A RELAÇÃO TEXTO/GRAMÁTICA: CRENÇAS DE PROFESSORES DE LÍNGUA PORTUGUESA Luciane Sippert (Mestranda em Educação nas Ciências, UNIJUÍ) Lucia Rottava (UNIJUÍ) RESUMO: Este trabalho tem como objetivo identificar as crenças de professores com relação a texto/gramática no ensino de Língua Portuguesa. Os dados foram obtidos por meio de uma entrevista semi-estruturada aplicada a professores de Língua Portuguesa atuantes nas Séries Finais do Ensino Médio e gravações de sala de aula. Os resultados sugerem que embora estes professores demonstrem ter um certo conhecimento teórico das discussões lingüísticas a respeito da relação texto/gramática no ensino de LP, suas práticas metodológicas divergem de seu discurso. É possível afirmar que as professoras adquiriram o discurso acadêmico, no entanto não conseguem transformá-lo em realidade prática na sala de aula. Constatando-se, assim, que estes professores são influenciados muito mais por seu conhecimento prático do que pelo conhecimento científico, propriamente dito. Uma contribuição deste estudo diz respeito à reflexão sobre as implicações que a cultura de ensinar do professor apresenta no ensino de Língua Portuguesa. PALAVRAS-CHAVE: Texto; Gramática; Crenças; Ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa. INTRODUÇÃO Estudos que tratam das crenças ou da cultura de ensinar de professores têm indicado que elas apresentam uma forte influência no processo ensino/aprendizagem de Línguas. Esses estudos foram desenvolvidos em contextos de Língua Estrangeira (Barcelos, 2001; Almeida Filho, 1993 e Gimenez, 2000, dentre outros) investigando, por exemplo, quais fatores que poderiam estar influenciando a prática do professor. Entretanto, pesquisas em contextos de português como Língua Materna são recentes e muitas questões merecem ser investigadas, dentre elas se as experiências de aprendizagem que os aprendizes vivenciaram em contextos de sala de aula, particularmente em aulas cujo foco era o ensino da gramática ou em aulas que estes alunos eram instados a produzir textos, têm apresentado influências no processo ensino/aprendizagem de Língua Portuguesa (doravante LP) Abordagens de ensino de LP mais recentes (PCNs, 1997; Travaglia, 1998 e 2003; Neves, 2002 e 2003) têm indicado que no processo ensino/aprendizagem de 2 LP o texto e a gramática não devem ser ensinados como se fossem dimensões distintas do processo ensino/aprendizagem. Desse modo, levanta-se a hipótese de que as experiências de aprendizagem que os professores tiveram no Ensino Fundamental (EF) e Ensino Médio (EM) com relação ao texto e a gramática entram em conflito com uma proposta que vê uma relação intrínseca entre texto/gramática. A falta de clareza entre essa integração texto/gramática no processo de ensino/aprendizagem da língua tem gerado tensão entre o ensino do texto e da gramática, como se um excluísse o outro. Pressupõe-se que essa falta de clareza se deve ao fato de que a maioria dos professores não possui um conhecimento mais aprofundado sobre as diferentes concepções de texto e de gramática e, conseqüentemente, pouco compreendem a relação que há entre eles, ou como seria possível trabalhar com o texto e a análise lingüística juntamente, visto que o texto não deveria ser visto como uma unidade isolada. Essa lacuna pressupõe a ênfase gramatical recorrente no ensino da LP, pois ao ignorar as discussões teóricas sobre a língua para além de uma perspectiva estruturalista, a maioria dos professores tem enfatizado o ensino de conceitos gramaticais, repassados para os alunos de uma forma ambígua ou errônea, não contribuindo para o desenvolvimento de sua competência comunicativa. Um exemplo disso está no ensino das classes gramaticais, que são apresentadas ao aluno a partir de definições, sem que os critérios de classificação sejam explicitados ou que os objetivos da própria classificação sejam considerados. Assim, o aluno aprende nomes de classes e definições, faz exercícios, mas não consegue entender a razão de tais classificações. O que segundo Geraldi (1996, p. 133), é compreensível, uma vez que a teoria gramatical tradicional que embasa os estudos escolares não tem critérios muito precisos – ora os critérios são morfológicos, ora