Sandra Soares Della Fonte Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Universidade Aberta do Brasil Universidade Federal do Espírito Santo Educação Física Licenciatura U N I V E R S I D A D E F E D E R A L D O E S P Í R ITO SANTO Núcleo de Educação Aberta e a Distância Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Sandra Soares Della Fonte Vitória 2010 Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Pró-Reitora de Graduação Isabel Cristina Novaes Ministro da Educação Fernando Haddad Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação Francisco Guilherme Emmerich Universidade Aberta do Brasil Celso Costa Pró-Reitor de Extensão Aparecido José Cirillo Universidade Federal do Espírito Santo Diretora-Administrativa do Ne@ad e Coordenadora UAB Maria José Campos Rodrigues Reitor Rubens Sergio Rasseli Diretor-Pedagógico Valter Bratch Vice-Reitor e Diretor-Presidente do Ne@ad Reinaldo Centoducatte Diretor do Centro de Educação Física e Desporto Valter Bratch Coordenação do Curso de Educação Física EAD/UFES Fernanda Simone Lopes de Paiva Revisora de Conteúdo Silvana Ventorim Sumário Revisora de Linguagem Alina Bonella Design Gráfico LDI - Laboratório de Design Instrucional Ne@ad Av. Fernando Ferrari, n.514 CEP 29075-910, Goiabeiras Vitória - ES (27) 4009 2208 5 Apresentação Introdução 7 Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 11 1 Filosofia tem a ver com amor: como assim? 13 2 Filosofia: um conhecimento que nem sempre existiu 17 3 Nosso primeiro texto 19 4 Filosofia como atitude, reflexão e pensamento sistemático 21 5 Filosofia, Arte e Ciência 22 6 Sobre a (in)utilidade da Filosofia 24 7 Podemos ir para a próxima unidade? 25 Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP) (Biblioteca Central da Universidade Federal do Espírito Santo, ES, Brasil) D357e Della Fonte, Sandra Soares, 1972Educação física, educação e reflexão filosófica / Sandra Soares Della Fonte. - Vitória : Universidade Federal do Espírito Santo, Núcleo de Educação Aberta e a Distância, 2010. 48 f. : il. Inclui bibliografia. ISBN: 1. Educação física - Filosofia. 2. Educação - Filosofia. I. Título. CDU: 796.01 Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico 27 1 Sim, já temos uma noção do que trata esta unidade! 29 2 Escola: um espaço de conflitos sociais 29 3 A pedagogia do opressor e a pedagogia do oprimido 33 4 Educação Física: entre a educação bancária e a educação libertadora 35 Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 37 1 Corpo na tradição filosófica: aspectos gerais do dualismo corpo e alma 39 2 Corpo-máquina: uma perspectiva ainda atual 41 3 Há alguma chance de se conceber o ser humano de outra forma? 43 4 Corpo estático? Não! O corpo no seu movimentar-se! 45 5 Já acabou? 49 LDI Coordenação Heliana Pacheco Hugo Cristo José Otavio Lobo Name Editoração Priscilla Martins Lista de imagens 51 Impressão GM Gráfica e Editora Referências 53 Ilustração Lucas Toscano Capa Priscilla Martins 5 Apresentação O lá! Muito prazer! Quem sou eu? Sou a Sandra! Uma capixaba de Vila Velha (ES). Você deve imaginar que existam muitas Sandras de Vila Velha. É verdade! Não é fácil a tarefa de se apresentar. Poderia acrescentar que sou professora da UFES desde 1997, graduei-me inicialmente em Educação Física e depois em Filosofia, fiz mestrado e doutorado em Educação, com estudos focados na Filosofia da Educação. É pelas trilhas do exercício filosófico que tenho orientado meus estudos nos últimos anos. A Filosofia é uma das minhas paixões... Mas, reconheço, esse acréscimo ainda é pouco para uma boa apresentação. Para facilitar, poderia aqui listar as muitas tarefas que gosto de fazer, as lutas políticas com as quais me envolvo, as minhas manias e, mesmo assim, sei que continuaríamos com informações insuficientes para nos conhecermos. A escritora Clarice Lispector escreveu: “A única verdade é que vivo. Sinceramente, eu vivo. Quem sou! Bem, isso já é demais...”. Mas, se formos seguir isso à risca, o nosso primeiro encontro fica difícil. Talvez este fascículo nos ajude a superar esse impasse. Afinal, prolongamos muito do que somos no que fazemos! Aqui você encontrará um pouco do que sou. Elaborar este fascículo foi uma tarefa desafiadora. Você já entende que muitas indicações do que e como vamos estudar se alteram no próprio curso em função do nosso encontro com nossos alunos e alunas. Sinto, portanto, que o fascículo está incompleto. Existem frases que apenas você poderá escrever. Em alguns outros momentos, escreveremos todos juntos: você, eu, os tutores e seus colegas. O fascículo é um texto aberto para a presença de várias mãos, apesar de conter sempre a intencionalidade de quem o elaborou. Além disso, este fascículo pode se tornar um papel morto, como você bem sabe... Há muitas coisas que necessitam ser feitas, pensadas e sentidas para além dele. Nesse sentido, precisamos compreendê-lo como uma das mediações dos nossos encontros, uma espécie de ponto de partida. Será um grande problema caso um de nós o tome como fim em si mesmo. Ele é apenas um norte para nosso curso. É preciso ir além do que está aqui, se quisermos qualificar a nossa formação. Este tem que ser o nosso primeiro acordo: o fascículo é um convite! O poeta Mário Quintana escreveu: “Livro bom, mesmo, é aquele de que às vezes interrompemos a leitura para seguir — até onde? — uma entrelinha... Leitura interrompida? Não. Esta é a verdadeira leitura continuada”. Por ora, fica o desejo de que este seja um fascículo bom, que, longe de pensar a formação de professores circunscrita a um mero fazer profissional, remeta sempre para o horizonte da formação humana plena e contribua para a aliança entre competência técnica e compromisso político! Com carinho, Profa. Sandra Soares Della Fonte 6 7 Introdução O nosso curso engloba três grandes temas: a Educação Física, a Educação e a Filosofia. Com certeza, você já acumulou certa discussão sobre a Educação Física e sobre o fenômeno educacional ao longo de sua vida e ao longo do curso. Fica a pergunta: o que a Filosofia tem a ver com isso? Em que ela é importante para o professor? Mais precisamente, o que ela tem a ver com a Educação Física? Você vai filosofar com seus alunos? Aplicará esse conhecimento em suas aulas? Por que essa disciplina faz parte do currículo do curso de formação de professores de Educação Física? Acesse a Plataforma Antes de apresentarmos a proposta do curso, gostaria que você registrasse no Fórum da disciplina algumas informações como ponto de partida do nosso trabalho: Você estudou Filosofia em algum momento do seu processo de escolarização? Caso sim, quando? Do que se lembra dessa experiência? O que você já ouviu ou leu de positivo/negativo sobre a Filosofia? Para você, a Filosofia é... Qual razão você imagina para a existência de uma disciplina de cunho filosófico na formação do professor de Educação Física? As respostas a essas questões servirão de base para a sua autoavaliação ao longo da disciplina. Vai ser bastante interessante! Durante o curso, você retomará as suas concepções iniciais e as analisará, de modo rigoroso, a partir do que a disciplina tem sido capaz de propiciar a você. Será que até o término do curso você terá as mesmas impressões? Será que você mudará alguma coisa? O que mudará? O que permanecerá? Por quê? Quais argumentos você já tinha e teve oportunidade de aprofundar? De quais novos argumentos você conseguiu se apropriar? Essas indagações só poderão ser revistas ao término deste fascículo. Entretanto, é preciso primeiro responder às questões mencionadas de maneira honesta e sincera. Não receie colocar exatamente o que você pensa. Se você ainda não respondeu, volte lá. Nessa tarefa, provavelmente você perceberá alguns elementos que trazem desafios para quem deseja iniciar sua aproximação com o conhecimento filosófico. Ouso levantar alguns. Primeiro, todos já possuímos alguma noção desse conhecimento (algumas até mesmo engraçadas, não é?). Segundo, muitos colegas, ou até você mesmo, já tiveram contato com a disciplina Filosofia, mas essa experiência foi pontual, sem grande regularidade. Por que será? Será que isso se deve apenas à escola na qual você estudou? Se levarmos em consideração a história recente da presença da Filosofia no currículo escolar brasileiro, perceberemos que a sua experiência particular se vincula a 8 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 9 questões históricas e sociais mais amplas. Com a ditadura militar pós-1964, a Filosofia saiu do núcleo comum do currículo das escolas brasileiras. No seu lugar, apareceram a Educação, Moral e Cívica (para o “ginásio”), a Organização Social e Política do Brasil (para o antigo 2º grau) e Estudos dos Problemas Brasileiros (para o ensino superior). Essa substituição não foi por acaso. Mais do que contribuir para formar um sujeito capaz de pensar autonomamente, pretendia-se formar um cidadão obediente, patriota, para preservar a ordem nacional. Curiosamente o momento de saída da Filosofia do currículo escolar coincidiu com a obrigatoriedade da Educação Física em todos os níveis de ensino, inclusive o universitário. Caso você retome alguns aspectos da história da Educação Física brasileira com o livro de Betti (1991), você possivelmente se lembrará de que, no período da ditadura militar, iniciada em 1964, houve a ascensão do esporte à razão de Estado e a inclusão do binômio Educação Física e Esporte na política de planificação governamental do Regime Militar. Além da extensão da obrigatoriedade da Educação Física a todos níveis de escolaridade, esse período se caracterizou pela esportivização da Educação Física escolar pelo modelo piramidal,1 com o objetivo de promover o desenvolvimento da aptidão física e buscar talentos desportivos; e também pela expansão dos cursos de Educação Física, em especial na década de 70, sob a égide do currículo esportivizado. Acreditava-se, portanto, que, ao se envolver com o esporte, as pessoas deixariam de pensar na condução política autoritária do País. Em outras palavras, a Educação Física, entendida como iniciação esportiva, afinava-se com os interesses conservadores que governavam o Brasil. Por isso, a determinação legal para a ampliação de sua presença na escola. Então, enquanto a Filosofia desaparecia do currículo escolar por representar uma ameaça aos interesses do momento, a Educação Física era celebrada por compactuar com esses mesmos interesses. Apesar do término da ditadura em 1984, o retorno da Filosofia como disciplina escolar não foi regularizado de imediato. Somente em 2008, a sua inclusão e a da Sociologia nos currículos das escolas públicas e particulares de ensino médio foi garantida pela Lei no. 11.684/2008. Se, por um lado, a história recente nos sugere um afastamento entre a Educação Física e a Filosofia, por outro, há, pelo menos, dois fatos que sinalizam uma situação contrária, isto é, uma aproximação entre elas. Você já percebeu que, principalmente no ensino médio, quando o aluno se encontra às vésperas do