DOI: 10.4025/4cih.pphuem.356 GROTIUS, FREITAS E O TRATADO

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DOI: 10.4025/4cih.pphuem.356
GROTIUS, FREITAS E O TRATADO DE HAYA EM 1641
Lúcia Chueire Lopes
Mestranda no Programa de Pós
Graduação em História,
Universidade Federal do Paraná.
Este trabalho surgiu de um conjunto de preocupações que cercam a pesquisa de minha
dissertação de mestrado, trabalho cujo principal objetivo é compreender de que forma as
argumentações jurídicas de Hugo Grotius e do Frei Serafim de Freitas, escritas em meados do
século XVII, auxiliaram na composição das Tréguas e Tratados de Paz entre Portugueses e
demais potências européias depois do fim da União Ibérica. Entende-se que o suposto debate
travado entre os pensadores contribuiu para a forma como europeus pensaram as questões de
direito, soberania e relações internacionais a partir de 1625.
O texto está, então, organizado da seguinte forma: a princípio fez-se uma explanação
sobre a conjuntura que levou os pensadores a versar sobre diplomacia e relações
internacionais, apresentando o cenário europeu em fins do século XVI e começo do XVII. Na
seqüência propôs-se contribuir para compreensão do pensamento destes autores, buscando suas
fundamentações teóricas e discutindo as principais bases de suas argumentações. Discorreu-se
então sobre o momento de restauração da soberania portuguesa e de suas relações de paz,
sendo feita, por fim, uma breve análise do Tratado de Haya de 1641, travado entre Portugal e
Holanda, buscando as contribuições de Grotius e Freitas nas relações diplomáticas, bem como
levantando questões concernentes aos tratados futuros.
***
As questões aqui trabalhadas são decorrentes das mudanças político sociais ocorridas
no continente europeu dentre os séculos XVI e XVII. O domínio espanhol sobre Portugal, a
independência dos Países Baixos e a entrada de Portugal, França e Holanda no movimento
expansionista foram responsáveis pela configuração de uma nova lógica comercial e política
dentre as potências do Velho Mundo, e esta nova lógica rendeu diversas disputas e conflitos.
No entanto, com a separação das Coroas Ibéricas e retomada da soberania portuguesa
inaugurou-se um período de paz na Europa. Países como Holanda, França e Inglaterra, que
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atacavam as posses ultramarinas lusitanas, em parte o faziam por estarem em guerra com a
Espanha –pois antes da União Ibérica sempre tiveram boas relações com os portugueses -, de
forma que aceitaram negociar termos de paz uma vez que Portugal estava novamente livre do
domínio espanhol. Dentre os anos de 1640 e 1668 uma série de tratados de paz foi assinado
entre Portugal e outros países europeus, a saber: A Trégua dos 10 anos, entre Holanda e
Portugal, em 1640; o Tratado de Paz e Aliança com Inglaterra, em 1654; o Tratado de Aliança
com França, em 1655; o Tratado de Paz com Holanda, em 1661; e, por fim, o Tratado de Paz
com Espanha, em 1668. Movimentação que reitera a vocação para paz que defendeu o reino de
Portugal no período.
E em que se dá a importância de Freitas e Grotius nestas negociações de paz? É preciso
recuar um pouco. Sob o direito de descoberta, Portugal reivindicou o domínio dos novos mares
e terras encontrados no século XV, sem maiores problemas para os demais países. Até 1580
manteve boas relações com os reinos europeus, e era capaz de negociar boas relações de trocas
com Inglaterra, França e Países Baixos: autorizavam a utilização de seus portos, de forma que
esses reinos tivessem acesso aos produtos que comercializavam com as Índias, e também
fizessem a distribuição dentro da Europa. A União das Coroas Ibéricas modificou o panorama.
Os Países Baixos encontravam-se em guerra contra Espanha desde meados do século
XVI, buscando sua Independência, declararam-se livres em 1579, todavia, sem o
reconhecimento dos espanhóis que mantiveram as atividades belicosas. A indisposição entre
os dois reinos refletiu-se na configuração das relações comerciais durante a União Ibérica. Em
maio de 1585 os espanhóis apreenderam todas as naus holandesas, alemãs e inglesas nos
portos peninsulares; o que desencadeou uma resposta inglesa, proibindo naus hispânicas em
seus portos, e uma neerlandesa proibindo comércio com Espanha e Portugal. Em abril do ano
seguinte a Espanha suspendeu o comércio com esses países. Neste meio tempo a Holanda
desenvolveu um grande poderio econômico e naval, e entendia que, já que não poderia
negociar em portos lusos, deveria buscar novas paragens – como por exemplo Cabo Verde.
