Sismicidade difusa no Golfo de Cadiz: contribuições da transição continente-oceano e da convergência Núbia-Eurásia Diffuse seismicity in the Gulf of Cadiz: contributions from the oceancontinent transition and Nubia-Eurasia convergence M. C. Neves CIMA, FCMA, Universidade do Algarve [email protected] SUMÁRIO Este trabalho tem por objectivo determinar a contribuição relativa da transição continente-oceano para a resistência mecânica da litosfera na fronteira de placas Núbia-Eurásia. Para isso cartografamos variações verticais da resistência mecânica da litosfera ao longo de um perfil que vai desde a Zona Sul Portuguesa até à fronteira Núbia-Eurásia. Os mapas são calculados através de modelos de elementos finitos em função da estrutura térmica, estratificação reológica e taxa de deformação, e comparados com a distribuição da sismicidade. Mostramos que a transição continente-oceano gera um campo de tensões de 2ª ordem consistente com a distribuição da sismicidade à superfície e que pode potenciar a ocorrência de sismos a níveis inferiores. Palavras-chave: tensão, resistência mecânica, reologia, transição continente-oceano, sismicidade, Núbia-Eurásia SUMMARY This work aims to determine the relative contribution of the ocean-continent transition to the strength distribution of the lithosphere across the ´Núbia-Eurasia plate boundary. To achieve it we map vertical strength variations along a transect running from the South Portuguese Zone to the Núbia-Eurasia boundary. Strength maps are computed from finite element models as a function of thermal structure, rheological layering and strain rate, and compared with the observed distribution of seismicity. We show that the ocean-continent transition produces a 2nd order stress field consistent with the seismicity distribution at surface and suggest it may enhance the occurrence of deeper earthquakes. Key-words:stress, strength, rheology, ocean-continent transition, seismicity, Nubia-Eurasia plate boundary A natureza da transição crosta continental – crosta oceânica na zona SW da margem Ibérica não é exactamente conhecida. No entanto, os resultados do projecto IAM (Iberian Atlantic Margins) apontam para que a localização desta transição [3] seja aproximadamente a indicada na Figura 1. Até à data o efeito da transição continente-oceano no campo de tensões desta zona foi apenas indirectamente tido em conta em modelos numéricos que consideram variações horizontais da resistência mecânica, integrada ao longo de toda a espessura da litosfera [1]. Estes modelos (2D horizontais) não permitem fazer a discriminação entre os efeitos da convergência Núbia-Eurásia e o efeito da transição continente-oceano sobre o campo regional de tensão. Neste estudo calculamos a contribuição da transição continente-oceano para o campo de tensões, Introdução A distribuição de epicentros na fronteira de placas Núbia-Eurásia imediatamente a Este do Banco de Gorringe estende-se por uma banda com cerca de 150 km de largura (Figura 1). Os modelos numéricos de comportamento mecânico da litosfera nesta zona têm vinculado a ideia de que a sismicidade reflecte o carácter difuso da fronteira de placas, sendo a deformação transpressiva devida à convergência Núbia-Eurásia acomodada por um sistema de numerosas falhas [1]. O campo regional de tensão é dominado por sismos superficiais (h < 30 km) mostrando mecanismos focais em desligamento e convergência, com compressão máxima horizontal na direcção NNW-SSE [2]. A evidência de facto sugere que o campo de tensão regional é principalmente controlado pelo movimento das placas Africana e Euroasiática. 317 modelada uma parte desta secção (450 km contendo a transição continente-oceano). considerando uma secção vertical da litosfera que coincide na parte oceânica com o perfil IAM3. A distribuição de sismos com a qual serão comparados os modelos foi selecionada a partir da base de dados do ISC (International Seismological Centre) para o período entre 1969 e o presente (Figura 3). Fig. 3 Sismos projectados na secção vertical do perfil (sismos a menos de 75 km de distância do perfil). A azul os sismos de maior magnitude (mb>4) com mecanismos focais conhecidos. GB HAP CPS OCB - ocean-continent transition inferred from seismic profiles GB - Gorringe Bank CPS - Coral