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UNIVERSIDADE DE RIBEIRÃO PRETO
ALBERTO DE MAGALHÃES FRANCO FILHO
A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ATÉ A
CONCEPÇÃO DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
RIBEIRÃO PRETO
2009
1
ALBERTO DE MAGALHÃES FRANCO FILHO
A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ATÉ A
CONCEPÇÃO DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em
Direito da Faculdade de Direito da Universidade de
Ribeirão Preto – UNAERP, como exigência parcial para
a obtenção do título de Mestre em Direito, sob a
orientação da professora Doutora Maria Cristina Vidotte
Blanco Tárrega.
RIBEIRÃO PRETO
2009
2
ALBERTO DE MAGALHÃES FRANCO FILHO
A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ATÉ A
CONCEPÇÃO DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado em Direito da Faculdade de Direito da
Universidade de Ribeirão Preto – UNAERP, área de concentração Direitos Coletivos,
Cidadania e Função Social, sob a orientação da professora Doutora Maria Cristina Vidotte
Blanco Tárrega.
Aprovado pela Comissão Examinadora em ___/___/______
_________________________________________________
Professora Doutora Maria Cristina Vidotte Blanco Tárrega
Orientadora
_________________________________________________
Professor Doutor José Querino Tavares Neto
_________________________________________________
Professor Doutor Júlio Cesar Torres
3
Agradeço à Doutora Maria Cristina Vidotte
Blanco Tárrega, pelos valiosos ensinamentos
jurídicos e por sua profícua orientação.
Agradeço também a Universidade de Ribeirão
Preto e a Coordenação de Aperfeiçoamento de
Pessoal de Nível Superior - CAPES pela
concessão da bolsa de estudos na modalidade
II do Programa de Suporte à Pós-Graduação de
Instituições de Ensino Particulares - PROSUP.
4
Dedico este trabalho à minha Mãe, incansável
batalhadora que não poupou esforços para que
seus filhos tivessem a melhor criação. E à
Renata, minha companheira de todas as horas.
5
A TRAJETÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ATÉ
A CONCEPÇÃO DOS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
Resumo
A sociedade contemporânea, essencialmente complexa e plural, tornou evidentes novas carências, que não
podem ser supridas com base nos antigos modelos sociais. Com a transição paradigmática da sociedade
industrial e o declínio do Estado de Bem-Estar Social, influenciados pelo Neoliberalismo e pela Globalização,
emerge uma sociedade dita pós-moderna, e, com ela, desenvolvem-se também ―novos direitos‖. Tais direitos
deixam de pertencer ao indivíduo isoladamente, para se titularizarem a novos sujeitos de direito: os grupos ou
classes sociais. Desse modo, o ser humano deixa de ser visto apenas em sua singularidade, para inserir-se em
determinado contexto social. Rompe-se, portanto, com o paradigma do individualismo liberal, que cede lugar ao
comunitarismo. Esta ruptura deve-se à ação de sujeitos coletivos denominados ―novos movimentos sociais‖, que,
por sua vez, exerceram influência preponderante no surgimento do movimento de coletivização do Direito. Para
compreender melhor a dinâmica desses interesses, tanto em perspectiva geral, quanto da ordem jurídica
brasileira, é salutar o estudo da trajetória do Direito, particularmente dos direitos humanos fundamentais, até a
revelação e o desenvolvimento da concepção dos interesses transidividuais.
Palavras Chave: Trajetória do Direito; Direitos Humanos Fundamentais; Gerações de Direitos; Interesses
Transindividuais; Direitos Coletivos.
6
THE TRAJECTORY OF FUNDAMENTAL HUMAN RIGHTS TO THE
CONCEPTION OF TRANSINDIVIDUAL INTEREST
Abstract
The essentially complex and pluralistic contemporary society has evidenced some needs which cannot be
handled by ancient social models. With the paradigmatic transition of the industrial society and the decline of the
Welfare State influenced by Neoliberalism and Globalization, there is the emergence of the so-called postmodern society, bringing with it the development of ―new rights‖. These rights no more belong to the individual
in isolation but to subjects with rights: groups or social classes. Thereby, human beings are no more only seen in
their singularity, but as members of a given social context. Hence, the liberal individualism paradigm was
definitely substituted by comunitarism. This rupture was triggered by actions carried out by collective subjects
named ―new social movements‖, which predominantly influenced the emergence of law collectivization
movement. In order to better understand the dynamics of these interests, both in general perspective and in
Brazilian domestic law, a trajectory study of Law is necessary, mainly from fundamental human rights to the
revelation and development of the conception of transindividual interests.
Keywords: Law Evolution; Fundamental Human Rights; Generations of Rights; Transindividual
Interests; Collective Rights.
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 09
1. ESTUDO CRÍTICO DA TERMINOLOGIA DESIGNATIVA DOS DIREITOS
AFETOS AO SER HUMANO ....................................................................................... 12
1.1. A AMBIGUIDADE DA TERMINOLOGIA EXISTENTE ............................ 12
1.2. ANÁLISE ISOLADA DOS TERMOS EMPREGADOS NA DOUTRINA E
EM INSTRUMENTOS NORMATIVOS (SUBESPÉCIES).................................. 16
1.3. AS EXPRESSÕES DIREITOS HUMANOS E DIREITOS FUNDAMENTAIS
(ESPÉCIES) ......................................................................................................... 20
1.4. O GÊNERO DOS DIREITOS AFETOS AOS SERES HUMANOS ............... 27
2. A PROTO-HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ............ 29
2.1. UMA INTRODUÇÃO NECESSÁRIA À AFIRMAÇÃO HISTÓRICODOCUMENTAL DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS ................... 29
2.2. ANTECEDENTES HISTÓRICOS DOS DIREITOS HUMANOS
FUNDAMENTAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDADE ANTIGA ............... 31
2.3. A IDADE MÉDIA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS .......... 37
2.4. DA IDADE MODERNA ÀS DECLARAÇÕES DE DIREITOS .................... 41
3. A TRAJETÓRIA HISTÓRICA PROPRIAMENTE DITA DOS DIREITOS
HUMANOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DAS ONDAS GERACIONAIS OU
DIMENSIONAIS DE DIREITOS ................................................................................. 48
3.1. ESTADO DE DIREITO LIBERAL, ARQUÉTIPO DOS DIREITOS DE
PRIMEIRA GERAÇÃO ....................................................................................... 50
3.1.1. Primeira Geração de Direitos, Palavra de Ordem: Liberdade ............ 55
3.2. ESTADO DE DIREITO SOCIAL, MODELO DOS DIREITOS DE
SEGUNDA GERAÇÃO ....................................................................................... 58
3.2.1. Segunda Geração de Direitos: o Primado da Igualdade .................... 61
3.3. TERCEIRA GERAÇÃO DE DIREITOS: PREEMINÊNCIA DO ELEMENTO
FRATERNIDADE ................................................................................................ 74
4. O CONTEXTO E AS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS EM QUE EMERGIRAM E
SE DESENVOLVERAM O INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS............................ 80
4.1. A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA ................... 80
4.2. A SOCIEDADE INDUSTRIAL ..................................................................... 83
8
4.3. A SOCIEDADE PÓS-MODERNA ................................................................ 88
4.3.1. Neoliberalismo ................................................................................ 92
4.3.2. Globalização .................................................................................... 93
4.3.3. Pluralismo ....................................................................................... 95
5. OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS .............................................................. 102
5.1. DUAS QUESTÕES QUE INFLUENCIARAM DIRETAMENTE O
SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA CONCEPÇÃO COLETIVA. 102
5.1.1. A Superação da Summa Divisio Direito Público e Direito Privado . 102
5.1.2. A Aproximação entre os Sistemas Jurídicos da Commom Law e da
Civil Law Operada pela Segunda ―Onda‖ do Acesso à Justiça ................. 104
5.2. OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS COMO SUBESPÉCIES DE
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS. ..................................................... 109
5.3. TERMINOLOGIA ....................................................................................... 114
5.3.1. Direitos ou Interesses? ................................................................... 114
5.3.2. Metaindividuais, Transindividuais ou Coletivos? ........................... 117
5.4. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA BRASILEIRA ............................................. 119
5.5. ESPÉCIES DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO .................... 122
5.4.1. Interesses ou Direitos Individuais homogêneos .............................. 122
5.4.2. Interesses ou Direitos Coletivos ..................................................... 124
5.4.3. Interesses ou Direitos Difusos ........................................................ 127
CONCLUSÃO.............................................................................................................. 129
REFÊRENCIAS........................................................................................................... 132
9
INTRODUÇÃO
A temática dos interesses transindividuais, hodiernamente, suscita grandes
discussões teóricas e, provavelmente, assim o será por um bom tempo.
Isso porque, com o reconhecimento e a proteção desses ―novos direitos‖, o
paradigma individual começa a ceder lugar ao comunitário. No entanto, a sociedade ocidental
parece não estar preparada para absorver esse novel modelo, já que, num mundo
profundamente individualista, é difícil justificar a existência de direitos que são sejam
individuais. Talvez por isso não seja descabida a afirmação de Cabalera: ―nuestro tiempo no
es, pues, un tiempo propicio para justificar derechos colectivos.‖1
Aliado a esse fato, verifica-se que a doutrina especializada, relacionada aos
interesses transindividuais, muito embora tenha explorado razoavelmente a perspectiva
processual, em relação a material muito pouco conseguiu desenvolver.
Diante disso, nesse trabalho, procura-se desenvolver um estudo histórico dos
direitos humanos fundamentais, com vistas a alcançar os interesses transindividuais.
É válido supor que esse estudo histórico revela-se importante, pois a partir da
análise do surgimento e do desenvolvimento da concepção desses direitos, torna-se possível
uma melhor compreensão do fenômeno que denominamos ―movimento de coletivização do
Direito‖.
Somente compreendendo como e porque os interesses transindividuais emergiram
na sociedade contemporânea, é que poderemos entender o funcionamento dos mecanismos
processuais e materiais de sua tutela existentes, notadamente no ordenamento jurídico
brasileiro.
Este trabalho foi dividido em cinco capítulos.
No primeiro, diante da constatação do uso promíscuo de expressões designativas
dos direitos humanos fundamentais, a proposta foi elaborar um estudo crítico e rigoroso
dessas expressões, empregadas na doutrina e nos instrumentos normativos em geral.
Assim, dentre o expressivo número de locuções, foram identificados o gênero, as
espécies e algumas das subespécies destes direitos, a partir dos seguintes critérios: a expressão
designativa do gênero foi extraída da junção das duas espécies atualmente existentes; as
espécies foram identificadas com base em termos empregados em documentos normativos
1
CABALERA, Nicolás López. El concepto de derechos colectivos. In: In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Constitución y derechos fundamentales. Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales,
2004, p. 270.
10
que tiveram valor preponderante na História; e as subespécies, por exclusão, consideram-se as
demais expressões.
Posteriormente, ingressamos no estudo da trajetória histórica dos direitos
humanos fundamentais, procedendo a uma divisão em dois momentos: a) a proto-história, que
compreende ao período entre o surgimento da ideia desses direitos até sua positivação original
nas declarações de direitos das revoluções francesa e americana e suas respectivas
constituições; e b) a história propriamente dita desses direitos, a partir do movimento
constitucionalista ocidental até os dias atuais.
Desse modo, no segundo capítulo, ao tratarmos da proto-história dos direitos
humanos fundamentais, foram evidenciados alguns dos acontecimentos históricos marcantes
que determinaram a gênese da ideia desses direitos.
Na Idade Antiga, o destaque é para o ideário cristão de igualdade essencial entre
os homens perante Deus.
No período da Idade Média, fizemos referência à sociedade feudal,
essencialmente extratificada, às disputas de poder entre o clero e a nobreza, bem como às
primeiras manifestações de rebeldia manifestadas pelos pactos, cartas de franquias e forais
medievais.
Na Era Moderna, apresentamos o nascimento do Estado Moderno em sua primeira
feição, a absolutista; e registramos o fim do modo de produção feudal com o surgimento da
classe burguesa capitalista.
Já no terceiro capítulo, foram feitas considerações iniciais sobre a história
propriamente dita dos direitos humanos fundamentais. O ponto de partida foi o movimento
constitucionalista da Era Contemporânea, deflagrado pelas Constituições Americana e
Francesa – oriundas de suas respectivas revoluções – e a base foi a conhecida classificação de
gerações de direitos. Vale ressaltar que, nesse empreendimento, adotou-se a perspectiva
geracional de direitos, como Karel Vazak, para quem as gerações de direitos coincidem com o
lema da Revolução Francesa: liberdade, igualdade e fraternidade.
Seguindo essa linha de raciocínio, constatamos que: a primeira geração de direitos
surge no âmbito do Estado de Direito Liberal, tem como direito chave a liberdade e prescreve
direitos cuja titularidade é individual; a segunda geração aparece no Estado de Direito Social,
em que os direitos encontram seu primado na igualdade e titularidade coletiva; a terceira
geração, por sua vez, refuta a noção de Estado nacional, tem sua nota característica na
fraternidade e apresenta a titularidade coletiva em grau máximo.
11
No quarto capítulo, continuamos a descrever a história propriamente dita dos
direitos humanos fundamentais, porém, com maior enfoque nos acontecimentos históricos que
foram determinantes para o nascimento e o desenvolvimento dos interesses transindividuais.
Nesse ponto, percebe-se que os interesses transindividuais são evidenciados ou
ressaltados no âmbito da sociedade industrial, a partir da chamada ―luta de classes‖. Neste
período o Estado assumia a forma de Bem-Estar Social, paradigma dos direitos de segunda
geração, cuja nota distintiva é a igualdade. Não obstante, os interesses transindividuais, se
desenvolvem-se com maior ênfase a partir do colapso do Welfare State e de uma nova
concepção social, a sociedade pós-moderna.
Dentre as inúmeras marcas da pós-modernidade, analisamos duas: o caráter
massificado da sociedade e o consumo desenfreado de produtos e de serviços.
Outrossim, foram tecidas considerações sobre três fenômenos que repercutem
diretamente no Estado Contemporâneo pós-moderno: o neoliberalismo, a globalização e o
pluralismo.
No quinto capítulo analisamos os interesses transindividuais de maneira isolada.
Comentaram-se, primeiramente, duas questões que influenciaram o surgimento e o
desenvolvimento dos interesses transidividuais: a superação da dicotomia direito
público/direito privado e a aproximação entre os sistemas jurídicos da commom law e da civil
law operada pela segunda ―onda‖ do acesso à justiça. Depois, tais interesses também foram
vistos, na perspectiva da ordem jurídica brasileira.
Por fim, foram avaliados a terminologia, a evolução legislativa e as espécies de
desses interesses, enquanto espécies de direitos humanos fundamentais.
12
1.
ESTUDO CRÍTICO DA TERMINOLOGIA DESIGNATIVA DOS
DIREITOS AFETOS AO SER HUMANO
Antes de passarmos à discussão propriamente dita da terminologia designativa dos
direitos afetos aos seres humanos, temos que enfatizar uma premissa que será mais adiante
pormenorizada, qual seja: os interesses transindividuais são uma subespécie de direitos
humanos fundamentais.
Aventada essa premissa básica, passemos então ao estudo semântico dos termos
empregados para simbolizar os direitos afetos aos seres humanos.
Este escorço onomástico justifica-se, pois,
qualquer estudo que se faça de um instituto ou categoria jurídicos como quase tudo
nessa vida não prescinde do exame da terminologia apropriada e das perspectivas
conceituais que se apresentam na doutrina como forma de encontro de uma
semântica comum ou pelo menos de maneira de evitar confusões.2
Desse modo, ao procedermos à análise da trajetória dos direitos fundamentais,
com vistas a alcançar os chamados interesses transindividuais, é inevitável o estabelecimento,
ou ao menos, a tentativa, de elaboração de uma convicção acerca da terminologia correta para
tais direitos (gênero, espécies e subespécies), com o fito de evitar confusões e o emprego de
expressões lexicalmente inadequadas ou equivocadas.
1.1. A AMBIGUIDADE DA TERMINOLOGIA EXISTENTE
Como veremos a seguir, paira sobre a doutrina uma discussão em torno da mais
conveniente expressão indicativa dos direitos do homem, haja vista a multiplicidade de termos
e o alargamento de seu uso, dando azo a uma heterogeneidade terminológica que precisa ser
enfrentada.
2
SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey,
2004, p. 5.
13
Exemplificando essa ambiguidade em torno da expressão mais apropriada para
designar os direitos do homem, Luño, com base em investigação realizada por Horkheimer,
junto a pessoas comuns sobre o significado da palavra ―razão‖, conclui que o termo se explica
por si mesmo e tal indagação seria supérflua3.
O mesmo autor assevera ainda que se chegaria a um resultado muito semelhante
caso fossem questionados cidadãos comuns sobre o que eles entendem por direitos humanos.
Para ele, ―[...] en la mayoría de los casos se argüirá que esta cuestión es superflua, por la
pretendida evidencia que cada ser humano tiene de sus propios derechos.‖.4
A conclusão imediata que se extrai é que a expressão ―direitos humanos‖ se
encontra incorporada ao léxico popular, ou melhor, ela faz parte de um patrimônio de
linguagem comum que constitui uma espécie de moeda ideal com que se valoram a distintas
concepções e realidades sociais.
Assim, os direitos do homem têm se apresentado – principalmente após a Segunda
Guerra Mundial – como critério inspirador e medida de todas as instituições jurídicas e
políticas. Nesse sentido se manifesta Martinéz, para quem os direitos humanos são:
[...] un término emotivo que suscita sentimientos entre sus destinatarios y respecto
del cual la tentación de manipulación es permanente. Como otras palabras,
democracia, libertad, facismo, comunismo, por indicar algunas de las más
importantes, está en el núcleo de lucha política, y la acción puede contribuir también
a alejar las preocupaciones teóricas y la indagación de su sentido, urgida por
perentorias exigencias. As veces se puede tener la sensación de que muchos
activistas de los derechos humanos no saben muy bien lo que quieren decidir al usar
esa palabra o la usan entre sí con diferentes sentidos, con acentos incluso
contradictorios en contenidos parciales. La irrupción de los medios de masas,
prensa, radio y televisión, de la comunicación con trasmisión de menjases de hecho
y opinión, y con un alcance universal ha potenciado también esta dialéctica
confusión.5
A consequência direta dessa difusão é que, à medida que se alarga o uso desses
termos, torna-se cada vez mais imprecisa sua significação.
Não obstante a hipertrofia do emprego dessas expressões (inclusive entre a
comunidade leiga em geral), o estudo dos direitos do homem reveste-se de grande
importância e relevância não só para o mundo jurídico como também para o das ciências
sociais em geral. Talvez por isso, tantos estudiosos de diversas áreas do conhecimento tenham
3
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, estado de derecho y constitución. 6. ed. Madrid: Editorial
Tecnos, 1999, p. 21.
4
Ibidem, p. 21.
5
MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. Curso de derechos fundamentales: teoria general. vol. I. Madrid:
Eudema, 1991, p. 19.
14
se debruçado sobre ele, dando ensejo a um enorme número de termos tidos como sinônimos e,
consequentemente, uma grande obscuridade e contradição terminológica.
É de se notar que até agora utilizamos em nosso texto, propositalmente, as
expressões ―direitos fundamentais‖, ―direitos humanos‖ e ―direitos do homem‖, com sentidos
idênticos. Contudo, não foi despropositado esse uso indistinto, já que, muito embora existam
autores que sustentem não existir diferenças substanciais entre elas6, iremos demonstrar que
se trata de expressões distintas e, consequentemente, com conteúdos semânticos
completamente diversos.
Nessa esteira de raciocínio, é a crítica de Bonavides, quanto ao emprego
descompassado destas expressões, in verbis:
a primeira questão que se levanta com respeito à teoria dos direitos fundamentais é a
seguinte: podem as expressões direitos humanos, direitos do homem e direitos
fundamentais ser usadas indiferentemente? Temos visto nesse tocante o uso
promíscuo de tais denominações na literatura jurídica (...)7
Além dessas três locuções, a doutrina8 tem apontado diversas outras para designar
tais direitos, entre elas podemos citar: direitos naturais; direitos inatos; direitos inalienáveis;
direitos sagrados; direitos do cidadão; direitos civis; direitos políticos; direitos individuais;
interesses difusos; direitos coletivos; direitos subjetivos; direitos públicos subjetivos;
6
LEITE, Carlos Henrique Bezzera. Ação civil pública: nova jurisdição trabalhista metaindividual: legitimação
do Ministério Público. São Paulo: LTR, 2001, p. 27, apud LOZER, Juliana Carlesso. Direito humanos e
interesses metaindividuais. In: LEITE, Carlos Henrique Bezzera (coord.). Direitos metaindividuais. São Paulo:
Ltr, 2004, p. 11.
7
BONAVIDES, Paulo. Curso de direito constitucional. 22. ed. atual. e ampl. São Paulo: Malheiros, 2008, p.
560.
8
Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. 10. ed.
ver e atual. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 107-109; CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito constitucional e
teoria da constituição. 7. ed. Coimbra: Almedina, 2006, p. 393-398; CARVALHO, Kildare Gonçalves. Direito
constitucional: teoria do estado e da constituição: direito constitucional positivo. 13. ed. rev., atual, e ampl.
Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 574; COELHO, Fernando Laélio. Fundamentos históricos e classificatórios
dos direitos fundamentais: primeiras aproximações. Revista Direitos Fundamentais & Democracia. Curitiba:
Unibrasil,
vol.
2,
n.
2,
jun./dez.
2007,
Disponível
em:
<http://revistaeletronicardfd.unibrasil.com.br/index.php/rdfd/article/view/105/85>. Acesso em 8/10/2008;
GUERRA FILHO, Willis Santiago. Processo constitucional e direitos fundamentais. 5. ed. ver. E ampl. São
Paulo: RCS Editora, 2007, p. 39-42; LUÑO, Antonio Enrique Pérez. ob. cit. 1999, p. 21-51; MARTÍNEZ,
Gregório Peces-Barba. ob. cit., 1991, p. 19-34; MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. tomo IV.
Coimbra: Coimbra Editora, 1988, p. 48-72; MOTTA, Sylvio; BARCHET, Gustavo. Curso de direito
constitucional. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007, p. 147-148; NOVELINO, Marcelo. Direito constitucional para
concursos. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 151-152; NUNES. Anelise Coelho. A titularidade dos direitos
fundamentais na constituição federal de 1988. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 21-30; SAMPAIO,
José Adércio Leite. ob. cit., p. 7-9; SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 9. ed. rev.,
atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 33; SILVA, José Afonso da. Curso de direito
constitucional positivo. 29. ed. rev. e atual. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 175-179; SLAIB FILHO, Nagib.
Direito constitucional. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 318; TAVARES, André Ramos. Direitos
fundamentais (definição). In: DIMOULIS, Dimitri (coord.). Dicionário de direito constitucional. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 124-127.
15
liberdades públicas; liberdades fundamentais; direitos sociais, econômicos e culturais; direitos
da personalidade; direitos morais; direitos fundamentais do homem; direitos humanos
fundamentais.
Neste diapasão, Martinéz alerta:
[...] ninguno de estos términos es una expresión pura de una decisión lingüística,
sino que todos ellos tienen conexiones culturales y explicaciones derivadas de un
conceito histórico, de unos intereses, de unas ideologías y de unas posiciones
científicas o filosóficas de fondo. Todos tienen su raíz común situada en el mundo
moderno.9
Diante deste grande número de expressões apresentadas, é perceptível a notória
confusão10 terminológica envolta sobre o tema.
Por essa razão é indispensável, ainda que sumariamente, a apresentação do
significado e do conteúdo semântico de cada expressão, com vistas a determinar o que será
considerado, neste ―mar‖ de expressões, o gênero, as espécies e suas respectivas subespécies,
pois ―[...] qualquer opção terminológica deve guardar o objetivo de melhor refletir a relação
de correspondência sígnica entre a expressão eleita e a realidade que por ela se pretende
produzir‖.11
A identificação do gênero, das espécies e de algumas das subespécies desses
direitos, será feita a partir dos seguintes critérios: a) a expressão designativa do gênero será
extraída da junção das espécies atualmente existentes; b) as espécies serão identificadas com
base em termos expressamente empregados em documentos normativos que tiveram um valor
preponderante na História e que marcam as linhas da trajetória desses direitos, quais sejam: a
positivação, generalização e a internacionalização12; c) as subespécies, por exclusão,
consistiram nas demais expressões.
Antes, porém, convém salientar que cada uma dessas expressões é composta no
mínimo, de um substantivo e um adjetivo (em alguns casos dois adjetivos). Os adjetivos são
os mais variados possíveis, até mesmo porque são palavras que se referem necessariamente ao
9
MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. ob. cit., 1991, p. 20.
Em um capítulo intitulado ―Um eterno problema de nomes‖, Sampaio analisa com pormenor a confusão
teórica destes termos, através de extensa pesquisa sobre a história da confusão terminológica pelos usos e
costumes lingüísticos na França e Estados Unidos da América, que são os países de destaques em todo o exame
retrospectivo destes direitos. Esta multiplicidade de termos também e vista sob a ótica do direito internacional e
do Estado brasileiro (SAMPAIO, José Adércio Leite. ob. cit., p. 7-22).
11
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. ob. cit., p. 107.
12
MARTINÉZ, Gregório Peces-Barba. Lecciones de derechos fundamentales. Madrid: Dykinson, 2004, p. 103129.
10
16
substantivo atribuindo-lhe qualidade, estado ou modo de ser. Já os substantivos são
invariavelmente de três tipos e cujos sentidos são os seguintes, na lição de Canotilho:
Direitos = status positivus e estatus activus – direitos inerentes ao homem como
indivíduo ou como participante na vida política.
Liberdades = status negativus – defesa da esfera jurídica dos cidadãos perante os
poderes políticos.
Garantias = status activus processualis – garantias ou meios processuais adequados
para a defesa dos direitos.13
1.2. ANÁLISE ISOLADA DOS TERMOS EMPREGADOS NA DOUTRINA E
EM INSTRUMENTOS NORMATIVOS (SUBESPÉCIES)
Ultrapassadas essas questões morfológicas, passemos então a analisar cada
expressão isoladamente.
A expressão ―direitos do homem‖ e seus sinônimos ―direitos naturais‖, ―direitos
inatos‖, ―direitos inalienáveis‖ e ―direitos sagrados‖ foram originalmente desenvolvidas pelas
correntes do contratualismo e jusnaturalismo racional14, sendo materializadas nas declarações
liberais15 americana e francesa do século XVIII.
Essas expressões representam a gênese dos direitos em estudo e possuem as
seguintes características: ―son unos derechos previos al Poder y al Derecho positivo que,
como el Derecho Natural es Derecho, tienen una dimensión jurídica; se descubren por la
razón en la natureza humana; se impone a todas las normas del Derecho creado por el
Soberano y son un limite a la acción del mismo.‖16
Convém ressaltar que, quando da elaboração doutrinária desses direitos, utilizavase com mais frequência o termo ―direitos naturais‖; somente, ―[…] durante la segunda mitad
13
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 405.
Dentre os estudiosos do contratualismo e do jusnaturalismo racional podemos citar Hugo Grocio, Thomas
Hobbes, John Locke, Samuel Pufendorf, Jean-Jacques Rousseau, Christian Wolff, Emanuel Kant que
influenciaram o desenvolvimento dos direitos naturais subjetivos e via de consequência as revoluções americana
e francesa que originalmente positivaram os direitos em analise (Cf. LUÑO, Antonio Enrique Pérez. ob. cit.
1999, p. 38-44).
15
O Artigo Primeiro da Declaração de Direitos de Virgínia de 16 de junho de 1776 fala em direitos inatos.
(MIRANDA, Jorge. Textos históricos do direito constitucional. 2. ed. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da
Moeda, 1990, p. 31). No segundo parágrafo do texto da Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América do Norte de 4 de julho de 1776 é feita a menção à direitos inalienáveis (Ibidem, p. 35). O preâmbulo da
Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de 26 de agosto de 1789 menciona as expressões: direitos do
homem, direitos naturais, direitos inalienáveis e direitos sagrados (Ibidem, p. 57).
16
MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. ob. cit., 1991, p. 23.
14
17
del siglo XVIII se produjo la paulatina sustitución del término clásico de los ‗derechos
naturales‘ por el de los ‗derechos del hombre‘, denominación definitivamente popularizada en
la esfera doctrinal por la obra de Thomas Paine The Rights of Man (1791-1792).‖17.
É observado também o emprego do termo ―direitos do cidadão‖, que consta no
título da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, França, de 1789. Porém, é
importante distinguir as expressões ―direitos do homem‖ e ―direitos do cidadão‖. A diferença
está no fato de que, ―[...] os primeiros pertencem ao homem enquanto tal; os segundos
pertencem ao homem enquanto ser social, isto é como indivíduo vivendo em sociedade.‖.18
Nota-se, do mesmo modo, o uso da expressão ―direitos civis‖, que surge
conjugada com a expressão ―direitos naturais‖ no texto da Declaração de Direitos da
Constituição francesa de 1791, em seu Título Primeiro, Disposições Fundamentais Garantidas
pela Constituição: ―A constituição garante como direitos naturais e civis [...]‖.19 Neste caso,
trata-se também de locuções distintas, pois
[...] os direitos naturais, como o nome indica, eram inerentes ao indivíduo e
anteriores a qualquer contrato social; os direitos civis (cives=cidadão) são os
chamados Civil Rigths da terminologia americana, ou seja, os direitos pertencentes
ao individuo como cidadão e proclamados nas constituições ou leis avulsas.20
Esta expressão ―direitos civis‖ também não é sinônima dos termos ―direitos
políticos‖ (ou ―direitos cívicos‖). Para Canotilho os primeiros dizem respeito a todas as
pessoas que vivem em sociedade, já os segundos são atribuíveis apenas a pessoas que podem
contribuir ativamente para a formação dos poderes públicos.21
Dessa forma, podemos afirmar que, nos direitos do cidadão, estariam contidos os
direitos civis mais os direitos políticos. Ou ainda, em outros termos, que os direitos civis
seriam os direitos do cidadão, subtraídos os direitos políticos.
Vislumbra-se, também, a existência da locução ―direitos individuais‖, que se
relaciona com direitos atribuíveis ao indivíduo isolado, flagrante resquício do liberalismo.
Nesse sentido, Perez Luño nos orienta que:
17
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Los derechos fundamentales. 9. ed. Madrid: Editorial Tecnos, 2007, p. 32.
BRAUD, Philippe. La notion de liberte publique en droit public français, Paris, 1968, p. 8 apud
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 393-394.
19
COMPARATO, Fábio Konder. A afirmação histórica dos direitos humanos. 6. ed. ver e atual. São Paulo:
Saraiva, 2008, p. 160.
20
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 394.
21
Ibidem, p. 394-395.
18
18
para la ideología liberal el individuo es un fin en sí mismo, y la sociedad y el
derecho no son sino medios puestos a su servicio para facilitarle el logro de sus
intereses. A este respecto se ha recordado certeramente que el mito más
representativo de esta ideología es Robinson Crusoe, que es ‗el héroe del
individualismo en acción‘. Desde estas coordenadas los derechos individuales son
considerados en sentido eminentemente negativo como garantía de no injerencia
estatal en su espera: es lo que Georg Jellinek denominará status libertatis y Georges
Burdeu libertad-autonomía.22
Há referência aos termos ―interesses difusos‖ e ―direitos coletivos‖, sobre cujos
conceitos, no momento não iremos alongar-nos, já que constituem o objeto de estudo de nosso
trabalho e serão analisados oportunamente, mas já podemos adiantar que se relacionam a
grupos de pessoas.
Igualmente, é feita alusão à locução ―direitos públicos subjetivos‖, os quais fazem
referência a um conceito técnico-jurídico do Estado liberal, desenvolvido na Alemanha no
século XIX, como especificação do termo mais genérico ―direito subjetivo‖, apresentado
como uma reação contrária dos positivistas ao direito natural. O direito subjetivo seria a
prerrogativa estabelecida de conformidade com as regras de direito objetivo. Para Del Vechio,
o direito subjetivo é ―[...] la facultad de querer y de pretender, atribuida a un sujeto, a la cual
corresponde una obligación por parte de otros.‖.23 Já os direitos públicos subjetivos são
direitos subjetivos (permissões dadas pelo direito objetivo), que atuam como um limite ao
poder político, nas relações entre o Estado e os particulares. Tais direitos representam uma
autolimitação do poder soberano do Estado Liberal. Por essa razão, adverte Luño que se trata
de ―[...] una categoría histórica adaptada al funcionamiento de un determinado tipo de Estado,
el liberal, y a unas condiciones materiales que han sido superadas por el desarrollo
económico-social de nuestro tiempo.‖.24
Encontramos também as chamadas ―liberdades públicas‖ ou ―liberdades
fundamentais‖, que, por sua vez, são termos de origem francesa do final do século XVIII e
que, da mesma forma que os direitos públicos subjetivos na Alemanha, formaram-se a partir
de uma doutrina positivista reacionária ao jusnaturalismo. 25 Assim, ―[...] les libertes publiques
sont des droits de l‘homme que leur conséccratione par l‘ État a fait passer du droit naturel au
droit positivi.‖. 26 As liberdades públicas27 consistem em poderes de autodeterminação,
22
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. ob. cit. 1999, p. 35.
DEL VECHIO, Giogio. Filosofia del derecho. 6. ed. Barcelona: Editorial Bosch, 1953, p. 20 apud CABRA,
Marco Gerardo Monroy. Los derechos humanos. Bogotá: Editorial Temis, 1980, p. 2.
24
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. ob. cit. 1999, p. 34.
25
O aparecimento desta expressão como norma positivada se dá no artigo 9º da Constituição Francesa de 1793,
que assim dispõe ―a lei deve proteger a liberdade pública e individual contra a opressão dos que governam.‖
(MIRANDA, Jorge. Ob. cit. 1990, p. 76).
26
RIVERO, Jean. Les libertes publiques. 1. les doits de l‘homme. Paris: PUF, 1973, p. 17.
23
19
consagrados pelo direito positivo. Por intermédio de tais liberdades procura-se defender a
esfera dos cidadãos perante a intervenção do Estado.
Verifica-se de igual modo o uso da expressão ―direitos sociais, econômicos e
culturais‖. Tais direitos são perceptíveis, quando a ordem social e econômica assume
dimensão jurídica, ou seja, quando as Constituições passam a discipliná-la sistematicamente,
dando ensejo ao surgimento das chamadas Constituições Econômicas.
Para Silva esses direitos
[...] são prestações positivas proporcionadas pelo Estado direta ou indiretamente,
enunciadas em normas constitucionais, que possibilitam melhores condições de vida
aos mais fracos, direitos que tendem a realizar a igualização de situações sociais
desiguais.28
Utiliza-se, da mesma maneira, o termo ―direitos da personalidade‖, relativos a
direitos de incidência privatística29, que pressupõem relações de igualdade e pertencem ao
domínio do Direito Civil30. Seriam eles ―[...] posições jurídicas fundamentais do homem que
ele tem pelo simples fato de nascer e viver.‖.31 Em outros termos, aqueles direitos que têm por
objeto os atributos físicos, psíquicos e morais da pessoa em si. 32 Canotilho anota que eles
abarcam, certamente, os direitos de estado, os direitos sobre a própria pessoa, os direitos
distintivos da personalidade e muitos dos direitos de liberdade.33
Outra locução encontrada na doutrina são os chamados ―direitos morais‖, de
origem anglo-saxã, que atualmente têm alcançado uma relevante difusão. Guerra Filho
assevera que tais direitos se encontram ―[...] situados em uma dimensão supra-positiva,
deonticamente diversa daquela em que se situam as normas jurídicas – especialmente aquelas
27
Existem autores nacionais do porte de Bulos que sugere o uso da expressão ―liberdades públicas em sentido
amplo‖, que designaria um ―conjunto de normas constitucionais que consagram limitações jurídicas aos Poderes
Públicos, projetando-se em três dimensões: civil (direitos da pessoa humana), política (direitos de participação
na ordem democrática) e econômico-social (direitos econômicos e sociais)‖ (BULOS, Uadi Lamego. Curso de
direito constitucional. 2007, p. 401). Garcia também é adepta da expressão da utilização para designar os direitos
ora estudados como ―liberdades públicas‖ (GARCIA. Maria. Desobediência civil: direito fundamental. 2. ed.
rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 186-191).
28
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 286.
29
Cf. GUERRA FILHO, Wilis Santiago. Ob. cit., 2007, p. 41.
30
Tanto é verdade que no ordenamento jurídico pátrio os direitos da personalidade vêm disciplinados no Código
Civil de 2002 em capítulo exclusivo (Capítulo II: ―Direitos Da Personalidade‖, do Título I: ―Das Pessoas
Naturais‖, do Livro I: ―Das Pessoas‖, da Parte Geral).
31
MONCADA, Luis Solano Cabral de. Lições de direito civil. 2. ed. Coimbra, 1954, p. 279-280 apud
MIRANDA, Jorge. Ob. cit. 1988, p. 55-56.
32
GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo curso de direito civil: parte geral. vol. 1. 2.
ed. revi., atual. e refor. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 135.
33
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 396.
20
de Direito interno.‖.34 Talvez por isso esses direitos, na concepção de Dworkin35, sejam
considerados anteriores ao Estado, constituindo trunfos em face do Estado. Para o autor em
questão, os direitos morais vão mais além, podendo, inclusive, ser brandidos frente ao poder,
até mesmo ao poder democrático. São direitos que pressupõe uma fusão entre o direito
constitucional e a teoria da ética.
Do exposto sobre cada uma dessas expressões, percebe-se que (todas) elas têm
aptidão, apenas, para nominarem subespécies de direitos afetos aos seres humanos, dado o seu
reducionismo conceitual36. Por essa razão nas páginas seguintes, iremos analisar as espécies
designativas de tais direitos.
1.3.
AS
EXPRESSÕES
DIREITOS
HUMANOS
E
DIREITOS
FUNDAMENTAIS (ESPÉCIES)
Entre as espécies de direitos afetos aos seres humanos apresentamos as expressões
―direitos humanos‖ e ―direitos fundamentais‖.
O motivo pelo qual elas foram eleitas espécies dos direitos em estudo, se deve
a um critério bem simples: essas expressões foram empregadas em documentos normativos
históricos paradigmáticos, que inauguraram concepções até então existentes. Por isso
considerá-las espécies que compõe um gênero mais amplo.
Todavia, antes de ingressar no estudo delas, é forçoso mencionar que com certa
frequência, tem sido empregado o termo ―direitos do homem‖ como sinônimo das expressões
―direitos humanos‖ e ―direitos fundamentais‖. 37 Porém, como já foi dito anteriormente, os
―direitos do homem‖ são aqueles direitos de posição jusnaturalista racional, relacionados com
a natureza humana, que se materializaram nas primeiras declarações de direitos. Tal termo
34
GUERRA FILHO, Wilis Santiago. Ob. cit., 2007, p. 40.
DWORKIN, Ronald. Taking rights seriously. Londres: Duckworth and Co., 1977 apud MARTÍNEZ, Gregório
Peces-Barba. ob. cit., 1991, p. 28.
36
Sobre esse ―reducionismo‖ de conceitos, consultar: MARTINÉZ, Gregório Peces-Barba. Ob. cit., 2004, p. 4958.
37
Registre-se que a maioria da doutrina externa o entendimento que os termos ―direitos do homem‖ e ―direitos
humanos‖ são sinônimos. (Cf. ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Ob. cit., p. 108;
GALINDO, Bruno. Direitos fundamentais: análise de sua concretização constitucional. Curitiba: Juruá, 2003, p.
48; MOTTA, Sylvio; BARCHET, Gustavo. Ob. cit., p. 147; SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 176; SLAIB
FILHO, Nagib. Ob. cit., p. 318; TAVARES, André Ramos. Direitos fundamentais (definição). In: DIMOULIS,
Dimitri (coord.). Ob. cit., p. 124; LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit. 1999, p. 22 ss).
35
21
alcançou conhecimento notório com a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão de
1791 e a consagrada obra de Thomas Paine.
Dessa forma, um termo cujo sentido fora dado e empregado em uma situação
histórica ocorrida há séculos, não pode ser utilizado para nominar direitos distintos existentes
hodiernamente. Em outras palavras, os direitos do homem concebidos nos séculos XVII e
XVIII não são os mesmos do século XXI, até porque os direitos afetos aos seres humanos
―[...] não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de
construção e reconstrução.‖38. Ou seja, são direitos essencialmente históricos, em constante
mutação, valorados em distintas épocas, de diferentes maneiras.
Com essa elucubração, pretendemos, nesta parte do trabalho, traçar um perfil
terminológico rigoroso, com base nas expressões empregadas no decorrer da História.
Portanto, o termo ―direitos do homem‖, semanticamente, designa os direitos naturais que
contêm a gênese histórica dos direitos em estudo, nada mais.
De acordo com o que foi exposto, Sarlet apresenta as distinções entre os termos
supramencionados:
[...] cumpre traçar uma distinção, ainda que de cunho predominantemente didático,
entre as expressões ‗direitos do homem‘ (no sentido de direitos naturais não ou
ainda não positivados), ‗direitos humanos‘ (positivados na esfera do direito
internacional) e ‗direitos fundamentais‘ (direitos reconhecidos ou outorgados e
protegidos pelo direito constitucional interno de cada Estado).39
O mesmo autor ainda arremata, afirmando que a expressão ―direitos do homem‖
deve ser utilizada para demarcar a fase histórica de positivação dos direitos fundamentais e
dos direitos humanos, in verbis:
A utilização da expressão ‗direitos do homem‘, de conotação marcadamente
jusnaturalista, prende-se ao fato de que se torna necessária a demarcação precisa
entre a fase que, inobstante sua relevância para a concepção contemporânea dos
direitos fundamentais e humanos, precedeu o reconhecimento destes pelo direito
positivo interno e internacional e que, por isso, também pode ser denominada uma
‗pré-história‘ dos direitos fundamentais.40
Desta feita, os ―direitos do homem‖ devem referir-se à posição jusnaturalista que
influenciou a positivação dos direitos humanos, dado o seu emprego no título da Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789.
38
PIOVESAN, Flávia. Direitos humanos e o direito constitucional internacional. 7. ed. rev., ampl. E atual. São
Paulo: Saraiva, 2007, p. 107.
39
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2007, p. 36.
40
Ibidem, p. 36.
22
Diante desse emprego em um documento normativo que inaugura uma nova era,
além de denotar o momento histórico da positivação original dos direitos afetos aos seres
humanos. Os ―direitos do homem‖ são também considerados espécie dos direitos em estudo, a
espécie inicial.
Retomemos, então, o estudo das demais espécies.