semânticos, ora sintáticos. Além disso, toda classificação responde a algum objetivo teórico (em língua não há classes naturais e aquelas que construímos respondem a alguma necessidade do estudo teórico que as produziu), e este objetivo nunca é explicitado no ensino da gramática (a classificação parece ter um valor em si). Em conseqüência disso, recursos humanos e materiais têm sido 3 desperdiçados numa atividade vazia de significado, e após onze anos de escola o aluno ainda não se sente instrumentalizado lingüisticamente como deveria. Apesar dos professores, durante a graduação, entrarem em contato com discussões teóricas que abordam os diferentes tipos de gramática e o texto sob diversas perspectivas, bem como experenciarem discussões sobre a relevância de se tomar o texto como “eixo” central do ensino de língua, na prática, tem-se observado um tratamento distinto, embora estes professores mencionem, em situação de entrevista, trabalhar o ensino do texto e da gramática de forma integrada. Pressupõe-se, então, que os mesmos são influenciados muito mais por seu conhecimento prático do que pelo conhecimento científico, propriamente dito, e, conseqüentemente, tentam ensinar os seus alunos da mesma maneira que aprenderam, isto é, a partir da sua cultura de aprender e ensinar. Essa distância que há entre a formação teórica, o discurso e a prática dos professores, remete à importância da cultura de ensinar para entender o discurso e a prática do professor, uma vez que se torna relevante não só analisar o discurso deste, mas também a sua prática em sala de aula, bem como as crenças pessoais que exercem influência no contexto de ensino/aprendizagem. Desta forma, considerando a hipótese/lacuna explicitada e o objetivo deste estudo, qual seja, explicitar as crenças de professores com relação a texto/gramática no ensino da LP, tem-se como orientação para a análise a seguinte pergunta de pesquisa: quais são as principais crenças apresentadas por professores durante o processo de ensino/aprendizagem da língua, principalmente, no que tange à relação texto/gramática? PRESSUPOSTOS TEÓRICOS Nesta seção pretende-se refletir sobre a relação existente entre texto/gramatica, bem como discutir a relevância do estudo de crenças para entender o discurso e a prática do professor de LP. Texto/gramática 4 Para entender as relações entre texto/gramática, retomam-se informações do percurso histórico-teórico da gramática e do espaço ocupado pelo texto no ensino de LP. A disciplina gramatical foi criada na época helenística, com o objetivo de preservar a linguagem autenticamente grega, para transmiti-la às futuras gerações. Desta forma, a língua, numa visão escolástica, era considerada um patrimônio inacessível à maioria da população, conseqüentemente seu domínio era sinônimo de status social (Neves, 1987, p. 103). Esse caráter elitista da Gramática Tradicional transformou-a em instrumento de poder e de dominação de uma pequena parcela da sociedade sobre todos os demais membros da mesma. Da mesma forma que a gramática, a palavra “texto” também tem sua origem na Antigüidade, fazendo parte da história da educação e da constituição da sociedade como um todo (Neves, 1987). Entretanto, os estudos realizados sobre o texto, durante longa data, não contribuíram com a elaboração de uma análise sistemática do mesmo, uma vez que este era tomado apenas como modelo. Essa situação começa a ser questionada somente mais tarde, no séc. XIX, por Michel Bréal, com a semântica histórica. No entanto, apenas no século passado, na década de 20, é dado, pelos formalistas russos, o primeiro passo para o estudo do texto com Jakobson, que procura desenvolver uma análise imanentista do mesmo (Sargentini, 1999, p. 39). Assim, somente a partir do momento em que certas questões da linguagem não puderam ser respondidas dentro dos limites da palavra e/ou da frase, houve uma guinada pragmática nos estudos da linguagem, na década de 60, com o surgimento de inúmeras teorias lingüísticas preocupadas com o uso concreto da língua, provocando com isso um uso comum dessa noção. Porém, como essas teorias possuíam objetivos distintos o texto passa a receber diferentes conotações (Sippert, 2002). Apesar da