2. Ensino da escrita e ensino da gramática

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2. Ensino da escrita e ensino da gramática
A ideia de que a aprendizagem da gramática tem efeitos positivos no
desenvolvimento da competência de escrita comporta uma série de controvérsias. Com a
finalidade de introduzir a discussão em torno desta matéria, este capítulo aborda
questões de ensino da escrita e de ensino da gramática. Na primeira secção, faz-se
referência a alguns modelos que procuram representar e explicar o processo de escrita,
tendo em vista a explicitação do impacto destas propostas teóricas na didáctica da
língua materna. Destacam-se, ainda, o modo como estes modelos concebem o
conhecimento linguístico implicado no processo de escrita e algumas abordagens de
investigação cujo foco é o conhecimento de língua requerido em situações de escrita.
Na secção 2.2., descrevem-se perspectivas curriculares de ensino da gramática,
os seus efeitos no ensino da escrita e os objectivos instrumentais que correspondem a
cada um destes modos de construir conhecimento sobre língua. Partindo da anterior
reflexão sobre ensino da escrita e ensino da gramática, aprofunda-se a discussão em
torno das eventuais relações entre aprendizagem da gramática e aprendizagem da
escrita, o que culminará, na secção 2.3., com a apresentação do problema geral do
presente trabalho de investigação: poder-se-á estabelecer uma relação entre
conhecimento explícito da língua e desenvolvimento da competência de escrita?
2.1. Ensino da escrita e investigação sobre escrita
O ensino da escrita não se circunscreve ao momento inicial da sua
aprendizagem, correspondente ao domínio de uma técnica e à mecanização de
procedimentos típicos da fase inicial de escolarização, que tem início no pré-escolar e
nos primeiros anos do primeiro ciclo (Martins e Niza: 1998). O desenvolvimento desta
competência, que depende de aprendizagens formais e que deve ser entendido como um
processo que visa o uso multifuncional da escrita, acompanha a escolaridade básica, o
ensino secundário e pode alcançar níveis superiores de mestria ao longo da vida
académica e profissional, com o domínio de estilos de «escrita académica» (Menyuk e
Brisk: 2005, e.o.). Sendo a escrita objecto e veículo de aprendizagens que acompanham
o longo período da vida escolar, importa determinar como se processa o seu ensino, para
6
melhor compreender o perfil das aprendizagens dos jovens escritores1 à saída da
escolaridade básica e secundária.
2.1.1. Práticas de ensino da escrita
Nas escolas, convivem professores de Língua Portuguesa e de Português
pertencentes a diferentes gerações e com formações científicas e pedagógicas
plurifacetadas, sendo tarefa quase inglória a caracterização de modelos predominantes
de didáctica da escrita. Apesar desta diversidade, os documentos orientadores, pelo
menos nos últimos vinte anos, tendem a reflectir visões teoricamente fundamentadas,
que sintetizam aspectos consensuais da investigação em escrita. Como consequência da
falta de coincidência entre práticas de leccionação e programas oficiais, o ensino da
escrita, uma das cinco competências do currículo de língua materna, corresponde a uma
realidade plural e nem sempre nítida quanto à consciência sobre modelos e estratégias
adoptados por parte dos professores.
A investigação em torno de concepções e práticas de ensino da escrita reflecte
uma realidade muito heterogénea, que engloba (i) insatisfação com a prática pedagógica
e alguma incapacidade em enfrentar novos desafios didácticos, alguns lançados pelos
próprios documentos orientadores (Pereira: 2000), (ii) uniformização nas solicitações de
géneros de e de tarefas de escrita (Albuquerque: 1992 apud Pereira: 2000; González:
2005; Lobo (coord.): 2001; 2002) e (iii) subordinação da escrita como meio de
desenvolvimento de outras competências (Lobo: idem). Os excertos que se apresentam
em seguida, de entrevistas a professores a propósito das suas concepções sobre a prática
de ensino da escrita, ilustram facetas de uma realidade plural.
No primeiro caso, percebe-se a insatisfação com a prática e, simultaneamente, a
incapacidade de experimentar outras abordagens (de avaliação) da escrita, algumas
propostas nos programas curriculares em vigor.
1
A utilização do termo «escritores» poderá ser entendida como uma impropriedade lexical. A opção por
este termo explica-se pelo facto de esta dissertação ter como objecto de reflexão o que é comum aos
sujeitos quando mobilizam a competência de escrita, enquanto processo cognitivo e linguístico. Contudo,
efectivamente, a única acepção da palavra «escritor», em diferentes dicionários, é coincidente com a
definição que se transcreve do Dicionário da Academia (2001): «Pessoa que escreve obras literárias ou
científicas.» Como faz notar Barbeiro (2002, 101-103), na literatura da especialidade, o uso genérico de
«escritor» não é consensual, sendo preferido o recurso a outras designações, como «escrevente» (termo
que designa aquele «que escreve», segundo o mesmo dicionário) ou «escrevedor». Vários autores de
obras em didáctica da língua optam por referir os aprendentes de escrita apenas como «alunos» (Amor:
1993; Barbeiro: 1999; 2004) ou «crianças» (Martins e Niza: 1998).
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- como é que vê a questão da avaliação e das correcções dos textos escritos?,
[suspiros… hesitações] problema terrível, mas diga lá.
- Ora bem (…) é quase uma impressão, não é? E ao lado toma-se nota em que é que o
aluno falhou mais… pronto… e depois aquilo tem que se transformar em número: ou
está abaixo da média, ou está na média, ou está acima da média e pronto… mas nada…
Agora os textos que mando escrever em casa e depois não posso ver individualmente,
eu só posso ter um critério – fez um, fez dois, quantidade, não há questões de
qualidade” [fala pausada em alguém que falou sempre sem hesitações e até de modo
acelerado].
Pereira (2000, 137-138)
Nos seguintes excertos de entrevistas a professores, reconhecem-se, primeiro, a
subordinação da escrita às tradicionais aulas centradas na leitura e, depois,
exemplifica-se a indiferenciação metodológica das práticas de escrita em sala de aula.
Preenchem sempre um questionário, não é aquela produção livre de texto mas escrevem
sempre qualquer coisa. (2ºCEB)
… um bocadinho de prática de escrever as perguntas e responder correctamente, um
bocadinho não, bastante. Pelo menos eu treino bastante, treinar a resposta correcta,
escrita, não valorizar a resposta oral apenas. (2ºCEB)
Mas eu tento arranjar em todas as aulas um tempinho de minutos, não há tempo para
mais, para que eles escrevam alguma coisa criativa ou não, porque acho que é
importante eles saírem do 9º ano com alguma sensibilidade nesse sentido. (3ºCEB)
Lobo (coord.) (2001; 2002)
Crucialmente, importa ter consciência de que a investigação existente
relativamente a práticas de ensino da escrita, de carácter mais descritivo do que
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quantitativo, não disponibiliza dados que permitam tipificar tendências. Os poucos
dados existentes permitem, contudo, afirmar que a realidade é não só plural, mas
também detentora de tendências contraditórias. A par dos exemplos anteriores,
reconhecem-se dois outros modos de agir, provavelmente os mais antagónicos. O
primeiro é protagonizado por todos os professores que, nos últimos anos, se têm
envolvido no processo de actualização científica e didáctica promovido por programas
oficiais, como o Programa Nacional de Ensino do Português (PNEP), o projecto de
implementação dos novos Programas de Português do Ensino Básico (DGIDC: 2009) e
ainda por projectos de investigação-acção que aliam às opções didácticas a reflexão
teoricamente sustentada, como foi o caso do Projecto «Littera - Escrita, Reescrita,
Avaliação» (Amor: 2004) ou do Projecto «Investigação e Ensino da Língua Portuguesa
(IELP)» (Rodrigues e Silvano: 2009). De um modo geral, os investigadores e os
professores do ensino básico e secundário envolvidos nestes espaços de formação e
investigação têm promovido práticas de ensino da escrita fundamentadas que continuam
a ser vistas como inovadoras em contexto de sala de aula. De igual modo, de
publicações como Barbeiro e Pereira (2007) e Segura e Niza (2010), pode afirmar-se,
com alguma segurança, que têm sido motor de actualização de estratégias em sala de
aula, através da formação contínua de professores.
Porém, também é seguro que esta actualização de práticas coexiste, de forma
nem sempre pacífica, com visões absolutamente tradicionais do que é ensinar a
escrever. Embora redigida no pretérito, a seguinte afirmação, de Pereira (2002, 9) ilustra
modos de ensinar a escrever que, ainda que sejam residuais, persistem actualmente nas
escolas: «A acção didáctica era, pois, tradicionalmente comandada quer por uma
enorme indiferenciação textual e uma progressão linear que se traduzia em saltar de
texto para texto ao sabor de temas ou ao sabor dos manuais, quer por um método
transmissivo formal e de textos fabricados ad hoc e sem modelo, quer ainda pela
adopção de uma correcção meramente normativa.»
Este modo de agir no ensino da escrita corresponde a crenças tradicionalistas
sobre o que importa ensinar, o que é relevante para a avaliação dos textos e como
funciona a escrita enquanto processo mental e linguístico.
De um ponto de vista tradicional, o processo de escrita é um processo de
composição linear, que integra três fases subsequentes: a planificação, a escrita e a
revisão. Todo o processo é secundarizado pela importância atribuída ao produto final, o
9
texto escrito. Não sendo convocados conhecimentos sobre propriedades específicas dos
protótipos textuais, a composição tradicional é regida por concepções simplistas sobre o
modo como a informação se organiza no texto. Por exemplo, corresponde a uma crença
tradicional a instrução dada aos alunos para que escrevam frases curtas com ordem
directa. Ora, em primeiro lugar, a manipulação de mecanismos de complexificação
sintáctica, que se traduzem em períodos mais longos, é um indício de proficiência
sintáctica e de escrita; por outro lado, dificilmente um texto terá uma estrutura
informacional adequada, com uma progressão da informação natural, se for composto
pela justaposição de frases com estrutura SVO. Naturalmente, em textos de carácter
expositivo e argumentativo, mas também em textos narrativos, a anteposição de
constituintes de natureza adverbial e preposicional2 é uma das estratégias para fazer
progredir a informação na estrutura textual, quer como processo de retoma de
informação, quer como introdução de um novo tópico (o tema de cada unidade textual).
Da concepção tradicional do processo de escrita, também não tomam parte
informações de natureza contextual, como (i) a tomada de consciência, por parte do
escritor, do objectivo pragmático do texto, (ii) o reconhecimento da relação entre
escritor e leitor e (iii) a conceptualização do público-alvo. Contudo, estes aspectos são
reconhecidamente parte integrante do processo de escrita, tanto em modelos cognitivos
de representação do processo (Hayes e Flower: 1980), como na investigação enquadrada
por abordagens sociais e funcionais da literacia de escrita.
A concepção tradicional de ensino da escrita corresponde, no plano da
intervenção didáctica, ao que Grabe e Kaplan (1986, 84-112) descrevem como: «Essays
were written in one draft, and errors were corrected by keying to a writing handbook,
these in turn primarily providing answers and exercises on various aspects of surface
grammar». Embora os autores descrevam este modelo como uma situação do passado,
não é difícil reconhecer, em algumas práticas de ensino, a sobrevivência deste modo de
trabalhar: as produções escritas, muitas vezes, não passam por mais do que uma fase de
rascunho e a sua correcção limita-se à verificação da ortografia e de alguma pontuação.
