Para que filosofia? Para que Literatura?

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Para que filosofia?
Para que Literatura?
Olga de Sá
Rodin - O pensador (1881 - bronze) - http://www.musee-rodin.fr
É muito difícil responder a essas questões, sem
referir-se a autores como Derrida, Deleuze, Foucault, monstros sagrados do pensamento moderno
e tormento de mestrandos e doutorandos. No Brasil, inspiraram-se em suas idéias muitos outros, entre eles o Prof. Walter Omar Kohan, prof. titular de
Filosofia da Educação da Universidade Federal do
Rio de Janeiro e o Prof. Silvio Galo, da Faculdade de
Educação da Unicamp-SP.
O texto de Derrida Les antinomies de la discipline philosophique, carta-prefácio do volume La
grève des philosophes é exemplar. Destacarei alguns
pontos, de maneira geral, sem me preocupar com citações.
Antinomia significa uma contradição entre duas
leis ou princípios. Dado que a filosofia é imensurável, de que modo enquadrá-la, como disciplina
num currículo escolar? Kant dizia que não se ensina
filosofia, ensina-se a filosofar. A filosofia necessita
ser transmitida e é intransmissível. Ela excede, inexoravelmente, qualquer instituição filosófica e o filósofo não pode tornar-se, simplesmente, professor. A
Filosofia não conhece outra instituição que o pensamento, a verdade, as questões existenciais.
O tempo da Filosofia é um kairós, este momento único e não outro, em dimensão qualitativa,
que não pode ser reduzida ao quantitativo, ao tempo
cronológico da aula, da escola, dos exames, das avaliações, programas. O pensar tem seu ritmo próprio.
Por outro lado, se a Filosofia é um saber perante
outros saberes, ela é também um não-saber, uma
ignorância.
Sócrates foi considerado, pelo oráculo de Del-
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fos como o homem mais sábio da Grécia, porque
sabia algo que os outros não sabiam: sabia que não
sabia.
Portanto, o que a Filosofia mais sabe, desde seu
nascimento, é sua ignorância. Ela é valiosa, porque
reconhece limites. Em certo sentido ela é inútil, porque não pode ser instrumentalizada por nenhum outro saber, mas é necessária e indispensável.
Sócrates nada escreveu; seu lugar é a rua, são
as praças. Platão quis sistematizar e institucionalizar
seu pensamento, na escrita, nos diálogos, numa Academia filosófica. Mas as idéias de Sócrates transbordam das instituições e ele é morto por sua coerência,
fecundando o pensamento ocidental.
A Filosofia não suporta ingerências externas:
nem se submete ao produtivo, ao rentável, ao eficaz,
ao conveniente, ao útil, ao técnico-científico; à política, à educação. Mas não pode renunciar à sua função
crítica, estabelecendo os fins e as razões últimas.
Quem acompanhou a história recente da obrigatoriedade da filosofia, como disciplina, no Ensino
Médio, sabe que ela está a serviço da cidadania. Ela
deve contribuir para a formação cidadã.
Esse é o paradoxo, contornado pela necessidade
de enfrentar o fechamento da Filosofia sobre si mesma. Embora se aspire à autonomia e a certa unidade
e especificidade da Filosofia, é preciso que ela dialogue com outras disciplinas, sem descaracterizar-se.
A Filosofia tem-se aberto as outras modalidades
de inserção e circulação: filosofia para crianças sob
a forma de educação para o pensar, café filosófico,
aconselhamento filosófico, filosofia nas prisões. Os
opositores perguntam-se: em que essas novas for-
LITERATURA
Educadora, Diretora do IST/FATEA - Lorena.
Doutora em Comunicação e Semiótica, Psicóloga,
Coordenadora de pesquisa e Orientadora no
Programa de pós-graduação da PUC-SP.
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LITERATURA
mas são efetivamente filosóficas?
Nessa abertura, situa-se também a Educação, o
ensino da Filosofia. Desde seu nascimento a Filosofia
se desdobra numa vocação educacional irredutível,
questionando, concretamente, a impossibilidade de
ensiná-la, como foi afirmado acima.
