"A cadeia fica situada num edifício velhíssimo, que fornece

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SEMANÁRIO ALTOMINHO Nº 1219 - 6 DE MAIO DE 2015
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"A cadeia fica situada ... num edifício velhíssimo,
que fornece lamentável espetáculo de miséria e sordidez"
REFLEXÕES SOBRE O PROJETO
DE INVESTIGAÇÃO:
O FIM DA CLAUSURA | OS ÚLTIMOS
ANOS DE FUNCIONAMENTO
DA CADEIA VELHA DE PONTE DE LIMA
Esta investigação insere-se no
estudo de uma fração do passado,
não tão distante mas que realça as
diferenças da estrutura socioeconómica de um país e sobretudo, de
uma região em particular, uma localidade rural.
Um trabalho no âmbito do
‘Arquivo e Memória’ requer uma
pequena ‘viagem no tempo’ de forma a conceber reflexões válidas que
possibilitem que o projeto tenha um
desfecho plausível.
Para além de ter contactado
investigadores e professores de áreas
tangíveis com aquilo que pretendia
estudar, as minhas principais fontes
informativas, que me possibilitaram
recolher os dados a analisar, foram a
Biblioteca Municipal de Ponte de
Lima, o Arquivo Municipal de
Ponte de Lima, A Direção Geral de
Reinserção e Serviços Prisionais e o
contributo de cidadãos limianos,
nomeadamente testemunhos e
curiosos.
A partir destas fontes informativas foi-me possível descobrir fotografias e vídeos inéditos, exumar
memórias sobre o funcionamento
do estabelecimento e relatórios de
inspeção da DGRSP.
A primeira fotografia selecionada
para análise retrata o edifício da
Cadeia Velha rodeado de transeuntes que se apropriam do espaço
público. Numa análise preliminar é
possível reconhecer homens e
mulheres com trajes específicos e,
em pano de fundo, temos o retrato
da Cadeia. A fotografia é a preto e
branco e, por esse motivo, sabemos
que pertence aos primeiros anos de
existência de máquinas fotográficas.
É possível identificar que um
jovem leva em cima da cabeça, um
cesto, mas não se consegue ver o seu
interior. As pessoas parecem estar
atarefadas e conversam entre elas
sem dar, especial atenção ao edifício
que está atrás deles. Uma mulher
carrega aos ombros um saco pesado
e descobre-se entre a multidão,
encostado à parede uma série de
cabos de madeira.
Se olharmos mais em pormenor
vemos que a porta está rodeada de
um material que indicia cimento,
que existem algumas aves permanecem nas grades das janelas. Um
olhar mais atento vai dissecar a imagem e encontrar desde a janela mais
alta até à rua um cordel branco em
toda a sua extensão. E a amarrar
esse cordel uma mão.
Esta fotografia foi captada pela
figura popular Conde d’Aurora, um
entusiasta e curioso que gostava de
captar fotograficamente os dias de
feira. Retratava em detalha a feira
quinzenal de Ponte de Lima. O
Conde d’Aurora era das poucas pessoas que tinha uma câmara fotográfica na sua época.
Não foi possível identificar o ano,
mas sabe-se, que esta fotografia
remonta a década de 50 e pertence
ao Arquivo da Casa d’Aurora.
Após esta análise é possível concluir que esta fotografia desenha a
margem que separa um espaço de
encarceramento da tradução cultural
que é um dia de feira.
O contacto entre os presos e os
transeuntes revela-se num fio de
cordel, invisível aos olhares pregui-
çosos, um pormenor que diz muito
mais do que aparenta ser. No entanto este objeto está distante do olhar
impressionista. Existe uma ligação
entre dois espaços, mas um parece
ser neutro face à multiplicidade do
outro.
A segunda fotografia que decidi
analisar retrata um espaço despido
de corpos, que se complementa com
o modo cru e forense como os elementos pictóricos estão dispostos.
Esta imagem pertence ao arquivo
da DGRSP, está datada do ano de
1959, não se sabe a autoria da pessoa que a captou mas é percetível
que foi tirada por um fotógrafo
amador (talvez um funcionário da
DGRSP) e tem como legenda:
‘Vista parcial da cela dos homens (a
mais sombria) ‘. Esta fotografia faz
parte de uma série de oito fotografias pedidas à Secretaria Judicial de
Ponte de Lima para complementar
um relatório de inspeção à Cadeia
Velha.