É, contudo, evidente que esta visão tradicionalista, se sobrevive em algumas salas de
aula, não encontra qualquer legitimação nos documentos orientadores do ensino da
Língua Portuguesa / Português em vigor nos últimos vinte anos (DGEBS: 1991a;
DGEBS: 1991b; DES: 1997; DES: 2001; 2002; DEB: 2001; DGIDC: 2009a). Em todos
2
São conectores que ocorrem nestes contextos, por exemplo, relativamente a ou em relação a.
10
estes documentos, normativos de ensino com uma secção dedicada à competência de
escrita, o paradigma teórico mais facilmente reconhecível é a concepção da «escrita
como processo», com transposição de reflexões herdadas das abordagens cognitivas do
processo de escrita, visíveis, por exemplo, na valorização do treino de procedimentos
envolvidos na planificação, na atenção à contextualização das tarefas de escrita, que
devem ser enquadradas em «projectos com sentido»3, bem como na importância
atribuída à revisão, reescrita e divulgação dos textos.
2.1.2. Modelos processuais de escrita e perfis de escritores
Em traços gerais, para caracterizar modelos de ensino da escrita centrados no
processo, Grabe e Kaplan (1986, 87) reconhecem nestes modelos algumas linhas de
orientação comuns, como a importância da contextualização da actividade de escrita,
que deve ser orientada para um fim, fazer sentido e interessar ao aprendente. Além
disso, a vertente expressiva, em oposição à anulação da voz do autor, é valorizada, a par
da criação de situações de divulgação dos escritos dos alunos, para que a noção de
público-alvo não se limite à pessoa do professor. Complementarmente, é fundamental o
trabalho de desenvolvimento da metacognição sobre os diferentes níveis envolvidos no
processo de escrita.
Sabendo que se podem estabelecer semelhanças e diferenças entre as abordagens
processuais de investigação e de ensino da escrita, importa destacar, de entre outros, o
papel que a investigação psicolinguística desempenhou na alteração de concepções da
didáctica da escrita (Carvalho: 1999). A investigação desenvolvida neste âmbito,
maioritariamente nas últimas três décadas, procurou descrever e explicar o
funcionamento dos processos mentais e linguísticos activados durante o processamento
da escrita. Os resultados desta investigação decorrem da análise de dados experimentais,
muitos obtidos através de protocolos de análise da escrita e da actividade dos escritores,
e permitiram alcançar conclusões com repercussões muito fortes no modo de conceber o
ensino da escrita. Provavelmente, o trabalho mais amplamente reconhecido é a
investigação que originou os modelos de representação do processo cognitivo (e social)
3
A este propósito, destaque-se a influência, nos novos Programas de Português (DGIDC: 2009a), da
proposta decorrente da investigação-acção de Jolibert (coord.) (1988), segundo a qual a escrita deve ser
contextualizada em projectos das turmas, recebendo um acompanhamento didáctico que atende a todas as
fases do processo.
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de escrita de Hayes e Flower (1980), a partir da qual se estabeleceu que (i) os processos
activados na composição escrita não são lineares, mas interactivos e, provavelmente,
simultâneos; (ii) a escrita é uma actividade dirigida para um fim e (iii) escritores menos
experientes e escritores experientes escrevem de forma diferente.
Na versão mais comummente divulgada do seu modelo, Hayes e Flower (1980)
defendem uma representação tripartida do processo de escrita, que engloba três
componentes principais: um processador de composição, que ocupa uma posição
central, o contexto de produção escrita e a memória a longo prazo do escritor. A figura 1
ilustra a representação mais divulgada deste modelo.
CONTEXTO DA TAREFA
PROBLEMA DE ESCRITA
Tema
TEXTO JÁ PRODUZIDO
Público-alvo
MEMÓRIA A
LONGO PRAZO DO
ESCRITOR
Conhecimento do
tema, do público-alvo,
de protótipos textuais.
PLANIFICAÇÃO
G
E
R
A
Ç
Ã
O
TEXTUALIZAÇÃO
ORGANI-
REVISÃO
AVALIAÇÃO
ZAÇÃO
EDIÇÃO
OBJECTIVOS
MONITOR
Figura 1 – Modelo de Hayes e Flower
Na componente central, o processador de composição, reconhecem-se três
processos de geração de texto escrito, a planificação, a textualização e a revisão, os
quais são controlados por um sistema de monitorização – o monitor. O processo de
planificação inclui três subcomponentes, sendo uma responsável pela geração de ideias,
outra pela organização da informação e uma terceira assegura a articulação com os
objectivos visados.
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A leitura da figura 1 não pode ser linear, dado que o modelo de Hayes e Flower
aqui representado se demarca deste tipo de concepção tradicional, na medida em que
«planificação», «textualização» e «revisão» não são fases linearmente ordenadas de um
processo, mas subprocessos que interagem, são interdependentes e eventualmente
simultâneos.
Neste modelo, ao contrário do entendimento tradicional, a escrita é concebida
como uma actividade orientada (e constrangida) por objectivos, que são definidos como
parte do contexto da tarefa. Outro aspecto inovador é o facto de se admitir que o
processo de escrita é permeável à idealização que o escritor faz dos seus leitores e das
suas expectativas. Dito de outra forma, a concepção que o escritor tem do público-alvo
influencia o processo de escrita. Finalmente, sublinha-se que, embora o modelo não seja
preditivo a este nível, os seus autores defendem a ideia de que há diferentes perfis de
escritores, tendo os escritores mais experientes uma ideia mais precisa dos objectivos de
escrita e uma concepção mais completa do problema da escrita, o que lhes permite
encontrar soluções mais eficazes para a sua resolução.
O modelo de Hayes e Flower, bem como a metodologia de protocolo de análise
usada por estes autores representaram um significativo avanço na investigação em
modelos processuais de escrita, com ampla influência no domínio do ensino. Todavia, a
produtividade da investigação neste âmbito gerou várias críticas ao modelo, quer a nível
metodológico, quer ao nível teórico. De entre estas críticas, destaca-se a fragilidade de
ter um poder explicativo limitado das diferenças entre escritores, uma vez que
representa o processo de escrita de modo uniforme, sem prever a hipótese de que
escritores mais e menos experientes lidem com problemas de escrita com estratégias
diferentes.
Outra crítica apontada ao modelo decorre da natureza vaga das especificações
sobre o funcionamento do processo de textualização. Esta proposta de Hayes e Flower,
posteriormente revista, não é esclarecedora quanto à selecção de material para a
construção de texto e quanto ao modo como restrições linguísticas agem sobre o
processo de composição.
Na versão do modelo revista, este último aspecto não parece resolvido de forma
exaustiva, mas são integradas duas inovações cruciais: o reforço do impacto do contexto
de produção no processo de escrita e a revalorização da dimensão do indivíduo, através
da integração da motivação a par dos processos cognitivos previstos no modelo inicial.
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A propósito do modelo revisto, afirma Hayes (1995, 54): «la première differénce et la
plus importante réside dans le fait que les processus cognitifs ont été intégrés aux
aspects motivation et affectivité; la deuxième est que la composante processus cognitif
du modèle original se trouve réorganisé ainsi: la révision a été remplacée par la
lecture, la planification a été integrée dans une catégorie plus générale – celle de la
résolution de problèmes – et la mise en texte a été elle-même intégrée dans un
processus encore plus général, celui de la production du langage».
A investigação em psicolinguística produziu outros modelos processuais, alguns
com contribuições relevantes para a investigação e para o ensino, mas com um
problema teórico comum ao modelo de Hayes e Flower: serem modelos essencialmente
descritivos, embora empiricamente fundamentados, pouco preditivos e pouco
operativos, pela impossibilidade de produzirem predições falsificáveis (Grabe e Kaplan:
1986, 94).
Na evolução da investigação em modelos cognitivos de escrita, destaca-se um
modelo bastante poderoso, pelo facto de enquadrar de forma coerente os resultados de
perspectivas complementares de investigação sobre escrita e pelo facto de fazer
predições, que podem ser confirmadas ou infirmadas, sobre diferenças individuais de
desempenhos de escrita. Trata-se do modelo de Scardamalia e Bereiter (1987), que
explica as diferenças entre a escrita de crianças e de escritores menos proficientes e a
escrita de escritores experientes, ultrapassando a dimensão meramente descritiva das
características gerais do processo de escrita.
De forma a esclarecer as linhas condutoras da investigação de Scardamalia e
Bereiter, Grabe e Kaplan (1986, 118) sintetizam as questões centrais da investigação
destes autores. Estas questões são enunciadas em seguida, merecendo destaque pelo que
representam da amplitude do modelo proposto, ao integrar aspectos de diversos
resultados de investigação sobre escrita.
a) De que modo um modelo processual pode distinguir escritores mais
proficientes de escritores menos proficientes?
b) De que modo as diferenças de público e de género provocam dificuldades de
escrita diferentes? Por que razão alguns géneros parecem mais difíceis de dominar e
alguns públicos parecem mais difíceis de visar?
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c) Por que razão algumas tarefas de escrita são mais difíceis do que outras (não
só em relação a género e público, mas também em relação a objectivo, tópico e variação
do registo de língua)?
d) Por que razão não há transferência das estratégias de escrita de uma tarefa ou
género para outras tarefas ou géneros?
e) Porque é que alguns escritores têm mais dificuldades do que outros em certas
de tarefas de escrita, apesar de parecer que se situam no mesmo nível geral de
proficiência?
f) Por que razão algumas crianças consideram a escrita algo fácil e natural, ao
passo que escritores experientes, frequentemente, consideram-na difícil e dolorosa?
g) Porque que é que o ensino da escrita em níveis avançados é particularmente
difícil e frequentemente ineficaz?
h) Por que razão alguns escritores parecem nunca chegar a dominar técnicas de
composição escrita «maduras», apesar de muita prática e de uma frequência de
escolaridade elevada?
i) Porque é que escritores experientes procedem à revisão dos seus textos de
forma diferente da de escritores menos experientes?
Para dar resposta à maioria destas questões, em particular às que constatam as
diferenças de perfis entre escritores mais e menos proficientes, Scardamalia e Bereiter
(1987) conceberam um mecanismo dual, que prevê que escritores mais e menos
proficientes accionem mecanismos de processamento de escrita diferentes. O modelo
proposto inclui um modelo accionado por escritores menos proficientes – o modelo de
relato de conhecimento («knowledge telling»); este modelo e outro, mais complexo – o
modelo de transformação de conhecimento («knowledge transforming») – são
accionados por escritores mais proficientes em situações diferentes, para solucionar
problemas de escrita distintos.
O modelo mais simples, que descreve a escrita de escritores aprendizes, explica
apenas a produção de alguns géneros de escrita, como o relato de experiências pessoais
ou a composição de pequenas narrativas. Este processo é ineficaz para a produção de
géneros textuais mais exigentes do ponto de vista da definição da organização da
informação (e, consequentemente, da estrutura informacional), da conceptualização do
público visado e do estabelecimento dos objectivos da escrita.
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O modelo de «knowledge telling», que, a rigor, deve ser visto como um
sub-modelo ou um dos processos do modelo de Scardamalia e Bereiter, prevê que os
escritores menos experientes, quando escrevem, usem poucas estratégias específicas:
consideram o tópico de escrita e o que sabem sobre este tópico; consideram o género
textual a utilizar e o conhecimento que detêm sobre as suas características tipológicas;
vão lendo o que escrevem e usando essa informação para gerar nova informação.
Na figura 2, encontra-se a representação deste processo.
