Caso clinico- Alergia Alimentar Autora: Dra. Cristina Jacob EK masculino, 1ano e 2m , branco, São Paulo Queixa e HPMA- Mãe refere que aos 5 meses de idade, apresentou edema de lábios e urticária após ter recebido uma mamadeira de fórmula polimérica de leite de vaca dada pela babá, por ocasião da saída da mãe para consulta médica. A babá refere que a criança também apresentou vômitos e “ficou molinha”, sendo levada ao pronto Socorro pela avó, onde recebeu medicações que os acompanhantes não sabem informar os nomes. Depois do atendimento, saiu do hospital com a orientação de tomar fórmula de soja, pois havia a suspeita de alergia ao leite de vaca e a mãe referia volta ao trabalho. Logo após o episódio, consultou o pediatra que orientou a introdução de alimentos sólidos para que a criança não dependesse tanto da fórmula de soja, pois poderia fazer alergia a este alimento também. Nesta época (6 meses de idade) foram introduzidos: legumes, gema de ovo, maçã e bolacha sem leite para compor a alimentação da criança. Os familiares referem que nessa época, observaram que a criança apresentava episódios de fezes amolecidas e cólicas com choro intenso, pelo menos 1x/semana. Aos 9 meses, como a criança deixou de ganhar peso, o pediatra prescreveu hidrolisado proteico de proteínas do soro do leite de vaca, sem melhora do quadro. Aos 12 meses foi orientada a usar “leite de castanhas” quando, após 2 meses de uso, apresentou choque anafilático à ingestão desse preparado, sendo internado em UTI. ISDA- refere episódios de hiperemia em face e troco, com pápulas, que aparecem sem desencadeante nítido. As lesões somem espontaneamente sem medicação. Refere que frequentemente as fezes são amolecidas e já observou muco nas fezes, em especial durante episódios de cólicas com choro intenso. Refere pele seca e prurido intenso em face e região cervical. Antecedentes pessoais- Gestação sem intercorrências. Parto normal, com peso nascimento de 2870g e comprimento 47cm. Alta hospitalar com a mãe. Recebeu leite materno até 5 meses, sendo que apenas duas vezes foi tentada a mamadeira de fórmula polimérica, mas a criança não aceitou. Ganho de peso inadequado nos últimos meses. Antecedentes familiares : Pais riníticos, alérgicos a ácaros e mãe refere também que teve um episódio de urticária com amendoim. Vacinas- calendário completo para idade CSE- família com renda de 6 salários mínimos. Exame físico: Peso: 9400 gr (p10) Estatura: 74 cm (p10). FC- 98 bat/min FR- 32 inc/min Criança chorosa, bastante irritada, com máculas esparsas em troco. Distensão abdominal moderada. Respiratório- MV presente em AHT, sem ruídos adventícios. Pele com lesões descamativas e hiperemia em dobras antecubital e face. Sinais de escoriação também em região cervical e face. Exames laboratoriais: IgE = 473 kU/L leite total- 28 kU/L alfalactoalbumina- 10.7 kU/L betalactoglobulina- 12,4 kU/L caseína- 16,8 kU/L soja- 7,9 kU/L trigo- 5,80 kU/L amêndoas- 5,91 kU/L amendoim- 4,1 kU/L clara ovo- 5,5 kU/L Evolução: Após análise do caso e fazendo o diagnóstico de alergia alimentar múltipla este paciente recebeu fórmula de aminoácidos por 2 anos, com boa resposta de ganho de peso e posteriormente tolerou hidrolisado protéico e alimentação hipoalergênica com exclusão de todos os alimentos aos quais apresentava reações. Após 6 meses desta conduta (com idade de 3 a e 8 m), foi realizada a provocação com os alimentos: trigo, clara de ovo e soja, aos quais mostrou-se tolerante, mas apresentou reatividade clínica ao leite e às oleaginosas, desenvolvendo urticária e angioedema. Atualmente mantém a dieta de restrição e recebe hidrolisado protéico. Dependendo da sua evolução, será novamente avaliado com provocação com leite de vaca após 12 meses. Diagnóstico: - Alergia Alimentar Múltipla (AAM) + Dermatite atópica Comentários: Este caso ilustra muito bem uma situação grave, onde o paciente apresenta reações a múltiplos alimentos, tornando bastante difícil sua adequação alimentar. A alergia alimentar múltipla é uma situação caracterizada pela reatividade a 2 ou mais alimentos não relacionados. Não há na literatura, citação sobre a prevalência da AAM na faixa etária pediátrica, mas estudos em pacientes altamente sensibilizados, como aqueles com Dermatite Atópica, mostram prevalência de cerca de 57% de pacientes com reatividade clínica a dois ou mais alimentos. Em geral, 50% destes pacientes também apresentam história de rinite e asma. O paciente em questão apresenta muitas características do grupo descrito por Sampson & Ho, em especial o fato de ter Dermatite Atópica, associado ao fato de ter história familiar e pessoal de atopia. No estudo acima citado, cerca de 5 alimentos foram responsáveis pela maioria das sensibilização avaliadas, sendo todos aqueles que o paciente aqui descrito também apresentava reatividade clínica e testes positivos: leite, soja, ovo, trigo e amendoim. A alergia a amendoim não é tão comum em nosso meio como nos Estados Unidos, porém neste caso, o paciente recebeu “leite de castanhas”, o que pode ter sensibilizado o paciente e também ter propiciado uma reação cruzada entre as oleaginosas. Não tivemos