Não resulta claro o que seja ensinar a filosofar.
O mínimo que se pode exigir é que as classes
de Filosofia se transformem em comunidades de
reflexão.
Deve-se exigir que a Filosofia seja disponível
a todos; não há razões científicas, epistemológicas,
éticas ou metafísicas, que justifiquem a exclusão de
qualquer grupo social, das possibilidades de pensar.
A Filosofia tem também uma vocação universalista: os filósofos pensam, visando ao conjunto do
gênero humano.
As Idéias de Platão, o cogito de Descartes, o capital de Marx, são categorias que se pretendem universais. Contudo o filósofo não cai da estratosfera.
Vive num contexto, no qual esse pensar se insere.
Pensa a partir de alguns, para dirigir-se a todos.
A questão torna-se particularmente relevante,
quando o contexto é de dependência, colonização,
marginalidade ou exclusão, como ainda existem,
modernamente.
Ensinar a filosofar pressupõe um método. E é
impossível fixar métodos para a Filosofia.
Michelângelo - a Sibila de Delfos (1506-1509) - (Fresco-Vaticano - Capela Sistina) - http://www.vatican.va/2_it
Tudo pode transformar-se em colonização do
pensamento.
A Filosofia caracteriza-se como um pensar com
lógica, no amplo sentido de uma analítica do pensamento. Mas ela também pode ser pensada como
aquele exercício que arrebenta com toda lógica, para
descobrir o novo. O pensamento criativo, geralmente, não trabalha no nível do discursivo, mas do associativo, por processo divergente, não convergente.
Ensinar a filosofar implica num trabalho sobre
os outros, mas sempre a partir de si próprio. Sócrates é exemplo disso. Ao cuidar de sua missão, cuida
de que outros também encontrem, pela maiêutica,
o caminho para cuidar de si mesmo, guiando-nos
pela ironia a encontrar nosso daimon interior, a
consciência.
Silvio Galo salienta uma definição produzida
pelos filósofos franceses Deleuze e Guattair, na obra
O que é Filosofia? A Filosofia é uma atividade do
pensamento que consiste em criar conceitos, não
ensinando produtos de pensamento, mas passando
pela experiência do pensar.
Conceito aqui não significa noção ou definição,
uma representação mental., que responde a uma
pergunta e paralisa o pensamento, cessando seu
movimento. Há três potências de criação do pensamento: a Arte, a Ciência e a Filosofia. O cientista
produz funções, o Artista produz perceptos e afetos.
O filósofo produz conceitos. A Filosofia não pode
ser substituída pela Ciência ou pela Arte, nem pode
substituí-las. Ao contrário, essas três potências se
complementam e se alimentam entre si, uma fazendo com que as outras possam ser mais criativas.
Partindo da definição apresentada acima, Silvio
Galo sublinha que o estudante de filosofia não deve
simplesmente assimilar conteúdos, decorar idéias e
sistemas. Deve fazer a experiência do pensamento e
David - A morte de Sócrates (óleo sobre tela) - Metropolitan Museum of Art (New York) - http://www.bc.edu/bcorg
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Assim, um currículo de Filosofia será melhor
organizado por eixos problemáticos, tendo seus
conteúdos tratados pela filosofia, que os recorta em
temas (eixo temático) e podem ser abordados historicamente.
Cito, de memória, um pensamento de Nietzsche:
Se teu destino é pensar, então venera esse destino como se
venera um deus e sacrifica-lhe o que de melhor tiveres, o
que mais amares.
Como pretendemos estabelecer um diálogo entre Filosofia e Literatura, linguagem filosófica e linguagem literária, passamos à segunda pergunta da
nossa abordagem: Por quê Literatura?
