Silvana SILVA - Ciências da Linguagem – UNISUL

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ESTUDO ENUNCIATIVO DA PESSOALIZAÇÃO DO DISCURSO DE
DIVULGAÇÃO CIENTÍFICA INFANTO-JUVENIL:
O EMPREGO DO PRONOME VOCÊ
Silvana SILVA
(Universidade do Vale do Rio dos Sinos)
ABSTRACT: This paper investigates the personalization of the gender called scientific divulgation, by the
means of the personal pronoun você. We took as a support the enonciative interpretation from Benveniste (1988,
1989). To fulfill this aim, it was organized a corpus of divulgation texts to children, written by adults and kids,
from all editions of the electronic version of magazine Ciência Hoje para crianças. The results point to a high
occurrence of verbs of knowing related to você, representing the function of transmission of scientific
knowledge. It was observed that this kind of verb is most frequently associated to adult texts, while the verbs of
doing are most frequently associated to children texts.
KEYWORDS: enonciation, textual gender, scientific divulgation to children
1. Introdução
Nosso artigo objetiva estudar a pessoalização do discurso de divulgação científica
infanto-juvenil, através do emprego do pronome pessoal você, a fim de comprovar que o texto
de divulgação para crianças, diferentemente de artigos científicos, apresenta a especificidade
de gênero de tomar os pronomes pessoais como elementos que servem à transmissão de
saberes científicos e não de subjetividade, tal como normalmente são interpretados em artigos
científicos. Para isso, realizaremos a análise do pronome pessoal você em seu contexto frasal
e textual em um corpus de textos extraídos da mídia eletrônica.
Para realizar o nosso intento, postulamos as seguintes hipóteses:
a) o gênero discurso de divulgação científica pertence à esfera do gênero artigo
científico, devendo, portanto, ser descrito juntamente com ele;
b) a pessoalização do discurso de divulgação infanto-juvenil tem como correlata a
impessoalização do discurso científico;
c) a pessoalização do discurso de divulgação científica ocorre através de pronomes de
primeira e segunda pessoa, por sua vez, a impessolização ocorre através de pronomes de
terceira pessoa;
A escolha deste pronome justifica-se por sua alta incidência nos textos infanto-juvenis,
o que mostra que essa palavra é uma marca específica desse gênero textual. Zamboni (2001),
ao descrever os recursos retóricos do artigo de divulgação infanto-juvenil, cita o que chama
de interlocução direta com o leitor. Tal procedimento, segundo a autora, ocorre por meio de
perguntas ou da utilização de pronomes como você. De acordo com Zamboni (2001, p. 111),
esta é uma “forma de buscar a participação ativa do leitor, aproximando-o do processo de
produção do texto e fazendo-o compartilhar das mesmas ‘apreciações’ que o autor do texto
experimenta”. Acreditamos que essa reflexão é o ponto de partida para uma pesquisa acerca
das funções do pronome você no discurso de divulgação infanto-juvenil.
Além disso, o pronome você possui uma especificidade discursiva que não se estende
a outros pronomes do paradigma pronominal. Tal especificidade é denominada, por nós, de
pessoalização, de acordo com concepção teórica na Teoria da Enunciação, de Émile
Benveniste. Segundo Benveniste, em Da natureza dos pronomes (1988), a pessoalização do
discurso ocorre somente pelo uso da primeira e da segunda pessoas do discurso, já que a
terceira é considerada como não-pessoa, uma vez que apresenta o fato apresentado por si
mesmo. A primeira e a segunda pessoa do discurso, as pessoas do singular (“eu” e “tu”),
1826
indicam o indivíduo da ação e a situação do discurso, ao contrário da terceira pessoa que
predica sobre “o processo de não importa quem ou não importa o que” (p.282). A noção de
pessoa é própria da correlação de personalidade1, oposição do par eu-tu, que apresentam a
marca de pessoa, ao ele, que não apresenta (Benveniste, 1988, p. 254). Somente “eu”, ao
enunciar, instaura um sujeito na língua e um interlocutor no diálogo, além de um “aqui” e um
“agora”, isto é, um espaço e um tempo circunstanciais ou, em outras palavras, uma situação
de discurso. Inversamente, “tu”, ao tomar a palavra, converte-se em “eu” e instaura o outro
como “tu” no diálogo. Assim, cada enunciação de “eu...” instaura uma nova circunstância, um
novo sentido. Para Benveniste, a língua possui um aparelho formal da enunciação ou uma
estrutura enunciativa que possibilita a passagem da língua enquanto sistema de signos à
língua enquanto uso. Tal aparelho é composto das instâncias de eu (sujeito da enunciação), tu
(interlocutor), este (tema da interlocução), aqui (espaço) e agora (tempo). Muitas vezes, esse
aparelho está implícito e, assim, o discurso torna-se “impessoal” ou explícito e, assim, o
discurso torna-se “pessoal”.
Dessa forma, a alta freqüência do pronome você no texto de divulgação infanto-juvenil
em oposição à sua ausência no artigo científico seria reveladora da especificidade desse
gênero em face a outros relacionados ao tema “ciência”. O pronome você, segunda pessoa,
nesse gênero, é uma referência ao sujeito criança, em um diálogo instaurado entre o “eu”,
autor, e o “você”, leitor. Dessa forma, podemos dizer que ocorre a pessoalização do discurso
científico no gênero artigo de divulgação científica infanto-juvenil. Assim, a pessoalização do
discurso escrito é uma estratégia de representação da ciência em um diálogo adulto-criança,
forma primeira utilizada pelos pais para colocar seus filhos em contato com o mundo. O
diálogo do texto escrito seria, portanto, uma representação do diálogo oral entre pai e filho,
fundador da comunicação humana. Além disso, a pessoalização corresponderia a uma
necessidade da criança de compreender o saber científico como um fenômeno “vivo”,
pertencente ao universo de sua pessoa.