informação sobre a composição desta bebida recebida pelo paciente. Outro fato interessante em relação à AAM é que o mecanismo para o desenvolvimento deste tipo de alergia ainda não está elucidado, com várias hipóteses sobre a facilitação do seu desenvolvimento. Latcham F e cols publicaram em 2003, um artigo sobre a doença, colocando a hipótese de que a AAM poderia ser o resultado de uma imunodeficiência mínima acompanhada de leve enteropatia. Neste estudo, os autores avaliaram 121 crianças com AAM, sendo que 44 destas sensibilizaram durante o aleitamento materno. O grupo 1 incluía 44 pacientes com reações agudas, sendo que 41 mostravam também reações tardias. O grupo 2 era composto de 77 crianças com reações apenas tardias. Os autores encontraram pacientes com alterações imunológicas tanto celulares como humorais, mas a crítica é que foram avaliadas apenas durante o estudo e não se comenta se havia história clinica compatível com estado de imunodeficiência. Um dado interessante, é que 21 mães referiam história de autoimunidade, o que pode apontar alguma desregulação do sistema imune destas mães. Embora os autores chamem bastante a atenção para este fato, não se pode fazer uma associação direta entre a AAM e alterações imunológicas familiares ou mesmo dos pacientes do estudo. Outra hipótese interessante, seria a de que mesmo durante a AA IgE mediada poderia haver mínimas alterações de permeabilidade intestinal nestes pacientes com AAM, explicando assim a possibilidade de facilitação da passagem de alérgenos pela barreira da mucosa intestinal. Este dado merece atenção especial e estudos avaliando esta hipótese poderiam ser de interesse para se compreender melhor a fisiopatologia desta doença. Outro fato que deve chamar a atenção é a escolha do substituto para o leite de vaca, que neste caso foi, inicialmente, a fórmula de soja. Vários pontos devem ser ressaltados para esta conduta inadequada. Inicialmente, os sintomas apresentados pela criança caracterizam uma anafilaxia, pois apresentou sintomas cutâneos, gastrintestinais e até cardiovascular, referido como: ficou molinha (sic). Este dado deveria ter orientado para o uso de fórmula de aminoácido por uma questão de segurança ao paciente, em especial nesta faixa etária. Além disso, a soja no Brasil é autorizada apenas para lactentes maiores de 6 meses de idade. Em alguns países, só é permitido seu uso em pacientes com idade acima de 1 ano. Além disso, a criança apresentou na evolução, sintomas gastrintestinais, o que deve orientar para a possibilidade de mecanismo não IgE mediado em associação. Assim, este é um ponto que merece discussão, já que as indicações desta fórmula seriam: anafilaxia, alterações gastrintestinais, baixo ganho pôndero-estatural e alergia alimentar múltipla. Avaliando a evolução do paciente, observa-se que ainda mantém a reatividade ao leite de vaca e oleaginosas. Quanto a este último grupo de alimentos, sabemos que a reatividade se mantem por tempo prolongado e a restrição deve ser mantida provavelmente até a idade escolar, quando poderá ser novamente testado. Quanto à reatividade ao leite de vaca, a evolução foi conforme esperada para este caso, que apresenta os marcadores de fenótipo de persistência, entre eles: anafilaxia, altos valores de IgE específica para caseína, além de apresentar outras alergias. Bibliografia recomendada Fiocchi A, Brozek J, Schünemann H, Bahna SL, von Berg A et al. World Allergy Organization (WAO) Diagnosis and Rationale for Action against Cow's Milk Allergy (DRACMA) Guidelines. Pediatr Allergy Immunol. 2010;21 Suppl 21:1-125 Kemp AS, Hill DJ, Allen KJ, Anderson K, Davidson GP et al. Guidelines for the use of infant formulas to treat cow’s milk protein allergy: an Australian consensus panel opinion. MJA 2008; 188: 109–112 Kim EH, Burks W.Managing food allergy in childhood. Cur Opin Pediatr 2012,24:615620 Latcham F, Merino F et al. A consistent pattern of minor immunodeficiency and suttle enteropathy in children with multiple food allergy. J Pediatrics 2003:143:39-47 Wang J. Management of the patients with Multiple Food Allergies. Curr Allerg Asthma Rep 2010, 10:271-7 Pinheiro A, Prates S. Alergia Alimentar Múltipla.Acta Med Port 2011;24:453-6 QUESTÕES 1- Como se caracteriza o paciente com alergia alimentar mútipla? a) Paciente de baixa idade com reações graves a mais que 3 alimentos. b) Paciente que apresenta sintomas IgE mediados a mais que 2 alimentos da mesma família botânica. c) Paciente que apresenta reatividade clínica a 2 ou mais alimentos não relacionados. d) Paciente com manifestações apenas gastrintestinais com reatividade a 2 ou mais alimentos. 2- Quais as características clínicas dos pacientes com alergia alimentar múltipla? a) Apresentar sempre diarréia de difícil controle causada pela alteração de permeabilidade intestinal b) Apresentar dermatite atópica, asma e/ou rinite, além de antecedentes familiares e individuais de atopia c) Manifestar doenças autoimunes, já que a alergia alimentar múltipla pode ser uma imunodeficiência minor. d) Apesar da reatividade clínica a vários alimentos, a tolerância aos mesmos se desenvolve precocemente.