Haverá relação possível entre Filosofia e Literatura, Literatura e Filosofia, sem instrumentalizar uma a outra? Que os textos filosóficos sejam,
frequentemente, textos literários não há dúvida
nenhuma. Basta lembrar os Diálogos de Platão, as
Confissões de Agostinho, os escritos de Bergson, de
Nietzsche ou de Sartre.
Que textos literários estejam regados de questões filosóficas também não restam dúvidas.
Façamos um exercício com textos de Clarice
Lispector. Embora seja impossível vincular Clarice
Lispector a qualquer espécie de existencialismo ou
a outras correntes filosóficas, é possível destacar em
sua obra temas existenciais.
Casada com um diplomata, Maury Gurgel Valente, vivia em embaixadas, viajava muito e suas
leituras não eram sistemáticas. Além disso, atriz
consumada, sempre se negou a admitir influências
ou a confessar seus conhecimentos teóricos ou indicar suas leituras.
ângulo 116, jan./mar., 2009, p. 13-18.
Existe, dicionarizado, o termo filosofema (Logos, s/d, verbete filosofema), que pode significar
opinião filosófica. Ou o conteúdo de uma proposição
filosófica, sem constituir, a não ser pelo seu conjunto, um sistema filosófico. Existem “filosofemas” na
ficção de Clarice?
Na trilha de Alfredo Bosi (cf Bosi, 33 ed, p. 423426) , continuamos a afirmar que Clarice Lispector,
pelas suas preocupações com a consistência da vida
expressas em sua escritura, situa-se mais no âmbito
filosófico que psicológico, pois afirmava que odiava
a psicologia. Porém, sua abordagem metafísica não
é sistemática, é empírica. Clarice visa à concretude
sensível do ser.
Em Água Viva (1988, p. 30) declara: Mas há perguntas que me fiz em criança e que não foram respondidas,
ficaram ecoando plangentes: o mundo se fez sozinho? Mas
se fez onde? Em que lugar?
Clarice confessa sua perplexidade. Duvida que
escreva um livro, pois não se trata de uma história.
Não tem certezas, a razão não a auxilia. Seus pensamentos parecem sem palavras. As perguntas mais
importantes do mundo, que a perseguem desde menina, não têm resposta. A realidade nova não tem
pensamento correspondente. É uma sensação atrás
do pensamento, como afirma em Água viva: Será que
isto que estou te escrevendo é atrás do pensamento? Raciocínio é que não é. Quem for capaz de parar de raciocinar – o que é terrivelmente difícil – que me acompanhe.
(1998, p. 36)
A Edilberto Coutinho, Clarice declarou: É que
sou uma mística. (O Globo, 29, jan. 1976, p. 33).
Os limites entre Filosofia e Mística são conhecidos. A Filosofia não pode ultrapassar o âmbito racional, e é característica da Mística ultrapassá-la e não
saber exprimir o êxtase. Mas, como disse Luis Costa
Lima (cf, 1966, 102-126), Clarice Lispector era uma
mística ao revés, isto é, uma mística ao contrário, uma
mística profana,procurando incorporar o religioso à
dimensão humana da práxis, do agir terreno. A Paixão
segundo GH é um discurso racional sobre um percurso em que se chega a um Deus imanente, pela manducação da massa da barata, matéria primordial do
mundo, sem transcendência, sem a terceira perna
criada pela subjetivação.
A paixão segundo G.H. beira, portanto, uma
ontologia, uma metafísica construída pelo método
empírico, cuja finalidade é desvelar o ser. Desvelar o
ser contra a linguagem (fazendo linguagem), contra
a razão que o encobre, contra a transcendência, que,
segundo a narradora, “o ultrapassa”. (cf. Lispector,
1964).