A seguir, faremos uma revisão bibliográfica da perspectiva de gênero em Benveniste,
de modo a refinar a descrição da pessoalização no discurso científico infanto-juvenil.
2. A perspectiva enunciativa do estudo do gênero textual
A teoria da Enunciação de Émile Benveniste (1988, 1989) tem sido estudada no
Brasil sob diversas óticas: descrição lingüística, terminologia, teorias do texto, teorias da
comunicação, aquisição da linguagem, entre outras2. No entanto, tal teoria não tem sido
considerada em sua contribuição para o estudo de gêneros textuais. Ainda que o autor não
defina ou mencione explicitamente esse termo, cremos que a descrição contida no texto “As
relações de tempo no verbo francês” (1988) ultrapassa a descrição de formas lingüísticas
alçando sua descrição ao nível do texto.
Nesse texto, o autor propõe-se a uma descrição do paradigma temporal das formas do
verbo francês. O autor descontrói a idéia de que o paradigma temporal constitui-se na
oposição entre formas de presente, de passado e de futuro, a partir da consideração da
existência da forma do perfeito em francês. O autor pergunta-se: a que tempo pertenceria o
perfeito (Il a couru = ‘ele correu’)? Trata-se de uma forma composta em francês com dois
valores: a) ação acabada; b) anterioridade em relação ao presente. O autor diz que não se
poderia propor uma correlação de tempo a essa forma, uma vez que ela tem a mesma função
1
A correlação de personalidade poderia ser chamada igualmente de correlação de pessoalidade, já que temos
uma oposição entre pessoa e não-pessoa.
2
Consulte o seguinte periódico para verificar o campo de estudos da Teoria da Enunciação: Colóquio Leituras
em Émile Benveniste. Flores, V.; Barbisan, L.; Teixeira, M. (orgs.) Revista Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 39,
nº4, dez.2004.
1827
que a forma do passado (Il courut= ‘ele correu’). O autor indaga se o sistema apresentaria
uma falha, ao apresentar duas formas com a noção de passado.
Na verdade, o paradigma temporal do verbo francês desdobra-se em dois sistemas
distintos e complementares. Cada um desses sistemas comporta apenas uma parte das formas
temporais do verbo. Esses sistemas manifestam dois planos de enunciação e são chamados de
enunciação histórica e enunciação de discurso.
A enunciação histórica caracteriza a narrativa dos acontecimentos passados. O modo
histórico de narrar exclui forma lingüística de “eu”. O historiador trata de acontecimentos
como se eles acontecessem por si mesmos em um tempo anterior a si. Dessa forma, a
enunciação histórica apresenta apenas algumas formas temporais do verbo, tais como o
aoristo, o imperfeito e o futuro prospectivo. O presente é excluído. Para demonstrar essa
descrição, o autor apresenta três trechos de textos de enunciação histórica. Os trechos
mostram que não há a presença de “eu” e da forma de presente.
A enunciação discursiva, por sua vez, caracteriza os discursos orais e escritos, a
diversidade de enunciações que pressuponha um locutor que pretenda influenciar um ouvinte.
Nesse plano da enunciação, as formas temporais (presente, passado, futuro) são permitidas, à
exceção do aoristo, que indica o passado.
De fato, o perfeito assume a função do aoristo, sendo chamado, pelo autor, de aoristo
do discurso. Benveniste discorda da descrição desse processo como “desaparecimento das
formas simples em francês”, como realizada por outros estudiosos. Para o autor, esse duplo
sistema sempre existiu. Ele pondera: “Teríamos necessidade de estatísticas precisas, fundadas
sobre um amplo inventário de textos de toda sorte, (...) que comparassem o uso do aoristo há
cinquenta anos com o de hoje...”(1988, p. 269) O autor prevê um resultado: a raridade de
formas de aoristo na enunciação de discurso.
Na análise do lingüista acerca do paradigma temporal do verbo, há a distinção entre
gêneros, a saber, o texto histórico e o texto do discurso, realizada a partir da distinção entre a
presença e ausência de determinadas formas temporais, a saber, o aoristo. A presença ou
ausência de uma determinada forma lingüística em um dado gênero, por sua vez, é
interpretada segundo a função de comunicação do próprio texto. O aoristo possui no texto
histórico uma função de “narrar os fatos por si mesmos” que o perfeito, no texto de discurso,
apresenta ancorado ao presente da enunciação. A presença ou ausência da forma do aoristo é
associada, igualmente, a posicionamentos do sujeito que enuncia os textos: na enunciação
histórica, o sujeito não se mostra, logo, há presença do aoristo; na enunciação de discurso, o
sujeito se revela e quer influenciar o ouvinte, logo, há ausência do aoristo.
Observamos, assim, que a unidade lingüística compõe o todo do texto, o qual explica a
função da unidade. Para usar os termos de Benveniste em “A forma e o sentido da
linguagem” (1989), o sistema de signos ou formas é subsumido pelo sistema semântico, ou
seja, pelo uso da língua pelos falantes para fins de comunicação intersubjetiva. Para
Benveniste, o estudo da língua é sempre a análise da língua-discurso, língua que é discurso,
discurso que é língua.
Se Benveniste não propõe explicitamente um conceito de gênero textual, sua análise
realizada sobre textos, faz com que possamos formular tal conceito. Gênero pode ser
entendido como um plano ou sistema de enunciação, comportando formas lingüísticas e
funções específicas. Cada plano enunciativo ou cada gênero relaciona-se com outro plano que
lhe é complementar e distintivo, com o qual opõe formas lingüísticas e funções opostas e
complementares.