A expressão ―direitos humanos‖ ―[...] es sin duda uno de los más usados en la
cultura jurídica y política actual, tanto por los científicos y los filósofos que se ocupan del
hombre, del Estado y del Derecho, como por los ciudadanos‖. 41 E, talvez por isso, seja o
termo que mais tem sido utilizado equivocadamente.
Luño comenta que ―gran parte de la desorientación teórica y pratica suscitada por
la significación equivoca y vaga de la expresión derechos humanos nace de la propia
ambiguidad que reviste la pregunta: ¿qué son los derechos humanos?‖. 42
Para responder a essa pergunta, mister se faz o estabelecimento do real significado
da expressão ―direitos humanos‖, que, já adiantamos, é bastante complexo e heterogêneo.
Bobbio classifica as definições dos direitos humanos em três tipos: a)
tautológicas, as que não trazem nenhum elemento novo que permita caracterizar tais direitos;
b) formais, aquelas que não especificam o conteúdo destes direitos, limitando-se a alguma
indicação sobre seu estatuto desejado ou proposto; c) teleológicas, as que apelam a certos
valores últimos suscetíveis de diversas interpretações. 43
Já Robles propõe três níveis de análise sobre o sentido que deve ser dado à
expressão direitos humanos: ―[...] o plano da deliberação prévia a toda decisão jurídica; o
jurídico (por exemplo, o espanhol, o inglês); o plano de análise formalista ou lógicoliguístico.‖.44
Levando em consideração todas essas imprecisões sígnicas, Luño define os
direitos humanos como:
[...] un conjunto de facultades y instituciones que, en cada momento histórico,
concretan las exigencias de la dignidad, la libertad y la igualdad humanas, las cuales
deben ser reconocidas positivamente por los ordenamientos jurídicos a nivel
nacional e internacional.45
41
MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. Ob. cit., 1991, p. 19.
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit. 1999, p. 25.
43
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. trad. Carlos Nelson Coutinho. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004, p. 37.
44
ROBLES. Gregorio. Ob. cit., p. 5.
45
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit., 1999, p. 48.
42
23
Tal conceito, embora muito bem elaborado, abarca apenas o sentido lato dos
direitos humanos, ou seja, a definição do gênero desses direitos. Não obstante, procederemos
ao desenvolvimento de um sentido mais específico do termo. Nosso intuito, com isso, é evitar
confusões terminológicas, que são constantemente envoltas sobre essa expressão, já que
concebê-la como gênero dos direitos afetos aos seres humanos não resolve o problema
terminológico. Na verdade cria outro, pois a expressão ―direitos humanos‖ também apresenta
um sentido estrito. Para tanto, iremos perquirir a origem do termo ―direitos humanos‖.
É cediço que, o uso desta expressão ganhou notoriedade a partir da elaboração da
Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, com um sentido de norma de direito
internacional.
Contudo, em estudo mais profundo, Piovesan constata que, antes da elaboração da
Declaração Universal dos Direitos Humanos, já se tinha notícia de um processo de
internacionalização de direitos:
O Direito Humanitário, a Liga das Nações e a Organização Internacional do
Trabalho situam-se como os primeiros marcos do processo de internacionalização
dos direitos humanos. [...] para que os direitos humanos se internacionalizassem, foi
necessário redefinir o âmbito e o alcance do tradicional conceito de soberania
estatal, a fim de permitir o advento dos direitos humanos como questão de legitimo
interesse internacional. Foi ainda necessário redefinir o status do individuo no
cenário internacional, para que se tornasse verdadeiro sujeito de direito
internacional.46
Com efeito, diante da utilização original e inequívoca no título da Declaração de
1948, assume o termo direitos humanos uma correlação intrínseca com normas de direito
supranacional, tanto é verdade que tem sido a ―preferida nos documentos internacionais.‖. 47
Seguindo esse posicionamento Sarlet menciona:
[...] a expressão ‗direitos humanos‘ guardaria relação com os documentos de direito
internacional, por referir-se àquelas posições jurídicas que se reconhecem ao ser
humano como tal, independentemente de sua vinculação com determinada ordem
constitucional, e que, portanto, aspiram à validade universal, para todos os povos e
tempos, de tal sorte que revelam um inequívoco caráter supranacional
(internacional).48
46
PIOVESAN, Flávia. Ob. cit., p. 109
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 176.
48
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2007, p. 35-36.
47
24
Igualmente, nesse sentido, é a lição de Novelino, que afirma: ―direitos humanos
são direitos relacionados aos valores liberdade e igualdade positivados no plano
internacional.‖.49
Assim, em uma acepção estrita, os direitos humanos designam direitos afetos ao
ser humano de ordem internacional, contudo sem que se aufira, obrigatoriamente, com isso,
sua validez universal.50
Afigura-nos, então, que os ―direitos do homem‖, após sua positivação,
generalizaram-se e quando este processo alcançou dimensão internacional, eles se
transmutaram nos direitos humanos.
Portanto, os ―direito humanos‖, em sentido estrito, devem ser considerados outra
espécie dos direitos em comento, cuja amplitude é nitidamente internacional, podendo
algumas das subespécies já mencionadas se enquadrarem como tais, desde que se refiram a
normas supranacionais e sejam consideradas as normas medulares do sistema jurídico
internacional de que façam parte.
Em contrapartida ao sentido lato do termo ―direitos humanos‖, tem sido
empregada a locução ―direitos fundamentais‖, considerada por alguns a forma linguística
mais precisa e procedente51, ―pela imediata referência à legitimidade ou fundamento da ordem
constitucional, pela aura de superioridade que o termo invoca‖52 e também por evitar
concepções reducionistas ou subjetivas.53 Nas últimas décadas, tem sido também a preferida
pela doutrina e pelos textos constitucionais. 54
Nesse sentido, Araújo e Nunes Júnior afirmam que este termo é o
[...] único apto a exprimir a realidade jurídica precipitada, pois que, cogitando-se de
direitos, alude-se a posições subjetivas do indivíduo, reconhecidas em determinado
sistema jurídico e, desta feita, passíveis de reivindicação judicial. O adjetivo
‗fundamentais‘ traduz, por outro ponto, a inerência desses direitos à condição
humana, exteriorizando-se, por conseguinte, o acúmulo evolutivo dos níveis de
alforria do ser humano.
49
NOVELINO, Marcelo. Ob. cit., p. 152.
Quando afirmamos que os direitos humanos são manifestações autênticas de normas internacionais, sem que,
elas sejam consideradas universais; estamos nos referindo ao sentido estrito (―direitos humanos‖ como espécie,
não como gênero). No sentido amplo (direitos humanos como gênero), obviamente há que se reconhecer essa
validade universal. Muitos doutrinadores jusnaturalistas contemporâneos defendem o uso da expressão ―direitos
humanos‖ no sentido lato, v.g. por Luño (vide nota de rodapé n. 53). Porém optamos por empregar a expressão
―direitos humanos‖ em um sentido estrito (normas de direito internacional), para evitar que uma mesma
expressão de nome ao gênero e uma espécie.
51
Cf. MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. ob. cit., 1991, p. 32-33.
52
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 21.
53
TAVARES, André Ramos. Direitos fundamentais (definição). Ob. cit., p. 125.
54
MIRANDA, Jorge. Ob. cit. 1988, p. 48.
50
25
Não é ocioso registrar, à guisa de arremate, que o termo também se mostra
conveniente por razões de ordem prática: foi o adotado pelo nosso direito
constitucional positivo. 55
Assim, parte da doutrina tem feito a opção terminológica de utilizar a expressão
―direitos fundamentais‖ como gênero dos direitos afetos aos seres humanos, em detrimento ao
termo ―direitos humanos‖ (em sentido lato). Tal fato é explicado, em razão da generalização e
multiplicidade semântica deste último e também porque alguns autores têm advogado a tese
de que não existem direitos que não sejam humanos56.
Não obstante esses apelos doutrinários para o emprego da expressão ―direitos
fundamentais‖, ainda não se vislumbra, até o momento, claramente o exato sentido dessa
locução.
Originalmente ela foi empregada na França (droits fondamentaux) em 1770
durante o movimento político e cultural que conduziu a Declaração de Direitos do Homem e
do Cidadão de 1789, mas alcançou relevo e projeção na Alemanha sob a designação de
Grundrechte, 57 sendo que, entre os alemães, a primeira aparição do termo remonta a
Constituição de Palskirche de 1848.58
55
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Ob. cit., p. 109.
Contudo vale mencionar a lição de Silva, que afirma: ―talvez já não seja mais assim, porque, aos poucos, se
vai formando um direito de proteção dos animais.‖ (SILVA, José Afonso da . Ob. cit., p. 176). Para
aprofundamento no tema consulte-se: ACKEL FILHO, Diomar. Direito dos Animais. São Paulo: Themis, 2001;
ARAUJO, Fernando. A hora dos direitos dos animais. Coimbra: Almedina, 2003; MOLINARO, Carlos Alberto;
GASSIOT, Olivier. L‘animal, nouvel objet du droit constitutionnel. Revue française de Droit constitutionnel.
Paris: PUF, vol. 64, n. 4, oct./déc. 2005, p. 703-732, diponible dans <http://www.cairn.info/search.php>. accès
dans 12/8/2009; MEDEIROS, Fernanda Luiza Fontoura de; FENSTERSEIFER, Thiago;SARLET, Ingo
Wolfgang (orgs.). A dignidade da vida e os direitos fundamentais para além dos humanos: uma discussão
necessária. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2008; SANTANA, Heron Jose de. Abolicionismo animal. Revista de
Direito Ambiental, São Paulo: Revista dos Tribunais, n. 36, out./dez. 2004, p. 85-109.
É de se ressaltar também que na Grundgesetz (Lei Fundamental) e jurisprudência do Bundessverwaltung
(Tribunal Constitucional Federal) alemão se tem reconhecido a titularidade de direitos fundamentais também à
pessoas jurídicas. Veja por exemplo o disposto no art. 19, III: “Die Grundrechte gelten auch für inländische
juristische Personen, soweit sie ihrem Wesen nach auf diese anwendbar sind.” (Os direitos fundamentais se
aplicam igualmente às pessoas morais nacionais quando a sua natureza o permitir). Disponível em
<http://archiv.jura.uni-saarland.de/BIJUS/grundgesetz/>. Acesso em 10/3/2009. No tribunal Bundessverwaltung
consultar a BVERFGE 21, 362 (Decisão do Primeiro Senado de 2 de maio de 1967 - 1BvR 578/63) e BVERFGE
31, 314 (Decisão do Segundo Senado de 27 de julho de 1967 com base na audiência de 18 de maio de 1971 2BvR 1/62. 2BvR 702/68). Cf. MARTINS, Leonardo (org.) Cinqüenta anos de jurisprudência do tribunal
constitucional federal alemão. Trad. Beatriz Hennig, et al. Montevideo: Programa Estado de Derecho para
Sudamérica/Konrad-Adenauer-Stifung, 2005, p. 169-174.
57
NEGRI, Antonio. Scienze politiche: stato e política. vol. 1. Feltrineli: Milano, 1970, p. 109 apud LUÑO,
Antonio Enrique Pérez. Ob. cit., 1999, p. 30.
58
Cf. TAVARES, André Ramos. Direitos fundamentais (definição). Ob. cit., p. 125.
56
26
Em uma definição sintética, Hesse afirma que os ―[...] direitos fundamentais são
aqueles que o direito vigente qualifica como fundamentais.‖.59 Portanto para a doutrina alemã,
idealizadora destes direitos, o que os define é sua fundamentalidade.
Esta ―fundamentalidade‖ das normas de direitos fundamentais é explicada por
Alexy, nos seguintes termos: ―o significado das normas de direitos fundamentais para o
sistema jurídico é o resultado da soma de dois fatores: sua fundamentalidade formal e da sua
fundamentalidade substancial.‖ Para ele, o primeiro fator ―[...] decorre de sua posição no
ápice da estrutura escalonada do ordenamento jurídico, como direitos que vinculam
diretamente o legislador, o Poder Executivo e o Judiciário.‖ Já o segundo fator determina que
―[...] direitos fundamentais e normas de direitos fundamentais são fundamentalmente
substanciais porque, com eles, são tomadas decisões sobre a estrutura normativa básica do
Estado e da sociedade.‖ E arremata dizendo que a partir desta tese de fundamentalidade, é
possível afirmar que os direitos fundamentais desempenham um papel central no sistema
jurídico.60
Já Canotilho proclama que ―[...] direitos fundamentais são os direitos do homem,
jurídico-institucionalmente garantidos e limitados espacio-temporalmente.‖.61
E num sentido mais estrito, Sarlet sustenta que os direitos fundamentais
[...] constituem o conjunto de direitos e liberdades institucionalmente reconhecidos e
garantidos pelo direito positivo de determinado Estado, tratando-se, portanto, de
direitos delimitados espacial e temporalmente, cuja denominação se deve ao seu
caráter básico e fundamentador do sistema jurídico do Estado de Direito.62
Dessa monta, os direitos fundamentais são os direitos afetos ao ser humano,
consagrados como fundamentos políticos estatais, no plano interno de cada Estado e alocados
na sua Constituição respectiva.
Vale ressaltar que, nos textos constitucionais brasileiros, muito embora o marco
da positivação dos direitos fundamentais seja a Constituição Federal de 1988, há menção ao
termo no art. 146 da Constituição de 1946.63
59
HESSE, Konrad. Estudos de direito constitucional da republica federal da alemanha. 20. ed. trad. Luís
Afonso Heck. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 1998, p. 225.
60
ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. trad. Virgilio Afonso da Silva. São Paulo Malheiros, 2008,
p. 520-523
61
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 393.
62
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2007, p. 35-36.
63
―Art. 146 – A União poderá, mediante lei especial, intervir no domínio econômico e monopolizar determinada
indústria ou atividade. A intervenção terá por base o interesse público e por limite os direitos fundamentais
assegurados
nesta
Constituição.‖
(original
sem
destaques).
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm>. Acesso em 10/3/2009.
27
Com efeito, podemos inferir que o termo ―direitos fundamentais‖ também
representa uma espécie dos direitos relativos ao ser humano, em uma perspectiva menos
ampla que os direitos humanos, qual seja: o plano interno de cada Estado.
1.4. O GÊNERO DOS DIREITOS AFETOS AOS SERES HUMANOS
Após a definição das espécies, um questionamento importante ainda fica no ar: e
para nominar o gênero desses direitos qual expressão deve ser empregada?
Talvez a grande polêmica em torno da terminologia destes direitos seja justamente
essa, pois, como vimos, os direitos humanos simbolizam normas de abrangência
internacional, já os direitos fundamentais dizem respeito a normas consagradas internamente
no âmbito dos Estados nacionais. Todas as demais expressões são subespécies de direitos
humanos ou direitos fundamentais a depender de sua abrangência, exceto os termos ―direitos
do homem‖, que foram empregados originalmente nas primeiras declarações de direitos,
como manifestações positivas do contratualismo e do jusracionalista da época, além da
locução ―direitos morais‖, que entre nós, não vingou, pela sua incompatibilidade com os
preceitos do sistema jurídico da civil law.
A fim de elucidar a questão, exemplifiquemos: os direitos políticos podem ser
considerados espécies tanto de direitos humanos, quanto de direitos fundamentais, a depender
da abrangência da norma criadora de tais direitos. Eles serão, portanto, espécies de direitos
humanos quando empregados, por exemplo, como foram no Pacto Internacional sobre
Direitos Civis e Políticos de 1966, já que se trata, in casu, de uma norma de direito
internacional. Ao passo que, serão considerados espécies de direitos fundamentais quando
tratados e.g no Capítulo IV (Dos Direitos Políticos), do Título II (Dos Direitos e Garantias
Fundamentais) da Constituição Federal de 1988.
Então, qual expressão seria apta a nominar o gênero dos direitos afetos aos seres
humanos, ou seja, agregar numa só locução, tanto os direitos humanos, quanto os direitos
fundamentais e, via de consequência, as subespécies de cada um deles?
Para responder a essa questão, devemos levar em conta que existem doutrinadores
que acrescentam um segundo adjetivo à locução ―direitos fundamentais‖.
Silva, valendo-se do termo ―direitos fundamentais do homem‖, esclarece que
28
direitos fundamentais do homem constituía a expressão mais adequada a este estudo,
porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e
informam a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para
designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele
concretiza em garantia de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas.
No qualificativo fundamentais acha-se a indicação de que não se trata de situações
jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive, e as vezes nem
mesmo sobrevive; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual,
devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente
efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa
humana. Direitos fundamentais do homem significa direitos fundamentais da
pessoa humana ou direitos fundamentais. É com esse conteúdo que a expressão
direitos fundamentais encabeça o Título II da Constituição, que se completa, como
direitos fundamentais da pessoa humana, expressamente , no art. 17. (destaques do
autor)64
Essa expressão defendida por ele é encontrada em Constituições brasileiras do
passado, como no § 13 do art. 141 da Constituição de 1946, 65 no inc. I do art. 149 da
Constituição de 196766 e na cabeça do artigo 152 da Emenda Constitucional n. 1/69, 67 que é
considerada uma verdadeira Constituição. Em documentos internacionais, o termo é
empregado v.g. no preâmbulo da Carta das Nações Unidas de 1945.68
Há também quem acrescente um segundo adjetivo à locução ―direitos humanos‖,
como é o caso de Ferreira Filho 69 e Moraes70, que proclamam como mais acertada a expressão
―direitos humanos fundamentais‖, por entenderem que esses direitos, inicialmente, pertencem
às pessoas humanas e, justamente por isso, são qualificados como fundamentais.
Quanto ao emprego da expressão ―direitos fundamentais do homem‖, por fazer
menção a uma categoria histórica designativa da gênese dos direitos afetos ao ser humano,
acreditamos que ela não seja a mais adequada.
64
SILVA, José Afonso da . Ob. cit., p. 178.
―Art. 141 [...]
§ 13 - É vedada a organização, o registro ou o funcionamento de qualquer Partido Político ou associação, cujo
programa ou ação contrarie o regime democrático, baseado na pluralidade dos Partidos e na garantia dos direitos
fundamentais
do
homem.‖
(original
sem
grifos).
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao46.htm>. Acesso em 11/3/2009.
66
―Art. 149 [...]
I - regime representativo e democrático, baseado na pluralidade de Partidos e na garantia dos direitos
fundamentais
do
homem;‖
(original
sem
destaques).
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao67.htm>. Acesso em 11/03/2009.
67
―Art. 152. É livre a criação de Partidos Políticos. Sua organização e funcionamento resguardarão a Soberania
Nacional, o regime democrático, o pluralismo partidário e os direitos fundamentais da pessoa humana,
observados
os
seguintes
princípios:‖
(destacamos).
Disponível
em
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Emendas/Emc_anterior1988/emc01-69.htm>. Acesso em
11/03/2009.
68
―Nós o povo das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra, que por
muitas vezes, no espaço da nossa vida, trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos
direitos fundamentais do homem [...]‖ (MAZZUOLI, Valério de Oliveira (org.). Ob. cit., p. 218).
69
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos humanos fundamentais. 2008.
70
MORAES, Alexandre de. Direitos Humanos fundamentais: teoria geral, comentários aos arts. 1º a 5º da
constituição da republica federativa do brasil, doutrina e jurisprudência. 1998.
65
29
Em relação ao termo ―direitos humanos fundamentais‖71, por causa da junção de
expressões designativas das espécies desses direitos, a qual ele sintetiza, julgamos que ele seja
o mais apto a designar, portanto, o gênero desses direitos.
Sendo assim, à guisa de um breve epílogo, podemos afirmar que os ―direitos
humanos fundamentais‖ açambarcam os ―direitos do homem‖ fruto do jusnaturalismo
racionalista e do contratualismo que, após sua positivação ocorrida nas declarações de direitos
das revoluções americana e francesa, generalizaram-se e foram irradiados pelos ordenamentos
jurídicos constitucionais internos sob a fórmula dos ―direitos fundamentais‖ e ainda, diante da
necessidade de seu reconhecimento internacional, transmutaram-se em ―direitos humanos‖.72
2. A PROTO-HISTÓRIA DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
2.1. UMA INTRODUÇÃO NECESSÁRIA À AFIRMAÇÃO HISTÓRICODOCUMENTAL DOS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
O estudo da origem e da trajetória dos direitos humanos fundamentais ao longo
dos tempos é um tema fascinante que justificaria tranquilamente a confecção de uma obra
inteira ou de inúmeras monografias e teses. 73
Nesta parte do trabalho, contudo, nosso objetivo será modesto, ao passo que
tentaremos estabelecer, ao longo da História, a sucessão dos momentos marcantes que
determinaram o surgimento de tais direitos.
Dessa forma, a História, para o nosso estudo, assume um relevante sentido, pois
71
Em outra oportunidade já denominamos esta expressão de ―gênero dos gêneros‖ dos direitos afetos aos seres
humanos. (FRANCO FILHO, Alberto de Magalhães. Estudo crítico da terminologia designativa dos direitos
afetos ao ser humano. In: XVIII Encontro Nacional do CONPEDI, 2009, Maringá/PR. Anais do XVIII Encontro
Nacional do CONPEDI, v. 18. Florianópolis/SC: FUNDAÇÃO BOITEUX, 2009).
72
Cf. LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: constituição, racismo e relações
internacionais. Barueri: Manole, 2005, p. 36-39.
73
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2007, p. 42.
30
os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou
seja, nascidos em certas circunstancias, caracterizadas por lutas em defesa de novas
liberdades contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual, não todos de uma vez
e nem de uma vez por todas.74
Assim, a sedimentação dos direitos humanos fundamentais como normas
obrigatórias é resultado de uma ―maturação histórica‖75 e, portanto, se quisermos
compreender a fase atual de seu desenvolvimento, é preciso lançarmos um olhar sobre a
história.
Inicialmente, convém registrar que, do mesmo modo que pairam intermináveis
discussões jurídicas, políticas e filosóficas sobre a terminologia mais acertada para designar
os direitos em estudo, existem também inúmeras posições doutrinárias divergentes sobre a
origem histórica dos direitos humanos fundamentais.
Contudo,
é
de
se
observar
que,
invariavelmente,
seja
qual
for
a
fundamentação/justificação teórica adotada sobre tais direitos (jusnaturalista, positivista,
moral etc.), é certo que ao menos do ponto de vista formal, eles foram originalmente
positivados, efetivamente, nas declarações de direitos das revoluções americana e francesa,
sendo esta constatação um ―dado‖ histórico irrefutável.
Seguindo essa linha de raciocínio, Canotilho afiança que é possível fazer um
―corte histórico‖ no processo de desenvolvimento dos direitos humanos fundamentais em dois
períodos distintos. Um primeiro que antecede ao Virginia Bill of Rigths de 1776 e a
Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen de 1789, marcado por uma ―relativa
cegueira‖ em relação aos direitos humanos fundamentais; e um posterior a essas declarações
de direitos, que conduziu à constitucionalização e irradiação desses direitos pelas
Constituições dos Estados76 e, por fim, seu reconhecimento internacional.
Por essa razão denominaremos de ―proto-história‖ a fase que compreende o
surgimento da idéia de direitos humanos fundamentais até sua inequívoca positivação nas
declarações de direitos das revoluções americana e francesa e de ―história propriamente dita‖
a fase seguinte, analisada logo em seguida.77
74
BOBBIO, Norberto. Ob. cit., p. 25.
MENDES, Gilmar Ferreira; COELHO, Inocêncio Martires; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de direito
constitucional. São Paulo: Saraiva 2007, p. 221.
76
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 380.
77
Em sentido parecido é a lição de Klaus Stern citado por Sarlet, que sintetiza o devir histórico dos direitos
humanos fundamentais até o seu reconhecimento nas primeiras constituições escritas, da seguinte forma: ―a) uma
pré-história, que se estende até o século XVI; b) uma fase intermediária, aqui corresponde ao período de
elaboração da doutrina jusnaturalista e da afirmação dos direitos naturais do homem; c) a fase da
constitucionalização, iniciada em 1776, com as sucessivas declarações de direitos dos novos Estados
75
31
Como já foi dito, os direitos humanos fundamentais não se deflagraram nas
declarações do século XVIII, de um jato, ou a partir de um ―big bang‖ jurídico-filosófico, ao
contrário, foram fruto de um longo amadurecimento da(s) sociedade(s) que culminou com a
chegada ao referido ponto de sazonamento, ou seja, um ―dado‖ que surgiu através de um lento
e complexo processo de construção de idéias, conceitos e valores. E é justamente este
―construído‖78 que pretendemos pormenorizar.
Antes, porém, do início do estudo da proto-história dos acontecimentos relevantes
para formação dos direitos humanos fundamentais, é oportuno alertar que, nas próximas
páginas não será contada ―[...] a parte mais bela e importante de toda a História [...]‖,79 como
afirma Comparato ao se referir, preambularmente, ao sentido e a trajetória dos direitos
humanos fundamentais. Na verdade, as conquistas históricas de direitos, no decorrer da
história, sucederam- se
[...] após narrativas seqüenciais de dor física e moral em grandes proporções. É
prudente destacar, no entanto, que dores houve em tanta grandeza, na antiguidade e
na Média Era, que despertaram não apenas o remorso mas também serviram como
alimento da ética e da ética da dignidade do homem, como um ‗aprendizado com e
contra o mal‘ a incutir-se tempo afora como uma ‗memória da tragédia‘ a contribuir
para a evolução da condição do ser precário e ambivalente do homem. O fanatismo,
a ignomínia da guerra e a injustiça parece que habitam nossos arquétipos como teste
de uma passagem tão longa quanto o tempo que vem do primogênito Adão aos dias
em que vivemos.80
2.2.
ANTECEDENTES
HISTÓRICOS
DOS
DIREITOS
HUMANOS
FUNDAMENTAIS: CONSIDERAÇÕES SOBRE A IDADE ANTIGA
Adentrando propriamente no estudo histórico, Moraes proclama que a origem dos
direitos humanos fundamentais pode ser encontrada no antigo Egito e Mesopotâmia, durante o
terceiro milênio a. C., onde já existiam alguns mecanismos de proteção individual em face do
americanos.‖ (STERN, Klaus. Das staatsrecht der bundes republik deustchland. vol. III/1. Munchen: C. H.
Beck, 1984, p. 56 apud SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2008, p. 43).
78
Lewandowski assinala que os filósofos costumam dividir o real em ―mundo da natureza‖ e ―mundo da
cultura‖, sendo que naquele encontra-se o ―dado‖, neste ultimo está o construído. Assim, as ciências biológicas,
exatas etc. trabalham com o ―dado‖ enquanto o cientista social (o jurista em especial) lida com o ―construído‖.
(LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. A formação da doutrina dos direitos fundamentais. In: MARTINS, Ives
Gandra da Silva; MENDES, Gilmar Ferreira; TAVARES, André Ramos (coord.). Lições de direito
constitucional em homenagem ao jurista Celso Bastos. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 168).
79
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 1.
80
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 135.
32
Estado, sendo que a primeira codificação a consagrar direitos comuns a todos os homens seria
o Código de Hamurabi (1690 a. C.). O autor vislumbra também a influência filosóficoreligiosa dos direitos do ser humano com a propagação das idéias de Buda (500 a. C.). Por fim
concluí que os direitos humanos fundamentais surgem de forma mais coordenada a partir de
estudos sobre a necessidade de igualdade e liberdade do homem, como as previsões de
participação política dos cidadãos existentes na Grécia antiga (democracia direta de Péricles)
e ainda de forma mais veemente no Direito Romano Clássico, em que, originalmente,
estabeleceu-se um complexo mecanismo de interditos com vistas a tutelar direitos individuais
em face dos arbítrios estatais. 81
Nesse sentido, também é a lição de Ferreira Filho que aponta como remoto
ancestral da doutrina dos direitos humanos fundamentais à antiguidade, em que existia um
direito superior não estabelecido pelos homens, mas dado a estes pelos deuses, com referência
à Antígona de Sófocles e ao diálogo De Legibus, de Cícero.82
Contudo, há quem discorde da posição juristas supramencionados, já que seria
inconcebível assentir na antiguidade clássica a ideia de direitos humanos fundamentais diante
do estatuto da escravidão 83. Ademais, faltaria às civilizações grega e romana a idéia de Estado
e de direito público no sentido moderno 84.
Carvalho chega a afirmar que
o mundo antigo não conheceu o primado da liberdade individual e por via de
conseqüência nele não se fizeram presentes as condições históricas necessárias ao
desenvolvimento dos direitos humanos. As relações sociais daquela época estavam
centradas nas forças da religião e da família, e não havia uma esfera de tolerância
relativamente às liberdades individuais. Para a conservação dos interesses da polis
tudo era permitido, e tanto em Roma como na Grécia antigas o estado não
encontrava limites na sua órbita de sua atuação.85
81
MORAES, Alexandre de. Ob. cit., 1998, p. 24-25.
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., 2008, p. 9.
83
Nesse sentido, Canotilho recorda que Platão e Aristóteles consideravam o estatuto da escravidão como algo
natural. Para Platão apenas um pequeno número de homens especialmente qualificados detinham conhecimento
sobre a pilotagem do Estado, ficando os demais obrigados a uma obediência incondicionada à eles. Segundo
Aristóteles o poder do senhor sobre o escravo (despotikón) é algo natural, ou seja, aquele homem que por lei
natural não pertence a si mesmo, pertence a outro homem e naturalmente é escravo. (CANOTILHO, José
Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 380-381).
84
Cf. MARTINS, Leonardo. Direitos fundamentais (história) – liberdade. In: DIMOULIS, Dimitri (coord.).
Dicionário de direito constitucional. 2007, p. 127.
85
CARVALHO, Oscar de. Gênese e evolução dos direitos fundamentais. Revista Instituto de Pesquisas e
Estudos: Divisão Jurídica, Bauru, edição 34, abr./jul. 2002, p. 32.
82
33
Na verdade, parece-nos que a Idade Antiga86 não pode ser considerada como
verdadeiro berço histórico dos direitos humanos fundamentais, nem tampouco afirmar que
essa época quedou-se numa completa ―cegueira‖ em relação à idéia destes direitos.
Com efeito, é possível vislumbrar um parco e prisco antecedente na Grécia antiga,
entre os filósofos sofistas que reconheciam a natureza biológica comum dos homens,
aproximando-se então da tese da igualdade natural e da idéia de humanidade. 87
Já entre os pensadores estóicos88, a referência, embora insignificante, é um pouco
mais latente que a sofista, ao passo que, para eles a igualdade assume um lugar proeminente,
pois ela radica do fato de todos se encontrarem sob um nomos unitário, que os converte em
cidadão do grande Estado universal. 89 Segundo os estóicos, ―o mundo é uma única cidade –
cosmo-polis – da qual todos participam como amigos e iguais.‖. 90
Também é possível encontrar alguma referência inexpressiva, em Roma a partir
das formulações de Cícero (latino que também cultivou o estoicismo, como Sêneca) que
desenvolveu uma certa compreensão de dignidade desvinculada do cargo ou posição social
ocupado pelo seu detentor, existindo, portanto, um sentido moral relativo às virtudes do
indivíduo e um sociopolítico atinente à posição ocupada por ele. 91
Percebe-se, então, ao menos prima face, que existe alguma alusão à noção de
direitos humanos fundamentais na antiguidade.
Não obstante, é forçoso consignar que, ao contrário do que afirma Moraes ao
mencionar o antecedente histórico mesopotâmico e egípcio, os direitos humanos fundamentais
são incontestavelmente oriundos da civilização ocidental. Esta é a lição de Lewandowski, in
verbis:
Não se pode olvidar que os direitos humanos, tal como nós compreendemos
atualmente, tem uma origem comum: são produto da civilização ocidental, cuja nota
distintiva é o humanismo, que consiste, segundo Reale, em tomar-se o homem como
86
Antiguidade ou Idade Antiga, compreende o período que se estendeu desde a invenção da escrita (4000 a.C. a
3500 a.C.) até a queda do Império Romano do Ocidente (476 d.C.).
87
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 381.
88
A escola estóica foi fundada no século III a.C. por Zenão de Cítio (de Cittium), e que preconizava a
indiferença à dor de ânimo oposta aos males e agruras da vida, em que reunia seus discípulos sob pórticos
("stoa", em grego) situados em templos, mercados e ginásios. Foi bastante influenciada pelas doutrinas cínica e
epicurista. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Estoicismo>. Acessado em: 20/03/2009.
89
WELZEL, Hans. Derecho natural y justicia material. Madrid, 1957, p. 42; OESTREICH, Gerhard. Geschichte
der menschenrechte und grundfreiheiten im umriss. 2. ed. Berlin, 1978, p. 10 apud CANOTILHO, José Joaquim
Gomes. Ob. cit., p. 381.
90
LAFER, Celso. A reconstrução dos direitos humanos: um diálogo como o pensamento de Hannah Arendt. São
Paulo: Companhia das Letras, 1988, p. 119.
91
RUIZ, Carlos Miguel. The idea of human dignity. In: Jahrbuch des öffentlichen rechts. Neue Folge, 2002, p.
284-284 apud SARLET. Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais na constituição
de 1988. 3. ed. rev., atual. e ampl. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 30-31.
34
valor-fonte de todos os valores. Isso não ocorre em outras culturas, onde distintos
são os paradigmas dominantes. No oriente, como se sabe, a ênfase da cultura dá-se
no universal, no coletivo, no social, seja na religião, seja na política. Basta pensarse, por exemplo, no nirvana budista, que corresponde, em suma, a um estado
espiritual alcançado por meio da supressão do desejo e da consciência individual,
isto é, a completa integração da pessoa na natureza circundante. Também o
confucionismo, que dominou por mais de dois mil anos o sistema filosófico da
China, a partir do século V a.C., e influencia até hoje o modo de pensar chinês e de
boa parte do mundo oriental, baseia as relações pessoais no interesse mais amplo da
comunidade. 92
Extrai-se, portanto, que o estudo da história dos direitos humanos fundamentais
deve ser realizado a partir do reconhecimento da dignidade humana, ou seja, o homem como
―valor-fonte‖.
Mas em que consiste a dignidade humana?
Para respondermos a esse questionamento, faremos uso da lição de Comparato,
para quem a resposta tem sido dada sucessivamente pela religião, filosofia e ciência. 93
A justificação religiosa da preponderância da pessoa humana no mundo é
imputada ao surgimento da fé monoteísta, considerada a grande contribuição do povo da
Bíblia à humanidade, talvez uma das mais importantes. No politeísmo, de certo modo, os
deuses faziam parte do mundo, como super-homens, com paixões e defeitos típicos dos seres
humanos. A fé em um Deus único e transcendente traz para o ser humano a posição eminente
na criação do mundo.
A explicação filosófica advém da afirmação da natureza essencialmente racional
do ser humano, inicialmente entre os poetas e filósofos gregos e mais tarde na era moderna
com René Descartes. Para a filosofia, a primazia humana, provém do fato do homem ser o
único animal capaz de tomar a si mesmo como objeto de reflexão.94
Elucida-nos a ciência, por seu turno, que a dignidade humana sobreveio com a
descoberta do processo de evolução dos seres vivos, em que muitas são as explicações, como
o Darwinismo, princípio antrópico etc. Contudo, é certo ―[...] que o curso do processo de
evolução vital foi substancialmente influenciado pela aparição da espécie humana.‖. 95
O ser humano, seja qual for a justificativa, é sem dúvida a espécie predominante
na natureza, capaz de subjulgar as demais e interagir com o mundo a sua volta de maneira
fantástica, podendo com isso rebaixar-se à irracionalidade dos seres inferiores ou elevar-se ao
nível divino dos seres superiores.
92
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Ob. cit., p. 169.
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 1-8.
94
Ibidem, p. 3-4.
95
Ibidem, p. 6.
93
35
Portanto, é a partir do desenvolvimento da ideia da preponderância do ser humano
que se reconhece também sua dignidade, ou seja, sua igualdade essencial, que irá coincidir
com a gênese dos direitos humanos.
O reconhecimento dessa igualdade essencial entre seres humanos é imputada ao
ideário cristão, cuja herança é a religião judaica96.
O cristianismo 97 incorporou os ensinamentos do judaísmo, inclusive trazendo para
a religião cristã a bíblia dos hebreus. Em ambas religiões monoteístas, um Deus único e
transcendental é o modelo a ser seguido pelo homem. Tanto é que, no primeiro livro da
primeira parte da Bíblia (Pentauteco para os cristãos e Torá para os judeus), mais
precisamente em Gênesis capítulo n. 1, versículo n. 27, fica expressamente consignado que
Deus criou o homem à sua imagem e semelhança.
Porém, é a religião cristã que é considerada como a matriz da doutrina da
dignidade da pessoa humana e, portanto, o berço teórico dos direitos humanos fundamentais 98.
96
O judaísmo é considerado a primeira religião monoteísta a aparecer na história (as outras duas são o
cristianismo e o islamismo). Tem como crença principal a existência de apenas um Deus (representado
tetragrama YWHW), o criador de tudo. Para os judeus, Deus fez um acordo com os hebreus, fazendo com que
eles se tornassem o povo escolhido e assegurando-lhes a terra prometida. A Bíblia é a referência para
entendermos a história deste povo. De acordo com as escrituras sagradas, por volta de 1800 AC, Abraão recebeu
um sinal de Deus para abandonar o politeísmo e para viver em Canaã (atual Palestina). Isaque, filho de Abraão,
tem um filho chamado Jacó. Este luta , num certo dia, com um anjo de Deus e tem seu nome mudado para Israel.
Os doze filhos de Jacó dão origem às doze tribos que formavam o povo judeu. Por volta de 1700 AC, o povo
judeu migra para o Egito, porém são escravizados pelos faraós por aproximadamente 400 anos. A libertação do
povo judeu ocorre por volta de 1300 AC. A fuga do Egito foi comandada por Moisés, que recebe as tábuas dos
Dez Mandamentos no monte Sinai. Durante 40 anos ficam peregrinando pelo deserto, até receber um sinal de
Deus para voltarem para a terra prometida, Canaã.Jerusalém é transformada num centro religioso pelo rei Davi.
Após o reinado de Salomão, filho de Davi, as tribos dividem-se em dois reinos : Reino de Israel e Reino de Judá.
Neste momento de separação, aparece a crença da vinda de um messias que iria juntar o povo de Israel e
restaurar o poder de Deus sobre o mundo. Em 721 começa a diáspora judaica com a invasão babilônica. O
imperador da Babilônia, após invadir o reino de Israel, destrói o templo de Jerusalém e deporta grande parte da
população judaica. No século I, os romanos invadem a Palestina e destroem o templo de Jerusalém. No século
seguinte, destroem a cidade de Jerusalém, provocando a segunda diáspora judaica. Após estes episódios, os
judeus espalham-se pelo mundo, mantendo a cultura e a religião. Somente em 1948, é dado ao povo judeu à
possibilidade de retomar sue caráter de unidade com a criação do estado de Israel, porém essa tentativa parece ter
falhado diante das incessantes tensões na Palestina.
97
O cristianismo é uma religião monoteísta baseada na vida e nos ensinamentos de Jesus de Nazaré, que
encontram recolhidos nos Evangelhos, parte integrante do Novo Testamento. De acordo com a fé cristã, Deus
mandou ao mundo seu filho para ser o salvador (Messias) dos homens. Este, seria o responsável por divulgar a
palavra de Deus entre os homens. Foi perseguido, porém deu sua vida pelos homens. Ressuscitou e foi par o céu.
Ofereceu a possibilidade da salvação e da vida eterna após a morte, a todos aqueles que acreditam em Deus e
seguem seus mandamentos. Seu surgimento como religião ocorre no século I, como uma seita do judaísmo,
partilhando por isso textos sagrados com esta religião, em concreto o Tanakh, que os cristãos denominam de
Antigo Testamento.
98
Sarlet testemunha que não parece correto atribuir exclusividade e originalidade à religião cristã pela
elaboração de uma concepção de dignidade da pessoa, diante do contexto das diversas religiões professadas pelo
ser humano ao longo dos tempos. Contudo, conclui o mesmo autor que de fato ―tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento podemos encontrar referências no sentido de que o ser humano foi criado à semelhança de Deus,
premissa da qual o cristianismo extraiu consequência.‖. (SARLET. Ingo Wolfgang. Ob. cit., 2004, p. 29-30).
36
Suas peculiaridades para com o judaísmo são enormes. Primeiro, porque o dogma
da Santíssima Trindade cristão (três pessoas com uma só substância: Pai, Filho e Espírito
Santo) quebrou a unidade absoluta e transcendental da pessoa divina, criando um modelo
ético, mais acessível aos homens a ser imitado. Segundo, pelo fato do cristianismo ter
universalizado a filiação divina através das pregações do apóstolo Paulo de Tarso, que
proclamava serem todos os homens filhos de Deus, ―pois não há distinção entre judeu e
grego: porque um mesmo é o Senhor de todos, rico para com todos os que o invocam‖ 99 e
ainda ―já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, porque
todos vós sois um em Cristo Jesus‖ 100, superando, desse modo, a ideia de que o Deus único e
transcendente havia privilegiado um povo (os judeus) entre todos, para ser seu único herdeiro.
Tendo em vista os argumentos expostos, é elucidativa a lição de Lafer que afirma:
O cristianismo retoma e aprofunda o ensinamento judaico e grego, procurando
aclimatar no mundo, através da evangelização, a idéia de cada pessoa humana tem
um valor absoluto no plano espiritual, pois Jesus chamou a todos para a salvação. 101
Também vale registrar a posição de Miranda, in verbis:
É com o cristianismo que todos os seres humanos só por o serem e sem acepção de
condições, são considerados pessoas dotadas de um eminente valor. Criados à
imagem e semelhança de Deus, todos os homens são chamados à salvação através de
Jesus que, por eles, verteu Seu Sangue. Criados à imagem e semelhança de Deus,
todos os homens tem uma liberdade irrenunciável que nenhuma sujeição política ou
social pode destruir.102
Pena que essa igualdade universal dos filhos de Deus somente obteve validade
efetiva no plano espiritual, pois o cristianismo, durante muitos séculos, manteve-se inerte e,
na maioria das vezes, até coadjuvou para: a manutenção da escravatura; a inferiorização da
mulher em relação ao homem; a proliferação do preconceito para como os povos americanos,
asiáticos e africanos, etc.; sem contar no patrocínio de mazelas e desgraças inenarráveis, como
as perseguições da Santa Inquisição (Inquisitio Haereticae Pravitatis Sanctum Officium).
De qualquer modo, aparenta ser atribuível aos ideais cristãos a fonte mais remota
e segura da gênese da idéia de direitos humanos fundamentais, que estaria contida no
interregno temporal do final da Idade Antiga.
99
Epistola aos Romanos, Capítulo n. 10, Versículo n. 12, do Novo Testamento.