Em 1588 essa nova potencia foi capaz de derrotar a Grande Armada Hispânica, o que resultou
em um afrouxamento das restrições das Coras à Holanda. Em 1595 Espanha retomou o
embargo aos Países Baixos e, novamente, travaram-se relações hostis.
As novas hostilidades tiveram duas importantes conseqüências: a criação da
Companhia das Índias Holandesas Orientais, em 1602, e o rapto da Nau Santa Catarina em
1603. Capturada entre Macau e Goa, esta foi a mais rica nau portuguesa vinda das índias, e
sua captura resultou em grande prejuízo para a Coroa hispânica. Um pouco mais adiante, em
1605, holandeses tomaram um forte português em Amboyna, e firmaram-se no comércio de
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especiarias nas Índias, negociando com asiáticos e também com europeus. Em decorrência da
insatisfação ibérica, instaurou-se a partir deste ano, um processo investigativo quanto à
questão da nau, e é então que Grotius entra em cena. Sob encomenda da Companhia das
Índias Orientais, o historiador escreve Iure Praedae, manifesto em ataque ao domínio lusoespanhol, cujo sétimo capítulo foi publicado anônimo, em 1608 (a autoria só foi atribuída a
Grotius em 1864), intitulado Mare Liberum.
Grotius, nas páginas de seu manifesto, discutiu a soberania portuguesa no oriente,
sobre as terras e, em especial, sobre os mares, rejeitando todos os títulos de posse sobre os
quais os portugueses legitimavam seu domínio. Seu capítulo foi bastante comentado dentre os
mercadores, juristas e conselheiros do governo holandês, porém, só alcançou Portugal cerca
de 10 anos depois. O governo ibérico optou por não responder oficialmente o ataque contido
no manifesto. Poucos anos depois, no entanto, em 1625, foi publicada uma obra em resposta,
pelo Frei Serafim de Freitas. “Do Justo Império Asiático”, na qual o autor refutou cada um
dos argumentos de Grotius, apresentando um texto altamente apologético ao pontificado
romano e a grandeza dos serviços de Portugal e seus homens.
O debate sobre a liberdade dos mares e direito de navegação e comércio, no entanto é
anterior a estes pensadores. Em 1539, Francisco de Vitória, em seu De indis ET jure belli
relectiones, deu início a discussão sobre esta questão. Recorro a um artigo de Anthony
Pagden para a revista Mare Liberum (PAGDEN, 2000), no qual o autor nos apresenta alguns
a argumentação de Vitória, e, na seqüência a apropriação e contestação feitas por Grotius e
Freitas.
Na tentativa de defender a conquista hispânica na América, Vitória apresentou uma
série de títulos que a legitimava, dentre os quais um nos salta aos olhos (da mesma maneira
que fez com Grotius): o Direito de “parceria” e comunicação, que prevê que, de acordo com
as leis da natureza, todos os homens tem direito de visitar e viajar por qualquer lugar que
desejem.
Esta é uma alusão ao antigo costume grego compreendido como direito natural.
<<dentre todas as nações, escreveu Vitória, é considerado desumano tratar viajantes
mal sem algum motivo em especial, humanos tem obrigação de ser hospitaleiros
com estrangeiros. (...) no principio do mundo todos eram autorizados a visitar e
viajar pelas terras que quisessem>>. (PAGDEN, 2000, pp.41)
*tradução livre.
O pensador quinhentista afirmava ainda que este direito era superior ao direito de divisão de
propriedade nas sociedades civis e, não apenas a comunicação era um direito, como também o
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era o comércio. Argumento este advindo de uma tradição humanista que compreendia o
comércio como prática necessária para a sociabilidade humana. O jurista espanhol alegava,
por fim, que a violação deste direito era causa de guerra justa.
Afirmando que o comércio só pode ser livre, Vitória instaurou o princípio de um
longo debate em torno de duas questões: o questionamento das noções de soberania, bem
como a compreensão do lugar que o comércio deveria ocupar nas relações internacionais.