vestibular, a Educação Física acaba sendo pouco valorizada? A Educação Física compõe, na verdade, o rol das disciplinas “pobres” na escola, junto com Artes, Filosofia e Sociologia. Além disso, quando a Educação Física brasileira passou pela chamada “crise de identidade” na década de 1980, muitos intelectuais da nossa área mergulharam nos estudos das ciências humanas e na discussão filosófica. Talvez, ao término do curso, você perceba por quê. No momento, cabe observar que a tarefa de nos aproximarmos da Filosofia se apresenta desafiante diante das concepções que já trazemos e da história de contato com esse campo do saber. Por isso, vamos fazer uma provocação e uma proposta. Vocês já ouviram algumas frases de desprezo em relação ao professor de Educação Física? Eu já! Algumas frases me acompanharam durante a minha graduação, como: “O professor de Educação Física tem cérebro de ervilha”; “Professor de Educação Física não possui neurônios na cabeça, só músculo” etc. Para esse imaginário, as preocupações do professor de Educação Física seriam banais. Sabemos que, devido à sua prática e desinteresse, muitos professores de Educação Física até reforçam esse imaginário negativo da área. Mas, para aqueles comprometidos, a situação é revoltante! Quem sabe rechear a nossa formação a partir do entrelaçamento entre Educação Física e Filosofia não seja um caminho que contribua para pôr em xeque essa forma caricatural de perceber a nossa área? Nesse sentido, proponho que, ao estudar este fascículo, você tenha a chance de: a) compreender elementos constitutivos do saber filosófico; b) refletir sobre as relações entre o exercício filosófico e a prática educativa, questionando o que é educar, para que educar, quem educar; c) justificar a importância da Filosofia na formação do professor de Educação Física por meio da discussão filosófica sobre o corpo e o movimento. O que achou da proposta? Sei que há muitos elementos ainda por compreender, mas você entendeu de modo correto o nosso itinerário geral. Partiremos do que é a Filosofia, da sua relação com a Educação até chegarmos finalmente à Educação Física. Espero que você aproveite o curso! 1 Na base da pirâmide, encontra-se a Educação Física Escolar, seguida das atividades físicas de lazer e, por fim, no seu cume, o esporte de alto rendimento. Nesse modelo, a lógica é que o campeão estimula a prática das massas; por sua vez, a Educação Física Escolar transforma-se em iniciação esportiva e seleção de talentos. 10 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 11 Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? Nesta unidade, faremos uma aproximação geral com a Filosofia. Afinal, como estabelecer qualquer relação entre Filosofia e Educação, Filosofia e Educação Física, se não soubermos do que trata o conhecimento filosófico? Assim, abordaremos: alguns aspectos históricos relativos ao nascimento da Filosofia; a relação entre Filosofia e amor, Filosofia e emancipação; as exigências do saber filosófico; as suas interfaces com outros conhecimentos e a sua (in)utilidade. O nosso estudo tem como base um texto obrigatório (Chauí, 2006) e alguns materiais complementares (filmes, livros, artigos etc.). Eles serão indicados no momento devido. Por ora, continue a leitura do fascículo, pois você encontrará a primeira pista sobre o que é Filosofia. 12 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 1 Filosofia tem a ver com Amor: como assim? “ “ „ E que a minha loucura seja perdoada. Porque metade de mim é amor e a outra metade... também. Oswaldo Montenegro Amar: Fechei os olhos para não te ver e a minha boca para não dizer... E dos meus olhos fechados desceram lágrimas que não enxuguei, e da minha boca fechada nasceram sussurros e palavras mudas que te dediquei... O amor é quando a gente mora um no outro. Mário Quintana „ E ssa é a minha primeira indicação para você. Isso mesmo, não é possível filosofar sem amar. O problema é que não avançaremos muito se não soubermos o que é amor. Assim, vale a pena nos determos nas indagações presentes nos trechos das músicas a seguir: “ “ O que é o amor? Onde vai dar? Parece não ter fim... [...] O que é o amor? Onde vai dar? Por que me deixa assim? Danilo Caymmi Quem inventou o amor? Legião Urbana „ „ O que é o amor? Por que se ama? Como se diferencia o amor de outros sentimentos? É possível amar e odiar ao mesmo tempo? Existem Figura 1. Venus e Cupido, de Alessandro Allori, século XVI amores diferentes e hierarquizados? O amor é eterno ou não? O amor se transforma em outra coisa? Amar é uma das experiências elementares e cotidianas da nossa vida. No entanto, diante dessas indagações, parece que fica difícil qualificar essa faculdade humana. Santo Agostinho, filósofo muito ligado à Igreja Católica, nasceu em 354 e morreu em 430. Ele disse algo em relação ao tempo que se assemelha muito com esta situação: “O que é, por conseguinte, o tempo? Se ninguém me perguntar, eu sei; se o quiser explicar a quem me fizer a pergunta, já não sei”. Do mesmo modo, se alguém não pergunta, sabemos o que é amor; mas, quando a pergunta aparece, ficamos tontos e confusos para falar disso que vivemos. 14 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 15 Figura 4. Platão O esforço de compreender o amor é antigo. Na mitologia antiga (greco-romana), existem vários mitos que buscaram explicar a origem do amor (Eros, em grego). Você conhece algum? Em algumas versões mitológicas, Eros é uma das primeiras divindades que apareceu, responsável pela união dos seres e coesão do mundo. Visto dessa forma, ele era um deus muito importante para os gregos porque teria sido crucial na estruturação do mundo, ou seja, na passagem do caos (desordem, pura fragmentação) para o cosmo (mundo ordenado e organizado). Em outras versões mitológicas, Eros aparece como filho de Afrodite (também conhecida como Vênus) e irmão de Anteros. Na Figura 1, você pode conferir Eros junto com sua mãe, a deusa do amor. Há, também, uma linda versão mitológica que conta como Eros se apaixonou por Psique (a alma humana). Ao lado (Figura 2), você pode conferir uma das formas como essa história foi retratada Figura 2. O rapto de Psiquê, de William na pintura. A imagem mais comum que temos de Eros é a Adolphe Bouguereau, 1985 do Cupido (Figura 3), um garotinho alado, travesso, com uma venda nos olhos; em uma mão, possui o arco e a flecha (amor implica esforço, “caça”); na outra, um globo (alcança toda terra e ninguém dele escapa) ou tocha (força intensa/ardente). Apesar de existirem versões distintas sobre a sua origem, Eros possui algumas características recorrentes em todas elas. Em geral, Eros é uma divindade, bela, responsável pela coesão e afinidade do mundo e dos seres. Ele também sempre se vincula a uma contradição. Às vezes, é fruto de pais contraditórios; outras vezes, ele só se desenvolve na presença de seu contrário (Anteros, ódio); em outras, ele une coisas que, em princípios, seriam opostas. Muitos filósofos também refletiram sobre o amor. Uma das reflexões mais bonitas que existe na história da Filosofia é a de Platão. Quem foi Platão? Foi um filósofo grego que viveu entre 428/27 a.C. e Figura 3: Jovem se defende de Eros, de 347 a.C. Sua forma de escrever é por William-Adolphe Bouguereau, 1880 meio de diálogos. Geralmente a personagem principal desses diálogos é seu mestre, Sócrates. Platão escreveu sobre o amor em vários textos. Porém, um deles se tornou clássico. É o livro chamado O Banquete ou O Simpósio. Na época de Platão, 16 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica filosofava-se em locais públicos, em academias (escolas) e também em banquetes. Um banquete era oferecido por famílias aristocráticas e organizado em dois momentos: o da refeição propriamente dita e o da bebida coletiva (simpósio). Esse segundo momento era moderado por um simposista que controlava a bebida. Assim, no livro O Banquete ou O Simpósio, Platão narra um desses eventos no qual seu mestre Sócrates estava presente e cujo tema primordial da discussão foi o amor. Todos os convidados desse banquete foram incentivados a fazer, no momento do simpósio, um elogio ao amor. A seguir, destaco o trecho de um artigo no qual explico o que Sócrates, segundo Platão, teria falado. Um dos primeiros elementos de destaque do discurso socrático está em sua apresentação do Eros como força cósmica que perpassa todos os seres. O amor remete a algo, é sempre amor de alguma coisa. A relação amorosa se volta para algo do qual se carece. Portanto, para Sócrates/Platão, o amor é desejo, e o desejo é carência e necessidade do que não se tem: ‘[...] o de que se carece; eis, precisamente, o objeto de desejo e do amor’ (Platão, 1987, §200e). O amor atravessa a condição humana à medida que ela se apresenta como incompletude e falta; esse caráter faz do ser humano um ser de desejo. Desse modo, o amor é um movimento, visto que estabelece uma relação que se volta para o não-eu, ou seja, para aquilo do qual se necessita e em nós não se encontra. Além disso, ele também se dirige para os meios de sua aquisição, para a satisfação dessa carência. Eros parte da privação e almeja a plenitude. Nesse sentido, ele envolve, ao mesmo tempo, a passividade de ser afligido pela carência e a atividade desejante de saciar essa privação. Em Platão, o sentimento de não-acabamento humano tem como fonte ‘[...] a incompletude intrínseca à condição de alma decaída’ (Pessanha, 1990, p. 94) que, ao encarnar em um corpo, se esquece da contemplação das coisas existentes na sua forma pura, que lhe foi possível no mundo das idéias, mundo no qual se encontrava antes de habitar o corpo. A perda do conhecimento adquirido na vida anterior à encarnação da alma é sentida como nostalgia de um mundo perfeito diante da existência corpórea na multiplicidade do mundo dos sentidos. Outro elemento de grande vigor na reflexão platônica em O Banquete é a natureza contraditória e instável de Eros. Na tradição mitológica grega, como deus da união e da afinidade universal, para se desenvolver, Eros precisa do seu adversário Anteros, deus da antipatia e da aversão. Poetas narram que Vênus se queixou à deusa Têmis que seu filho Eros não crescia, permanecia criança. Têmis lhes teria respondido que ele não cresceria enquanto ela não tivesse outro filho e, portanto, desse a Eros um irmão; assim, para Eros crescer, Vênus concebeu Anteros (Commelin, 2000). Como carência e desejo, o Eros platônico é impulso que remete a um outro e implica, necessariamente, o reconhecimento do não-eu, da negatividade. Se, por um lado, Platão preserva o viés contraditório do amor da tradição grega, por outro, ele inova em, pelo menos, dois aspectos: ele recria o mito de nascimento de Eros e retira desse deus sua aura divina. Para ele, o amor não é um deus, mas um intermediário entre mortais e imortais, ou seja, um gênio, um demônio (em grego, dáimon). Esse termo não tem sentido pejorativo. Nesse contexto, refere-se ao elo entre deuses e mortais. A função demoníaca ‘Interpreta e leva para os deuses o que vai dos homens, e, para os homens, o que vem dos deuses [...]