0 INTRODUÇÃO

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INTRODUÇÃO
Origem e propósito do livro
O projeto de escrever este livro começou numa conversa que tive com Gian-Carlo Rota na
primavera de 1996. Na ocasião ele lecionava como professor visitante de Matemática e
Filosofia na The Catholic University of America.
Rota chamava freqüentemente a atenção para a diferença entre matemáticos e filósofos.
Matemáticos, dizia ele, tendem a absorver os escritos de seus predecessores diretamente em
seus trabalhos. Eles não fazem comentários sobre os escritos de matemáticos anteriores,
mesmo quando muito influenciados por eles. Simplesmente fazem uso do material que
encontraram em autores que leram. Quando avanços são feitos na matemática, pensadores
posteriores condensam o que foi encontrado e seguem adiante. Poucos matemáticos estudam
trabalhos de séculos passados; comparados com a matemática contemporânea, tais escritos
antigos parecem a eles quase como que trabalhos de crianças.
Em filosofia, por contraste, trabalhos clássicos freqüentemente são mais valorizados como
objetos de exegese que como recursos a ser explorados. Filósofos, observava Rota, tendem a
não perguntar: “Para onde iremos daqui?”. Ao contrário, eles nos informam sobre as doutrinas
dos maiores pensadores. São mais propensos a comentar os trabalhos antigos do que a
parafraseá-los. Rota reconhecia o valor dos comentários, mas pensava que os filósofos
poderiam fazer mais. Além de oferecer exposição, eles deveriam abreviar escritos antigos e
abordar os assuntos diretamente, falando a partir de si mesmos e incorporando em seus
próprios trabalhos o que seus prede9
cessores fizeram. Os filósofos deveriam extrair os conhecimentos tão bem quanto os anotam.
Foi contra esse pano de fundo que Rota me disse, após uma de nossas aulas, enquanto
tomávamos um café na cafeteria da Escola de Direito da Universidade de Columbus: “Você
deveria escrever uma introdução à fenomenologia. Apenas escreva-a. Não diga o que Husserl
ou Heidegger pensaram, apenas diga às pessoas o que é a fenomenologia. Sem título
pomposo; chame-a de uma introdução à fenomenologia”.
Isso me pareceu um conselho muito bom. Há muitos livros e artigos que comentam Husserl; por
que não tentar imitar alguma introdução que ele mesmo teria escrito? Pareceu a coisa certa a
fazer, porque a fenomenologia pode continuar a oferecer uma importante contribuição para a
filosofia atual. Seu capital intelectual está longe de ter sido esgotado, e sua energia filosófica
permanece largamente inexplorada.
A fenomenologia é o estudo da experiência humana e dos modos como as coisas se
apresentam elas mesmas para nós em e por meio dessa experiênccia. Tenta restabelecer o
sentido da filosofia encontrado em Platão. É, além disso, não só uma revivificação de
antiquário, mas algo que confronta as questões levantadas pelo pensamento moderno. Vai
além dos antigos e modernos, e se esforça por reativar a vida filosófica em nossas
circunstâncias presentes. Este livro está escrito, sobretudo, não apenas para informar aos
leitores sobre um movimento filosófico específico, mas para oferecer a possibilidade do
pensamento filosófico em uma época em que tal pensar é seriamente contestado ou largamente
ignorado.
Por ser este livro uma introdução à fenomenologia, utilizou-se nele o vocabulário filosófico
desenvolvido por aquela tradição. Empregaram-se palavras como “intencionalidade”,
“evidência”, “constituição”, “intuição categorial”, o “mundo-da-vida” e “intuição eidética”.
Contudo, não faço comentários sobre esses termos como estranhos a nosso próprio
pensamento. Apenas os utilizo. Julgo que nomeiam fenômenos importantes e os quero tornar
acessíveis aos leitores deste livro. Não apresento, neste livro, o modo como esses e outros
termos se originaram nos escritos de Husserl e nos trabalhos de Heidegger, Merleau-Ponty e
outros fenomenólogos; uso as palavras diretamente porque elas ainda têm vida nelas. É
legítimo, por exemplo, falar sobre evidência enquanto tal, e não apenas sobre o que Husserl
disse sobre evidência. Esses termos não necessitam ser explicados somente pela
demonstração de como outras pessoas deles se utilizaram. Nós não temos de pregá-los na
parede para poder tirar proveito deles.