Com a configuração de acirradas rivalidades entre as potências européias no século
XVII, a questão do comércio e passagem tornou-se de extrema importância para as relações
de paz. Ao redigir a defesa holandesa sobre o rapto da nau Santa Catarina, Grotius preocupouse em demonstrar que os portugueses não poderiam reivindicar o domínio sobre os mares e
afirmou que dessa forma impediriam o comércio e a comunicação. “Poderia alguma nação
impedir as demais de navegarem para outras, de trocar com as demais, na verdade, de se
comunicar com as outras?” (PAGDEN, 2000, pp.45). Destacando esta passagem do trabalho
de Grotius, Pagden deixa clara a influência do trabalho de Vitória em sua argumentação.
O grande momento de Grotius foi a utilização de um argumento anteriormente
favorável aos ibéricos para atacá-los. No século XVI houve grande preocupação dos
espanhóis em defender a passagem, navegação, comércio e comunicação como direitos
naturais de todos os homens, direitos que lhes concedia então legitimidade para adentrar
novas terras e rotas; no entanto, no século XVII este direito foi barrado pelos próprios
espanhóis aos demais europeus, através do bloqueio das rotas para as Índias Orientais.
Ainda dentre os argumentos do holandês encontravam-se duas refutações aos títulos
de legitimidade que apresentou Vitória no século anterior: primeiramente Grotius afirmou que
os portugueses nunca conquistaram efetivamente a Ásia; o outro forte argumento, baseado
mais uma vez no direito natural, foi a afirmação de que o oceano é propriedade de toda a
humanidade, e não de um único homem ou reino em particular. Reexaminava assim a idéia de
propriedade, inferindo que só poderia ser de propriedade privada aquilo que se pode consumir
ou transformar, e não algo sobre o que se pode agir.
i
Por fim, partindo de base teórica
protestante, Grotius expôs em seu panfleto que, em seu entendimento, cristãos não deveriam
comercializar ou negociar de qualquer maneira com não cristãos, de forma que as relações
entre os reinos ibéricos e os povos encontrados nas índias não era lícita. Este argumento foi
extremamente importante para os navegantes holandeses que, após ultrapassarem o bloqueio
português incitavam os nativos a quebrar os acordos anteriores e a negociarem apenas com os
Países Baixos
1325
Antonio Manuel Hespanhaii ressalta que na obra de Grotius, tanto a questão dos
mares, quanto aquilo que diz respeito ao direito de retaliação versava, na verdade, sobre uma
preocupação maior: o sistema de convivência dentro da própria Europa. Por tal motivo
sobrepujava tanto a importância de se compreender o Direito Natural como norma universal.
(ver: HESPANHA, 2005, pp.16).
Na seqüência deste longo debate encontramos a resposta de Serafim de Freitas ao
trabalho de Hugo Grotius. O frei português não apresentou um texto de livres idéias, mas sim
uma contraposição a cada um dos argumentos apresentados pelo holandês. Sua primeira
preocupação foi comprovar que o mar poderia sim ser dominado. “Os portugueses, diz
Pagden, não estavam requerendo domínio sobre o Oceano; eles estavam requerendo o direito
de controlar o acesso a algumas partes específicas, no caso o Oceano Índico.” (PAGDEN,
2000, pp.51). Requeria-se não o direito de posse, mas sim o direito político, de jurisdição.
Sendo Freitas lusitano e católico seu texto continha, obviamente, justificativas de
domínio que valiam-se das Bulas Papaisiii que concederam aos monarcas católicos, desde
1455, direito perpétuo sobre aquilo que já haviam descoberto e sobre os espaços que viriam a
descobrir. Outros três títulos que firmavam o controle e domínio ibérico sobre as terras e rotas
marítimas foram reforçados: o primeiro deles referia-se ao direito de domínio devido à
descoberta, como foram os lusos que encontraram as rotas e as terras, seria deles a posse de
tais. O segundo versava sobre a exclusividade de comércio que, em sua concepção, era
merecida devido aos esforços dedicados pelos homens portugueses para encontrar as rotas e
povos com os quais faziam negócios nas Índias, serviço este de grande valia para toda a
população européia. Por fim, alegava ainda o que o valor intrínseco ao conceito de Império
lhes concedia poder sobre homens, espaços e ações.
Como é possível perceber, a disputa não esteve definida em momento algum. A
reforma protestante levou os homens holandeses a questionar o poder que dava maior
legitimidade às conquistas e aos domínios ibéricos: as doações e concessões pontifícias, de
maneira que eles não conseguiam mais criar uma argumentação sólida para debater com seus
opositores. A resposta de Serafim de Freitas não teve grande repercussão nem mesmo em
Portugal, pois poucos anos depois de sua publicação a Coroa lusitana encontrava-se mais
preocupada em encontrar formas de negociar a paz com holandeses, ingleses e franceses do
que em justificar suas ações de outrora.