O animal, para Clarice, está próximo das fontes do ser, do Deus imanente na matéria, pois não
LITERATURA
para isso sugere quatro passos didáticos:
a) a sensibilização – o estudante precisa viver os problemas como seus, e para isso
pode-se recorrer a meios como filmes,
músicas, poemas, textos, contos, televisão.
b) a problematização – é preciso transformar
o tema em problema. O Professor instiga
os alunos a produzirem questões a partir
do tema escolhido.
c) a investigação – pode-se usar a História
da Filosofia, recorrendo a filósofos que,
em sua época e em seu contexto, pensaram sobre o tema e o problematizaram.
d) a conceituação – é o exercício da experiência filosófica propriamente dita. O estudante refaz o movimento de pensamento,
que criou aqueles conceitos ou cria um
conceito novo, que ofereça outra forma de
equacionar o problema abordado.
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LITERATURA
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se criou uma alma, não construiu uma sentimentação,
que nos distancia das raízes do ser.
O inefável é o que Clarice persegue, por meio
da linguagem.
Em Água Viva, a narradora quer apossar-se do
é da coisa, tentando captar a quarta dimensão do instantejá que de tão fugidio não é mais porque agora tornou-se
um novo instante-já que também não é mais. Cada coisa
tem um instante em que ela é. (1988, p. 9).
Assim, também a literatura persegue o conhecimento, mas essa busca do inefável, do indizível, pela
via da linguagem, é, como diz J. Torrano, uma experiência do sagrado (1992, p. 13) O sagrado não se prende
pela via lógica, pela via do raciocínio.
O tema de vida em Água Viva é o instante. Parece até um refrão, num presente finito, que anula
o tempo cronológico. Nesse fluxo, ela colhe o devir
incessante da realidade e aspira que sua escritura e
a leitura de seu texto coincidam com esse presente
fecundo, como se fosse uma partitura musical. Lidando com a matéria prima, o texto se distancia do
cogito, da lógica. A palavra transforma-se em isca e
pesca a não palavra, nas entrelinhas. Assim nasce sua
escritura, que se lê como se ouve uma música (cf.
Lispector, 1973).
Isso significa que a ficção clariceana tateia, continuamente, as dimensões do ser, tarefa da Filosofia.
As relações entre Filosofia e Literatura sempre
foram instigantes. Benedito Nunes as tangencia em
sua obra Passagem para o poético, na esteira de
Heidegger, pois seu subtítulo é: filosofia e poesia em
Heidegger (1986).
É que os conceitos filosóficos nascem como a escritura, do direito de sonhar.
A filosofia tem, certamente, uma dimensão retórica e a Literatura, uma dimensão conceitual. Platão exprimiu todo seu sistema filosófico por meio de
diálogos. Henri Bérgson usou figuras de linguagem,
entre as quais privilegiou a metáfora.
Em pelo menos três dos livros de Clarice há
alusões à filosofia: Otávio, de Perto do Coração Selvagem (1944), lê Spinoza e pretende comentá-lo,
embora ironicamente, a narradora o apresente como
péssimo intérprete. Em A quinta história, a das baratas, o conto termina com uma referência a Leibniz.
No romance Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres
(1969), Ulisses é professor de Filosofia.
A ficção de Clarice situa-se nas dimensões
da matéria do mundo e da finitude da condição
humana.
Adere às estruturas básicas do ser, à imanência
da matéria, em vez de à transcendência do espírito. Como ponto de partida. Transcendência opõe-se à
imanência; e assim como esta significa, em geral, que algo
está dentro de certo âmbito ou círculo da realidade, assim
transcendência é, ao contrário, o que se situa fora e acima do mesmo círculo. (Logos,v.5, p.266-270, verbete
transcendência)
A transcendência ultrapassa a experiência. A
ficção clariciana se radica na experiência sensível.
Não só G.H. renuncia à linguagem, porque esta é
um produto da subjetivação humana e não adere
às raízes do ser, mas também Lóri de Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres faz um exercício
prévio para o amor, reativando sua capacidade de
sentir, nos mercados, reaprendendo a cheirar, a tatear as frutas, enfim uma reeducação dos sentidos
para atingir um sentimento além deles, de que Lóri
parecia incapaz.
Não que Clarice Lispector se reduza ao imanentismo, limitando a realidade à experiência. Contudo,
jamais sujeitou o corpóreo ou a matéria às dimensões da idéia. Sua escritura é compacta, enquanto
remete o leitor a uma experiência que fundamenta
as reflexões sobre a realidade, a existência humana,
para se perguntar: “quem sou?”