. Colocado entre ambos, ele preenche esse intervalo, permitindo que o Todo se ligue a si mesmo. [...]’ (Platão, 1987, §202e-203a). O caráter mediador de Eros pode ser mais bem compreendido com o mito de seu nascimento, que teria sido contado a Sócrates por Diotima. Segundo a sábia mulher, os deuses realizaram um banquete para comemorar o nascimento de Afrodite. Dentre eles, encontrava-se Poro (representava a riqueza e o expediente). No entanto, Penia (a pobreza) chegou ao final da festa para mendigar e viu Poro embriagado e dormindo. Diante da sua falta de recursos, Penia aproveitou a oportunidade e concebeu um filho com Poro – Eros. Sendo filho de Poro e Penia, da riqueza e da indigência, Eros herdou características de ambos: não é belo nem feio, não é bom nem mau, não é pobre nem rico. Essa condição lhe permite trilhar o intervalo de um extremo ao outro. Assim, o Eros platônico é um demônio que medeia a relação vertical entre deuses e mortais. O caráter demoníaco de Eros é ser mediador entre desiguais e, como tal, cumprir a função de coesão do cosmo (Della Fonte, 2007, p. 330-331). Como nem os sábios (por julgarem tudo saber), nem os ignorantes (porque ignoram a sua própria condição de ignorância) buscam a sabedoria, Eros se encontra entre uns e outros e, por isso, pode se dedicar à Filosofia. Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 17 Ele não é sábio tampouco um completo ignorante, conhece o que ignora, aquilo que não sabe. Por ter ciência da sua insciência, ele deseja o saber, ele busca o saber e isso é uma necessidade, enfim, ele é amante da sabedoria. Reconhecer nossa ignorância é o ponto de partida para buscar o saber: “só sei que nada sei” e é por isso que amo o saber, que dele necessito. Agora você tem condições de compreender a etimologia da palavra Filosofia. Ela vem de dois termos gregos: philia/philos (amor, amizade) e sophia/sophos (saber, sabedoria). Filosofia é o amor ao saber, amor à sabedoria. Por essa razão, filosofar é sempre uma experiência amorosa. Aproveitamos para compartilhar com você algumas questões: será que, no fundo, nós, professores, não precisamos também ser filósofos? O professor não teria o intuito de, a partir da especificidade de sua área, levar os alunos a amarem o conhecimento? Mas como ele pode fazer isso, se ele próprio, muitas vezes, não tem uma relação amorosa com o saber? Pense um pouco nessas questões... 2 Filosofia: um conhecimento que nem sempre existiu A Filosofia tem data e local de nascimento. Ela surgiu entre o final do século VII a. C. e início século VI a. C. nas colônias gregas da Ásia Menor (particularmente na Jônia), na cidade de Mileto. Confira no mapa a seguir: Mar Negro EUROPA Atividade Estagira GRÉCIA Explique o conceito de amor de Platão e o relacione com a música Fico assim sem você, de Abdullah e Cacá Moraes. “ Avião sem asa Fogueira sem brasa Sou eu assim sem você Futebol sem bola, Piu-Piu sem Frajola Sou eu assim sem você Tô louco pra te ver chegar Tô louco pra te ter nas mãos Deitar no teu abraço Retomar o pedaço Que falta no meu coração ÁSIA Samos Éfeso Mileto Jônia Mar Mediterrâneo ÁFRICA N 0 175 350km O L 1cm - 175 km S Por que é que tem que ser assim Se o meu desejo não tem fim? Eu te quero a todo instante Nem mil alto-falantes Vão poder falar por mim Eu não existo longe de você E a solidão é o meu pior castigo Eu conto as horas Pra poder te ver Mas o relógio tá de mal comigo Por quê? Por quê? Amor sem beijinho Buchecha sem Claudinho Sou eu assim sem você Circo sem palhaço, Namoro sem amasso Sou eu assim sem você Neném sem chupeta Romeu sem Julieta Sou eu assim sem você Carro sem estrada Queijo sem goiabada Sou eu assim sem você 18 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Atenas „ Figura 5. Mapa da Grécia Antiga com indicações das cidades de origem dos principais filósofos gregos: Sócrates e Platão (Atenas), Aristóteles (Estagira), Tales (Mileto), Pitágoras (Samos) e Heráclito (Éfeso) Você deve estar se perguntando. Antes de a Filosofia surgir, o que existia em termos de conhecimento? Ora, o que predominava era a religião e o mito. Era, inclusive, difícil diferenciá-los porque a religião se ligava a elementos míticos. Mito vem do grego mythos que significa palavra, o que se diz. Assim, o mito é um tipo de conhecimento que pretende explicar a (dar inteligibilidade à) realidade; ele aceita a interferência de seres sobrenaturais, divinos na explicação dos fenômenos. Portanto, ele se apresenta como uma narrativa mágica, cheia de mistério, baseia-se na tradição e, na Grécia Antiga, era transmitido oralmente e aprendido desde cedo. Assim como o mito e a religião, a Filosofia também pretende explicar a realidade. Contudo, ela surge como explicação racional da origem e ordem do mundo, isto é, ela nasce como cosmologia. Essa palavra é composta por dois termos gregos: kósmos, a ordem e organização do mundo, o mundo ordenado e organizado; e logos, pensamento racional, discurso racional, conhecimento. Como cosmólogos, os primeiros filósofos (chamados pré-socráticos) buscavam determinar um princípio racional que é origem e causa das coisas e de sua ordenação. Apesar dessa pretensão de apontar o fundamento de toda realidade, houve desacordos e divergências entre filósofos pré-socráticos. Por exemplo, Tales, Figura 6. Tales Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 19 considerado o primeiro filósofo, julgava que o fundamento da organização do cosmo era a água; Anaxímenes, o ar ou o frio; Pitágoras, o número; Heráclito, fogo; Empédocles, o úmido, seco, quente e frio; etc. Assim, em vez de atribuírem o fundamento da realidade a um ser divino ou sobrenatural, eles buscaram elementos ou aspectos da própria natureza. Por isso, os primeiros filósofos são também conhecidos como cosmólogos ou físicos. Várias foram as condições que favoreceram o nascimento Figura7. Pitágoras da Filosofia: o desenvolvimento do comércio, da navegação, a criação da moeda, a invenção da escrita alfabética (não mais baseada em sinais gráficos e mágicos, como os hieróglifos), a legislação escrita (não mais arbitrária), o modo de produção escravista (que garantia aos aristocratas o ócio para se dedicarem a outras atividades que não aquelas vinculadas diretamente à sobrevivência) e também o surgimento da polis (cidade), isto é, de uma forma de organização não mais baseada na autoridade do patriarca ou do chefe religioso. A formação da polis implica a criação de um espaço público, de participação igual de todos os cidadãos no exercício do poder. Nós sabemos que nem todos na Grécia Antiga eram cidadãos, Figura 8. Heráclito o que torna essa democracia bastante questionável. Mas o fato novo é que os rumos da cidade deveriam ser tomados por meio de um debate público entre aqueles considerados cidadãos. É nesse sentido que Chauí (2006) considera que o nascimento da Filosofia é simultâneo ao nascimento da política, da polis (cidade). A Filosofia implica o exercício público e, portanto, dialogal: “Pela palavra e pela escrita, o filósofo se dirige à cidade toda e, com freqüência, pagará um preço por isso” (Chauí, 2002, p. 42). Com Sócrates, a discussão cosmológica dos primeiros filósofos foi substituída pela antropológica. O oráculo gravado no pórtico do templo de Apolo em Delfos: “Conhece-te a Figura 9. Sócrates ti mesmo” era uma evocação não apenas de autoconhecimento, mas também um apelo para os seres humanos conhecerem a si mesmos e sua capacidade de conhecer a verdade. A Filosofia se volta para questões humanas, confia no ser humano e na capacidade de conhecer a natureza e a si mesmo. Sócrates é considerado patrono da Filosofia porque o modelo de Filosofia que hoje temos é tributária dessa mudança que ele empreendeu. Acesse a Plataforma Depois de todas essas informações, você agora possui uma base para a leitura do nosso primeiro texto: a introdução do livro Convite à Filosofia, de Marilena Chauí (2006). Para preparar a discussão sobre esse texto, indicamos que você assista a um filme (Matrix I) e ao documentário sobre Sócrates e o autoconhecimento. Depois disso, você poderá fazer a leitura da introdução indicada cujo título é Para que Filosofia? Durante a leitura, anote suas dúvidas e seus comentários para discutir no encontro presencial. 20 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 3 Nosso primeiro texto G ostou do texto de Chauí? É impressionante a relação que ela estabelece entre o filme Matrix I e a Filosofia! Muitos alunos têm relatado que passaram a compreender melhor esse filme depois de ler a comparação de Chauí. Quantas vezes tomamos como real o que, de fato, é uma ilusão. Para filosofar, é preciso pôr em dúvida o que todos chamam de verdadeiro e real. Isso implica não se contentar com as opiniões e preconceitos estabelecidos, não ser mais uma ovelha no meio do rebanho (como coloca o documentário). Nem sempre uma coisa é o que parece ser; por isso, é preciso atentar para a relação entre ser e parecer, entre senso comum/crença/opinião (doxa em grego) e verdade. Acima de tudo, é necessário pôr em xeque ideias e crenças que temos sem questionar. Esse é um processo difícil, porque muitas vezes não nos damos conta delas; elas são silenciosas, parecem por demais naturais e óbvias, como explica Chauí. Em geral, a doxa é tomada como algo natural, normal, que não precisa ser questionado. Leia esta tirinha da Mafalda e pense na crença silenciosa que Susanita possui. Figura 10. Quino, 2003, p. 91 Você já pensou quantas vezes se toma a desigualdade social, a pobreza, como um fenômeno normal, que sempre existiu e sempre existirá? Em uma de suas músicas, o grupo Titãs nos alerta para esse fenômeno: “A morte não causa mais espanto”. Já percebeu quantas pessoas morrem diariamente em situações trágicas, de fome, assassinadas, abandonadas, em acidentes de carro etc. “ A morte não causa mais espanto O Sol não causa mais espanto Miséria é miséria em qualquer canto Riquezas são diferentes Cores, raças, castas, crenças Riquezas são diferenças Titãs, Miséria „ Para começar a filosofar, precisamos desconfiar do que tomamos como certo e desbanalizar o que, em geral, é visto como ordinário, como comum. Veja que a Mafalda nos oferece um exemplo disso na Figura 11. Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 21 essa distância, estaria interrogando a si mesmo, desejando conhecer por que cremos no que cremos, por que sentimos o que sentimos e o que são nossas crenças e nossos sentimentos. Esse alguém estaria começando a cumprir o que dizia o oráculo de Delfos: ‘Conhece-te a ti mesmo’. E estaria começando a adotar o que chamamos de atitude filosófica Chauí, 2006, p. 17, grifo da autora „ Figura 11. Quino, 2003, p. 36 Diante de perguntas simples, em geral nos desconcertamos com a nossa falta de conhecimento. Será que a desigualdade social é normal? Será que sempre existiu? Por que ela existe? Quando nós a escondemos, ela se resolve ou, na verdade, nós fingimos que ela não existe? Em geral, nós resistimos muito a fazer isso; o caminho mais fácil é buscar uma resposta rápida para essas questões ou simplesmente ignorá-las, como nas situações a seguir: Figura 12. Quino, 2003, p. 79 Figura 13. Quino, 2003, p. 19 Se, ao colocar a pergunta, nos apegamos ao que já acreditamos, nunca vamos sentir necessidade de buscar o saber, nunca nos reconheceremos como ignorantes, amantes do conhecimento. Já pensou que também temos crenças que não questionamos em relação à própria Educação Física, como a ideia de que a sua prática é sempre algo bom e traz saúde? O primeiro convite que a Filosofia nos faz é colocar sob suspeita o senso comum: “ Alguém que tomasse essa decisão estaria tomando distância da vida cotidiana e de si mesmo, teria passado a indagar o que são as crenças e os sentimentos que alimentam, silenciosamente, nossa existência. Ao tomar 22 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica O mito da caverna é uma narrativa muito rica e cheia de metáforas. Cada momento do mito nos diz algo sobre a experiência do filosofar. Nem sempre sair da caverna é simples. Na maioria das vezes, envolve um espanto, uma surpresa diante de algo novo e diante da nossa própria ignorância. Quando a nossa capacidade de espanto está esvaziada, em geral, consideramos tudo normal, ordinário, aceitável. Nessa situação, quando, por exemplo, “A morte não causa mais espanto” (Titãs), é impossível filosofar. Além disso, sair da caverna envolve esforço, mal-estar e sofrimento. O nosso primeiro ímpeto é retornar para o que nos é mais familiar e cômodo. Em geral, para manter os interesses das sociedades dominantes, somos educados não apenas a ficar, mas também a gostar de nossas prisões, as cavernas contemporâneas. Um outro elemento crucial é perceber que o filósofo possui um compromisso político e social. Portanto, ele precisa retornar à caverna, mesmo que tal decisão ameace a sua própria vida. Você se lembra do documentário sobre Sócrates? 4 Filosofia como atitude, reflexão e pensamento sistemático A té o momento, filosofar é... a) sair da caverna; b) tomar distância da vida cotidiana e das crenças e opiniões costumeiras; c) ultrapassar a aparência e buscar a essência das coisas; d) sair da apatia e ir ao encontro do espanto e da admiração diante do mundo e de si mesmo; e) amar o saber e levar outras pessoas a amá-lo. Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 23 Você saberia explicar cada uma dessas orientações? Aproveite para revisar o conteúdo e tirar suas dúvidas com os tutores. Essas foram ideias gerais acerca do conhecimento filosófico. Agora cabe perguntar: a interrogação filosófica consiste em qualquer questionamento? Qualquer pensamento? A Filosofia é “eu acho que...?” Será que a pergunta da Susanita, na tirinha a seguir, é filosófica? Figura 14. Quino, 2003, p. 82 Para não cair na armadilha de pensar que qualquer indagação, qualquer pensamento já é Filosofia, precisamos nos centrar no texto de Chauí quando ela explica a Filosofia como atitude, como reflexão e como pensamento sistemático. Que tal dedicarmos parte do nosso encontro presencial a esse aspecto? Que atitude caracteriza o filosofar? Certo, a indagação! Mas ela precisa ser racional e crítica. Você já sabe explicar esses dois traços da indagação filosófica? Quais são as dimensões da crítica? Cuidado para não cair no senso comum quando você explicar a crítica negativa e positiva. Qual a diferença entre atitude e reflexão? Em que consiste o pensamento sistemático? Converse sobre essas questões no encontro com o tutor. 5 Filosofia, Ciência e Arte Q uando Chauí (2006) apresenta a Filosofia como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas, a autora realça que a Filosofia se ocupa com princípios, causas e condições dos vários tipos de conhecimento; ela analisa, reflete e critica esses conhecimentos e a si mesma. A Filosofia não é religião, não é ciência, não é arte, mas analisa, reflete e critica os fundamentos da religião, da arte, das ciências, da política etc. De certa forma, quando discutimos a origem da Filosofia, já apresentamos algumas características que a distanciam do saber mitológico e religioso. Agora poderíamos esclarecer alguns aspectos da relação entre Filosofia e alguns conhecimentos elaborados, como a ciência e a arte. Com certeza, você já tem noções acerca dessas três formas de conhecimentos. O que existe de comum entre o conhecimento filosófico, científico e artístico? O que seria peculiar a cada uma dessas formas de conhecer? Essa é uma discussão longa, mas podemos dela nos aproximar. Sem dúvida, os conhecimentos científicos, filosó- 24 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica ficos e artísticos são conhecimentos elaborados e sistematizados, diferentes daqueles que produzimos espontaneamente. Eles partem do senso comum, para confirmá-lo, aprofundá-lo ou contestá-lo. Mas em que eles se diferenciam? Nas citações que se seguem, você terá algumas indicações: “ “ “ Com efeito, ao contrário da ciência, a Filosofia não tem um objeto determinado [...]. Além disso, enquanto a ciência isola o seu aspecto do contexto e o analisa separadamente, a Filosofia, embora dirigindo-se às vezes apenas a uma parcela da realidade, insere-a no contexto e a examina em função do conjunto Saviani, 1989, p. 24 „ „ Quando leio um poema, escuto uma sonata ou observo um quadro, posso dizer, sem precisar de conceitos e de provas lógicas, que são belos ou que ali está a beleza, e não simplesmente coisas belas Chauí, 2006, p. 283 [...] a pintura e a escultura fazem ver a visão, a literatura faz falar a linguagem, a música faz ouvir a audição, a dança faz sentir o corpo. Ou seja, pintura e escultura nos ensinam o que é ver; a música nos ensina o que é ouvir; a dança nos ensina o que é mover-se e possuir um corpo; a literatura nos ensina o que é a linguagem; e assim por diante Chauí, 2006, p. 287 „ A ciência e a Filosofia são necessariamente conceituais. Para serem desenvolvidos, esses conhecimentos envolvem conceitos. Você se lembra de que uma das nossas primeiras discussões neste fascículo foi sobre o amor: o que é amor? Sem esse conceito, não conseguiríamos entender a Filosofia. Assim também ocorre com alguns campos do conhecimento científico: precisamos nos apropriar de conceitos. Na Biologia, temos que compreender o que é tecido, célula, órgãos etc. Na Psicologia, é fundamental sabermos o que é desenvolvimento, aprendizagem, como esses processos se relacionam etc. Por esses exemplos, você pode perceber que cada ramo científico possui um objeto de investigação bastante preciso. A Bioquímica, por exemplo, estuda as reações químicas presentes em processos biológicos que acontecem nos seres vivos. A Sociologia examina as sociedades. Já a Filosofia não possui um objeto particular; podemos filosofar sobre a política, a linguagem, o amor, a educação entre outros tantos temas; também filosofamos sobre os outros tipos de conhecimento. Assim, existem áreas, no campo filosófico, como a Filosofia da Religião, a Filosofia da Ciência (ou epistemologia), a Filosofia da Arte. Por seu turno, quando ouvimos uma música ou assistimos a um filme, o conceito não é nosso ponto de partida. Na verdade, esses conhecimentos afetam os nossos sentidos e as nossas emoções. O escultor pode até ter se fundamentado em conceitos para construir a sua escultura, mas o que ele criou não foi propriamente um conceito, mas um objeto artístico que causará alguma impressão na nossa sensibilidade e nos nossos afetos. Por essa razão, diz-se que a arte é um conhecimento eminentemente não conceitual ou sensível. Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 25 6 Sobre a (in)utilidade da Filosofia 7 Podemos ir para a próxima unidade? P ara que serve a Filosofia? Trata-se de um conhecimento que pode ser “aplicado” de maneira imediata e eficiente? Vamos retomar e debater o último item do texto da Chauí. À semelhança de Sócrates, muitos filósofos também passaram grandes adversidades por abraçar a Filosofia. Mesmo assim, fizeram a opção: “É preferível a angústia da busca à falsa paz da acomodação” (Paiva, 2005, p. 33). Em muitas situações, filosofar pode representar uma ameaça aos interesses sociais dominantes. Na tirinha a seguir, você encontrará um exemplo. C hegamos ao término da nossa primeira unidade. Muitas novidades? Esperamos que sim. Também esperamos que você aprenda a ter mais cuidado e paciência com os conceitos. Afinal, como você já sabe, tal como a ciência, a Filosofia é um conhecimento conceitual. Mas ela toca em questões da nossa vida. É a tentativa de compreender o nosso viver individual e coletivo que nos impulsiona a filosofar. É necessário proceder de modo sistemático, racional e crítico, caso contrário podemos reforçar nossas crenças costumeiras. O que tudo isso que vimos até o momento pode nos ajudar como professores? Ah, você já pode começar a avaliar a visão que tinha da Filosofia no início do curso e a que você tem agora. O que você pensava? O que mudou? Por quê? Aproveite para exercitar a argumentação sistemática, racional e crítica. Figura 15. Quino, 2003, p. 16 Muitas vezes, quem destoa dos valores dominantes é tido como louco, como doido, enfim, como alguém que, em princípio, não mereceria a nossa atenção. Muitos filósofos foram, inclusive, considerados criminosos. Na capa deste fascículo, encontra-se uma parte do quadro chamado A morte de Sócrates, pintado por Jacques-Louis David, em 1787. Nele o pintor retrata o momento em que Sócrates, acusado de corromper a juventude e não respeitar os deuses da cidade, é condenado a beber a cicuta. Você deve se lembrar do documentário sobre esse filósofo e da sua posição; ele dizia que uma vida sem Filosofia não vale a pena ser vivida. Diante de uma sociedade alienada, que inverteu seus valores, que considera normal a supervalorização das celebridades, da estupidez, nós deveríamos cantar com Raul Seixas: “ Enquanto você se esforça pra ser Um sujeito normal E fazer tudo igual... Eu do meu lado Aprendendo a ser louco Maluco total Na loucura real... Controlando minha maluquez Misturada com minha lucidez... Raul Seixas, Maluco Beleza „ Por isso, a Filosofia só ganha vida quando nos ajuda a interpretar e a mudar o mundo. Como dizia Marx (1987, p. 163), “Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo”. 26 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 1 Filosofia: que conhecimento é esse? 27 Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico O objetivo desta unidade é estabelecer relações entre a Filosofia e a Educação, em especial, a educação escolar. Em outras palavras, tomaremos a educação escolar como objeto de nosso exercício filosófico. Ao término da unidade, teremos condições de explicitar a importância da Filosofia na formação de professores e na prática pedagógica. 