guinada pragmática ter se dado na década de 60, a discussão em torno do texto e da gramática chega ao Brasil, mais efetivamente, apenas na década de 80. Isso não significa dizer que a partir de então a gramática tenha perdido o seu lugar no ensino, o que acontece, na verdade, é que a palavra “texto” entra em voga. 5 E o uso em demasia deste termo no ensino provoca inúmeras discussões (cf. Geraldi, 1996 e Travaglia, 1998, dentre outros). Neste contexto, quando se fala em gramática torna-se necessário esclarecer de que é que se está falando, uma vez que, de acordo com Neves (2003, p. 29), é possível ir desde a idéia de gramática como “mecanismo geral que organiza as línguas” até a idéia de gramática como “disciplina”, e neste último caso, não se pode ficar num conceito único, sendo necessária uma incursão por múltiplas noções, tais como: gramática normativa, descritiva ou expositiva, gerativa, internalizada, funcional e assim por diante (Travaglia, 1998). Dentre as gramáticas citadas, o presente estudo tem como base a gramática funcional, que procura se integrar, de acordo Neves (2002), em uma teoria global da interação social, considerando a capacidade que os indivíduos têm não apenas de codificar e de decodificar expressões, mas também de usar e de interpretar essas expressões de uma maneira interacionalmente satisfatória, o que está relacionado diretamente com a competência comunicativa do indivíduo. Ao se focalizar a concepção de gramática como o próprio mecanismo de funcionamento da língua e não sua concepção como uma teoria sobre a língua (gramática descritiva) ou uma postura da sociedade sobre como usar a língua (gramática normativa), segundo Travaglia (2003, p. 44-45), é possível perceber que o ensino de gramática e o ensino de produção/compreensão de textos são uma coisa só, uma vez que os textos são produzidos e compreendidos graças à gramática da língua e, portanto, não há como trabalhar com textos sem trabalhar a gramática e vice-versa, já que a gramática da língua funciona apenas em textos. É oportuno enfatizar que a gramática é um construto teórico e, como tal não pode ser esquecida ou abandonada. Contudo, o que se tem tentado salientar é que ao ensinar gramática de forma descontextualizada, a partir apenas de conceitos, ignora-se o trabalho das ciências lingüísticas que reconhecem a necessidade de se tomar o texto como eixo central do ensino. Crenças 6 O termo “crenças” surge em meados dos anos 80, para definir as idéias e opiniões que os professores têm a respeito do processo de ensino e aprendizagem de línguas (Barcelos, 2001). Entretanto, por se tratar de um complexo construto sobre o qual os sujeitos embasam suas ações, diferentes termos têm sido empregados para se referir a esse conceito (Holec, 1987; Abraham & Vann, 1987; Wenden, 1986 e Almeida Filho, 1993). Para Barcelos (2001, p. 73), as crenças são pessoais, contextuais, episódicas, intuitivas e, na maioria das vezes implícitas, socialmente construídas sobre experiências e problemas pessoais vividos como aluno e como professor em sala de aula durante o processo ensino/aprendizagem. De acordo com a autora, essas crenças podem ser inclusive internamente inconsistentes e contraditórias, por exemplo, alguns professores acreditam que o ensino da gramática possibilita ao aluno ler e escrever melhor, ao mesmo tempo em que, sentem-se insatisfeitos com os resultados obtidos pelo ensino voltado às regras e aos conceitos gramaticais. Feiman-Nemser e Floden (1986) consideram que os fatores sociais, econômicos e políticos das instituições em que os professores atuam, além de fatores individuais como idade, background social e cultural, sexo, estado civil e competência, também constituem uma parcela importante na formação das crenças de ensinar. Como esses fatores de influência modificam-se constantemente, pode-se afirmar que o sistema de crenças está em constante reconfiguração, sendo, portanto, de caráter instável. Assim, para que os professores tornem-se mais receptivos às novas informações sobre ensino de línguas, é necessário que estes sejam encorajados a reconhecer e entender suas próprias crenças. A pesquisa sobre crenças mostra-se também relevante na medida que procura entender como as experiências pessoais dos professores e dos alunos influenciam o comportamento dos mesmos e contribuem na elaboração do conhecimento prático pessoal, bem como se tornam fortes indicadores de como estes alunos e professores agem em contexto de sala de aula, uma vez que: As crenças representam uma matriz de pressupostos que dão sentido ao mundo, não sendo, apenas um mero reflexo da realidade, mas sim vão sendo construídas na experiência, no percurso da interação com os demais integrantes desta realidade (Sadalla, 1998, apud Gimenez, 2000, p. 32). 