Joana (protagonista de Perto do coração selvagem), a citada Lóri, Martim (personagem de A maçã
no escuro) todos eles buscam a própria identidade.
A felicidade, às vezes, é uma pedra no meio do caminho. Especialmente a felicidade encontrada nos
laços de família, que prende as pessoas, sobretudo
as mulheres.
Talvez uma felicidade clandestina se sustente,
como a da menina que, enfim, consegue o livro negaceado, sadicamente, pela colega adolescente, gorda
e ruiva, no célebre conto de Clarice que dá título a
uma de suas obras. (1971).
Clarice explicita sempre que o homem pode ultrapassar seus limites, delinear projetos.
Mesmo o procedimento literário da epifania, embora se inicie e se enraíze no sensível, pois é sempre
uma epifania do olhar, do ouvir ou do tato, isto é, da
pele, enseja porém, uma mudança de visão do mundo, uma consciência ampliada das possibilidades do
existir, um conhecimento de si mesmo, que embora
quase nunca resultem numa mudança de vida – pois
exigiriam um rompimento com a rala felicidade alcançada - deixam no leitor a convicção de que o sujeito da epifania nunca mais será o mesmo.
“Por isso, na expressão heideggeriana, o homem é
um ser ex-tático. A possibilidade do “êx-tase”, isto é,
de sair de si em qualquer situação dada, significa, para
o homem, a fuga à finitude, e a busca intérmina de si
fora de si, no outro.” (Logos, v.5, p. 266-270, verbete
transcendência).
Em A Paixão segundo GH, Deus é alcançado
pela via da imanência e se atinge pela manducação
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ângulo 116, jan./mar., 2009, p. 13-18.
elementos primordiais que a filosofia pré-socrática
elaborou, como os fundamentos materiais do ser,
servem de paradigmas atribuíveis à ficção clariciana: água, ar, terra, fogo. Mostramos como em Perto
do coração selvagem, esses quatro elementos constituem eixos privilegiados de uma escritura metafórico-metafísica.
Em Perto do coração selvagem, a estrutura narrativa organiza-se no nível do ser e não do agir ou do
fazer. É uma narrativa gnosiológica, sob a espécie de
subjetivação, isto é, de percepções, de tomadas de
posição interiores sobre acontecimentos exteriores.
Trata-se de buscar o sentido da vida, questionar o
estar-no-mundo, equacionar espírito e matéria, pois
esses elementos exprimem, nos albores da filosofia,
como se organiza o caos em cosmos.
É uma aventura de gnôsis, de conhecimento,
mas um conhecimento aderente à matéria, que procura em cada personagem, seu ser de terra, de água,
de ar ou de fogo.
Joana de Perto do coração selvagem (Lispector,
1998, p. 46) é toda água e ar. Da água, no banho, ela
emerge para sua vida plena de mulher. Cria-se uma
linguagem de múltiplas sensações, em que a menina-moça emerge da banheira como do mar.
Aliás, o mar era para Joana um elemento de
pacificação (...) a paz que vinha do corpo deitado do
mar, do ventre profundo do mar, do gato endurecido sobre a calçada.
A confusão do mar, gato e Joana, exprime a essência de tudo é um.
O ar, a liberdade fluida; contra a montanhaparada e grossa diante dela, Joana ergue-se em antítese, como pássaros leves e negros que voassem
nítidos no ar puro.
Ao ar ainda, se associa a voz, mas não a mulher
da voz, mulher apenas fêmea, em que Joana surpreendeu o segredo de viver. A voz daquela mulher não
pertencia ao domínio da fala, da palavra, que perde
o suco da existência; era uma voz-sensação, instintiva e aderente à sua natureza de mulher. Voz da terra,
voz que não se contaminara com a linguagem.