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Haverá uma cronologia da fenomenologia como apêndice deste livro.
No momento, recordemos simplesmente que Edmund Husserl (1859-1938) foi o fundador da
fenomenologia, e que seu trabalho Investigações lógicas pode, com justiça, ser considerado o
ponto inicial do movimento. O livro apareceu em duas partes, em 1900 e 1901, assim a
fenomenologia começou com o amanhecer do novo século. Portanto, do agora em que nos
encontramos temos mais de uma centena de anos da história do movimento. Martin Heidegger
(1889-1976), discípulo, colega e mais tarde rival de Husserl, foi outra das grandes figuras na
fenomenologia alemã. O movimento também floresceu na França, onde foi representado por
autores tais como Emmanuel Lévinas (1906-1995),Jean-Paul Sartre (1905-1980), Maurice
Merleau-Ponty (1907-1960) e Paul Ricoeur (1913-). Houve significativos desenvolvimentos na
Rússia pré-revolucionária e na Bélgica, na Espanha, na Itália, na Polônia, na Inglaterra e nos
Estados Unidos. A fenomenologia influenciou muitos outros movimentos filosóficos e culturais,
tais como: hermenêutica, estruturalismo, formalismo literário e desconstrutivismo. Durante todo
o século XX foi o maior componente daquilo que se denominou “filosofia continental”, em
oposição à tradição “analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos Estados Unidos.
A fenomenologia e a questão dos aparecimentos
A fenomenologia é um movimento filosófico significativo porque lida muito bem com o problema
dos aparecimentos. A questão dos aparecimentos tem sido parte dos problemas humanos
desde a origem da filosofia. Os sofistas manipularam os aparecimentos através da magia das
palavras e Platão respondeu ao que eles disseram. Desde então, os aparecimentos têm sido
multiplicados e aumentados enormemente. Nós os geramos não só por palavras faladas ou
escritas de uma pessoa a outra, mas por microfones, telefones, filmes e televisão, bem como
por computadores e pela Internet, pela propaganda e pela publicidade. Os modos de
apresentação e representação proliferam e questões fascinantes afloram: Como diferenciar
uma mensagem de email, de uma chamada telefônica e de uma carta? Quem se dirige a nós
quando lemos uma página da web? De que modo são modificados os falantes, os ouvintes e a
conversação pela maneira como nos comunicamos agora?
Um dos perigos com o qual nos deparamos é que com a expansão tecnológica de imagens e
palavras tudo parece se reduzir a meras aparências.
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Nós podemos formular este problema em termos de três temas: de partes e todos, identidade
em multiplicidades e presença e ausência: parece que estamos agora inundados por
fragmentos sem quaisquer totalidades, por multiplicidades carentes de identidades, e por
múltiplas ausências sem nenhuma presença duradoura real. Nós temos bricolage e nada mais,
e pensamos que podemos até inventar a nós mesmos ao acaso juntando convenientes e
agradáveis, mas passageiras, identidades a partir dos bits e pedaços que encontramos ao
nosso redor. Nós recolhemos fragmentos para nos sustentar contra nossa ruína.