REPRESENTAÇÃO MENTAL DA TAREFA
IDENTIFICAÇÃO
IDENTIFICAÇÃO
DE TÓPICO
DE GÉNERO
CONSTRUÇÃO DE ALVOS DE MEMÓRIA
LOCALIZAÇÃO DE CONTEÚDO (MEMÓRIA)
Falha
TESTES DE ADEQUAÇÃO
Passa
CONHECIMENTO DISCURSIVO
CONHECIMENTO DE CONTEÚDO
PROCESSO DE RELATO DE CONHECIMENTO
ESCRITA (notas, rascunho, etc)
ACTUALIZAÇÃO MENTAL
DA REPRESENTAÇÃO DO TEXTO
Figura 2 – Representação do modelo de «knowledge telling» (Scardamalia e Bereiter: 1987)
Com este modelo, Scardamalia e Bereiter conseguem explicar dados empíricos
de observação da actuação de escritores menos experientes, quando enfrentam a tarefa
de escrita. Por exemplo, ao contrário de escritores mais experientes, os menos hábeis
são menos elaborados nos procedimentos de pré-escrita, produzindo conjuntos menos
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complexos e menos abstractos de notas, o que conduz também à conclusão de que são
os escritores menos experientes os que iniciam mais depressa uma tarefa de escrita. Na
sequência desta característica e da consideração dos dados, verifica-se que estes
escritores só se preocupam com o processo de geração de conteúdo (as ideias a usar na
estruturação do texto) essencialmente já durante o processo de composição, não
havendo grande sofisticação de estratégias de selecção e hierarquização de informação.
Outros dois aspectos que se concluem da análise da actuação de escritores menos
experientes, e que são explicados pelo modelo, são o facto de os escritores menos
proficientes serem aparentemente incapazes de fazer revisões que envolvam a
reorganização da estrutura informacional do texto, agindo apenas em alterações
superficiais, de nível microestrutural, e o facto de não manifestarem a capacidade de
usar as ideias fundamentais dos seus escritos como orientações para a planificação e
para a estruturação da informação no texto. Além destes aspectos, o modelo também
explica que escritores menos proficientes recorram a caminhos menos complexos para
seleccionar as ideias que usam nos seus escritos, dado que não consideram, na
composição dos seus textos, os objectivos da escrita ou as estratégias de organização da
informação.
O modelo de «knowledge telling» é activado por escritores menos experientes e,
sendo um modelo mais simples de processamento da escrita, é bem sucedido em
situações de escrita menos complexas, como a composição de textos cuja coerência
pode ser assegurada basicamente pela ordenação cronológica de factos, o que explica
que a escrita de produtos textuais como as páginas de diário ou as narrativas
sequenciais, e outros pertencentes aos géneros do relato, sejam mais fáceis de dominar
pelos aprendentes de escrita mais jovens. Quando confrontados com situações de escrita
mais complexa, como instruções de escrita escolar que induzam protótipos
argumentativos, os escritores menos proficientes tendem a escapar para o «relato de
conhecimento», recorrendo a escritos que possam assegurar o tópico dado, mas
resultando num registo e num género que satisfazem o modelo de escrita que activam.
Esta conclusão é extremamente interessante para explicar alguns textos do trabalho
experimental que se desenvolveu (Capítulo 4).
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No texto que se segue4, por exemplo, está patente a dificuldade com que um
jovem escritor do quarto ano enfrentou a tarefa de construção de um texto de opinião,
fugindo à composição de um escrito com características predominantemente
argumentativas.
(1) Texto com fuga a protótipo argumentativo (escritor do quatro ano, com 9;9.06)
*FG4: Animais .
*FG4: Eu acho bem que [*] o texto foi bom porque estive [%spe: tive] preocupada
[%spe: preocopada] com as espécies [%spe: especies] de animais e estive [%spe: tive]
atenta .
%err: que = porque [?] $SYN .
*FG4: Foi bom porque achei engraçado [%spe:
engracado] mas tinha uma dúvida
[%spe: duvida] .
*FG4: Professora [%spe:
0,] que [*] é [%spe: e] que estava [%spe: istava] a falar?
%err: que = quem $SYN .
*FG4: Então foi a Professora Isabel que gravou e disse coisas .
*FG4: Professora [%spe:
0,] como é [*] seu nome todo ?
%err: 0 = o $SYN .
*FG4: É para eu pôr [%spe: por] na minha agenda [%spe: 0,] está [%spe: esta] bem ?
*FG4: Você [%spe: Vose] é uma pessoa boa e amiga .
*FG4: É verdade o que a Professora Isabel disse [/?] .
*FG4: Eu não gostava que fizessem [%spe: fizesem] mal ao [%spe: au] meu cão porque
eu gosto de ele [*] e não queria que ele morresse [%spe:
morese] .
%err: <de ele> = dele $MOR .
Como se pode ler neste exemplo, o jovem escritor assume o tópico dado,
manifesta incipientemente a sua opinião, ou o seu envolvimento na tarefa, e logo
encontra outra estratégia de geração de conteúdo, representando um diálogo que não
aconteceu na realidade.
4
Texto pertencente ao corpus de textos da fase de diagnóstico.
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Embora este exemplo não seja representativo da maioria das produções
recolhidas entre os alunos do quarto ano, exemplifica uma estratégia que escritores
menos hábeis accionam para enfrentar um desafio de escrita que ainda não são capazes
de dominar. A relação entre este exemplo e a proposta explicativa de Scardamalia e
Bereiter (1987) vem sublinhar a consciência de que aos insucessos de escrita de carácter
argumentativo estarão associadas razões de natureza psicolinguística, específicas do
processamento da língua escrita, que importa ter em consideração no estudo do
desenvolvimento desta competência.
As dificuldades em enfrentar certas tarefas de escrita e certos géneros textuais,
manifestadas na escrita de alguns escritores e não na escrita de outros, e o facto de, ao
contrário do que seria de esperar, serem os escritores mais proficientes os que partem
para o trabalho de escrita conscientes da sua complexidade e dificuldade são evidências
que levaram Scardamalia e Bereiter (1987) a completar o modelo, propondo um modelo
que dá resposta a tarefas mais sofisticadas de escrita - o modelo de «knowledge
transforming».
Este modelo é accionado pelos escritores mais proficientes, quando enfrentam
certas tarefas de escrita, como a composição de textos de carácter explicativo ou de
carácter argumentativo. Na figura 3, encontra-se a representação deste processo.
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REPRESENTAÇÃO MENTAL DA TAREFA
ANÁLISE DO PROBLEMA
E DEFINIÇÃO DE OBJECTIVOS
CONHECIMENTO
DE CONTEÚDO
CONHECIMENTO
DISCURSIVO
PROBLEMA
PROBLEMA
DE CONTEÚDO
TRADUÇÃO DO
PROBLEMA
RETÓRICO
TRADUÇÃO DO
PROBLEMA
MODELO DE RELATO DE
CONHECIMENTO
Figura 3 – Representação do processo de «knowledge transforming» (Scardamalia e Bereiter: 1987)
Nesta segunda representação, o modelo de «knowledge telling» é apenas uma
das componentes, que fica disponível para ser accionada por escritores mais
proficientes, sempre que o género textual ou o tipo de tarefa não exijam um esforço de
maior complexidade. Este aspecto do modelo permite explicar variações pessoais: um
escritor mais experiente, perante uma situação de escrita em concreto, pode recorrer a
uma estratégia mais económica, operando apenas com o processo de relato de
conhecimento.
No modelo da figura 3, a escrita é apresentada como uma actividade de
resolução de problemas, que vão sendo geridos entre a componente do problema de
conteúdo e a componente do problema retórico. Estas componentes interagem, sendo o
output de uma o input da outra. Em concreto, isto significa que o conteúdo gerado
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provoca problemas discursivos e retóricos (de vários níveis de construção de texto) e
cada momento de construção de uma parte do texto gera a necessidade de reanálise de
novos problemas de geração de conteúdo, de definição de objectivos, de antecipação das
expectativas do público. Em síntese, pode afirmar-se que este modelo representa uma
escrita reflectida, com consciência da complexidade da tarefa por parte do escritor, o
que a torna um processo controlado de resolução de problemas.
Uma das conclusões com maior impacto na investigação e no ensino da escrita,
decorrente da divulgação do modelo de Scardamalia e Bereiter, reside no
reconhecimento do envolvimento de três aspectos: o papel do público, as diferenças de
género textual e a consciência da complexidade da tarefa de escrita. Uma vez que as
diferenças entre perfis de escritores se verificam no domínio de certos géneros cuja
escrita implica um complexo processo de organização de informação, ancorado em
estratégias retóricas mais sofisticadas, o facto de alguns escritores manifestarem
incapacidade de accionar o modelo de transformação de conhecimento poderá decorrer
da falta de exposição, em contexto escolar, a tarefas que envolvam desafios de escrita
superiores ao relato e à narrativa. A este propósito, Grabe e Kaplan (1986, 124-127)
referem dados sobre evidências encontradas em investigação no quadro da pedagogia de
género que mostram que, efectivamente, as práticas de ensino têm relegado para
segundo plano o ensino das diferenças entre géneros textuais.
Sendo a impossibilidade de haver mobilização de estratégias de um tipo de
escrita (a de relato de conhecimento) para outro tipo de escrita (a de transformação de
conhecimento) uma das evidências explicadas pelo modelo de Scardamalia e Bereiter,
torna-se evidente a importância do ensino explícito de características de géneros
textuais diversificados para o desenvolvimento da competência da escrita. A
transposição didáctica de abordagens funcionalistas (Halliday e Hassan: 1989) nas
pedagogias do género tem dado resposta a esta necessidade, evidenciada pelos
resultados
da
investigação
em
modelos
processuais.
Embora
investigação
psicolinguística em modelos processuais e linguística sistémico-funcional sejam dois
campos de investigação distintos, a verdade é que as conclusões sobre a consciência de
género são sólidas e comuns.
No quadro da linguística sistémico-funcional de Halliday, não se recorre
especificamente à ideia de «género» como unidade de análise, sendo antes fundamental
o conceito de «registo». Num quadro teórico que procura explicar as relações entre a
21
linguagem e as suas funções em contextos sociais, os registos são conjuntos de textos
com significados comuns, que partilham o mesmo contexto social. Autores posteriores a
Halliday, na área da linguística aplicada ao ensino, desenvolvem a ideia de que o ensino
explícito de géneros textuais estimula a consciência das convenções de escrita, que têm
de ser dominadas para a produção de textos bem formados, adequados ao contexto e aos
leitores. Segundo Hyland (2001, 17), que destaca o impacto da pedagogia do género
autraliana, «[l]earning to write involves acquiring an ability to exercise appropriate
linguistic choices, both within and beyond the sentence, and teachers can assist this by
providing students with an explicit grammar». Para os defensores das «genre-based
pedagogies», amplamente implementadas na Austrália, em populações com carências ao
nível das literacias (Martin: 1993), e em projectos internacionais de literacia5, a
metacognição sobre géneros textuais e sobre gramática são aspectos essenciais para o
desenvolvimento da escrita.
Uma das fragilidades que pode ser apontada ao modelo proposto por
Scardamalia e Bereiter é a falta de informação concreta sobre o modo como o
conhecimento linguístico pode influenciar o desenvolvimento da competência de
escrita. Outras limitações do modelo, apontadas por Grabe e Kaplan (1986, 127),
decorrem de este não explicar aspectos relativos à evolução da competência de escrita.
Por exemplo, o modelo é pouco esclarecedor relativamente a como se faz a transição
cognitiva que permite a um escritor aceder ao modelo de transformação de
conhecimento e não é claro se todos os indivíduos conseguem alcançar este modelo
mais sofisticado de escrita.