Patch Seamount; HAP - Horseshoe Abyssal Plain Descrição do Modelo O comportamento da litosfera é modelado usando um programa de elementos finitos que calcula a solução elasto-visco-plástica das equações de equilíbrio mecânico [5]. Os modelos são 2D verticais e assumem a hipótese de deformação plana. A grelha de elementos finitos é regular e usa elementos isoparamétricos quadrilaterais de 8 nodos. Além dos 450 km de extensão de perfil de interesse neste estudo estende-se a grelha cerca de 300 km para cada lado para evitar efeitos de fronteira. A profundidade é de 200 km pelo mesmo motivo. Fig. 1: Mapa da área de estudo mostrando o perfil modelado. Os epicentros a menos de 75 km do perfil são representados a vermelho. A origem do sistema de coordenadas é localizada em Sagres. Dados Utilizados Os dados de input necessários a este trabalho são baseados na estrutura da crosta e parâmetros das rochas (densidade, conductividade térmica e taxa de produção de calor) publicados por A deflexão elástica da litosfera ocorre em resposta às forças gravitacionais geradas pelos contrastes de densidade especificados (Figura 4). Assume-se que apenas as tensões deviatóricas causam deformação, e por isso as tensões litostáticas são ignoradas. Assim, os contrastes de densidade são especificados em relação a um perfil de referência localizado na extremidade oceânica do perfil. Fernàndez, Marzan e Torné [4]. Estes autores modelaram simultaneamente a elevação, dados de gravimetria, geóide e fluxo de calor, ao longo do perfil da Figura 2, resolvendo as equações de transporte de calor e equilíbrio geopotencial. Usaram as hipóteses simplificativas de equilíbrio isostático local e estado térmico estacionário. Fig. 4: Contrastes de densidade (em kg/m3) relativos a um perfil de referência localizado na extremidade oceânica (esquerda) do perfil. Visível a totalidade da grelha de elementos finitos (1000 km de extensão, 200 km de profundidade). Na formulação utilizada as tensões que excedem o limite de resistência mecânica do material são relaxadas por escoamento viscoso. O ajuste ao limite de resistência é implementado através do critério de Von-Mises. O perfil de resistência mecânico da litosfera (“strength envelope”) é calculado assumindo a estrutura reológica da Figura 5. Fig. 2: Estrutura da crosta proposta por Fernandez et al. (2004) a partir da compilação de dados de reflexão e refracção sísmica. Neste estudo é apenas 318 Temperature Density anomaly Fig. 5: Estrutura reológica utilizada. Mostram-se apenas os 450 km de extensão e 120 km de profundidade de interesse. Fig. 6: Estrutura térmica (em cima) e estrutura de densidades utilizadas no manto (em baixo) para a totalidade da grelha. O limite de resistência é calculado de acordo com leis de deformação frágil e dúctil. No regime frágil assumimos a lei de atrito de Coulomb para falhas de orientação favorável e coesão desprezável Resultados As tensões e a deformação neste tipo de modelo (Figura 7) são o resultado da estrutura térmica e da estrutura de densidades. Isolamos assim o efeito da transição continente-oceano uma vez que não são tidas em conta forças associadas à fronteira de placas. σ 1 − σ 3 = αρ gz (1 − λ ) Usamos λ=0.4, α=3.0 em compressão e α=0.75 em extensão. No regime dúctil assumimos uma lei de escoamento não linear com parâmetros A,H,n dependentes da composição [6]. 1 ⎛ ε ⎞n ⎛ H ⎞ σ 1 − σ 3 = ⎜ ⎟ exp⎜ ⎟ ⎝ A⎠ ⎝ nRT ⎠ A resistência mecânica depende da temperatura sendo necessário assumir uma determinada estrutura térmica. Para o cálculo da estrutura térmica consideramos geotérmicas estáticas. Na litosfera continental (x > 100 km) resolvemos a equação de condução de calor a uma dimensão, com produção de calor radioactivo para um modelo de 4 camadas (crosta superior, média, inferior e manto litosférico). Na litosfera oceânica (x < -400 km) usamos a geotérmica assimptótica para litosfera oceânica antiga. Na região intermédia a estrutura térmica é interpolada linearmente entre as duas geotérmicas anteriores (Figura 6). De entre as várias estruturas térmicas testadas apenas mostramos aqui aquela que melhor se ajusta aos dados (geotérmica continental calculada para um fluxo de calor de 80 mW m-2 e geotérmica oceânica calculada para um fluxo de calor de 42 mW m-2) e que