7 Nesse sentido, pode-se afirmar que as crenças variam de indivíduo para indivíduo, de escola para escola e através dos tempos. Desta forma, tanto professores como alunos trazem um conjunto de crenças e atitudes a serem tomadas em situações e decisões relacionadas ao processo de ensino/aprendizagem de LP, o que faz com que a cultura de ensinar e de aprender torne-se um fator importante para o entendimento da aprendizagem neste contexto. METODOLOGIA Contexto e sujeitos de pesquisa A pesquisa foi realizada com duas professoras de LP que atuam no Ensino Médio (EM), na rede pública estadual de ensino em um município da região noroeste do estado do RS. Estas professoras possuem formação em Letras – Licenciatura Plena - e foram identificadas como P1 e P2, respectivamente. P1 tem 36 anos e exerce o magistério há 17 anos. Inicialmente lecionava nas séries iniciais do Ensino Fundamental (EF) e há 13 anos está atuando como professora de LP nas séries finais do EF e no EM. Sua formação inicial se deu em escolas públicas, freqüentou o EM em um colégio particular e tem graduação em Letras, formando-se em 1997. P2 tem 29 anos e leciona LP nas séries finais do EF e no EM há 5 anos. Sua formação inicial – 1ª a 4ª séries - se deu em uma escola municipal multisseriada e as demais séries até o final do EM estudou em uma escola pública estadual. Também cursou a graduação em Letras, formando-se em 2000. Instrumento de coleta de dados Os instrumentos de coleta de dados empregados foram entrevistas semiestruturadas, complementadas com gravações de aulas, em áudio, num período de dois meses. A opção por instrumentos de natureza diversa deve-se ao fato de ter realizado um estudo anterior (Sippert, 2002) e os resultados terem indicado a necessidade de não apenas analisar o discurso do professor, mas também a sua prática. 8 Procedimentos de análise A análise está organizada em dois momentos de discussão. Num primeiro momento, a partir das questões 8, 9, 11, 12 e 13 do bloco II, procurou-se analisar a formação das professoras, a fim de entender suas experiências pessoais e a constituição de sua cultura de ensinar. Num segundo momento, procurou-se entender a percepção das professoras sobre a relação texto/gramática no ensino a partir das questões 7 e 10 do bloco II, das questões 1, 10, 12 e 18 do Bloco III (cf. anexo 1) e das gravações de sala de aula. APRESENTAÇÃO E ANÁLISE DOS DADOS Nesta seção será apresentada a análise das respostas das professoras à entrevista semi-estruturada e das gravações de sala de aula. A ênfase está nas crenças subjacentes à relação texto/gramática no ensino de LP. A constituição da cultura de ensinar das professoras A constituição da cultura de ensinar das professoras pode ser inferida com base nas experiências que tiveram como aprendizes e a maneira como foram expostas ao processo de ensinar/aprender gramática/texto. Percebe-se que as experiências vivenciadas na formação profissional – graduação – são mais salientes, embora elas advêm também da sua formação inicial, ou seja, EF e EM. Os dados dão indicação que as experiências desses sujeitos revelam que seus professores no EF adotavam uma perspectiva de ensino baseada no estruturalismo, concebendo a gramática apenas do ponto de vista normativo, cujo enfoque era o conteúdo gramatical de forma fragmentada. Ambas destacam que no EM o texto passou a fazer parte de suas aulas, porém ainda de uma forma pouco significativa. O que eu lembro é que eles trabalhavam mais a gramática pura, a questão da interpretação, onde o texto e a leitura... era dado muito pouca ênfase para a leitura, a gente não tinha aquela aula de leitura que nem hoje a gente costuma fazer e o texto também muitas vezes ficava esquecido (P1). 