Naturalmente, o facto de o modelo de Scardamalia e Bereiter (1987) ter poder
explicativo para as diferenças entre perfis de escritores e para as diferenças de
operacionalização de escritores mais experientes face a situações de escrita distintas
torna-o uma referência relevante para a investigação em ensino e desenvolvimento da
escrita. Embora o modelo preveja interacções com a componente linguística, no
processo de composição, na componente do «conhecimento discursivo» e, em
particular, nas resoluções dos «problemas de retórica», este modelo não dá conta da
influência do conhecimento linguístico, ainda em estabilização em diferentes fases da
5
Ver, por exemplo, o trabalho de David Rose, no Projecto «Reading to Learn», em
http://www.readingtolearn.com.au/#/home/ [on-line a 29.05.2010]
22
aprendizagem da escrita, no desenvolvimento de níveis superiores de proficiência de
escrita.
Em síntese, como antes se afirmou, tanto a investigação em modelos processuais
de escrita, como a vasta bibliografia sobre pedagogias de género apresentam resultados
conclusivos quanto à importância de um ensino da escrita centrado no conhecimento de
características de géneros textuais. Contudo, o escopo da investigação nestes campos
tem disponibilizado pouca informação relativamente às relações entre o processo de
desenvolvimento e estabilização do conhecimento linguístico e o desenvolvimento da
expressão escrita, bem como relativamente a eventuais interacções entre conhecimento
explícito da língua e proficiência de escrita6.
2.1.3. Escritores, contextos e textos no desenvolvimento da escrita
Numa síntese das diferentes abordagens à investigação sobre escrita, Hyland
(2002, 5-47) distingue três objectos de estudo: «o texto», «o escritor» e «o leitor».
Relativamente ao segundo objecto de estudo, este diz respeito, fundamentalmente, às
teorias que descrevem e explicam o funcionamento psicolinguístico do processo de
escrita. Nos estudos sobre «o escritor», investiga-se o modo como se processa
mentalmente a escrita e as diferentes características de escritores face a situações de
escrita. Este foi o assunto tratado na secção 2.1.2., na qual se referiram dois dos mais
conhecidos modelos processuais de escrita, o de Hayes e Flower (1980) e o de
Scardamalia e Bereiter (1997).
No que diz respeito ao estudo do «texto», ainda que já tenha sido feita referência
às pedagogias «genre-based» (o que constituiu uma menção óbvia às abordagens
centradas nas características dos textos e dos discursos em contexto), focar-se-ão, no
final desta secção, trabalhos de investigação que se dedicam à análise de aspectos
formais dos textos e de aspectos do conhecimento linguístico que afectam o
desenvolvimento da escrita.
6
Alguns autores têm desenvolvido a sua investigação neste domínio. Por exemplo, a investigação de
Barbeiro (1994; 1999; 2002), sendo investigação em Psicolinguística, no domínio dos modelos de
processamento, centra-se precisamente nas relações entre conhecimento linguístico e escrita. No seu
trabalho, Barbeiro identifica quatro tipos de operação (adição, supressão, substituição e deslocação), que
evidenciam tomadas de decisão sobre «alterações» a nível linguístico durante o processo de escrita
(Capítulo 4). Outro exemplo, é o estudo de Carvalho (1990), sobre desenvolvimento sintáctico e
desenvolvimento da escrita.
23
Antes, já em seguida, destacam-se perspectivas de investigação que valorizam a
dimensão social da escrita, incluindo o papel que os potenciais leitores e os contextos
têm na estruturação de textos coerentes. Por outras palavras, sublinha-se o papel da
consciência do «leitor» no desenvolvimento da competência de escrita.
No âmbito dos estudos em inglês como L2, desenvolveu-se uma área de
investigação em ensino da escrita que tem por base a consideração da influência da
projecção do público leitor no processo de escrita e, de forma mais ampla, a
consideração da influência do contexto pragmático, o qual, nesta perspectiva, determina
todos os aspectos do processo de criação de texto. Esta área de investigação, conhecida
como «Retórica Contrastiva», é entendida como uma perspectiva que «also encourages
us to consider the role of culture in the interactional writer-reader dyad and the
possibility, in L2 writing, of the transfer of rhetorical features from the writer’s L1. The
idea that different speech communities have different ways of organizing ideas in
writing, and that such variations should be taken seriously in second-language writing
teaching, has created considerable interest since it was first proposed by Kaplan over
30 years ago, developing into the field of contrastive rhetoric.» (Hyland: 2002, 37).
No seu capítulo sobre «Retórica Contrastiva», ou, dito de outro modo, sobre a
escrita através das culturas, Grabe e Kaplan (1986, 176-201) sugerem a existência de
sete tipos de conhecimento importantes para o ensino da escrita:
«1. Knowledge of rhetorical patterns of arrangement and the relative frequency of
various patterns (e.g. exposition / argument; classification, definition, etc).
2. Knowledge of composing conventions and strategies needed to generate text (e.g.
pre-writing, data-collection, revision, etc.).
3. Knowledge of the morphosyntax of the target language, particularly as it applies at
the intersentential level.
4. Knowledge of the coherence-creating mechanisms of the target language.
5. Knowledge of the writing conventions of the target language in the sense of both
frequency and distribution of types and text appearance (e.g. letter, essay, report).
6. Knowledge of the audience characteristics and expectations in the target culture.
7. Knowledge of the subject to be discussed, including both ‘what everyone knows” in
the target culture and specialist knowledge.» (idem, 200)
24
A referência a resultados de investigação em aquisição da escrita numa língua
não materna justifica-se pelo facto de a «Retórica Contrastiva» ser um quadro de
trabalho que sintetiza aspectos dispersos do que se sabe sobre escrita. De facto, não será
difícil reconhecer que os sete tipos de conhecimento envolvidos na competência de
escrita antes destacados são tão relevantes na aquisição desta competência em L2 como
numa língua materna. Sendo a escrita uma aprendizagem formal, tanto em L1, como em
L2, e não o resultado do processo natural de aquisição da linguagem, os tipos de
conhecimento anteriormente destacados também têm de ser dominados por qualquer
jovem aprendente de escrita na sua língua materna.
Na língua materna, não havendo interferência, por exemplo, de padrões de
organização textual ou de convenções de tipos e estruturas textuais de outra língua,
haverá necessidade de converter a experiência de uso de padrões discursivos próprios de
contextos de oralidade menos formal, que é a experiência com que as crianças chegam à
escola, em usos de língua de formalidade crescente, em registo escrito. Aliás, no estudo
das diferenças do oral e da escrita, quanto a estrutura gramatical e a padrões discursivos
(Perera: 1994), as propriedades distintivas de um e outro modos envolvem aspectos dos
sete tipos de conhecimento cujo domínio é relevante para a escrita.
Como se referiu anteriormente, os estudos em «Retórica Contrastiva», por serem
uma área de estudos mais recente, têm uma reconhecida capacidade de síntese da
investigação disponível sobre escrita. Nesta perspectiva, defende-se, crucialmente, a
atenção ao contexto cultural e pragmático da produção dos escritos, enquanto factor
condicionante do processo produtivo. Para além disso, a «Retórica Contrastiva»
beneficia de resultados do manancial em investigação centrada no texto. Em seguida,
serão destacadas algumas destas linhas de investigação cujo foco da atenção é o estudo
de aspectos formais dos textos.
Dos múltiplos trabalhos de investigação que, em países diferentes e em quadros
teóricos por vezes antagónicos, se dedicam ao estudo das características dos textos e ao
estudo do conhecimento sobre textos, incluindo o conhecimento linguístico requerido
para o desenvolvimento da escrita, destacam-se três vertentes: (i) em primeiro lugar, a
vasta área de influência, com resultados comprovados no mundo anglo-saxónico, das já
referidas pedagogias «genre-based», enquadradas pela tradição da linguística
sistémico-funcional (Martin: 1989; Martin e Rose: 2005, e.o.); (ii) em segundo lugar, os
não menos vastos e influentes estudos em linguística textual, cuja transposição didáctica
25
é reconhecida, por exemplo, nas referências bibliográficas dos programas de ensino das
últimas décadas (Adam: 1992; Bronckart: 1999, e.o.); e (iii), por fim, com repercussões
não menos importantes, os variadíssimos estudos na área da variação linguística (por
exemplo, entre modo oral e modo escrito) e nas áreas afectas ao desenvolvimento
linguístico e cognitivo, com investigação feita a partir de dados de escrita ou sobre
competência textual (Kail e Fayol: 2000; Leal e Morais: 2006; Menyuk e Brisk: 2005,
e.o.).
Retomando a descrição dos sete tipos de conhecimento requeridos para o
desenvolvimento da competência de escrita (Grabe e Kaplan: 1986), um dos tipos de
conhecimento evidenciado como relevante é o conhecimento morfológico e sintáctico,
em particular ao nível interfrásico. Como evidenciam alguns trabalhos em
desenvolvimento linguístico, o conhecimento sintáctico está em desenvolvimento ainda
no início da adolescência, em períodos em que a competência de escrita passa a ter de
dar resposta a novos desafios, decorrentes do domínio da «escrita académica» (Menyuk
e Brisk: 2005, 49-154).
Alguns estudos experimentais evidenciam a relação entre desenvolvimento de
competências linguísticas e desenvolvimento da competência de escrita. Em Gordon
(1986), citado em Menyuk (1987, 291-292), procedeu-se ao estudo comparativo das
produções escritas de dez raparigas a frequentarem o ensino secundário. O protocolo
consistia na solicitação de que escrevessem, por um lado, e que contassem oralmente,
por outro, uma história sobre uma experiência assustadora ou perigosa. Da análise das
narrativas orais e escritas, chegou-se à conclusão de que existe um perfil diferente de
escrita de «escritoras proficientes» (good writers) e de «escritoras menos proficientes»
(poor writers). O perfil das escritoras menos bem sucedidas pôde ser descrito tendo por
base evidências sobre o conhecimento linguístico manifestado nos textos analisados. Os
resultados indicaram o seguinte:
a) as escritoras menos proficientes escrevem menos do que as escritores proficientes,
mas a quantidade de produção oral é equivalente;
b) escritoras menos proficientes e escritoras proficientes usam estratégias semelhantes
para segmentar as suas narrativas orais; contudo, as escritoras menos proficientes não
conseguem usar parágrafos para segmentar as suas produções escritas;
26
c) as escritoras proficientes mantiveram ou aumentaram a proporção de períodos
narrativos e de períodos de avaliação da narrativa, na escrita, por comparação com a
produção oral, ao passo que as escritoras menos proficientes reduziram esta proporção;
d) as escritoras menos proficientes manifestaram inferior diversidade lexical tanto nas
produções orais como nas produções escritas;
e) as estruturas sintácticas nos textos das escritoras proficientes cresceram em
complexidade; ao contrário, a complexidade sintáctica encontrada nas produções tanto
orais como escritas das escritoras menos proficientes era equivalente;
f) as escritoras proficientes manifestaram aumento da densidade proposicional nas
produções escritas, enquanto isso não se verificou na escrita das escritoras menos
proficientes.
Das conclusões do estudo de Gordon (1986), salienta-se a ideia de que as
escritoras menos proficientes parecem ter dificuldade em fazer uma selecção adequada
das estruturas linguísticas necessárias a uma escrita bem sucedida. Em concreto,
destaca-se o facto de não serem capazes de incorporar nos seus textos estruturas não
finitas e constituintes com particípios para fazer modificações frásicas. De um modo
geral, nota-se o impacto que problemas ao nível da diversidade lexical e da fluência
sintáctica têm na produção bem sucedida de textos, mesmo sendo narrativas sobre
tópicos conhecidos.