28 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 1 Sim, já temos uma noção do que trata esta unidade! N ós já sabemos que a Filosofia representa uma atitude de indagação racional e crítica e uma reflexão que se organiza de modo sistemático. Você se lembra das características da indagação? Ser racional e crítica. E as dimensões da crítica, você recorda? O que significa refletir? Claro! Por isso, você já possui uma noção do que trataremos nesta unidade. Primeiro colocaremos em xeque as noções corriqueiras acerca de escola e, com isso, teremos a chance de questionar, de modo racional e crítico, o que é escola, como ela é, por que e para que escola. Além de dirigir essas indagações para a educação escolar, teremos também que voltar essas questões para nós mesmos, ou seja, o que pensamos, falamos ou agimos quando se trata da escola? Como pensamos, falamos ou agimos? Por que e para que pensamos, falamos e agimos dessa determinada maneira? Não só indagaremos este objeto externo – a instituição escolar –, mas questionaremos as nossas próprias noções quanto a esse tema. Essa é uma tarefa desafiante! É por essa razão que filosofar sempre envolve a nossa vida por inteiro. Considerando que a Filosofia não é achismo e, portanto, requer uma atitude crítica, racional, argumentada, sistemática e reflexiva, impõe-se, neste processo, a necessidade de dialogar com a tradição já existente (aceitando-a ou não). Será que outros já tentaram responder a essa questão? Que respostas deram? Concordo ou não com elas? Em que concordo e em que discordo? Por quê? Onde se pode inovar? Precisamos, então, reconhecer que o saber filosófico vem sendo construído a um tempo que extrapola nossa existência. Por isso, nesta unidade, o nosso diálogo principal será norteado por um texto clássico de um grande educador brasileiro: Paulo Freire. Você terá a indicação do momento preciso para lê-lo. 2 Escola: um espaço de conflitos sociais N em sempre, quando se fala em escola, as reações são muito alegres. Veja como Filipe, o amigo da Mafalda, exemplifica isso: 30 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico 31 Acesse a Plataforma Para continuar essa conversa, assista a um vídeo disponível na plataforma Moodle de uma banda de rock inglesa chamada Pink Floyd (verifique também a tradução da música). Preste atenção ao sentido atribuído à escola nessa música. Figura 16. Quino, 2003, p. 69 Em momentos anteriores, você já deve ter registrado, no seu portifólio, as lembranças da escola que você teve, dos professores que já passaram pela sua vida escolar até o momento. Antes de ir pela primeira vez à escola, Mafalda buscou informações com Filipe: Figura 17. Quino, 2003, p. 68 O Filipe parece não ter tido uma boa experiência na escola. Nem sempre nossas lembranças são boas. Por quê? Às vezes, ao invés de nos ajudar a compreender o mundo melhor, a escola nos ensina conhecimentos sem sentido. Confira o que aconteceu com a Mafalda quando ela começou a aprender a ler e escrever na escola: Já conhecia essa música? No que ela fez você pensar? Você está certo: a escola pode ser um local de dominação, de aprisionamento... Ela pode nos transformar em mais um “tijolo na parede”. A origem da escola já indica esse caráter conservador. Dermeval Saviani explica que a gênese da escola ocorre na transição do comunismo primitivo (sociedades préhistóricas nas quais a riqueza produzida era comum a toda comunidade) para escravismo antigo.1 Nesse processo, ocorreu o surgimento da sociedade de classes. A riqueza não é mais compartilhada por todos; o escravo produz os meios de subsistência e o seu senhor vive do trabalho alheio. No comunismo primitivo, a educação consistia em uma ação espontânea (não diferenciada de outras ações humanas). Com a divisão social de classes, a educação diferencia-se em educação da classe dominante (realizada de maneira institucional) e educação da classe dominada (que continuou a ser assistemática). A palavra escola vem do grego scholé (grego) que significa lugar do ócio. Ora, quem tinha ócio? A classe social que vivia do trabalho escravo! Confira a explicação de Saviani (2005, p. 234): “ „ Figura 18. Quino, 2003, p. 71 Outras vezes, a escola é um espaço de violência. A experiência narrada por Manolito nos alerta sobre isso: Percebe-se, então, que a escola já nasce servindo à classe dominante, aos seus interesses. Contudo, será que essa instituição não pode cumprir outro papel além desse? Recorde, por exemplo, as boas lembranças que você teve da escola, as experiências positivas que ela propiciou à sua vida e a de pessoas que você conhece. O texto a seguir pode ajudar você a pensar nessa outra faceta da educação escolar: “ Figura 19. Quino, 2003, p. 68 32 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Assim, se nas sociedades primitivas, caracterizadas pelo modo coletivo de produção da existência humana, a educação consistia numa ação espontânea, não diferenciada das outras formas de ação desenvolvidas pelo homem, coincidindo inteiramente com o processo de trabalho que era comum a todos os membros da comunidade, com a divisão dos homens em classes a educação também resulta dividida: diferencia-se, em conseqüência, a educação destinada à classe dominante daquela a que tem acesso a classe dominada. E é aí que se localiza a origem da escola. A palavra ‘escola’, como se sabe, deriva do grego e significa, etimologicamente, o ‘lugar do ócio’. A educação dos membros da classe que dispõe de ócio [...] passa a ser organizar na forma escolar, contraponde-se à educação da maioria que continua a coincidir com o processo de trabalho. A cena se passa no século XIX: o pai sabe muito bem que seu filho será pedreiro como ele próprio, mas antes (o que é uma novidade nesse meio) irá 1 O autor explica que, apesar de sua origem nessa transição do comunismo antigo para o escravismo, a escola só se tornou a forma dominante de educação na época moderna, quando a burguesia em ascensão reivindica escola para todos (Saviani, 2005). Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico 33 à escola. Um amigo faz a seguinte objeção: - Você acha que ele subirá mais agilmente na escada quando souber ler e escrever? Mão destra para a pena não continua boa para a colher de pedreiro [...]. Ninguém na sua casa nunca soube ler assim como na nossa, e não foi isso que nos impediu de comer suficiente. E o pai responde: - Quem sabe ler e escrever é como se tivesse mais olhos e ouvidos do que os outros [...]. A questão não é somente comer para matar a fome, e sim servir-se de sua inteligência para não viver como animais [...] Snyders, 1996, p. 191-192. „ Será que, ao invés de nos deixar na condição de subalternos, a escola também não pode nos ajudar a compreender o mundo de uma maneira diferente? Atividade Para prosseguir essa reflexão, assista ao filme Sociedade dos poetas mortos. Preste atenção, pois esse filme sinaliza situações nas quais a mesma escola pode nos escravizar ou nos libertar. Gostou do filme? É possível falar que a educação escolar só serve para formatar as pessoas? Debate inquietante! Afinal, percebemos que a escola não é boa nem má em si mesma. Ela também é perpassada por conflitos e dilemas da sociedade na qual ela se encontra. Pode assumir um projeto de dominação, mas também pode se colocar a serviço de um projeto de libertação. Acesse a Plataforma Agora, sim, você pode ler o texto do Paulo Freire (2005). Trata-se do segundo capítulo de seu livro Pedagogia do Oprimido. Leia e anote seus comentários: o que você considerou importante, as suas dúvidas, no que o texto fez você pensar de novo. Isso será importante para o momento presencial. Mas, antes, uma provocação que vale a pena ser colocada: como você gostaria de ser lembrado pelos seus alunos e suas alunas? Que tipo de lembrança você quer ser para eles e elas? 3 A pedagogia do opressor e a pedagogia do oprimido P aulo Freire considerava que o analfabetismo era uma forma de castração dos seres humanos. Assim, o seu envolvimento mais direto foi com a alfabetização daqueles que não puderam ter acesso à escola na idade considerada oportuna. Contudo, segundo Freire, ser alfabetizado não significa apenas saber ler e desenhar letras e palavras, mas saber ler e escrever criticamente o próprio mundo. Para que o processo de alfabetização efetivasse esse horizonte, ele sabia que necessitava também alterar a forma de aprender/ensinar. Assim surgiu o chamado “método Paulo Freire”2 por meio do qual Freire buscou alfabetizar tendo como ponto de partida palavras presentes na realidade dos alunos. Aprender a ler e a escrever essas palavras também envolvia apreender e problematizar o seu sentido social. Peço licença para algumas coisas. Busque perceber esse projeto político de Primeiramente para desfraldar Paulo Freire no poema (ao lado) que o amazoeste canto de amor publicamente. nense Thiago de Mello escreveu em sua homenagem. As primeiras experiências do “método Paulo Sucede que só sei dizer amor Freire” ocorreram em 1962, em Angicos, uma cidade quando reparto o ramo azul de estrelas no Rio Grande do Norte: 300 trabalhadores foram que em meu peito floresce de menino. alfabetizados em 45 dias! O presidente João Goulart convidou, no ano seguinte, Paulo Freire para coor- Peço licença para soletrar, denar um grande plano nacional de alfabetização. no alfabeto do sol pernambucano Contudo, esse projeto foi interrompido em função a palavra ti-jo-lo, por exemplo, do Golpe Militar de 1964. Paulo Freire foi acusado de subversão e foi preso; depois, passou 16 longos e poder ver que dentro dela vivem anos no exílio em vários países onde divulgou e paredes, aconchegos e janelas, prosseguiu seus trabalhos e conquistou reconheci- e descobrir que todos os fonemas mento internacional. Ao retornar para o Brasil, de- são mágicos sinais que vão se abrindo vido à anistia política, o educador brasileiro ainda constelação de girassóis gerando trabalhou, no final da década de 1980 e início dos em círculos de amor que de repente anos 1990, como secretário de Educação da Prefei- estalam como flor no chão da casa. tura de São Paulo, no governo de Luiza Erundina (à época, pertencente ao Partido dos Trabalhadores). Às vezes nem há casa: é só o chão. Você leu um capítulo de um dos livros mais im- Mas sobre o chão quem reina agora é um homem portantes de Paulo Freire, chamado Pedagogia do diferente, que acaba de nascer: “ 2 A expressão “método Paulo Freire” está entre aspas, porque a proposta freireana representa uma proposta político-pedagógica ampla e não apenas um conjunto de sugestões didático-metodológicas de ensino. 