Epistola aos Gálatas, Capítulo n. 3, Versículo n. 28, do Novo Testamento.
101
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 119.
102
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1988, p. 17.
100
37
2.3. A IDADE MÉDIA E OS DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
Na Idade Média ou Era Medieval103, temos uma época chancelada por incertezas e
instabilidades sociais, políticas e econômicas, ―classificada por alguns como a noite negra da
história da Humanidade e glorificada por outros como um extraordinário período de criação,
que preparou os instrumentos e abriu os caminhos para que o mundo atingisse a verdadeira
noção do universal.‖.104
Esse período da história costuma ser dividido pelos historiadores em dois
períodos: Alta Idade Média (século V ao X) e Baixa Idade Média (século XI ao XV).
A Alta Idade Média denota o início de uma nova civilização constituída pelo
amálgama de instituições clássicas, valores cristãos e costumes germânicos; marcada pelo
esfacelamento do poder político e econômico, com a instauração do feudalismo. 105
Comentando o processo de formação da sociedade medieval, apresentamos as
palavras de Maluf, in verbis:
O Estado medieval, que se ergueu sobre os escombros das invasões bárbaras,
recebeu a influência preponderante dos costumes germânicos. As tradições romanas
pouco ou nada influíram. Os reis bárbaros, francos, godos lombardos e vândalos,
uma vez completada a dominação dos vastos territórios que integravam a orbita da
hegemonia do extinto império cesarista, passaram a distribuir cargos, vantagens e
privilégios aos seus guerreiros, resultando daí a fragmentação do poder. E como
fossem imensos os territórios e impossível a manutenção de sua unidade sob um
comando central único, criaram uma hierarquia imperial de condes, marqueses,
barões duques, os quais dominavam determinadas zonas territoriais, como
concessionários do poder jurisdicional do rei. Em compensação, tais concessionários
se comprometiam a defender o território, prestar ajuda militar, pagar e manter o
princípio da fidelidade de todos os súditos ao Rei. 106
Em decorrência disso, verifica-se no medievo europeu a existência de uma
estrutura social plural e descentralizada, distinta do centralismo existente no Império Romano
da antiguidade:
103
Compreendida entre o período histórico da desintegração do Império Romano do Ocidente, no século V (em
476 d. C.), e o fim do Império Romano do Oriente, com a Queda de Constantinopla, no século XV (em 1453
d.C.).
104
DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos da teoria geral do estado. 26. ed. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 66.
105
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 45.
106
MALUF, Sahid. Teoria geral do estado. 27. ed. rev. e atual. por Miguel Alfredo Malufe Neto. São Paulo:
Saraiva, 2007, p. 109.
38
Na idade média a sociedade era dividida em castas ou estamentos e três eram as
ordens sociais existentes: o clero, a nobreza e o restante da população, em sua maior
parte constituída pelos servos. Apenas os membros do clero e da nobreza gozavam
de certo grau de liberdade e eram tidos como iguais, enquanto que os servos não
eram homens livres e estavam submetidos aos senhores feudais, barões e bispos, que
formavam o clero e a nobreza. Não havia, pois, igualdade jurídica entre os homens
naquele período. Os servos estavam presos à terra e eram vassalos dos senhores
feudais. Os privilégios de nascimento é que determinavam a sorte dos homens e
quem nascesse servo por toda a vida seria servo enquanto que aquele que nascesse
numa família nobre estava destinado ao domínio sobre a inferior classe dos
servos. 107
Vale ressaltar também que os medievais, assim como os antigos, rejeitam o
mundo dos homens, retomando os ensinamentos de Platão, para a busca e a contemplação da
verdade eterna,108 ou seja, a verdade em Deus.
Por essa razão, a sociedade política medieval é uma sociedade complexa,
composta de grupos, classes e ordens, em que os direitos, na verdade, constituem privilégios,
imunidades, regalias, todos justificados em leis divinas.
Contudo, essa sociedade estamental acabaria aos poucos sendo substituída, pois já
no início da Baixa Idade Média,
a partir do século XI, assiste-se a um movimento de reconstrução da unidade política
perdida. Duas cabeças reinantes, o imperador carolíngio e o papa, passaram a
disputar asperamente a hegemonia suprema sobre todo o território europeu. Ao
mesmo tempo, os reis, até então considerados nobres de condição mais elevada que
os outros (primi inter pares), reivindicaram para as suas coroas poderes e
prerrogativas que até então, pertenciam de direito à nobreza e ao clero.109
Inicia-se, então, um processo de dualidade política entre o rei ou imperador
(aquele que se destacava entre os senhores feudais como sendo o primeiro ou mais fortalecido
suserano) e os estamentos ou as ordens da sociedade medieval, principalmente o clero, por
meio da figura papal. Esse movimento, mais tarde, irá culminar no Absolutismo Monárquico.
E foi ―[...] justamente contra os abusos dessa reconstrução do poder que surgiram
as primeiras manifestações de rebeldia [...]‖,110 corporificadas pelos pactos, cartas de
franquias ou forais medievais.
Neste sentido, Ferreira Filho alude que ―[...] o registro de direitos num documento
escrito é pratica que se difundiu na segunda metade da Idade Média.‖.111 E arremata o autor
que esses documentos ainda não continham o verdadeiro e autêntico ―[...] registro de direitos
107
CARVALHO, Oscar de. Gênese e evolução dos direitos fundamentais. Revista Instituto de Pesquisas e
Estudos: Divisão Jurídica, Bauru, edição 34, abr./jul. 2002, p. 35.
108
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 120.
109
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 45-46.
110
Ibidem, p. 46.
111
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit. 2008, p. 11.
39
do Homem, mas direitos de comunidades locais, ou de corporações, por meio de forais ou
cartas de franquia. Nestes, que os senhores feudais, mormente os reis, outorgavam,
inscreviam-se direitos próprios e peculiares aos membros do grupo.‖.112
Dentre os principais documentos escritos europeus da idade média podemos citar:
na Espanha, o Pacto das Cortes de Leon, em 1188, entre Alfonso IX e seu reino; o Privilégio
Geral de Aragon, de 1283, outorgado por Pedro III nas Primeiras Cortes de Zaragoza; os
Privilégios da União Aragoneza de 1286; o Acordo das Cortes de Burgos de 1301; o Acordo
das Cortes de Valladolid, de 1322; o Foro de Vizcaya de 1452. Na França, as cartas das
comunas urbanas, a exemplo da Gran Carta de Saint Gaudens de 1203. Na Itália, o Quarto
Conselho Laterano de 1215. Na Inglaterra a Magna Carta de 1215. Na Hungria, a Bula de Oro
de 1222. Na Suécia, os Capítulos do rei das leis dos Condado Suecos no século XIV.
Contudo, o registro escrito mais comentado foi, sem dúvida, a Magna Charta
Libertatum, outorgada por João Sem-Terra em 15 de junho de 1215, onde foram consagrados
direitos dos barões e prelados ingleses, restringindo-se o poder daquele monarca. Vejamos seu
preâmbulo e seus dois artigos iniciais:
João, pela graça de Deus reis da Inglaterra, senhor da Irlanda, duque da Normandia e
da Aquitânia e Conde de Anjou, aos arcebispos, bispos, abades, barões, juízes,
couteiros, xerifes, prebostes, ministros, bailios e todos os seus fiéis súditos.
Sabei que, sob a inspiração de Deus, para a salvação da nossa alma e das almas dos
nossos antecessores e dos nossos herdeiros, para a honra de Deus e exaltação da
Santa Igreja, e para o bem do reino, e aconselho dos veneráveis padres Estevão,
arcebispo de Cantuária, primaz da Inglaterra e cardeal da da Santa Igreja Romana ...
e dos nobres senhores Guilherme Marshall, conde de Pembroke..., oferecemos a
Deus e confirmamos pela presente Carta, por nós e pelos nosso sucessores, para todo
o sempre, o seguinte:
1 – A Igreja de Inglaterra será livre e serão invioláveis todos os seus direitos e
liberdades: e queremos que assim seja observado em tudo e, por isso, de novo
asseguramos a liberdade de eleição, principal e indispensável liberdade da Igreja de
Inglaterra, a qual já tínhamos reconhecido antes da desavença entre nós e os nossos
barões [...].
2 – Concedemos também a todos os homens livres do reino, por nós e por nossos
herdeiros, para todo o sempre, todas as liberdades abaixo remuneradas, para serem
gozadas e usufruídas por eles e seus herdeiros, para todo o sempre [...].113
Canotilho, fazendo menção à Carta inglesa de 1215, afirma que, embora ela
contivesse fundamentalmente direitos estamentais, já fornecia alguma abertura para a
transformação dos direitos corporativos em diretos dos homens. 114
112
Ibidem, p. 11.
Cf. MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 13.
114
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 382-383.
113
40
Não obstante, Sidou, criticando a supervaloração desse instrumento normativo, é
categórico ao afirmar que ―vem a ser superfetação vitanda apontar a Magna Charta como
marco limiar das liberdades, do mesmo modo como fora supino exagero de Tito Livio saudar
a Lex Poetelia Papira como o initium libertatis plebis.‖115
Mais tarde foram editados também na Inglaterra o Petition of Right em 7 de junho de 1628, o
Habeas Corpus Act de 1679, o Bill of Right em 13 de fevereiro de 1689 e o Act of Settlement
de 12 de junho de 1701.
Sem dúvida, todos esses documentos foram determinantes para o surgimento dos
direitos humanos fundamentais, pois: a) eles estabeleceram direitos ou privilégios que
limitaram o poder real; b) serviram de embriões aos direitos coletivos e as garantias de
direitos; c) converteram-se em ponto de partida para reivindicações cada vez mais amplas e
gerais de direitos, através dos espaços abertos pelos privilégios e prerrogativas; d) assumiram
a forma escrita como selo de publicidade e garantia.116
Porém, mesmo diante da importância desses documentos legislativos, ainda lhes
faltava uma
[...] perspectiva mais abstrata, geral e individualista das declarações modernas, pois
definiam situações concretas, quase sempre encontradas nas praticas sociais
consolidadas, e tinha como destinatário o homem inserido no seu grupo social ou
nos estamentos – clérigo, nobre, comerciante, moradores da cidade –, deixando os
demais súditos sem proteção jurídica contra os desmandos das autoridades públicas,
e os servos entregues à sorte e ao arbítrio de seus donos. Também se nota que essas
cartas possuíam uma natureza de contratos de direito privado, como acordos de
interesses estamentais, do que documentos de direito público, produto da soberania
popular e vinculado a todos, inclusive ao príncipe. 117
Por essa razão, a afirmação histórico documental dos direitos humanos
fundamentais não é atribuída a esses textos legislativos medievais, contudo, podemos
considerá-los como precedentes longínquos.
Em verdade, no final da idade média, vislumbrava-se na Europa uma sociedade
política caracterizada pela expansão do cristianismo, marcada pelo fortalecimento dos reinos e
seus respectivos imperadores, dando ensejo a uma intensa disputa política.
Também eram constantes as invasões dos povos bárbaros, que iriam determinar a
queda do Império Bizantino em 1453 e, consequentemente, o fim da Idade Média e do modo
de produção feudal.
115
SIDOU, J. M. Othon. As garantias ativas dos direitos coletivos: habeas corpus, ação popular, mandado de
segurança – estrutura constitucional e diretivas processuais. Rio de Janeiro: Forense, 1977, p. 111.
116
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 139
117
Ibidem, p. 138.
41
O feudalismo, em sua fase terminal, determinava a existência de um grande
número de pequenos focos de poder, além do início da ascensão social de comerciantes e
artesãos à margem dos castelos medievais – denominados burgos novos ou burgos de fora –
que iriam formar a classe burguesa.
Dallari comenta com propriedade a existência desses múltiplos focos de poder:
[...] um poder superior exercido pelo imperador, com uma infinita pluralidade de
poderes menores, sem hierarquia definida; uma incontestável multiplicidade de
ordens jurídicas, compreendendo a ordem imperial, a ordem eclesiástica, o direito
das monarquias inferiores, um direito comunal que se desenvolveu
extraordinariamente, as ordenações dos feudos e as regras estabelecidas no fim da
Idade Média pelas corporações de ofícios.118
Porém, um desses poderes teria que despontar.
Como já foi dito, a estrutura social medieval era dividida em estamentos, sendo
que as duas classes detentoras de posses e direitos eram a nobreza e clero. Estas classes,
diuturnamente, disputavam o poder político.
Ocorre que, dentro da própria igreja católica passaram a existir também disputas
de poder e embates de concepções distintas, ensejando um cisma do cristianismo através da
denominada Reforma Protestante (autêntica expressão do racionalismo 119), que enfraqueceu a
igreja e, via de conseqüência, fortaleceu o monarca.
Nesse sentido, Jellineck esclarece que a polêmica entre Estado e Igreja decidiu-se
de vez em benefício do Estado, por obra da Reforma, que com as guerras religiosas a que deu
lugar contribuiu decisivamente para a secularização da consciência geral necessária para o
Estado moderno.120
2.4. DA IDADE MODERNA ÀS DECLARAÇÕES DE DIREITOS
Comentando o surgimento da modernidade, Arendt menciona que
118
DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit., p. 66.
Lafer sustenta que ―a passagem das prerrogativas estamentais para os direitos do homem encontra na reforma,
que assinala a presença do individualismo no campo da salvação, um momento importante da ruptura com uma
concepção hierárquica de vida no plano religioso, pois a Reforma trouxe a preocupação como o sucesso do muno
como sinal da salvação individual. Desta ruptura da unidade religiosa deriva o primeiro direito individual
reivindicado: o da liberdade de opção religiosa.‖. (LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 121).
120
JELLINECK, Georg. Teoria general del estado. Buenos Aires: Albatrós, 1954, p. 243 apud SOARES, Mário
Lúcio Quintão. Teoria do estado: introdução. 2. ed., rev. ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 83.
119
42
no limiar da era moderna há três grandes eventos que lhe determinaram o caráter: a
descoberta da América e subseqüente exploração de toda a Terra; a reforma que,
expropriando as propriedades eclesiásticas e monásticas, desencadeou o duplo
processo de expropriação individual e acumulo de riqueza social; e a invenção do
telescópico, ensejando o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a
natureza da Terra do ponto de vista do universo. 121
Observa-se também, nesse período de passagem de eras, o fenômeno da
conversão dos focos de poder em um só, que determina a instauração do Absolutismo
Monárquico, dando vazo ao Estado moderno e, consequentemente, à efetiva transição da
Idade Média para a Idade Moderna.122
O Estado absoluto, como primeira expressão do Estado moderno, tinha sua base
de sustentação na idéia de soberania, mas não a soberania como conhecemos hodiernamente,
pois o imperium (poder) se concentrava exclusivamente nas mãos dos monarcas, permitindose personificar o Estado na figura do rei, por meio da conhecida frase cunhada pelo monarca
francés Luiz XIV, o Rei Sol: L’ État c’ est moi. Esta autoridade era reconhecida através de
uma legitimação divina. Dessa forma, temos que
a base de sustentação do poder monárquico absolutista estava alicerçada na idéia de
que o poder os reis tinha origem divina. O rei seria o ‗representante‘ de Deus na
Terra, o que lhe permitia desvincular-se de qualquer vínculo limitativo de sua
autoridade. Dizia Bodin, um de seus doutrinadores, que a soberania do monarca era
perpétua, originária e irresponsável em face de qualquer outro poder terreno.
Portanto, pode se dizer que o Estado absolutista, de um ponto de vista descritivo,
seria aquela forma de governo em que o detentor do poder exerce este último sem
dependência ou controle de outros poderes, superiores ou inferiores, como refere
Pierangelo Schiera.123
É imperioso, contudo, consignar que, muito embora os historiadores tenham
definido uma data precisa para o surgimento da era moderna, ―las características
identificadoras del paso de la Edad Media a la Moderna no surgen de la noche a la mañana,
sino que son la consecuencia de un largo proceso de evolución que a veces dura varios
siglos.‖124
Em virtude da hipótese aventada, o surgimento efetivo do Estado Absoluto não
possui local nem data certa, porém, pode-se afirmar que, a partir dele, configurou-se a ideia de
121
ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000, p. 260.
Período histórico compreendido entre a tomada de Constantinopla pelos turco-otomanos em 1453 e a
Revolução Francesa em 1789.
123
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ciência política e teoria do estado. 5. ed. ver. e atual. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 45.
124
MARTINÉZ, Gregório Peces-Barba. Ob. cit., 2004, p. 74.
122
43
unidade jurídico-política, pois os estamentos foram forçados a se submeter ao poder central,
nivelando-se, de certa forma, aos demais súditos.
Nesse sentido, Miranda chega a afirmar que ―[...] o Estado Absoluto viria a ser um
dos passos necessários para a prescrição de direitos fundamentais, universais ou gerais, em
vez de situações especiais, privilégios ou imunidades.‖. 125
Com o Estado moderno, surge uma nova leitura do conceito estatal, sendo
considerado ―desde o seu nascimento, o protetor e o principal adversário dos direitos
humanos.‖.126
Em concomitância com esse fato, surge uma nova classe na sociedade moderna: a
burguesa, que, a partir da intensificação do comércio e do desenvolvimento da arte da
navegação, enfim, o florescimento do capitalismo, irrompeu-se como a mais próspera e
abastada categoria social. Contudo, sem participação nas decisões políticas.
Streck e Morais afirmam que o Estado Absolutista ―[...] foi fundamental para os
propósitos da burguesia no nascedouro do capitalismo, quando esta, por razões econômicas,
‗abriu mão‘ do poder político, delegando-o ao soberano, concretizando-se mutatis mutandis,
aquilo que Hobbes sustentou no Leviatã‖. Seguem os mesmos autores asseverando que ―na
virada do século XVIII, entretanto essa mesma classe não mais se contentava em ter o poder
econômico; queria, sim, agora tomar para si o poder político [...]‖. 127
Esta necessidade de tomada do poder político pela classe burguesa é bem
exemplificada nos dizeres de Lassale:
Então a população burguesa grita: Não posso continuar a ser uma massa submetida e
governada sem contarem com a minha vontade; quero governar também e que o
príncipe reine limitando-se a seguir minha vontade e regendo meus assuntos e
interesses.128
A modernidade inaugura também uma nova maneira de encarar a pessoa humana,
exemplificada através da célebre distinção de Benjamin Constant entre a liberdade dos antigos
e a liberdade dos modernos: ―para os antigos, a liberdade é, antes de mais, participação na
vida da Cidade; para os modernos, antes de mais, realização da vida pessoal.‖. 129
125
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1988, p. 19.
COMPARATO, Fábio Konder. Direitos humanos e estado. In: FESTER, Antonio Carlos Ribeiro (org.).
Direitos humanos e.... São Paulo: Editora Brasiliense/Comissão de Justiça e Paz de São Paulo, 1989, p. 93.
127
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ob. cit., p. 51.
128
LASSALE, Ferdinad. A essência da constituição. Trad. Aurélio Wander Bastos. 7. ed. Rio de janeiro Lúmen
Juris, 2007, p. 32.
129
MIRANDA, Jorge. Ob. cit. 1988, p. 14.
126
44
Essa nova forma de mirar o ser humano é exibida, com riqueza de detalhes, pelo
sociólogo Carmo, que apresenta uma síntese das ideias dos principais expoentes da era
moderna, a seguir transcrita:
A modernidade altera a concepção do ‗eu‘. Se na sociedade tradicional a identidade
é ‗recebida‘ da tradição, na modernidade ela é ‗construída‘. É preciso que o
indivíduo moderno deixe de sonhar com o que é fixo, estável e permanente, já que a
modernidade implica lançar-se à mudança. No dizer do poeta Charles Baudelaire, ‗a
modernidade é o transitório, o efêmero, o contingente‘.
O cenário moderno, erguido na Renascença, levou a humanidade para o centro da
realidade, instalando a importância do indivíduo.
Para o filósofo inglês Francis Bacon, os homens dominariam a natureza a
colocariam a seu serviço se pudessem descobrir os seus segredos. René Descartes
lançou as bases filosóficas do edifício moderno ao privilegiar o papel da dúvida e
concluiu, então, que a existência do ser pensante é a primeira verdade que não pode
ser negada pela dúvida. O método de Descartes torna interdependentes razão e
liberdade individual. Os indivíduos são livres e autônomos à medida que não são
definidos pelos outros, principalmente pelo costume ou pela ordem social
tradicional, mas por sua própria razão. Issac Newton deu à modernidade seu
fundamento científico ao descrever como uma máquina cujas leis e regularidade
poderiam ser apreendidas pela mente humana.
Kant, no século XVIII, finalmente lança a palavra de ordem para se atingir a
maioridade cultural: ‗ousa servir-te de tua razão‘ (sapere aude).130
Anteriormente, as normas que regulavam o agir humano nas organizações
políticas medievais tinham fundamentação transcendental, sem diferenciação entre direito,
religião, tradição, costume e moral.
Neste particular, Baracho Junior afirma que
A modernidade importa em ruptura com a justificação sagrada de uma ordem
normativa aglutinadora, o que viabiliza a distinção entre moral, religião, direito e
tradição. Ao compreender a estabilidade da ordem, fundada em um amálgama
normativo indiferenciado, a modernidade passa a exigir uma justificação própria
para os diversos sistemas de normas, particularmente para o Direito. O Direito passa
a exigir uma justificação que substitui a fundamentação naturalizada presente nas
estruturas sagradas.131
Esse processo, denominado de secularização, importou na ―mundanização de la
cultura, que contrapone la progresiva soberanía de la razón y el protagonismo del hombre‖132.
Sobre tal mudança de mentalidade, destacamos as palavras de Segovia:
La paulatina glorificación de lo humano y natural, en contraposición a lo divino y
sobrenatural, que caracteriza la modernidad, facilito el desarrollo de una visión
130
CARMO, Paulo Sérgio do. Ob. cit., 171-172.
BARACHO JÚNIOR, José Alfredo de Oliveira. Responsabilidade civil por dano ao meio ambiente. Belo
Horizonte: Del Rey, 2000, p. 23.
132
MARTÍNEZ, Gregório Peces-Barba. ob. cit., 2004, p. 81.
131
45
racionalista del mundo: este es una unidad cognoscible racionalmente siempre que la
razón humana aprenda a actuar metódicamente. La razón debe aplicar el modo de
conocimiento de la natureza a las cosas del hombre, pues el arte humano no hace
más que imitar el arte de la natureza, como aseveraba HOBBES. De modo que la
secularización la cosas del hombre se vuelven un artificio (el Estado es un animal
artificial, según Hobbes) y pierden todo contenido trascendente. Lo humano
adquiere entonces, un significado nuevo, pues si la vida verdadera, el reino de Dios,
era transhistórico para el cristiano, perdida la perspectiva trascendente de la vida, es
el propio mundo en el que vive el hombre el que se vuelve sagrado, se glorifica.
La secularización importa la mundanización del cristianismo, del dogma cristiano,
sumido en una perspectiva puramente natural de la vida; pero también lleva consigo
la resacralización y redivinización de la existencia temporal, histórica, mundana, del
hombre. El progreso, categoría central de la modernidad, no es más que otro nombre
para la secularización: La promesa eterna se vuele terrena, histórica.133
Vale ressaltar também que é, durante a Era Moderna, que se aflora o iluminismo,
movimento filosófico defensor do conhecimento racional como meio de superação dos
preconceitos e ideologias tradicionais. O iluminismo, na verdade, representa
[...] mais do que uma determinada filosofia, constitui uma nova cosmovisão
desenvolvida a partir do colapso da civilização medieval, que pretendia ‗iluminar
com razão‘ o obscurantismo e os exageros provocados pelo excessivo apego à
religião e à tradição.
[...]
No plano intelectual, o Iluminismo repousava sobre dois pilares: o Racionalismo e o
Empirismo, duas tendências intelectuais paralelas representadas pelo pensamento de
Descartes, Leibniz, Bacon, Berkeley, Hume e outros, que abriram caminho para a
emancipação da razão, a valorização do espírito critico e a fé na ciência134
Fundado nestes pilares, o pensamento moderno tomou como ponto de partida para
suas especulações o homem natural, ou seja, o homem antes de seu ingresso na vida social,
originando as doutrinas do Jusnaturalismo racionalista e do Contratualismo, que se
interligavam.
Os contratualistas, como Hobbes, Locke e Rousseau, defendiam, cada um a sua
maneira, que o Estado seria formado a partir de um pacto ou contrato entre as pessoas. Já os
jusracionalistas do porte de Grocio, Pufendorf, Kant postulavam a existência de um direito
cujo conteúdo é estabelecido pela natureza e, portanto, é válido em qualquer lugar.
Assim, a partir da combinação do pensamento jusnaturalista e contratualista,
origina-se a tese de que existiam direitos naturais, eternos e absolutos, demonstráveis pela
razão, válidos para todos os seres humanos em todos os tempos e lugares. E que o Estado
(criado através de um pacto entre as pessoas) teria como principal, senão única missão,
assegurar a plena fruição destes direitos.
133
134
SEGOVIA, Juan Fernando. Derechos humanos y constitucionalismo. Madrid: Marcial Pons, 2004, p. 19-20.
LEWANDOWSKI, Enrique Ricardo. Ob. cit., p. 172.
46
E é, neste panorama de desenvolvimento de idéias iluministas sobre direitos
individuais, conjugado com a ascensão eminente da burguesia e arbitrariedade do poder
absoluto do monarca, que se encontra o terreno fértil para o desencadeamento das lutas contra
o absolutismo monárquico, com vistas à limitação do poder do soberano e o reconhecimento
de direitos inerentes ao homem.
Essas batalhas desembocam, inexoravelmente, na ocorrência das revoluções
americana e francesa que, por sua vez, deram origem as declarações modernas de direitos.
A proclamação dos direitos do homem surge como medida deste tipo, quando a
fonte da lei passa a ser o homem e não mais o comando de Deus ou os costumes. De
fato, para o homem emancipado e isolado em sociedades crescentemente
secularizadas, as Declarações de Direitos representavam um anseio muito
compreensível de proteção, pois os indivíduos não se sentiam mais seguros em sua
igualdade diante de Deus, no plano espiritual, e no plano temporal dos estamentos
ou ordens das quais se originavam. É por isso que a positivação das declarações nas
constituições, que se inicia no século XVIII com as Revoluções Americana e
Francesa, tinha como objetivo conferir aos direitos nelas contemplados uma
dimensão permanente e segura.135
A primeira declaração de direitos, em sentido moderno, foi a Declaração de
Direitos do Bom Povo de Virgínia, feita em 16 de junho de 1776. Ela consubstanciava as
bases dos direitos do homem, conforme se depreende de seus dispositivos iniciais:
I – Todos os homens são, por natureza, igualmente livres e independentes e têm
certos direitos inatos de que, quando entram no estado de sociedade, não podem por
nenhuma forma, privar ou despojar a sua posteridade, nomeadamente o gozo da vida
e da liberdade, com os meios de adquirir e de possuir a propriedade e de buscar e
obter felicidade e segurança.
II – Todo poder reside no povo e, por conseqüência, deriva do povo; os magistrados
são seus mandatários e servidores e responsáveis a todo tempo perante ele.
III – O governo existe e deve existir para o bem comum, proteção e segurança do
povo, nação ou comunidade; de todos os modos e formas de governo o melhor é o
que é capaz de produzir o maior grau de felicidade e segurança, e está mais
eficazmente organizado contra o perigo de má administração; e, sempre que
qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins, a maioria da
comunidade tem o direito incontestável, inalienável e irrevogável de o reformar,
modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral.136
Em segundo lugar de precedente histórico, porém ocupando o destaque entre as
declarações de direitos, está a Déclaration dês Droits de l’Homme et du Citoyen de 26 de
agosto de 1789. Ela se encontra em vigor até os dias atuais na França e foi ―por um século e
meio o modelo por excelência das declarações‖.137
135
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 123-124.
Cf. MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 31-32.
137
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit. 2008, p. 19.
136
47
Silva comenta que a Declaração Francesa é mais importante, tendo em vista seu
caráter abstrato e ―universalizante‖, enquanto a Declaração Americana era mais concreta,
―preocupada com a situação particular que afligia aquelas comunidades‖, seus três caracteres
fundamentais eram o ―intelectualismo‖, o ―mundialismo‖ e o ―individualismo‖.138 Vejamos
seu preâmbulo e art. 1º:
Os representantes do povo francês, reunidos em Assembléia Nacional, considerando
que a ignorância, o esquecimento ou o desprezo dos direitos do homem são as
únicas causas das desgraças públicas e da corrupção dos governos, resolveram em
declaração solene os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do Homem, a fim de
que esta declaração, constantemente presente em todos os membros do corpo social,
lhes lembre sem cessar os seus direitos e seus deveres; a fim de que os actos do
Poder Legislativo e do Poder Executivo, podendo ser em cada momento comparados
com a finalidade de toda a instituição política, sejam por isso mais respeitados; a fim
de que as reclamações dos cidadãos, doravante fundadas em princípios simples e
incontestáveis, se dirijam sempre à conservação da Constituição e à felicidade geral.
Por conseqüência, a Assembléia Nacional reconhece e declara, na presença e sob os
auspícios do Ser Supremo, os seguintes direitos do homem e do cidadão:
Art.1º. Os homens nascem e são livres e iguais em direitos. As distinções sociais só
podem fundamentar-se na utilidade comum.139
Horta assevera que ―com a declaração de direitos de 1789, ‗arquétipo
constitucional‘ de documentos dessa natureza, fez-se na verdade a catalogação mais famosa
dos direitos individuais de resistência ao Estado e ao Poder‖.140
Note-se que as duas declarações de direitos, de Virginia (1776) e Francesa (1789),
precedem as Constituições Americana (1787) e Francesa (1791). Tal fato é explicado por
Ferreira Filho no sentido de que, primeiro, formalizou-se em um documento escrito o pacto
social (declaração de direitos), contendo os direitos naturais e seus limites, e, posteriormente,
com a garantia desses direitos, formalizou-se o pacto político (Constituição). Somente mais
adiante, na era do constitucionalismo, por economia de tempo e trabalho, que se passou a
estabelecer, num mesmo documento, a Declaração de Direitos e a Constituição.141
Como já afirmado anteriormente, somente após as declarações de direitos da
revolução americana e francesa é que podemos falar em direitos humanos fundamentais
propriamente ditos, conforme os ensinamentos de Miranda: ―somente há direitos
fundamentais, insistimos, quando o Estado e a pessoa, a autoridade e a liberdade se
distinguem e até em maior ou menos media se contrapõe.‖.142
138
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 161-162.
Cf. MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 57.
140
HORTA, Raul Machado. Estudos de direito constitucional. 1995, p. 244.
141
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit., 2008, p. 5-6.
142
MIRANDA, Jorge. Ob. cit. 1988, p. 12.
139
48
Desta feita, no próximo capítulo, iremos analisar a trajetória histórica
propriamente dita dos direitos humanos fundamentais, após sua positivação nas declarações
de direitos modernas, já na idade contemporânea143, através das chamadas gerações ou
dimensões de direitos humanos fundamentais.
3. A TRAJETÓRIA HISTÓRICA
PROPRIAMENTE DITA DOS
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS A PARTIR DAS ONDAS
GERACIONAIS OU DIMENSIONAIS DE DIREITOS
O estudo da trajetória dos direitos humanos fundamentais confunde-se com a
própria história do constitucionalismo, revelando a antiga preocupação do Estado de Direito
consistente na elaboração de instâncias de controle que vigiem os órgãos do Estado para que
eles não ultrapassem suas competências.144
Dito isso, para descrevermos a trajetória histórica propriamente dita dos direitos
humanos fundamentais (a partir das declarações de direitos das revoluções americana e
francesa), faremos considerações sobre o surgimento e o desenvolvimento do movimento
constitucionalista por meio da conhecida classificação geracional de direitos, porém com um
viés particular.
Muito embora existam inúmeras outras classificações doutrinárias não menos
importantes145, nosso estudo será realizado com base na concepção das gerações de direitos,
que se sustenta, porque ―[…] las diferentes generaciones se conectan con las batallas
históricas y la progresiva profundización de la democracia como sistema político y su
vinculación con la defensa e implantación de los derechos del hombre.‖146
A escolha por esta classificação justifica-se, em razão de ela ser pautada
basicamente em três elementos essenciais, os quais julgamos serem bastante relevantes ao
143
A idade contemporânea compreende o período específico atual da história do mundo ocidental, iniciado a
partir da Revolução Francesa (1789 d.C.).
144
ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria geral do estado. 3. ed. trad. Karin Praefke-Aires Coutinho. Lisboa: Fundação
Caloute Gulbenkian, 1997, p. 390.
145
Para outras classificações doutrinárias confira: CABRA, Marco Gerardo Monroy, Ob. cit., p. 3-11.
146
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Ob. cit., p. 409.
49
desenvolvimento do nosso trabalho: ―a) a relação Estado x cidadão; b) concepção política do
Estado; c) espécie de direito (individual, coletivo ou difuso)‖. 147
Deste modo, o esboço dos direitos humanos fundamentais a partir de suas
gerações apresenta-se como um prolongamento do estudo histórico que vínhamos
desenvolvendo no capítulo anterior (proto-história dos direitos humanos fundamentais).
Iniciamos a partir do movimento constitucionalista ocidental da Era Contemporânea.
Para tanto, iremos nos valer da classificação originalmente desenvolvida por
Karel Vazak, diretor do departamento jurídico da UNESCO, que em 1979 ao proferir a aula
inaugural da Décima Sessão do Instituto Internacional dos Direitos Humanos em Estraburgo,
cujo título era ―Pour lês droits de l’homme de la troisième generation‖, utilizou-se da
expressão ―gerações‖, buscando metaforicamente demonstrar a trajetória dos direitos
humanos fundamentais com base no lema da revolução francesa: liberdade igualdade e
fraternidade.
O mencionado autor, nesta exposição fixou para os direitos de terceira geração
uma conotação eminentemente internacional (universal), que terá para nós profundo interesse
e respaldará nossas colocações.
Ostentando a relevante contribuição de Vazak, no tocante à concepção de
gerações de direitos referenciada no lema revolucionário françês, Bonavidades assim predica:
[...] o lema revolucionário do século XVIII, esculpido pelo gênio político francês,
exprimiu em três princípios cardeais todo o conteúdo possível dos direitos
fundamentais, profetizando até mesmo a seqüência histórica de sua gradativa
institucionalização: liberdade, igualdade e fraternidade.
Com efeito, descoberta a fórmula de generalização e universalização, restava
doravante seguir os caminhos que consentissem inserir na ordem jurídica positiva de
cada ordenamento político os direitos e conteúdos materiais referentes àqueles
postulados. Os direitos fundamentais passaram na ordem institucional a manifestarse em três gerações sucessivas, que traduzem sem dúvida um processo cumulativo e
qualitativo, o qual, segundo tudo faz prever, tem por bússola uma nova
universalidade: a universalidade material e concreta, em substituição da
universalidade abstrata e, de certo modo metafísica daqueles direitos, contida no jus
naturalismo do século XVIII.148
Desse modo, a primeira questão que se coloca, refere-se à terminologia ―geração‖,
pois existem autores que preferem a utilização do termo ―dimensão‖149, vez que o
147
SCHÄFER, Jairo. Classificação dos direitos fundamentais: do sistema geracional ao sistema unitário: uma
proposta de compreensão. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2005, p. 15.
148
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 562-563.
149
Cf. MARTINS, Leonardo. Direitos fundamentais (história) – liberdade. In: DIMOULIS, Dimitri (coord.). Ob.
cit., 2007, p. 127-128; NUNES, Anelise Coelho. Ob. cit.,p. 30-31; GERA, Renata Coelho Padilha. Interesses
individuais homogêneos na perspectiva das ―ondas‖ de acesso à justiça. In: LEITE, Carlos Henrique Bezzera.
50
reconhecimento progressivo destes direitos teria ―o caráter de um processo cumulativo, de
complementaridade, e não de alternância‖. Tal posicionamento ainda encontra guarida no fato
do vocábulo ―geração‖ remeter à ideia de substituição gradativa de uma geração por outra.
Seguindo esta linha de raciocínio, são palavras de Guerra Filho:
[...] ao invés de ‗gerações‘ é melhor se falar em ‗dimensões de direitos
fundamentais‘, nesse contexto, não se justifica apenas o preciosismo de que as
gerações anteriores não desaparecem com o surgimento das mais novas. Mais
importante é que os direitos ‗gestados‘ em uma geração, quando aparecem em uma
ordem jurídica que já traz direitos de geração sucessiva, assumem outra dimensão,
pois os direitos de geração mais recente tornam-se um pressuposto para entendê-los
de forma mais adequada – e, consequentemente, para melhor realizá-los.150
Não obstante, a maioria doutrinária emprega o termo ―geração‖.
Nossa opção também será esta. Embora estejamos de acordo com os argumentos
dos mencionados juristas, por respeito ao vocábulo empregado originalmente na classificação
do autor francês que tomamos como modelo, optaremos por utilizar o termo ―geração‖.
Por fim, é imperioso salientar que existem autores que criticam tanto a ideia de
―gerações‖ quanto de ―dimensões‖ como v.g. Antônio A. Cançado Trindade151, Lima152 e
Ferraz Júnior.153
3.1. ESTADO DE DIREITO LIBERAL, ARQUÉTIPO DOS DIREITOS DE
PRIMEIRA GERAÇÃO
Vencidas estas questões iniciais, passemos então ao estudo das eras dos direitos
humanos fundamentais, que sem dúvida, historicamente, passaram por um ―[...] processo
Ação civil pública: nova jurisdição trabalhista metaindividual: legitimação do Ministério Público. São Paulo:
LTR, 2001, p. 59.
150
GUERRA FILHO. Ob. cit., 2007, p. 43.
151
Palestra proferida durante o ―Seminário Direitos Humanos das Mulheres: A Proteção Internacional‖.
Disponível on-line: <http://www.dhnet.org.br/direitos/militantes/cancadotrindade/cancado_bob.htm>. Acesso
em 30/03/2009.
152
LIMA, George Marmelstein. Crítica à teoria das gerações (ou mesmo dimensões) dos direitos fundamentais.
Opinião Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Cristus, Fortaleza: Faculdade Cristus, n. 3, ano 2,
vol. 1, jan./jul. 2004, p. 171-182.
153
FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Direito constitucional: liberdade de fumar, privacidade, estado, direitos
humanos, e outros temas. Barueri: Manole, 2007, p. 517-519.
51
expansivo de acumulação de níveis de proteção de esferas da dignidade da pessoa
humana.‖.154
Nosso ponto de partida na História, como já fora dito, será a afirmação históricodocumental dos direitos humanos fundamentais imputada às Declarações de Direitos das
revoluções americana e francesa, que determinaram o termo do que convencionamos chamar
de ―proto-história‖ dos direitos humanos fundamentais e inaugurou a gênese da ―história
propriamente dita‖ destes direitos.
Nesse ínterim, não é demasiado recordar que, outrora às Declarações de Direitos,
se encontrava instaurado o Estado Absolutista da Idade Moderna, que justamente elas visaram
rechaçar.
Com o advento das Declarações de Direitos e, posteriormente à elaboração das
Constituições americanas e francesa – que inauguram o movimento constitucionalista –;
ergue-se uma nova forma de poder e, consequentemente, enseja uma nova forma estatal: o
Estado de Direito155, concebido em substituição e oposição ao antigo Estado Absoluto ou
―Estado de despotismo esclarecido‖, cujas características fundamentais eram: ―a afirmação da
idéia de soberania concentrada no monarca‖, ―extensão do poder soberano ao âmbito
religioso‖, ―dirigismo econômico através de uma política econômica mercantilista‖ e
―assunção, no plano teórico dos fins do Estado, da promoção da salus publica [‗bem estar‘,
‗felicidade dos súditos‘]‖.156
Esta novel fórmula estatal, que assume pela primeira vez a roupagem jurídica – o
Estado submetido ao império do Direito, por isso, a expressão ―Estado de Direito‖ – brota da
necessidade de limitação do poder despótico e incontestável do monarca do Absolutismo, do
fim dos privilégios da decadente sociedade feudal de castas e da ascensão da classe burguesa
ao poder. Esta utilizou-se da doutrina do jusnaturalismo da época para incitar e deflagrar a
Revolução sob o manto da liberdade (na verdade liberalismo econômico) de todos os homens.
E por esta razão podemos considerar esta nova forma estatal basicamente como sendo uma
―[...] armadura de defesa e proteção da liberdade.‖157.
154
ARAUJO, Luiz Alberto David; NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Ob. cit., p. 115.
Não é despiciendo informar que o ―Estado de Direito‖ se distingue do ―Estado Constitucional‖ que ―[...] é
muito mais um ponto de partida que um ponto de chegada. É o produto do desenvolvimento constitucional no
actual momento histórico.‖ (CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., 2006, p. 87). Para um melhor
entendimento e aprofundamento sobre o tema ―Estado Constitucional‖ recomendamos consultar as seguintes
obras: CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., 2006, p. 87-102; DALLARI, Dalmo de Abreu. Ob. cit., p.
189-205; DOMINGUEZ, Andre Gil. Neoconstitucionalismo y derechos colectivos. Buenos Aires: Ediar, 2005, p.
11-44; LUÑO, Antonio Enrique Pérez. La universalidade de los derechos humanos y el estado constitucional.
Bogotá: Universidade Externado de Colômbia, 2002, p. 57-99; SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 15-26.
156
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., 2006, p. 91-92.
157
BONAVIDES, Paulo. Do estado liberal ao estado social. 8. ed. São Paulo: Malheiros, 2007, p. 41.
155
52
O Estado de Direito158, diante da diversidade de circunstâncias e condições
históricas próprias dos ordenamentos jurídicos concretos, foi cunhado sob distintos e variados
modelos: o Rule of Law britânico, o Rechtsstaat alemão, o État légal francês, o Stato di
Diritto italiano, entre outros; muito embora todos eles procurassem alicerçar a juridicialidade
estatal, ou seja, o governo não mais do Rei nem de Deus, mas dos homens através e nos
limites das leis.
Contudo, é de se destacar que este modelo estatal não se trata simplesmente de um
Estado que se juridiciza por meio de uma Constituição, pois
[...] o Estado de Direito não se apresenta apenas sob uma forma jurídica calcada na
hierarquia das leis, ou seja, ele não está limitado apenas a uma concepção de ordem
jurídica, mas, também a um conjunto de direitos fundamentais próprios de uma
determinada tradição.159
Também, deve-se levar em consideração que o modelo do Estado de Direito pode
ser vislumbrado sob dois aspectos: um ―formal‖, aquele ordenamento cujos poderes públicos
são conferidos pela lei e exercidos em obediência às formas e procedimentos legalmente
estatuídos (Estado Legislativo de Direito), e outro ―substancial‖, no qual os poderes públicos
estão sujeitos à lei não apenas formalmente, mas também com relação aos conteúdos.160
Desta forma, o Estado de Direito, conforme a orientação política e social vigente,
irá se apresentar, na História, primeiramente como liberal, depois como social e por fim com
democrático161.
