hipóteses, decidimos estudar esta documentação tão peculiar não somente para entendermos – a partir de um novo olhar – um período já tão estudado, mas também porque, devemos salientar, pesaram motivos egoístas em nossa escolha. Provenientes de uma geração que teoriza a História a fim de aplicar a esta a melhor crítica possível e, com isso, produzir um conhecimento mais puro sobre o passado, percebemos que o embate entre o científico e o ficcional que a obra maniliana nos traz é atual. Em nossa tentativa de compreender o passado, acabamos esbarrando no nosso presente e lançando mão de nossas expectativas para o futuro. Assim como apresenta Jeanne Marie Gagnebin: Enquanto Homero escrevia para cantar a glória e o nome dos heróis e Heródoto, para não esquecer os grandes feitos deles, o historiador atual se vê confrontado com uma tarefa também essencial, mas sem glória: ele precisa transmitir o inenarrável, manter viva a memória dos sem-nome, ser fiel aos mortos que não puderam ser enterrados. Sua ‘narrativa afirma que o inesquecível existe’ mesmo se nós não podemos descrevê-lo. Tarefa altamente política: lutar contra a repetição do horror (que finalmente, se reproduz constantemente). 104 Tarefa igualmente ética e, num sentido amplo, especificamente psíquica: as palavras do historiador ajudam a enterrar os mortos do passado e a cavar um túmulo para aqueles que dele foram privados. Trabalho de luto que nos deve ajudar, nós, os vivos, a nos lembrarmos dos mortos para melhor viver hoje. Assim, a preocupação com a verdade do passado se completa na exigência de um presente que, também, possa ser verdadeiro (GAGNEBIN, 2006, p.47). Escrevemos para que possamos esquecer, ou seja, para que possamos não mais nos preocupar com aquele assunto ou tema e podermos, assim, partir para novos estudos e discussões, mesmo que tais estejam ligadas ao conteúdo que já produzimos. O homem antigo escrevia para lembrar, e nessa entoada Manílio escreveu seu poema astrológico a fim de registrar nas estrelas os eventos passados para que, dessa maneira, deles os romanos não pudessem se esquecer e, com isso, glorificassem a vinda de um presente e de um futuro melhor com o início do Principado de Otávio Augusto. Tudo acontece de acordo com um esquema cósmico, ou seja, a partir de uma simpatia universal, sendo a astrologia o saber que explora este esquema (LUCK, 1985, p.331). A escrita maniliana parte de um pensamento racional. O logos se torna essencial para a fabricação deste manual, que visa na sua escrita ensinar o saber astrológico, ignorando, em algumas instâncias, o modelo de mythos59. O Destino, para os estóicos, se apresenta como modulador da vida, sendo os astros confirmações da ação deste sob a vida dos homens, o que justifica “as ligações temporais de causalidade” (BRUN, 1986, p.45). A natureza passa a ser teorizada como divina “em sua eterna normatividade, em sua prevista ordenação e força constitutiva dos seres” (GAZZOLA, 1999, p. 41). E é nesta perspectiva que Manílio escreve: o ser humano se torna dominante, pois é parte da divindade do Universo, sendo ele o centro das relações universais. A partir deste posicionamento do autor e da exigência do mesmo a todo aquele que se dispõe a ler sua obra, percebemos que a defesa maniliana de um universo organizado e harmônico, capaz de sustentar o ser humano em seu presente e no planejamento de seu futuro, não é somente feita com o objetivo de ensinar sobre os “Ao contrario do mito, o logos deve corresponder exatamente aos fatos objetivos (...). Enquanto o mito se volta para o mundo imaginário do arquétipo sagrado ou para um paraíso perdido, o logos olha para frente, tentando constantemente descobrir algo de novo, refinar conhecimentos anteriores, apresentar invenções surpreendentes e adquirir maior controle sobre o ambiente” (ARMSTRONG, 2005, p.31-32); 59 105 mistérios da vida humana e/ou sobre o deus criador e próprio universo, mas também confirmar a legitimidade de Otávio como o melhor líder possível para Roma. Apenas o céu seria imutável, assim como apresentou Manílio (Astronômicas, Livro I, v.518), o que mostra que todas as outras coisas, inclusive Roma, estariam suscetíveis às mudanças. Até mesmo o Princeps estava submetido ao poder das estrelas e, por isso, Manílio provavelmente confirmou a ação de Otávio ao designá-lo como aquele que foi escolhido por estas. A astrologia seria, como dito anteriormente, uma “arte