***
Com o fim da União Ibérica, em 1640, é possível identificar algumas mudanças nas
relações entre Portugal e os demais reinos europeus envolvidos na expansão ultramarina.
1326
Tendo em vista que o governo espanhol foi responsável pelo início das relações hostis entre
os ibéricos e os demais, compreende-se que a restauração da autonomia portuguesa foi
também significativa para as negociações de paz no continente. Holanda e Portugal iniciaram
seus acordos já em 1640, com a Trégua dos Dez Anos. Após a dissolução da União Ibérica,
restaurou-se não apenas o governo português, como também suas boas relações diplomáticas
entre este e os demais reinos da Europa.
Durantes os anos que se passaram entre o descobrimento das Índias e a restauração
portuguesa fica clara a ausência de um projeto político que norteasse suas ações coloniais
bem como suas relações com outros reinos europeus. A inconsistência de seu sistema jurídico
não apenas deixou brechas a serem exploradas quanto a legitimidade de suas ações, como
também foi enfraquecida pelo advento da reforma religiosa que pôs em cheque o poder
advindo das Bulas Papais. Com a restauração de sua soberania, o reino de Portugal não
buscou apenas retomar as boas relações que possuía com outros reinos, como também
preocupou-se em definir sobre quais princípios teóricos e jurídicos reestruturaria seu poder.
Como já foi comentado, a hostilidade neerlandesa aos portos lusos teve início apenas
após a união das Coroas. Antes de 1580, Portugal negociava pacificamente com os Países
Baixos, e permitia que estes comercializassem em seus portos. O domínio castelhano
enrijeceu estas relações; não apenas com neerlandeses, mas também com ingleses e franceses
que foram proibidos de trafegar e negociar em suas rotas e portos. Todavia, o aumento do
poderio naval e militar holandês permitiu que estes não somente burlassem as leis
portuguesas e utilizassem suas rotas e postos de paragem, como também invadissem suas
colônias e portos, dominando-as comercial e politicamente.
O cenário das invasões holandesas, sem dúvida, apresentou-se como o mais
preocupante aos olhos dos governantes portugueses quando da retomada de sua soberania. A
retomada das relações de paz com a Holanda foi o primeiro ato diplomático tomado pelos
lusos para o seu restabelecimento político e econômico. A prioridade era encontrar formas de
negociação, e não discutir bases de legitimidade. No entanto, as grades questões debatidas no
decorrer do século XVII mantiveram-se presentes no pensamento dos governantes (fossem
eles lusos, holandeses, ingleses, franceses ou castelhanos). O que se propõe analisar é em que
grau esses debates foram incorporados nas negociações de paz, investigando se apenas o
tema foi discutido nos tratados de paz –tendo em vista que claramente faziam parte das
preocupações – ou se as argumentações de Grotius e Freitas foram consideradas na resolução
do problema.
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O primeiro tratado assinado pela Coroa Portuguesa ficou conhecido como Tratado de
Haya, ou Trégua dos 10 Anos. Foi negociado e acordado na cidade de Haya, na Holanda, no
ano de 1641, entre o Embaixador de Portugal, Tritão de Mendonça e os deputados dos
Estados Gerais das Províncias Unidas dos Países Baixos. Documento cujo objetivo já foi
anunciado em sua apresentação: “Tratado das tréguas e suspensão de todo ato de hostilidade
e bem afim de navegação, comércio e juntamente socorro”, e ainda fica explícito no
princípio do acordo que essa paz foi acordada apenas entre lusos e holandeses, não entre
ibéricos e holandeses, tendo em vista, como foi também declarado no texto do tratado, que os
atos de hostilidade foram iniciados contra a Coroa Castelhana, como ataque a sua prepotência
e tirania.
O corpo deste acordo foi composto por 35 ‘capítulos’, dos quais sete referem-se à
regulamentação de atos de navegação e comércio por parte de ambos os países envolvidos. A
preocupação extrema com estes assuntos figura como reflexo do debate intelectual do
princípio do século, pois em alguns destes artigos estão explicitas as noções de liberdade dos
mares e direito de comunicação. Serão analisados aqui seis dos sete capítulos que trataram
diretamente das questões de comércio e navegação. Já nos artigos IV e V apresentaram-se
regulamentações para que cada um dos países respeitasse o direito de passagem do outro, sem
inferir qualquer tipo de violência ou moléstia.