Em contraste com esta compreensão pós-moderna de aparência, a fenomenologia, em sua
forma clássica, insiste em que as partes são somente compreendidas contra o fundo dos todos
apropriados, que multiplicidades de aparências aportam identidades, e que ausências não
fazem sentido exceto como jogadas contra as presenças que podem ser alcançadas por meio
delas. A fenomenologia insiste que a identidade e a inteligibilidade estão disponíveis nas
coisas, e que nós mesmos somos definidos como aqueles para os quais estas identidades e
inteligibilidades são dadas. Nós podemos tornar evidente o modo como as coisas são; quando
fazemos assim descobrimos objetos, mas também descobrimos a nós mesmos, precisamente
como dativos de revelação, como aqueles para os quais as coisas aparecem. Não somente
podemos pensar as coisas dadas para nós na experiência, mas podemos compreender também
a nós mesmos enquanto as pensamos. A fenomenologia é precisamente este tipo de
compreensão: a fenomenologia é a autodescoberta da razão na presença de objetos
inteligíveis. As análises neste livro são apresentadas para o leitor como uma clarificação do que
significa para nós deixar as coisas aparecerem e ser dativos para seu aparecimento. Muitos
filósofos reivindicaram que nós podemos aprender a viver sem “verdade” e “racionalidade”, mas
este livro tenta mostrar que podemos e devemos exercitar a responsabilidade e a veracidade se
almejamos ser humanos.
Esboço do livro
Este Introdução à fenomenologia geralmente usa a terminologia formulada por Husserl, que se
tornou padrão no movimento. O capítulo 1 discute a intencionalidade, o tema central na
fenomenologia, e explica por que é um importante tópico em nossa filosofia e em nossa
situação cultural atual. O capítulo 2 desenvolve um exemplo simples do tipo de análise que a
fenome12
nologia proporciona, para dar ao leitor uma amostra de seu estilo de pensamento. O capítulo 3
examina três principais temas da fenomenologia: partes e todos, identidade em multiplicidades
e presença e ausência. Estas três estruturas formais pervadem a fenomenologia, e se estamos
alertados de sua presença, o ponto de muitas questões pode ser mais facilmente captado.
Poderíamos também reivindicar que enquanto os temas de partes e todos e identidade em
multiplicidades (um em muitos) são encontrados em quase todas as escolas filosóficas, o
estudo explícito e sustentado de presença e ausência é original na fenomenologia.
Neste ponto do livro, após havermos apresentado um número de análises fenomenológicas,
torna-se possível voltar atrás e explicar o que é a fenomenologia como uma filosofia e mostrar
como sua forma de pensar difere da experiência pré-filosófica. Esta definição inicial de
fenomenologia é dada no capítulo 4, no qual “a atitude fenomenológica” é distinguida da
“atitude natural”.
Os próximos três capítulos desenvolvem investigações fenomenológicas concretas em
diferentes áreas da experiência humana. O capítulo 5 examina a percepção e suas duas
variantes, memória e imaginação. Examina o que chamaríamos de transformação “interna” de
nossas percepções; além de ver e ouvir coisas, nós também nos recordamos, antecipamos e
fantasiamos, e assim fazendo vivemos uma vida consciente particular, e até secreta. O capítulo
6 passa a uma transformação mais pública de nossas percepções para palavras, imagens e
símbolos. Aqui estamos conscientes das coisas externas que não são meramente percebidas,
mas interpretadas como imagens ou palavras ou outros tipos de representações. Finalmente, o
capítulo 7 introduz o tema do pensamento categorial, no qual não apenas percebemos coisas,
mas as enunciamos, manifestando não apenas objetos simples, mas arranjos e estados de
coisas. No pensamento categorial nos movemos da experiência de objetos simples para a
apresentação de objetos inteligíveis. Este capítulo também contém um tratamento importante
de significados, sentidos e proposições. Esforça-se para responder por “conceitos” e
“pensamentos” como sendo mais públicos do que eles freqüentemente são tomados. Tenta
mostrar que os sentidos e proposições não são entidades psicológicas, mentais ou conceituais.
Compreender proposições e sentidos no modo correto é de uma importância crucial na
discussão da natureza da verdade, especialmente no clima filosófico gerado pela filosofia
moderna. Do capítulo 5 ao 7, então, oferecemos uma descrição fenomenológica de três
domínios da experiência: O campo “interno” da memória e imaginação, o campo “exter13
no” de objetos percebidos, palavras, imagens e símbolos, e o campo “intelectual” de objetos
categoriais.