Dentre estas manifestações de submissão do Estado ao Direito, a inaugural teve
como mola propulsora a preocupação com a liberdade. Tanto que essa vertente do Estado de
Direito foi denominada de liberal, dando vazão ao chamado Estado de Direito Liberal162.
158
O Estado de Direito é tema bastante controverso que suscitaria uma abordagem científica bem mais profunda.
Contudo, como nosso objetivo nesse trabalho é apenas apresentá-lo como marco paradigmático do inicio da
história propriamente dita dos direitos humanos fundamentais, para esquadrinhar o assunto recomendamos o
exame das seguintes obras: FERREIRA FILHO. Manoel Gonçalves. Estado de direito e constituição. 4. ed. rev.
e atual. São Paulo: Saraiva, 2007; SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do estado: introdução. 2. ed., rev.
ampl. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 183-197; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ob. cit., p.
91-108.
159
MORAIS. José Luiz Bolzan de. Do direito social aos interesses transindividuais: o estado e o direito na
ordem contemporânea. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1996, p. 68.
160
Cf. EMERIQUE, Lílian Márcia Balmant. Constitucionalismo: mudanças de paradigma e alguns reflexos
sobre os direitos fundamentais. In: GUERRA. Sidney (coord.). Temas emergentes de direitos humanos. Campos
dos Goitacazes: Editora Faculdade de Direito de Campos, 2006, p. 53-54.
161
No Brasil adotou-se a expressão ―Estado Democrático de Direito‖, em detrimento da portuguesa ―Estado de
Direito Democrático‖. Contudo, Silva julga ser mais adequada a nossa expressão, pois nela o termo ―[...]
‗democrático‘qualifica o Estado, o que irradia os valores da democracia sobre todos os elementos constitutivos
do Estado e, pois, também sobre a ordem jurídica. O Direito, então, imantado por estes valores, se enriquece do
sentir popular e terá que ajustar-se ao interesse coletivo.‖(SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 119).
53
Porém, devemos consignar que o vocábulo ―liberal‖ deve ser entendido como
liberal-burguês, tendo em vista que o primeiro Estado jurídico, guardião das liberdades,
alcançou sua experimentação histórica com a Revolução Francesa. E que essa revolta social
somente foi possível graças à racionalização de certos princípios filosóficos, operada pela
burguesia, que de classe dominada passa a classe dominante. Assim, muito embora, do ponto
de vista filosófico-teórico a revolução tenha implementado a limitação do poder e instituição
de liberdades individuais, esta fundamentação serviu, na verdade, para institucionalizar a
classe burguesa no poder.
Nesse sentido destacamos a contribuição de Bonavides:
A burguesia acorda o povo, que então despertou para a consciência de suas
liberdades políticas. Ali estava um Direito novo, na teoria política, que mantinha os
princípios cuja validez indiscutível transpunha qualquer idade histórica e se situava
fora de quaisquer limitações de pólo, meridiano ou latitude, como se a razão humana
quisesse, mais uma vez, zombar da critica subjacente no amargo ceticismo de Pascal
ao prantear as verdades falazes.
A escola do direito natural da burguesia racionaliza o problema delicadíssimo do
poder, simplificando a sociedade, como se fora possível ignorar as forças
elementares e obscuras que atuam na infra-estrututra do grupalismo humano.
Fez, pretenciosamente, da doutrina de uma classe a doutrina de todas as classes.163
Não obstante estas considerações, é forçoso reconhecer que a transformação que o
movimento liberal proporcionou à sociedade foi bastante relevante, principalmente pelo fato
de que o reconhecimento do
[...] paradigma liberal importa em que todos sejam, ou devam ser, proprietários,
livres e iguais. Esse ideário conduz ao movimento constitucionalista e a implantação
dos Estados de Direito, como um meio de conformação da organização política à
necessidade de se impor e de dar curso ao direito natural de cunho racional.164
Diante disso, a base doutrinária filosófica e política de que se valeu a burguesia
para racionalizar e implantar o Estado de Direito Liberal é atribuída aos pensadores
jusnaturalistas do contratualismo como Hobbes165, Locke166 e Rousseau167.
162
Sobre o fenômeno do Estado de Direito Liberal, conferir: BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2007, p. 29-164;
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ob. cit., p. 51-67 e 94-96; BARACHO JUNIOR, José Alfredo
de Oliveira. Ob. cit., p. 23-54.
163
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2007, p. 42-43.
164
BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira. Ob. cit., p. 53.
165
―O direito natural que os autores geralmente chamam jus naturale é a liberdade que cada um possui de usar
seu próprio poder, de maneira que quiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida.
Consequentemente de fazer tudo aquilo que seu próprio julgamento e razão lhe indiquem como meios adequados
a este fim.‖ (HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil. trad. Alex
Marins. São Paulo: Martin Claret, 2007, Primeira parte, Capítulo XIV, p. 101).
54
Esta corrente de direito natural que pregava a liberdade como um direito inato ao
ser humano, a exemplo da Declaração de Direitos da Revolução Americana, acabou
materializando-se nos textos da Declaração de Independência dos Estados Unidos da
América, de 4 de julho de 1776, e do preâmbulo da Constituição Americana, de 17 de
setembro de 1787:
Consideramos de per si evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são
criaturas iguais, que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis; e
que entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade. (destaque
nosso)168
Nós, o povo dos Estados Unidos, pretendendo formar uma união mais perfeita,
estabelecer a justiça, manter a tranqüilidade pública, providenciar quanto à defesa
comum, promover o bem-estar geral e assegurar os benefícios da liberdade a nós e
aos nossos descendentes, decretamos e estabelecemos esta Constituição para os
Estados Unidos da América. (grifei)169
De igual modo, percebe-se a preponderância da preocupação com a liberdade no
texto do preâmbulo da Constituição Francesa, de 3 de setembro de 1791:
A assembléia nacional, querendo estabelecer a Constituição francesa sobre os
princípios que acaba de reconhecer e de declarar, extingue irrevogavelmente as
instituições que vulneram a liberdade e a igualdade dos direitos.170
Com efeito, é possível afirmar que ―la ideología liberal establece como principio
de organización estatal la emancipación individual, sólo limitada por similar pretensión de
otros individuos[…]‖171.
Atrelada a essa ideia de liberdade individual e para selar de vez a ruptura do
dogma de poder centralizado do absolutismo monárquico, fez-se necessária a formulação de
uma técnica de contenção de poder, com a elaboração pela doutrina de um sistema de freios e
166
―[...] o estado em que os homens se encontram, sendo este um estado de total liberdade para ordena-lhes o
agir e regular-lhes as posses e as pessoas de acordo com sua conveniência, dentro dos limites da lei da natureza,
sem pedir permissão ou depender da vontade de qualquer outro homem. .‖ (LOCKE, Jonh. Segundo tratado
sobre o governo. trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, Capítulo II, p. 23).
167
―O homem nasceu livre, e por toda parte geme agrilhoado; o que julga ser senhor dos demais é de todos o
maior escravo.‖ (ROUSSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato social ou princípios do direito político. trad. Pietro
Nassetti. São Paulo: Martin Claret, 2007, Livro I, Capítulo I, p. 21).
168
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 35.
169
Ibidem, p. 37.
170
Ibidem, p. 61.
171
SEVOVIA, Juan Fernado. Ob. cit., p. 30.
55
contrapesos materializado na clássica tripartição de poderes imputada a Charles de Secondat,
o Barão de Montesquieu 172.
A redação do art. 16 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1791
demonstra a recepção desta técnica: ―qualquer sociedade em que não esteja assegurada a
garantia dos direitos, nem estabelecida a separação dos poderes não tem Constituição.‖ 173
Assim, sintetizando as características deste Estado de Direito pautado na limitação
de poder e no liberalismo, temos como peculiaridades:
(a) submissão ao império da lei, que era a nota primária de seu conceito, sendo a lei
considerada como ato emanado formalmente do Poder Legislativo, composto de
representantes do povo, mas do povo-cidadão; (b) divisão de poderes, que separe de
forma independente e harmônica os poderes Legislativo, Executivo e Judiciário,
como técnica que assegure a produção das leis ao primeiro e a independência e
imparcialidade do último em face dos demais e das pressões dos poderosos
particulares; (c) enunciado e garantia dos direitos individuais. Essas exigências
continuam a ser postulados básicos do Estado de Direito, que configura uma grande
conquista da civilização liberal. (destaques do autor)174
3.1.1. Primeira Geração de Direitos, Palavra de Ordem: Liberdade
Pelo fato de já ser possível identificar no Estado de Direito Liberal a relação
Estado/cidadão, sua concepção política e a espécie de direito por ele tutelada, podemos, então,
fixar qual o conteúdo da primeira geração ou dimensão de direitos humanos fundamentais.
Antes, porém, é forçoso trazermos à baila uma importante constatação de Lafer,
que julgamos pertinente na análise dos processos de asserção e modificação dos direitos
humanos fundamentais na história. Trata-se de evidenciar distinção bastante útil ―[...] entre a
perspectiva ex parte populi – a dos que estão submetidos e a perspectiva ex parte principis – a
dos que detêm o poder e buscam conservá-lo.‖175.
Para o mesmo autor,
[...] numa perspectiva ex parte principis, deontologicamente aceitável para o critério
da razoabilidade do paradigma da Filosofia do Direito, o tema dos direitos humanos
é o da escolha, baseada numa ‗ética de responsabilidade‘, de quais os direitos
humanos que podem ser efetivamente tutelados, levando-se em conta os recursos
172
―A passagem do estado absolutista para os Estado de Direito transita pela preocupação do individualismo em
estabelecer limites ao abuso de poder do todo em relação ao indivíduo. Estes limites, vistos como necessários
para que as individualidades possam ser livres, resultariam da divisão dos poderes, na lição clássica de
Montesquieu – que tem suas raízes na teoria do governo misto.‖ (LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 122).
173
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 59.
174
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 112-113.
175
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 125.
56
disponíveis e a necessidade de evitar, com a discórdia excessiva, a desagregação da
unidade do poder.
Já a perspectiva ex parte populi, em contraste com a ex parte principis, não se ocupa
da governabilidade, mas se preocupa com a liberdade. 176
Tal caracterização é indispensável para evitar a adoção de concepções unívocas
acerca dos processos revolucionários e de ruptura ocorridos nas complexas estruturas sóciopolíticas, que ensejaram o surgimento das gerações de direitos. Por meio dela é possível
destacar a perspectiva tanto do sujeito passivo, quanto do sujeito ativo da relação que envolve
determinado direito.
Feita esta consideração, voltemos à trajetória dos direitos humanos fundamentais,
sob a perspectiva geracional.
A primeira geração de direitos abrange aqueles referidos nas declarações de
direitos das revoluções americana e francesa, e, posteriormente, em suas respectivas
Constituições, sendo, pois, os primeiros a serem reconhecidos formalmente em documentos
legislativos.
Seguindo-se a classificação geracional proposta por Karel Vazak, a primeira
geração será aquela constituída por direitos de liberdade, notadamente, de inspiração
jusnaturalista, porém materalizadas pela ―[...] lucha de la clase capitalista ascendente contra
los privilegios feudales y las restricciones comerciales: se trata, por tanto, de libertades
burguesas.‖177.
Tais direitos ―[...] se fundam numa separação entre Estado e sociedade, que
permeia o contratualismo individualista dos Séculos XVIII e XIX‖ 178, sob as bases
ideológicas do postulado teórico da pré-existência destes direitos em relação ao Estado
(direito natural).
Isto posto, é possível afirmar que estes direitos possuem significado filosóficohistórico de inversão da relação entre Estado e cidadão, operada pela transição para a
contemporaneidade, passando-se da prioridade dos deveres dos súditos para os direitos dos
cidadãos, emergindo-se uma nova forma de encarar a vida política, não mais sob a ótica do
soberano, e sim do cidadão.
Aliado a isso, é forçoso reconhecer o eminente caráter anti-estatal dos direitos de
liberdade, que visam ―[…] por un lado, a impedir intromisiones injustificadas en la persona
176
Ibidem, p. 126.
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Ob. cit., p. 410.
178
SAMPAIO, José Adércio Leite. ob. cit., p. 260.
177
57
como ser moral y en su esfera privada y, por otro, a permitir la formación autónoma de las
propias decisiones y la manifestación del pensamiento individual.‖179.
Neste passo, Lafer afirma que estes direitos
[...] surgem e se afirmam como direitos do indivíduo face ao poder do soberano no
Estado absolutista. Representavam, na doutrina liberal, através do reconhecimento
da liberdade religiosa e de opinião dos indivíduos, a emancipação do poder político
das tradicionais peias do poder religioso e através da liberdade de iniciativa
econômica a emancipação do poder econômico dos indivíduos do jugo e do arbítrio
do poder político.180
Os direitos de primeira geração seriam, então, direitos de autonomia e defesa dos
cidadãos individual e abstratamente considerados em sua esfera juridicamente intangível181
frente ao Estado, portanto, com um viés negativo ou ―status libertatis‖182. Assim, eles
representam um não-agir do Estado, ou seja, traduzem ―postulados de abstenção dos
governantes, criando obrigações de não fazer, de não intervir sobre aspectos da vida pessoal
de cada individuo‖.183
Para Bonavides, estes direitos apresentam-se ―como faculdade ou atributos da
pessoa e ostentam uma subjetividade que é seu traço mais característico; enfim, são direitos
de resistência ou de oposição perante o Estado‖.184
Estas liberdades clássicas ou droits libertés (direitos de liberdade), por sua vez, se
dividem em duas categorias de direitos: civis e políticos.
Sampaio afirma que os direitos ou liberdade civis são aqueles que ―mediante
garantias mínimas de integridade física e moral, bem assim de correção procedimental nas
relações judicantes entre indivíduos e o Estado, asseguram uma esfera de autonomia
179
PIZZORUSSO, Alessandro. Las generaciones de derechos. trad. Daniel Berzosa López. Anuario
Iberoamericano de Justicia Constitucional, Madrid: Centro de Estudios Políticos y Constitucionales, n. 5, 2001,
p. 296.
180
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 126.
181
O que se pretende afirmar aqui é que não são admitidas intervenções estatais injustificadas e sem sentido na
esfera jurídica dos indivíduos, evidentemente que intromissões do Estado pautadas na legalidade e legitimidade
podem ocorrer, e realmente ocorrem, já que não existem direitos absolutos, ainda que humanos fundamentais e
seja qual for sua geração ou dimensão. Esse é o magistério de Schafer: ―[...] o Estado somente pode intervir nos
direitos dos cidadãos mediante prévia autorização da lei, a qual fruto do parlamento, representa a autorização dos
cidadãos, a partir dos primados da democracia representativa.‖ (SCHÄFER, Jairo. Ob. cit., p. 19).
182
Este é um dos quatro status da ―Teoria dos Status‖ de Georg Jellineck. Para ele, a perspectiva negativa ou
―status libertatis‖ dos direitos humanos fundamentais pode ser definida da seguinte forma: ―Ao membro do
Estado é concedido um status negativo, do status libertatis, na qual os fins estritamente individuais encontram a
sua satisfação por meio da livre ação do individuo.‖ (JELLINECK, Georg. System der subjektiven öffentlichen
rechte. 2. Ed. Tübiden: Mohr, 1999, p. 87 apud ALEXY, Robert. Ob. cit., p. 258).
183
MENDES, Gilmar Ferreira [et. al.]. Ob. cit., p. 223.
184
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit. 2008, p. 563-564.
58
individual de modo a possibilitar o desenvolvimento de cada um‖. Já os políticos são ―de
inspiração democrática (...) seu núcleo se encontra no direito de votar e ser votado‖.185
Desta forma, conclui-se que estes direitos têm como titular e sujeito passivo o
indivíduo singularmente considerado, e apresentam os seguintes elementos caracterizadores:
a) tem como ―direito-chave‖ a liberdade; b) a função do Estado é basicamente uma omissão;
c) a eficácia vinculativa principal da norma volta-se para o Estado; d) é uma espécie de direito
individual; e) calcados na concepção de Estado Liberal.
Como se vê, os direitos de liberdade de primeira geração representam uma grande
conquista, senão a mais expressiva, do Estado de Direito Liberal, tanto que Bedin afirma que
estes direitos constituem ―[...] a pedra de fundação da democracia moderna e que, portanto,
onde sofrerem restrições todo o edifício democrático corre o risco de desmoronar.‖186. E,
atualmente, eles encontram-se consolidados em sua projeção de universalidade formal, não
havendo Constituição digna desse nome que não os reconheça em toda extensão.
Por fim, é conveniente registrar que estes direitos denotam, do ponto de vista dos
governantes (ex parte principis) a luta da burguesia pela limitação e separação de poderes; e
do ponto dos governados (ex parte populi), o reconhecimento de direitos inerentes ao
individuo, tidos como naturais, uma vez que antecedem o contrato social, como a liberdade e
a propriedade.
3.2. ESTADO DE DIREITO SOCIAL, MODELO DOS DIREITOS DE
SEGUNDA GERAÇÃO
Ocorre que o Estado de Direito Liberal, precursor dos direitos de liberdade de
primeira geração – da forma como fora originalmente concebido (liberalismo clássico) –,
passaria por um processo de transição.
Baracho Junior, com base nas ponderações de Verdú, ilustra a fase inicial do
modelo liberal, afirmando que
185
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 260.
BEDIN, Gilmar Antonio. Os direitos do homem e o neoliberalismo. 3. ed. rev. e ampl. Ijuí: Editora Unijuí,
2002, p. 43.
186
59
[...] o liberalismo clássico tendia a forjar um tipo aristocrático de natureza humana,
uma aristocracia do talento. Por outro lado, o liberalismo estruturou-se em um
quadro sociopolítico relativamente simples e pequeno – população escassa,
pequenas indústrias, instituições governamentais simples e próximas do povo.187
Assim, o liberalismo implantado após o fim do Estado absolutista monárquico,
que pregava a limitação do poder, principalmente através da tripartição de funções do Estado
e do reconhecimento de direitos individuais de status negativo, acabou revelando-se uma
fórmula extremamente limitativa. É forçoso reconhecer que, no século XIX, o liberalismo
tornou-se a doutrina da monarquia limitada e de um governo popular igualmente limitado, já
que o sufrágio e a representação eram restritos a cidadãos prósperos, por meio do sufrágio
censitário.
Não bastasse a falta de efetiva participação popular na tomada de decisões
políticas, devemos mencionar também o franco desenvolvimento da industrialização e a
abstenção do Estado nos assuntos econômicos (deixar a mão invisível do mercado devia guiar
a economia) e sociais que fizeram acentuar as desigualdades entre a burguesia (rica, poderosa
e opressora) e a classe trabalhadora (pobre, subjulgada e oprimida), e, via de consequência, os
problemas sociais e econômicos.
Por isto, é possível afirmar que o individualismo e o abstencionismo ou
neutralismo do Estado Liberal provocaram imensas injustiças revelando a insuficiência das
liberdades burguesas implementadas pelo liberalismo, frente às novas demandas da
sociedade188.
Durante o apogeu do liberalismo, enquanto a classe burguesa alcança níveis
estratosféricos de riqueza e prosperidade, os trabalhadores (homens, mulheres e crianças)
―sobreviviam‖ na penúria suportando as mais diversas agruras 189 em visível condição de
desigualdade.
Observa-se, portanto, que, enquanto o liberalismo político e econômico avançava,
o quadro social da época deteriorava-se cada vez mais.
Diante deste quadro social degradante, e
187
BARACHO JUNIOR, José Alfredo de Oliveira. Ob. cit., p. 55.
―O descaso para com os problemas sociais, que veio a caracterizar o État Gendarme, associado às pressões
decorrentes da industrialização em marcha, o impacto do crescimento demográfico e o agravamento das
disparidades no interior da sociedade, tudo isso gerou novas reivindicações, impondo ao Estado um papel ativo
na realização da justiça social. O ideal absenteísta do Estado liberal não respondia, satisfatoriamente, às
exigências do momento. Uma nova compreensão do relacionamento Estado/sociedade levou os Poderes Públicos
a assumir o dever de operar para que a sociedade lograsse superar as angústias estruturais.‖ (MENDES, Gilmar
Ferreira [et. al.]. Ob. cit., p. 223).
189
Como retrato do quadro social da época, vem-nos imediatamente a imagem do filme "Tempos Modernos"
dirigido, produzido e estrelado por Charles Chaplin em 1936, que mostra com riqueza de detalhes as mazelas da
Revolução Industrial.
188
60
em decorrência da deplorável situação da população pobre das cidades
industrializadas da Europa Ocidental, constituída sobretudo por trabalhadores
expulsos do campo e/ou atraídos por ofertas de trabalho nos grandes centros. Como
resposta ao tratamento oferecido pelo capitalismo industrial de então, e diante da
inércia própria do Estado Liberal, a partir de meados do século XIX florescem
diversas doutrinas de cunho social defendendo a intervenção estatal como forma de
reparar a iniqüidade vigente.190
Surge, então, a orientação ideológica que iria alimentar as bases para a mudança
do paradigma liberal: o ―socialismo‖. Tanto que Bonavides chega a afirmar: ―uma constante,
a nosso ver, explica o aparecimento do Estado social: a intervenção ideológica do
socialismo.‖.191
O pensamento socialista tem como principal porta-voz o alemão Karl Marx, que
ao lado de Friedrich Engels elaborou em 1848 o ―Manifesto do Partido Comunista‖ (Manifest
der Kommunistischen Partei), que iria traçar a linha mestra de toda a filosofia social.
Em termos bastante sintéticos, o socialismo de Marx pretendia basicamente
eliminar a chamada ―luta de classes‖, materializada pelo confronto existente os ―opressores‖
(a burguesia) e os ―oprimidos‖ (o proletariado), consideradas classes antagônicas derivadas do
modo de produção capitalista192.
É o que se infere do seguinte trecho do Manifesto:
Até hoje, a história de tôdas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a
história das lutas de classes.
Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestre de corporação e
companheiro, numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm
vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou
sempre, ou por uma transformação revolucionária da sociedade inteira, ou pela
destruição das suas classes em luta.193
Porém, a doutrina socialista acabou se dividindo em duas vertentes:
[..] la socialdemócrata y sus aliados por un lado, y la comunista por el otro. La
primera reafirma e modifica el sistema socioeconómico libera e lo traduce en
cambios jurídicos; la segunda trata de fundar los derechos en una diferente
estructura económica que rechaza la propiedad privada como fuente de
antagonismos de clase. Aquella no abandona el modelo inicial: el capitalismo con
190
WEIS, Carlos. Os direitos humanos contemporâneos. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 38-39.
BONAVIDES, Paulo. Ob cit., 2007, p. 183.
192
―O Manifesto comunista vem alertar o operariado de que a sociedade socialista resultará da luta de classes
contra a burguesia. Enfatizando a necessidade de não lutar simplesmente pelo aumento de salários, mas também
pela abolição da propriedade privada dos meios de produção.‖ (CARMO, Paulo Sérgio do. Sociologia e
sociedade pós-industrial: uma introdução. 7. ed. São Paulo: Paulus, 2007, p. 42).
193
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. Manifesto do partido comunista. In: MARX, Karl; ENGELS. Obras
escolhidas. vol. 1. São Paulo: Alfa-Omega, s.d., p. 21-22.
191
61
las rectificaciones sociales sigue ponderándose con el sistema qua mejor permite el
crecimiento económico y la abundancia de bienes, base necesaria para su
redistribución más equitativa. Ésta, la comunista, pretende alcanzar las metas
capitalistas por otro camino y con nuevos medios, pero aun así no puede renunciar a
instrumentos típicamente liberales como las constituciones escritas y las
declaraciones formales de derechos, aunque no sean más que una fachada.194
A diferença entre as duas correntes está inserta no fato de que a menos radical
(social democracia) previa a manutenção do modo de produção capitalista com uma dose de
―humanização‖ e a mais radical (comunismo, bolchevismo, etc) pregava o fim do capitalismo
e da sociedade burguesa. Evidentemente que apresentamos uma visão simplista, pois o
socialismo comporta diversas outras fragmentações, porém, é válida para nosso estudo a
concepção de que ele teve influência preponderante no rompimento do modelo liberal.
Não obstante, vale ressaltar também a expressiva participação da Igreja com sua
doutrina social, principalmente a partir da elaboração da Encíclica Rerum Novarum, editada
em 15 de maio de 1891 pelo papa Leão XII, bem como o legado de São Tomás de Aquino.
Vejamos as considerações iniciais da referida encíclica papal sobre a condição dos operários:
A sede de inovações, que há muito tempo se apoderou das sociedades e as tem numa
agitação febril, devia, tarde ou cedo, passar das regiões da política para a esfera
vizinha da economia social. Efectivamente, os progressos incessantes da indústria,
os novos caminhos em que entraram as artes, a alteração das relações entre os
operários e os patrões, a influência da riqueza nas mãos dum pequeno número ao
lado da indigência da multidão, a opinião enfim mais avantajada que os operários
formam de si mesmos e a sua união mais compacta, tudo isto, sem falar da
corrupção dos costumes, deu em resultado final um temível conflito.
[...]
Em todo o caso, estamos persuadidos, e todos concordam nisto, de que é necessário,
com medidas prontas e eficazes, vir em auxílio dos homens das classes inferiores,
atendendo a que eles estão, pela maior parte, numa situação de infortúnio e de
miséria imerecida. O século passado destruiu, sem as substituir por coisa alguma, as
corporações antigas, que eram para eles uma protecção; os princípios e o sentimento
religioso desapareceram das leis e das instituições públicas, e assim, pouco a pouco,
os trabalhadores, isolados e sem defesa, têm-se visto, com o decorrer do tempo,
entregues à mercê de senhores desumanos e à cobiça duma concorrência
desenfreada. A usura voraz veio agravar ainda mais o mal. Condenada muitas vezes
pelo julgamento da Igreja, não tem deixado de ser praticada sob outra forma por
homens ávidos de ganância, e de insaciável ambição. A tudo isto deve acrescentar-se
o monopólio do trabalho e dos papéis de crédito, que se tornaram o quinhão dum
pequeno número de ricos e de opulentos, que impõem assim um jugo quase servil à
imensa multidão dos proletários.195
194
SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 43.
Disponível
em:
<http://www.vatican.va/holy_father/leo_xiii/encyclicals/documents/hf_lxiii_enc_15051891_rerum-novarum_po.html>. Acessado em 5/4/2009.
195
62
Assim, frente a este panorama de profunda desigualdade social e de constante luta
de classes, é que emerge o Estado de Direito Social196 ou Welfare State ou Estado do BemEstar Social ou État Providence, em total oposição ao Estado de Direito Liberal.
3.2.1. Segunda Geração de Direitos: o Primado da Igualdade
O Estado de Direito Social, diferentemente de seu antecessor, demanda uma
intervenção estatal ativa na vida econômica e social e tem como parâmetro os direitos de
segunda geração denominados de direitos sociais, econômicos e culturais.
Nesse sentido são as considerações de Luño que descreve a transição do Estado
Liberal ao Estado do Bem-Estar Social e o respectivo trânsito das gerações de direitos
respectivas, in verbis:
Los derechos humanos nacen, como es notorio, con marcada impronta
individualista, como libertades individuales que configuran la primera fase o
generación de los derechos humanos. Dicha matriz ideológica individualista sufrirá
un amplio proceso de erosión e impugnación en las luchas sociales del siglo XIX.
Estos movimientos reivindicativos evidenciaran la necesidad de completar el
catalogo de los derechos y libertades de la primera generación con una segunda
generación de derechos: los derechos económicos, sociales y culturales. Estos
derechos alcanzan su paulatina consagración jurídica y política en la substitución del
Estado liberal de Derecho por el Estado social de Derecho.
La distinción, que no necesariamente oposición, entre ambas generaciones de
derechos se hace patente cuando se considera que mientras en la primera de los
derechos humanos vienes considerados como derechos de defensa (Abwehrrechte)
de las libertades del individuo, que exigen la autolimitación y la no injerencia de los
poderes públicos en la esfera privada y se tutelan por su mera actitud pasiva y de
vigilancia en términos de policía administrativa, en la segunda, correspondiente a los
derechos económicos, sociales y culturales, se traducen en derechos de participación
(Teilhaberechte), que requieren una política activa de los poderes públicos
encaminada a garantizar su ejercicio, y se realizar a través de las técnicas jurídicas
de las prestaciones y los servicios públicos.197
Neste ínterim, percebe-se que a redefinição da relação Estado/cidadão e o
reconhecimento de direitos positivos estatais, típicos do Estado de Direito Social, são
imputados basicamente a dois fatores, quais sejam, a industrialização e a democratização do
poder político.
Sarlet ilustra bem esta situação:
196
Sobre o tema ―Estado de Direito Social‖ examine-se: BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2007, p. 165 e ss.;
STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ob. cit., p. 68-90 e 96-97; BARACHO JUNIOR, José Alfredo
de Oliveira. Ob. cit., p. 55-98; FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit. 2008, p. 41-56 SEGOVIA, Juan
Fernado. Ob. cit., p. 43-83..
197
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. La tercera generación de derechos humanos. Navarra: Thompson Aranzadi,
2006, p. 28.
63
O impacto da industrialização e os graves problemas sociais e econômicos que a
acompanharam, as doutrinas socialistas e a constatação de que a consagração de
liberdade formal não gerava a garantia do seu efetivo gozo acabaram, já no século
XIX, gerando amplos movimentos reivindicatórios e o reconhecimento progressivo
de direitos, atribuindo ao Estado comportamento ativo na realização da justiça
social.198
Com base nisso, verifica-se que as liberdades clássicas preconizadas no
constitucionalismo liberal foram incapazes de acompanhar as mudanças sociais da época, pois
apenas reconheciam formalmente direitos de liberdade aos indivíduos, ao passo que, o direito
de participação nas decisões políticas era restrito aos proprietários de bens e ainda não se
reconhecia nenhum outro direito à classe trabalhadora explorada, a não ser sua ―liberdade
formal‖.
Desta forma, do mesmo modo que a atuação estatal alterou-se (de negativa para
positiva) teve também o Direito que se adaptar.
Observa-se, portanto, no plano do direito positivo que a primeira manifestação
normativa de direitos de segunda geração no Estado de Direito Social pode ser encontrada na
Declaração Francesa de Direitos de 1793, em seu artigo 21, que tratava dos ―socorros
públicos‖, traçando, de certo modo, a linha mestra da assistência social. Vejamos:
Artigo 21. Os socorros públicos constituem uma dívida sagrada. A sociedade deve
dar subsistência aos cidadãos desafortunados quer granjeando-lhes trabalho quer
assegurando-lhes meios de existência se não estiverem em condições de trabalhar.199
Esta norma ecoou na Constituição Imperial Brasileira de 1824, posto que o art.
179, inc. XXXI, trazia a seguinte redação ―A Constituição tambem garante os soccorros
publicos.‖200
Ferreira Filho referenda que o principal documento legislativo 201 da trajetória dos
direitos humanos fundamentais e consagração dos direitos sociais, econômicos e culturais
estaria contido no art. 13 da Constituição Francesa, de 4 de novembro de 1848, in verbis:
Art. 13. A constituição garante aos cidadãos a liberdade de trabalho e de indústria. A
sociedade favorece e encoraja o desenvolvimento do trabalho, pelo ensino primário
gratuito, a educação profissional, a igualdade nas relações entre o patrão e o
operário, as instituições de previdência e de crédito, as instituições agrícolas, as
198
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 55.
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 77.
200
Disponível em <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao24.htm>. Acesso em
10/4/2009
201
FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit. 2008, p. 45.
199
64
associações voluntárias e o estabelecimento, pelo estado, os Departamentos e os
Municípios, de obras públicas capazes de empregar os braços desocupados; ela
fornece assistência às crianças abandonadas, aos doentes e idosos sem recursos e
que não podem ser socorridos por suas famílias.202
Vieira, por seu turno, assevera que é na França, através da Constituição de 1848,
que se esboça ―[...] pela primeira vez, a idéia de um Direito Social capaz de edificar uma
solidariedade social. A formulação de um Direito Social vem corporificar a possibilidade de
determinadas políticas e intervenções do Estado a favor de um equilíbrio social.‖ 203
Contudo, é após a Primeira Guerra Mundial que surgem os documentos que
inauguram de vez o État Providence.
A primeira referência é feita à Constituição Mexicana, de 31 de janeiro de 1917,
que traz em seu Título VI denominado ―Do trabalho e da Previdência Social‖, mais
precisamente no art. 123, uma série de direitos para o trabalhador, entre eles: jornada máxima
de 8 (oito) horas diárias (inc. I do item A); seguro desemprego (inc. XXII do item A) e
instituição de seguros sociais (inc. XXIX do item A) 204.
Também são encontrados direitos desta natureza na Revolução Soviética
(socialismo radical), no texto da Declaração dos Direitos do Povo Trabalhador e Explorado,
de 17 de janeiro de 1918. Vejamos as considerações iniciais de seu Capitulo II:
Com vista essencialmente a suprimir toda exploração do homem pelo homem, a
abolir completamente a divisão da sociedade em classes, a esmagar implacavelmente
todos os exploradores, a instaurar a organização socialista da sociedade e a fazer
triunfar o socialismo em todos os países, o III Congresso Pan-Russo dos Sovietes, de
deputados Operários, Soldados e Camponeses decide o seguinte;
1º A fim de realizar a socialização da terra, é abolida a propriedade privada da terra;
todas as terras passam a ser de propriedade nacional e são entregues aos
trabalhadores sem qualquer espécie de resgate, na base de uma repartição igualitária
em usufruto.205
Bonavides comenta que ―não fora a Revolução Socialista do século XX, o mundo
estaria ainda atado à cruel liberdade individualista do capitalismo selvagem do século XIX
[...]‖.206
Não obstante, o documento legislativo mais expressivo, considerado verdadeiro
precursor e responsável pela divulgação do catálogo dos primeiros direitos sociais, é sem
202
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 172.
VIEIRA, José Ribas. Os direitos individuais, sociais e coletivos no brasil. Revista de Informação Legislativa.
Brasilia: Subsecretaria de Edições Técnicas do Senado Federal, a. 26, n. 104, out./dez. 1989, p. 279.
204
Cf. MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 262-268.
205
MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 297.
206
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2007, p. 211.
203
65
sombra de dúvida, a Constituição de Weimar, de 11 de agosto de 1919, instituidora da
Primeira República Alemã.
A Grundgesetz de 1919 foi elaborada no Pós-Primeira Guerra Mundial, quando as
instituições políticas alemãs estavam em ruínas e a esquerda radical lutava para tomar o poder
em favor dos conselhos de operários e soldados, daí sua grande preocupação em estabelecer
direitos sociais 207.
Sua feição socializante esta inserta na Parte II ―Dos Direitos e Deveres
Fundamentais dos Alemães‖208, que se divide em cinco seções; ―Do Indivíduo‖; ―Da Vida
Social; ―Da Religião e das Igrejas‖; Da Educação e do Ensino‖ e ― Da Vida Econômica‖.
Podemos destacar alguns dispositivos de grande importância para os direitos de
segunda geração, como a regra da igualdade jurídica entre homem e mulher (art. 119), direito
de livre associação (art. 124), reconhecimento da dignidade humana (art. 151), função social
da propriedade (art. 153) e mínimo de direitos assegurados à classe operária (art.162).
Sobre a importância e preponderância de seu conteúdo, Comparato assim se
manifesta:
Apesar das fraquezas e ambigüidade, e malgrado a sua breve vigência, a
Constituição de Weimar exerceu decisiva influência sobre a evolução das
instituições políticas em todo o Ocidente. O estado da democracia social, cujas
linhas-mestras já haviam sido traçadas pela Constituição mexicana de 1917, adquiriu
na Alemanha de 1919 uma estrutura mais elaborada, que veio a ser retomada em
vários países [...]209
Feita essa digressão, podemos afirmar que os direitos sociais surgem no plano
normativo numa fase conhecida como de ―tolerância‖, em que as primeiras normas foram as
reconhecedoras de direitos à classe trabalhadora e que ―[...] tais leis se constituíram em
verdadeiras válvulas de escape arranjadas pelo sistema para permitir condições de reprodução
da dominação vigente e como reação à expansão do socialismo [...]‖210.
Contudo, seja qual for o viés de nascedouro (político, social ou filosófico), fato é
que os direitos de segunda geração são ―resultado de la lucha de los trabajadores organizados
contra el Estado y contra la clase dominante: son por tanto libertades ‗obreras‘‖ 211.
207
Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Ob. cit. 2008, p. 48.
Cf. MIRANDA, Jorge. Ob. cit., 1990, p. 283-293.
209
COMPARATO, Fábio Konder. Ob. cit., p. 1792-193.
210
MORAIS, José Luis Bolzan de. Ob. cit., p. 91
211
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Ob. cit., p. 410.
208
66
Estes direitos são, portanto, representativos das ―[...] reivindicações dos
desprivilegiados a um direito de participar do bem-estar social [...]‖212 e têm como nota
distintiva o reconhecimento da igualdade entre os indivíduos, ou melhor ainda, eles ―[...]
nasceram abraçados ao princípio da igualdade [...]‖213, obrigando o Estado a promover ações
que amenizem ou atenuem esta condição natural de desigualdade de classes (burguesia e
proletariado).
A igualdade proclamada pelos direitos de segunda geração, então,
[...] passa a ser o elemento qualificador e essencial da democracia e, acima de tudo,
na sua acepção substancial, principio de superação de obstáculos de ordem
econômica e social. O principio da igualdade reclama a idéia de responsabilidade
social e integrativa dos titulares de direitos, a partir de uma concepção proporcional,
sendo sua aplicação um elemento para o balanceamento das relações sociais e
jurídicas, impedindo-se que as desigualdades, por não terem um tratamento
diferenciado e proporcional à desigualdade, traduzam uma efetiva desigualdade nas
relações jurídicas.214
De igual modo são as considerações de Pisón:
Los derechos sociales remiten a un concepto de libertad configurado a partir de la
igualdad. – En efecto, ‗los derechos sociales se configuran como derechos de
igualdad‘ [Prieto Sanchís, 1990, p. 188]. Con ellos, se trata, en la medida que su
fundamento son las necesidades básicas de los hombres, de dotar a todos os
ciudadanos de unas mínimas condiciones de igualdad con la que realizar sus deseos
e intereses, sus planes de vida sin que las diferencias de riqueza, de posición social,
de facultades y habilidades naturales sean un impedimento.215
Assim, os direitos de segunda geração são considerados direitos de prestação, ou
seja, de caráter positivo ou status civitatis216, tendentes a eliminar as injustiças da economia
individualista liberal através de uma postura promocional do Estado perante o cidadão, dando
azo a um Estado nivelador de desigualdades.
212
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 127.
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 564.
214
SCHÄFER, Jairo. Ob. cit., p. 27.
215
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Ob. cit., p. 421.
216
Trata-se de outro status da ―Teoria dos Status‖ de Georg Jellineck. Este status positivo é contrário ao
negativo, assim, o indivíduo está inserido nesse status sempre que o Estado a ele ―reconhece a capacidade
jurídica de recorrer ao aparato estatal e utilizar a instituições, ou seja, [quando] garante ao individuo pretensões
positivas.‖ (JELLINECK, Georg. System der subjektiven öffentlichen rechte. 2. Ed. Tübiden: Mohr, 1999, p. 87
apud ALEXY, Robert. Ob. cit., p. 263-264).
213
67
Estes direitos influenciam, por isso, ―o âmbito de proteção do princípio da
igualdade, ao mesmo tempo em que se constituem uma espécie de ‗transformador‘, um
aparelho destinado a medir a energia, da iustitia ditributiva.‖217
Os excessos do liberalismo, corporificados pela ação voraz da burguesia
industrial, determinaram o surgimento de um cenário desolador de desigualdade social, o
embate entre classe opressora (produtor) e oprimida (operários) forçou o Estado a agir, na
tentativa de reparar ou ao menos reduzir essas desigualdades.
Nesse sentido são as palavras de Segovia:
[...] el Estado del constitucionalismo social parte de la real desigualdad de clases y
se expresa como una fuerza medicinal: es el remedio que cura los excesos del
individualismo económico capitalista. Es un constitucionalismo reparador, corrector
de los extravíos liberales; la solución estatal a la cuestión social. Las instituciones de
la seguridad social y de la compensación económica son una reacción contra la
libertad y la igualdad abstractas; como las calificara CHESTERTON, ellas no son
más que una suerte de ‗secreto redentor del pecado económico‘ liberal.218
Contudo, é imperioso registrar que nem todos os direitos constantes no catálogo
do Welfare State constituem ações positivas do Estado, muito embora o traço inicial e
distintivo desta forma estatal sejam as prestações em prol dos menos abastados.
Nessa linha de raciocínio é o magistério de Sarlet:
[...] na esfera dos direitos de segunda dimensão, há que atentar para a circunstância
de que estes não englobam apenas direitos de cunho positivo, mas também as assim
denominadas ‗liberdades sociais‘, do que dão conta os exemplos de liberdade de
sindicalização, do direito de greve, bem como o reconhecimento de direitos
fundamentais aos trabalhadores, tais como o direito a férias e ao repouso semanal
remunerado, a garantia de um salário mínimo, a limitação da jornada de trabalho,
apenas para citar alguns dos mais representativos. A segunda dimensão dos direitos
fundamentais abrange, portanto, bem mais do que os direitos de cunho prestacional,
de acordo como o que ainda propugna parte da doutrina, inobstante o cunho
‗positivo‘ possa ser considerado como marco distintivo desta nova fase na evolução
dos direitos fundamentais.219
Não obstante, o Estado Social de Direito, por meio de ações positivas ou não,
pautadas no princípio da igualdade, busca através dos direitos sociais, econômicos e culturais
a realização da justiça social.
Vejamos novamente a lição de Sarlet:
217
NEUNER, Jörg. Os direitos humanos sociais. Direito público, Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto
Brasiliense de Direito Público, n.26, ano 5, mar/abr. 2005, p. 25.
218
SEGOVIA, Juan Fernado. Ob. cit., p. 45.
219
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 55.