É curioso, no entanto, identificarmos quais foram as expressões utilizadas para a
firmação destas regras. “Forem para as terras e mares que defendem as partes do Rei assim
como igualmente as que das ditas partes tornarem para Portugal, navegar livremente sem
embaraço algum por respeito d Companhia da Índia Oriental destas Províncias.”
iv
Os
termos de liberdade e respeito desta fizeram parte dos discursos de Vitória e, sob sua
influência, de Grotius que, como vimos, declararam como um direito primordial a liberdade
de navegação, de passagem e, indo além afirmavam que a violação deste direito era passível
de retaliação. Logo na seqüência, no capítulo VII, repetiu-se a noção de liberdade, desta vez
fazendo referência ao exercício do comércio, como prerrogativa de ambas as partes e em
qualquer espaço, inclusive nas Índias Orientais, passagem tão disputada no princípio do
século, agora compreendida como espaço comum à Portugal e Países Baixos.
Ainda no que concerne á influências da idéias de Grotius a respeito da liberdade de
passagem, comércio e comunicação, o artigo XXV expandiu a todos os súditos – de ambos os
reinos, e de qualquer orientação teórica - o direito de navegar, utilizar portos e comerciar
dentro da Europa ou em qualquer outra paragem pertencente aos limites do tratado. Foi ainda
concedido aos súditos lusos os direitos e liberdades que gozavam antes de encontrarem-se
1328
sob o jugo castelhano. Se faz importante salientar que a navegação e suas implicações, como
entendeu Grotius, não poderiam ser privados de um único homem ou de um governo, pois
eram de posse de toda a humanidade, de maneira que eram legítimas a todos os homens.
No entanto, no decorrer do documento é notável uma ambigüidade no tratamento das
liberdades “naturais a todos os homens”. No mesmo tratado em que encontramos
incorporadas as idéias defendidas por Grotius em seus textos de 1608 e 1625v, discursos que
versavam sobre a igualdade dos Direitos Naturais para todos os homens e reinos,
encontramos também a permanência de algumas restrições.
Os capítulos XVIII e XX são mais explícitos neste ponto. O primeiro deles previu
ação punitiva a aqueles que concedessem liberdades aos castelhanos. “Nem seja lícito aos
Portugueses nem aos moradores destas Províncias dar passagem alguma de naus, negros e
mercadorias, ou outras cousas necessárias para as Índias dos Castelhanos e para outros
lugares situados naquelas partes, com pena de perdimento da nau, das fazendas, e das
pessoas que ali forem achadas e de que como inimigos serão presos e tratados.”vi Questionase, então, para que homens esse direito era concedido, ou mesmo quais ações de comércio e
navegação eram legítimas. Ainda que distantes das defesas de Serafim de Freitas quanto à
soberania lusitana e de seus argumentos, este artigo manteve a possibilidade de um, ou no
caso, dois reinos elegerem quais eram os homens merecedores do gozo dos Direitos Naturais,
e quais não eram.
Por fim, destaco aqui o capítulo XX do Tratado de Haya, no qual Holanda e Portugal
discorreram sobre as condições necessárias a liberdade de navegação e comércio. O artigo
não é muito extenso, mas carregado de significado. Através dele, todos os súditos
portugueses e holandeses possuíam autorização para navegar e se comunicar (o direito à
comunicação foi bastante destacado nos discursos de Vitória e Grotius) com a Ilha de São
Tomé e demais ilhas da costa africana, desde que se mantivessem próximos as cidades e
fortalezas lusas e pagassem tributos a elas. Como é possível notar, o acordo entre as duas
potências foi favorável à liberdade e abertura dos mares, mas também favorável a existência
de um poder de jurisdição sobre eles. Esta, a mesma forma de poder que Freitas alegou
possuírem os lusos.
***
A partir desta breve análise do Tratado de Haya, foi possível identificar influências do
debate jurídico entre Grotius e Freitas no início do século XVII. Entende-se, no entanto, que
a apropriação das idéias dos pensadores se deu de forma um tanto ambígua, pois incorporou
1329
argumentos contraditórios de seus discursos. De toda forma, é interessante questionar quais
desses capítulos e termos permaneceram nas negociações de paz no decorrer da segunda
metade dos anos de mil e seiscentos, a fim de entender sobre quais bases firmaram-se as
relações diplomáticas entre os reinos europeus a partir de então.
