A performance de Clarice Lispector

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A performance de Clarice Lispector
Katiuce Lopes Justino1
1
Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de São José do Rio Preto
(Unesp)
Caixa Postal 15054-000 - São José do Rio Preto – São Paulo – Brasil
[email protected]
Abstract. This article has as its objective to analyze the way the writer
Clarice Lispector (ab)uses the performing properties of the language viewing a
process of discursive staging in her posthumous book Um sopro de Vida. As we
believe, such procedure inserts itself in a literary project marked by the
disarticulation of the traditional rules of narrative. This procedure has been
gaining more and more attention from researchers instead of less critical reading
related to the author’s work. Unveiling a literary project marked by the tradition
awareness, how it is used and its critical staging trace new paths of reading
Clarice’s texts as well as it establishes fundamental questions concerning the
theory of literature.
Keywords: Literary Discours; Clarice Lispector; performance; authorship.
Resumo. Este artigo tem como objetivo analisar o modo como a escritora
Clarice Lispector se vale do (ab)uso da propriedade performática da linguagem
com vistas a um processo de encenação discursiva em seu livro póstumo Um sopro
de Vida.Tal procedimento, conforme acreditamos, se insere num projeto literário
marcado pela desarticulação das leis tradicionais da narrativa, procedimento esse
que vem, cada vez mais, ganhando a atenção dos estudiosos em detrimento de
leituras menos críticas em relação à obra da autora. O desvendamento de um
projeto literário marcado pela consciência da tradição, seu aproveitamento e sua
encenação crítica delineia novos caminhos para a leitura do texto clariceano, bem
como instaura questões fundamentais concernentes à teoria da literatura.
Palavras-chave. Discurso Literário; Clarice Lispector; performance;
autoria.
1. Introdução
A crítica já possui um notável conjunto de trabalhos dedicados à escritura de
Clarice Lispector. No entanto, alguns textos da autora, por se afastarem sutilmente de
seus propósitos mais marcantes, somente agora começam a ser contemplados com a
adequada atenção. Dentre esses textos, podemos citar um dos livros póstumos, Um
sopro de vida (1999), organizado por Olga Borelli e publicado inicialmente em 1977
(ano da morte da escritora).
Tal livro coloca em evidência a relação entre o sujeito criador (metaforizado na
personagem do Autor) e o objeto da criação (metaforizada na figura de Ângela Pralini).
Por inúmeras razões, esta obra tem sido interpretada como uma narrativa
confessional, perspectiva essa que, conforme acreditamos, reduz significativamente a
pontencialidade de produção de sentido que é inerente à obra.
Este artigo pretende recuperar um procedimento específico que, como veremos,
está subordinado à problemática da representação autoral, ou seja, está subordinado à
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manipulação de elementos autobiográficos em favor de um jogo metalingüístico que
envolve o aproveitamento e a concomitante subversão do gênero da autobiografia, o que
pode ser visto como uma maneira inserir uma categoria que é extra-diegética (o autor)
no corpo ficcional da obra. Com a problematização do mecanismo de representação
autoral, esperamos contribuir para que o texto clariceano seja lido com a espessura
adequada, conservando-se ambíguo e tenso como deve ser o texto artístico.
O procedimento de que iremos tratar é, em suma, um processo de
aproveitamento da propriedade performática da linguagem conforme a teorização de
Émile Benveniste em seu artigo Da subjetividade da linguagem (1958), processo esse
que teria o intuito de forjar uma simultaneidade discursiva bem como uma “verdade”
ritualística na recepção do texto. Conforme explicitaremos, trata-se da utilização do
potencial máximo da linguagem por meio da enunciação.
2. Pressupostos Teóricos e Análise
BENVENISTE (1958:286) teorizou que, no interior do sistema verbal, devemos
fazer distinção entre o paradigma normal da conjugação do verbo e um paradigma
específico de determinados verbos que, quando empregados na primeira pessoa do
singular do presente do indicativo, não descrevem meramente uma ação, mas, na
verdade, a realizam. Os verbos performáticos descritos pela lingüística são verbos tais
como eu prometo, eu juro, eu (te) batizo, eu ordeno, eu suplico,etc. Tais verbos, pelo
simples fato de serem pronunciados, realizam a ação que nomeiam.