Em suma esta imagem tem um
caracter mais forense e inalterado
do que a primeira (etnografia
visual). Transparece as condições de
aprisionamento da Torre, que se
reconhecem precárias e muito limitadas. Esta série de fotografias é
única e nunca foi revelada ao público. No entanto confere um grau de
veracidade relativamente às descrições feitas por cidadãos limianos,
verbalmente.
É uma imagem que revela como
viviam os enclausurados e de que
forma comunicavam para o exterior.
O saco preso ao cordel é uma particularidade a ressalvar na medida em
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que é crucial para entender de que
forma subsistiam os presos.
A terceira análise incidiu sobre
uma imagem em movimento.
As cenas selecionadas descrevem
o edifício da Cadeia e o espaço em
seu redor. Vemos a rua que está em
frente ao edifício, como era a disposição das casas e árvores, mas não é
possível ver para dentro da Cadeia.
A terceira cena selecionada figura
a capela construída na mesma cota
que a janela lateral do edifício a
mando de um cidadão emigrante,
para que os presos pudessem ver e
ouvir as missas. Nessa cena é possível identificar uma senhora idosa e
um provável casal sentado na escadaria.
Na quarta cena selecionada identifica-se uma mulher com um bebé
no regaço a subir um escadório que
leva à parte de trás do edifício da
Cadeia.
A ‘parte de trás’ da Cadeia é retratada na cena seguinte, composta por
um casal com uma criança. O arco
entre a Cadeia e a Capela é retratado quando passa uma mulher com
um cântaro de água.
A escolha das cenas onde se perceciona inúmeras mulheres a lavar a
roupa no Rio Lima, denominadas
vulgarmente como ‘lavadeiras’. Acopladas a estas imagens é possível
visualizar as roupas estendidas no
areal mesmo em frente da Torre da
Cadeia.
Esta peça videográfica faz parte
de um programa da série ‘Terras de
Portugal’ e foi dirigida por Reinaldo
Varela em 1963 para a Rádio e
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SEMANÁRIO ALTOMINHO Nº 1219 - 6 DE MAIO DE 2015
A escolha deste vídeo prende-se pelo facto
de ser o primeiro vídeo filmado em Ponte de
Lima e em que a Cadeia é retratada aquando
dos últimos anos de funcionamento.
A conveniência das cenas selecionadas revela-se no facto de explanar como era o espaço
da vila que circundava o edifício. Quais os
hábitos dos cidadãos na década de 60 e sobretudo qual era a imagem que os presos tinham
ao alcance do seu olhar, isto é, o que eles
podiam efetivamente ver para além das grades. As ‘lavadeiras’ fazem parte do quotidiano
dos encarcerados por serem a principal vista a
partir da Torre.
Relativamente aos relatórios de inspeção, os
signos são completamente arbitrários e remetem para uma decifração de um código dominante. Não tendo em conta o código da língua portuguesa, o símbolo do Ministério da
Justiça reconhece o documento como oficial e
concernente às normas do estado.
No cabeçalho é notória a indicação do Serviço de Inspeção por parte da DGRSP e a
referência à Cadeia Comarcã de Ponte de
Lima.
No relatório de inspeção existe uma parte
escrita à mão, uma caligrafia pouco percetível
mas onde se destacam os vocábulos ‘carcereiro’
e ‘fama’.
No corpo de texto os fragmentos com mais
relevância nesta análise são:
"É mais uma cadeia sem condições no que
este círculo é fértil."
"As retretes são uns buracos, não há vidros
nem redes nas janelas. Não há camas mas uns
estrados de madeira, as mantas são insuficientes e a instalação elétrica precisa de reparação
urgente. Já há água na Cadeia."
"Carcereiro: Chama-se Albertino Rodrigues Martins, tem 26 anos de idade e 1 de
serviço. Vence 800$00 e não tem casa."
"Rancho: Compõe-se de café e ao almoço e
ao jantar 1 litro de sopa forte e 600 grs. de pão
de milho. É pouco variado e de deficiente
valor nutritivo."
"Higiene: Não há banho por falta de condições. Os reclusos cortam a barba 1 x por
semana e o cabelo 1 x por mês."
"Religiosa: o arcipreste visita frequentemente os reclusos e confessa-os pela Páscoa."
Nos trechos sublinhados é possível identifi-
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car fielmente, através das palavras do inspetor,
quais eram as condições de higiene, o quotidiano das refeições, o nome do carcereiro em
atividade, o que comiam e quanto custavam
determinados serviços ao estado. Até o vencimento do carcereiro é identificado.