A descrição do tempo no verbo francês conduz-nos a duas premissas sobre o estudo de
gênero em uma perspectiva enunciativa: a) uma proposta de distinção e descrição de dois
gêneros textuais a partir de formas de língua; b) uma descrição das formas de língua como
características da distinção entre dois gêneros de uma forma sistemática: a presença de uma
1828
forma no primeiro equivale à ausência dessa forma em outro e vice-versa; c) uma proposta
de descrição de um determinado gênero a partir de uma interpretação enunciativa das formas
que ele contém.
Dessa forma, consideraremos o texto científico em sua distribuição de uso das formas
dos pronomes pessoais. O texto científico será distinguido em duas formas de enunciação ou
dois gêneros: a) o artigo científico cujos interlocutores são cientistas, compondo uma
comunicação simétrica, entre pares profissionais; b) o artigo de divulgação científica infantojuvenil cujos interlocutores são cientista ou jornalista e criança, compondo uma comunicação
assimétrica.
Acreditamos que o artigo científico apresente, sobremaneira, formas de pronome
pessoal de terceira pessoa do singular e exclua formas de primeira e segunda pessoas do
singular. Em contrapartida, o texto de divulgação infanto-juvenil parece apresentar,
principalmente, formas de pronome pessoal de primeira e segunda pessoa do singular.
De acordo com Benveniste (1988), poderíamos propor a seguinte hipótese de
organização do discurso científico em dois sistemas de enunciação distintos e
complementares:
- o discurso científico, que exclui formas pessoais como eu, tu e compreende formas
de ele;
- o discurso de divulgação científica, que inclui formas pessoais de eu, tu, ele.
Resta-nos investigar quais as formas de discurso de divulgação científica que são
excluídas. Essa investigação pode trazer modificações na organização de discurso do discurso
científico, uma vez que ambos são correlatos.
3. O artigo científico e o uso dos pronomes pessoais
Tal como observou Bakhtin (1997), os gêneros estão em relação de imbricamento.
Como produtos da interação verbal humana, os gêneros originam-se uns dos outros em função
de especificidades de circunstância comunicativa. Acreditamos, assim, juntamente com
Massarani e Moreira (2005) que o gênero texto de divulgação científica é oriundo, por um
lado, do gênero artigo científico e, por outro, do diálogo cotidiano. Tal realidade pode ser
verificada pelo fato de que os textos de divulgação científica são escritos por pesquisadores,
acostumados ao molde do artigo científico para a transmissão de saberes, ou por jornalistas,
acostumados a entrevistar pesquisadores ou a ler seus artigos científicos.
Dessa forma, o texto de divulgação é influenciado pelas estruturas lingüísticas
presentes no artigo científico e no diálogo falado. Podemos dizer que estudar a divulgação
infantil demanda um estudo do artigo científico. Como nosso objetivo é compreender os
significados do pronome pessoal você no texto de divulgação infanto-juvenil, cabe-nos
investigar o papel dos pronomes tanto no texto de divulgação científica quanto no artigo
científico, a fim de traçar aproximações e distanciamentos semânticos entre os empregos dos
pronomes nestes e o artigo de divulgação infanto-juvenil.
Costuma-se dizer que o artigo científico deve evitar o uso de formas pessoais do
pronome e ater-se ao uso da terceira pessoa do singular em voz ativa ou voz passiva. Tal
norma é justificada pelo fato de que o cientista deve apresentar os fatos por si mesmos,
evitando demonstrar a manipulação subjetiva dos dados. Como a ciência deve comprovar que
os fenômenos existem ou ocorrem de uma determinada forma, o cientista deve se ‘ausentar’
do texto e mostrar que o fenômeno ocorreria sem sua manipulação. No entanto, essa visão
parece se circunscrever ao âmbito das Ciências Exatas e Biológicas, não podendo ser
facilmente aplicada às áreas das Ciências Humanas. Nesta última área, são encontrados,
freqüentemente, usos dos pronome “nós”, primeira pessoa do singular.
1829
Perrota (2004) faz uma abordagem detalhada acerca do emprego dos pronomes no
texto científico.A autora parte de Bakhtin, para quem, mesmo a escolha de formas impessoais,
neutras, já indica uma escolha subjetiva do cientista.
O uso da terceira pessoa, segundo ela, atém-se aos textos técnicos em que o autor
pressupõe a concordância de seus pares, ou seja, em textos que possuem uma certa tradição de
pesquisa em um dado tema. Assim, a objetividade não peca pela falta de expressividade, pois
o autor visa unicamente rever procedimentos de análise, recriar variáveis ou modificar a
análise dos dados.
A autora indica que, em alguns casos, o uso da primeira pessoa do singular pode ser
empregado, em especial na introdução do artigo científico, se este comportar o percurso
pessoal do pesquisador. Em geral, essa forma deve ser evitada, uma vez que o artigo científico
geralmente é desenvolvimento com outros autores e, no caso do trabalho de conclusão de
curso, inclui a pessoa do orientador. A autora conclui que o uso dos pronomes pessoais deve
ser utilizado com cuidado, uma vez que formas coloquiais podem vir a prejudicar o intuito do
trabalho. O uso da primeira pessoa pode resvalar para afirmações de senso comum, não
condizentes com o trabalho científico. No texto científico, em síntese, utiliza-se, sobretudo, as
formas de terceira pessoa e de primeira pessoa do plural.
A reflexão de Perrota não se opõe às tradicionais normas de uso dos pronomes
pessoais em textos científicos, mas suas afirmações inovam ao apresentar uma justificativa
enunciativa para o uso de determinadas formas. O uso da terceira pessoa é descrito por ela
antes como uma forma de apresentar uma continuidade de raciocínio entre vários autores
dentro de uma área de conhecimento do que propriamente como uma forma de
“neutralidade”, termo tão criticado pelos estudiosos da Lingüística Textual. Enfim, a terceira
pessoa, ainda que diferente, tem uma função na construção do discurso tanto quanto as
demais.