68
[...] os direitos de segunda geração podem ser considerados uma densificação do
princípio da justiça social, além de corresponderem à reivindicações das classes
menos favorecidas, de modo especial da classe operária, a título de compensação,
em virtude da extrema desigualdade que caracterizava (e, de certa forma, ainda
caracteriza) as relações com a classe empregadora, notadamente detentora de um
maior ou menor grau e poder econômico.220
Ou ainda, nas palavras de Pisón, os direitos de segunda geração estariam ligados
ao elemento de ―solidariedade social‖, podendo ser considerados como ―[...] un instrumento
de cohesión interna de las sociedades en las que se implementan, en la medida que uno de sus
objetivos es la superación de las diferencias sociales, de las desigualdades de riqueza entre
aventajados e desaventajados.‖221.
Por tudo isso, os direitos de segunda geração ―aparecen como un instrumento
necesario en la construcción de una democracia material‖ 222, tendo em vista que o simples
reconhecimento de liberdades clássicas com status negativo não possibilita, senão, a
existência de uma democracia formal.
Assim, por meio do reconhecimento de direitos de cunho positivo, sistematizados
com base no princípio da igualdade e que visam institucionalizar a justiça social e a
solidariedade social, é possível efetivamente libertar o povo, reconhecendo-se a liberdade não
somente do e perante o Estado, e sim a liberdade por intermédio do Estado.
A função destes direitos, portanto é a de tornar reais direitos formais, já que por
meio deles busca-se ―[...] garantir a todos o acesso aos meios de vida e de trabalho num
sentido amplo, impedindo, desta maneira, a invasão do todo em relação ao individuo, que
também resulta da escassez dos meios de vida e de trabalho.‖223
Já Silva, depois de concluir que tais direitos fazem referência imediata à igualdade
afirma que eles ―valem como pressupostos do gozo dos direitos individuais na medida em que
criam condições materiais mais propícias ao auferimento da igualdade real, o que por sua vez,
proporciona condição mais compatível com o exercício efetivo da liberdade.‖ 224.
Por tudo isso, os direitos de segunda geração, da mesma forma que os da primeira,
foram inicialmente objeto de formulação especulativa em campos políticos e filosóficos que
possuíam grande cunho ideológico. Dominaram o século XX assim como os de primeira
220
Ibidem, p. 56.
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.]
(coords.). Ob. cit., p. 421.
222
Ibidem, p. 421.
223
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 127-128.
224
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 286-287.
221
69
geração dominaram o século XIX e tiveram seu nascedouro nas reflexões ideológicas e no
pensamento antiliberal.
A segunda geração de direitos, como já foi dito, está intrinsecamente ligada ao
principio da igualdade, por isso, eles são relativos à exigência de participação do Estado na
realização da justiça social ou da solidariedade social, por meio de medidas efetivas para
garantir o mínimo necessário à vida digna do ser humano.
Vale ressaltar também que estes direitos, comumente chamados de direitos
sociais, culturais e econômicos integram um todo que normalmente é apresentado sob o rótulo
geral de ―direitos sociais‖, porém há quem trace distinções internas da trilogia nominativa. É
o magistério, v.g. de Sampaio, in verbis:
Os direitos sociais propriamente ditos seriam aqueles necessários à participação
plena na vida da sociedade, incluindo o direito à educação, a instituir e manter uma
família, à proteção da maternidade e da infância; bem como para permitir o gozo
efetivo dos direitos de primeira geração, como o reconhecimento do direito ao lazer
e o direito a não haver discriminação. Já os direitos econômicos se destinam a
garantir um nível mínimo de vida e segurança materiais de modo que a cada pessoa
desenvolva suas potencialidades. Estão nesta lista os direitos trabalhistas, a exemplo
do direito ao trabalho e a um salário mínimo digno, e previdenciários, direitos de
assistência social, do direito à saúde, à alimentação, ao vestuário e o direito à
moradia. Por fim os direitos culturais dizem respeito ao resgate, estímulo e a
preservação das formas de reprodução cultural das comunidades, bem como se
destinam a possibilitar a participação de todos na riquezas espirituais
comunitárias.225
Feitas estas considerações, podemos inferir que os direitos sociais de segunda
geração complementam os direitos de liberdade, pois tornam reais direitos formais, por
intermédio da igualdade material.
Estes direitos, diferentemente dos de primeira geração, têm como sujeito passivo,
na maioria das vezes, o Estado, principalmente quando se tratarem de ações positivas; por
isso, são chamados por alguns de ―prestacionais‖ ou ―de crédito‖. Esta é a posição de Lafer,
para quem ―[...] tais direitos – como o direito ao trabalho, à saúde, à educação – têm como
sujeito passivo o Estado porque, na interação entre governantes e governados, foi a
coletividade que assumiu a responsabilidade de atendê-los.‖.226
225
226
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 262-263.
LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 127.
70
Já com relação à sua titularidade, para uma grande maioria doutrinária, os direitos
de segunda geração, da mesma forma que os da primeira, continuam pertencendo ao
indivíduo, considerado em sua singularidade227.
Com este pensamento, Mendes chega a afirmar que a nomenclatura ―direitos
sociais‖ é utilizada, não por se tratarem de ―[...] direitos de coletividades, mas pelo fato de
estarem ligados às reivindicações de justiça social – na maior parte dos casos, esses direitos
têm por titulares indivíduos singularizados.‖228.
Porém, discordamos deste posicionamento, já que os direitos de segunda geração,
com foi dito e repisado, associam-se ao primado da igualdade. E essa igualdade proclamada
pelo constitucionalismo social visa – através de ações positivas ou não – atenuar as
desigualdades entre as classes sociais ou, ao menos, garantir ―paridade de armas‖ aos mais
fracos, atribuindo-lhes prerrogativas em razão de sua inferioridade.
É no âmbito do Estado de Direito Social que o individualismo do Estado de
Direito Liberal começa a ser substituído pelo coletivismo ou transindividualismo, ao passo
que são socializados antigos direitos negativos essencialmente individuais, em razão do
surgimento de novas carências sociais e, consequentemente, de novos sujeitos de direito,
como a família e os sindicatos de trabalhadores.
Nesse sentido é a lição de Segovia:
Anteriores derechos individuales se socializan, por caso, el trabajo, la salud, la
educación y la propiedad; junto a los individuos surgen nuevos sujetos de derechos:
específicamente la familia y los sindicatos hobreros. En todo caso, se trata de
restringir el individualismo liberal en beneficio de a sociedades organizada por el
Estado;229
Ora, se os direitos de segunda geração ligam-se ao princípio da igualdade,
pressupõe-se que existam desigualdades que devam ser igualadas. E se o Estado do BemEstar Social, ambiente em que se desenvolveram os direitos de igualdade, nasce do embate
entre classes sociais antagônicas (patrões e proletariado), por óbvio, os direitos de segunda
geração existem para igualar a desigualdade da classe operária em relação à classe burguesa.
227
Seguindo esta linha de raciocínio podemos citar: LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 125-131; MENDES,
Gilmar [et. al.]. Ob. cit., p. 223-224; OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O desafio dos novos direitos para
a ciência jurídica. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de; LEITE, José Rubens Morato (coords.).
Cidadania coletiva. Florianópolis: Paralelo 27, 1996., p. 17-18; NOVELINO, Marcelo. Ob. cit., p. 155-157;
PISÓN, José Martínez de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.] (coords.).
Ob. cit., p. 417-423; SCHÄFER, Jairo. Ob. cit., p. 26-31; SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 26-292;
SARLET, Ingo Wolfgang. Ob. cit., p. 55-56 ; ente outros.
228
MENDES, Gilmar [et. al.]. Ob. cit., p. 224.
229
SEGOVIA, Juan Fernando. Ob. cit., p. 45.
71
Portanto, tais direitos não são atribuídos a titulares individuais, mas sim a uma determinada
classe ou grupo (de trabalhadores, de jovens, de necessitados).
Confirmando o que foi dito, Mancuso, predica que os interesses coletivos podem
expressar-se de várias formas, por meio destes novos sujeitos de direitos: ―os interesses
coletivos, [...] tendem a aglutinar-se, compondo assim os vários grupos, segmentos ou corpos
intermediários da sociedade civil: sindicatos, associações, família, partidos políticos etc.230
Desse modo, o homem, a partir do Welfare State, deixa de ser analisado sob a
ótica isolada de sua singularidade para ser visto em um contexto social como homem
trabalhador, homem jovem, homem idoso, etc.
Em exato sentido se manifesta Bastos:
[...] os interesses coletivos dizem respeito ao homem socialmente vinculado e não ao
homem isoladamente considerado. Colhem, pois, o homem não como simples
pessoa física tomada à parte, mas sim como membro de uma família, o profissional
vinculado a uma corporação, os acionistas de uma grande sociedade anônima, o
condomínio de um edifício de apartamentos. 231
Coadunando com essa tônica é a afirmação de Weis, in verbis:
Desta maneira, os direitos de primeira geração seriam aqueles decorrentes do
jusnaturalismo racional, cujo pensamento influenciou as revoluções burguesas dos
séculos XVII e XVIII, fazendo com que seu conteúdo privilegiasse as liberdades
individuais, concebidas em função do ser humano abstrato, descontextualizado. De
outro lado, à segunda corresponde em outro momento histórico, o do florescimento
dos movimentos de cunho social, preconizando a necessidade de intervenção do
Estado como agente de transformação da realidade de grandes grupos da sociedade,
do que decorre a ênfase nos direitos coletivos, próprios dos seres humanos concretos
e situados.232
Também não é descabido recordar que no plano normativo as primeiras
manifestações constitucionais que consolidaram o surgimento do Estado de Bem-Estar Social
foram as normas trabalhistas, notadamente as sindicais, que são normas referentes à uma
categoria ou classe da sociedade.
Nesse contexto se manifesta Morais:
Sem dúvida alguma podemos dizer que os modernos interesses transindividuais
encontraram no Direito do Trabalho, em especial na história do sindicalismo, o seu
230
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Interesses difusos: conceito e legitimação para agir. 6. ed. rev., atual. e
ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004, p. 63.
231
BASTOS, Celso Ribeiro. A tutela dos interesses difusos no direito constitucional brasileiro. Revista de
Processo. São Paulo: Revista dos Tribunais, ano 6, n. 23, jul./set. 1981, p. 37.
232
WEIS, Carlos. Ob. cit, p. 41.
72
fundamento primário tendo, inclusive, como pano de fundo laços com a teoria do
direito social proposta por Gurvitch.233
Desta forma, por meio da igualdade material e do surgimento de novos sujeitos de
direito, ―constrói-se assim a noção de coletividade que marca a segunda geração de direitos,
em substituição ao traço subjetivista dos direitos típicos do Estado Liberal.‖ 234.
Por essa razão, podemos afirmar que os direitos coletivos ou de coletividades235
estariam contidos nos direitos de segunda geração, dada à iminência destes direitos de
igualarem situações de desigualdade entre classes sociais, ou melhor, os ―[...] direitos sociais,
culturais e econômicos, são direitos próprios de coletividades e se ligam ao principio da
igualdade.‖236.
Por fim, corroborando a noção de titularidade coletiva dos direitos de segunda
geração, destacamos a lição de Luño, para quem
[...] los derechos de los colectivos: trabajadores, mujeres, niños, ancianos,
minusválidos, consumidores…, derechos que, por su contenido, parece más
adecuado integrarlos en el ámbito de los derechos económicos, sociales y culturales
que configuran la segunda generación.237
Talvez por isso, Silva tenha classificado os direitos sociais presentes no atual
ordenamento positivo constitucional brasileiro nas seguintes categorias: (a) direitos sociais
relativos ao trabalhador; (b) direitos sociais relativos à seguridade, compreendendo os direitos
à saúde, à previdência e à assistência social; (c) direitos sociais relativos à educação e à
cultura; (d) direitos sociais relativos à moradia; (e) direitos sociais relativos à família, criança,
adolescente e idoso e (f) direitos sociais relativos ao meio ambiente.238
Nesse sentido também é a classificação de Neuner, para quem os direitos sociais
se dividem em: direitos prestacionais materiais; direitos prestacionais informativos; direitos
ideais de proteção e direitos de proteção coletivos239. Estes últimos relacionam-se com a ―[...]
proteção da família, bem como a dos sindicatos.‖.240
233
MORAIS. Jose Luis Bolzan de. Ob. cit., p. 88.
LOZER, Juliana Carlesso. Direito humanos e interesses metaindividuais. In: LEITE, Carlos Henrique Bezzera
(coord.). Ob. cit, p. 14.
235
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 564.
236
MORAIS. Jose Luis Bolzan de. Ob. cit., p. 164.
237
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit., 2006, p. 33-34
238
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 287.
239
NEUNER, Jörg. Os direitos humanos sociais. Direito público, Porto Alegre: Síntese; Brasília: Instituto
Brasiliense de Direito Público, n.26, ano 5, mar/abr. 2005, p. 27-30.
240
Ibidem, p. 30.
234
73
Contudo, é de se observar que os direitos de segunda geração hodiernamente
reconhecidos não se confundem, nem são idênticos aos revelados em seu nascedouro.
Evidentemente as necessidades sociais eram completamente distintas.
Outrossim, convém mencionar que, para alguns autores, o Estado de Bem-Estar
Social consolida-se efetivamente em data posterior ao nascimento/gênese dos direitos de
segunda geração (manifestações normativas que traziam originalmente normas protetivas dos
trabalhadores), o que poderia justificar o vigor de seu desenvolvimento ter se mostrado
somente após a segunda metade do século XX.
É o que se extrai das palavras de Morais, a seguir colacionadas:
O Welfare State emerge definitivamente como conseqüência geral das políticas
definidas a partir das grandes guerras, da depressão econômica da década de 1930,
embora sua formulação constitucional tenha se dado na segunda década do século
XX (México, 1917; Weimar, 1919).241
Neste particular, é preciso ter em mente que os direitos transindividuais, muito
embora tenham surgido originalmente com os direitos de segunda geração, irão se
desenvolver com maior evidência em uma sociedade dita pós-moderna, que será analisada
pormenorizadamente no capítulo vindouro.
Deste modo, não se pode olvidar que, os direitos sociais sinalizam o início da
ruptura do paradigma da titularidade individual dos direitos humanos fundamentais, pois na
segunda geração de direitos, dominada pela igualdade material, os seres humanos são
considerados empiricamente num contexto ou numa situação que os une como grupo ou
classe.
Pisón ilustra bem esta situação:
[…] los derechos económicos y sociales están pensados para ser atribuidos a
personas concretas, en una situación específica. Po eso, su fundamento no es el
hombre abstracto, sino las específicas necesidades que el hombre de carne y hueso
tiene, ubicado en unas circunstancias históricas contingentes. Imagen real y concreta
del hombre, por tanto. Así, el paso de los derechos de la primera generación implicó
el paso de los derechos de hombre genérico e los derechos del hombre singular en
tanto que miembro de una comunidad política, de un grupo o en tanto que
perteneciente a un sector de la población diferenciado por algún rasgo o carencia
específicos.242
Finalmente, por todo o exposto acerca dos direitos de segunda geração, temos que
eles apresentam as seguintes características fundamentais: a) ―direito-chave‖ é a igualdade; b)
241
242
MORAIS, José Luis Bolzan de. Ob. cit., p. 93.
PISÓN, José Matínez. Ob. cit., p. 420-421.
74
função estatal na maioria das vezes consiste numa ação promocional embora nem toda ela
seja prestacional; c) a eficácia vinculativa principal da norma volta-se para o Estado; d)
gênese de direitos de titularidade coletiva; e) norteia-se na concepção política do Estado de
Direito Social.
É possível afirmar também que eles evidenciam, na perspectiva ex parte principis
a busca dos governantes por coesão social, na medida em que são concedidos benefícios como
forma de dominação social; e na perspectiva ex parte populi representam a eterna ―luta de
classes‖, por intermédio de reivindicações dos desprivilegiados em busca de uma vida digna,
com vistas à superação das desigualdades acentuadas pelo capitalismo selvagem.
3.3.
TERCEIRA
GERAÇÃO
DE
DIREITOS:
PREEMINÊNCIA
DO
ELEMENTO FRATERNIDADE
Para finalizar nosso estudo da trajetória dos direitos humanos fundamentais na
concepção histórico-geracional, resta-nos analisar a terceira geração de direitos.
Porém inicialmente, devemos mencionar que no empreendimento desta tarefa,
iremos lançar mão de um artifício distinto do utilizado na análise das duas primeiras gerações,
por uma absoluta impossibilidade fática, já que, quando inaugurávamos o estudo de uma das
primeiras gerações, o fazíamos a partir de sua forma estatal correspondente (Estado
liberal/primeira geração, Estado social/segunda geração).
Com respeito à terceira geração, temos a destacar que não há, ou ainda não se
delineou completamente uma forma estatal correlata. Na verdade estes direitos desconhecem,
e de certo modo, refutam os Estados nacionais, da maneira que foram originalmente
concebidos243, ou melhor, eles extrapolam as fronteiras estatais, já que são ―[...] direitos
concernentes a toda Humanidade.‖244.
243
Para alguns doutrinadores os Estados nacionais clássicos têm passado por uma transformação política e
jurídica a partir da segunda metade do séc. XX e princípios do séc. XXI, em decorrência de dois processos: a
Globalização e o Neoliberalismo. Estas mudanças de concepção deram ensejo a uma crise do modelo estatal,
como fora originalmente concebido, principalmente com relação a um de seus elementos essenciais a saber, a
soberania. Sobre o tema confira: FERRAJOLI, Luigi. A soberania no mundo moderno: nascimento e crise do
Estado nacional. trad. Carlo Coccioli. São Paulo: Marins Fontes, 2007; FRANCO FILHO, Alberto de
Magalhães. Aspectos contemporâneos do federalismo brasileiro. Revista do Curso de Direito. Brasília: UDF, v.
8/9, dez. 2007/dez. 2008; STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Bolzan de. Ob. cit., p. 136-162.
244
WEIS, Carlos. Ob. cit., p. 40.
75
Diante disso, podemos afirmar que a titularidade de direitos transindividuais que
começa a ser desenhada com o implemento dos direitos de segunda geração (paradigma do
Estado de Direito Social) atinge com os de terceira seu ápice, pois, tais direitos são de escala
planetária sem nenhum tipo de barreira ou fronteira245.
Vislumbra-se, então, que a terceira geração de direitos determinou uma expansão
em nível internacional e com caráter eminintemente universalista dos interesses
transindividuais. Sobre este processo expansivo, Bonavides assim se posiciona:
Dotados de altíssimo teor de humanismo e universalidade, os direitos de terceira
geração tendem a cristalizar-se no fim do século XX enquanto direitos que não se
destinam especificamente à proteção dos interesses de um indivíduo, ou de um
grupo ou de determinado Estado. Tem primeiro por destinatário o gênero humano
mesmo, num momento expressivo de sua afirmação como valor supremo em termos
de existência concreta.246
Luño vai mais além ao afirmar que faltava à época dos direitos de primeira
geração (tipicamente de titularidade individual) a consciência necessária para o nascimento de
uma concepção universalista que deve nortear os direitos humanos, e que com o surgimento
dos direitos de segunda geração, cuja titularidade passa a ser coletiva, principia-se a correção
de tal carência. Já com o advento dos direitos de terceira geração, alcança-se o tão almejado
reconhecimento ecumênico, por serem estes direitos de titularidade universal. Vejamos a
manifestação do autor:
―El sujeto titular de los derechos de la primera generación carecía de una autentica
consciencia de carácter universal de los derechos humanos. […] Esta imagen del
titular de los derechos humanos como mónada aislada, será corregida por las formas
de titularidad colectiva reconocida a los grupos sociales y económicos, cuyo
protagonismo señala, precisamente, el advenimiento de los derechos de segunda
245
Convém registrar que os mesmos autores que defendiam a titularidade exclusivamente individual dos direitos
de segunda geração imputam o surgimento de interesses transindividuais aos direitos de terceira geração.
Contudo, nosso posicionamento já externado alhures, é no sentido de que o surgimento (e é bom que isso fique
bem claro, o surgimento apenas) dos direitos coletivos esta ligado muito mais à igualdade que dominou os
direitos de segunda geração do que à noção de fraternidade típica dos direitos de terceira geração. Porém é
inegável que os direitos de terceira geração também se constituam direitos de coletividades, só que numa escala
muito mais ampla, são direitos do gênero humano. Em sentido contrário: LAFER, Celso. Ob. cit., 1988, p. 131134; MENDES, Gilmar [et. al.]. Ob. cit., p. 223-224; OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O desafio dos
novos direitos para a ciência jurídica. In: OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de; LEITE, José Rubens Morato
(coords.). Ob. cit., p. 18; NOVELINO, Marcelo. Ob. cit., p. 156-157; PINILLA, Ignácio Ara. Las
transformaciones de los derechos humanos. Madrid: Editorial Tecnos, 1994, p. 113-165; PISÓN, José Martínez
de. Las generaciones de derechos humanos. In: BETEGÓN, Jerónimo [et. al.] (coords.). Ob. cit., p. 423-433;
SCHÄFER, Jairo. Ob. cit., p. 31-35; SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 26-292; SARLET, Ingo
Wolfgang. Ob. cit., p. 56-58; WOLKMER, Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos
―novos‖ direitos. In: WOLKMER, Antonio Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Os “novos” direitos no
Brasil: natureza e perspectivas: uma visão básica das novas conflituosidades jurídicas. São Paulo: Saraiva,
2003, p. 9-12.
246
BONAVIDES, Paulo, Ob. cit., 2008, p. 569.
76
generación. Pero ha sido la actual tercera generación de derechos humanos la que, de
forma más decisiva, ha contribuido a que se cobre consciencia de la necesidad de
ampliar a escala planetaria, el reconocimiento de su titularidad para asegurar el logro
de su total y solidaria realización.‖.247
Deste modo, com a evolução da sociedade e a crescente complexidade das
relações intersubjetivas, decorrentes do pluralismo da sociedade contemporânea, surgem
novos carecimentos que precisam ser satisfeitos.
Estas novas exigências são imputadas principalmente à desigualdade entre as
nações desenvolvidas e subdesenvolvidas através do fenômeno da Globalização 248.
Noutro giro, Luño assevera que os direitos de terceira geração são considerados
uma resposta ao fenômeno denominado ―liberties pollution‖ (poluição das liberdades),
caracterizado pela erosão e degradação dos direitos humanos fundamentais frente ao uso de
novas tecnologias249. Para ele
La revolución tecnológica ha dimensionado las relaciones del hombre con los demás
hombres, las relaciones entre el hombre y la natureza. Así como las relaciones del
ser humano con su contexto o marco cultural de convivencia. Estas mutaciones no
han dejado de incidir en la esfera de los derechos humanos. 250
O ser humano, então, deixa de ser considerado homem-singular e abstrato ou
homem-contextualizado e concreto, para ser reputado homem-global, dando azo ao
aparecimento de direitos que agregam valores tanto da primeira quanto da segunda geração de
direitos, tendo em vista que a concepção geracional não implica na anulação ou substituição
de uma classe de direitos por outra, mas sim um complexo processo cumulativo em constante
mutação.
Esses direitos, portanto,
[...] não buscam a garantia ou segurança individual contra determinados atos, sequer
a garantia e segurança coletiva positiva própria dos de segunda geração, mas, indo
além, têm como destinatário o próprio gênero humano. São direitos que refletem as
potencialidades construtiva e destrutiva, ao mesmo tempo, de nosso
desenvolvimento.251
247
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit., 2006, p. 41.
―A consciência de um mundo partido entre nações desenvolvidas e subdesenvolvidas ou em fase de precário
desenvolvimento deu lugar em seguida a que se buscasse outra dimensão dos direitos fundamentais, até então
desconhecida.‖ (BONAVIDES, Paulo, Ob. cit., 2008, p. 569).
249
LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Ob. cit., 2006, p. 28.
250
Ibidem, p. 29.
251
MORAIS, José Luis Bolzan de. Ob. cit., 164.
248
77
Os direitos de terceira geração, na perspectiva exposta alhures quando do estudo
terminológico dos direitos afetos aos seres humanos, são autênticos direitos humanos, ou seja,
de cunho notadamente internacional ou transfronteirisso.
Neste particular se manifesta Gründstein:
Los derechos que se identifican como pertenecientes a esta nueva generación tienen
en común dos notas: primero, no proceden de la tradición individualista o socialista
de la primera y segunda generación; y segundo, se sitúan al principio de un proceso
legislativo, lo que les permitirá ser reconocidos en el futuro como derechos
humanos. Su fundamento primero radica en la solidaridad, valor que recibe su
elaboración teórica moderna de la mano de Durkheim. Puede ser entendida como un
factor social, um principio jurídico-político y un principio jurídico-constitucional.
Como valor jurídico sustentador de estos derechos, podemos definirla como ―la
conciencia conjunta de derechos y obligaciones, que surgiría de la existencia de
necesidades comunes, de similitudes, que preceden a las diferencias sin pretender su
allanamiento‖.252
Como se vê, os direitos de terceira geração relacionam-se com necessidades
inexistentes ou ainda não evidenciadas em épocas passadas. Esta ideia é perceptível no
exemplo ofertado por Bobbio, em que
Os direitos de terceira geração, como o de viver num ambiente não poluído, não
poderiam ter sido sequer imaginados quando foram propostos os de segunda
geração, do mesmo modo como estes últimos (por exemplo, o direito à instrução ou
à assistência) não eram sequer concebíveis quando foram promulgadas as primeiras
Declarações setencentistas.253
Dessa forma direitos de terceira geração representam um ―novo pólo jurídico de
alforria do homem‖, que se soma aos direitos de liberdade e igualdade. Assentado na idéia de
fraternidade dos povos, ―pressupõe o dever de colaboração de todos os Estados e não apenas o
actuar ativo de cada um e transportam uma dimensão colectiva justificadora de um outro
nome de direitos em causa: direitos dos povos.‖254
Diante do aspecto internacionalista da terceira geração, irromperam na doutrina
diversos termos designativos para tais direitos:
São denominados direitos de terceira geração os ‗direitos dos povos‘ ou ‗direitos de
solidariedade‘ (Mbaya), ‗de cooperação‘, ‗de fraternidade‘ (Vazak) ou ‗direitos
humanos morais e espirituais‘ (Marzouki), surgidos como resposta à dominação
cultural e como reação ao alarmante grua de exploração não mais da classe
252
GRÜNSTEIN, Maite Aguirrezabal. Algunas preciciones en torno a nos intereses supraindividuales
(colectivos y difusos). Revista Chilena Derecho [on line]. Santiago vol. 33, n. 1, abril 2006, p. 69-91. Disponível
en: <http://www.scielo.cl/pdf/rchilder/v33n1/art05.pdf>. Accedido en 2/5/2009.
253
BOBBIO, Norberto. Ob. cit., p. 26.
254
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 386.
78
trabalhadora dos países industrializados, mas das nações em desenvolvimento por
aquelas desenvolvidas (‗direitos terceiro-mundistas‘ ou ‗estatistas‘), bem como
quadros de injustiça e opressão no próprio ambiente interno dessas e de outras
nações(‗direitos nacionalistas‘), reveladas mais agudamente pelas revoluções de
descolonização ocorridas após a Segunda Guerra Mundial, além da afirmação
contemporânea de interesses que desconhecem limitações de fronteiras, classe ou
posição social e se definem como ‗direitos de toda a humanidade‘ ou e ‗direitos
globais‘ (Galenkamp).255
Não obstante, pela opção metodológica que fizemos e justificamos no início deste
capítulo, temos que os direitos de terceira geração são conexos ao princípio da fraternidade.
A título de exemplo, destacamos dentre os direitos tidos como de fraternidade, os
seguintes: o direito ao desenvolvimento, à paz, ao meio ambiente, à propriedade sobre o
patrimônio comum da humanidade e à comunicação.256
Também em alguns julgados do órgão superior do poder judiciário e guardião da
Constituição Federal, Supremo Tribunal Federal, encontramos exemplos de direitos de
terceira ou de ―novíssima geração‖. Vejamos:
―Direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado: a consagração constitucional
de um típico direito de terceira geração (CF, art. 225, caput).". (STF – Primeira
Turma – Recurso Extraordinário n. 134297/SP - Relator Ministro Celso de Mello –
Julgamento em 13/06/1995 – Publicado no Diário da Justiça em 22/09/1995, p.
30597). 257
―Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. Trata-se de um
típico direito de terceira geração (ou de novíssima dimensão), que assiste a todo o
gênero humano (RTJ 158/205-206). Incumbe, ao Estado e à própria coletividade, a
especial obrigação de defender e preservar, em benefício das presentes e futuras
gerações, esse direito de titularidade coletiva e de caráter transindividual (RTJ
164/158-161). O adimplemento desse encargo, que é irrenunciável, representa a
garantia de que não se instaurarão, no seio da coletividade, os graves conflitos
intergeneracionais marcados pelo desrespeito ao dever de solidariedade, que a todos
se impõe, na proteção desse bem essencial de uso comum das pessoas em
geral."(STF – Pleno – Medida Cautelar na Ação Direta de Inconstitucionalidade n.
3540/DF - Relator Ministro Celso Melo – Julgamento em 01/09/2005 – Publicado
no Diário da Justiça em 03/02/2006, p. 00014). 258
Por fim, é importante mencionar que existem doutrinadores que ainda apresentam
uma quarta geração de direitos e até mesmo uma quinta geração.
Bonavides imputa o surgimento da quarta geração à globalização política e insere
neste rol os direitos à democracia, à informação e ao pluralismo 259. Contudo há quem afirme
255
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 293.
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 569.
257
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 10/5/2009.
258
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 10/5/2009.
259
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 570-572. Seguindo seu posicionamento encontramos: SARLET, Ingo
Wolfgang. Ob. cit., p. 58-59 e SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 298-303.
256
79
que os direitos de quarta geração referem-se a direitos de manipulação genética relacionados à
biotecnologia e bioengenharia 260 e ainda quem remeta ao direito à vida das gerações
futuras261.
Já os direitos de quinta geração, para alguns autores manifestam-se pelo do direito
à paz262, e para outra corrente são considerados os direitos advindos das tecnologias de
informação (internet), do ciberespaço e da realidade virtual em geral 263.
Contudo, vale registrar que no Brasil o Supremo Tribunal Federal reconhece
expressamente a existência de três gerações de direitos:
―Enquanto os direitos de primeira geração (direitos civis e políticos) – que
compreendem as liberdades clássicas, negativas ou formais – realçam o princípio da
liberdade e os direitos de segunda geração (direitos econômicos, sociais e culturais)
– que se identificam com as liberdades positivas, reais ou concretas – acentuam o
princípio da igualdade, os de terceira geração, que materializam poderes de
titularidade coletiva atribuídos genericamente a todas as formações sociais,
consagram o princípio da solidariedade e constituem um momento importante no
processo de desenvolvimento, expansão e reconhecimento dos direitos humanos,
caracterizados como valores fundamentais indisponíveis, pela nota de uma essencial
inexauribilidade.". (STF – Pleno – Mandado de Segurança n. 22.164/SP - Relator
Ministro Celso Melo – Julgamento em 30/10/1995 – Publicado no Diário da Justiça
em 17/11/1995, p. 39.206).264
Ante ao exposto, podemos concluir que a terceira geração de direitos apresenta as
seguintes características: a) ―direito-chave‖ consubstanciado na fraternidade; b) de certo
modo rompe com a ideia de Estado nacional com soberania plena; c) a eficácia vinculativa
principal da norma volta-se para todos; d) titularidade transindividual ou coletiva máxima
(todo o gênero humano).
260
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O desafio dos novos direitos para a ciência jurídica. In:
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de; LEITE, José Rubens Morato (coords.). Ob. cit., p. 18; WOLKMER,
Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ―novos‖ direitos. In: WOLKMER, Antonio
Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Ob. cit., p. 12-14.
261
Cf. SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 298.
262
BONAVIDES, Paulo. Ob. cit., 2008, p. 579-593.
263
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de. O desafio dos novos direitos para a ciência jurídica. In:
OLIVEIRA JUNIOR, José Alcebíades de; LEITE, José Rubens Morato (coords.). Ob. cit., p. 18; WOLKMER,
Antonio Carlos. Introdução aos fundamentos de uma teoria geral dos ―novos‖ direitos. In: WOLKMER, Antonio
Carlos; LEITE, José Rubens Morato (orgs.). Ob. cit., p. 15-16.
264
Disponível em: <http://www.stf.jus.br>. Acesso em 11/5/2009.
80
4. O CONTEXTO E AS CIRCUNSTÂNCIAS SOCIAIS EM QUE
EMERGIRAM
E
SE
DESENVOLVERAM
O
INTERESSES
TRANSINDIVIDUAIS
4.1. A COMPLEXIDADE DA SOCIEDADE CONTEMPORÂNEA
Como já foi exposto alhures, a ―história propriamente dita dos direitos humanos
fundamentais‖ inicia curso no fim da Era Moderna e início da Idade Contemporânea, cuja
nota distintiva é a complexidade das relações sociais.
Muito embora exista quem entenda ser considerada até ―acaciana‖265 a afirmativa
de que a sociedade contemporânea reveste-se de complexidade, devemos ter em mente que a
sociedade instaurada no fim da era moderna vive em constante e perturbadora complexidade,
e talvez seja este seu traço mais característico, tanto que Neves denomina-a de
―supercomplexa‖266.
As consequências e implicações desta complexidade da sociedade contemporânea
serão tratadas adiante.
Especificamente em relação aos interesses transidividuais, vislumbra-se que eles
começaram a ser delineados contemporaneamente no âmbito do Estado Social de Direito,
quando são cunhados os direitos de igualdade (segunda geração). Tais interesses encontram
no Direito do Trabalho, particularmente na história do sindicalismo, sua raiz ou fundamento
primário267 e consagram direitos que extrapolam a tradição individualística do ser humano,
reconhecendo-se direitos a novos sujeitos de direito, os grupos sociais.
Contudo, existem posicionamentos e mais posicionamentos sobre a gênese
histórica dos direitos coletivos: há os que afirmam ter existido esses direitos de titularidade
265
OLIVEIRA JUNIOR, Waldemar Mariz de. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. In: GRINOVER,
Ada Pellegrini (coord.). A tutela dos interesses difusos: doutrina, jurisprudência e trabalhos forenses. São
Paulo: Max Limonad, 1984, p. 09.
266
NEVES, Marcelo. Entre têmis e leviatã: uma relação difícil: o estado democrático de direito a partir e a
além de Luhmann e Habermas. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 11.
267
Cf. Morais, José Luis Bolzan. Ob. cit., p. 88.
81
coletiva desde sempre268; os que sustentam que eles provêm do Direito Romano da
Antiguidade269; os que prediquem que seu germe advém de alguns procedimentos
eclesiásticos civis e criminais contra animais no século IX270; quem testemunhe a precedência
do Direito Escandinavo na figura do Ombudsman271; quem advogue a tese que eles são fruto
268
―Interesses difusos ou coletivos existiam sempre, desde que o homem passou a viver em grupo, em sociedade,
uma vez que são conaturais a esta.‖ (FERRAZ, Antonio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Edis; NERY
JUNIOR, Nelson. Ob. cit., p. 54).
―[...] estes direitos sempre existiram, desde que o homem passou a viver em sociedade, mas não inspiravam
muita atenção.‖(SILVA, Sandra Lengruber da. Elementos das ações coletivas. São Paulo: Método, 2004, p. 22).
―Não padece dúvida que sempre existiram interesses difusos. Nem seria admissível outra constatação, visto que
os interesses sempre emergiram, naturalmente, do plano da mera ‗existência utilidade‘;[...]‖(MANCUSO.
Rodolfo de Camargo. Ob. cit. 2004, p. 88).
269
―[...] observa-se que num primeiro momento da história, os interesses coletivos foram tratados com maior
acuidade pela Administração Pública, que colocava o indivíduo visto como integrante da sociedade, não
podendo os direitos, em regra, ser equiparados aos direitos sociais, e ‗apenas residualmente no âmbito da
jurisdição, e recentemente desenvolveu-se o seu trato em juízo‘. Este fenômeno podia ser, similarmente,
detectado na Antiguidade através da ação popular romana.‖ (PINTO, Henrique Alves. A fundamentação
constitucional da tutela jurisdicional coletiva no estado democrático de direito brasileiro. Revista da ordem dos
advogados do Brasil. ano 36, n. 82, jan./jun. 2006, p. 52).
―[...] quanto ao aproveitamento dos subsídios da história, o antecedente remoto da tutela judicial dos interesses
coletivos pode ser identificado na ação popular romana‖ (LEONEL, Ricardo de Barros. Manual do processo
coletivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002, p. 40).
―A actio pro populo constitui, como registra Mandrioli, o primeiro exemplo de ação no interesse de um grupo de
pessoas. Crisafulli, por seu turno, afirma ser pretorian, interdiatl, a origem das populares actiones. Revestidas de
caráter público, em presença de ofensa a interesses da coletividade, normalmente em casos criminais, ou ainda
de ofensa a res sacrae ou res publicae, permitiam elas a qualquer cidadão exercitá-las, sem prender-se a uma
pretensão substancial como registra Cuenca [...]‖ (ADAMOVICH, Eduardo Henrique Raymundo Von. Sistema
da ação civil pública no processo do trabalho. São Paulo: LTr, 2005, p. 36).
―De especial interesse para o que hoje chamamos de ‗tutela judicial de interesse metaindividuais‘ era a vetusta
actio popularis, cuja finalidade coletiva ou pública vinha revelar – a contraio sensu ou por exlusão – a natureza
individualistica das demais actiones, já que enquanto estas derivavam da pretensão pessoal de afirmado titular
acerca de um direito resistido, já actio popularis vinha destinada a uma finalidade pública, donde poder ser
manejada por qualquer do povo (cuivis de populo), dispensada, portanto, a exigência da pertinência direta e
pessoal do interesse afirmado.‖ (MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Jurisdição coletiva e coisa julgada: teoria
geral das ações coletivas. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 27). ―
270
―Em verdade, porém, ações coletivas existem muito antes desse período. Há exemplos interessantes de
procedimentos eclesiásticos de natureza criminal contra inúmeros insetos, roedores e outros animais (ação
coletiva passiva) que datam do século IX d.C. Moradores de uma área infestada por tais animais propunham uma
ação nos tribunais da Igreja com o objetivo de obrigá-los a cessar a depredação das cidades e ir para outro lugar,
sob pena de serem excomungados. [...] Há inúmeros processos interessantes propostos em tribunais civis e
eclesiásticos de toupeiras em Aosta em 824, abelhas em Worms em 864, gafanhotos em Romagna em 866,
cobras em Aux-Les-Bains, golfinhos em Marseilles em 1496 e vários outros casos na Europa.‖ (GIDI, Antonio.
A class action como instrumento de tutela coletiva de direitos: ações coletivas em uma perspectiva comparada.
São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 43)
271
―Embora o Direito Romano já demonstrasse sua visão pioneira sobre o tema foi o Direito Escandinavo,
criando o Ombudsman, que pela primeira vez trouxe para os estudiosos do tema a preocupação de ‗legitimar
alguém‘ visando defender direitos pertencentes a toda a sociedade civil particularmente em face de eventuais
arbítrios administrativos recaíndo suas funções, primordialmente, sobre as atividades dos funcionários públicos,
das autoridades administrativas e dos magistrados. Delineando de forma importante algumas regras que mais
tarde iriam influenciar outros ordenamentos jurídicos como o caso da Finlândia, Noruerga, Dinamarca,
Alemanha, Grã-Bretanha, Israel, etc, o legislador sueco soube apontar, antes de mais nada, a necessidade de
elaboração de novos instrumentos voltados para a tutela de interesses violados ‗em massa‘ onde o cidadão ,
sozinho, pouco ou nada podia fazer em defesa de seu direito comprometido pela atuação ilegal de diferentes
pessoas inclusive do próprio Estado.‖ (FIORILLO, Celso Antonio Pacheco. O sindicato e a defesa dos interesses
difusos no direito processual civil brasileiro. (coleção estudos de direito de processo Enrico Tullio Liebman, vol.
31). São Paulo: Revista dos Tribunais, 1995, p. 55-56).
82
do intelecto britânico da Idade Média 272 e, por fim, quem atribua sua origem também ao
direito inglês, mas do final do século XVII273.
Não obstante estes posicionamentos distintos, e de certo modo conflitantes, num
ponto parecem concordar a grande parte dos autores, seja qual for à gênese histórica dos
direitos coletivos, eles foram evidenciados ou exaltados no âmbito da sociedade
contemporânea.
Isto porque os ―[...] sistemas jurídicos soem ser fundados na tutela do individuo,
isto é, nas querelas de tipo ‗Tício versus Caio‘ [...]‘‖274. Em outras palavras, até bem pouco
tempo, a tutela jurisdicional somente era concebida quando se tratassem de interesses
considerados relevantes pelo Estado e suscetíveis de afetação a um titular específico e
individualizado.
Os sistemas jurídicos, portanto, eram voltados única e exclusivamente para a
tutela de interesses individualizados. Nesse sentido, manifesta-se Cappelletti, que ao tratar da
chamada ―revolução em curso no Direito Processual Civil‖, citando Perrot, menciona que ―a
272
―A Inglaterra é apontada como berço dos litígios colectivos. Stephen Yeazell separa a história do
desenvolvimento anglo-americano dos litígios de grupo em três períodos: medieval (do século XII ao XV),
primitivo-moderno (séculos XVI e XVII) e moderno (do século XVIII em diante).‖ (MENDES. Aluísio
Gonçalves de Castro. Ações coletivas no direito comparado e nacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002,
p. 43).
―[...] a genealogia e o desenvolvimento histórico dos processos coletivos, localiza as primeiras ações do gênero
na Inglaterra medieval (século XII). Tratava-se de conflitos envolvendo uma comunidade de aldeões de um
vilarejo contra os senhores (Lords) por problemas relativos à administração e à utilização das terras nos feudos;
fiéis (parishers) disputando o pagamento de dízimos com os párocos; corporações (guilds) questionando o
pagamento de tributos ou arrendamentos impostos pela autoridade local ou pelo senhor (Lord).‖ (LEAL, Márcio
Flávio Mafra. Ações coletivas: história, teoria e prática. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1998, p.
28).
―For many years, legal historians placed the origin of class actions in seventeenth century England. [...] Professor
Stephen Yeazell challenged this version of English legal history, arguing instead that group litigation arose in
multiple forms several hundred years earlier. [...] is that there was a long tradition in medieval England of both
formally organized and more loosely associated groups of individuals bringing complaints about communal
harm—merchants manipulating the marketplace, church officials disturbing religious peace, powerful families
intimidating juries—and being granted both a hearing and remedies by government institutions.‖ HENSLER,
Deborah R. [et al.]. Class action dilemmas: pursuing public goal for private gain. Santa Monica: Rand Institute
for Civil Justice, 2000, p. 10).