Os verbos performáticos têm, portanto, como condição de realização, a fato de
estarem na primeira pessoa do singular do presente do modo indicativo. Alguns desses
verbos, como aponta KOCH (1992:13-24), realizam ações mais convencionalizadas ou
institucionalizadas, e dependem de condições bem determinadas para a sua realização. É
preciso então que o detentor do discurso tenha uma autoridade reconhecida para que o
verbo proferido por ele se transforme em uma ação.
Então, quando o juiz, no tribunal, pronuncia a fórmula “Declaro aberta a sessão”
a sessão está aberta. Porém, não adianta a mais ninguém, no lugar exato, no momento
exato, proferir tais palavras, porque só as palavras do juiz é que têm valor, pois ele está
munido de uma autoridade. Assim também acontece com as autoridades religiosas que
batizam ou perdoam, ou com o policial, que dá voz de prisão.
No texto clariceano, o que temos é o funcionamento performático de algumas
orações. É preciso notar aqui que não se trata de uma utilização idêntica àquela descrita
por Benveniste (embora haja ocorrências desse tipo), a intenção desse artigo é sublinhar
a exploração de uma forma que permita à linguagem realizar uma ação na medida em
que a descreve, portanto, o que se pretende é mostrar o tratamento dado ao discurso
literário para que ele transcenda sua própria potencialidade. Conforme pretendemos
mostrar no exemplo selecionado, um verbo não performático “escrever” possui um
funcionamento performático (em função da própria circunstância pela qual entramos em
contato com a linguagem da autora, ou seja, o código escrito). A validade do processo é
assegurada pela utilização do verbo no presente e pelo fato de ele ser atribuído à
personagem do Autor (aquele que tem a autoridade de escrever). Vejamos o exemplo:
Quero escrever movimento puro. (LISPECTOR,1999, p. 11)
A declaração citada pode ser dividida em duas partes: a primeira “quero
escrever” é, inicialmente, declarativa, pois declara um desejo do sujeito produtor, o
desejo de “escrever” algo, portanto ela descreve um estado. Porém, “algo” já foi escrito,
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já está inscrito no próprio discurso escrito. A expressão que antes era desejo torna-se
realidade no momento em que é declarada, pois é concomitante ao próprio ato de
escrever. Portanto, o verbo não descreve, ele pratica a ação, o que o torna performático;
como se estivéssemos lendo “estou escrevendo movimento puro”, ou, para ser mais
exata “eu escrevo movimento puro”. Nota-se aqui o caráter de simultaneidade referido
no início do artigo.
Na segunda parte da citação, porém, o recurso da performance expande-se para
o sintagma nominal, que se volta para ele mesmo, tendo o seu sentido ligado à sua
materialidade expressiva. Vejamos:
O sintagma “movimento puro” é tomado, inicialmente, segundo o seu caráter
descritivo, pois subtende-se que o livro será “movimento puro”, ou seja, uma obra
dinâmica, veloz, de ritmo acelerado. Porém, a falta de referência do sintagma (essa frase
aparece como epígrafe, vem isolada na página), ou seja, o fato de o “movimento” não
ser “movimento de nada” e sim “movimento puro” impede a construção de uma
hipótese de interpretação que seja segura. O adjetivo, em função de sua própria
significação, impede qualquer idéia provisória de desvendamento. O signo “puro” nos
lança num abismo de compreensão, pois criar uma metáfora, por exemplo, “o que se
apresentará é uma narrativa muito movimentada, cheia de acontecimentos” neutraliza o
caráter de pureza do sintagma. “Movimento puro”, então, não leva a sentido nenhum, e
nos resta apenas o caminho que percorremos em busca do sentido, só nos resta o
“movimento puro”, a performance do signo apontando para o próprio signo.