O capítulo 8 examina o si ou o ego como a identidade estabelecida dentro de todas as
intencionalidades previamente descritas, O si é descrito como o agente responsável pela
verdade. Ele é identificado dentro das memórias e antecipações bem como na experiência
intersubjetiva, e executa os atos cognitivos pelos quais os objetos intelectuais mais elevados,
tais como estados de coisas e grupos, são apresentados. O si é quem toma a responsabilidade
pelos reclamos que faz. A questão do si direciona logicamente, no capítulo 9, ao tópico do
tempo e ao tempo interno da consciência, o qual subjaz à identidade do si. A temporalidade é a
condição para percepções, memórias, antecipações e para o si que viva nelas. Finalmente, o
capítulo 10 examina o mundo habitado pelo si, o “mundo-da-vida”, dentro do qual
experienciamos imediatamente as coisas à nossa volta. Este mundo é a fundação sobre a qual
estão baseadas as ciências naturais modernas. As ciências não provêem uma alternativa para
o mundo no qual vivemos, mas surgem e devem ser integradas dentro dele. Este capítulo
também discute, muito brevemente, o tema da intersubjetividade.
O capítulo 11 volta-se para aquilo que poderíamos chamar de fenomenologia da razão.
Examina não só as várias intencionalidades que exercemos, mas especificamente aquela que
se dirige para a verdade das coisas, aquilo a que se poderia chamar “evidências”. É
especialmente neste capítulo que veremos como a fenomenologia considera a mente humana e
a razão humana como constituídas para a verdade, O capítulo 12 discute a intuição eidética, o
tipo de intencionalidade que descobre características essenciais das coisas, características sem
as quais as coisas não poderiam ser. A evidência eidética alcança não apenas a verdade
factual, mas a verdade essencial. Este capítulo é um desenvolvimento adicional da
fenomenologia da razão.
Os dois capítulos finais do livro retornam à questão do que é a fenomenologia. Inicialmente
descrita no capítulo 4, pode-se agora dar uma descrição mais completa dela. O capítulo 13
destaca a natureza do pensamento filosófico pelo estabelecimento da distinção entre a reflexão
fenomenológica e aquilo a que chamamos reflexão proposicional (um dos temas do capítulo 7).
Aqui demonstro que a filosofia ou a fenomenologia não é apenas um esclarecimento do sentido,
mas algo que vai mais fundo. As distinções estudadas neste capítulo destacam mais
claramente ambos: que é Filosofia e que são conceitos, sentidos e proposições.
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Finalmente, no capítulo 14, tentamos descrever a fenomenologia por contraste com a
modernidade e a pós-modernidade, e acrescentamos uma breve nota sobre como pode ser
distinta da filosofia tomista. Definimos a fenomenologia localizando-a na nossa situação
histórica presente. A filosofia moderna tem dois elementos principais, filosofia política e
epistemologia, e a fenomenologia está explicitamente endereçada somente ao último. Contudo,
porque concebe a razão humana como orientada para a evidência e para a verdade, a
fenomenologia pode também se reportar, de um modo indireto, às questões modernas da teoria
política. Se os seres humanos estão especificados pela habilidade de poderem ser verdadeiros,
então a política e a cidadania tomam um sentido distinto.
Considerando a razão como teleologicamente orientada em direção à verdade, a fenomenologia
se assemelha à filosofia tomista, a qual representa a compreensão pré-moderna do ser e do
espírito, mas difere do tomismo por não abordar a filosofia a partir da revelação bíblica. Ambos,
a fenomenologia e o tomismo, são alternativas para o projeto moderno, mas em modos
diferentes, e contrastando uma com o outro adicionamos clareza à fenomenologia como uma
forma de filosofia.
Este livro introduz o leitor à terminologia e às idéias de um dos principais desenvolvimentos em
filosofia no século 20. Este desenvolvimento, a fenomenologia, não pertence somente ao
passado. Ele pode ajudar-nos a lembrar a nós mesmos, no começo de um novo século e um
novo milênio, de coisas das quais nunca podemos nos esquecer inteiramente. Este livro
começou a partir de uma conversa entre a matemática e a filosofia — possa isto ajudar-nos a
cultivar a vida da razão expressa nessas duas aventuras humanas.
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