De entre os estudos como o que se acaba de referir, que disponibilizam dados
sobre o conhecimento linguístico requerido em situações de escrita, importa distinguir
dois objectivos de investigação que, em alguns momentos, em fases de desenvolvimento
linguístico que acompanham as idades de escolarização, nem sempre se podem
destrinçar. O primeiro consiste na caracterização do conhecimento linguístico
necessário para o desenvolvimento da aprendizagem formal da escrita. Relativamente a
este objectivo, por «conhecimento linguístico», entende-se o conhecimento que decorre
do processo natural de aquisição da língua e que, embora possa ser entendido como
«conhecimento implícito da língua», corresponde a uma progressiva consciência sobre a
língua, que é manifestação de evolução em diferentes módulos do conhecimento
linguístico.
Um segundo objectivo de investigação decorre da pretensão de se determinar até
que ponto o «conhecimento explícito da língua» pode estimular o desenvolvimento da
27
competência de escrita. Neste caso, por conhecimento explícito, entende-se o
conhecimento reflectido, explícito e sistematizado das unidades, regras e processos
gramaticais, o que implica o desenvolvimento de processos metacognitivos, quase
sempre decorrentes da instrução formal. É este o conhecimento que permite aos falantes
o controlo das regras que usam e a selecção das estratégias mais adequadas a diferentes
situações comunicativas, de acordo com o que é defendido, por exemplo, por Sim-Sim,
Duarte e Ferraz (1997). Esta definição de «conhecimento explícito» é consensual com a
perspectiva de «language awareness» defendida em Titone (1988) e em Sim-Sim
(1998), devendo o ensino formal da gramática ser assumido como motor do
desenvolvimento de uma progressiva consciencialização sobre a língua. A tomada de
consciência sobre a língua tem início com o processo espontâneo de aquisição da
linguagem, em estádios culminantes de consciência linguística, nos diferentes módulos
da
gramática
(consciência
fonológica,
consciência
morfológica,
consciência
sintáctica…). Note-se, todavia, que a transição de estádios de consciência linguística
para fases de conhecimento explícito implica aprendizagem formal.
Se o conhecimento sobre a língua, a desenvolver na escola, for entendido como
uma competência que parte da consciência linguística precoce e culmina num estádio de
mestria mais complexo, que implica a capacidade de recorrer a metalinguagem e a
estratégias metacognitivas para controlar usos de língua, então os dois objectivos de
investigação sobre a gramática relevante para o desenvolvimento da escrita terão áreas
de intersecção. Por outras palavras, pelo menos relativamente a algumas áreas do
conhecimento gramatical, caracterizar o conhecimento linguístico implícito necessário
para o desenvolvimento da escrita, por um lado, e determinar que conhecimentos
declarativos são relevantes para um domínio proficiente da escrita, por outro, serão
objectivos coincidentes.
Porém, tal como se começou por referir, relativamente a práticas de ensino da
escrita, no início da secção 2.1., as práticas de ensino da gramática, associadas a
diferentes perspectivas sobre o papel do ensino da gramática no currículo de língua
materna, são díspares e difusas. Na secção seguinte, explicitam-se algumas perspectivas
sobre ensino da gramática e o modo como em cada uma se concebe a prossecução de
objectivos instrumentais, em particular, do objectivo de saber gramática para escrever
bem.
28
2.2. Ensino da gramática e desenvolvimento da escrita
Da leitura dos documentos orientadores do ensino da Língua Portuguesa
(DGEBS: 1991; Sim-Sim, Duarte e Ferraz: 1997; DEB: 2001; AA.VV.: 2002; DGIDC:
2008; DGIDC: 2009a), pode constatar-se que o espaço do ensino da gramática no
currículo de língua materna foi crescendo, amparado por uma ampla reflexão pública
desde, pelo menos, a publicação dos programas subsequentes à Reforma Educativa de
1986. Como se conclui em Duarte e Costa (2004, 329), através da comparação da
concepção de Funcionamento da Língua, no programa ainda em vigor (DGEBS: 1991),
e de Conhecimento Explícito, no Currículo Nacional (DEB: 2001), pode afirmar-se que
o ensino da gramática «passou da periferia para o núcleo do currículo»7. Contudo,
como também se conclui no mencionado artigo, esta evolução curricular não foi
plenamente assumida, uma vez que coexistem, nos últimos dez anos, documentos
orientadores para o ensino da gramática que preconizam perspectivas antagónicas.
Segundo Duarte e Costa (2004, 328), «O Programa de Língua Portuguesa concebe um
ensino da língua assente em quatro competências comunicativas: ouvir / falar / ler /
escrever. Segundo estas orientações, [a] reflexão gramatical deverá ocorrer
oportunamente no âmbito de estratégias pedagógicas orientadas para a resolução de
problemas linguísticos (DGEBS: 1991, 48). Ao contrário, no CNEB, o Conhecimento
Explícito da língua é uma competência nuclear ‘que alimenta especificamente cada
uma das quatro outras competências’ (Sim-Sim, Duarte e Ferraz: 1997, 12) e tem como
meta um ‘conhecimento sistematizado dos aspectos básicos da estrutura e do uso do
Português’ (DEB: 2001, 35).»
A contradição entre documentos orientadores em vigor, uma longa tradição de
anulação do ensino da gramática em nome de más leituras da teoria linguística, nos anos
70 e 80, e a reconhecida morosidade geral da alteração de práticas de ensino (Arends:
1987)8 são alguns dos factores que permitem perceber por que razão, apesar da
centralidade da reflexão sobre a língua legitimada pelo Currículo Nacional, na prática,
7
O termo «periferia» constitui uma alusão ao artigo de Duarte (1991), «Funcionamento da Língua: a
Periferia dos NPP», que foi um marco na reflexão em torno do papel do ensino da gramática nos
programas do ensino básico.
8
Arends (1987) apresenta dados de investigação sobre práticas de ensino que mostram que os
professores, quando começam a trabalhar, preferem relegar o que aprenderam no seu treino pedagógico e
retomar metodologias mais antigas, algumas das quais reflectem o modo como eles próprios foram
ensinados, o que tem um efeito de segurança profissional.
29
ainda se ensina pouca gramática ou ainda se ensina a mesma gramática que
antigamente.
Esta ideia é suportada por dados sobre práticas de ensino da língua materna no
ensino básico. Os excertos de entrevistas apresentados em Lobo (org.) (2001; 2002)
evidenciam evolução de práticas, no sentido em que se reconhece já alguma valorização
da autonomia do conhecimento sobre a língua, como se ilustra no depoimento seguinte.
tenho modificado a minha opinião através dos tempos. Achava que… achei muito
tempo que o funcionamento da língua (…) podia ser apenas uma coisa implícita. Mas
cada vez mais acho importante a consciencialização e a aprendizagem desses
conteúdos gramaticais. Chamar o nome de quê e saber o porquê não só porque valoriza
o ensino e a aplicação da língua como são conteúdos fundamentais para a continuação
e para a aprendizagem de línguas estrangeiras. (2.º CEB)
Lobo (coord.) (2001; 2002)
Apesar de se notar este sentido de inovação nas concepções sobre ensino da
gramática, muitos docentes optam por fazer depender a reflexão sobre a língua, na aula
de língua materna, do desenvolvimento das competências comunicativas, o que é visível
em diferentes entrevistas de professores, recolhidas no mesmo estudo, e na conclusão a
que se chega: «A generalidade dos inquiridos integra o estudo do funcionamento da
língua no âmbito das actividades de leitura e de escrita, de uma forma contextualizada
e significativa» (Lobo (coord.): 2001, 55). Este posicionamento dominante face ao
ensino da gramática conduz à conclusão de que o paradigma defendido nos programas
em vigor (DGEBS: 1991), e não o do Currículo Nacional, é um dos responsáveis pelo
ensino da gramática das últimas duas décadas. Este enquadramento preconiza práticas
de reflexão sobre a língua integradas em contextos comunicativos, visando crucialmente
objectivos instrumentais - o melhoramento da compreensão e da expressão, no modo
oral e no modo escrito.
No entanto, estudos de práticas de ensino, configuradas nas propostas de
manuais didácticos, reflectem modos de agir bastante próximos da perspectiva
tradicional, destituídos de qualquer contextualização pragmática. Em Sousa (2000),
verifica-se que, embora as actividades de Funcionamento da Língua sejam as segundas
30
mais frequentes (a seguir às actividades de leitura), estas apenas aparentemente
cumprem o que é preconizado no programa, mantendo as operações no domínio da
«classificação», a partir de exemplos de texto literário. Da análise de diferentes
manuais, conclui a autora: «Numa colagem a paradigmas pedagógicos emergentes,
enfraquece-se o grau de enquadramento, mantendo-se forte o grau de classificação,
isto é, continuam fortemente isolados e afastados sujeitos e conteúdos, sujeitos e
linguagem.» (idem, 535-536)
Também relativamente aos modos de operacionalizar a reflexão sobre a língua,
dados ainda mais recentes, divulgados pela Direcção Geral de Inovação e
Desenvolvimento Curricular (DGIDC), no âmbito dos estudos que acompanharam a
implementação dos novos programas do ensino básico (DGIDC: 2009a) e do Dicionário
Terminológico (DT) (DGIDC: 2008), reflectem práticas bem mais próximas de um
ensino tradicional do que de «actividades significativas». O estudo Posição dos
Docentes Relativamente ao Ensino da Língua Portuguesa (DGIDC: 2009b, 13-15),
realizado com base na análise quantitativa de inquéritos aplicados a nível nacional,
revela que, entre as estratégias para desenvolvimento do conhecimento explícito, a mais
frequente (com 90% de respostas) consiste na «explicação de regras, exemplificação,
aplicação e treino».
Confirmando a ideia de que o ensino da gramática subsidiário das competências
de comunicação é um dos paradigmas dominantes entre as práticas dos docentes, a par
da ainda vigente abordagem tradicional, a segunda estratégia com uma mais elevada
taxa de respostas (acima dos 80%) consiste em «actividades relacionadas com a leitura
e com a escrita». Ao contrário do que é preconizado nos documentos que fundamentam
o Currículo Nacional do Ensino Básico (Sim-Sim, Duarte e Ferraz: 1997) e nas
múltiplas formações, conferências e publicações que acompanharam a implementação
da TLEBS / do DT, entre as estratégias menos votadas, contam-se «actividades para
reflexão sobre as estruturas da língua» (pouco acima dos 30%), «verificação de
regularidades e irregularidades para formulação de regras (cerca de 25%) e
«sequências de observação, manipulação e sistematização de dados» (cerca de 20%)9.
9
A estratégia menos votada foi «explicação de conteúdos para compreensão de textos de leitura
integral», cujo sentido, enquanto operacionalização, não parece ser claro.
31
Embora, a partir de 200410, a reflexão didáctica em torno do ensino da gramática
tenha tido tendência para se limitar às questões da metalinguagem a usar, a questão mais
relevante para a discussão em torno da reflexão sobre a língua em contexto educativo
não é a da opção por uma ou por outra terminologia, mas a da opção por uma
metodologia, mais ou menos fundamentada, de ensino da gramática. Afinal, como se
ensina gramática? Considerando os dados disponíveis sobre práticas, os documentos
orientadores e a reflexão suscitada pela evolução curricular das últimas décadas, podem
distinguir-se três modos de ensinar gramática, que coexistem nas salas de aula das
escolas portuguesas11.
Numa perspectiva tradicional, o ensino parte da apresentação de regras
normativas e assume, como principal estratégia, a memorização ou o conhecimento de
definições. Segundo esta perspectiva, os conteúdos gramaticais são todos declarativos e
saber gramática corresponde a conhecer um elenco de definições e de termos que,
supostamente, amparam o bom uso da língua. As principais vantagens das abordagens
tradicionais são o treino das capacidades de memória e o conhecimento das normas da
variedade padrão da língua. Efectivamente, há aspectos do conhecimento da gramática
da língua que têm de ser memorizados, uma vez que decorrem de convenções (por
exemplo, regras de ortografia, certas regras de uso de vírgula, etc.). Do conhecimento
destes aspectos, depende o uso correcto de registos mais formais da língua12.