O movimento “descrito” é justamente a subtração do tempo de fruição, ou seja,
o tempo de que o leitor necessita para ler o sintagma “quero escrever” lança-o para
fruição do “está escrito”, assim como a busca da natureza do “movimento puro” nos
frustra, porque estamos buscando algo recuperável, relacionável, impuro.
Já no final da frase, depois de um tempo de movimentação cega, atentamos para
o fato de que isso era a indicação primeira, o sentido “em si”, a frase “era”, não
“descrevia”. O movimento, ou seja, o deslocamento no tempo e no espaço da
linguagem, nos proporcionou um presente intangível, como é, na realidade, o próprio
presente. A performance atuou não só no paradigma verbal, mas também no sintagma
nominal. Houve, se assim o quisermos, um mecanismo de “abuso”.
Um sopro de Vida é um livro cuja “plasticidade” já fora apontada por alguns
pesquisadores. Esse adjetivo, conforme vimos, refere-se, entre outras coisas, à
materialidade da linguagem empregada na obra. De fato, temos em alguns momentos,
uma introjeção evidente do discurso da poesia, como apontamos anteriormente, o signo
apontando para o próprio signo.Nesses momentos, a palavra não “diz” ela “é”.
Temos, a respeito do mesmo tema, um outro exemplo adiante:
Quero escrever esquálido e estrutural como o resultado de esquadros,
compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo.
(LISPECTOR, 1999, p.14)
Conservando a análise anterior do trecho “quero escrever”, vamos atentar
agora para a escolha lexical no restante da frase: “esquálido e estrutural como o
resultado de esquadros, compassos e agudos ângulos de estreito enigmático triângulo”.
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Aqui, torna-se ainda mais evidente a manipulação da linguagem de forma a torná-la
aquilo que descreve.
Em primeiro lugar, temos a referência à geometria, o que aponta,
metaforicamente, para a construção racional do discurso poético, ou seja, um discurso
calculado, (pre)meditado.O adjetivo “esquálido” reforça essa leitura, pois se opõe à
idéia romântica de criação. O cálculo, ou seja, essa maneira de conceber a linguagem
literária como resultado do pensamento racional, resulta em um processo “esquálido”.
Em segundo lugar, temos a aliteração em “resultado de esquadros, compassos e agudos
ângulos” que comporiam o estreito enigmático triângulo. Podemos ligar a utilização do
fonema /s/ à palavra “enigmático” pela atmosfera de suspense que acaba sendo criada,
em função de o trecho assemelhar-se a um sussurro, ou a uma ventania. Temos também
a correspondência entre a profusão de proparoxítonas, cuja pronúncia é sempre marcada
por três acidentes melódicos, ou seja, característica que pode ser lida como uma
referência ao triângulo.
O que vemos, então, é uma profunda consciência da utilização do signo literário
enquanto objeto estético consciente da mensagem que carrega e consciente de sua
própria existência enquanto matéria sonora e imagética.
A elucidação do mecanismo performático nos textos de Clarice Lispector
demonstra como a manipulação da linguagem pode encenar um processo de
presentificação do autor no texto, criando a ilusão de um palco vivo e atual,
metamórfico em sua expressão tal como expressivo na metamorfose que acaba por
forjar. A performance figura como um “acontecimento” que se desenrola sob os olhos
deslumbrados do expectador. Porém, como no ilusionismo, tal deslumbramento é a peça
principal para que a simulação passe despercebida, para que o efeito se complete e se
ofereça à contemplação.
Referências
BENVENISTE, É. Da subjetividade da linguagem. In:_____ Journal de
psychologie. jul – set., 1958. P.U.F. p. 284-93.
KOCH, I. A inter-ação pela linguagem. São Paulo: Contexto, 1992. p.13-24
LISPECTOR, C. Um Sopro de Vida: pulsações. Rio de Janeiro: Rocco, 1999.
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