9 Bom, no Ensino Fundamental a ênfase era na gramática tradicional e no Ensino Médio já mudou bastante, se trabalhava texto, gramática, tudo num só (P2). O EF e o EM, de acordo com as entrevistadas, deixaram lacunas em sua formação. Para P1 essas lacunas referem-se especialmente à leitura, pois esta era pouco trabalhada, sendo mais amplamente desenvolvida apenas na graduação. P2, por sua vez, acredita que as lacunas em relação à leitura e à escrita devem-se ao seu aproveitamento insatisfatório, pois na época não estava muito interessada em aprender. As professoras acreditam que o curso de Letras contribuiu para sua formação, pois forneceu embasamentos teóricos para entenderem a sua prática pedagógica, como se pode observar nas falas das mesmas: o curso dá a teoria, né, aquela teoria, o embasamento, né, depois você vai ter que buscar, mas contribuiu muito [...] Eu acho que através dos estudos lingüísticos eu pude aprender que a gente tem que aprender a usar a língua, valorizar o uso da língua e não só a parte da gramática. O falante tem que saber usar a língua nas diferentes situações do dia-a-dia. Acho que nesse sentido, até pra gente trabalhar com o aluno, porque a gente valorizava aquela gramática pura e hoje a gente já vê por um outro lado. Se hoje o aluno sabe usar sua língua ele já é um falante considerável (P1) Eu acho que sim, né, porque aí que a gente tem uma visão do geral, porque a gente estuda, porque a gente ensina a Língua Portuguesa, a gramática, né, eu acho que é por aí (P2) Pelo discurso de P1 e P2, pode-se inferir que há, na verdade, focos distintos em relação a texto/gramática no EF, EM e na Graduação. Na Educação Básica apenas tinham contato com a regra e no Ensino Superior teriam contato com a teoria. Pela dificuldade de estabelecer uma relação entre essas diferentes experiências com relação ao ensino/ aprendizagem de LP, o discurso acadêmico é insuficiente e quando se vai para a sala de aula é que esse conflito aparece. A percepção das professoras sobre a relação texto/gramática no ensino Pelos dados percebe-se que as professoras vêem uma relação entre texto/gramática e a necessidade de trabalhar isso. 10 Claro que há uma relação entre texto e gramática, porque não... não... se não houvesse essa relação não teria sentido trabalhar a gramática, né? A gramática tem que ser integrada no texto, na produção, né, na interpretação, em tudo. Só a gramática pura não, de nada adianta o aluno saber as regras se ele não souber empregar (P1). Eu acho que tem toda a relação porque você não consegue escrever alguma coisa, por no papel se você não tem o conhecimento da gramática (P2) Ambas as professoras afirmam que não há como trabalhar com o texto sem trabalhar com a gramática e vice versa. Segundo elas, essa relação texto/gramática pode ser contemplada no ensino de LP iniciando a aula sempre a partir de um texto, trazendo textos de gêneros diversos para a sala de aula, a fim de desenvolver a leitura/interpretação, a produção textual e os aspectos gramaticais. Em todas as turmas eu gosto de trabalhar com texto, procuro textos de preferência que abordem assuntos ligados à realidade deles, procuro textos de jornais, mesmo em livros didáticos. A gente procura textos em vários livros didáticos, seleciona eles, trabalha interpretação, mas não só aquelas questões de interpretação que tem no livro, elaboro outras, procuro trabalhar a gramática o que eu posso, o que eu consigo eu procuro trabalhar ela contextualizada... (P1) ... no início de minhas aulas [...] a gente procura partir de uma mensagem depois trabalha um texto e a partir desse texto enfoca a gramática e depois produção e outras coisas mais (P2). Apesar dos sujeitos perceberem essa relação, eles têm dificuldade de articulá-la no dia-a-dia, como se pôde constatar nas observações de sala de aula. Isso porque, possivelmente, não basta saber a teoria e precise-se de exemplos. O dia-a-dia em sala de aula As aulas gravadas revelam que o discurso das professoras não condiz com a sua prática metodológica, a qual segue dois caminhos bem definidos: trabalha-se o texto pelo próprio texto ou trabalha-se a gramática por meio de conceitos e regras. 