Há uma transparência cruel mas autêntica
do espaço, é possível reconhecer uma preocupação pelas condições em que permaneciam
os reclusos.
Neste relatório não é clara a ideologia
dominante, mas através da exploração de
como funcionava a cadeia podemos deduzir
que a realidade que se apresenta nesta cadeia
era similar a tantas outras comarcãs e de certo
modo é o reflexo da política vigente no ano da
publicação do relatório.
No segundo relatório datado de 1958, escrito no Porto, reconhecemos um símbolo diferente, nomeadamente, a Procuradoria da
República – Junta da Relação do Porto. Desta
vez o relatório é dirigido ao Diretor dos Serviços Prisionais.
"A cadeia fica situada ao centro da vila,
num edifício velhíssimo, que fornece um
lamentável espetáculo de miséria e sordidez."
"Dada a sua situação é impossível evitar o
contato dos presos com o exterior, o que permite, por vezes, aos mais audazes conseguir
instrumentos para efetuar ou tentar evasão."
"Onde se misturam indiscriminadamente
os delinquentes primários com indivíduos já
cadastrados."
Nos excertos selecionados é relevante notar
que o procurador da república vê a Cadeia de
Ponte de Lima como um lamentável espetáculo de miséria, ou seja, que os presos são despidos de vergonha e são expostos a toda a vila,
que a frequente comunicação com o exterior
facilita a fuga e que não há separação dos
reclusos nem pelo tipo de crime nem pelo seu
comportamento.
No ano em que este relatório foi publicado
a Cadeia não tinha carcereiro, o que pode justificar as palavras impiedosas que traduzem a
realidade da Cadeia. O trecho colocado a vermelho e sugere urgência e alarme perante a
situação.
Neste relatório é possível identificar uma
relação direta com a ideologia dominante
através da congratulação típica do Estado
Novo: ‘A Bem da Nação’.
O saco retratado na primeira imagem é um
ícone, uma referência transversal a várias
entrevistas e testemunhos, onde os presos
conseguiam contatar com o exterior através
deste método. O objeto que servia como recetáculo varia entre saco e lata nos diferentes
discursos mas é comparável a um método utilizado atualmente nos espaços prisionais,
denominado como ‘elevador’.
Os presos eram estigmatizados e envergo-
nhados nos dias de maior afluência de cidadãos na vila, isto é, nos dias de feira.
Os retratos verbais, as imagens mentais do
interior da Cadeia são verificados através das
fotografias anexas aos relatórios de inspeção,
onde se pode visualizar as condições precárias
de aprisionamento, a insalubridade do edifício
e os recursos nefastos para subsistência.
Foi possível constatar que os presos estavam
em contato permanente com o exterior, através do método de ‘elevador’ ou através de
fugas. Que o panorama visível todos os os dias
passava pelas lavadeiras no rio (para além dos
dias de feira).
Na análise semiológica dos documentos
foram identificados símbolos e ícones que
remetiam para além da própria Cadeia, para
uma ideologia dominante: o estado Salazarista.
A decifração do texto leva-nos a informações detalhadas, mormente a opinião pública
dos espaços de encarceramento, o fim da sua
finalidade corretiva e as condições específicas
de higiene, salubridade, ambiente, refeições,
acesso e difusão da atividade religiosa.
Os próprios inspetores ligados à ideologia
dominante, refletem sobre a miséria vivida
naquele edifício e sublinham a necessidade de
mudança. Estas aceções fazem-nos refletir
sobre o que a sociedade identifica como desviante da norma, a criminalidade efetiva, a
justiça do homem vs. a justiça social.
A aplicação da pena é agravada com as condições miseráveis daquele edifício. Isto é, para
além da crueldade que está intrínseca na privação da liberdade, os presos teriam mais castigos herméticos acoplados à sua pena, como a
vergonha de serem expostos à comunidade, o
estigma de comportam por estarem enclausurados e a falta de condições de diversas naturezas que dificultavam a permanência naquele
espaço.
A crise que assolou Portugal no regime do
Estado Novo determinou com clareza que os
indivíduos que cometem crimes, os loucos e
insanos não deveriam ter um melhor tratamento do que aqueles que pertenciam à classe
social e económica mais baixa. Isto porque a
pobreza e a precaridade eram uma constante
nas regiões rurais, como é o caso de Ponte de
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