273
―O instituto da class action é originário do direito inglês, criado pelo Bill of Peace, em fins do século XVII, e
com cabimento admitido apenas diante da Court of Chacery em juízos de equidade.‖ (TUCCI, José Rogério
Cruz e. “Class action” e mandado de segurança coletivo: diversificações conceptuais. São Paulo: Saraiva, 1990,
p. 11).
―[...] origen de las ‗class actions‘ hay que buscarlo en el ‗bill of peace‘, un procedimiento surgido en los
tribunales de equidad ingleses en el siglo XVII en virtud del cual una persona (‗adversary‘) podía iniciar un
proceso contra varias personas (‗multitude‘) con intereses separados pero similares, o la ‗multitude‘ podía
demandar en una acción cuestiones de hecho o de derecho comunes disputadas entre El ‗adversary‘ y cada
miembro de la ‗multitude‘‖. (ESTAGNAN, Joaquin Silguero. La tutela jurisdiccional de los intereses colectivos
a través de la legitimación de los grupos. Dykinson: Madrid, 1995, p. 277).
274
MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Ob. cit. 2004, p. 89.
83
teoria da ação judiciária foi elaborada no século XIX em uma perspectiva liberal e
individualística.‖ 275.
Talvez por isso, e a par de que uma concepção individualista seria perfeitamente
compreensível, passassem despercebidos certos interesses caracterizados pela inviabilidade de
apropriação individual276.
Desse modo, asseverar que os direitos coletivos são revelados nos contornos da
contemporaneidade não significa dizer que tais não existissem em tempos idos, mas é assentir
que durante muito tempo eles não se apresentavam evidentes ou latentes como hodiernamente
o são.
4.2. A SOCIEDADE INDUSTRIAL
Feitas estas considerações, já podemos começar a traçar o perfil da sociedade
contemporânea, desde o momento em que foram evidenciados os interesses transindividuais
até os dias de hoje. Isto nos obrigará, novamente, a empreender uma digressão
a acontecimentos históricos relevantes na formação da concepção reveladora dos direitos de
titularidade coletiva.
No desenrolar deste empreendimento, nosso ponto de partida consistirá no
reconhecimento de que a emergência destes interesses relaciona-se diretamente com as
modificações que vão ocorrer no interior do capitalismo, considerado o núcleo econômico do
modelo liberal.
Diante disso, é salutar iniciarmos nosso escorço histórico a partir da passagem da
sociedade feudal para a sociedade burguesa, que irá denotar o nascimento efetivo do sistema
econômico capitalista-liberal.
275
PERROT, Roger. L‘ action en justice dês syndicats professionnels. Annales Universitatis Scientiarum
Budapestinensis de Rolando Eötvös Nominatae, Sectio Judiciare, X, Budapest, 1969, p. 99 apud
CAPPELLETTI, Mauro. Formações sociais e interesses coletivos diante da justiça civil. trad. Nelson Renato
Palaia Ribeiro de Campos. Revista de Processo, ano II, n. 5, jan./mar. 1977, p. 129.
276
Ferraz, Milaré e Nery Junior referindo-se às implicações, tanto positivas quanto negativas, do advento da
sociedade contemporânea, e após elencar uma série de consequências com que nos deparamos nos dias atuais
mencionam: ―[...] por terem escapado do controle do homem, muitas vezes voltaram-se contra ele próprio,
repercutindo de forma negativa sobre a qualidade de vida e atingindo inevitavelmente os interesses difusos.
Todos esses fenômenos, que se precipitaram num espaço de tempo relativamente pequeno, trouxeram a lume a
própria realidade dos interesses coletivos, até então inexistentes de forma ‗latente‘, despercebidos.‖ (FERRAZ,
Antonio Augusto Mello de Camargo; MILARÉ, Edis; NERY JUNIOR, Nelson. A ação civil pública e a tutela
jurisdicional dos interesses difusos. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 54)
84
Desta transição, terá para nós maior relevância, dentre as várias consequências, a
supressão do regime das corporações de ofício 277, tendo em vista que esta irá revelar o intuito
do ideário capitalista de criar uma ordem jurídica centralizadora pela pregação da
incompatibilidade da existência de corpos intermediários entre o indivíduo e o Estado.
A ideologia capitalista pretendia afirmar, com isso, que o homem somente
atingiria sua liberdade com plenitude se ele não estivesse subordinado a grupos sociais, pois
estes grupos teriam o condão de ―sufocar‖ sua manifestação individual em prol da grupal.
Tanto é verdade, que a doutrina do contrato social da época baseava-se na
vontade/consenso geral de todos para formação do Estado, mas por meio da manifestação
exclusivamente individual de seus componentes.278
Com base nesta premissa, desenvolveu-se no âmbito da sociedade burguesa um
repúdio ao processo associativo, com vistas à centralização da produção jurídica, até porque
as corporações de ofício possuíam, de certo modo, um arcaico sistema de regras próprias.279
Buscava-se assim, limitar a existência de duas entidades únicas – detentoras de
direitos e deveres (sujeitos de direito) – o indivíduo e o Estado, na medida em que se evitando
o associacionismo promovia-se uma dispersão e se atomizavam os conflitos e seus agentes
como forma típica de dominação.
Comentando o perfil deste modelo, Morais escreve que
O modelo capitalista finca suas bases e, para a obtenção de êxito na implantação do
novo paradigma, exige que todas as pessoas sejam livres e iguais, com vistas a
permitir a implementação de acertos entre capital e trabalho. Percebe-se, pois, que a
dominação deixa de ocorrer pela existência de vínculos pessoais, como na sociedade
medieval, para caracterizar-se como dominação legal, desconhecendo, desse modo,
quaisquer tipos de desigualdades entre os pólos de produção.280
O modelo de repressão a grupos sociais tendia não somente a institucionalizar a
dominação das massas, como também evitar que viessem à tona as desigualdades sociais.
277
As corporações ou ligas de ofício eram associações tipicamente urbanas, integradas por grupos de artesãos
que se dedicavam a um mesmo tipo de atividade produtiva.
278
―[...] cada um de nós põe em comum sua pessoa e todo o seu poder sob a suprema direção da vontade geral , e
recebemos enquanto corpo cada membro como parte indivisível do todo.‖ (LOCKE, Jonh. Segundo tratado
sobre o governo. trad. Alex Marins. São Paulo: Martin Claret, 2006, Capítulo IV, p. 30).
279
Estas ligas de artesãos deram origem a verdadeiros centros comerciais, como por exemplo, as cidades
italianas de Veneza, Florença, Gênova, Amalfi e outras que despontam no comércio marítimo. Portanto, era
natural que surgissem conflitos. Desse modo passou-se a utilizar de costumes, para dirimir os conflitos de
interesse de seus membros, que eram decididos por Cônsules eleitos pelas próprias corporações. Com o tempo
essa jurisdição se ampliou também para não-membros que negociavam com os mercadores e artesãos
registrados. As várias normas aplicadas pelos cônsules eram compiladas e assumiam praticamente autoridade
legislativa, entre elas destacamos: os ―Roles d’Oleron‖, da França, as ―Consuetudes‖, de Genova, o ―Constitutum
Usus‖, de Pisa, o ―Liber Consuetudinum‖, de Milão, o ―Capitulare Nauticum‖, de Veneza etc.
280
MORAIS, José Luiz Bolzan de. Ob. cit., p. 89.
85
Esta perseguição ao associativismo resta evidente através da edição da Lei Le
Chapellier, de 14 de junho de 1791, na França (pouco depois da Revolução Francesa), que
proibia o funcionamento de organizações trabalhistas em nome da ―livre iniciativa‖.
Porém, tal panorama proibitivo somente começa a ser modificado no início do
século XIX, mais precisamente em 1824, quando na Inglaterra, pela primeira vez, foram
reconhecidos os sindicatos obreiros como entidades legalmente instituídas, eliminando-se o
caráter delituoso dos mesmos. Este reconhecimento deu-se pela figura das Trade Unions, que
se multiplicaram por todo o país e influenciaram o agrupamento de trabalhadores, sendo
fundada, em 1863, a Primeira Associação Internacional de Trabalhadores281.
Mas qual a razão para que o Estado ―tolerasse‖ a existência e o funcionamento
destas entidades associativas de trabalhadores, já que o capitalismo, num primeiro momento,
tentou a todo custo extirpar tais associações?
Para respondermos a esta pergunta, devemos recordar que pouco antes deste
período histórico a sociedade burguesa capitalista experimentava mudanças operadas pela
industrialização.
Eclode então, a partir da segunda metade do século XVIII a chamada Revolução
Industrial, inaugurando uma nova sociedade. A Sociedade Industrial, que embora tenha
perdurado por pouco tempo (até a primeira metade do século XX 282), promoveu uma ruptura
completa de paradigmas na sociedade em todos os aspectos.
Tratando desta mudança de arquétipo da sociedade operada pela Revolução
Industrial, Bell assim se posiciona,
[...] a sociedade do passado, dizia Saint-Simon, foi uma sociedade militarizada, na
qual as figuras dominantes eram as dos padres, a dos guerreiros e dos senhores
feudais – os ‗parasitas‘ e consumidores de riqueza. A nova sociedade industrial,
afirmava ele, seria governada pelos produtores – engenheiros e empresários, ‗os
futuros homens‘ das novas eras.283
A Revolução Industrial significou, portanto, o triunfo da produção capitalista e
também a desintegração de costumes e instituições até então existentes. Com ela, surgem
tempos diferentes, homens diferentes e imagens diferentes; enfim uma nova sociedade,
denominada ―sociedade industrial‖.
281
Cf. FIORILLO, Celso Antonio Pacheco, Ob. cit., p. 18-20.
Cf. DE MASI, Domenico (org.). A sociedade pós-industrial. 4. ed. São Paulo: Editora SENAC/São Paulo,
2003, p. 14).
283
BELL, Daniel. O advento da sociedade pós-industrial: uma tentativa de previsão social. trad. Heloysa de
Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1977, p. 63.
282
86
De Masi, apresenta as principais características da novel sociedade, entre elas:
concentração de grandes massas de trabalhadores assalariados nas fábricas; predomínio
numérico dos trabalhadores no setor secundário em comparação aos dos setores primário e
terciário; predomínio da contribuição prestada pela indústria à formação da renda nacional;
aplicação das descobertas científicas ao processo produtivo na indústria; racionalização
progressiva e aplicação da ciência na organização do trabalho; divisão social do trabalho e sua
fragmentação técnica cada vez mais capilar e programada; progressiva urbanização e
escolarização das massas; aumento da produção de massa e crescimento do consumismo; fé
em um progresso irreversível e no bem-estar crescente; difusão da ideia de que o homem em
conflito com a natureza deve conhecê-la e dominá-la; sincronização do homem não mais de
acordo com os ritmos e os tempos da natureza, mas com os incorporados nas máquinas;
convicção de que para alcançar escopos práticos existe one best way, um único caminho
ótimo a ser intuído, preparado e percorrido; possibilidade de destinar a cada produto industrial
um local preciso (a fábrica) e tempos precisos (padrão) de produção e presença conflitual nas
fábricas de duas partes sociais – empregadores e empregados – distintas, reconhecíveis e
contrapostas.284
Dadas estas circunstâncias, em um primeiro momento era natural que o Estado
Liberal-capitalista procurasse impedir a associação de pessoas em grupos, principalmente de
trabalhadores, pois, desse modo, tornava-se mais fácil a contenção e dominação dos mesmos.
Porém, o franco desenvolvimento industrial desencadeou uma série de
consequências, entre elas a acentuação das desigualdades sociais, que restava clara na
existência dual de classes sociais distintas e antagônicas (trabalhadores e patrões)285.
O intenso desenvolvimento industrial, também, fortaleceu e acelerou a divisão do
trabalho, determinando a substituição da produção artesanal e manufatureira pela produção
em série (industrial). Além disso, criou uma relação flagrante de exploração do homem
(produtor) pelo homem (trabalhador), que refletiu diretamente nas condições de vida e de
trabalho da classe obreira da época, tornando-as insuportáveis e subumanas.
Tocqueville citado por De Masi, sintetiza os desdobramentos negativos advindos
da sociedade industrial:
284
Ibidem, p. 19-20.
―A divisão da sociedade em classes com interesses antagônicos, não sendo originária de Marx, tem em Marx
a formulação mais sofisticada e constitui um dos patrimônios da sociologia contemporânea, marxista ou nãomarxista.‖ (SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 12.
ed. São Paulo: Cortez, 2008, p. 39-40).
285
87
[...] não vejo nada mais preocupante, em termos políticos, do que estes novos
sistemas industriais. Quando um artesão se dedica sempre e exclusivamente à
fabricação de um único objeto, aprende a executar este trabalho com perícia
peculiar. Mas, ao mesmo tempo, perde a capacidade geral de aplicar-se à direção do
trabalho; e cada dia ele se torna mais hábil e menos industrioso, e pode-se afirmar
que nele o homem se degrada à medida que o operário se especializa. O que esperar
de um indivíduo que passou vinte anos de sua vida fazendo cabeças de alfinetes? A
que outra coisa mais sua inteligência poderá aplicar-se, senão a procura de um modo
melhor de fazer cabeças de alfinete? O próprio corpo deste homem terá adquirido
hábitos fixos que nunca mais perderá, em uma palavra, ele deixa de pertencer a si
mesmo para pertencer ao oficio que escolheu. Em vão as leis e os costumes retiram
ao seu redor os obstáculos, abrindo-lhe mil caminhos diferentes para a fortuna: um
sistema industrial mais forte do que as próprias leis e os costumes condenou-o a uma
tarefa e freqüentemente a um lugar do qual nunca sairá. Em meio ao movimento
universal, ele permanece imóvel.
Como o avanço do principio da divisão do trabalho, o operário torna-se cada vez
mais fraco, mais limitado e menos independente: a arte faz progressos mas o artesão
regride. Por outro lado, à medida que descobrimos que os produtos industriais são
menos caros e melhores, com a difusão da manufatura e acumulação de capitais,
surgem homens ricos e cultos para explorar indústrias até agora administradas por
artesãos canhestros e ignorantes. Desse modo, enquanto a ciência industrial degrada
continuamente a classe operária, ela eleva a dos patrões. E à medida que o operário
restringe cada vez mais sua mente ao estudo de um único detalhe, o patrão paira,
todos os dias, sobre horizontes mais vastos. Dentro em breve, bastará ao primeiro a
mera força física sem inteligência, enquanto o segundo necessitará de muita ciência
e também da genialidade para vencer. Este se assemelhará cada vez mais ao
administrador de um vasto império, aquele cada vez mais de uma besta.286
Como se vê, com a industrialização a figura do ―patrão‖ desenvolveu-se de
maneira monstruosa e sem limites, mediante a repressão da criatividade social e da autonomia
de seus empregados. Nestes processos de alienação o homem era ―coisificado‖ e as máquinas
―subjetivizadas‖; ou seja, ―[...] o homem se transforma de sujeito em objeto.‖.287
Assim, diante deste panorama de opressão e desigualdade social, emerge a
chamada ―luta de classes‖, que irá determinar o desenvolvimento das teorias socialistas.
A classe trabalhadora, então, embebida pelos ideais socialistas libertários de Marx
e Engels, foi à luta por melhores condições de trabalho, de vida e pelo direito de se associar,
para com isso se fortalecer.
Daí ser imputado o nascimento do Estado Social de Direito à ideologia do
socialismo, que determinou também o surgimento de normas trabalhistas protetivas (como as
previstas
nas
Constituições
do
México
de
1917
e
na
alemã
de
1919),
reconhecendo/evidenciando, pela primeira vez, direitos e deveres a sujeitos de direito distintos
do indivíduo (considerado isoladamente) e do Estado, os grupos ou as classes sociais.
286
TOCQUEVILLE, Alexis de. La democrazia in America. Bolonha: Cappeli, 1962, p. 226-227 apud DE MASI,
Domenico. Ob. cit., p. 16-17.
287
KÄRNER, Hartmut. Movimentos sociais: revolução no cotidiano. In: SCHERER-WARREN, Ilse;
KRISCHKE, Paulo J. (orgs.) Os novos movimentos sociais na América do Sul. São Paulo: Brasiliense, 1987, p.
24.
88
4.3. A SOCIEDADE PÓS-MODERNA
A sociedade industrial, que perdurou por cerca de dois séculos, passou por
formatação em meados do século XX, quando as sociedades do mundo ocidental ingressaram
em novo período de sua história.
Esta novel sociedade irá receber diversos nomes, e na sua maioria eles serão
antecedidos pelo prefixo ―pós‖, como a ―sociedade pós-capitalista‖ (Ralf Dahrendorf), a
―sociedade pós-civilizada‖ (Kenenth Bouling), a ―sociedade pós-coletivista‖ (Sam Beer), a
―sociedade pós-industrial‖ (Daniel Bell) e a ―sociedade pós-moderna‖ (Jean-François
Lyotard). Outros preferem romper com este prefixo, como Ulrich Beck e sua ―sociedade de
risco‖ ou a ―sociedade da informação‖ de Norbert Wiener. Há ainda quem afirme que a
modernidade ainda não chegou a seu fim e que estamos vivendo apenas as ―consequências da
modernidade‖, que se tornaram mais radicalizadas e universalizantes que antes (Anthony
Giddens)288.
Não obstante o grande número de denominações, optamos por trabalhar com
noção de pós-modernidade, por ser considerada ―[...] a mais abrangente das teorias recentes.
Acolhe em seu generoso abraço todas as formas de mudança – cultural, política e
econômica.‖289. Portanto, conceber a sociedade hodierna numa perspectiva pós-moderna é
reunir todos os conceitos supramencionados em um só.
Considera-se marco histórico e simbólico, que inaugura o início desse movimento,
a explosão das bombas de Hiroshima e Nagasaki, no Japão, em 6 de agosto de 1945, que
marcou também o fim da Segunda Guerra Mundial290.
A pós-modernidade denota o fim da civilização industrial, que enfatizava a
produção de bens, e o anúncio de nova sociedade pós-industrial, caracterizada pela cultura de
massa e pelo consumo desmedido dos mais variados produtos e serviços.
288
GIDDENS, Anthony. As conseqüências da modernidade. trad. Raul Fiker. São Paulo: Editora UNESP, 1991,
p. 11-16.
289
KUMAR, Krishan. Da sociedade pós-industrial à pós-moderna: novas teorias sobre o mundo
contemporâneo. Trad. Ruy Jungmann. 2. ed. ampl. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2006, p. 15-16,
290
SANTOS, Jair Ferreira dos. O que é pós-modernismo. 13. ed. São Paulo: Brasiliense, 1994, p. 20.
89
Como expressão cultural ela exibiu contornos na Arquitetura, na Literatura e na
Poesia. Contudo nos interessarão as mudanças ocorridas nos setores sociais, econômicos e
políticos.
Das inúmeras marcas da pós-modernidade analisaremos duas, quais sejam: o
caráter massificado da sociedade e o consumo desenfreado de produtos e de serviços.
Com referência ao caráter massificado da sociedade, devemos levar em conta que
à massa atribui-se a caracterização de ―maioria silenciosa‖, em razão de sua passividade e
indiferença. Ela ―contém todos os discursos, mas não parte para a dialética, congrega o social
nela fragmentado, mas não potencializa, nem trabalha por ideais.‖291. A massa, portanto, é um
grupo manipulado pelo poder dos mecanismos da comunicação e da informação que assiste
apática a sua própria manietação.
Fala-se hodiernamente em cultura de massa, produção em massa, consumo em
massa, comunicação de massa e sociedade de massas.
O conceito de sociedade de massa do ângulo quantitativo é o aumento
demográfico crescente. Por isso, Ferraz Junior afirma que ―uma sociedade de massa é sem
dúvida uma sociedade onde a presença quantitativa é marcante.‖292. Contudo uma sociedade
de massa não é apenas sociedade demograficamente grande, mas uma sociedade em que a
uniformidade social prevalece sobre a universidade.
Em uma sociedade de massa o indivíduo é tratado de maneira uniforme deixando
de ser visto como pessoa, pois nela todos são tratados uniformemente, em grupos. O exemplo
típico deste tratamento é o contrato de adesão.
Esta sociedade de massa também é vista como uma ―sociedade de tutela‖, ―onde a
tutela jurídica se transforma numa tutela de controle da uniformidade.‖293.
É também um tipo de sociedade em que a ideia de risco passa a ser muito mais
fundamental que a idéia de liberdade.
Mas, o que vem a ser este risco em que vive a sociedade atual?
Inicialmente convém registrar que o risco da sociedade ou a sociedade em risco
não é fenômeno recente. Podia-se falar em risco na sociedade industrial, porém nela os riscos
eram incipientes e controláveis, já que sob a égide da racionalidade os efeitos sobre a vida das
291
BATISTA, Roberto Carlos. Coisa Julgada nas ações civis públicas: direitos humanos e garantismo. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2005, p. 5.
292
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Painel realizado a título de encerramento do ―Seminário Sobre a Tutela
dos Interesses Coletivos‖. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (coord.). Ob. cit., p. 154.
293
Ibidem, p. 154.
90
pessoas e de quase todos os acontecimentos, exceto os naturais, eram perfeitamente
controláveis.
Na sociedade pós-moderna, porém, há uma renúncia à racionalidade da sociedade
moderna, e com a crise do Estado de Bem-estar Social a expansão da sociedade de massa e o
crescente desenvolvimento técnico, científico e econômico surgem novos riscos que não
podem mais ser calculados ou sequer imaginados, e suas conseqüências são irreversíveis.
Para Beck, o precursor da Teoria da Sociedade de Risco, na História ocorreram
dois processos de modernização. O primeiro foi a ―modernização da tradição‖ ou
―modernização simples‖, operada pela transição da sociedade agrária para a sociedade
industrial. O segundo, a modernização da sociedade industrial, que foi deslocada pela
sociedade de risco pela chamada ―modernidade reflexiva‖, em que a divisão dos riscos não
corresponde às diferenças sociais, econômicas e geográficas da sociedade industrial. Para ele,
‗mientras que en la sociedad industrial la ‗lógica‘ de la producción de riqueza domina a la
‗lógica‘ de la producción de riesgos, en la sociedad del riesgo se invierte esta relación.‖294.
Assim, mesmo com o desenvolvimento da ciência e da técnica, não é mais possível controlar
ou prever os riscos e se criam ameaças irreversíveis e imprevisíveis para a vida das plantas,
dos animais e dos seres humanos.295
O risco representa, portanto, uma simbiose entre futuro e sociedade. Segundo De
Giorgi, ele é
[...] uma construção da comunicação que descreve a possibilidade de arrepender-se
no futuro, em relação a uma escolha que produziu dano que se queria evitar. [...] O
risco estabelece a necessidade de um casulo do tempo segundo condições que nem a
racionalidade, nem o cálculo da utilidade, nem a estatística podem fornecer
indicações úteis. Nestas condições de não-saber, aquilo que realmente pode-se saber
é que cada redução ou minimização do risco aumenta o próprio risco. 296
Para caracterizar este fenômeno, podemos citar acontecimentos no campo nuclear,
ambiental e da saúde: o acidente de Chernobyl na Rússia, o desastre da plataforma P36 no
Brasil e, recentemente, o vírus Influenza A (H1N1), que se alastrou por todo o globo terrestre
em poucos dias e causou e continua causando vários óbitos.
294
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo: hacia uma nueva modernidad. trads. Jorge Navarro, Daniel Jiménez e
Maria Rosa Borrás. Barcelona: Paidos, 2006, p. 22.
295
Ibidem, p. 17-26.
296
DE GIORGI, Raffaele. O direito na sociedade de risco. Trad. Guilherme Figueiredo Leite Gonçalves. Opinião
Jurídica – Revista do Curso de Direito da Faculdade Christus. Fortaleza: Faculdade Christus, ano 3, n. 5, vol. 1,
jan./jul 2005, p. 389.
91
Desse modo, o conceito de risco ―prende-se com a emergência de novos e grandes
riscos, gerados pelo lado obscuro do progresso, sem pensar no futuro das gerações que estão
por vir. Estes novos riscos, embora resultantes de decisões humanas, surgem de um modo
involuntário e independente do pensamento humano.‖297.
Por essa razão, há quem diga que a sociedade atual esta voltada mais para a
distribuição de riscos do que para a proteção de direitos.298
A outra característica essencial da sociedade pós-moderna é o consumo
desenfreado que é tema inseparável da sociedade de massa.
Em uma sociedade de massa graças às modernas e sedutoras técnicas de
marketing, tudo se transforma em mercadoria consumível a cultura, a informação, o saber e a
comunicação, gerando uma sociedade de consumo sem limites.
Esse consumismo desenfreado de produtos e de serviços tem diversas causas,
entre elas: o aumento da qualidade de vida das pessoas; a necessidade de satisfação cada vez
maior de carências até então inexistentes; o constante aumento da tecnologia na produção de
bens e serviços, gerando produtos e serviços cada vez mais descartáveis e a utilização técnicas
agressivas de publicidade em massa.
Diante disso, o consumo que inicialmente servia basicamente para atender as
necessidades vitais do consumidor, ganha contornos de supérfulo, sem razão. Consumo pelo
consumo simplesmente, ditado pelo mercado como norma a ser seguida.
Com este comportamento, estabelece-se um foco de exclusão cada vez mais
profundo na sociedade, entre os que podem ter acesso a esse consumo e os que não.
Em linhas gerais, é esta a sociedade pós-moderna que se molda após o fim da
Segunda Guerra Mundial: sociedade de massas, informatizada, de consumo sem limites e em
que impera o risco.
Batista sustenta que esta sociedade apresenta os seguintes traços: abstração do real
e peripécias do virtual; massificação da cultura e genocídio às diversidades culturais;
cibernética e a dependência da máquina; semiologia e o fenômeno da comunicação de massa;
robótica industrial e a geração de desemprego; audácia ilimitada das ciências médicas e
biológicas; desconsideração da dignidade humana e o esvaziamento da ética e dos valores;
culto ao corpo e as formas de intervenção para preservar ou restabelecer o estético;
interferência do homem na natureza biológica dos seres; produção manipulada de alimentos
297
CASTRO, Fabiana Maria Martins Gomes de. Sociedade de risco e o futuro do consumidor. Revista de Direito
do Consumidor. São Paulo: Revista dos Tribunais, n.41, jan./mar., 2002, p. 126.
298
FERRAZ JUNIOR, Tércio Sampaio. Painel realizado a título de encerramento do ―Seminário Sobre a tutela
dos Interesses Coletivos‖. In: GRINOVER, Ada Pellegrini (coord.). Ob. cit., p. 157.
92
transformados e artificializados; fragilidade dos bens duráveis; absoluto desrespeito dos
direitos humanos e fundamentais e sua garantia irreal299.
Para encerrar nosso estudo histórico sobre a sociedade pós-moderna, falta fazer
menção ao perfil estatal hodierno. O Estado contemporâneo será marcado e transformado por
três fenômenos: o neoliberalismo, a globalização e pluralismo, que serão analisados
individualmente.
4.3.1. Neoliberalismo
O neoliberalismo ou ―nova direita‖, como movimento econômico, político e
jurídico emerge na década de 70 e se consolida na década de 80 do século XX, tendo como
base teórica a obra de Friedrich August Von Hayek300.
Após a Segunda Guerra Mundial, o mundo retoma as negociações internacionais
de cunho econômico a partir da celebração do Tratado Geral de Tarifas e Comércio (General
Agreement on Tariffs and Trade - GATT). Porém, estas relações internacionais se veem
estremecidas com a crise do petróleo em 1973 e 1979 e as constantes guerras do Oriente
Médio.
Desse modo, na década de 80, como forma de superação desta crise, é
implementada uma política de liberação de normas do mercado e incentivo às grandes
empresas privadas, demarcando o colapso do Estado de Providência e o nascimento da
política neoliberal.
O Estado de Bem-Estar Social, nítido interventor dos assuntos econômicos e
sociais, passa a ter que se abster de prestar assistência à sociedade e a intervir na economia,
para salvaguardar a existência do próprio Estado.
Esta postura de retomada liberal tem como paradigmas o governo norte-americano
de Ronald Reagan e o britânico de Margareth Thatcher, que após o fim da Guerra Fria e o
declínio das nações socialistas, efetivamente implantaram e difundiram para o mundo a
política neoliberal.
Entre outras regras, o Neoliberalismo prega os seguintes preceitos: a) diminuição
brutal do déficit fiscal; b) controle sobre os gastos públicos, por intermédio do corte de
benefícios e de direitos sociais; c) reforma tributária; d) eliminação das taxas de juros
negativas e livre estipulação do mercado de altas taxas; e) formulação da taxa de câmbio pelo
299
300
BATISTA, Roberto Carlos. Ob. cit., p. 8-9.
Cf. BEDIN, Gilmar Antonio. Ob. cit., p. 82-86.
93
mercado; f) liberação das importações; g) facilitação e estímulo ao ingresso do capital
estrangeiro; h) privatização da atividade empresarial pelo Estado; i desregulamento
econômico e do mercado de trabalho; j) reforma legislativa no setor da propriedade para
proteger as patentes industriais 301.
Este modelo foi implantado por nações centrais por meio de organismos
internacionais como o Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional, ou seja, de cima
para baixo. É natural, portanto, que nações ricas e poderosas subjulgassem as nações
periféricas e semiperiféricas. E foi justamente esta a lógica empregada. O Neoliberalismo não
passa de uma (re)formatação da institucionalização da antiga burguesia no poder, em moldes
parecidos com o liberalismo, mas com potencial muito mais avassalador.
As consequências desta política não podiam ser outras, como a formação de
grupos econômicos fortíssimos, o desemprego em massa, a especulação financeira, a
exploração predatória dos recursos naturais, elevação das taxas de juros, o aumento da
dependência externa dos países periféricos e semiperiféricos, o esfacelamento da propriedade
estatal, a supressão ou tentativa de supressão das conquistas históricas do homem trabalhador,
etc.
A par disso, constata-se que o Neoliberalismo acabou por ferir de morte o Welfare
State, e com isso acentua novamente as desigualdades sociais e a exclusão social302.
4.3.2. Globalização
Outro fenômeno que assume relevo para o Estado pós-moderno é a globalização.
Para nominar este fenômeno – imputado às interações transnacionais, à
disseminação em escala mundial de informações e imagens e o deslocamento em massa de
pessoas – muitos termos têm sido empregados. Os estadunidenses falavam, inicialmente, em
―modernização‖. Os franceses repudiando o anglicismo, reportavam-se à expressão
301
FERREIRA, Muniz. Recordação de um futuro possível: neoliberalismo, reforma do Estado e democracia na
América Latina. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 3, n. 2, dez. 1997, p. 101 apud BATISTA,
Roberto Carlos. Ob. cit., p. 14-15.
302
Comentando o fim do Estado de Providência e a implantação do neoliberalismo e descrevendo a realidade
que resultou para os países mais pobres, Santos assim predica: ―Nos países periféricos o agravamento das
condições sociais, já de tão precárias, foi brutal. A dívida externa, a desvalorização internacional dos produtos
que colocam no mercado mundial e o decréscimo da ajuda externa, levou alguns destes países à beira do colapso.
Na década de oitenta morreram de fome na África mais pessoas que em todas as décadas anteriores do século. Se
as assimetrias sociais aumentaram no interior de cada PIS, elas aumentaram ainda mais entre o conjunto dos
países do Norte e o conjunto dos países do Sul. Esta situação que alguns festejaram ou toleraram como a dor
necessária do parto de uma ordem econômica finalmente natural e verdadeira, isto é neoliberal [...]‖ (SANTOS,
Boaventura de Sousa. Ob. cit., 2008, p. 17-18).
94
―mundialização‖. Contudo, o termo que realmente vingou foi ―globalização‖, com suas
variantes ―cultura global‖, ―sistema global‖, ―modernidades globais‖, ―processo global‖ e
―culturas da globalização‖303.
Para Giddens, o conceito de globalização têm sido uma tônica nos debates da
política, negócios e da mídia ao longo dos últimos anos, e que se trata de fenômeno recente304,
pois até pouco tempo (cerca de três décadas) ―[...] the term globalization was relatively
unknown. Today it seems to be on the tip of everyone tongue.―305.
Trata-se de termo que se encontra incorporado ao léxico popular e, portanto, de
difícil conceituação.
A princípio entendia-se a globalização tão somente como uma manifestação da
interação econômica, ―[...] gestada pelo programa neoliberal, que permitiu, com a
desregulamentação, que os mercados mundiais se interagissem [...]‖306.
Tal programa neoliberal, restou evidente na elaboração do chamado ―Consenso de
Washington‖307, que definiu o futuro da economia mundial, as políticas de desenvolvimento
e, especificamente, o papel da economia.
Não obstante, percebeu-se, com o tempo, que a globalização não se refere apenas
ao âmbito econômico, ela é, na verdade, um processo complexo, multifacetário.
Neste sentido, Giddens anuncia que
Although economic forces are an integral part of globalization, it would be wrong to
suggest that they alone produce it. Globalization is created by the coming together of
political, social, cultural and economic factors. It has been driven forward above all
303
Cf. SANTOS. Boaventura de Sousa. Os processos de globalização. In: SANTOS. Boaventura de Sousa (org.).
A globalização e as ciências sociais. 3. ed. São Paulo: Cortez, 2005, p. 25.
304
Muito embora existam autores que afirmam que a globalização, como manifestação sociológica de expansão
dos horizontes de interesses das sociedades humanas, não seja um fenômeno recente: ―A globalização já foi
cultural, pelo poder do exemplo, como se deu no mundo helênico; foi política, pelo poder da espada, como no
mundo romano; foi econômica, pelo poder das riquezas, como no mundo ibérico dos descobrimentos e religiosa,
pelo poder da fé, como no mundo cristão.‖ (MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; CASTRO, Paulo Rabello
de. O futuro do Estado: do pluralismo à desmonopolização do poder. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva
(coord.). Ob. cit., p. 52.)
305
GIDDENS, Anthony. Sociology. 5. ed. fully revised and updated. Cambridge: Polity Press, 2006. p. 50.
306
BATISTA, Roberto Carlos. Ob. cit., p. 15.
307
Em 1989, no cerne dos governos Reagan e Tatcher expressões paradigmáticas do neoliberalismo, reuniram-se
em Washington, diversos economistas latino-americanos de perfil liberal, funcionários do Fundo Monetário
Internacional (FMI), Banco Mundial e Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) e do governo norteamericano. O encontro tinha como tema: ―Latin Americ Adjustment: Howe Much has Happened?‖, e visava
avaliar as reformas econômicas em curso no âmbito da América Latina. O economista inglês, John Willianson,
diretor do instituto promotor do encontro, foi quem alinhavou os ―dez pontos‖ tidos como consensuais entre os
participantes: 1) disciplina fiscal; 2) focalização dos gastos públicos; 3) reforma tributária; 4) liberalização
financeira; 5) taxa de câmbio competitiva; 6) liberalização do comércio exterior; 7) eliminação de restrições ao
capital externo; 8) privatização; 9) desregulação econômica e trabalhista; 10) proteção à propriedade intelectual.
(Cf. NEGRÃO, João José. Para conhecer o neoliberalismo. São Paulo: Publisher Brasil, 1998, p. 41-43).
95
by the development of information and communication technologies that have
intensified the speed and scope of interaction between people all over the world. 308
Assim devemos conceber a globalização como um conjunto de relações sociais
traduzidas por intensa interação de cunho transnacional, que se manifesta nos campos
econômico, social, político, cultural e jurídico 309.
A globalização traz consigo uma série de consequências, como a crescente
desnacionalização dos direitos, uma crise estrutural do conceito de Estado soberano, produção
e consumo globalizados, o aumento das intervenções no meio ambiente, entre outras, que
produzem efeitos, positivos e negativos, a todos os seres humanos do globo terrestre.
4.3.3. Pluralismo
O terceiro fenômeno de vital relevância componente do perfil estatal pósmoderno, e que reputamos o mais importante a este estudo em particular, é o pluralismo.
Com o advento da pós-modernidade assiste-se ao nascimento de uma sociedade
absolutamente plural no âmbito étnico, religioso, cultural, econômico e das preferências
sexuais, destoando completamente das demais formações sociais até então existentes.
O surgimento do pluralismo tem raízes na formidável diversificação e
multiplicação dos interesses, ante o desenvolvimento dos meios de comunicação em massa e a
elevação do grau de informação, ou seja, ele está ligado diretamente aos processos de
globalização, a pouco comentados.
Neste diapasão, o pluralismo pode ser entendido como um ―[...] sistema de muitos
centros de poder, dotado de forte impulso interno visando à adaptação mútua das esferas, e
não à submissão ou dominação de uma pelas outras‖ 310.
Com o aparecimento desta nova sociedade plural, sugere-se o rompimento da
concepção homogênea e centralizadora, denominada ―monismo‖, ao passo que ela ―[...]
designa a existência de mais de uma realidade, de múltiplas formas de ação prática e da
diversidade de campos sociais, com particularidade própria, ou seja, envolve o conjunto de
fenômenos autônomos e elementos heterogêneos que não se reduzem entre si.‖311.
308
GIDDENS, Anthony. Ob. Cit., 2006. p. 50.
Sobre os conceitos destes processos globalização confira: SANTOS. Boaventura de Sousa. Os processos de
globalização. In: SANTOS. Boaventura de Sousa (org.). Ob. cit., 2005, p. 29-49.
310
SHILS, E. A. The torment of secrecy. Londres: Heisman, 1956, p. 154 apud MOREIRA NETO, Diogo de
Figueiredo; CASTRO, Paulo Rabello de. O futuro do Estado: do pluralismo à desmonopolização do poder. In:
MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Ob. cit., p. 46, nota n. 4).
311
WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 171-172.
309
96
Em termos sintéticos, o pluralismo inaugura o fim da sociedade centralizadora e
homogênea dividida em classes sociais antagônicas (produtores e trabalhadores), tal como
restava delineado na sociedade industrial, e determina, ainda, o surgimento de diversas outras
classes e grupos sociais que irão interagir das mais variadas formas possíveis.
Diante desta nova realidade, de caráter eminentemente cosmopolita, é comum nos
depararmos, nos grandes centros urbanos do mundo, com a convivência (nem sempre
harmônica) de punks, muçulmanos, judeus, índios, homossexuais, transexuais, astros
televisivos e cinematográficos, políticos de destaque, playboys, magnatas, operários,
lavradores e líderes religiosos. Cada um com sua forma de ver o mundo, de dar sentido a sua
vida e de guiar-se por uma ideologia. O mundo tornou-se hoje um enorme conglomerado de
culturas, ideologias, interesses, valores, ideias, referenciais e comportamentos, que geram
miríades de formas de diferenças e idiossincrasias, que merecem respeito312.
Dito isso, é possível notar que o pluralismo irá se manifestar em diversos e
distintos campos como na economia, política, cultura, sociedade e produção jurídica.
No campo econômico, o pluralismo é deflagrado em função da mudança radical
do processo produtivo. O modelo industrial de produção é substituído pelo modelo neoliberal
de integração global, o capitalismo essencialmente industrial dá lugar ao bancário. Em síntese,
―caduca‖ a lógica marxista da mais-valia diante do chamado ―capitalismo de múltipla
participação‖313.
Já o pluralismo político, pauta-se na rejeição à toda e qualquer forma de
concentração e unificação do poder, pois por meio dele enfatiza-se ―a existência de um
complexo corpo societário formado pela multiplicidade de instâncias sociais organizadas e
centros autônomos de poder, que, ainda que antagônicos entre si, objetivam restringir,
controlar ou mesmo erradicar as formas de poder hegemônico [...]‖314. Com isso, exsurge o
chamado ―Estado pluriclasse‖, onde o poder deixa de pertencer ou de ser instrumento de uma
ou poucas classes para refletir todos os interesses de grupos capazes de se fazerem presentes
nos corpos políticos, influenciando, desta forma, o surgimento de uma variedade de partidos e
movimentos políticos.
No âmbito da cultura, o pluralismo implica num ―[...] estado das coisas no qual
cada grupo étnico mantém, em grande medida um estilo próprio de vida, com seus idiomas e
312
BATISTA, Roberto Carlos. Ob. cit., p. 24-25.
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; CASTRO, Paulo Rabello de. O futuro do Estado: do pluralismo à
desmonopolização do poder. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). Ob. cit., p. 47.
314
WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 173.
313
97
seus costumes, além de escolas, organizações e publicações especiais.‖315 Daí a hodierna
coexistência das mais variadas ―tribos‖, cada uma com sua concepção e seu modo de interagir
e de ver o mundo.
Noutro giro, o pluralismo social faz com que a sociedade passe por um processo
de extratificação, deixando de apresentar-se como uma sociedade (industrial) dividida em
poucas classes sociais, quiçá apenas duas: os produtores e os empregados. Ela torna-se uma
sociedade fragmentada em classes e subclasses, desfigurando completamente o antigo
conjunto social, essencialmente homogêneo.
Sustentam Moreira Neto e Castro, que a sociedade plural fez com que se
multiplicassem o número de sistemas sociais e fosse rompido o modelo de sociedade estática,
onde cada indivíduo tinha o seu lugar definido; inaugurando, assim, uma nova organização
social dita ―polissistêmica‖:
Aos relativamente poucos e definidos sistemas intrassociais, em que cada indivíduo
tinha o seu lugar definido e estável no contexto social, sucedeu-se uma organização
polissistêmica da sociedade na qual cada pessoa assume simultânea ou
sucessivamente vários papéis, ora alinhando-se, ora deixando de se alinhar,
conforme o tipo de interesse em causa ou dominante no momento, a diferentes
grupos sociais e agremiações que, cada vez menos assemelham-se às antigas classes.
Desse modo, resta claro que os protagonismos sociais atingiram um estádio tal de
sofisticação, que dificilmente se encontrará alguém que não seja, ao mesmo tempo, produtor
de bens e serviços e consumidor, usuário de serviços públicos e contribuinte.
Com o pluralismo social ampliam-se sensivelmente os papéis dos indivíduos na
sociedade e evidentemente o número de classes ou grupos sociais, em relação à antiga
sociedade industrial, pouco ou nada, extratificada.
O aumento de classes ou grupos sociais representa o marco do que iremos
designar ―movimento de coletivização do Direito‖.
Esse movimento inaugura o desenvolvimento dos interesses transindividuais,
tendo em vista que partimos da premissa de que as normas trabalhistas são as manifestações
normativas originais de revelação destes direitos.
Desse modo os direitos coletivos nascem no âmbito do Estado Social de Direito,
com o advento das primeiras normas de proteção dos trabalhadores, e se desenvolvem a partir
do ―movimento de coletivização do Direito‖ operado pela multiplicação dos grupos e classes
sociais, por força do pluralismo social.
315
LEISERSON, Avery. Pluralismo. In: SILVA Benedicto da [coord.]. Dicionário de ciências sociais. Rio de
Janeiro: FGV/MEC, 1986, p. 903-904 apud WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 173.