34 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico 35 Oprimido, escrito em 1968, quando ele estava exilado no Chile. Nessa obra, Freire apresenta duas perspectivas antagônicas de educação: a pedagogia do opressor ou bancária e a pedagogia do oprimido. Como você pôde perceber dessa leitura, a educação bancária é uma concepção e uma prática em que a educação aparece como um ato bancário no que o mundo é seu também, que o seu trabalho qual o educador deposita conteúdos no educando. não é a pena paga por ser homem, O centro do processo educativo está no professor; mas o modo de amar – e de ajudar o aluno é considerado apenas um objeto e, portanto, um ser passivo. O aluno é um espectador o mundo a ser melhor. Peço licença não um recriador do mundo. Desse modo, a relapara avisar que, ao gosto de Jesus, ção professor e aluno é de verticalidade. No fundo, este homem renascido é um homem novo: ela acaba reproduzindo a opressão que existe socialmente. É por isso que a concepção/prática banele atravessa os campos espalhando cária é uma pedagogia do opressor, é útil para os a boa-nova, e chama os companheiros opressores, porque nos faz acreditar que a realia pelejar no limpo, fronte a fronte dade não está sujeita à transformação. Por outro lado, Freire acredita que é possível contra o bicho de quatrocentos anos, colocar a educação a serviço do oprimido por meio mas cujo fel espesso não resiste de uma pedagogia transformadora, revolucionária, a quarenta horas de total ternura. libertadora, problematizadora. Nela a relação entre educando e educador é horizontal de tal forma Peço licença para terminar que ambos sejam, ao mesmo tempo, educadores e soletrando a canção de rebeldia educandos: “Desta maneira, o educador já não é o que existe nos fonemas da alegria: que apenas educa, mas o que, enquanto educa, é educado, em diálogo com o educando que, ao ser canção de amor geral que eu vi crescer educado, também educa” (Freire, 2005, p. 79). nos olhos do homem que aprendeu a ler. A base dessa nova prática e concepção educativa é a intercomunicação, o diálogo. Assim, nessa perspectiva, a educação é um ato de conhecer e desvelar a realidade. Nessa experiência cognoscitiva, os educandos são “[...] investigadores críticos, em diálogo com o educador, investigador crítico, também” (Freire, 2005, p. 80). O professor busca “saber com os educandos” (Freire, 2005, p. 71). O conhecimento é visto na perspectiva da práxis, isto é, “[...] a ação e a reflexão dos homens sobre o mundo para transformá-lo” (Freire, 2005, p. 77), e da superação da doxa pelo verdadeiro conhecimento, o que está no nível do logos. Como você pode conferir, a proposta de Freire de transcender a doxa possui muita proximidade com o que tratamos na primeira unidade. porque unindo pedaços de palavras aos poucos vai unindo argila e orvalho, tristeza e pão, cambão e beija-flor, e acaba por unir a própria vida no seu peito partida e repartida quando afinal descobre num clarão „ 4 Educação Física: entre a educação bancária e a educação libertadora P aulo Freire não foi um estudioso da Educação Física. Mas será que ele nos oferece alguma inspiração para analisar a nossa área? Você já imaginou quantas vezes ensinamos a nossos alunos a “memorizar” movimentos, a repeti-los, sem que eles compreendam o que estão fazendo? Essa postura está muito próxima de uma perspectiva bancária de Educação Física. Atividade Da mesma forma que os argumentos de Paulo Freire podem nos ajudar a criticar uma perspectiva tradicional de Educação Física, eles também podem nos impulsionar a imaginar e construir uma Educação Física diferente. Para você refletir sobre isso, escolha um conteúdo da Educação Física; estabeleça, pelo menos, três temas a serem problematizados; sugira atividades (duas no mínimo) para trabalhar cada tema. Justifique teoricamente a condução da intervenção, a escolha dos temas e atividades a partir da teoria freireana. Chegamos ao término desta unidade. Você se lembra daquela pergunta na introdução deste fascículo: a Filosofia é um conhecimento para ser aplicado e ensinado nas aulas de Educação Física? Agora temos condição de perceber que o importante é fomentar a atitude e a reflexão filosófica em nossos educandos, mas, acima de tudo, nós, professores, temos que assumir o exercício filosófico como um elemento essencial do nosso fazer-se. Caso contrário, corremos o risco de fazer um discurso político-pedagógico progressista e crítico e continuar, como falava Paulo Freire, usando as armas da opressão nas nossas aulas. Acesse a Plataforma Assista à última entrevista de Paulo Freire disponível na Plataforma. 36 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 2 Educação escolar e o exercício filosófico 37 Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se Esta é a última unidade de nosso curso. Nela, buscaremos evidenciar a importância da Filosofia para a formação do professor de Educação Física (para além daquelas já discutidas nas unidades anteriores). O objetivo é construir esse debate tendo como eixo questões relativas ao corpo e ao movimentar-se humano. Para começar, aí vai a primeira provocação: tenho ou sou um corpo? Por quê? 38 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 1 Corpo na tradição filosófica: aspectos gerais do dualismo corpo e alma P or que será que, em geral, concebemos o ser humano a partir de duas instâncias distintas: corpo (relacionado com a dimensão física) e alma (também considerada mente ou espírito)? De onde vem essa compreensão? Essa concepção tão enraizada que hoje temos do ser humano é uma construção histórica. Em outras palavras, ela nem sempre existiu. Falbel (1995) explica, por exemplo, que, no período bíblico, o povo judaico não distinguia corpo e alma. Nesse período, o hebraico bíblico contém expressões como sopro (vento) de vida, coração, carne, pessoa viva, entre outras, para se referir ao ser humano e as várias dimensões do seu viver. A partir do Talmud (registro das discussões dos rabinos que se iniciou em 200 d.C.), as palavras corpo e alma começaram, aos poucos, a ser usadas, ainda que de modo impreciso, e as antigas expressões passaram a ser traduzidas a partir dessas novas palavras. Podemos, então, perguntar: quando a dicotomia corpo e alma ganhou elaboração filosófica? Como ela chegou até os dias de hoje? Prepare-se, faremos uma viagem panorâmica sobre esse assunto. Devemos a Platão a primeira elaboração filosófica do dualismo psicofísico. Na Filosofia platônica, os seres humanos são formados por essas duas realidades: corpo e alma. Essa divisão corresponde à sua visão de mundo: existiria, para Platão, um mundo sensível (inferior, mortal, mutável e imperfeito) e o mundo das ideias (eterno, superior, imutável e perfeito). Segundo Platão, o mundo das coisas/sensível é uma cópia imperfeita do mundo das ideias; por isso, encontra-se em uma condição de inferioridade. Nesse sentido, Platão defendia a preexistência e a superioridade da alma em relação ao corpo: “Quando estão juntos alma e corpo, a este a natureza consigna servidão e obediência, e à primeira comando e senhorio” (Platão, 1987, p. 84). Quanto mais se liberta das amarras do corpo (posse de bens, honrarias, prazeres e também doenças), mais o ser humano pode se dedicar à busca da essência das coisas, às atividades tidas como superiores, relacionadas com o pensar. Aqui se encontra uma das razões da frase “ginástica para o corpo e música para a alma”. Para Platão, ao entregar-se efetivamente à busca da sabedoria, além de renúncias aos prazeres e às “imundices” do corpo, haveria a necessidade de um corpo sadio. Dessa forma, as atividades da alma não seriam entravadas, obstruídas pelos problemas de um corpo enfermo. Também aqui se encontra a razão da famosa frase de Juvenal, poeta satírico do século II d. C., que, influenciado por Platão, rogou mente sã em corpo Figura 20. Corpo X Alma 40 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 41 são. Essa saúde do corpo seria conferida pela prática da ginástica, entendida como lutas, danças, corridas, saltos, cuidados higiênicos, controle dietético, abstenção da embriaguez. A Filosofia platônica foi incorporada pelo Cristianismo que acrescentou um elemento novo à dicotomia corpo e alma: a noção de pecado. O corpo passa a ser “proibido”, culpado, perverso, a ser dominado/purificado por meio de “técnicas coercitivas”, como os castigos, abstinências, jejuns, autoflagelo. Para Santo Agostinho (354-430), por exemplo, o ser humano é corpo e alma: a alma racional se serve do corpo, habita o corpo. O pecado é, segundo Santo Agostinho, uma transgressão da lei divina, à medida que a alma foi criada por Deus para reger o corpo, e o homem, fazendo mal uso do livre arbítrio, inverte essa relação, subordinando a alma ao corpo e caindo na concupiscência e na ignorância. A dicotomia corpo e alma ganha novos contornos com o advento da era moderna. Não se pretende mais, nesse momento, um conhecimento meramente especulativo, abstrato, que contempla aquilo que Deus quer revelar ao homem, como ocorreu no período feudal. A burguesia em ascensão pleiteia o esforço individual como critério da riqueza (e não mais a hereditariedade da nobreza) e advoga um conhecimento advindo do esforço da razão humana na compreensão da ordem do mundo; um conhecimento prático, cujos resultados se convertam em um progresso técnico. Há, nesse contexto, uma dessacralização do corpo: corpo torna-se mais um objeto sujeito à investigação científica. No século xvii, a Holanda ocupou um lugar de vanguarda nos estudos da Medicina. Knijnik (2005, p. 2) explica que “A experimentação como método levou à dissecação dos cadáveres e as aulas de anatomia chamavam a atenção de todos, inclusive membros da realeza e indivíduos de importância política”. Por essa razão, esse evento chegou a ser retratado na pintura da época, como você pode conferir na Figura 21. Você acaba de ver um quadro do importante pintor holandês Rembrandt, encomendado pelo Colégio de Cirurgiões de Haia para homenagear o médico e cientista Dr. Tulp. Como se pode perceber, consiste em uma aula de Anatomia, na qual o Dr. Tulp faz uma dissecação pública do cadáver de um comerciante que fora enforcado.1 Nessa pintura, “[...] Rembrandt não buscou meramente destacar um corpo humano qualquer, mas a investida científica no corpo humano, o gosto pela aplicação prática do conhecimento [...]” (Pulici, 2007, p. 62). É uma tentativa de exFigura 21. A lição de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, 1632 plicar a estrutura do corpo, seus movimentos, suas funções e sua interação com a alma. O filósofo francês René Descartes (1596-1650) também dedicou seus estudos à anatomia e à fisiologia no período em que se instalou na Holanda. Um aspecto importante da Filosofia de Descartes é sua concepção do homem em uma dualidade corpo-espírito. Segundo esse filósofo, o universo consiste de duas diferentes substâncias: a mente ou substância pensante (rens cogitans) e a matéria (res extensa). Fisiologicamente, Descartes colocou o centro da interação entre as duas substâncias na glândula pineal, um pequeno corpo localizado centralmente na base do cérebro. Esse filósofo compara o corpo humano a uma máquina. Para Descartes, Deus fabricou o corpo como máquina, um instrumento universal, com suas próprias leis. O motivo dessa comparação é o fato de que, na época de Descartes, as pessoas estavam totalmente fascinadas pelas máquinas e pelas engrenagens dos relógios. O mecanicismo consistia em uma analogia para explicar o universo a partir do modelo físico (natureza constituída de engrenagens que funcionam a partir de uma força externa). Por que o dualismo tem perdurado por tanto tempo? A divisão social Figura 22. René Descartes. do trabalho característica de sociedades de classes separa, de um lado, o trabalho manual da produção destinada às classes dominadas, e, de outro, o trabalho intelectual das classes dominantes. Essa divisão social do trabalho é transportada para o interior do próprio ser humano; nesse caso, a divisão social entre classes dominantes/trabalho intelectual e classe dominada/trabalho braçal passa a ter o seguinte correspondente: a existência do corpo versus alma e a superioridade desta em detrimento daquele. 