1 5 P1: Baseado nos textos da prova do vestibular e no conhecimento de vocês vamos produzir uma dissertação. Mas antes nós vamos ler um texto dissertativo para ver como se organiza a introdução, o desenvolvimento e a conclusão. Eu vou dar a folhinha para cada um e essa folhinha é preciosa, 11 guardem ela. Quando vocês querem fazer uma dissertação vocês puxem ela... Quando o assunto de uma dissertação é muito amplo é mais difícil para escrever, pois aí eu vou ter que delimitar sobre o que eu vou falar, para não se perder. Se eu 10 vou fazer uma viagem eu preciso fazer um roteiro, assim uma redação é que nem uma viagem por isso numa redação temos que fazer o rascunho, nunca se faz uma redação direta. Quando se passa a limpo se retira o que está sobrando e se acrescenta o que está faltando. Tá? Quem quer ler o texto pra nós? A: (Lê o texto “O fim do Vestibular?”) P1: Nesse texto nós vemos que ele é um texto dissertativo. Por que ele é dissertativo? 15 A: Porque tem argumentos sobre um tema. P1: Por que ele apresenta um assunto, apresenta argumentos e uma possível conclusão. No próprio título o autor já apresenta um problema através de uma interrogação e no decorrer do texto tenta respondê-la.Vamos responder as questões a partir do texto e aí vocês conseguirão escrever a redação com mais facilidade? Pela análise dessa aula percebe-se que a professora estava preocupada em trabalhar os aspectos formais de uma dissertação (l. 1-5). Desta forma, trouxe o texto para exemplificar como se escreve uma ‘dissertação’, para interpretação e como pretexto para a produção textual (l. 1-2, 19). Percebe-se, porém, que em nenhum momento fez-se referência aos aspectos lingüísticos/gramaticais do texto, detendo-se apenas em seus aspectos estruturais (introdução, desenvolvimento e conclusão). Por outro lado, a professora P2 desenvolve momentos de estudo sistemático da gramática, como se observa na seguinte passagem: 1 P2: Hoje nós vamos revisar as classes gramaticais já trabalhadas e especialmente os pronomes e verbos. Vamos rever todas as classes. Eu vou colocar um exemplo no quadro e a partir desse exemplo a gente vai fazendo a classificação. Ex: 5 Prendi teu cachorro, mas não o maltratei. Agora vamos analisar cada palavra e fazer a análise morfológica das mesmas. O que é prendi? A: Verbo! P2: E teu? A: Pronome! P2: Esse pronome indica o quê? 10 A: Que o cachorro é dele. A: Então indica posse. P2: O que é cachorro? A: Um substantivo. 12 A: É um substantivo concreto, né professora? 15 P2: É sim e o mas? A: Esse eu não lembro! A: É preposição? P2: Nós não estudamos ainda, mas vamos estudar nas próximas aulas. O mas é uma conjunção! Pelo exemplo, observa-se a ênfase à estrutura gramatical, buscando segmentar a estrutura da língua (l. 2-5) antes de integrar as funções que a língua desempenha nas suas relações tanto internas quanto externas. Parece, contudo, que os alunos têm na “ponta da língua” a classificação morfológica (l. 6, 8, 10-11, 1314). Quando o aluno demonstra não acertar a classificação, a professora sugere que esta classe de palavra é algo a ser estudado (l. 18-19) como se a língua em seu uso real obedecesse a uma seqüência rígida. Percebe-se que as professoras até adquiriram o discurso acadêmico e consideram ineficiente o modo como foram ministradas as aulas de LP no EF e EM. No entanto, seus procedimentos metodológicos não condizem com o que elas acreditam, pois na prática trabalham o texto e a gramática como se estes tivessem um fim em si mesmos. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este trabalho teve como objetivo identificar as crenças com relação a texto/gramática no ensino de LP, a fim de entender a falta de clareza que perpassa essa relação. Em síntese, constatou-se por meio da análise do discurso e da prática das professoras em sala de aula as seguintes crenças: 13 CRENÇAS P1 Diz Faz x x 1. Há uma relação entre texto/gramática. 2. A aula de LP deve sempre partir de um texto 3. O estudo da gramática dá-se por meio do estudo sistemático das regras. 4. Não há como trabalhar com o texto sem trabalhar com x a gramática. 5. O ensino gramatical contribui para a leitura e para a x produção textual dos alunos. 