Notas:
i
Sobre esta questão ver também TUCK, Richard. The rights of war and peace. Polical thought and the
international order from grotius to Kant. Inglaterra:Oxford Univrsity Press, 1999. pp.90.
ii
Antonio Manuel Hespanha redigiu a Introdução da versão brasileira da obra “O Direito da Guerra e da Paz”, de
Grotius, na qual resgatou as bases teóricas do autor firmadas no Direito Natural e na Doutrina Protestante, bem
como destacou alguns de seus posicionamentos quanto a ausência de racionalidade na doutrina cristã e quanto a
forma jurídica adotada pelos lusos na primeira metade do século XVII. Ver: HESPANHA, Antonio Manuel.
Introdução. In: GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz (de iure belli AC pacis). Volume I. Ijui: Editora
UNIJUI, 2005. 2ª edição. pp. 15-28.
iii
Em especial as Bulas Romanu Pontifex, de 1455, que previa direitos aos ibéricos sobre os espaços encontrados
nas índias; e Inter Coetera, de 1456, que concedia aos mesmos o direito exclusivo sobre os mares e terras do
Atlântico.
iv
In: Tratado das tréguas e suspensão de todo ato de hostilidade e bem afim de navegação, comercio e
juntamente socorro, feito, começado e acabado em Haya de Hollanda a XY de junho de 1641, por tempo de dez
anos entre o senhor Triftao de Mendonça Furtado do Conselho e Embaixador do Sereníssimo e poderosíssimo
Dom João IV deste nome Rei de Portugal e dos Algarves, e os senhores deputados dos muito poderosos
senhores Estados Gerais das Províncias Unidas dos Países Baixos. Capítulo IV, pp. 8.
v
Cabe destacar que no mesmo ano em que Serafim de Freitas publicou sua obra, foi também publicado o
primeiro trabalho de Grotius –como comentado, o panfleto “Mare Liberum” foi publicado anonimamente, e o
restante de Iure Praedare só foi encontrado no século XIX – De iure belli AC pacis. Esta obra colossal discute
diversas questões sobre guerra e paz, dentre as quais aquelas apresentadas em Mare Liberum.
vi
Idem iv. Capitulo XVIII, pp.13
Referências:
CAETANO, Marcello. Introdução. In: FREITAS, Serafim de. Do justo império Asiático dos
Portugueses. Vol I. Lisboa: Instituto Nacional de Investigação Científica, 1983. Pp. 7-61.
ELLIOTT, J. H. Imperial Spain 1469-1716. Londres: Edward Arnold Publishers LTDA,
1963.
_________________________ e SANTOS, Maria Catarina. Os poderes num império
oceânico. In: MATTOSO, José. História de Portugal, vol IV. O antigo regime. Lisboa:
Editorial Estampa, 1998. Pp.351-366.
PAGDEN, Anthony. Commerce and Conquest. Hugo Grotius and Serafim de Freitas on the
Freedon of the seas. In: Mare Liberum, nº20, 2000.
SALDANHA, Antonio Vasconcelos de. Iustum Imperium. Dos tratados como fundamento do
império dos portugueses no oriente. Lisboa: Instituto Português do Oriente, 1992.
TUCK, Richard. The rights of war and peace. Political thought and the international order
from Grotius to Kant. Inglaterra: Oxford University Press, 1999.
1330
VIEIRA, Mônica Brito. Mare Liberum vs. Mare Clasum: Grotius, Freitas and Selden’s debate
on dominium over seas. In: Journal of the history of ideas. Vol. 64, nº3. Pennsylvania:
University of Pennsylvania Press. Julho/ 2003. pp. 361-377.
Fontes:
FREITAS, Serafim de. Do justo império Asiático dos Portugueses. Vol I. Lisboa: Instituto
Nacional de Investigação Científica, 1983.
GROTIUS, Hugo. O Direito da Guerra e da Paz. Volumes I e II. Introdução de Antonio
Manuel Hespanha. Ijui: Unijui, 2005.
VITÓRIA, Francisco de. Os indios e o direito da Guerra. ( de indis et de jure belli
relectiones). Ijui: Unijui, 2006.
* Tratado das tréguas e suspensão de todo ato de hostilidade e bem afim de navegação,
comercio e juntamente socorro, feito, começado e acabado em Haya de Hollanda a XY de
junho de 1641, por tempo de dez anos entre o senhor Triftao de Mendonça Furtado do
Conselho e Embaixador do Sereníssimo e poderosíssimo Dom João IV deste nome Rei de
Portugal e dos Algarves, e os senhores deputados dos muito poderosos senhores Estados
Gerais das Províncias Unidas dos Países Baixos. In: Brasiliana Digital. São Paulo: USP.
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