2 Corpo-máquina: uma perspectiva ainda atual V ocê já imaginou quantas vezes lidamos com o corpo como se fosse uma máquina, um instrumento, uma coisa, um mero objeto de manipulação? Analise as imagens a seguir e identifique como essa afirmação se torna válida em cada uma das situações apresentadas: Figura 23. Nadador olímpico, a máquina de nadar 1 Nesse quadro, há um erro cometido por Rembrandt cuja causa ainda é desconhecida: o músculo braquiorradial foi pintado em direção à ulna, o que não acontece na anatomia normal do nosso braço. 42 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Figura 24. Charles Chaplin em Tempos Modernos Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 43 Figura 25. A turbinada Figura 26. Treinamento de ginástica olímpica Por que essa relação que estabelecemos entre corpo e máquina é ainda tão forte nos dias atuais? O filósofo Karl Marx escreveu: “Com a valorização do mundo das coisas aumenta em proporção direta a desvalorização do mundo dos homens” (Marx, 2004, p. 80). Com isso, ele alertava para uma inversão que ocorre na sociedade capitalista. O ser humano se relaciona com o produto de sua ação como se fosse uma força independente que o domina. Nessa relação alienada, ele se enxerga a si próprio como um objeto e compreende a sua produção como um ser existente que está acima dele próprio. Não é essa a relação que estabelecemos com o dinheiro? Quantas vezes, não atribuímos vida ao dinheiro ao dizer que ele traz felicidade! Esquecemos que o dinheiro é uma criação humana e, nesse esquecimento, atribuímos a ele o poder de determinar a nossa própria vida (trazer felicidade) e com ele nos relacionamos na condição de subalternos, escravos, objetos. Na alienação, o ser é substituído pelo ter. Em outros termos, o nosso ser é determinado pelo que temos, pelo que acumulamos, pelo que consumimos. Nesse contexto, o nosso próprio corpo aparece como instrumento, objeto que o ser humano possui (máquina de trabalho, objeto útil e produtivo) e precisa consumir para sobreviver. Minha gravata e cinto e escova e pente, Meu copo, minha xícara, Minha toalha de banho e sabonete, Meu isso, meu aquilo. Desde a cabeça ao bico dos sapatos, São mensagens, Letras falantes, Gritos visuais, Ordens de uso, abuso, reincidências. Costume, hábito, permência, Indispensabilidade, E fazem de mim homem-anúncio itinerante, Escravo da matéria anunciada. 3 “ Atividade “ Em minha calça está grudado um nome Que não é meu de batismo ou de cartório Um nome... estranho. Meu blusão traz lembrete de bebida Que jamais pus na boca, nessa vida, Em minha camiseta, a marca de cigarro Que não fumo, até hoje não fumei. 44 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Minhas meias falam de produtos Que nunca experimentei Mas são comunicados a meus pés. Meu tênis é proclama colorido De alguma coisa não provada Por este provador de longa idade. Meu lenço, meu relógio, meu chaveiro, „ Há alguma chance de se conceber o ser humano de outra forma? [...] diante do cadáver da avó, o miúdo perguntou à mãe o que é que estava a acontecer. A mãe foi-lhe explicando que a avó tinha morrido e que a alma dela tinha ido para Deus e o corpo ia para a terra. Quando ela própria morresse, também ia ser assim: a alma iria para Deus e o corpo para o cemitério. E continuou, angustiada: ‘Sabes, meu filho, quando tu morreres, a tua alma vai ter com Deus e o teu corpo fica no cemitério’. Aí, o miúdo observou, perplexo: ‘A minha alma vai ter com Deus e o meu corpo vai para o cemitério. E eu? Borges, 2006, p. 1 „ Explique a compreensão de corpo em René Descartes e dê exemplos do prolongamento dessa concepção no âmbito da Educação Física. Marx nos ajuda a compreender como, na sociedade capitalista, o sentido de ter um corpo assume um caráter específico. Explique essa afirmação, tendo como pano de fundo o poema de Carlos Drumond de Andrade que se encontra a seguir: [...]. Agora sou anúncio Ora vulgar ora bizarro. [...]. Objeto pulsante mas objeto Que se oferece como signo dos outros Objetos estáticos, tarifados. Por me ostentar assim, tão orgulhoso De ser não eu, mas artigo industrial, Peço que meu nome retifiquem. Já não me convém o título de homem. Meu nome novo é Coisa. Eu sou a Coisa, coisamente. Q uando tenho um objeto e o jogo fora, continuo sendo eu. Contudo, se jogar meu corpo fora, continuarei sendo eu? Quando se afirma apenas “tenho um corpo”, está implícita a essa afirmação a não coincidência entre mim e meu corpo, entre a identidade do sujeito e a sua existência corporal. Há algum caminho alternativo para compreender o ser humano? Na verdade, necessitamos superar esse modo de vida que nos leva a ter uma relação utilitária e instrumental com a nossa existência corporal. Ao lutar contra essa tendência social, podemos visualizar uma nova forma de nos compreender como seres humanos. Veja o que as frases a seguir sugerem: Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 45 “ Meu corpo não é coisa, não é máquina, não é feixe de ossos, músculos e sangue, não é uma rede de causas e efeitos, não é receptáculo para uma alma ou para uma consciência: é meu modo fundamental de ser e de estar no mundo, de me relacionar com ele e de ele se relacionar comigo Chauí, 2006, p. 207 “ „ “ „ Eu não estou diante de meu corpo, estou em meu corpo, ou antes sou meu corpo Merleau-Ponty, 1994, p. 207 Quando jogo, quando canto ou danço, estou não apenas pondo em funcionamento o meu equipamento anatômico e fisiológico, estou vivendo, simultaneamente, o mundo cultural que conformou este jogo, este canto e esta dança e todos os meus projetos existenciais nele estão representados Nóbrega, 2000, p. 60 „ O que essas frases fazem você pensar de diferente? Corpo-existência? Corpo-sujeito, sujeito-corpo? O que isso significa? Para iniciar essa reflexão, vamos começar com a seguinte indicação: o ser humano é e não natureza. O ser humano compartilha com os demais animais os mais primários instintos. Assim, quando falamos que o ser humano se relaciona com a natureza, isso implica afirmar que “[...] a natureza está interconectada consigo mesma, pois o homem é uma parte da natureza” (Marx, 2004, p. 84). No entanto, Marx sublinha que o ser humano é um ser natural humano. A tessitura do humano se dá por meio da sua atividade vital – o trabalho. No e pelo trabalho, o ser humano transforma a natureza e origina algo inédito: a natureza humanizada (o mundo da cultura). Ao fazer isso, ele não só transforma a natureza externa a ele, como transforma a si próprio. Assim, ao produzir os meios para sua sobrevivência, ele também gera conhecimentos, hábitos, valores, conceitos, ideias, formas de sentir, modos de se vestir, práticas corporais, gestos etc. Para se constituir, o ser humano precisa tornar essa produção cultural parte de si mesmo. A assimilação da cultura (resultado do trabalho) é um aspecto fundamental do desenvolvimento humano. Essa assimilação ocorre por meio da educação (entendida como um processo de transmissão ativa às novas gerações dos progressos da cultura humana). Ora, se o ser humano é e não é natureza, o corpo humano traz a marca dessa condição contraditória. Assim, o corpo não pode ser entendido simplesmente como organismo. Ele também é cultura e transcende o aspecto físico e biológico. “O corpo expressa a unidade na diversidade, entrelaçando o mundo biológico e o mundo cultural e rompendo com o dualismo entre os níveis físicos e psíquicos” (Nóbrega, 2000, p. 57). Além disso, é necessário considerar que a atividade humana vital mobiliza toda a sua existência humana (sensitiva e intelectual). O pensar e o sentir não são funções da alma, assim como o agir não é atributo do corpo. A existência humana é corporal; somos sujeitos encarnados. Desse modo, não há consciência, pensamento, sentimento de um lado e estrutura física, orgânica de outro: o corpo sente, pensa, age, fala. 46 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 4 Corpo estático? Não! O corpo no seu movimentar-se! Q uando indicamos que o corpo é um tema relevante para a Educação Física, precisamos abandonar a nossa visão de senso comum de compreendê-lo apenas como um objeto físico-biológico que serve de receptáculo para algo que lhe é superior (a alma, a mente ou o espírito). Como mencionamos, a existência humana é corporal. Além disso, “ “ „ [...] o corpo está no mundo, não como coisa, objeto ou idéia, mas como presença viva, em movimento Nóbrega, 2000, p. 58 „ [...] o corpo é sensível e se revela na motricidade, nos movimentos com sentido e significado Nóbrega, 2000, p. 63 Por isso, insistimos: “ „ Motricidade e corporeidade entrelaçam-se formando uma unidade que se torna visível nos movimentos, sejam eles referentes às ações cotidianas ou aos hábitos motores mais complexos, como a dança, os esportes [...] Nóbrega, 2000, p. 58 Atividade Se isso é verdade, precisamos agora lidar com o desafio de responder: o que é o movimento humano? Essa é uma indagação complexa. Que tal, então, começarmos com uma tarefa mais simples? A sugestão é assistir ao filme Billy Elliot e responder, a partir do que o filme retrata, o que é a dança. O filme Billy Elliot pode ser analisado sob vários prismas, afinal, os temas tratados são variados e ricos: a vida precária da classe trabalhadora durante a greve dos mineiros na Inglaterra, em 1984 (fato real), a repressão do movimento grevista pelo governo da primeira-ministra Margareth Thatcher (conhecida como a “dama de ferro”), as responsabilidade de um menino de 11 anos de cuidar de sua avó, o preconceito contra o homossexualismo, as relações sinceras de amizade, o luto de uma família pela morte de um de seus membros, os conflitos entre pais e filhos, entre outros. Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 47 Na saga de Billy entre a quase predestinação de se tornar um mineiro (assim como eram seu pai e seu irmão) e a chance de ser uma outra pessoa, aparecem duas práticas corporais: o boxe e a dança. Junto com o rugby e o futebol, o boxe é uma das práticas corporais de mais tradição na Inglaterra. Como podia um garoto inglês não querer fazer boxe? Ou melhor, como ousava trocar o boxe, símbolo nacional vinculado ao mundo masculino, pela dança clássica? Não se trata de qualificar, de imediato, a família de Billy como preconceituosa. Você se lembra de que o processo de alienação empobrece a vida nas suas várias dimensões. A vida do trabalhador se limita, em geral, às atividades restritas à sua sobrevivência. A “grosseria” do pai e do irmão de Billy nada mais faz do que manifestar a vida igualmente rude que eles vivem, uma vida limitada. A dança aparece, para Billy, como uma prática corporal com técnicas precisas, movimentos refinados, e demanda esforço para ser aprendida. Mas se nós pararmos por aqui, com certeza, não captaremos outras dimensões que constituem essa forma de movimentar-se, em especial, o seu papel de expressividade. O gesto corporal é sempre expressivo... Em geral, nós associamos uma concepção instrumental de corpo a uma concepção também reducionista de movimento. Quando concebemos o corpo como coisa, descrevemos o movimento como um acontecimento espaço-temporal no sentido físico, isto é, como um deslocamento do corpo ou de partes deste em um tempo e espaço determinado. Para estudar o movimento como esse fenômeno físico, recorre-se às Ciências Naturais. Sob essa perspectiva, o movimento é facilmente quantificável, comparado, padronizado. No meio esportivo, o movimento humano é investigado no sentido do rendimento físico e da prontidão do aluno para a aprendizagem de habilidades motoras. Superar essa visão de movimento implica compreendê-lo como ação na qual o sujeito, pelo seu “movimentar-se”, se faz no mundo. Em outros termos, o movimentar-se torna-se “[...] expressão humana, como função dialógica na relação Homem/Mundo” (Kunz, 2001, p. 185). Acesse a Plataforma O que significa afirmar que o movimento é uma expressão humana? Que tal aprofundarmos esse assunto? Leia, então, o texto de Elenor Kunz (2000). Um texto curto, mas fecundo! Kunz considera o movimento humano como o objeto mais importante da Educação Física. O autor precisa a sua afirmação: interessa à Educação Física o movimentar-se de seres humanos no contexto do que ele chama cultura de movimento (esporte, ginástica, danças e lutas). Isso significa, portanto, que o movimento é uma expressão da vida humana e precisa ser compreendido a partir do vasto patrimônio cultural da humanidade. Por isso, apenas indicar a técnica de execução, observar os grupos musculares envolvidos, a biomecânica do movimento, é insuficiente para nos explicar a expressividade do mover-se humano. É por isso que, nessa perspectiva, o “se movimentar” se refere a três dimensões: o ator (sujeito das ações do movimento); a situação concreta; e o significado que orienta as ações. Assim, o movimento sempre envolve a conduta de um sujeito em uma situação. 48 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Nós podemos compreender isso tanto em termos de um sujeito ou vários sujeitos em situações imediatas, como na perspectiva de sujeitos históricos cujas ações envolvem várias gerações. Aqui também podemos imaginar que o movimentar-se possui um significado para o sujeito em relação a um contexto no qual ele se encontra, mas também envolve um significado histórico que ultrapassa a situação imediata. Assim, diante de um atleta de natação em uma competição de alto nível de nado livre, podemos indagar: quem é esse sujeito? A que classe social pertence? Que sentido e valores ele atribui a essa prática corporal? Por que ele nada? Ele sofre pressões de seus patrocinadores? O que o move naquele momento: o simples prazer de nadar ou a vontade de ganhar a competição? As respostas podem ser variadas, mas algo é certo: esse atleta se envolveu com uma prática corporal que resultou/resulta da ação coletiva de muitas gerações que buscaram/buscam construir uma forma técnica de deslocamento no meio líquido racional e eficiente, uma forma de superar o atrito da água e de se mover o mais rápido possível. Por sua vez, o significado do nadar de uma criança que está na praia e nada “cachorrinho” é bem diferente. Ela pode estar disputando com um colega quem chega mais rápido a um determinado lugar ou pode estar simplesmente brincando. Ela até Figura 27. Atleta de natação gostaria de nadar os “quatro estilos”, mas sua família não pode matriculá-la em uma escolinha, pois não tem condições econômicas. Talvez ela sonhe com isso enquanto nada e até sinta vergonha de só saber nadar “cachorrinho”. Talvez isso não passe pela sua cabeça e ela só sinta o prazer de se divertir nesse domingo ensolarado. Para além dessas situações imediatas, temos que reconhecer que o nado “cachorrinho” também é uma das variadas formas que o ser humano construiu, ao longo da sua história, para se deslocar no meio líquido. O seu sentido não é perpassado pela noção de eficiência. Além disso, ao possibilitar que a cabeça fique fora da água, ele se torna mais atraente para aquelas pessoas que não estão muito adaptadas ao meio líquido ao ponto de fazer a imersão sem o desconforto de engolir água. Apesar de não ser considerado um dos estilos oficiais da instituição esportiva, esse meio de locomoção na água também é um nado. Ora, o que nos fez acreditar que quem nada “cachorrinho” não sabe nadar? Por que consideramos que esse nado é errado? Por que a natação da instituição esportiva se tornou critério de execução correta de deslocamento na água? As indagações são instigantes. O que podemos enfatizar, por ora, é que, em ambas as situações, encontramos sujeitos envolvidos com movimentos relacionados com a locomoção no meio líquido, com sentidos imediatos e históricos variados. Nos casos citados, há, inclusive, diferenças na técnica de execução. Também poderíamos imaginar situações nas quais os sujeitos realizam técnicas de desempenho semelhantes, mas com significados distintos. Essa discussão nos desafia. Ao pretender dar um tratamento pedagógico à ampla gama de práticas corporais existentes e sistematizadas na forma de ginástica, esporte, Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 49 dança, lutas etc., o professor de Educação Física precisa reconhecer que as descrições biomecânicas e biológicas de um movimento não ocorrem descoladas da inserção histórica e social dos sujeitos. Por isso, o movimentar-se está carregado de interesses, de conflitos sociais, de valores e crenças, enfim, está carregado de vida humana! Se isso é verdade, a tarefa de ensinar/aprender ou pesquisar uma prática corporal se torna bastante complexa e muito mais interessante. À medida que contribui para evidenciar os fundamentos de nossa prática pedagógica, a Filosofia pode ser uma grande companheira: ela nos convida a indagar, de modo crítico e sistemático, aquelas noções que temos, muitas vezes, silenciosas, mas fortes o suficiente para direcionar politicamente a nossa intervenção. Que tal aceitar esse convite? Atividade Qual a diferença entre uma abordagem pedagógica que foca o movimento do aluno de outra que valoriza o aluno no seu movimentar-se? 5 Já acabou? I sso mesmo, chegamos ao término da unidade e do nosso fascículo. Agora você tem a chance de avaliar o que você pensava sobre a presença de uma disciplina de cunho filosófico na formação de professores de Educação Física. Você se lembra da sua resposta no início do fascículo? Realize essa tarefa filosofando. No fundo, essa é uma oportunidade para você sistematizar os estudos e as discussões construídas. Espero ter conseguido contagiar você com um pouco da minha paixão pela Filosofia. Também espero que, no exercício docente, você se deixe tocar pela força de Eros. Contudo, saiba que, para efetivar o Eros da e na educação, muitas vezes precisamos evocar o Anteros dirigido, de forma intolerante, contra tudo aquilo que promove a degradação do ser humano. Que você leve com carinho boas lembranças desse nosso encontro! Mas o tempo e o cansaço podem ser implacáveis. Nesse caso, faço minhas as palavras do poeta: Analise imagens a seguir. O que elas indicam? Em termos biológicos, são formas de movimento muito semelhantes, envolvem praticamente as mesmas articulações e grupos musculares. Mas que sentido possuem? São os mesmos? O que cada corrida comunica, expressa? Busque subsídios teóricos no texto de Kunz para formular sua explicação. “ Se me esqueceres, só uma coisa, esquece-me bem devagarinho Mário Quintana „ Até sempre! Sandra Figura 28. Fugindo do cão Figura 29. Crianças brincando Figura 30. Corredores olímpicos 50 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica Unidade 3 Filosofia e Educação Física: o corpo e o movimentar-se 51 Lista de imagens Capa: A morte de Sócrates, de Jacques-Louis David, 1787. Museu Metropolitano de Arte, Nova Iorque. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:David_-_The_Death_of_Socrates.jpg>. Acesso em: 27 jan. 2010. Figura 1. Venus e Cupido, de Alessandro Allori, século XVI. Musée Fabre, Montpellier. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Allori_Venus_Cupido.jpg>. Acesso em: 27 jan. 2010. Figura 2. O rapto de Psiquê, de William Adolphe Bouguereau, 1985. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Psycheabduct.jpg>. Acesso em: 27 jan. 2010. Figura 3: Jovem se defende de Eros, de William-Adolphe Bouguereau, 1880. Disponível em: <http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:William-Adolphe_Bouguereau_%2818251905%29_-_A_Young_Girl_Defending_Herself_Against_Eros_%281880%29.jpg>. Acesso em: 27 jan. 2010. Figura 4. Ilustração: Platão. Figura 5. Ilustração: Mapa da Grécia Antiga. Figura 6. Ilustração: Tales. Figura 7. Ilustração: Pitágoras. Figura 8. Ilustração: Heráclito. Figura 9. Ilustração: Sócrates. Figura 10. Mafalda, Quino, 2003, p. 91. Figura 11. Mafalda, Quino, 2003, p. 36. Figura 12. Mafalda, Quino, 2003, p. 79. Figura 13. Mafalda, Quino, 2003, p. 19. Figura 14. Mafalda, Quino, 2003, p. 82. Figura 15. Mafalda, Quino, 2003, p. 16. Figura 16. Mafalda, Quino, 2003, p. 69. Figura 17. Mafalda, Quino, 2003, p. 68. Figura 18. Mafalda, Quino, 2003, p. 71. Figura 19. Mafalda, Quino, 2003, p. 68. Figura 20. Ilustração: Corpo x Alma. Figura 21. A lição de anatomia do Dr. Tulp, de Rembrandt, 1632. Royal Picture Gallery Mauritshuis, Haia. Disponível em: <http://commons.wikimedia.org/wiki/File:The_Anatomy_Lesson.jpg>. Acesso em: 27 jan. 2010. Figura 22. Ilustração: René Descartes. Figura 23. Ilustração: Nadador olímpico. Figura 24. Ilustração: A turbinada. Figura 25. Ilustração: Charles Chaplin em Tempos Modernos. Figura 26. Ilustração: Treinamento de ginástica olímpica. Figura 27. Ilustração: Atleta de natação. Figura 28. Ilustração: Fugindo do cão. Figura 29. Ilustração: Crianças brincando. Figura 30. Ilustração: Corredores olímpicos. 52 Educação Física, Educação e Reflexão Filosófica 53 Referências Betti, M. Educação física e sociedade: a educação física na escola brasileira de 1º e 2º graus. São Paulo: Movimento, 1991. Borges, Anselmo. Homem: corpo-pessoa. Diário de Notícias, 9 de julho de 2006. Disponível em: <http://dn.sapo.pt/inicio/interior.aspx?content_id=643111>. Acesso em: 20 nov. 2007. Chauí, Marilena. Convite à Filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2006. 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