A principal fragilidade do ensino tradicional da gramática advém do insucesso
do seu principal objectivo: bem falar e bem escrever. De facto, o conhecimento da
gramática numa abordagem tradicional consome-se num único fim, que é instrumental dominar a norma. Ora, tem sido amplamente verificado (Hudson: 2001; Menyuk e
Brisk: 2005, e.o.) que não há garantias de que haja uma efectiva mobilização de
conhecimentos estruturados em torno de definições e classificações para situações de
10
Ainda que a Base de Dados da TLEBS tenha sido publicada em Dezembro de 2002, pelo DES, na
sequência da implementação do programa do ensino secundário (DES: 2001; 2002) e já fosse referência
bibliográfica do Currículo Nacional desde 2001, a polémica só surgiu após a publicação, em Diário da
República, da lista de termos, em Dezembro de 2004, quando se deu início à fase de experiência
pedagógica.
11
Nos anos 70, algum discurso oficial e pedagógico instituiu metodologias de ensino da gramática que
envolviam a transposição demasiado directa de instrumentos da linguística formal. Não nos detemos
sobre os efeitos destas abordagens nas concepções de professores sobre ensino da gramática, uma vez que
não há dados que evidenciem que ainda persistam nas práticas dos docentes.
12
Adoptando a posição defendida em Costa (2002), para o ensino da gramática, o professor deve
desenvolver uma atitude descritiva e explicativa, mas, também, normativa. Ainda sobre o papel normativo
do ensino do português, recorde-se a muito actual intervenção de Castro (1989, 4), ao concluir que: «num
momento em que o português derrapa, o ensino da língua deve servir-lhe de travão, mesmo que isso,
automobilisticamente, seja errado.»
32
uso, em contextos de oral formal ou de escrita. Como qualquer professor de língua
materna pode testemunhar, através de observações empíricas, é frequente os alunos
saberem, em situação de resolução de ficha de avaliação, classificar estruturas e, na
mesma ficha de avaliação, não convocarem essas mesmas estruturas para resolverem
problemas de escrita. E certamente que os mesmos professores confirmam, igualmente,
a observação do contrário: a incapacidade de alguns alunos de definir e classificar
unidades linguísticas e a capacidade de as usar, recorrentemente, nas suas produções.
Uma das razões que pode justificar este último problema de aprendizagem pode
advir da segunda grande fragilidade do ensino tradicional: a não coincidência entre a
descrição que a gramática tradicional apresenta, que corresponde às regras prescritas
numa das variedades da língua, e os dados empíricos da língua que os alunos conhecem
e usam. Por outras palavras, há uma distância significativa entre os conteúdos
gramaticais abordados numa perspectiva tradicional e a gramática do oral e da escrita
que os alunos reconhecem nos textos que lêem e que escrevem e na língua com que
comunicam. Sendo o objecto de estudo da gramática tradicional apenas a variedade
padrão da língua, e apenas alguns aspectos do conhecimento desta variedade, a
descrição gramatical tradicional consiste num conhecimento insuficiente, inexistente ou
mesmo incorrecto da língua que os alunos usam13. Acresce a este facto que, por haver
apenas uma coincidência casual entre conteúdos da gramática e os usos de língua dos
alunos, o ensino tradicional da gramática é visto como um conjunto descontextualizado
de aprendizagens.
Em reacção a este facto, por um lado, e na sequência da adopção de abordagens
comunicativas «radicais», próprias do ensino das línguas estrangeiras (Duarte: 1998),
por outro, nos anos 90, instalou-se no discurso oficial para o ensino da língua materna
uma perspectiva de ensino da gramática «em contexto», operacionalizada na concepção
de «Funcionamento da Língua – Análise e Reflexão», prescrita nos programas
homologados em 1991 e ainda em vigor. Desde o momento da publicação destes
programas, o espaço periférico a que o ensino da gramática foi votado tem sido alvo de
várias críticas (Delgado-Martins et al. (1991), em particular, Duarte (1991); Duarte
(1997); (1998), Costa et al. (2010), e.o.).
13
Por exemplo, em Costa (2009), evidencia-se a não coincidência entre a descrição tradicional da classe
das conjunções coordenativas adversativas e o funcionamento de conectores adverbiais adversativos na
estruturação textual, o que dificulta a activação da operação de substituição e a diversificação de
estruturas nas produções escritas.
33
Defendendo que «[n]ão é impondo um conjunto de comportamentos linguísticos
e de regras independentes e ensináveis isoladamente que os alunos desenvolvem a sua
capacidade discursiva» (DGEBS: 1991, 49), o programa de Língua Portuguesa para o
3.º Ciclo defende que a reflexão sobre a língua deve ser promovida em função do uso.
Esta perspectiva ancora-se no equívoco de que o ensino explícito e sistematizado de
conteúdos gramaticais é desprovido de significado, visto que qualquer falante tem
conhecimento implícito da sua língua: «[qualquer falante revela um conhecimento
implícito de regras gramaticais da sua língua» (ibidem), Este posicionamento é
evidente pelo facto de, nos programas de 1991, a secção de «Funcionamento da Língua»
ser destituída de uma coluna de «conteúdos». Assim, se às competências comunicativas
se reconhecem «conteúdos» específicos, o conhecimento gramatical operacionaliza-se
de forma subsidiária, em função das necessidades de compreensão e de expressão.
A mesma perspectiva de ensino da gramática é explicada em Amor (1993), obra
que tão pouco dedica espaço à gramática como saber autónomo, não havendo qualquer
capítulo ou secção sobre «Funcionamento da Língua». De facto, as referências a
estratégias de reflexão sobre o funcionamento da língua surgem todas contextualizadas
em estratégias para a oralidade, a para a escrita e para a leitura. O ensino da gramática é
conceptualizado como «actividade epilinguística», que se fundamenta enquanto
actividade que privilegia uma passagem faseada do nível da perspectiva para o nível da
reflexão. Segundo Amor (idem, 42), «[p]rivilegiar os sentidos produzidos é, pois,
conseguir uma base a partir da qual, numa metodologia de resolução de problemas ou
noutra, se pode fazer a necessária passagem do conhecimento implícito da língua à
explicitação de regras. Percurso lento, com naturais descontinuidades, e que não deve
ser confundido com um processo de simples reconstituição da teoria linguística ou da
gramática de uma língua particular.
Para marcar o faseamento a que deve obedecer, alguns autores, como Culioli,
propuseram que se passe a considerar, associada à actividade linguística a existência
de uma prática reflexiva mas inconsciente e não munida de categorias formais (se não
as mais elementares que a linguagem comum adopta, como «palavra», «nome»,
«frase», «significado», etc.) que terá como razão de ser o próprio processo de
negociação de sentido inerente aos actos comunicativos, prática designada por
34
actividade epilinguística»14. Outros autores defendem esta mesma perspectiva para a
didáctica da língua materna. É o caso de Cagliari (1991, 25), num artigo sobre
diferenças entre o oral e a escrita, no qual define epilinguismo como «a maneira
descompromissada de teorias de se refletir sobre um fato linguístico.»
Uma vantagem evidente desta abordagem consiste no facto de a mobilização de
conhecimento gramatical se reflectir positivamente na resolução de problemas de
oralidade, de escrita e de leitura, havendo maior proximidade entre os resultados da
aprendizagem e objectivos instrumentais de ensino da gramática. Outro aspecto positivo
desta perspectiva reside no reconhecimento da importância do processo de passagem do
conhecimento implícito ao conhecimento explícito, aspecto fundamental para a terceira
perspectiva de ensino da gramática, que será referida em seguida.
Contudo, sob a égide da contextualização e da sobrevalorização das práticas
integradas, assentes nas quatro competências comunicativas, o que se verificou e
verifica ainda é antes uma fuga ao ensino da gramática, que tem como consequência os
resultados apresentados em estudos sobre o conhecimento de língua com que os alunos
chegam ao ensino superior (Costa: 2007). Como, de forma detalhada, descreve Pereira
(2000, 273-316), legitimadas pelo lema do ensino da gramática em função do uso, as
práticas de ensino reduziram a introdução de conteúdos gramaticais aos momentos em
que a gramática vem «a propósito» de situações de leitura e, mais raramente, de escrita.
Relativamente à relação com a competência de escrita, esta forma de ensinar gramática
incorre, por vezes, num ensino da «gramática do erro», segundo o qual os conteúdos
gramaticais surgem em função do aperfeiçoamento de textos. Como consequência de
uma planificação do ensino da gramática dependente dos conteúdos que surgem a
propósito dos textos, não havendo momentos de sistematização da descrição linguística,
autónomos e com o recurso a dados de língua que completem os enunciados
observados, a reflexão sobre a língua é assistemática e irregular, gerando um
conhecimento pouco consolidado e insuficiente. Dificilmente uma descrição gramatical
feita apenas a partir das estruturas observadas nos textos estudados ou produzidos
corresponde a uma descrição sistematizada e completa das unidades e processos
envolvidos na gramática básica da língua.
Complementarmente, destacam-se ainda outras duas consequências negativas
desta abordagem. Em primeiro lugar, confiantes no seu conhecimento de bons
14
O sublinhado é meu.
35
utilizadores da língua, os professores de língua materna, até há poucos anos, não se
sentiam comprometidos com a necessidade de actualizarem, permanentemente, os seus
conhecimentos científicos no domínio da teoria linguística. Em segundo lugar, é ainda
muito evidente, pelo menos entre alunos e pais, a ideia de que a disciplina de língua
materna não tem «matéria para estudar», o que evidencia a secundarização do
conhecimento explícito sobre não só a gramática da língua, mas também relativamente a
conhecimentos específicos de estratégias de escrita, de leitura e de géneros formais e
públicos do oral. Em conclusão, embora seja um contra-senso teórico, é esta abordagem
mais contextualizadora do ensino da gramática a que, pela apropriação que as práticas
dela fizeram, menos proporciona conhecimentos facilitadores e consolidados sobre o
modo como funcionam a língua e os discursos.
Pelo que ficou exposto, é possível concluir que coexistem, nas nossas escolas,
dois modos antagónicos de actuação no ensino da gramática: uma abordagem
tradicional e perspectivas difusas de um ensino contextualizado do funcionamento da
língua. A terceira abordagem de ensino da gramática corresponde, na verdade, a uma
série de correntes de ensino da língua materna e de língua não materna, suportadas por
enquadramentos de teorias linguísticas concorrentes e convocando áreas de investigação
em linguística e psicolinguística muito diferentes. Para referir esta abordagem,
assumidamente plural, poder-se-á usar a expressão «language awareness», em
conformidade com a proposta de James e Garrett (1991). Em comum, as perspectivas de
ensino da língua de tipo «language awareness» defendem a importância de tornar
conscientes os processos, as estratégias e as estruturas envolvidas nas situações de
interacção oral, de escrita, de leitura, de modo a que os sujeitos possam monitorizar e
controlar, de forma intencional, os seus discursos e agir socialmente, de modo
consciente, através deles. Assim, poder-se-á considerar que abordagens pedagógicas tão
diferentes como uma aula programada segundo as propostas «genre-based», na qual os
alunos desenvolvem um trabalho de «scaffolding» relativamente a estruturas de um
texto, para escrever como nesse texto, e uma aula de laboratório de língua, para inferir
regularidades e contextos de ocorrências de estruturas, têm em comum o estímulo de
competências metacognitivas e metalinguísticas. Com efeito, é a importância dada à
metacognição, como meio de autonomização das aprendizagens sobre e com a língua,
que caracteriza o trabalho de «language awareness».