4. O artigo de divulgação científica e o uso dos pronomes pessoais
Authier-Revuz (2001) aborda o tema da divulgação científica sob a perspectiva da
Teoria da Enunciação de Émile Benveniste. Ela parte de um corpus de textos jornalísticos de
dois revistas de divulgação de ciências biológicas e um suplemento de ciências de jornal. A
autora afirma que a divulgação científica visa a comunicar as descobertas dos cientistas ao
público leigo, através de uma mediação, cujo funcionamento lingüístico ela descreve.
A autora mostra que o discurso de divulgação distingue-se do discurso pedagógico e
do discurso científico no nível do quadro da enunciação. Lembremos que o quadro da
enunciação é composto pelas instâncias do eu-tu-este-aqui-agora. Diferentemente dos outros
dois gêneros, o discurso de divulgação explicita as marcas de reformulação do dizer. Assim, o
discurso de divulgação apresenta uma dupla estrutura enunciativa composta dos
interlocutores e os quadros de enunciação do artigo científico e o dos interlocutores e do
quadro de enunciação do artigo de divulgação (AUTHIER- REVUZ, 2001, p.110). No artigo
científico, há um único quadro enunciativo, em que as marcas de enunciação estão implícitas.
De cientista a cientista, o conhecimento científico é apresentado diretamente por meio do
“tema”, do “ele”.
A autora exemplifica a dupla característica do discurso de divulgação através da
presença constante dos elementos do quadro enunciativo no mesmo. Assim, segundo AuthierRevuz (2001, p. 111) os elementos enunciativos como pessoas, datas, lugares, modalidades,
circunstâncias, estão presentes de maneira insistente nos textos. Para dar um exemplo, o
discurso de divulgação apresenta as pessoas da ciência “comunicando” os fato científico e não
apenas ao fato científico em si. Além disso, em muitos discursos, aparecem as marcas de
tempo dessa “comunicação”. Exemplo: “Por volta de 1965, dois pesquisadores americanos, o
1830
eletrofisiologista G. Shepherd e o citologista T. Reese (...) chegaram a uma conclusão
inesperada (...)” (AUTHIER-REVUZ, 2001, p. 111-112). No exemplo, observamos que o fato
científico, elidido, é precedido por seus protagonistas e por sua temporalidade.
Cabe agora uma pergunta: se o discurso de divulgação realiza-se sobre uma dupla
estrutura de enunciação, sobre o discurso científico, haveria uma duplicação do papel da
terceira pessoa nesse discurso?
O trabalho de Authier-Revuz mostra que há no discurso de divulgação a presença dos
interlocutores da comunicação científica, seja através da figura do cientista, como no exemplo
acima, seja através da figura do jornalista, como no exemplo a seguir: “As neurociências são
difíceis, nós não podemos dissimular o fato de imediato, entretanto, nós cremos que é nosso
dever informar sobre esse tema...” (p. 114). Tal organização do discurso de divulgação mostra
que a mediação realizada entre o cientista e o público tem o efeito de um diálogo interno.
Com isso, podemos concluir que o discurso de divulgação científica, ao desdobrar o “ele”, a
não-pessoa, em dois, a saber, “o cientista” e o “saber”, o “jornalista” e a “transmissão do
saber” produz o mesmo efeito do diálogo estabelecido entre “eu” e “tu”, pessoas do discurso,
no discurso “pessoal”: o de uma forma de pessoalização do discurso científico. Podemos
dizer que o “ele” no discurso de divulgação científica é um “ele” “animado”, “presentificado”.
Diferentemente, o “ele” do discurso científico, puro “saber”, é um “ele” ausente. Esse “ele”
do discurso científico é muitas vezes materializado pela partícula “-se” apassivadora junto ao
verbo em um “conclui-se que..”. Em contrapartida, o “ele” do discurso de divulgação aparece,
em grande parte, na estrutura: “o cientista afirmou”, “nós cremos que...”3.
Podemos, a partir das considerações acima, concluir que o sistema pronominal que
distingue os planos enunciativos do discurso científico e do discurso de divulgação apresenta
a seguinte configuração:
- o discurso científico, que exclui formas pessoais como eu, tu e compreende a forma
impessoal de ele (“se” apassivador);
- o discurso de divulgação científica, que inclui as formas pessoais de eu, tu, ele e
exclui a forma impessoal de ele (“se” apassivador).
Como vimos na análise de Benveniste (1988), a distinção entre a enunciação histórica
e a enunciação de discurso realiza-se pela duplicação de formas para uma mesma função, o
passado. Assim, nesse caso, como vimos, a distinção de planos de enunciação realiza-se entre
o aoristo da enunciação histórica, a forma Il courut, e o aoristo da enunciação de discurso,
a forma do perfeito Il a couru. Da mesma forma, a distinção entre os planos da enunciação
científica e da enunciação de divulgação científica ocorre, respectivamente, entre o ele
impessoal, oposto ao par eu/tu, e o ele pessoal, oposto ao ele impessoal.
5. Metodologia
Objetiva-se coletar todos os textos publicados na versão eletrônica da Revista durante
o ano de 2006. Essa revista apresenta textos de divulgação de várias áreas do conhecimento.
Assim, 41 textos de divulgação científica para crianças publicados em 12 meses (de janeiro a
dezembro
de
2006)
na
revista
Ciência
Hoje
para
Crianças
(http://cienciahoje.uol.com.br/controlPanel/materia/view/418) foram selecionados.