é aliás semelhante à defendida por Fernàndez et al. [4]. No manto assumimos que a densidade é dependente da temperatura. Adicionamos portanto ao modelo anomalias de densidade no manto calculadas em relação à geotérmica oceânica de acordo com Fig. 7: Exemplo da deformação final do modelo depois de atingido o equilíbrio. Nas figuras seguintes mostramos os resultados para a zona central a azul. Os modelos reológicos são função da composição assumida. Na figura 8 apresentamos os resultados para as combinações de composição crosta oceânica (OC), continental superior (UC), continental média (MC) inferior (LC) e manto (M) que constam na seguinte tabela. T4203 T4204 T4208 L4204 Δρ m = ρ mα (T − Toceanic ) OC+UC+MC+LC: wet quartzite M: wet peridotite OC+UC: wet quartzite MC+LC: felsic granulite M: wet peridotite OC+UC: wet quartzite MC+LC: mafic granulite M: wet peridotite = T4204 Todos os modelos foram calculados assumindo uma taxa de deformação de 10-16 s-1 excepto o modelo L4204 que foi calculado para 10-14 s-1. Onde ρm=3300 kg/m3 é a densidade do manto e α=3.5x10-5°C-1 é o coeficiente de expansão térmica. 319 observado poderá ser melhorado mediante a alteração das densidades. O limite de resistência mecânica (strength) corresponde à tensão diferencial máxima (tectónica) que pode ser suportada assumindo que existe um background de tensão litostática. σ 1 − σ 3 = σ V − σ H = Δσ xx Valores negativos correspondem a compressões. As regiões que atingem o limite de resistência frágil e dúctil são representadas na Figura 10 para o modelo T4208 (aquele cuja distribuição de tensão diferencial melhor se ajusta à distribuição da sismicidade). T4208 T4203 0 -20 -40 -60 -80 -100 -120 -400 T4204 -350 -300 -250 -200 -150 -100 -50 0 50 -350 -300 -250 -200 -150 -100 -50 0 50 0 -20 -40 -60 -80 -100 -120 -400 T4208 0 Fig. 10: A ruptura frágil em compressão é prevista à superfície na zona de transição continente-oceano (a laranja). A ruptura frágil em extensão é prevista na crosta continental até uma profundidade máxima de 15 km (a azul claro). Na zona a castanho é atingido o limite de resistência dúctil. Na zona azul escura não é prevista ruptura, portanto nesta zona a ocorrência de sismos atribui-se à sobreposição de outras fontes de tensão (e.g. forças tectónicas devidas à convergência Núbia-Eurásia). -20 Conclusões -40 -60 -80 • O efeito da transição continente-oceano produz zonas de tensão diferencial máxima que se correlacionam bastante bem com a distribuição da sismicidade, e prevê zonas de ruptura frágil à superfície que se correlacionam muito bem com a localização dos sismos mais superficiais. • Os sismos superficiais de pequena magnitude nesta zona podem assim ser encarados como uma manifestação das tensões flexurais associadas à transição continente-oceano. Estes contribuem para o aparente carácter difuso da fronteira de placas. • A este background de tensões flexurais sobrepõem-se outras fontes de tensão relacionadas com a fronteira de placas e acidentes tectónicos pré-existentes, que são objecto de investigação em progresso. -100 -120 -400 0 -350 -300 -250 -200 -150 -100 -50 0 50 -350 -300 -250 -200 -150 -100 -50 0 50 L4204 -20 -40 -60 -80 -100 -120 -400 Fig. 8: Comparação entre a tensão diferencial suportada e a distribuição de sismos para os vários modelos reológicos da tabela anterior. 6000 observed el15v T4203 T4204 T4206 T4208 4000 • 2000 0 -400 -300 -200 -100 0 100 Fig. 9: Comparação entre o perfil de elevação observado e os perfis de deflexão à superfície para os vários modelos. O perfil de deflexão el15v corresponde a um modelo de manto com reologia Newtoniana e é apresentado apenas para efeitos comparativos. Nestes modelos o equilíbrio isostático é flexural e não do tipo Airy como assumido por Fernàndez et al. (2004) pelo que o ajuste ao perfil de elevação 320 Referências Bibliográgicas [1] Jiménez-Munt I., Frenàndez M., Torné M., Bird P., 2001, EPSL, 192, 175-189 [2] Bufforn E., Bezzeghoud M.,Údias A., Pro C., 2004, Pure appl. Geophys.,161,623-646 [3] Tortella D., Torne M., Pérez-Estaún A., 1997, Mar. Geophy. Res., 19, 211-230 [4] Fernández M., Marzán I., Torne M., 2004, Tectonophysics, 386, 97-115 [5] Bott, M.H.P., 1997, JGR, 102, 24605-24617 [6] Afonso J. , Ranalli G., 2004, Tectonophysics, 394,221232