Joana é a Joana das vozes, Santa Joana como
a chamará o amante, Joana d´Arc que ouvia vozes,
uma Joana d’Arc da ficção, atormentada pelas próprias fantasias, invenções de palavras, de vozes,
que foram seu brinquedo desde a infância, criadora
de fatos mentirosos, de estórias que desenrola aos
ouvidos de Otávio para perturbá-lo, aos ouvidos do
amante para extasiá-lo.
Pode-se delinear, na ficção clariciana, uma metafísica da morte, cujo paradigma talvez seja Virgínia de
O lustre (1964), que morre no final da narrativa, mas
cuja morte é indiciada, desde o início.
LITERATURA
da matéria da massa da barata. O “êx-tase” daí resultante tem todas as marcas da materialidade.
Crispei minhas unhas na parede: eu sentia agora o
nojento na minha boca, e então comecei a cuspir, a cuspir furiosamente aquele gosto de coisa alguma, gosto de
um nada que no entanto me parecia quase adociado como
o de certas pétalas de flor, gosto de mim mesma (...) Eu
que pensara que a maior prova de transmutação de mim
mesma seria botar na boca a massa branca da barata. E
que assim me aproximaria do... divino? Do que é real? O
divino para mim é o real. (Lispector, 1977, 98-9).
O conto O búfalo de Laços de família também
termina num desmaio, num “êx-tase”. Mais uma
vez, um êx-tase com marcas de materialidade.
A mulher olha os olhos do búfalo, cheios de
ódio não de amor e se sente presa àqueles olhos. Presa, enquanto escorregava enfeitiçada ao longo das grades.
Em tão lenta vertigem que antes do corpo baquear macio
a mulher viu o céu inteiro e um búfalo. (Lispector, 1998,
p. 135).
Martim renunciou à linguagem a partir de um
ato transgressor – um crime – e a reconstruiu, passo
a passo, partindo das pedras – matéria inanimada
- das plantas, dos animais – as vacas do curral – até
chegar a indicar, do alto do morro, a realidade que
desejava nomear. Indicar é um ato de linguagem e
nomear, além disso, um ato poético. Nomear o ser é a
grande aspiração de poetas e escritores.
Platão debateu esse possível estatuto da linguagem no diálogo O Crátilo (1994), donde se conclui
que é milenar, até adâmico, o debate sobre a nostalgia do nome. Este é um tema filosófico que se encontra, visceralmente, na ficção clariciana.
Suas grandes indagações sobre o ser situam-se
nesses limites impostos pela linguagem.
Parecia-lhe que na pintura exprimia-se com
todo o corpo e por isso, ao usar as palavras, queria
também ser ouvida com o corpo inteiro do leitor.
Como quando ela própria ouvia música.
Vejo que nunca te disse como escuto música – apóio
de leve a mão na eletrola e a mão vibra espraiando ondas
pelo corpo todo: assim ouço a eletricidade da vibração,
substrato último no domínio da realidade, e o mundo treme na minhas mãos. (1998, p. 11)
Vislumbramos na ficção de Clarice uma poética
do corpo, que se esboça a partir de uma ontologia
empírica da matéria.
Usamos o termo poética, no sentido apontado
por Tzvetan Todorov, indicando a escolha feita por
um autor, entre todos os possíveis literários (temas,
composição, estilo, figuras) de seu caminho próprio,
que passa a identificar sua escritura.
Analisamos, minuciosamente, em A escritura
de Clarice Lispector, (Sá, 2000), como os clássicos
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LITERATURA
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Virgínia e o irmão Daniel surpreendem um chapéu arrastado pelas águas do rio. Tacitamente admitem que se trata do chapéu de um afogado. Assim,
na infância, o sema da água une-se ao da morte, para
engolir a vida de Virgínia para sempre.