3
Reconhecemos a complexidade estrutural do artigo científico. É claro que na seção “conclusões”, o cientista
apresenta seu posicionamento pessoal utilizando “nós concluímos que...”. No entanto, nas demais seções, o
cientista procura apresentar o conhecimento como surgido diretamente dos dados da metodologia ou de uma
reflexão teórica. Assim, a estrutura de um “ele” ausente é mais característica do artigo científico do que a
estrutura do “ele” duplificado, “presentificado”. Em contrapartida, a estrutura do “ele” duplificado parece
percorrer todo o texto de divulgação científica.
1831
Destes 41 textos, 36 são escritos por jornalistas, professores e pesquisadores de
diversas áreas do conhecimento4, 5 são redigidos por estudantes entre 8 e 12 anos de idade.
Todos os 41 textos foram redigidos por autores diferentes entre si.
Desses 41 textos, 31 apresentam de uma a cinco5 ocorrências do pronome você,
perfazendo um percentual de 75,61% do total de textos, confirmando nossas expectativas de
uma alta incidência de formas do pronome você nos textos de divulgação científica infantojuvenil. Nove textos apresentaram, por sua vez, outras formas pessoais de apresentação da
ciência: uso do pronome nós (3 textos); uso da forma imperativa ( 5 textos) e uso de pronome
nós associado a formas de imperativo (1 texto). Dentre esses nove, um texto apresentou a
forma verbal com o pronome você elíptico. Somente um único texto não apresentou qualquer
forma de pessoalização do conhecimento, ou seja, uso dos pronomes e formas verbais
conjugadas em primeira e segunda pessoa ou o uso do imperativo. Tal resultado nos conduz a
um grau quase categórico (40/41 ou 97,56 %) de pessoalização do discurso de divulgação
científica infanto-juvenil, tal como supomos na divisão do sistema pronominal segundo o tipo
de enunciação científica.
Procederemos, a seguir, a classificação semântica do verbo que acompanha o
pronome você, de acordo com Neves (2000, p.25 -52)6. Tomaremos o número total de
ocorrências nos 31 textos, a saber, 68 empregos.
Neves (2000, p. 25) divide os verbos em três grandes grupos: dinâmicos, de processo e
não-dinâmicos (ou de estado). Os verbos dinâmicos exprimem uma ação ou atividade e
incidem sua ação sobre objetos; os verbos de processo exprimem uma ação ou atividade que
incide sobre os sujeitos e os verbos de estado indicam a existência, não comportando uma
ação sobre o sujeito ou sobre o objeto. Tomamos como hipótese que há uma maior incidência
de verbos dinâmicos no texto científico, tendo em vista que este, em geral, apresenta e
descreve fenômenos ou acontecimentos a partir objetos de estudo.
Dentre os verbos dinâmicos, a autora os subclassifica de acordo com a transitividade
verbal em: a) verbos com modificação no objeto (exemplo: construir, fazer, quebrar); b)
verbos factitivos (de atitude sentimental, como por exemplo, lamentar, admirar-se, ter a
percepção de, e epistêmicos, como saber, descobrir, observar); c) verbos de elocução (como
dizer, cochichar, afirmar); d) verbos causativos (fazer com que, provocar, causar), e) verbos
modais (poder, dever). Assim, serão agrupadas as 68 ocorrências nesses cinco tipos de
verbos.
Tal classificação justifica-se pela natureza do texto científico. Segundo Zamboni
(2005, p. 177), a popularização da ciência apresenta uma assimetria entre autor e público, em
que este último assume a posição de quem não sabe. Segundo Giering (2006, apud Charolles,
2005), o discurso de divulgação científica tem a função de cativar e emocionar,
diferentemente do discurso científico que tem a função de demonstrar uma ‘verdade’. Dadas
essas características, espera-se a incidência de verbos que, como uma forma de sinalização,
introduzam explicitamente o conhecimento – como os factitivos epistêmicos. A criança é
tomada como o ser que não sabe, que não detém saber científico. Acreditamos que,
igualmente, haja alta incidência de verbos que denotem emotividade - como os factivos de
atitude sentimental. Esperamos uma alta incidência desses dois tipos de verbos em
comparação aos verbos de modificação no objeto e aos verbos causativos. Esses dois últimos
4
As áreas de conhecimento dos textos do corpus são as seguintes, em ordem decrescente de quantidade:
Biologia (17), Física (9), Orientação profissional (5), Geografia (4), Educação Física (1), Química (1), História
(1), Artesanato (1), Culinária/Cultura (1), Tecnologia (1).
5
11 textos com 1 ocorrência do pronome você, 9 textos com 2 ocorrências, 7 textos com 3 ocorrências, 2 textos
com 4 ocorrências, 2 textos com 5 ocorrências.
6
Maria Helena de Moura Neves (2000) baseia sua classificação na lingüística funcionalista. Seus dados são
oriundos do corpus do Centro de Estudos Lexicográficos da UNESP, que conta com textos escritos de literatura
romanesca, técnica, oratória, jornalística, dramática.
1832
indicam, respectivamente, uma ação diretamente realizada pelo sujeito e uma ação provocada
indiretamente pelo sujeito.
O artigo científico, em geral, apresenta os fenômenos ou acontecimentos de uma
maneira impessoal, sem referência aos cientistas no corpo do trabalho. Os fatos científicos
são apresentados sem as marcas de quem os produz: os sujeitos frasais de artigos científicos
dificilmente são “os cientistas”, “nós”, a não ser diante de verbos de operação mental como
investigar, concluir, ter como resultado. Ainda que o artigo de divulgação seja um gênero
distinto do artigo científico, ele lhe é complementar, pois escrito, muitas vezes, pelas mesmos
autores e seguindo, de certa forma, uma dada tradição de escrita científica. Espera-se que o
artigo de divulgação científica não apresente os sujeitos frasais por meio de indivíduos
produtores de saber, mas como receptores desse saber. Em outras palavras: como o artigo de
divulgação científica infanto-juvenil apresentou alta incidência do pronome você na posição
de sujeito, espera-se que esse sujeito, fazendo referência à criança, não seja acompanhado de
um verbo de ação de fato científico e sim de verbo de saber.