36
Um dos caminhos seguidos pelas abordagens de «language awareness», em
particular pelas que se centram na defesa do ensino autónomo da gramática, assumiu a
especificação do termo, recorrendo-se preferencialmente a «linguistic awareness».
Neste âmbito, enquadra-se a preconização de um ensino da gramática que tenha em
consideração, em primeiro lugar, a distinção entre o que decorre do processo natural de
aquisição da língua e o que tem de ser formalmente aprendido (Sim-Sim, Duarte e
Ferraz: 1997). Consequentemente, considera-se crucial a atenção aos efeitos da variação
linguística existentes na gramática, entendida como conhecimento linguístico implícito,
com que os alunos chegam à escola. Neste caso, um ensino da gramática que parta da
«linguistic awareness» dos alunos tem de ter em consideração que o conhecimento
gramatical dos alunos pode não corresponder à gramática da língua padrão do adulto,
devendo ser feito um trabalho não só de explicitação da gramática da variedade
linguística dos alunos, mas também de comparação com a gramática da variedade
padrão, objecto de estudo dos currículos escolares (Hudson: 1992). Aliás, deve notar-se
que, de qualquer modo, o conhecimento linguístico com que os alunos chegam à escola,
mesmo que pertençam a comunidades falantes da variedade padrão, corresponde à
gramática do modo oral, usada em registos familiares (Duarte: 2000) e o trabalho de
explicitação e comparação com a língua padrão mantém-se pertinente, até porque o
leque de estruturas usadas nos registos formais não é coincidente, sendo em alguns
casos mais alargado, com o leque de estruturas usado em registos informais (Hudson:
1992).
O ensino da gramática em contexto escolar, neste enquadramento, é entendido
como um processo de explicitação do conhecimento linguístico. O conhecimento
linguístico é um conhecimento implícito, o que significa que os sujeitos não têm
consciência das unidades e processos que activam sempre que recorrem a capacidades
naturais e inatas da linguagem. Segundo Sim-Sim, Duarte e Ferraz (1997, 20), «[e]ste
sistema de conhecimento, que se torna estável no final da adolescência, denomina-se
conhecimento da língua. O conhecimento da língua é intuitivo (i.e., não consciente) e
pode conceber-se como a gramática da língua materna desenvolvida natural e
espontaneamente pelo falante a partir da interacção entre a faculdade da linguagem e
o input linguístico que o meio lhe fornece.
É este sistema que mobilizamos em actividades de reconhecimento e de
produção de enunciados na nossa língua materna.»
37
O trabalho de explicitação deste conhecimento deve ser fundamentado do ponto
de vista científico, relativamente ao que se sabe do sistema de conhecimento linguístico
e do desenvolvimento da consciência linguística, nos diferentes módulos da gramática.
Assim, as opções curriculares para a definição de progressão de conteúdos de gramática
devem ter em conta, antes de mais, dados sobre conhecimento linguístico, considerando
que é preciso distinguir, na intervenção didáctica, os aspectos que podem ser
explicitados porque correspondem a conhecimento já estabilizado e os aspectos que
devem ser trabalhados com o fim de estimular, nos estádios adequados, aquisições
linguísticas mais tardias.
É esta perspectiva de ensino da gramática, cuja fundamentação teórica se
distingue da abordagem descritiva e comunicativa do «Funcionamento da Língua –
Análise e Reflexão» (DGEBS: 1991), a perspectiva que enquadra o modo de se
trabalhar a língua no Currículo Nacional (DES: 2001). Como defendem as autoras de A
Língua Materna na Educação Básica (Sim-Sim, Duarte e Ferraz: 1997, 30-31),
referência que enquadra o Currículo Nacional, «[p]or conhecimento explícito
entende-se a progressiva consciencialização e sistematização do conhecimento
implícito no uso da língua.
Desempenhando a língua materna um papel primordial no desenvolvimento
pessoal e social e na comunicação com outros, sendo um meio essencial na expressão
do pensamento e nas aprendizagens escolares, é desejável que, ao longo da educação
básica, os alunos aprendam “coisas” sobre ela, tal como aprendem “coisas” sobre a
matéria e a energia, a vida, as sociedades humanas ou os climas (Hudson, 1992;
Duarte, 1997).»
O espaço autónomo da construção de conhecimento especializado sobre a
língua, a consagrar ao ensino da gramática desde o ensino básico, é, provavelmente, a
condição de aprendizagem que mais notoriamente distingue esta abordagem de outras
formas de pensar a gramática. Mesmo no âmbito das abordagens «language awareness»,
a pertinência de um objectivo não instrumental, mas puramente académico e humanista
– o conhecimento de características da língua – não é consensual. Todavia, são muitas
as vozes que assumiram a defesa do espaço para se saber tanto sobre a língua humana
como sobre outros aspectos da natureza humana e do universo, conteúdos cuja validade
académica parece inquestionável (Costa: 2010; Duarte: 1998; Hudson: 1999; Pereira:
2000, e.o.).
38
Crucialmente, num trabalho de ensino da língua como explicitação do
conhecimento linguístico importa, como já se sublinhou, distinguir, no conhecimento da
língua materna, o que decorre do processo natural de aquisição da língua do que requer
estímulo e aprendizagem formal. Um exemplo concreto desta necessária distinção é o
conhecimento que envolve frases relativas. Enquanto o domínio inconsciente de orações
relativas de sujeito estará assegurado antes da entrada na escola, garantindo a sua
compreensão e produção, há áreas do conhecimento que dependem de estímulos e são
de estabilização tardia, como, por exemplo, a produção e a compreensão de relativas de
objecto (Costa et al: 2009; Vasconcelos: 1991) ou a produção de relativas de PP
(Fontes: 2008; Valente: 2008).
É, além do mais, fundamental a identificação das áreas do conhecimento
linguístico cujo conhecimento explícito não pode ser construído através da explicitação
de conhecimento intuitivo, porque este não existe. Por exemplo, não existe
conhecimento implícito e intuitivo sobre aspectos convencionais da língua, como a
pontuação ou as regras de ortografia e, em geral, as diferenças entre a gramática do oral
e a gramática da escrita. Outros aspectos do conhecimento da língua, como a adequação
de registos ao contexto situacional e algumas regras pragmáticas das interacções
comunicativas, têm de ser formalmente ensinados. Finalmente, o conhecimento lexical
beneficia da exposição a contextos de aprendizagem propícios ao alargamento do
vocabulário (Giasson:1993).
Mesmo no caso de conhecimento que depende estritamente da instrução formal,
é crucial a sua ancoragem em conhecimento estabelecido a partir de um processo de
explicitação de conhecimento sobre a língua. A título de exemplo, note-se que um
conhecimento mais consolidado de regras de uso de vírgula depende de consciência e
conhecimento de unidades sintácticas e que o domínio de regas de ortografia depende
de consciência metafonológica e metassilábica sólidas.
O ensino da gramática, no quadro da «linguistic awareness», enquanto processo
de explicitação de conhecimento linguístico, assume objectivos que ultrapassam os
limites praxistas mencionados relativamente às outras abordagens (escrever bem e falar
bem, na gramática tradicional, e resolver problemas de compreensão e de expressão, na
oralidade e na escrita, na gramática comunicativa). Segundo Duarte (1998), de facto, a
par de objectivos instrumentais, que visam (i) o domínio dos registos da variedade
padrão da língua, (ii) o aperfeiçoamento e o uso mais diversificado e sofisticado de
39
estruturas linguísticas, (iii) a facilitação da aprendizagem de línguas estrangeiras e (iv) o
desenvolvimento de capacidades de estudo, o ensino da gramática cumpre objectivos
atitudinais-axiológicos e objectivos de desenvolvimento de competências cognitivas
gerais e específicas.
Do ponto de vista atitudinal, como defende Hudson (1992), a consideração da
língua padrão como uma variedade entre as outras, que se vão descrevendo e
comparando na aula de língua materna, através da explicitação das diferenças entre
variedades, garante o «desenvolvimento da auto-confiança linguística» dos alunos, que
chegam à escola a dominar uma variedade que não a valorizada no meio escolar
(Duarte: 1998) e promove o «desenvolvimento da tolerância linguística e cultural
(ibidem), pelo reconhecimento do estatuto de objecto de estudo escolar das diferentes
variedades da língua.
No que respeita aos objectivos de desenvolvimento de competências cognitivas,
como se mencionou ao fazer-se a caracterização de abordagens «language awareness»,
estes são promovidos pelo treino do pensamento analítico e pelo facto de se aplicar à
língua o método que envolve as fases da análise científica: observação de dados,
comparação, inferência de regras e formulação de generalizações, confirmação ou
infirmação das conclusões mediante a consideração de novos dados. Do ponto de vista
do desenvolvimento de capacidades cognitivas e metacognitvas específicas, este modo
de trabalhar a língua providência aos sujeitos não só consciência de um sistema de
conhecimento que detêm enquanto membros da espécie humana – a linguagem -, mas
também instrumentos cognitivos para a descrição e análise da sua língua.
Para a operacionalização da construção de conhecimento gramatical, autores
como Hudson (1992) e Duarte (1992; 1998; 2008) defendem propostas de ensino da
gramática concebidas como actividades de «aprendizagem pela descoberta». As
actividades de «aprendizagem pela descoberta», estruturadas à maneira bruneriana e
aplicadas ao ensino da gramática, pressupõem um trabalho faseado de construção de
conhecimento sobre a língua. Em primeiro lugar, para tornar os alunos conscientes das
suas capacidades linguísticas, é preciso desenvolver um trabalho de activação do
conhecimento linguístico que envolva a manipulação de estruturas e a exposição a
contextos linguísticos alvo. Posteriormente, pode, então, proceder-se ao trabalho de
explicitação, sistematização e classificação de processos e unidades da língua, com
eventual recurso a instrumentos metalinguísticos.
40
A organização do ensino desta forma exige um trabalho prévio do professor, que
pode organizar as actividades em formato de «oficina» ou de «laboratório»15. Em
algumas fases do trabalho de oficina e para alguns aspectos do conhecimento da língua,
o recurso a metalinguagem é totalmente dispensável (Costa: 2009), não sendo o
domínio de definições e de conceitos o objectivo deste tipo de trabalho sobre a
gramática da língua.
As principais operações cognitivas estimuladas pelo trabalho laboratorial sobre a
língua (comparação, análise, síntese, categorização) envolvem a capacidade de formular
generalizações através da detecção de regularidades (antes de se focar o interesse do
ensino sobre situações de excepção) e requerem a activação de intuições dos alunos,
falantes da língua objecto de estudo. A aprendizagem da gramática através da
observação de dados, da tomada de consciência do conhecimento implícito e da
formulação e verificação de hipóteses e regras promove hábitos de reflexão sobre a
língua que permitem uma compreensão mais clara dos casos verdadeiramente
excepcionais, os quais devem ser aprendidos ou associados apenas a determinados
registos.
Também a selecção do material linguístico para estudo requer uma planificação
cuidadosa por parte do professor. Esta tarefa é facilitada pela natureza dos dados
necessários a uma actividade de explicitação de conhecimento linguístico, uma vez que,
como sublinha Hudson (1992, 10), «most of the data needed for a grammar lesson are
already in the children’s heads, so the teacher’s role is mainly to guide them in
exploring the patterns in the data and in gradually expanding their linguistic horizons».