Em A hora da estrela, a hora da morte é sua hora
maior, o instante de fogo de Macabéa, sua hora de estrela (...) na certa morreria um dia como se antes tivesse
estudado de cor a representação do papel de estrela. Pois na
hora da morte a pessoa se torna brilhante estrela de cinema,
é o instante de glória de cada um e é quando como no canto
coral se ouvem agudos sibilantes. (1977, p. 36)
Portanto, a narradora não vê a morte como um
final melancólico. A finitude da vida, sem dúvida presente em toda a ficção clariciana, marcada por uma
metafísica do mal, insere-se na visão de totalidade e
unidade do ser.
Clarice queria escrever como se pinta, dura escritura, em que se pode pegar com a mão a palavra.
Sua linguagem quer ser do corpo, concreta, numa
abordagem direta do criativo, plasticamente próxima
das fontes mesmas do ato de escrever. Paisagem de
sons e de sonhos, música e fotografia, tentativa de se
exprimir a si mesma.
Ao morrer, Clarice pede que se lhe dê a mão. Em
seu túmulo, no cemitério Comunal Israelita, no Rio de
Janeiro, está escrito que dar a mão a alguém é o se pode
esperar da alegria.
Alegria porém, não é felicidade. Numa possível
metafísica da felicidade, não se faz dela um absoluto.
Depois que se é feliz o que acontece? O que vem depois?
Para que serve a felicidade? (1988, p. 29)
Clarice escreve em Um sopro de vida: Quando estou muito alegre de repente penso que se morre. Para que
existo? E a resposta é: a fome me justifica. Um dedo sangrento me aponta. Estremeço. Será o dedo da morte? (1978,
p. 154-155)
Toda atraente e toda bela, a morte chama por ela.
Oh morte por que não me respondes? Eu te chamo todos os
dias. Fui feita para morrer.
A morte é um instante. Sem história discursiva.
Clarice dá-lhe a mão, declarando antes, em toda sua
ficção, que não chegou a entender nada da vida. Mereceu condecoração por viver cada dia e cada noite trezentos e
sessenta e cinco dias de suplício de tempo. E sozinha.
Mesmo a solidariedade, solução para a vida,
contém a palavra só.
Mas ela, Clarice, nasceu incumbida. Incumbida
do mundo. E quem se incumbe do mundo não pode
simplesmente morrer. Embora em A hora da estrela,
a morte seja sua personagem predileta, para ela, Clarice, ainda era tempo de morangos.
Para sua ficção, será sempre tempo de morangos.
REFERÊNCIAS
A paixão segundo G.H. (edição crítica). Benedito Nunes, coord. Brasília, DF:CNPq, 1988 (Coleção arquivos, v. 13).
______. Lispector, Clarice. Água Viva. Rio de Janeiro. Rocco,
1973.
_________ A via crucis do corpo. Rio, Artenova, 1974.
_________ Perto do coração selvagem. Rio de Janeiro, Rocco, 1998.
________ A paixão segundo G.H. Rio de Janeiro, José Olympio, 1977.
_________Laços de família. Rio de Janeiro. Rocco, 1998.
_________Uma aprendizagem ou O livro dos prazeres. Rio
de Janeiro, Sabiá, 1969.
_________A maçã no escuro. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1961.
_________O lustre, Rio de Jneiro, José Álvaro, 1964.
_________ Felicidade clandestina. Rio de Janeiro, Sabiá,
1971.
_________A hora da estrela. Rio de Janeiro, José Olympio,
1977.
_________Um sopro de vida. Rio de Janeiro, Nova Fronteira,
1978.
Parmênides. Parmênides da Natureza. São Paulo:Loyola,
2002.
Platão, Cratilo, 2ª Ed. Lisboa, Livr. Ed. Sá da Costa, 1994.
Sá, Olga de Sá. A escritura de Clarice Lispector. Vozes. 3ª
ed., 2000.
________. Clarice Lispector: a travessia do oposto. SP, Anablume, 1993.
Todorov, Tzetan; Ducrot, Oswald. Dicionário enciclopédico
as ciências da linguagem. São Paulo, Cultrix, 1977.
Logos: Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa/SP,
Editorial Verbo, s/d.
www.fatea.br/angulo
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