Em outras palavras, tomamos como hipótese uma alta incidência de verbos
epistêmicos com o pronome você, uma vez que a criança seria convocada pelo adulto através
do pronome você para pensar sobre os fatos científicos e não para construí-los ou modificá-los
ou mesmo provocar sua existência. A mesma hipótese pode ser aplicada às crianças dirigindose aos adultos. Pelos mesmos motivos, acreditamos que haverá baixa ou nula incidência de
verbos causativos e de modificação no objeto, pois determinado grupo de pessoas, em
especial as crianças, raramente são vistos como agentes de um fenômeno científico7.
A categoria dos verbos modais foi selecionada para corroborar a análise de AuthierRevuz acerca do discurso de divulgação. Segundo ela, como vimos, esse gênero apresenta
marcas da estrutura enunciativa, tais como a modalidade. A presença de modais no discurso
de divulgação é observada igualmente por Guimarães (2001). Para a autora, o texto de tema
científico apresenta a modalidade como uma busca de consenso de opinião. Como o discurso
de divulgação apresenta a comunicação entre cientistas e público, portanto, não-simétrica, há,
nesse caso, uma preemente necessidade de convencer o leitor. temos como hipótese que
haverá incidência de verbos modais em nosso corpus.
Em uma segunda etapa, faremos uma comparação entre os textos de autoria adulto e
os textos de autoria infantil. Cremos abordar a maior diversidade possível de posições dos
adultos, sem desiquilibrar a comparação com o nosso reduzido número de textos escritos por
crianças. Tal análise visa observar a existência de diferenças de posicionamento do sujeito
criança quanto à ciência em comparação ao posicionamento do sujeito adulto.
6. Resultados e discussão
A seguir, apresentaremos os resultados de nossa análise em duas partes: a) a
correlação entre o pronome você e tipos de verbos; b) a correlação entre os tipos verbais
acompanhando você e a autoria dos textos.
6.1 O pronome você e o tipo de verbo
Antes de realizar a análise quantitativa da relação entre o pronome você e o verbo que
o acompanha, necessitamos verificar exatamente se em todas as 68 ocorrências desse
pronome, ele atua como sujeito da frase ou se é empregado em outras posições sintáticas,
como a de objeto indireto. Acreditamos que haja alta incidência de você em posição de
7
Não estamos nos referindo a fenômenos e objetos culturais produzidos por determinados povos ou grupos
sociais e sim à posição de aprendiz em que as crianças da cultura ocidental são colocadas.
1833
sujeito, garantindo uma posição de agentividade, ainda que essa posição seja a de
agentividade de saber e não a de produzir ciência por suas próprias mãos.
Posição sintática
Quantidade
Percentagem
Sujeito
Objeto indireto
65 ocorrências
3 ocorrências
95,59%
4,41%
Tabela 1 – A posição sintática do pronome você
A alta incidência do pronome você em posição de sujeito confirma nossa hipótese de
que à criança é dada uma certa agentividade. Consideraremos, para fins de análise, o verbo
mais próximo ao você em posição de objeto indireto como aquele que determina,
sobremaneira, seu sentido.
Abaixo, mostramos uma tabela composta pela distribuição de emprego do pronome você
em relação à classificação dos verbos que o acompanham.
Sentido verbal
Dinâmicos
De Processo
Não-dinâmicos
64 ocorrências
2 ocorrências
2 ocorrências
Quantidade
94,12%
2, 94%
2,94%
Percentagem
Tabela 2- Distribuição de emprego do pronome você quanto ao sentido de verbos
A aplicação quase categórica do pronome você com verbos dinâmicos corrobora, em
certa medida, nossa hipótese de que o texto científico em geral, seja o artigo científico, seja o
artigo de divulgação científica, apresenta a descrição de fenômenos e acontecimentos. Por
outro lado, a alta incidência poderia conter tanto ações diretamente praticadas pela criança,
sujeito referido pelo você quanto ações que são dadas ao conhecimento das crianças.
Abaixo, apresentamos uma tabela contendo a distribuição de emprego do pronome
você em relação à classificação semântica dos verbos dinâmicos que o acompanham. O
número total, como vimos, é de 64 ocorrências.
Sentido verbal
Número de
ocorrências
Percentagem
Epistêmico
Sentimental
Modal
36
Modificação
no objeto
9
Elocução
Causativo
8
8
3
Nenhum
56,25%
14,06%
12,5%
12,5%
4,68%
0%
Tabela 3 - Distribuição de emprego do pronome você quanto ao sentido de verbos dinâmicos
Nossa hipótese de que os verbos factitivos epistêmicos seriam os que mais
acompanharam o pronome você foi confirmada. Dentre os verbos encontrados, podemos citar
os seguintes: saber, imaginar, lembrar, conhecer, achar, pensar. Essa variedade de verbos
epistêmicos mostra que seu uso vai além da frase estereotipada “Você sabia que...?”, tão
comumente encontrada nos títulos dos artigos de divulgação científica infanto-juvenil. Tal
variedade mostra uma clara demarcação pelos adultos do papel infanto-juvenil de aquisição
ou transmissão de saberes científicos. Essa análise será corroborada quando compararmos os
usos de você com verbos epistêmicos pelas crianças em relação aos textos produzidos por
adultos.