divina” capaz de explicar àquele que decidia estudar o movimento celeste a melhor maneira de viver sua vida terrena. Sendo assim, o trabalho maniliano corresponde à produção de um saber, abarca a busca pela compreensão da vida humana e de sua verdade, ao mesmo tempo que se perde em palavras e beleza. A narrativa, seja ela utilizada para qualquer fim, apresenta um potencial de análise histórica, pois traz em si um conhecimento além daquele exposto. A narrativa, processo necessário em todas as instâncias de produção do historiador, passa a ser investigada como dual, pois comporta em si a possibilidade de produção que se pauta em uma verdade (não absoluta), mas que também se distancia dela, quando não é sua proposta fazê-lo. Tanto a narrativa ficcional quanto a narrativa histórica/científica utilizam-se de recursos estilísticos para serem entendidas pelo público ao qual se destinam, porém, possuem missões diferentes, e são produzidas com propósitos diferentes (mesmo que a narrativa ficcional também transpasse um pouco de História). Manílio, mesmo que analisando um conhecimento tão distante e desconhecido do ser humano, aproxima suas explicações à sua realidade. Sua obra nos trás não somente o entendimento de como a astrologia era concebida e empregada no Império romano do século I d.C., mas também nos mostra traços de sua vivência e de suas experiências. Os princípios estóicos percebidos a partir da leitura dos escritos manilianos, somente se mostram como um dos pontos de interação entre a obra e o autor. A obra Astronômicas se torna mais uma, das inúmeras portas para se entender o Império romano, sejam em seus conflitos, cultura, processos expansionistas e/ou política. Tal período histórico desperta nos historiadores da atualidade curiosidade pertinente não somente à organização política, econômica e social, mas também a respeito do imaginário do homem romano que expressa o seu entendimento de mundo de inúmeras maneira possíveis. Por isso, o crescimento de estudos que analisam uma documentação antes tida como secundária, pois não englobavam aspectos práticos da 106 vida humana e nem narravam os “grandes feitos dos grandes homens”, vem ocorrendo no campo historiográfico. A História e a busca pela verdade do historiador agora se estendem a outro campo que não apenas apresenta números e feitos, mas também o meio em que o homem viveu, seus anseios e curiosidades. Dessa forma: Os historiadores nunca conseguiram se desvincular, completamente, da “verdade”. Embora já consigam aceitar com mais facilidade a afirmativa de que nunca alcançarão a verdade plena dos objetos que estudam (e narram), se apegam aos elementos estéticos e retóricos que parecem configurar em seus escritos toda a veracidade cabível à História enquanto ciência factual. Elementos estéticos como as referências bibliográficas, e demais referências utilizadas no corpo do texto, são responsáveis por transporem uma realidade histórica sobre a imaginação literária que o leitor pode vislumbrar enquanto realiza sua leitura. Tornam-se, portanto, elementos retóricos, e moldam nestes textos a cientificidade do discurso histórico ao atingirem leitores descompromissados e leitores sabidos. (FERNANDES; BERBERT, 2011, p. 2-3) A partir disto, a obra maniliana responde a esta nova perspectiva, explicando mais do que foi proposto pelo próprio autor. Mesmo que sua tarefa fosse ensinar sobre o universo e, com isso, ensinar ao seu leitor/aluno a importância de viver em conformidade com a natureza, Manílio nos mostra mais uma possibilidade de entender o início do Principado romano, especificamente a legitimação de Otávio como um líder capaz de governar todo o Império. 107 ANEXOS Roda Zodiacal60: Imagens explicativas das possíveis ligações entre os doze signos zodiacais. A roda zodiacal se inicia em Áries (♈) e segue anti-horário até Peixes (♓). 60 108 Imagens retiradas de: VOLK, Katharina. Manilius and his intellectual background. New York: Oxford University Press, 2009. 109 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS A) DOCUMENTOS TEXTUAIS CÍCERO. De Natura Deorum. Trad. H. Rackham. Cambrigde: Harvard University Press/ London: Heinemann, 1953. (Loeb Classical Library). _______. Letters to Atticus. Trad. D.R. Shackleton Bailey. Harvard: University Press, 1924. (The Loeb Classical Library). DIO CASSIUS. Dio’s Roman History. Trad. Earnest Cary. 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