98
Dito isso, já podemos mencionar que estas novas classes ou grupos sociais
poderão assumir a forma de corpos intermediários 316, movimentos sociais317e associações
voluntárias318.
Contudo, para compreendermos o que convencionamos chamar de ―movimento de
coletivização do Direito‖, utilizaremos a chamada ―Teoria dos Movimentos Sociais‖,
desenvolvida originalmente por cientistas sociais.
Descrevendo a história dos movimentos sociais, De La Cruz leva em consideração
a ocorrência de três grandes rupturas, que tiveram o condão de fraturar o modelo social
imperante: a) a primeira é considerada uma ―ruptura cultural‖ originada pelo progresso do
capital, com a sequela da industrialização e da urbanização que acabaram desintegrando as
antigas verdades, carreando a sociedade para a individualização e para a desestabilização das
relações humanas; b) a segunda foi a ―ruptura do modelo estatal‖ operada na sociedade do
pós-guerra, que em razão da crise econômica e da complexidade social, assinalou os limites
para o funcionamento do Estado interventor e desenvolvimentista. Esta crise do modelo
estatal reflete três aspectos inerentes a este Estado: ―ineficiência administrativa‖,
―incapacidade de prestar serviços‖ e ―deterioração da legitimidade‖; c) a terceira e última
denomina-se ―ruptura do modelo de desenvolvimento‖ visível frente ao colapso do sistema
desenvolvimentista materializado pelo amerian way of life, em que são evidenciados os
efeitos da sociedade capitalista industrial como a crise econômica, o desemprego, a poluição
ambiental, a escassez de recursos naturais, aumento das enfermidades, ameaça nuclear, etc. 319
Diante disso, é possível afirmar que os movimentos sociais surgem, no âmbito da
sociedade industrial, materializados pela chamada ―luta de classe‖ encabeçada pelo
proletariado, passam por uma reestruturação com a crise do Estado de providência, quando a
316
Wolkmer define os corpos intermediários como sendo ―[...] grupos sociais ou voluntários com interesses
comuns, localizados entre o Estado e o indivíduo, com atribuições para representar diferentes setores da
comunidade e atuar num espaço democrático, caracterizado pela descentralização e participação popular.‖
(WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo jurídico: fundamentos de uma nova cultura no direito. 3. ed. rev. e
atual.São Paulo: Alfa-Omega, 2001, p. 119-120).
317
Para Scherer-Warren so movimentos sociais correspondem a ―uma ação grupal para transformação (a práxis)
voltada para a realização dos mesmos objetivos (o projeto), sob a orientação mais ou menos consciente de
princípios valorativos comuns (a ideologia) e sob uma organização diretiva mais ou menos definida (a
organização e sua direção).‖ (SCHERER-WARREN, Ilse. O caráter dos movimentos sociais. In: SCHERERWARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (orgs.) Ob. cit., 1987, p. 37).
318
As associações voluntárias, segundo Figueiredo, ―[...] consistem em grupos formais livremente constituídos,
aos quais se tem acesso por própria escolha e que perseguem interesses mútuos e pessoais ou então escopos
coletivos.‖ (FIGUEIREDO, Lucia do Valle. Direitos difusos e coletivos. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1989,
p. 12).
319
DE LA CRUZ, Rafael. Os novos movimiento sociais: encontrs e desencontros com a democracia. In:
SCHERER-WARREN, Ilse; KRISCHKE, Paulo J. (orgs.) Os novos movimentos sociais na América do Sul. São
Paulo: Brasiliense, 1987, p. 86-95
99
estrutura estatal não consegue mais suprir as necessidades, e ganham uma nova roupagem
frente à visibilidade das consequências da política neoliberal e da globalização dos mercados.
Para Scherer-Warren, a teoria dos movimentos sociais, no âmbito da América
Latina, pode ser dividida em quatro fases: 1) de meados do século XX até o início dos anos
70, através das lutas de classe; 2) a década de 70 e as lutas nacional-populares; 3) a década de
80 e os movimentos de base (grassroots); 4) os anos 90 e as redes de movimentos
(networks).320
Em uma perspectiva geral, Wolkmer fraciona as modalidades de ações coletivas
em duas espécies: ―movimentos sociais‖, aqueles compreendidos no período do surgimento
da sociedade industrial burguês-capitalista até o final da década de 60 e ―novos movimentos
sociais‖ que emergem ao longo das décadas de 70, 80 e 90321.
Os primeiros (antigos movimentos sociais) circundam a sociedade industrial e se
vinculam a reivindicações da classe operária, influenciada pelos princípios do socialismo,
marxismo
e
anarco-sindicalismo.
O
perfil
destes
movimentos
é
eminentemente
assistencialista, já que buscam a satisfação de interesses materiais e econômicos, revelando
também uma postura de subordinação a órgãos institucionalizados (Estado, partido político e
sindicato). Em síntese, são compostos pelos típicos movimentos sociais operários da
sociedade industrial.
Já os segundos (novos movimentos sociais) têm como referência a sociedade pósmoderna e representam a construção de um novo modelo de cultura política e de organização
social emancipatória322. Estes movimentos são vocacionados ao atendimento de necessidades
básicas, como a saúde, educação, trabalho, e moradia, além de outras, como o reconhecimento
de participação na sociedade como verdadeiros atores sociais ou, simplesmente, seu respeito
como grupo social. Contudo, não se vislumbra nestes a relação de hierarquia e subordinação
dos antigos movimentos sociais. Os ―novos movimentos sociais‖ denotam a superação do
modelo de sociedade industrial e sua consequente dualidade social323.
320
SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Edições Loyola, 1993, p. 13-25.
WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 122-123.
322
Esse caráter emancipatório dos novos movimentos sociais é atribuído ao fim do excesso de regulação (em
todos os níveis) que proporcionava o Estado de Bem-estar Social. Com o declínio desta forma estatal e
consequentemente o fim desse processo regulatório tais movimentos foram fortificados e se tornaram poderosos
protagonistas de um renovado espectro de inovação e transformações sociais. (SANTOS, Boaventura de Sousa.
Ob. cit., 2008, p. 256-257).
323
―[...] nas sociedades pós-industriais ou programadas, as classes sociais, principalmente a classe operária, estão
em processo de decadência e desaparecimento, sendo sucedidas por uma ‗não-classe‘, ou seja, por movimentos
sociais, autênticos atores coletivos ou ‗sujeitos históricos‘ revolucionários‘ que podem ‗desempenhar numa
sociedade programada, o lugar central que foi do movimento operário na sociedade industrial‘‖. (WOLKMER,
Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 124).
321
100
Como exemplo dos ―movimentos sociais‖, podemos citar os sindicatos de
trabalhadores; e dos ―novos movimentos sociais‖, o movimento dos sem-terra, as causas
homossexuais, entre outros direitos de minorias.
Como se vê, os movimentos sociais, como autênticos sujeitos de direitos
coletivos, revelam-se produtos de ―ciclos‖ culturais/ideológicos e ―flutuações‖ políticas,
econômicas e sociais, a partir da ―insegurança das populações diante da impotência das
instituições clássicas (debilidade do sistema representativo, falência do Estado do Bem-Estar
Social e deterioramento da qualidade de vida)‖ 324.
Outra manifestação do pluralismo dá-se no campo jurídico.
Com a crise de regulação estatal promovida pelo colapso do Estado de Direito
Social e da implantação da política neoliberal em uma sociedade plural, verifica-se o
nascimento de um processo de produção normativa múltipla. As fontes de produção
normativa deixam de jorrar apenas das leis do Estado, sepultando-se de vez o monismo
jurídico e inaugurando um novo paradigma jurídico, distinto do modelo positivista.
Esta produção normativa alternativa é resultado de embates sociais, carências,
desigualdades, exclusões, reivindicações legítimas de agentes e grupos sociais, que buscam
por ―quotas de libertação‖325.
Neste aspecto, Wolkmer salienta que ―[...] a insuficiência das fontes clássicas do
monismo estatal determina o alargamento dos centros geradores de produção jurídica
mediante outros meios normativos não convencionais, sendo privilegiadas, neste processo, as
práticas coletivas engendradas por sujeitos sociais.‖326
Assim, a sociedade pós-moderna assiste à criação de um direito extraoficial ou
extralegal, que somente é possível graças á ação transformadora dos ―sujeitos sociais‖, ou
melhor, dos movimentos sociais.
O Direito estabelecido pela sociedade industrial, corporificado pelo modelo de
centralização normativa (como meio de dominação), impôs rígido sistema de fontes formais
que resta configurado na supremacia da Lei (Direito legiferado e escrito) – e aqui entenda-se
―lei‖ como norma jurídica que passou pelo processo legislativo estabelecido pelo próprio
Estado e previsto na Constituição respectiva – sobre o Direito consuetudinário e o Direito dos
juristas (doutrina e jurisprudência). Contudo, não se concebe mais que os centros geradores de
Direito reduzam-se às instituições e aos órgãos representativos do Estado, responsáveis pela
324
Ibidem, p. 123.
BATISTA, Roberto Carlos. Ob. cit., p. 25.
326
WOLKMER, Antonio Carlos. Ob. cit., 2001, p. 151.
325
101
elaboração das fontes normativas formais. O Direito pode estar inserido ou ser fruto de
práticas sociais emergentes de diversos outros centros normativos, em esferas tanto
supraestatais (organizações internacionais) quanto infraestatais (associações, organizações
comunitárias, corpos intermediários e movimento sociais) 327.
Desse modo, Wolkmer afirma que as
[...] ‗vontades coletivas‘ organizadas, utilizando-se de práticas sociais que
instrumentalizam suas exigências, interesses e necessidades, possuem a capacidade
de instituir ‗novos‘ direitos, direitos ainda não contemplados e nem sempre
reconhecidos pela legislação oficial do Estado. Com efeito, isso ocorre porque a
produção jurídica não reside tão somente no Estado, mas pode surgir de outras
instâncias sociais diferenciadas e independentes, mais exatamente do bojo complexo
e do contingente de diversos espaços ocupados por sujeitos coletivos anônimos.
Desde logo, entende-se que, ainda que o Direito Estatal, simbolizado pela lei escrita
e por códigos formais, exerça o monopólio na sociedade industrial-capitalista, na
verdade tal realidade não se esgota em si mesma, pois o Direito Estatal é ‗somente
uma espécie do gênero do Direito‘ enquanto fenômeno cultural.328
Poderíamos aqui nos estender sobre o debate do pluralismo jurídico, já que este é
um tema que suscita grande fervor na comunidade jurídica em geral, contudo já atingimos
nosso objetivo, qual seja, conceber os movimentos sociais não só como manifestações
normativas originais dos interesses coletivos, mas também como potenciais fontes produtoras
de normas jurídicas.
Assim, em termos genéricos, constata-se que o pluralismo como novo vetor da
sociedade hodierna visa criar um espaço social de mediação em contrapartida aos extremos da
fragmentação atomista e da ingerência desmedida do Estado.
À guisa de um lacônico desfecho, podemos consignar, que nossa opção por
imputar o nascimento dos direitos coletivos aos direitos trabalhistas do Estado de Direito
Social e o desenvolver desta concepção a partir do pluralismo social, justifica-se.
As ―lutas de classes‖ que ensejaram o aparecimento do Estado Social e a
manifestação normativa primogênita dos direitos coletivos foram paulatinamente substituídas
pelo ―compromisso de classe‖, a ―concertação social‖ e o ―neocorporativismo‖329, ou seja, o
movimento operário acabou sucumbido aos benefícios sociais proporcionados pela social
democracia e o Estado de Bem-estar.
327
Ibidem, p. 153.
Ibidem, p. 153-154.
329
SANTOS, Boaventura de Sousa. Ob. cit., 2008, p. 40.
328
102
Diante deste aliciamento dos ideais proletários, tendem a ocupar lugar de destaque
no movimento de coletivização do direito outros movimentos sociais, que irão desenvolver-se
no âmbito da sociedade pós-industrial, os chamados ―novos movimentos sociais‖.
Por isso, Santos é enfático ao dizer que
[...] os movimentos e as lutas políticas mais importantes foram protagonizadas nos
países centrais e mesmo nos países periféricos e semiperiféricos por grupos sociais
congregados por entidades não directamente classistas, por estudantes, por mulheres,
por grupos étnicos e religiosos, por grupos pacifistas, por grupos ecológicos, etc.,
etc.330
Daí o surgimento de ―novos‖ interesses metaindividuais de minorias, direitos à
diferença, ao meio ambiente equilibrado, entre outros que se somam aos originais e antigos
direitos coletivos dos trabalhadores.
Feitas estas considerações, cabe ingressar no estudo dos interesses coletivos.
5. OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS
5.1. DUAS QUESTÕES QUE INFLUENCIARAM DIRETAMENTE O
SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA CONCEPÇÃO COLETIVA
Antes de ingressarmos no estudo dos direitos transindividuais, duas questões
devem ser levadas em consideração, por sua influência no surgimento e desenvolvimento
desses direitos: a superação da summa divisio direito público e privado e a aproximação das
famílias commom law e civil Law, por força da segunda ―onda‖ de acesso à justiça.
5.1.1. A Superação da Summa Divisio Direito Público e Direito Privado
330
Ibidem, p. 40.
103
A primeira diz respeito ao surgimento dos direitos de titularidade coletiva. Isto
porque, o reconhecimento da existência destes direitos, inicialmente à classe de trabalhadores
e depois a outros grupos sociais, denota autêntica superação da denominada summa divisio
direito público e privado.
Durante muito tempo, a grande dicotomia direito público/direito privado serviu de
base para estruturar o pensamento jurídico, assumindo, inclusive, várias outras formas, dentre
elas: Estado/sociedade civil, Constituição/Código Civil, lei/contrato, política/economia.331
Até o declínio do Estado de Direito Liberal, esta divisão em direito público e
privado amoldava-se perfeitamente à sociedade burguesa, pois eram concebidos apenas os
direitos do Estado, de um lado, e os direitos dos indivíduos (de primeira geração) do outro,
sendo que estes impunham àqueles uma abstenção, um agir negativo.
Com o aparecimento dos direitos de segunda geração (direitos sociais, culturais e
econômicos), tal dicotomia entrou em crise, pois o Estado, agora de Direito Social, passou a
ter que realizar ações promocionais por meio de interferências no setor privado, até então
regido por uma concepção jusnaturalista, própria de um Estado neutro e abstêmio. Emerge,
portanto, uma nova concepção normativista (garantista) com o dirigismo estatal, que passa a
orientar e a controlar a economia e o mercado.
Diante disso, ―[...] a marmórea dicotomia romanista entre o público e o privado,
que havia predominado por dois milênios, cedeu a uma pluricategorização de interesses
metaindividuais [...] nenhum deles, necessariamente público, embora eventual e
coincidentemente possam sê-lo.‖332
Nesse sentido, Almeida fala em quatro crises da summa divisio direito público e
direito privado: a) crise de enquadramento metodológico e conceitual 333; b) crise de
relacionamento entre direito público e direito privado 334; c) crise de enquadramento das novas
331
KAUFMANN, Rodrigo de Oliveira. A ―dicotomia‖ direito público – direito privado. In: SILVA, Alexandre
Vitorino [et. al] Estudos de direito público: direitos fundamentais e estado democrático de direito. Porto Alegre:
Síntese, 2003, p. 17.
332
MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo; CASTRO, Paulo Rabello de. O futuro do Estado: do pluralismo à
desmonopolização do poder. In: MARTINS, Ives Gandra da Silva (coord.). O estado do futuro. São Paulo:
Pioneira/Associação Internacional de Direito e Economia, 1998, p. 47.
333
―O enquadramento metodológico do Direito Público e do Direito Privado, no plano da ordem jurídica, não
corresponde ao modelo de sociedade complexa e à complexidade do Direito, com titularidade ampliada
subjetivamente e com dimensão objetiva, que se renova com as transformações sociais.‖ (ALMEIDA, Gregório
Assagra de. Direito material coletivo: superação da summa divisio direito público e direito privado por uma
summa divisio constitucionalizada. Belo Horizonte, Del Rey, 2008, p. 410).
334
―[...] o público tem se privatizado progressivamente quando o Estado é tomado por empresas e, por outro, as
ações individuais acabam por dissolver a mínima e necessária homogeneidade social [...]‖ (Ibidem, p. 410).
104
categorias constitucionais fundamentais335; d) crise de legitimidade social e as dificuldades de
tornar o direito, no âmbito da summa divisio clássica, instrumento de combate à pobreza e às
desigualdades sociais336.
Já Cappelletti, em visão processualista, afirma que a superação desta dicotomia
clássica, está corroborada no fato de que os interesses coletivos, antes de mais nada, são
interesses ―a respeito do autor‖.
Assim, a grande questão colocada sobre eles refere-se à legitimação para defendêlos em juízo. A quem será atribuída esta incumbência, posto que os esquemas tradicionais de
legitimação ativa pelo método de divisão entre direito público e privado não servem mais para
solucionar esta questão?
Estamos diante de interesses que não pertencem ao indivíduo e nem ao Estado.
Daí a célebre interrogativa de Cappelletti: ―a quem pertence o ar que respiro?‖ 337
Por fim, conclui o autor italiano que ―a summa divisio aparece irreparavelmente
superada diante da realidade social da nossa época, que é infinitamente mais complexa, mais
articulada, mais sofisticada do que aquela simplista dicotomia tradicional.‖ 338
5.1.2. A Aproximação entre os Sistemas Jurídicos da Commom Law e da Civil Law Operada
pela Segunda ―Onda‖ do Acesso à Justiça
A segunda questão que insta ser mencionada diz respeito à aproximação entre os
sistemas jurídicos da commom law e da civil law operada pela segunda ―onda‖ do acesso à
justiça.
No Ocidente, os sistemas jurídicos podem ser divididos, basicamente, em duas
famílias339: a romano-germânica ou civil law e a common law.
A família romano-germânica é composta pelos sistemas jurídicos dos países da
Europa Continental, bem como os países colonizados por eles. Já a common law, compõe-se
dos sistemas jurídicos da Inglaterra e dos países que seguirem o modelo inglês, sendo o de
maior destaque, os Estados Unidos da América.
335
―O próprio Direito Coletivo não tem campo próprio de enquadramento no âmbito da summa divisio Direito
Público e Direito Privado.‖ (Ibidem, p. 413-414).
336
―[...] o modelo da summa divisio clássica, Direito Público e Direito Privado, que ganhou corpo no Estado
Absolutista e se consagrou no Estado Liberal de Direito, é atualmente um dos principais obstáculos ao combate
à pobreza e às desigualdades sociais.‖ (Ibidem, p. 415).
337
CAPPELLETTI, Mauro. Ob. cit., 1977, p. 135.
338
Ibidem, p. 135.
339
DAVID, René. Os grandes sistemas de direito contemporâneo. trad. Hermínio A. Carvalho. São Paulo:
Martins Fontes, 2002, p. 21-27.
105
Dentre as várias dissensões entre estas famílias, destacamos duas: a hierarquia
normativa e a função do juiz.
Na civil law, a fonte de maior hierarquia normativa é a Lei e dela emana
praticamente toda a estrutura normativa nesses sistemas jurídicos.
Nesse particular, são as considerações de David:
A lei considerada lato sensu, é aparentemente, nos nossos dias, a fonte primordial,
quase exclusiva, do direito nos países da família romano-germânica. Todos esses
países surgem como sendo países de direito escrito; os juristas procuram antes de
tudo, descobrir as regras e soluções do direito, estribando-se nos textos legislativos
ou regulamentares emanados do parlamento ou das autoridades governamentais ou
administrativas. A função dos juristas parece ser fundamentalmente a de descobrir,
com auxílio de vários processos de interpretação, a solução que em cada caso
corresponde à vontade do legislador. Jurisconsulta sine lege loquens embescit, diziase outrora na Alemanha.
As outras fontes aparecem [...] ocupando uma posição subordinada e de importância
muito reduzida em confronto com a fonte por excelência do direito, constituída pela
lei.340
Como a lei é a fonte normativa por excelência dos sistemas da civil law, será em
torno dela que irão gravitar todas as questões jurídicas relacionadas à interpretação e
aplicação do Direito. Portanto, nesses sistemas jurídicos, os juízes estão vinculados
estritamente à norma de regência do caso concreto, são meros instrumentos de reprodução
legal, ou seja, o magistrado nada mais é do que a “la bouche de la loi”341. Dessa forma, não
podem os juízes decidir nem além, nem aquém dos limites impostos pelo legislador.
Já no sistema anglo-saxão, a fonte normativa de maior valor é a jurisprudência.
Nos países da common law, os julgados (stare decisis) assumem um papel de maior
preponderância do que a lei. Vejamos:
O direito inglês, elaborado historicamente pelos Tribunais de Westminster (common
law) e pelo Tribunal da Chancelaria (equity), é um direito jurisprudencial, não
apenas por suas origens remotas. [...] Ele é, de forma típica, um direito
jurisprudencial (case law) [...].
A lei – chamada em inglês statute – apenas desempenha, na historia do direito
inglês, uma função secundária, limitando-se a acrescentar corretivos ou
complementos à obra a jurisprudência. 342
Por esta razão, os juízes da common law possuem maior autonomia para
exercerem sua atividade judicativa. As decisões judiciais visam dar solução ao processo, e não
formular uma regra geral de conduta aplicável no futuro.
340
Ibidem, p. 111-1112.
Cf. MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. cit., 2007, p. 21.
342
DAVID, René. Ob. cit, p. 415.
341
106
Para Meroi, a grande diferença entre os dois sistemas jurídicos está inserta no fato
de que o promotor do Direito é o legislador, nos sistemas jurídicos da civil law (ou de Direito
Continental), enquanto nos da commom law o juiz possui essa atribuição 343.
O sistema jurídico brasileiro, bem como grande parte da cultura jurídica ocidental,
é integrante da família romano-germânica.
Com essas afirmações, não pretendemos aqui eleger um ou outro sistema jurídico.
Uma constatação, porém, tem que ser feita. Hodiernamente, o sistema normativo mais
avançado do mundo em relação à tutela de direitos transindividuais é, sem sombra de dúvida,
o norte-americano. As class actions estadunidenses, previstas na Rule 23 das Federal Rules of
Civil Procedure, constituem o mais sofisticado sistema de jurisdição coletiva 344.
Tanto é verdade que o sistema jurídico brasileiro de tutela coletiva – considerado
o mais avançado da América Latina – foi concebido com base nas class actions americanas345.
Na verdade, a doutrina nacional buscou substrato para elaborar nossa jurisdição
transindividual junto ao sistema jurídico italiano, e este, por sua vez, foi configurado
conforme o sistema norte-americano.
Dessa forma, os juristas italianos da década de 1970, como Michele Taruffo,
Mauro Cappelletti, Vincenzo Vigoriti, Vittorio Denti, entre outros, promoveram uma
aproximação dos sistemas jurídicos da commom law e da civil law, em termos de direito
material e processual coletivo.
O trabalho mais relevante provavelmente é a obra de Mauro Cappelletti – Doutor
em Direito da Universidade de Florença, na Itália, e Professor da Universidade de Stanford,
nos Estados Unidos – sobre o acesso à justiça, que possibilitou a mudança do paradigma
individual para o coletivo.
Cappelletti, em conjunto com o norte-americano Bryant Garth, elaboraram
extensa pesquisa de direito comparado sobre o acesso à justiça, desenvolvida no contexto do
denominado ―Projeto de Florença‖, que foi publicado em quatro volumes346.
O primeiro volume recebeu o título de ―Acesso à Justiça‖ e será nossa fonte de
consulta.
343
MEROI, Andreia A. Procesos colectivos: recepción y problemas. Santa Fé: Ribinzal-Cultoni Editores, 2008,
p. 23.
344
Sobre o sistema jurídico norte-americano das class actions confira:GIDI, Antonio. Ob. cit., 2007; KLONOFF,
Robert H. Class Actions and other multi-party litigation. 3. ed. St. Paul: Thompson/West, 2007; MENDES,
Aluisio Gonçalves de Castro. Ob. cit., p. 63-97; TUCCI, José Rogério Cruz e Gonçalves de Castro. Ob. cit., p. 934.
345
Cf. GIDI, Antonio. Ob. cit., 2008, p. 30-39.
346
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à justiça. trad. Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre:
Sergio Antonio Fabris Editor, 1988, p. 7, nota de rodapé.
107
Os juristas mencionados iniciam seu trabalho constatando que a mais intrigante
indagação sobre os sistemas jurídicos é ―[...] a que preço e em benefício de quem estes
sistemas de fato funcionam.‖347 Esta questão tem sido considerada fundamental para revelar o
atual modo de funcionamento dos sistemas jurídicos.
Como forma de aperfeiçoamento dos sistemas jurídicos contemporâneos,
Cappelletti e Garth propõem a sua qualificação com fulcro na noção do Acesso à Justiça, que
serviria para determinar duas finalidades básicas desses sistemas: ―primeiro, o sistema deve
ser igualmente acessível a todos; segundo, ele deve produzir resultados que sejam individual e
socialmente justos.‖348
Com base nisso, a premissa básica do acesso à justiça será a de que a justiça social
pressupõe, necessariamente, o acesso efetivo a uma ―ordem jurídica justa‖ 349.Contudo, o
acesso à justiça nem sempre recebeu este enfoque.
Nos sistemas jurídicos liberais burgueses dos séculos XVIII e XIX, como já
afirmamos anteriormente, os procedimentos para solução dos conflitos denotavam a filosofia
essencialmente individualista dos direitos da época (primeira geração). Nesse período, o
acesso à justiça sinalizava apenas ―o direito formal do indivíduo agravado de propor ou
contestar uma ação. A teoria era que, embora o acesso à justiça pudesse ser um ‗direito
natural‘, os direitos naturais não necessitavam de uma ação do Estado para sua proteção.‖350.
O acesso à justiça somente ganha contornos de efetivo no âmbito do Estado de
Direito Social, quando são reconhecidos direitos à igualdade (segunda geração) e os
indivíduos, enquanto agrupamentos sociais, são munidos com novos direitos substantivos. É a
chamada ―igualdade de armas‖351.
A partir desse novo enfoque, e provavelmente sobre influência das ponderações
de outro italiano, Bobbio 352, Cappelletti e Garth proclamam: ―o acesso à justiça pode, portanto
ser encarado como requisito fundamental – o mais básico dos direitos humanos – de um
sistema jurídico moderno e igualitário que pretenda garantias, e não apenas proclamar direitos
de todos.‖353
347
Ibidem, p. 7.
Ibidem, p. 8.
349
Cf. WATANABE, Kazuo. Acesso à justiça e sociedade moderna. In: GRINOVER, Ada Pelegrini;
DINAMARCO, Candido Rangel; WATANABE, Kazuo (coords.). Participação e processo. São Paulo: Revista
dos Tribunais, 1988, p. 135.
350
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Ob.cit., p. 9.
351
Ibidem, p. 15.
352
Bobbio analisando os direitos humanos fundamentais afirmou que ―o problema fundamental em relação aos
direitos do homem, hoje, não é tanto o de justificá-los, mas o de protegê-los. Trata-se de um problema não
filosófico, mas político.‖ (BOBBIO, Norberto. Ob. cit., p. 24).
353
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Ob.cit., p. 12.
348
108
E mais adiante arrematam: ―o ‗acesso‘ não é apenas um direito social
fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da
moderna processualítica.‖354.
Muito embora o acesso efetivo à justiça venha sendo considerado um direito
humano fundamental, ele ainda encontra diversos obstáculos na sua perfeita efetivação.
Os principais obstáculos a esse acesso identificados pelos autores são: a) custas
judiciais, àquelas propriamente ditas ou às indiretas (gastos com advogados, tempo para
manter uma causa etc.); b) diferentes possibilidades das partes, no tocante á disponibilidade
de recursos financeiros, aptidão para reconhecer um direito e propor uma ação ou sua defesa,
às diferenças evidentes entre os litigantes habituais e os eventuais; c) problemas especiais dos
interesses difusos, dada sua natureza difusa. 355
Com o fito de identificar mecanismos que permitissem superar esses obstáculos,
os autores apresentaram as soluções por meio das chamadas ―ondas‖ de acesso à justiça: a
primeira, diz respeito à assistência judiciária para os pobres; a segunda relaciona-se com as
reformas tendentes a proporcionar representação jurídica para os interesses transindividuais e
a terceira, denominada de ―enfoque de acesso à justiça‖, preocupa-se em superar o enfoque da
representação em juízo, direcionando-se ao que os autores denominaram de enfoque global de
acesso à justiça356.
Para nosso estudo tem maior relevância a segunda ―onda‖ de acesso à justiça, pois
é por intermédio dela que se vislumbra uma preocupação com a tutela processual dos
interesses transidividuais.
Para Cappelletti e Garth
A concepção tradicional do processo civil não deixava espaço para a proteção dos
direitos difusos. O processo será visto apenas como um assunto entre duas partes,
que se destinava à solução de uma controvérsia entre essas mesmas partes a respeito
de seus próprios interesses individuais. Direitos que pertencem a um grupo, ao
público em geral ou a um segmento do público não se enquadravam bem nesse
esquema. As regras determinantes da legitimidade, mas normas de procedimento e a
atuação dos juízes não eram destinadas a facilitar as demandas por interesses difusos
intentadas por particulares.357
É no âmbito da segunda ―onda‖, quando são estudados meios de proporcionar
representação jurídica efetiva e adequada para os interesses transindividuais, que ocorre a
354
Ibidem, p. 13.
Ibidem, p. 15-29.
356
Ibidem, p. 31-73.
357
CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Ob.cit., p. 50.
355
109
aproximação da família da common law com a romano-germâmica, pois o paradigma de
estudo utilizado por Cappelletti e Garth são as transformações ocorridas no sistema jurídico
norte-americano, notadamente a reforma da Rule 23 das Federal Rules of Civil Procedure, de
1966358.
A partir desse estudo, o sistema jurídico de tutela processual de interesses
transindividuais italiano aproxima-se do sistema norte-americano e, via de conseqüência, os
demais, que seguiram o modelo da Itália, como o Brasil.
Diante do exposto, podemos concluir que a aproximação dos sistemas jurídicos da
common law e da civil law, por meio da segunda ―onda‖ de acesso à justiça de Cappelletti,
assume especial relevo no desenvolvimento dos interesses transindividuais, principalmente,
no que concerne à tutela processual destes interesses.
5.2. OS INTERESSES TRANSINDIVIDUAIS COMO SUBESPÉCIES DE
DIREITOS HUMANOS FUNDAMENTAIS
No princípio de nosso trabalho, aventamos uma premissa, que norteou toda a
nossa explanação, qual seja: os direitos coletivos considerados como subespécies de direitos
humanos fundamentais.
Tal assertiva é de vital importância para nosso estudo, já que nem todo direito
atribuído ao ser humano pode ser considerado uma subespécie de direito humano
fundamental, sob pena de institucionalizar-se uma ―panjusfundamentalização‖359 dos mesmos.
E o fato de um direito enquadrar-se nessa condição faz com que ele seja considerado uma
norma medular do sistema jurídico em questão, dado seu efeito ―irradiante‖360.
Daí a importância de esquadrinhar tal proposição e constatar se a mesma é ou não,
de fato, verdadeira.
358
Sobre reforma de 1966 das class actions nos Estados Unidos e suas posteriores modificações, consulte: GIDI,
Antonio. Ob. cit.,2007, p. 57-66.
359
A ―panjusfundamentalização‖ é um fenômeno atribuído ao alargamento do rol de direitos humanos
fundamentais, que ao invés de reforçá-los pode colocá-los em sério risco de banalização, pois, com a inflação
destes direitos, acaba por se não distinguir adequadamente os (verdadeiros) direitos humanos fundamentais dos
que demais. (PINHO E NETTO, Luísa Cristina. Os direitos fundamentais e o perigo da
panjusfundamentalização. Del Rey Jurídica. ano 10, n. 19, jan./jul. 2008, p. 20-21).
360
Sobre a tese da irradiação dos direitos humanos fundamentais confira: ALEXY, Robert. Ob. Cit., p. 524-528.
110
Os direitos humanos fundamentais, enquanto gênero desses direitos essenciais
(atribuídos aos seres humanos), fragmentam-se em duas361 espécies: os direitos fundamentais
e os direitos humanos que, por sua vez, dividem-se em diversas subespécies. Portanto, para
que um direito seja considerado subespécie de direito humano fundamental ele deverá,
invariavelmente, se situar no campo dos direitos humanos (plano internacional) ou dos
direitos fundamentais (plano nacional).
E como nosso trabalho, desse ponto em diante, irá particularizar-se, não iremos
mais nos referir aos interesses metaindividuais de maneira genérica, mas inseridos na ordem
jurídica brasileira. Para constatarmos se os direitos coletivos, presentes no sistema jurídico
brasileiro, são subespécies de direitos humanos fundamentais teremos que perquirir se eles
integram o rol dos direitos fundamentais.
Porém, antes de iniciarmos esse processo de justificação (comprovação de
veracidade) de nossa assertiva, é necessário registrarmos que existem autores (Dworkin,
Berting e Donnelly) que criticam tanto a natureza fundamental quanto à de direito humano
dos direitos coletivos. O fundamento dessa corrente deriva da afirmação de que direitos
humanos ou fundamentais apenas têm por titulares indivíduos e não coletividades, e que os
direitos coletivos representam tão somente ―[...] esforços inadequados de realização dos
direitos individuais [...]‖362. Os direitos metaindividuais, por essa razão, seriam considerados
apenas ―[...] um ramo coletivo do direito privado, sem a natureza humana ou
fundamental.‖363.
Contudo, não nos afigura razoável, nem plausível, o argumento de que os direitos
humanos ou fundamentais (a depender de sua abrangência) refiram-se, apenas, a direitos de
indivíduos, já que a sociedade hodierna em que vivemos é essencialmente complexa e plural.
A dignidade humana não se presta somente à proteção de interesses individuais, mas
certamente de outros interesses.
Retomando a análise da proposição de que os direitos coletivos sejam subespécies
de direitos humanos fundamentais, é imperioso recordarmos os traços característicos dos
361
No primeiro capítulo incluímos os direitos do homem como outra espécie de direitos humanos fundamentais.
Eles foram concebidos como a espécie original dos direitos humanos fundamentais pela sua inequívoca
utilização no texto da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, que serviu para qualificá-los
como a espécie inicialmente positivada dos direitos humanos fundamentais. Vale lembrar que em nosso estudo
terminológico, o critério utilizado para distinguir as espécies de direitos humanos fundamentais, foi o da
consagração/emprego dos respectivos termos nos documentos normativos preponderantes da Historia. Nesse
sentido a Constituição de Weimar, de 1919, é considerada como a inauguradora da noção de direitos
fundamentais (no plano interno de cada Estado nacional) e a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de
1948, precedente normativo dos direitos humanos, cuja amplitude é nitidamente internacional.
362
SAMPAIO, José Adércio Leite. Ob. cit., p. 303.
363
Ibidem, p. 303.
111
direitos fundamentais, para, então, constatarmos se os direitos metaindividuais são suas
espécies ou não.
Na concepção alemã, os direitos fundamentais são aqueles qualificados como tais
pelo sistema jurídico vigente364. Essa fundamentalidade é oriunda do resultado de dois fatores,
formal e substancial, que fazem com que estes direitos ocupem o ápice da hierarquia
normativa e por meio deles sejam tomadas as decisões sobre a estrutura normativa básica do
Estado e da sociedade. Tais aspectos fazem com que as normas de direitos fundamentais
desempenhem papel central dentro do sistema jurídico de que fazem parte365.
Como o locus ideal para abrigar os direitos fundamentais é a Constituição do
Estado respectivo, para auferirmos se nossa premissa é verdadeira – os direitos coletivos
como espécies de direitos fundamentais e, portanto, subspécies de direitos humanos
fundamentais – teremos que dirigir nosso estudo para o sistema jurídico constitucional da
Carta Magna de 1988.
Antes, porém, precisamos estabelecer de que tipo é nosso sistema jurídico
constitucional.
Canotilho qualifica o sistema constitucional do Estado de Direito Democrático
português como um ―sistema normativo aberto de regras e princípios‖366. Tendo em vista que
a Constituição Brasileira de 1988 foi elaborada sob clara influência da Constituição
Portuguesa de 1976, bem como da Constituição Espanhola de 1978, podemos afirmar que
nossa Lei Fundamental, também, compõe-se de um ―sistema normativo aberto de regras e
princípios‖, que pode ser assim decomposto:
[1] é um sistema jurídico porque é um sistema dinâmico de normas; [2] é um
sistema aberto porque tem uma estrutura dialógica [Caliess], traduzida na
disponibilidade e ‗capacidade de aprendizagem‘ das normas constitucionais para
captarem a mudança da realidade e estarem abertas às concepções cambiantes da
‗verdade‘ e da ‗justiça‘; [3] é um sistema normativo, porque a estruturação das
expectativas referentes a valores, programas, funções e pessoas, é feita através de
normas; [4] é um sistema de regras e princípios, pois as normas do sistema tanto
podem revelar-se sob a forma de princípios como sob a forma de regras.367
Nessa perspectiva, para que os direitos coletivos sejam considerados direitos
fundamentais, basta que eles estejam insertos dentre os princípios e regras de direitos
fundamentais.
364
HESSE, Konrad. Ob. cit., p. 225.
ALEXY, Robert. Ob. cit., p. 520-523
366
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Ob. cit., p. 1159.
367
Ibidem, p. 1159.
365
112
Tal situação resta explicitamente configurada no Capítulo I ―Dos Direitos e
Deveres Individuais e Coletivos‖, integrante do Título II ―Dos Direitos e Garantias
Fundamentais‖ de nossa atual Constituição Federal. Portanto, fica bastante claro que ―a
rubrica do Capítulo I do Título II anuncia uma especial categoria dos direitos fundamentais:
os coletivos [...]‖.368
Diante disso, é inegável que o legislador constituinte originário brasileiro deu aos
direitos coletivos o status de norma de direito fundamental.
Não obstante a visível constatação de que os direitos coletivos são integrantes do
rol dos princípios e regras definidoras dos direitos fundamentais, no âmbito constitucional
positivo brasileiro, é imperioso comentar outro viés que denota a fundamentalidade dos
direitos coletivos na Constituição Federal de 1988.
Existem autores que afirmam existir uma espécie de norma jurídica constitucional
distinta dos princípios e das regras, são os chamados ―objectifs de valeur constitutionnelle‖,
considerados ―[...] une nouvelle catégorie juridique; ce sont des modes de corrélation entre
principes constitutionnels différents.‖369.
A noção de objetivos de valor constitucional aparece, na França, pela primeira
vez, na decisão do Conselho Constitucional n. 82-141 DC de 27 de julho de 1982, em que foi
analisada a aplicabilidade de uma lei relativa à comunicação audiovisual. Nesta decisão, o
conselho francês firmou o entendimento de que ―[...] les objectifs de valeur constitutionnelle
que sont la sauvegarde de l'ordre public, le respect de la liberté d'autrui et la préservation du
caractère pluraliste des courants d'expression socioculturels[...]‖370.
Depois dessa decisão foram reconhecidos outros objetivos de valor constitucional,
como a proteção da saúde pública; o respeito à liberdade alheia; a luta contra a fraude fiscal; a
possibilidade de qualquer pessoa humana dispor de um alojamento decente; o equilíbrio
financeiro da seguridade social e a acessibilidade e a inteligibilidade da lei371.
Muito embora a constatação da existência desses objetivos no sistema
constitucional francês, a hierarquia normativa que eles ocupam ainda não esta completamente
368
SILVA, José Afonso da. Ob. cit., p. 198.
FAURE, Bertrand. Les objectifs de valeur constitutionnelle: une nouvelle categorie juridique? Revue de Droit
Constitutionnel. Paris: PUF, n. 2, 1995 apud LUCHAIRE, François. Brèves remarques sur une création du
conseil constitutionnel: l‘objectif de valeur constitutionnelle. Revue de Droit Constitutionnel. Paris: PUF n. 64,
vol. 4, oct./déc. 2005, p. 682, diponible dans <http://www.cairn.info/search.php>. accès dans 12/6/2009.
370
Diponible dans <http://www.conseil-constitutionnel.fr/conseil-constitutionnel/francais/les-decisions/depuis1958/decisions-par-date/1982/82-141-dc/decision-n-82-141-dc-du-27-juillet-1982.7998.html>.
accès
dans
13/8/2009.
371
LUCHAIRE, François. Brèves remarques sur une création du conseil constitutionnel: l‘objectif de valeur
constitutionnelle. Ob. cit., p. 676-677.
369
113
definida. Porém, parece que há uma tendência considera-los como ―[...] disposition
constitutionnelle permettant d‘apporter des dérogations (limitées et sous le contrôle du
Conseil constitutionnel) à des príncipes constitutionnels.‖ 372. Ou seja, uma disposição
constitucional que poderia derrogar princípios constitucionais, mediante ação interpretativa do
Conselho Constitucional.
Já com referência ao sistema jurídico constitucional brasileiro, Palu constata que
os objetivos de valor constitucional estão disseminados pelo texto da Constituição de 1988 e
que os mesmo não representam ―[...] meras exortações ao Poder Público [...]‖373.
Os objetivos de valor constitucional estariam, portanto, espraiados pela nossa
Constituição, podendo ser encontrados no preâmbulo 374, artigos 1º375 e 3º376.
Palu divide-os em ―objetivos interesse‖ e ―objetivos constitucionais‖, ambos
considerados a confluência de direitos fundamentais, fins a serem perseguidos por todo e
qualquer Governo. Assim, alguns desses objetivos podem ser confundidos com interesses
transindividuais, que são considerados como ―[...] uma técnica processual de referir-se aos
valores constitucionais cuja lesão é transpessoal e cuja defesa jurisdicional pertence, via de
regra, a muitas pessoas, concomitantemente, e, ao mesmo tempo à nenhuma, em particular
[...]‖377.
Desse prisma, os direitos coletivos assumiriam não somente a configuração de
autênticos direitos fundamentais, mas seriam considerados verdadeiros objetivos de valor
constitucional, ou seja, fins a serem seguidos por todos os governantes, não importando qual
seja sua ideologia ou política de atuação.
372
Ibidem, p. 381.
PALU, Oswaldo Luiz. Controle dos atos de governo pela jurisdição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007,
p. 189.
374
―Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembléia Nacional Constituinte para instituir um
Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a
segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade
fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e
internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte
CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL.‖(g.n.).
375
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do
Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: [...]
IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa;‖
376
―Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
I - construir uma sociedade livre, justa e solidária;
II - garantir o desenvolvimento nacional;
III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.‖
377
PALU, Oswaldo Luiz. Ob. cit., p. 190.