A relativamente alta incidência de verbos de modificação no objeto (14,06%) merece
um maior detalhamento. De suas 9 ocorrências, 3 apresentam como sujeito um pronome
1834
relativo referindo a um adulto e não o pronome você, como na frase: “Essa é a formação de
quem faz a CHC para você!” (Ciência Hoje para crianças, dezembro de 2006). Nesses três
casos, a criança não é considerada como agente de saber e sim como destinatária de um saber
produzido por outros. De fato, as 6 ocorrências restantes perfazem um total de 9,38%. As
demais ocorrências de você como sujeito de verbo de modificação no objeto situam-se nas
áreas de Culinária (1 ocorrência), Biologia (Corpo Humano) (1 ocorrência), Física (3
ocorrências) e Artesanato (1 ocorrência), áreas tradicionalmente ligadas à manipulação física
de objetos pelas crianças nas escolas brasileiras.
Acreditamos que a baixa incidência de verbos de elocução se deve à sua proximidade
semântica com os verbos epistêmicos. Ambos os tipos cumprem no texto de divulgação a
função de provocar a criança a procurar saber. Os verbos de elocução de nosso corpus não
apresentam uma real função de dar voz a um locutor determinado, a um pesquisador, como
ocorre nos artigos científicos. Sua função é propor um diálogo com o saber. Vejamos: “Se
você respondeu “não” à pergunta do título [Você pratica esportes?], saiba que é bom
começar,” (Revista Ciência Hoje para crianças, junho – 2006); “você diria que existe ciência
no funcionamento de um simples apito?” (Revista Ciência Hoje para crianças – junho- 2006);
“Você já ouviu falar de São Tomé e Príncipe? (Revista Ciência Hoje para crianças – maio 2006). Assim, “você sabia que...?” (verbo epistêmico) e “você ouviu falar em....” (verbo de
elocução) têm função semântica semelhante. Reagrupados os dados, teríamos 39 ocorrências
de verbos epistêmicos-elocutivos, totalizando 61% das ocorrências.
Os verbos modais indicam uma atitude de abrandamento ou reforço em relação a
outros verbos. São, por isso, considerados verbos auxiliares. Em nosso corpus, as oito
ocorrências de verbos modais associaram aos seguintes verbos: modificação no objeto (sete
ocorrências) e verbo de elocução (1 ocorrência). Nas sete ocorrências de verbos com
modificação no objeto, houve o uso do verbo poder. Na ocorrência do verbo de elocução,
houve o uso do verbo dever, com sentido de ‘hipótese, dúvida’ e não com o sentido de
‘obrigação’. Vejamos: “você deve estar se perguntando: por que, afinal, a neve se acumulou
em cima do vulcão?” (Revista Ciência Hoje para crianças, maio - 2006). Neste caso, o verbo
de elocução assemelha-se ao sentido de verbo epistêmico. No caso dos verbos com
modificação no objeto, as sete ocorrências de poder
abrandaram uma possível
obrigatoriedade de ação por parte das crianças. Outra interpretação possível para o uso de
poder é a de uma leve provocação à ação.
Os verbos de atitude sentimental encontrados em nosso corpus foram: adorar,
surpreender, gostar, intrigar (em sua forma de particípio passado na frase : “deixar você
intrigado”). Observamos que alguns dos verbos de atitude sentimental são aqueles
relacionados semanticamente ao campo científico como intrigar e surpreender. Uma das oito
ocorrências de verbo de atitude sentimental ocorreu combinada com verbo epistêmico: “Se
você gosta de observar o céu....” (Revista Ciência Hoje para crianças, agosto - 2006), fato
que corrobora a aproximação semântica entre os verbos de atitude sentimental e os verbos
epistêmicos. Assim, os verbos de atitude sentimental cumprem nos textos de divulgação
científica um papel de estimular as crianças ao saber e não um estímulo a sensações.
De acordo com nossa intuição inicial, não encontramos nenhuma ocorrência de verbos
causativos. Como os verbos causativos são verbos de ação indireta, os textos de divulgação
científica, preocupados em alguns momentos em colocar a criança diretamente em contato
com o fazer científico, apresentam baixa probabilidade de ação indireta.
Após a discussão, chegamos a uma nova redistribuição dos dados. Essa redistribuição
opõe os verbos epistêmicos – e outros semelhantes - aos verbos de modificação no objeto – e
outros semelhantes, conforme discussão realizada acima. Chamaremos, a título de
comparação, os primeiros de verbos de saber e os segundos de verbos de fazer. Serão
considerados 57 ocorrências de você, excluindo-se sete ocorrências de verbos sentimentais.
1835
Verbos de saber
Verbos de fazer
41 ocorrências
16 ocorrências
Quantidade
71,93 %
28,07 %
Percentagem
Tabela 4 – Distribuição de emprego de você em relação ao tipo de verbo
Observamos que a quantidade de verbos de fazer aumentou, mas que a proporção
entre verbos de saber/verbos de fazer não diminui. A proporção expressa na tabela 3 era de
0,25 (14,06/56,25) e essa diferença evoluiu para 0,39 (28,07/71,93). A redistribuição dos
dados confirma a alta incidência de verbos de saber em textos de divulgação científica
infanto-juvenil.
6.2 Resultados e discussão: contraste entre autorias de textos de divulgação
Nosso corpus apresenta 5 textos de autoria infantil e 36 textos de autoria adulta.
Como a amostra de dados de textos de autoria infantil é muito inferior à de textos de autoria
adulta, procederemos inicialmente a uma comparação entre a proporção de verbos de fazer e
de verbos de dizer para cada tipo de autoria a fim de, em seguida, utilizar essa proporção, e
não os números absolutos, para comparar com a proporção do outro tipo de texto.
Nosso objetivo é avaliar a posição do sujeito criança que o texto de autoria adulta e o
texto de autoria infantil produzem. Acreditamos que o texto de autoria adulta produza uma
posição de sujeito criança, através do uso de você, que está em processo de aprendizagem, de
aquisição de conhecimento. Em contrapartida, supomos que o texto de autoria infantil
produza uma posição de sujeito criança que está compartilhando informações ou experiências.