6. O texto é trabalhado como pretexto para interpretação e produção textual P2 Diz Faz x x x x x x Os resultados sugerem que embora as professoras demonstrem ter um certo conhecimento teórico a respeito da relação texto/gramática no ensino de LP, suas práticas metodológicas divergem de seu discurso. É possível afirmar que estas adquiriram o discurso acadêmico, no entanto não conseguem transformá-lo em realidade prática na sala de aula, gerando assim um conflito entre o que elas acreditam e o que realmente fazem. Constatando-se, assim, que os sujeitos desta pesquisa são influenciados muito mais por seu conhecimento prático do que pelo conhecimento científico, propriamente dito. Desta forma, pode-se dizer que a abordagem/a metodologia de um professor é resultado de suas crenças, isto é, de como o mesmo interpreta o seu papel na sala de aula, como ele se vê, como vê os seus alunos, os outros professores e os próprios conteúdos de ensino. Estas crenças, no entanto, não estão estagnadas, pelo contrário, estão em constante reconfiguração, pois ao entender melhor aquilo que faz, enriquecendo o seu conhecimento prático e científico, o professor vai modificando o seu comportamento, as suas atitudes e, conseqüentemente, a sua própria cultura de ensinar. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAHAM, R. G.; VANN, R. J. Strategies of two language learners: A case study. In: WENDEN, A.; RUNIN, J. (Ed.) Learner strategies in language learning. Londres: Prentice Hall, 1987. p. 85-102. 14 ALMEIDA FILHO, J. C. P. Dimensões Comunicativas no Ensino de Línguas. Campinas: Pontes, 1993. BARCELOS, A. M. F. Metodologia de pesquisa das crenças sobre a aprendizagem de línguas: estado da arte. In: Revista Brasileira de Lingüística Aplicada, v. 1, 2001. p. 7192. FEIMAN-NEMSER E FLODEN. The cultures of Teaching. In: WITTROCK (ed.) Handbook of Research on Teaching. 3 ed. New York: Collier MacMillan Publisheers, 1986. GERALDI, J. W. Linguagem e ensino. Exercícios de militância e divulgação. Campinas: Mercado Aberto de Letras/ALB, 1996. GIMENEZ, T. Crenças de licenciados em letras sobre o ensino de inglês. In LEFFA, Wilson J. (Compilador). Tela (Textos em Lingüística Aplicada). Pelotas: Educat. [CDROM], 2000. HOLEC, H. The learner as manager: managing learning or managing to learn? In: WENDEN, A.; RUNIN, J. (Ed.) Learner strategies in language learning. Londres: Prentice Hall, 1987. p. 145-156. Ministério da Educação e do Desporto – Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: língua portuguesa. Brasília, 1997. NEVES, M. H. M. A vertente grega da Gramática Tradicional. São Paulo: HUCITEC, 1987. p. 101 - 143. ____. A gramática: história, teoria e análise, ensino. São Paulo: Editora UNESP, 2002. ____. Que gramática estudar na escola?São Paulo: Contexto, 2003. SARGENTINI, V. M. O. A construção da análise do discurso: percurso histórico. In: Revista Brasileira de Letras, vol. 1, 1999. p. 39-44. 15 SIPPERT, L. Crenças subjacentes às concepções de texto no ensino de Língua Portuguesa. In: Formas e Linguagens. Ijuí: Ed. UNIJUÍ, ano I, nº 4, out./dez, 2002. p.181 -199. TRAVAGLIA L. C. Gramática e interação: uma proposta para o ensino da gramática no 1º e 2º graus. 4 ed. São Paulo: Editora Cortez, 1998. ____. Gramática ensino plural. São Paulo: Cortez, 2003. WENDEN, A. Helping language learners think about learning. ELT Journal, v. 40, n.1, 1986. p. 3-12. ANEXO 1 ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA I – Dados Pessoais e Profissionais Qual é seu nome e qual é a data do seu nascimento? Há quanto tempo exerce o magistério? Há quanto tempo exerce a função de professora de Língua Portuguesa? Quais são as séries em que trabalha atualmente? Qual é o nome da (s) escola (s) em que atua: A Escola é pública estadual / municipal ou particular? Quantos professores atuam na escola e quantos trabalham com Língua Portuguesa? 8. A escola dispõe de Biblioteca? Como você qualificaria seu acervo bibliográfico? 9. A escola oferece cursos extracurriculares? Quais? 10. Que recursos didáticos a escola oferece aos professores e alunos? 11. A escola apresenta alguma proposta para o ensino de Língua Portuguesa? Comente. 1. 2. 3. 4. 5. 6. 