373
114
5.3. TERMINOLOGIA
Antes de examinarmos os conceitos das espécies de direitos metaindividuais,
segundo o ordenamento jurídico brasileiro, algumas observações devem ser feitas para a exata
compreensão da temática em apreço, no tocante à terminologia adotada.
5.3.1. Direitos ou Interesses?
A primeira, repousa no problema terminológico entre os vocábulos ―direito‖ e
―interesse‖.
Constata-se que ao longo desse trabalho utilizamos esses substantivos
indistintamente; ora fizemos referência a ―direitos‖, ora a ―interesses‖, ambos acompanhados
de adjetivo.
Cabe, então, neste ponto, definir o que são ―direitos‖ e ―interesses‖ e se eles são
coisas distintas ou não.
Parece que se tratam de institutos distintos, já que a noção de interesse tem
sentido mais amplo que a de direito. Nem todo interesse recebe a proteção jurídica,
diferentemente do direito que sempre merecerá a tutela do ordenamento jurídico378.
Vejamos, então, as definições de cada um desses termos.
A palavra interesse é plurívoca379, apresentando diferentes sentidos 380, mas em
todos é perceptível a presença da noção de vantagem em relação a algo. Tanto que, Carnelutti
o define ―[...] como uma situação favorável à satisfação de uma necessidade‖ 381.
Desta forma, o termo interesse ―[...] interliga a pessoa a um bem da vida, em
virtude de um determinado valor que esse bem possa representar para aquela pessoa. A nota
378
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ação civil pública: comentários por artigo. 3. ed. rev., ampl. e atual.
Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 27.
379
SMANIO, Gianpaolo Poggio. Interesses difusos e coletivos: conceito de interesses difusos, coletivos e
individuais homogêneos, ação civil, inquérito civil, Estatuto da Criança e do Adolescente, consumidor, meio
ambiente, improbidade administrativa. 8. ed. São Paulo: Atlas, 2007, p. 1.
380
Os autores que talvez se tenham debruçado com maior intensidade no estudo do vocábulo ―interesse‖ foram
Mancuso e Prade, que apresentam os seguintes sentidos para o termo: jurídico (em sentido substancial, em
sentido instrumental e legítimo); social; geral; público (primário e secundário); privado; individual e
transidividuais (difusos, coletivos e individuais homogêneos). Cf. MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Ob. cit.
2004, p. 19-81; PRADE, Péricles. Conceito de interesses difusos. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987.
381
CARNELUTTI, Francesco. Lezioni di diritto processuale civile. vol. 1. Padova: CEDAM, 1986, p. 3 apud
ARAÚJO FILHO, Luiz Paulo da Silva. Ações coletivas: a tutela jurisdicional dos direitos individuais
homogêneos. Rio de Janeiro: Forense, 2000, p. 7.
115
comum é sempre a busca de uma situação de vantagem que faz exsurgir um interesse na posse
ou fruição daquela situação.‖382
Em um sentido exclusivamente jurídico, o interesse seria a relação existente entre
uma pessoa e um bem, em que este mostra-se capaz de satisfazer a uma necessidade daquela,
determinada na previsão geral e abstrata de uma norma.
Já o vocábulo ―direito‖, é unívoco, pois o sentido sempre será dado pelo
ordenamento jurídico383. Porém, o direito costuma ser dividido em objetivo e subjetivo.
O direito objetivo pode ser definido como ―[...] o complexo de normas jurídicas
que regem o comportamento humano, de modo obrigatório, prescrevendo uma sanção no caso
de sua violação (jus est norma agendi).‖ 384. Já o direito subjetivo seria ―[...] na possibilidade
de agir e de exigir aquilo que as normas de Direito [objetivo] atribuem a alguém como
próprio.‖385
Dito isso, conclui-se que o direito objetivo seria a própria norma jurídica, em
abstrato, sem sujeito; quando ela se concretiza, nasce o direito subjetivo, pertencente a um
determinado titular. Um não existe sem o outro. Daí a afirmação de Diniz, para quem: ―o
direito subjetivo é sempre uma permissão que tem o ser humano de agir conforme o direito
objetivo.‖386
Diante das diferenças constatadas entre os vocábulos ―interesse‖ e ―direito‖,
alguns doutrinadores preferem o emprego de um ou de outro termo.
Os autores que defendem o emprego dos ―direitos‖ pautam-se, basicamente, em
duas concepções.
Carvalho Filho salienta que todo interesse jurídico configura-se no núcleo do
direito subjetivo, e por isto:
[...] em que pese a divulgação da expressão interesses difusos e coletivos não só na
doutrina, como até mesmo no texto constitucional, a idéia que encerra há de ser a de
interesses juridicamente protegidos, vale dizer, interesses necessariamente
integrantes do círculo relativo aos direitos subjetivos. Quando se fala, pois, em
interesses difusos ou coletivos, dever-se-á conceber a noção de que se tratam de
direitos difusos ou coletivos. 387
382
MANCUSO. Rodolfo de Camargo. Ob. cit. 2004, p. 19-20.
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ob. cit., p. 27.
384
DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro: teoria geral do direito civil. vol. 1. 12. Ed. aum. e
atual. São Paulo: Saraiva, 1996, p. 10.
385
NADER, Paulo. Introdução ao estudo do direito. 6. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Forense, 1991, p. 333.
386
DINIZ, Maria Helena. Ob. cit., p. 13.
387
CARVALHO FILHO. José dos Santos. Ob. cit., p. 27.
383
116
Já Maciel Júnior sustenta que ―[...] a noção de interesse diferencia-se da de direito
em função do momento em que ambas se efetivam e realizam.‖ 388. Para ele, o interesse depois
de manifestado pelo seu titular – que será sempre individual – se reconhecido, via consenso
ou compulsoriamente pela jurisdição estatal, transforma-se em direito. Assim, o direito seria o
reconhecimento pela sociedade ou pelo judiciário da manifestação de um interesse individual.
Vejamos as palavras desse autor sobre tais termos:
Os direitos nascem da aceitação, do consenso sobre as manifestações dos interesses
dos sujeitos, ou do reconhecimento compulsório de validade do interesse
manifestado pelo sujeito e admitido pelo juiz em uma sentença.
Os interesses pertencem a uma fase pré-lógica, antecedente, e nunca se confundirão
com os direitos, que exigem um processo de validação dos interesses na sociedade
para que possam ser chamados de direitos.389
Para Maciel Júnior, não há que se falar em interesses difusos ou coletivos, mas em
direitos de indeterminação difusa ou coletiva. Portanto, quando há um conflito judicial
envolvendo um grupo de pessoas – unidas por um laço qualquer – o que se discute não são os
interesses desse grupo, pois tais interesses pertencem individualmente aos seus integrantes,
mas sim o direito daquele grupo.
Em contrapartida a estas duas noções, há quem prefira a utilização do vocábulo
―interesse‖. Os adeptos desta corrente buscam fundamento na ideia de que o direito subjetivo
foi elaborado sob o pálio de uma doutrina clássica essencialmente individualista do
Liberalismo, que somente concebia a proteção de direitos do indivíduo, singularmente
considerado.
Vejamos as considerações de Silva Neto:
[...] a noção de direito, de modo particular a de direito subjetivo, esta atrelada á
concepção liberal-individualista que não presenciava a possibilidade de existência de
direito que não estivesse preso a um sujeito certo, preciso e determinado e, portanto,
direito subjetivo somente seria identificável ao interesse individual. 390
Por isso, tal corrente compreende que o ―[...] estudo dos direitos metaindividuais
transcendentes da esfera individual do ser humano conduziria à [...] conclusão, no sentido de
ser incorreta a atribuição do status direitos a tais interesses.‖391.
388
MACIEL JÚNIOR, Vicente de Paula. Teoria das ações coletivas: as ações coletivas como ações temáticas.
São Paulo: LTr, 2006, p. 53.
389
Ibidem, p. 55.
390
SILVA NETO, Manoel Jorge e. Proteção constitucional dos interesses trabalhistas: difusos, coletivos e
individuais homogêneos. São Paulo: LTr, 2001, p. 23.
391
LENZA, Pedro. Teoria geral da ação civil pública. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003, p. 43.
117
Em oposição a essas duas correntes surge uma terceira, que prega a utilização
indistinta dos termos ―direitos‖ e ―interesses‖, pois se a própria norma definidora dos mesmos
(art. 81, parágrafo único da Lei n. 8.078/90) não os distinguiu, mas, os igualou; não cabe à
doutrina proceder de forma contrária.
O fundamento teórico desse posicionamento talvez encontre guarida na máxima
de Ihering, para quem o ―[...] direito é o interesse juridicamente protegido por meio de uma
ação judicial.‖392.
Ao comentar o Código de Defesa do Consumidor (Lei n. 8.079/90), Watanabe
constata e adere a tal corrente:
Os termos ‗interesses‘ e ‗direitos‘ foram utilizados como sinônimos, certo é que, a
partir do momento em que passam a ser amparados pelo direito, os ‗interesses‘
assumem o mesmo status de ‗direitos‘, desaparecendo qualquer razão prática, e
mesmo teórica, para a busca de uma diferenciação ontológica entre eles.393
Filiaremos a essa última, por ter sido a consagrada na ordem jurídica brasileira e
por não vislumbrarmos nenhum óbice no emprego de um ou outro substantivo. Na verdade, o
que realmente importa não é o nome que se dá a algo que mereça ser resguardado, mas a
efetividade que se alcança com esta proteção.
5.3.2. Metaindividuais, Transindividuais ou Coletivos?
A segunda observação terminológica refere-se ao adjetivo empregado como
indicativo de grupo de pessoas, que se segue aos substantivos ―direito‖ ou ―interesse‖.
Da mesma forma que utilizamos indiscriminadamente os substantivos (interesse e
direito), foram empregados os adjetivos ―metaindividuais‖, ―transindividuais‖ e coletivos,
para indicar os direitos ou interesses que extrapolam o indivíduo e pertencem a grupos de
pessoas.
Gidi, contudo, apresenta outros adjetivos e locuções adjetivas que podem ser
encontrados na doutrina e em instrumentos normativos pelo mundo afora: difusos, individuais
homogêneos, sociais, dispersos, programados, legítimos, públicos, difundidos, professionais,
fragmentários, anônimos, transpessoais, supraindividuais, superindividuais, pluri-individuais,
392
IHERING, Rudolf Von. Esprit du droit romain. v. 4, § 70 e s. apud DINIZ, Maria Helena. Ob. cit., p. 12.
GRINOVER, Ada Pelegrini [et. al]. Código de defesa do consumidor: comentado pelos autores do
anteprojeto. 5. ed. rei., atual. e ampli. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997, p. 623.
393
118
individuais plurais, plurisubjetivos, de coletividade, de comunidade, de classe, de série, de
394
setor, de categoria, sem estrutura, sem dono (adespoti), de incidência coletiva etc
.
Não vamos aqui tentar explicar o sentido de cada um deles, apenas eleger o mais
apto a expressar o gênero destes direitos ou interesses.
Nesta tarefa levaremos em conta a divisão estabelecida pela legislação
brasileira395, que apresenta as seguintes espécies desses direitos ou interesses: difusos,
coletivos e individuais homogêneos.
Diante disso, todas as expressões acima relacionadas, caso não sejam coincidentes
com essas três espécies, são consideradas aptas a denominar o gênero desses direitos ou
interesses.
No caso específico do adjetivo ―coletivo‖, se ele for empregado para sinalizar o
gênero desses direitos, basta que fique ressaltada esta condição geral v.g. direitos coletivos
lato sensu ou interesses coletivos em sentido amplo. Do contrário, em apreço a terminologia
empregada em nosso sistema normativo, a utilização do adjetivo ―coletivo‖ sem nenhuma
referencia deve dizer respeito à espécie.
Por fim, cabe mencionar que optaremos pelo empregado tão somente do adjetivo
―transindividual‖, com vistas a uma uniformização terminológica e em atenção à terminologia
utilizada pela Lei n. 8.078/90.
Essa também é a lição de Morais, que defende a utilização do adjetivo
―transindiviual‖ pelas seguintes razões:
Não se trata simplesmente de uma facilidade semântica atrelada à sua consagração
normativa pelo legislador. Significa, isto sim, um apelo a uma melhor compreensão
do objeto designado pelo signo, pois em se tratando de interesses envolvendo
conjuntos de interessados, importa referendar a idéia de que se trata de pretensões
que, embora ultrapassem o indivíduo singularmente definido, perpassam-no.
O prefixo trans permite, assim, que possamos apreender a idéia de que os interesses
ora debatidos, apesar de comuns(nitários), tocam imediata e individualmente [...]396
5.4. EVOLUÇÃO LEGISLATIVA BRASILEIRA
394
GIDI, Antonio. Rumo a um código de processo civil coletivo: a codificação das ações coletivas no brasil. São
Paulo: Forense, 2008, p. 203.
395
Art. 81, parágrafo único da Lei n. 8.078/90.
396
MORAIS, Jose Luis Bolzan de. Ob. cit., p. 126.
119
Em uma perspectiva geral, como já foi exposto, não existe consenso sobre a
gênese da tutela jurídica dos interesses transindividuais. Contudo, tomando-se como base uma
ordem jurídica particular essa tarefa torna-se possível.
Apresentaremos, de forma breve, a evolução legislativa brasileira da tutela
jurídica dos interesses transindividuais, para facilitar o entendimento de suas espécies.
Almeida menciona que as fases evolutivas da tutela jurídica no Brasil podem ser
divididas em três: ―fase da absoluta predominância individualista da tutela jurídica‖; ―fase da
proteção fragmentária dos direitos transindividuais ou fase da proteção taxativa dos direitos
massificados‖ e ―fase da tutela jurídica integral, irrestrita, ampla‖397.
A primeira fase compreende o período entre o surgimento do Estado brasileiro e a
promulgação da Constituição de 1934. Nesse tempo não se identifica, no País, a preocupação
com a tutela dos direitos transidividuais. A tutela jurídica era absolutamente individualista.
A segunda fase inicia-se com a Constituição de 1934 e vai até o fim da vigência
da Emenda Constitucional n. 1/69 à Constituição de 1967. Nessa fase o ordenamento jurídico
brasileiro passa a tutelar algumas espécies de direitos transindividuais. Contudo, a proteção
ainda mostra-se fragmentária, taxativa, com o predomínio da dimensão individualista da tutela
jurídica.
A norma inaugural da segunda fase está consubstanciada no art. 113, inc.
XXXVIII, da Carta de 1934, que assim dispunha: ―qualquer cidadão será parte legítima para
pleitear a declaração de nulidade ou anulação dos atos lesivos do patrimônio da União, dos
Estados ou dos Municípios.‖398. Esta norma instituiu constitucionalmente a Ação Popular.
A Constituição do Estado Novo (1937) foi silente sobre o instituto da Ação
Popular.
Em 1943, foi editado o Decreto-Lei n. 5.452 (Consolidação das Leis
Trabalhistas), ainda em vigor, que dispõe sobre os dissídios coletivos (arts. 513 e 856/875) –
uma forma de tutela jurídica de direitos transindividuais da classe trabalhadora.
Com a redemocratização, é promulgada a Constituição de 1946, que insere
novamente em seu texto, com redação idêntica à da Carta de 34, a disciplina da Ação Popular
no artigo 141, § 38.
Nesse período, há registros de leis infraconstitucionais esparsas disciplinando a
tutela coletiva, como: o art. 35, § 1º, da Lei n. 818/49 (relacionada à aquisição e perda de
397
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Ob.cit., 2008, p. 422-428.
Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituiçao34.htm>.
20/6/2009.
398
Acesso
em
120
direitos de nacionalidade e direitos políticos) e o art. 15, § 1º, da Lei n. 3.052/58 (impugnação
do enriquecimento ilícito)399.
Em 1965, por intermédio da edição da Lei n. 4.717, foram disciplinados os
aspectos processuais da Ação Popular.
Referencia-se, igualmente, o Decreto n. 83.540/79, que legitimava o Ministério
Público à propositura de ação de responsabilidade civil por danos decorrentes da poluição
com óleo. E a Lei n. 6.938/81, que, em seu art. 14, § 1º, consagrou a responsabilidade
ambiental objetiva, atribuindo também legitimidade ao Parquet para a propositura de ação por
danos causados ao meio ambiente.
Contudo, o momento crucial dessa fase é o advento da Lei da Ação Civil Pública
(Lei n. 7.347/85). Há quem diga que ela denota o início da mudança radical do sistema de
tutela jurídica coletiva no País400.
Registre-se que, tanto na Constituição de 1967 (art. 150, § 31), quanto em sua
Emenda Constitucional n. 1/69 (art. 153, § 31), foi mantida incólume a previsão da demanda
popular.
A terceira e última fase é iniciada com a promulgação da Constituição Cidadã de
1988, que inaugura, de vez, a tutela jurídica integral, irrestrita e ampla dos interesses
transindividuais.
Para o direito material coletivo ela foi, sem dúvida, o divisor de águas, pois
inseriu os direitos transindividuais no rol dos direitos fundamentais.
Ela proporcionou também diversas outras modificações no âmbito processual
como: a incorporação constitucional da ação civil pública (art. 129, III); a criação do mandado
de segurança coletivo (art. 5º, LXIX e XX) e do mandado de injunção (art. 5º, LXXI); a
ampliação do objeto material da ação popular para abranger também o meio ambiente e a
moralidade administrativa (art. 5º, LXXIII) e a concessão de legitimidade aos sindicatos para
atuarem como substitutos processuais na defesa dos direitos da categoria, inclusive em
questões judiciais ou administrativas (art. 8º, III).
Portanto, foi com o advento da Carta de 1988 que nosso ordenamento jurídico
rompeu com o plano predominantemente individualista e passou ao plano coletivo da tutela
jurídica ampla e integral.
Com a institucionalização desta novel ordem constitucional coletivizada, várias
normas infraconstitucionais foram editadas: Lei n. 7.853/89 (apoio às pessoas portadoras de
399
400
CF. LEONEL, Ricardo de Barros. Ob. cit., p. 54.
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Ob.cit., 2008, p. 424.
121
deficiência); Lei n. 7.913/89 (ação civil pública de responsabilidade por danos causados aos
investidores no mercado de valores mobiliários); Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do
Consumidor); Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente); Lei n. 8.429/92
(sanções aos agentes públicos nos casos de enriquecimento ilícito); Lei n. 8.884/94
(prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica); Lei n. 10.257/01 (diretrizes
gerais da política urbana); Lei n. 10.671/03 (Estatuto do Torcedor); Lei n. 10.741/03 (Estatuto
do Idoso); Lei n. 12.016/2009 (Mandado de Segurança Coletivo), entre outras.
De todas estas normas a mais importante é, sem dúvida, o Código de Defesa do
Consumidor, pois com ele foi instituído o chamado ―microssistema da tutela coletiva‖, de
caráter multidisciplinar.
Com o fito de sistematizar a tutela coletiva e condensá-la num único dispositivo
legal, foram elaborados, no Brasil, quatro projetos de Código de Processos Coletivos, a saber:
a) Código de Processo Coletivo um Modelo Para Países de Direito Escrito401; b) Anteprojeto
de Código Modelo de Processos Coletivos para Iberoamérica402; c) Anteprojeto de Código
Brasileiro de Processos Coletivos do Instituto Brasileiro de Processo Civil403; d) Anteprojeto
de Código Brasileiro de Processos Coletivos da Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro –
UERJ e da Universidade Estácio De Sá – UNESA404.
Contudo, parece que a ideia da elaboração de um Código de Processo Coletivo,
ainda não emplacou no Brasil, ao menos do ponto de vista legislativo, pois o Poder Executivo
Federal, mesmo diante desse intenso movimento doutrinário, optou por enviar ao Congresso
Nacional proposta de alteração à Lei da Ação Civil Pública.
401
De autoria de Antonio Gidi, o primeiro código de processos coletivos, foi elaborado em 2002 e publicado
originalmente na 111ª edição da Revista de Processo. Para conferir seu texto integral consulte: GIDI, Antonio.
Ob. cit., 2008, p. 445-459.
402
O anteprojeto iberoamericano foi elaborado por Ada Pelegrini Grinover, Kazuo Watanabe e Antonio Gidi e
apresentado nas XVIII Jornadas Iberoamericanas de Direito Processual, ocorrida em Montevidéo em outubro de
2002.(Cf. GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer (coords.). La tutela de los derechos difusos,
colectivos e individuales homogêneos: hacia un código modelo para iberoamérica. México: Editorial Porruá,
2004, p. 665-662).
403
O terceiro modelo e o primeiro criado especificamente para o Brasil foi desenvolvido no âmbito do Instituto
Brasileiro de Processo Civil, a partir de 2003, sob a coordenação de Ada Pelegrini Grinover, com a participação
do Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo – USP, do Ministério da
Justiça, Procuradoria Geral da Fazenda Nacional – PGFN e dos Ministérios Públicos de Minas Gerais, Paraná,
Rio Grande do Sul e São Paulo. Sua última versão é datada de janeiro de 2007 e se encontra disponível no
seguinte
endereço
eletrônico:
http://www.direitoprocessual.org.br/site/index.php?m=enciclopedia&categ=16&t=QW50ZXByb2pldG9zIGRvI
ElCRFAgLSBBbnRlcHJvamV0b3M=. Acesso em 20/6/2009.
404
O quarto modelo de código coletivo, e segundo para o Brasil, foi elaborado sob a coordenação de Aluisio
Gonçalves de Castro Mendes, sendo desenvolvido junto à Universidade Do Estado Do Rio De Janeiro – UERJ e
a Universidade Estácio De Sá – UNESA e finalizado em agosto de 2005. Disponível:
<http://www.direitouerj.org.br/2005/download/outros/cbpc.doc>. Acesso em 20/6/2008.
122
Desse modo, encontra-se em trâmite no Parlamento nacional, desde o dia
24/4/2009, o Projeto de Lei n. 5.139/09, que ―disciplina a ação civil pública para a tutela de
interesses difusos, coletivos ou individuais homogêneos, e dá outras providências.‖
De acordo com o último andamento de 3/6/2009, o projeto de lei aguarda
realização de audiência pública, no âmbito da Comissão de Constituição e Justiça e de
Cidadania, e já conta com 11 emendas parlamentares 405.
5.5. ESPÉCIES DO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Quando falamos em espécies de interesses transindividuais, temos que recordar a
lição de Almeida, para quem a ordem jurídica brasileira adotou uma ―[...] concepção tripartite
legalmente estabelecida sobre os direitos coletivos [...]‖406 em sentido estrito, evidentemente.
Desse modo, a Lei n. 8.078/90 (Código de Defesa do Consumidor) estabeleceu
como espécies de interesses transindividuais: os difusos, coletivos e individuais homogêneos.
Vejamos o dispositivo na integra:
Art. 81. [...]
Parágrafo único. A defesa coletiva será exercida quando se tratar de:
I - interesses ou direitos difusos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas
indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato;
II - interesses ou direitos coletivos, assim entendidos, para efeitos deste código, os
transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe
de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;
III - interesses ou direitos individuais homogêneos, assim entendidos os decorrentes
de origem comum.407
Comentaremos cada uma dessas espécies.
5.4.1. Interesses ou Direitos Individuais homogêneos
405
Cf.<http://www2.camara.gov.br/proposicoes/chamadaExterna.html?link=http://www.camara.gov.br/sileg/prop
_detalhe.asp?id=432485>. Acesso em 2/7/2009.
406
ALMEIDA, Gregório Assagra de. Direito processual coletivo brasileiro: um novo ramo do direito processual
(princípios, regras interpretativas e a problemática da sua interpretação e aplicação). São Paulo: Saraiva, 2003,
p. 365.
407
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil/leis/l8078.htm>. Acesso em 2/7/2009.
123
Os interesses individuais homogêneos são definidos pela lei consumerista,
simplesmente, como aqueles ―decorrentes de origem comum‖.
A resumida conceituação legal rendeu uma diversidade de posições na doutrina e
na jurisprudência, que tem impedido ou dificultado sua exata compreensão, bem como, o
adequado tratamento de sua tutela.
Já no Projeto de Lei da Ação Civil Pública, seu conceito legal foi alongado,
proporcionando mais clareza à significação:
Art. 2º [...]
III - individuais homogêneos, assim entendidos aqueles decorrentes de origem
comum, de fato ou de direito, que recomendem tutela conjunta a ser aferida por
critérios como facilitação do acesso à Justiça, economia processual, preservação da
isonomia processual, segurança jurídica ou dificuldade na formação do
litisconsórcio.408
De todo modo, impera na atual ordem normativa brasileira o conceito legal de que
os direitos individuais homogêneos são aqueles decorrentes de origem comum. Portanto, é
compreensível que pairem dúvidas sobre eles.
Com o fito de tentar clarificar seu sentido, alguns doutrinadores aventuraram-se a
conceituá-los.
Mazzili afirma que os ―[...] interesses individuais homogêneos são aqueles de
grupo, categoria ou classe de pessoas determinadas ou determináveis, que compartilhem
prejuízos divisíveis, de origem comum, normalmente oriundos das mesmas circunstâncias de
fato.‖409
Contudo, não nos parece que seja congruente afirmar que determinados interesses
possam ser ―individuais‖ e ao mesmo tempo pertencerem a ―grupos, categorias ou classes de
pessoas‖. Melhor seria que eles se enquadrassem numa ou noutra categoria.
Conforme a lição de Zavascki, os interesses individuais homogêneos são ―[...]
simplesmente direitos subjetivos individuais [...]‖410. Ou seja, eles designam um conjunto de
direitos subjetivos individuais de origem comum, que em razão de sua homogeneidade,
podem ser tutelados coletivamente. Portanto, esses direitos não representam um novo direito
material coletivo, mas uma nova classificação de direitos subjetivos individuais.
408
Disponível em:<http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em 10/8/2009.
MAZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo: meio ambiente, consumidor, patrimônio
cultural, patrimônio público e outros interesses. 19 ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 53.
410
ZAVASKI, Teori Albino. Processo coletivo: tutela de direitos coletivos e tutela coletiva de direitos. 2 ed.
rev. e atual. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2007, p. 42-43.
409
124
Desse modo, os direitos individuais homogêneos não passam de direitos
individuais que receberam tratamento processual coletivo, por autorização do texto
constitucional (art. 129, inc. III) e por ação do legislador ordinário. Vejamos as considerações
de Leonel, neste particular:
O tratamento processual coletivo conferido a estes interesses decorre da
conveniência da aplicação a eles de técnicas da tutela coletiva. Sua implementação
configura opção de política legislativa. Na essência são interesses individuais e nada
impede a demanda atomizada de cada qual dos titulares, como v. g. obtenção de
indenização a título pessoal pelos danos sofridos.411
Antes da entrada em vigor da Constituição Federal de 1988 e do Código de
Defesa do Consumidor, Moreira já mencionava a existência de direitos ―acidentalmente
coletivos‖. Para ele, tais direitos seriam referíveis individualmente a vários membros de uma
coletividade atingida por um determinado evento, e que, em razão da dimensão social (grande
número de interessados) ocasionada pelo dano, restaria inviabilizada ou inconveniente a
utilização dos meios comuns (tutela individual) de proteção jurisdicional412.
Por essa razão, Vigliar os denomina de ―categoria virtual de interesses
coletivos‖413.
No tocante a sua proteção juridicional, Zavascki fala em ―tutela coletiva de
direitos (individuais)‖414.
Os interesses individuais homogêneos devem ser entendidos como espécies de
interesses transindividuais 415 sob o aspecto processual, de tutela. Portando, seriam direitos
formalmente ou processualmente coletivos.
Com base no exposto, esses direitos podem ser caracterizados por: uma
titularidade determinada ou determinável; tratar-se de direitos efetivamente individuais; ter
seu objeto de tutela divisível e nascerem de um fato comum.
5.4.2. Interesses ou Direitos Coletivos
411
LEONEL, Ricardo Barros. Ob. cit., p. 108.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. In: MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Temas de direito processual: terceira série. São Paulo: Saraiva, 1984, p. 196-197.
413
VIGLIAR, José Marcelo. Ações coletivas. Salvador: Jus Podivm, 2007, p. 37.
414
ZAVASKI, Teori Albino. Ob. cit.
415
O Supremo Tribunal Federal no Recurso Extraordinário n. 163231/SP, julgado em 26/2/1997, em que fora
Relator o Ministro Maurício Correa decidiu a favor da tese de que os interesses individuais integram o rol dos
interesses metaindividuais, in verbis: ―Direitos ou interesses homogêneos são os que têm a mesma origem
comum (art. 81, III, da Lei n 8.078, de 11 de setembro de 1990), constituindo-se em subespécie de direitos
coletivos.‖. Em recente decisão, o mesmo tribunal, Guardião da Constituição, reiterou a decisão de 1997, por
intermédio do Recurso Extraordinário n. 332545 /SP, julgado em 6/5/2005, sob a relatoria do Ministro Gilmar
Mendes, confirmando aquele posicionamento. Disponível em:<http://www.stf.jus.br>. Acesso em 12/8/2009.
412
125
Antes de mais nada, é bom que fique claro que estamos tratando aqui de interesses
coletivos stricto sensu.
Os interesses ou direitos coletivos são conceituados legalmente como ―os
transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, categoria ou classe de
pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base‖.
Percebe-se que esse conceito restou bem mais claro do que o dos individuais
homogêneos.
No texto do Projeto de Lei n. 5.139/09, a única diferença reside na explicitação de
seu sentido estrito; o que nos parece razoável. Vejamos:
Art. 2º [...]
II - coletivos em sentido estrito, assim entendidos os transindividuais, de natureza
indivisível, de que seja titular grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si
ou com a parte contrária por uma relação jurídica base;416
Mazzili define os interesses coletivos como os ―[...] transindividuais indivisíveis
de um grupo determinado ou determinável de pessoas, reunidas por uma relação jurídica
básica comum.‖417.
Com relação a esses interesses, e diante da clareza da conceituação legal e
doutrinária, cumpre, apenas, decompor tal definição.
Quanto à transindividualidade não restam dúvidas de que se tratam de direitos de
fruição coletiva, diferentemente dos individuais homogêneos. Por isso, esses direitos são
chamados por Moreira como ―essencialmente coletivos‖418, e sua proteção jurisdicional é
definida por Zavascki como ―tutela coletiva de direitos‖419.
A natureza indivisível determina que o objeto do direito coletivo não seja passível
de fragmentação. Uma consequência lógica da transindividualidade.
Com relação à titularidade grupal determinada ou determinável, significa dizer
que os titulares desses direitos podem ser todos identificados.
Parece que a dúvida persiste, tão somente, com referência ao que seria ―relação
jurídica base‖.
416
Disponível em:<http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em 15/8/2009.
MAZILLI, Hugo Nigro. Ob. cit., p. 52.
418
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Tutela jurisdicional dos interesses coletivos. In: MOREIRA, José Carlos
Barbosa. Ob. cit., 1984, p. 196-197.
419
ZAVASKI, Teori Albino. Ob. cit.
417
126
A relação jurídica base ou básica, que une os titulares do direito coletivo, será a
nota distintiva destes.
Em 1977, Moreira já dizia que o interesse coletivo liga ―[...] um grupo mais ou
menos vasto de pessoas, em razão de vínculo jurídico que as une a todas entre si, sem no
entanto situar-se no próprio conteúdo da relação plurissubjetiva [...]‖420.
Prade, em momento antecedente ao Código de Consumo também relacionava os
direitos coletivos a um determinado vínculo jurídico. Vejamos:
Os interesses coletivos, sob a mira formal, são os pertinentes aos fins institucionais
de determinada associação, corporação ou grupo intermediário, decorrendo
necessariamente de um prévio vínculo jurídico que une os associados, sujeitando-se
a regime jurídico próprio.421
Mas em que consistiria essa relação jurídica base?
Para responder a esta pergunta, recorremos a Watanabe que menciona que a ―[...]
relação jurídica base é preexistente à lesão ou ameaça de lesão do interesse ou direito do
grupo, categoria ou classe de pessoas. Não a relação jurídica nascida da própria lesão ou da
ameaça de lesão.‖422.
Portanto, não é a lesão em si que faz surgir a chamada relação jurídica base. Na
verdade, é a própria existência prévia do grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si
ou com a parte contrária por meio de um vínculo jurídico básico, que faz nascer para os
integrantes desses agrupamentos determinados ou determináveis o interesse coletivo. Assim,
os titulares desses direitos estão previamente ligados por um liame de ordem jurídica, entre si
ou com a parte causadora do eventus damni.
Para que se configure este vínculo jurídico, típico dos direitos coletivos, Mancuso
adverte que é necessário que haja organização pra se configurar um grupo determinado ou
determinável. Para ele, ―sem um mínimo de organização, os interesses não podem se
‗coletivizar‘, não podem se aglutinar de forma coesa e eficaz no seio de um grupo
determinado.‖423.
420
MOREIRA, José Carlos Barbosa. Ação popular no direito brasileiro como instrumento de tutela jurisdicional
dos chamados ―interesses difusos‖. In: MOREIRA, José Carlos Barbosa. Temas de direito processual: primeira
série. São Paulo: Saraiva, 1977, p. 111.
421
PRADE, Péricles. Ob. cit., p. 60.
422
GRINOVER, Ada Pelegrini [et. al]. Ob. cit., 1997, p. 626.
423
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. cit., p. 60.
127
Do exposto, conclui-se que os interesses coletivos apresentam: grupo com um
mínimo de organização; transindividualidade; titulares determinados ou determináveis; objeto
em questão indivisível e vínculo jurídico entre eles ou com a parte contrária.
5.4.3. Interesses ou Direitos Difusos
Os interesses ou direitos difusos são definidos pela Lei n. 8.078/90, como ―os
transindividuais, de natureza indivisível, de que sejam titulares pessoas indeterminadas e
ligadas por circunstâncias de fato‖.
Tal conceito foi integralmente repetido na proposta legislativa de alteração da Lei
da Ação Civil Pública, em trâmite no Congresso Nacional, in verbis:
Art. 2º [...]
I - difusos, assim entendidos os transindividuais, de natureza indivisível, de que
sejam titulares pessoas indeterminadas, ligadas por circunstâncias de fato;424
Como se vê, talvez este seja o conceito que menos tenha suscitado
questionamentos, já que se apresenta bastante claro.
Prade, antes da elaboração deste conceito pela legislação, já definia esses direitos
como ―[...] os titularizados por uma cadeia abstrata de pessoas, ligadas por vínculos fáticos
exsurgidos de alguma circunstancial identidade de situação, passíveis de lesões disseminadas
em todos os titulares, de forma pouco circunscrita e num plano de abrangente
conflituosidade.‖425.
Os direitos difusos serão, portanto, a segunda espécie de direitos ―essencialmente
coletivos‖ e sua proteção jurisdicional dar-se-á por meio de ―tutela coletiva de direitos‖.
Esses interesses diferenciam-se dos coletivos em apenas dois pontos. Primeiro,
porque não se vislumbra neles a presença de uma relação jurídica base. O vínculo que lhes
proporciona união é uma mera circunstancia de fato, ou seja, um determinado evento terá o
condão de ligar uma miríade de pessoas. Segundo, consectário lógico do primeiro a ligação
entre os titulares desse direito é simplesmente fática, o número de pessoas afetadas terá que
ser indeterminado.
Se nos direitos coletivos exigia-se um mínimo de organização, nos difusos ela não
é pertinente, sequer existe. O que liga seus titulares não é mais uma relação preexistente entre
424
425
Disponível em:<http://www2.camara.gov.br/proposicoes>. Acesso em 20/8/2009.
PRADE, Péricles. Ob. cit., p. 61.
128
eles (direitos coletivos), mas sim o evento danoso em si que atingirá um contingente
incalculável de pessoas.
Feitas estas considerações, é oportuno elencar as características dos direitos
difusos, conforme Mancuso: indeterminação dos sujeitos; indivisibilidade do objeto; intensa
conflituosidade; transição ou mutação no tempo e no espaço (duração efêmera,
contingencial).426
426
MANCUSO, Rodolfo de Camargo. Ob. cit., p. 93-110.
129
CONCLUSÃO
Da pesquisa que ora se encerra, extraíram-se diversas conclusões a respeito da
trajetória evolutiva dos direitos humanos fundamentais até a revelação e o desenvolvimento
da concepção dos interesses transindividuais.
A seguir são expostas em tópicos e sistematicamente as principais conclusões da
dissertação.
1. Utiliza-se, tanto na doutrina quanto em instrumentos normativos uma
diversidade de termos designativos dos direitos humanos fundamentais, sem que se atine para
o exato significado semântico pretendido, ou seja, sem o rigor científico. Diante disso
conclui-se que é salutar, em todo estudo desses direitos, que se estabeleça, e por critérios
prévios e justificáveis, um perfil terminológico rigoroso, o qual previna o uso de expressões
inadequadas ou que gerem dúvida quanto o seu alcance.
2. Dentre as inúmeras expressões designativas dos direitos afetos aos seres
humanos, a mais apta a designar o gênero desses direitos é a locução ―direitos humanos
fundamentais‖, pois nela estão contidas as duas espécies atualmente existentes desses direitos.
Já as espécies dos direitos humanos fundamentais, segundo o critério da abrangência e do
emprego de expressões em documentos normativos que tiveram um valor preponderante na
História e que marcaram as linhas de evolução desses direitos, podem ser assim elencadas: a)
―direitos do homem‖ como a espécie inaugural, prevista no texto da Declaração de Direitos do
Homem e do Cidadão de 1791, enquanto marco de positivação; b) ―direitos fundamentais‖, a
espécie que designa os fundamentos políticos no âmbito interno dos Estados nacionais,
empregada no texto da Constituição de Weimar, de 1919, como marco da generalização; c)
―direitos humanos‖, a espécie que designa os direitos essenciais no plano internacional,
utilizada no texto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, como marco da
internacionalização. Residualmente, subespécies de direitos humanos fundamentais
consideram-se as demais expressões, desde que elas reúnam os requisitos da
fundamentalidade formal e material preconizada por Alexy para os direitos fundamentais, mas
que são válidas para caracterizar todos os direitos humanos fundamentais.
3. Os direitos humanos fundamentais são direitos essencialmente históricos,
oriundos de batalhas em defesa de novas liberdades contra velhos poderes. Assim, esses
direitos vinculam-se à recognição da dignidade da pessoa humana e têm sua gênese no ideário
cristão da antiguidade de que os seres humanos são iguais perante Deus.
130
4. Muito embora não sejam reconhecidas como autênticas expressões normativas
que possibilitaram a positivação dos direitos humanos fundamentais, as manifestações de
rebeldia corporificadas pelos pactos, cartas de franquias e forais medievais tiveram papel
preponderante na positivação desses direitos, exteriorizada pela Declaração de Direitos do
Bom Povo de Virgínia, de 1776, e pela Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de
1789. Após o marco de sua positivação, os direitos humanos fundamentais generalizaram-se
pelos ordenamentos jurídicos das constituições dos Estados nacionais mundo afora.
5. A trajetória dos direitos humanos fundamentais, nos contornos do movimento
constitucionalista do ocidente, pode ser sistematizada por intermédio da conhecida
classificação geracional de direitos. Seguindo a linha traçada por Karel Vazak, vislumbra-se a
existência de três gerações de direitos com base no lema da revolução francesa: liberdade,
igualdade e fraternidade.
6. A primeira geração de direitos apresenta os seguintes elementos
caracterizadores: a) tem como ―direito-chave‖ a liberdade; b) a função do Estado é
basicamente uma omissão; c) a eficácia vinculativa principal da norma volta-se para o Estado;
d) é uma espécie de direito individual; e) está calcada na concepção de Estado Liberal. A
segunda geração apresenta os seguintes: a) ―direito-chave‖ é a igualdade; b) função estatal, na
maioria das vezes, consiste numa ação promocional, embora nem toda ela seja prestacional; c)
a eficácia vinculativa principal da norma volta-se para o Estado; d) gênese de direitos de
titularidade coletiva; e) norteia-se na concepção política do Estado de Direito Social. E a
terceira geração, por sua vez, tem sua nota distintiva consubstanciada nas seguintes
características: a) ―direito-chave‖ consubstanciado na fraternidade; b) de certo modo, rompe
com a ideia de Estado nacional com soberania plena; c) a eficácia vinculativa principal da
norma volta-se para todos; d) titularidade transindividual ou coletiva máxima.
7. Os interesses transidividuais evidenciam-se, originalmente, na Sociedade
Contemporânea, por intermédio da chamada ―luta de classes‖ ocorrida após a Revolução
Industrial, que fraturou a sociedade em duas classes sociais distintas e antagônicas: a
burguesia e o proletariado. Tais interesses surgem, portanto, no âmbito do Estado Social de
Direito, quando são cunhados os direitos de segunda geração. Por meio deles, buscava-se
igualar ou, pelo menos, amenizar as profundas situações de desigualdade entre as classes
sociais da época. Desse modo, os direitos de segunda geração sinalizam o início da ruptura do
paradigma da titularidade individual dos direitos humanos fundamentais, pois na segunda
geração de direitos, dominada pela igualdade material, os seres humanos são considerados,
empiricamente e num contexto ou numa situação que os une, como grupo ou classe. O
131
nascimento desses direitos resta claramente configurado na superação da dicotomia clássica
direito público/direito privado por uma nova summa divisio direito individual/coletivo.
8. Os interesses transidividuais desenvolvem-se com maior ênfase quando o
Estado de Bem-Estar Social entra em crise. Surgem, então, os ―novos movimentos sociais‖,
que se apresentam como autênticos sujeitos de direitos coletivos, responsáveis, inclusive, por
uma produção normativa alternativa, a qual rompe com as barreiras do positivismo clássico.
Tais movimentos serão responsáveis pela deflagração do ―movimento de coletivização do
Direito‖, ocorrido no seio da sociedade pós-moderna, dominada pelo neoliberalismo,
globalização e pluralismo em todos seus aspectos.
9. O reconhecimento dos interesses transindividuais como subespécies de direitos
humanos fundamentais não implica em ocorrência do fenômeno da ―panjusfundamentação‖.
Com esse reconhecimento, não se balizam antigos direitos, reforçam-se novos. Por isso, os
interesses transindividuais devem integrar o rol dos direitos humanos fundamentais, conforme
sua abrangência; internacionalmente como direitos humanos, ou internamente, dentro de cada
Estado, sob a forma de direitos fundamentais. No caso do vigente sistema jurídico
constitucional brasileiro, os interesses transindividuais foram expressamente inseridos no rol
dos direitos fundamentais. E, ainda, seguindo-se a sistemática francesa, eles comporiam a
espécie normativa denominada de ―objetivos de valor constitucional‖, sinalizando verdadeiros
fins a serem perseguidos pelo Estado brasileiro – fins que não caducam e devem ser
observados por todo e qualquer governante.
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