Além de jogar com o conhecimento de língua dos seus alunos e, eventualmente,
com as produções orais e escritas destes, o professor deve fazer uso de corpora
linguísticos diversificados. Após o trabalho cuidado de selecção dos dados a apresentar
aos alunos, que devem ser suficientes e relevantes para o conteúdo em análise, o
professor tem de construir paradigmas para a descrição do aspecto gramatical a estudar,
organizados de tal forma que orientem o aluno para a (i) descoberta de regularidades ou,
por outras palavras, de propriedades distintivas; (ii) inferência de regras, através da
detecção de regularidades; (iii) validação dessas regras pelo confronto com novos
15
Para o ensino do português, existe uma bibliografia considerável com exemplos de oficinas gramaticais
(Correia e Lemos: 2005; Costa e Costa: 2001; Duarte: 1992; 2008; Freitas e Santos: 2001; Gonçalves e
Costa: 2002; Costa et al.: 2010, e.o.).
41
dados; e (iv) eventual reformulação das primeiras regras, formulando generalizações
com um poder descritivo que possa ser validado empiricamente.
Depois de cumprido o anterior percurso de «oficina gramatical», o ensino de um
dado conteúdo não pode ser dado como concluído. É ainda necessário criar momentos
de treino, para consolidação das aprendizagens, que podem envolver ou não a
mobilização do conhecimento que se construiu em situações de uso e que podem prever
situações de avaliação das aprendizagens.
A questão da mobilização do conhecimento gramatical em situações de uso é
particularmente interessante e exemplifica a articulação estreita que existe entre o
desenvolvimento de objectivos específicos e de objectivos instrumentais de ensino da
gramática. Propostas de didáctica da escrita como os «chantiers», de Jolibert (coord.)
(1988), incluem trabalho de reflexão sobre estruturas gramaticais cujo funcionamento
deve ser explicitado, a par da construção de conhecimento sobre características
tipológicas do texto a produzir. Os «estaleiros de escrita»16, que prevêem uma fase de
«actividades de reflexão metalinguística», são exemplo de como se pode articular o
ensino da gramática com uma metodologia de trabalho de projecto para o ensino da
escrita.
Apesar de haver exemplos de actividades de mobilização de conhecimento
gramatical
em
situações
de
escrita,
consagrados
pelo
desenvolvimento
de
investigação-acção, como é este caso dos «chantiers d’écriture», nem sempre é
consensual que haja efectivamente um efeito positivo dos conhecimentos gramaticais na
competência de escrita.
2.3. Apresentação do problema geral de investigação: pode estabelecer-se uma
correlação positiva entre conhecimento explícito da língua e competência de
escrita?
Nas secções anteriores, apresentaram-se diferentes abordagens de ensino da
escrita e de ensino da gramática que, de alguma forma, serão retomadas nos capítulos
seguintes, em particular no Capítulo 4, na explicitação das opções tomadas quanto a
desenho experimental e metodologia. A cada uma das três perspectivas de ensino da
gramática que se caracterizaram na secção 2.2. corresponde uma concepção diferente do
16
Tradução de Amor (1993).
42
papel do ensino da gramática no desenvolvimento da escrita. Assim, de um ponto de
vista tradicional, o conhecimento da gramática serve a correcção da escrita, garantindo o
cumprimento da norma. Numa visão comunicativa do ensino da gramática, a análise e
reflexão sobre o funcionamento da língua pode ser espoletada por dificuldades de
expressão escrita. Finalmente, numa perspectiva de «language awareness», podem
estabelecer-se relações entre gramática e escrita a dois níveis: em primeiro lugar, ao
nível da consciencialização de estruturas linguísticas e de processos cognitivos
requeridos numa determinada situação de escrita, para um dado género textual; em
segundo lugar, ao nível do desenvolvimento linguístico, na medida em que o processo
de explicitação de conhecimento linguístico pode ter o objectivo, também ele
instrumental, de estimular a compreensão e produção de estruturas de aquisição mais
tardia. Algumas destas estruturas cujo domínio estabiliza mais tarde encontram os
contextos linguísticos adequados à sua ocorrência em situações de escrita, em protótipos
textuais que exigem níveis superiores de mestria de língua.
Uma primeira questão de investigação, de carácter geral é, pois, se existem
efectivamente efeitos do conhecimento explícito da língua no desenvolvimento da
competência de escrita. Esta questão pode ser colocada relativamente a alguns aspectos
mais específicos, como:
• Qualquer abordagem de ensino da gramática beneficia a competência de escrita?
• Qualquer conteúdo de conhecimento explícito tem impacto no desempenho da escrita?
• Como se relacionam o desenvolvimento do conhecimento linguístico, o
desenvolvimento do conhecimento explícito da língua e o desenvolvimento da
competência de escrita?
A literatura acerca da existência de correlações positivas entre conhecimento
linguístico e escrita é abundante, mas nem sempre optimista. James e Garrett (1991, 20),
depois de fazerem uma resenha sobre investigação no quadro da «language awareness»
(LA), relativa a efeitos da explicitação do conhecimento linguístico na «performance»,
afirmam: «[w]e must reiterate that much of what we have said or have quoted from the
writings of other people on the issue of the effects of LA work on performance is largely
conjecture. Conjecture it will remain, until such a time as research funding is made
available for language educationists to address these questions empirically».
43
Centrando-se em questões relacionadas com a história recente do ensino da
gramática, no mundo anglo-saxónico, Hudson (2001, 1-6), em «Grammar Teaching and
Writing Skills: the Research Evidence», faz a resenha de dezenas de trabalhos de
investigação que, desde os anos cinquenta, têm contribuído para discutir o valor do
ensino da gramática na aprendizagem da escrita. Segundo o autor, investigação
disponível sobre o assunto tem sido usada como argumento para tomadas de opção
sobre o papel da gramática no currículo, ao nível político, sem que haja, por vezes,
conclusões sólidas sobre as matérias, o que gera instabilidade e críticas. O que é
evidente é que os resultados de investigação neste âmbito são muito relevantes para as
decisões sobre currículo.
As evidências empíricas disponibilizadas pela investigação referida por Hudson
não são conclusivas e ainda menos consensuais. À pergunta sobre por que razão o
ensino da gramática parece ser tão difícil, havendo quem coloque a hipótese de que não
é um conhecimento relevante, pelo menos para alguns níveis de ensino, o autor
responde que «[m]y international survey showed that grammatical analysis is regularly
taught in some countries to children as young as six or seven (Hudson 1998), and the
evidence from developmental psychology is that metalinguistic awareness starts to
develop naturally between 5 and 7 years (Herriman 1994).
All that the early research seems to show, therefore, is that it is possible to teach
grammar in such a way that children learn nothing; but this is hardly surprising - the
same is surely true of any subject. However the early research should act as a warning
to any who might argue that any kind of grammar teaching is better than none.» Estas
palavras de Hudson conduzem a conclusões a dois níveis: primeiramente, os dados
confirmam que, mesmo numa perspectiva de desenvolvimento cognitivo, é possível
ensinar e aprender gramática desde os primeiros anos de escola; em segundo lugar, tudo
indica que há uma relação entre o tipo de abordagem de ensino da gramática e o sucesso
desse ensino.
Todavia, relativamente a perspectivas de ensino da gramática e a tipo de
gramática a ensinar, Husdson mostra que há investigação que suporta a ideia de que a
análise gramatical beneficia a escrita, mas não há dados conclusivos relativamente ao
método de ensino (mais tradicional ou menos tradicional, i.e., com transposições da
gramática transformacional e da gramática sistémica) com maior sucesso. De qualquer
modo, parece ser claro que o escopo do ensino da gramática deve ser mais largo do que
44
o tradicional, que abrangia as unidades até ao nível frásico, devendo abarcar
propriedades relevantes para a organização dos discursos e dos textos.
A hipótese de que o desenvolvimento da competência de escrita beneficia de
uma aprendizagem formal e sistematizada sobre a gramática da língua é sustentada por
diversos estudos e intervenções, desenvolvidos nas últimas década, decorrentes do facto
de se ter aberto o debate generalizado em torno do papel da gramática no currículo de
língua materna. Há vários estudos, internacionais (Grabe e Kaplan: 1996, 36-59;
Hudson: 2001; 2004; Menyuk: 1988, 270-293; Menyuk e Brisk: 2005, e.o) e nacionais
(Pereira: 2000, 271-316; Sim-Sim: 1998, 213-250; entre outros), que defendem que, na
base da aprendizagem e desenvolvimento da leitura e da escrita, está a capacidade de
metaprocessar conhecimento sobre a língua. Trabalhos mais recentes, decorrentes da
reflexão sobre as alterações provocadas pela implementação da TLEBS (2002) / DT
(2008) no ensino da língua materna, confirmam a existência de uma relação positiva
entre o conhecimento de áreas específicas da gramática e o desenvolvimento de níveis
superiores de proficiência de escrita (Ana Costa: 2006; 2009; Armanda Costa: 2007;
João Costa: 2007; 2008; Duarte: 2009; Rodrigues e Silvano: 2009, e.o.).
A propósito da hipótese de que o conhecimento explícito da língua que é
relevante para a escrita se circunscreve a áreas específicas, Hudson (2001, 3), refere a
investigação finlandesa de larga escala (com mais de três mil alunos) conduzida por
Laurinen (1955). Segundo este estudo, entre os alunos mais jovens, os resultados ao
nível do domínio da pontuação, na escrita, foram equivalentes nas turmas expostas a um
ensino formal da gramática e nas turmas em que não houve ensino da gramática. Ao
contrário, entre os alunos mais velhos que tinham aprendido análise sintáctica o sucesso
no domínio da pontuação contrastou com os resultados neste domínio na escrita dos
alunos que não tinham sido expostos às mesmas aprendizagens. Em concreto, os alunos
que tiveram bons resultados em pontuação sabiam distinguir subordinadas de orações
principais, ainda que o seu conhecimento de listas prescritas de conjunções se tivesse
revelado menos importante. Relativamente a este estudo, Hudson (2001, 3) destaca,
como conclusões, que há condições para que o ensino da gramática tenha,
efectivamente, um efeito positivo na escrita, sendo elas:
45
« • It is clearly focussed on one particular area of grammar (subordinate and main
clauses) which correlates with an aspect of writing where children need help
(punctuation).
• It is spread over many years - at least from third to sixth grade.
• It starts in primary school.»
A importância de se definir uma área particular do ensino da gramática, que
obtenha impacto efectivo na especificidade da aprendizagem da escrita (mais do que
necessidades pontuais de aprendizagem, eventualmente aferidas a partir das produções
de um grupo de alunos) é uma questão crucial para a presente investigação. Que
aspectos do conhecimento formal da gramática podem ser isolados e considerados
basilares para um desenvolvimento adequado e sofisticado da competência de escrita?
Do ponto de vista de uma didáctica da escrita, vários estudos, mencionados na
secção 2.1., apontam para a importância de um ensino centrado em géneros textuais,
produzidos em contexto (Grabe e Kaplan: 1996; Hyland: 2001; Pereira: 2000, e.o.).
Deste modo, sendo evidente que é necessário definir um aspecto do conhecimento
gramatical que seja determinante na aprendizagem da escrita, parece ser uma pista
interessante a hipótese de que isso seja feito por referência a um protótipo textual
específico17. Assim, no capítulo seguinte, tendo sido feita a explicitação da questão
geral de investigação – será que a gramática tem efeitos positivos na escrita? –
proceder-se-á à explicitação das questões específicas de investigação, determinada pela
identificação de uma área concreta do conhecimento gramatical, reconhecida como
relevante para o alcance de níveis superiores de proficiência de escrita.
17
Em defesa da ideia de que se podem definir perfis de tipos de texto através da análise de características
linguísticas específicas, em particular sobre texto expositivo e texto narrativo, consulte-se Ragnarsdóttir
et al.: 2002, 95-125.
46
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