7. II – Dados de Formação 1. Em que colégios você estudou (Público, particular, religioso, leigo, conservador, moderninho...) desde a alfabetização até o Ensino Médio? 2. Você possui formação superior? Em que área? 3. Qual é o nome da instituição onde realizou sua graduação e em que ano se formou? 4. Possui algum curso de pós-graduação? - Em caso afirmativo: em que área? - Em caso negativo: pretende realizar algum tipo de especialização? Por quê? 5. Você lembra como eram desenvolvidas as aulas de Língua Portuguesa durante o seu Ensino Fundamental? 6. E no Ensino Médio houve alguma mudança significativa? 16 7. Havia uma relação entre o ensino do texto e da gramática? Em que sentido? Comente. 8. Como eram as aulas e/ou seus professores de Língua Portuguesa desde a alfabetização até o Curso de Graduação? 9. Algum de seus professores serviria para ser o seu modelo de professor de Português? Qual e por quê? 10. Que lembranças você tem das atividades que realizou nas aulas de Português em relação à leitura (leituras significativas, mudanças importantes no tipo de leitura, sentimentos a respeito dessa atividade), à produção de texto (temas mais comuns, temas sobre os quais foi interessante escrever (por quê), o que doeu mais nessa atividade, que tipo de alegria ela deu) e à gramática (como tu falas, como tu escreves? Qual é o teu estilo? Pra que serviu aprender gramática?)? 11. Para você, as aulas de Língua Portuguesa do seu Ensino Fundamental e Ensino Médio foram produtivas para a sua formação em relação à leitura e à escrita ou deixaram lacunas? Quais? 12. Em que sentido o curso de Letras contribuiu para a sua formação? 13. Os estudos lingüísticos que você realizou no seu curso de Graduação lhe ajudaram a entender sua prática pedagógica? Por quê? 14. Quais foram os principais motivos que a levaram ao curso de Letras? 15. Você gosta de ser professora de Língua Portuguesa? Por quê? III - O dia-a-dia em sala de aula 1. Como você ministra suas aulas de Língua Portuguesa? Que tipo de atividades propõe para seus alunos? E que tipo de recursos materiais utiliza? Comente. 2. O vestibular influencia a escolha dos conteúdos e/ou metodologia de ensino de Língua Portuguesa? 3. Você adota livro didático com os alunos? Qual? Por quê? - Em caso negativo, por que não adota nenhum livro didático? 4. Para você, há uma relação entre a língua falada e a língua escrita? Como você trabalha com estas noções em sala de aula? 5. Que tipos de textos você costuma trabalhar com seus alunos? 6. Que papel o texto desempenha nas aulas de Português? 7. Como você trabalha a produção textual? Comente. 8. Com que freqüência seus alunos escrevem textos nas aulas de Língua Portuguesa? 9. Que critérios você adota para avaliar os textos de seus alunos e que valor você atribui para os mesmos? 10. Você acredita que o ensino gramatical contribui para a leitura e para a produção textual de seus alunos? Como? 11. É importante trabalhar a gramática na disciplina de Língua Portuguesa? Por quê? 12. Como você trabalha a gramática? Cite um exemplo. 13. Quais os tipos de gramática que você conhece? 14. Em qual (is) tipo (s) de gramática (s) você embasa as suas aulas de Língua Portuguesa? Por quê? 15. Seus alunos gostam das aulas de gramática? Justifique. 16. Que formas você utiliza para avaliar questões relacionadas ao conhecimento textual e gramatical de seus alunos? 17. Como são suas provas de Língua Portuguesa? Há provas específicas de gramática, leitura e interpretação e produção textual? 17 18. Para você, há uma relação entre a gramática e o texto? Como se daria essa relação? Comente. 19. Para você, o que a sociedade espera da disciplina de Língua Portuguesa? Quais são as habilidades que um aluno no final do Ensino Médio deveria ter em relação à língua portuguesa? 20. Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelos alunos na disciplina de Língua Portuguesa? 21. Quais são as principais dificuldades enfrentadas pelo professor de Língua Portuguesa durante o processo ensino/aprendizagem da língua? 22. Para você, o ensino de Língua Portuguesa ministrado hoje nas escolas mudou em relação àquele que você recebeu no seu Ensino Fundamental e Ensino Médio? Em que aspectos melhorou e/ou está deixando a desejar?