O grito: imagem e manifestação musico-filosófica nas

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Anais do SEFiM, Porto Alegre, V.02 - n.2, 2016.
O grito: imagem e manifestação musico-filosófica nas obras de
Richard Wagner
The Cry: imageand musical-philosophical manifestation in Richard
Wagner’sthoughts and Works
Palavras-chave: Wagner; Schopenhauer; Vontade; Grito; Dissonância; Ópera.
Keywords: Wagner; Schopenhauer; Will; Cry; Dissonance; Opera.
Daniel Salgado da Luz Moreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro
[email protected]
Este trabalho pretende discutir a obra artística e teórica de Richard Wagner através da
imagem do “grito” presente em seu ensaio Beethoven (1871). Neste ensaio Wagner irá eleger Arthur Schopenhauer como filósofo, cujo pensamento musical é inspiração para suas
óperas e seus escritos. O “grito”, descrito no Beethoven e incidente em diversas das óperas
de Wagner, expressaria de forma direta e imediata a “Vontade mesma”, e seu uso sistemático em suas obras musicais1 transformaria o discurso musical, em que som e significado
são indissociáveis. Assim, a música exprime os estados de espírito universais do Homem,
cumprindo sua função como narrativa mítica e expressão de conteúdos filosóficos.
Uma das figuras que mais impactou Wagner, gerando admiração pela filosofia e incondicional fidelidade àquele modo de pensar, segundo ele próprio, foi Arthur Schopenhauer.
Ao ser apresentado ao O mundo como vontade e como representação, os temas da Vontade e
da música, como expressão e manifestação da mesma, tornam-se recorrentes nas obras de
Wagner, sobretudo no Tristão e Isolda, no Anel e em seu ensaio sobre Beethoven.
Schopenhaeur apareceria no Beethoven como filósofo cujo pensamento musical seria pronunciadamente fonte de inspiração para Wagner, expressando a Verdadeira essência da
música. Nesse ensaio, Wagner identifica no pensador a filosofia que melhor compreendeu
a música, sendo este “o primeiro que reconheceu e definiu, com uma claridade filosófica,
a posição da música em relação às outras artes e lhe atribuiu uma natureza diferente”
(WAGNER, 1987, p. 18), pois “a música fala uma língua que todos podem compreender
imediatamente e sem a necessidade de intermediário” (Id., Ibid.). Assim, sem recorrer a
representações e esquemas, o discurso musical refere-se às coisas tais como elas são em si
mesmas, contendo em si uma “ideia de mundo”(Id., Ibid). Beethoven, o primeiro compositor à elevar música a condição de arte capaz de expressar conceitos de profundidade
filosófica, Schopenhauer o primeiro a compreendê-la e Wagner, o escolhido levando às
últimas consequências ambos projetos fazendo da música um modo de filosofia.
A interpretação schopenhauriana de Wagner considera a Vontade como elemento on1 O grito é motivador do uso constante de dissonâncias, sendo, portanto, princípio para desenvolvimentos
harmônicos e melódicos pouco convencionais.
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tológico universal para o Homem e todas as coisas, cujo acesso e expressão são diretos
na música; isto é, o discurso musical não expressa o fenômeno, mas a essência intima
das coisas, a vontade de permanência (Vontade). O argumento usado por Wagner, que
valida a potencialidade da música em relação aos demais discursos artísticos e racionais,
recorre à imagem do “grito”. Ao longo do Beethoven, Wagner descreve cenas nos quais
o “grito” é a manifestação direta, imediata dos sentimentos mais interiores do Homem,
sendo compreendidos sem o intermédio da razão. Segundo Wagner o “grito, lamento ou
exclamação é a exteriorização mais imediata da emoção de nossa vontadecompreendemos,
por isto mesmo, que o apelo que chega ao nosso ouvido é a exteriorização da mesma
emoção” (WAGNER, 1987, p. 24). Isto é, não há ilusões, equívocos na exteriorização
dos sentimentos e estes são mantidos integralmente, por consequência não precisam do
intermédio de nada para serem compreendidos. Seja o “grito” um lamento, um brado de
luta, exclamação de dor ou até de júbilo o ouvinte de imediato sabe ao que se refere o som.
A imagem do “grito” é uma grande contribuição filosófica de Wagner, pois nela encontrase o elo entre o fazer filosófico e o fazer musical. O “grito” é manifestado com reincidência
em suas óperas: O Holandês Voador, Tristão e Isolda, Anel do Nibelungo e no Parsifal, expressando nelas a condição trágica do lamento, própria do pessimismo de Schopenhauer,
e sugerindo uma unidade mínima de dissonância e de suspenção harmônica trabalhada à
exaustão no Tristão. Gritos são encontrados em forma de brados, em canções nas óperas,
escritos na partitura (Tristão e Parsifal), incidindo na harmonia orquestral, nas tensões entre materiaismotívicos (leitmotiv) das personagens. Esta imagem, que sugere nela mesma
a ideia de horror e distorção sonora, é inserida no discurso musical de Wagner sistematicamente de modo a motivar o uso de harmonias pouco convencionais (o acorde do Tristão), ratificando o tempo inteiro que a música expressa estados de espírito universais do
Homem, cumprindo sua função de narrativa mítica e filosófica em suas óperas e filosófica,
já que sua Gesamtkunstwerk era capaz de exprimir a Vontade mesma com tanta clareza
filosófica quanto um ensaio teórico.
Por fim Wagner, ao aproximar sua produção operística ao fazer filosófico, une o pensamento presente no Mundo com a metafísica da música absoluta da tradição do pensamento romântico alemão. O drama musical nasce da metafísica da música e propõe-se como
continuação do projeto beethoveniano em que os sons “puros” estão conjugados necessariamente com a poesia, contribuindo para a “evolução do espírito humano”. A união
entre música e poesia está prevista no “grito”, pois ele é substrato da Vontade e expressa
ao mesmo tempo o drama. O “grito” é um autêntico conceito de Wagner por atribuir
relevância filosófica à suas óperas, e constituindo o fundamento para um novo discurso
dos sons, influenciando compositores e filósofos como Berg e Nietzsche.
Referências
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Unesp, 2009.
LISARDO, Roger. Richard Wagner e a música como ideal romântico. São Paulo: Editora Unesp,
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Paulo: Editora da Unesp, 2005.
WAGNER, Richard. Beethoven. Trad. Theodemiro Tostes. Porto Alegre: L&PM Editores, 1987.
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