Nossa hipótese é de que a criança apresenta-se mais como sujeito do fazer científico
do que o adulto a coloca. Assim, supomos que a presença de verbos de fazer em textos de
autoria infantil seja superior, proporcionalmente, à presença desse verbo nos textos de autoria
adulta. Em contrapartida, de maneira oposta e complementar, nossa intuição é a de que o
adulto apresenta o saber científico como uma transmissão de conhecimentos produzidos fora
da instância de criação infantil. Dessa forma, nossa hipótese é a de que haja maior incidência
de verbos de saber nos textos de autoria adulta, proporcionalmente, aos textos de autoria
infantil.
Autoria infantil
Verbos de fazer
Verbos de saber
4
ocorrências
4 ocorrências
Quantidade
50%
50%
Percentagem
Tabela 5 – Distribuição de uso do pronome você em textos de autoria infantil
As duas ocorrências que não foram computadas referem-se a verbos de processo,
classificação não incluída na oposição verbos de fazer e verbos de dizer que, como dissemos,
faz parte dos verbos dinâmicos. As duas ocorrências são dos verbos sofrer e receber. Tais
ações, ainda que passivas, indicam que a criança participou de uma experiência. Dessa forma,
poderíamos dizer que a indicação de um fazer (seja ativo, seja passivo) perfaz um total de 6
ocorrências, totalizando 60% das ocorrências dos textos de autoria infantil.
Autoria infantil
Verbos de fazer
Verbos de saber
6 ocorrências
4 ocorrências
Quantidade
60%
40%
Percentagem
Tabela 6- Redistribuição de uso do pronome você em textos de autoria infantil
1836
É notório observar que o texto de autoria infantil não apresenta nenhuma ocorrência
com a frase “Você sabia que...?”, típica de uma apresentação de transmissão de
conhecimentos produzidos fora da instância de atuação infantil.
Abaixo, os resultados para os textos de autoria adulta.
Autoria adulta
Verbos de fazer
Verbos de saber
13 ocorrências
32 ocorrências
Quantidade
28,9%
71,1%
Percentagem
Tabela 7 - Distribuição de uso do pronome você em textos de autoria adulta
Observamos uma alta incidência de verbos de saber em textos de autoria adulta. Das
32 ocorrências de verbos de saber, 16 (50% sobre o total de verbo de saber e 35, 56% sobre o
total de ocorrências em textos de autoria adulta) realizaram-se com o verbo epistêmico típico
saber. Além disso, observamos uma ocorrência de frase com sentido explícito de
“transmissão de saber” nos textos de autoria adulta: “Procuramos a melhor forma de
transmitir a informação para você” (Ciência Hoje para Crianças, dezembro – 2006).
Reorganizando as duas tabelas anteriores, podemos observar a relação entre os textos
de autoria adulta e infantil.
Verbos de fazer
Verbos de saber
28,9%
71,1%
Autoria adulta
60%
40%
Autoria infantil
Tabela 8- Comparação entre textos de autoria adulta e infantil quanto ao tipo de verbo
Como vemos, corroboramos nossa hipótese de que os verbos de fazer (passivo ou
ativo) apareceria, proporcionalmente, em maior quantidade nos textos de autoria infantil do
que nos textos de autoria adulta. A criança atribui, assim, ao você, isto é, outra criança a
função de vivenciar ou experimentar o conhecimento científico. Observamos ainda que os
verbos de saber aparecem em quantidade superior nos textos de autoria adulta. Como 22 de
36 textos de autoria adulta são assinados por cientistas profissionais, parece que eles
atribuem a si mesmos o papel de transmitir o conhecimento para a criança, conhecimento que
eles supõem deter.
7. Considerações finais: questionamentos ao gênero de divulgação
A pessoalização do discurso de divulgação científica foi facilmente constatada pela
presença quase categórica do pronome você em quase todos os textos do corpus. Tal
pessoalização cumpriu o papel de propor um diálogo, um apelo para uma aproximação entre o
universo da ciência, dominado pelo adulto, e o universo da criança. A pessoalização do
discurso através do pronome você apresentou várias estratégias dentre as quais se destacaram
a alta incidência de verbos epistêmicos ou de saber, em que a frase Você sabia que... ? é uma
de suas manifestações típicas. Ora, se o pronome você no discurso de divulgação cumpre uma
função de pessoalizar o discurso da Ciência, de dialogar, de conversar com a criança sobre os
fatos do mundo, não estaria o verbo saber, dado seu caráter de transmissão de saberes,
interrompendo esse diálogo? Haveria aí uma real pessoalização ou um efeito de
pessoalização? Não seriam necessário agregar o discurso da criança ao texto para realmente
propor um ‘diálogo’ entre eu e tu? Que discurso seria esse? Parece-nos, então, que as formas
lingüísticas de dizer a ciência são bem conhecidas e exploradas no texto de divulgação
1837
científica. No entanto, as formas de dizer da criança merecem uma atenção maior dos
professores, jornalistas e cientistas-divulgadores. Tais formas são ainda uma terra incógnita8.
As diferenças de posicionamento entre os textos de autoria adulta e autoria infantil
aponta para uma necessidade de modificação da escrita dos textos de discurso de divulgação
por adultos para o público infanto-juvenil. A criança demonstra a importância de vivenciar ou
praticar a ciência, fato comprovado pela incidência de verbos de fazer em seu discurso
dirigido a você, isto é, a outra criança. Além disso, essa constatação mostra uma necessidade
de reflexão pedagógica por parte dos professores: estariam eles oportunizando a vivência
necessária dos fatos científicos ao aprendizado de seus alunos?
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2001.
8
Fazemos referência ao título do interessante livro organizado por Massarani, Turney e Moreira (2005): Terra
incógnita: a interface entre ciência e público.
1838
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