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Savio Cavalcante - As classes sociais no Brasil contemporaneo

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39º Encontro Anual da ANPOCS
GT 3 – As classes sociais no Brasil contemporâneo
Reprodução social e revolta política da classe média no
Brasil recente
Sávio Machado Cavalcante
Professor do Departamento de Sociologia (Unicamp)
[email protected]
Outubro de 2015
Caxambu/MG
Introdução1
Este trabalho procura contribuir para a explicação e compreensão da lógica de
reprodução social da alta classe média brasileira a partir de um campo específico de
análise: a reação política recente percebida em setores sociais e profissionais a ela
vinculados, principalmente em manifestações de rua ocorridas em 2015 em várias
cidades brasileiras, especialmente São Paulo.
A tese de fundo que orienta essa análise é a de que a revolta atual da classe média
é a resposta, ainda difusa e com contornos multifacetados, aos efeitos das políticas
econômica e social dos governos Lula e Dilma. Sem a pretensão de esgotar todas as
dimensões desse aspecto, busca-se identificar as linhas gerais dessas políticas e destacar a
dimensão, no tocante a políticas sociais, de programas compensatórios que secundarizam
o critério meritocrático e promovem, direta ou indiretamente, impactos no modo de vida
particular da classe média brasileira.
O foco aqui é a camada superior da classe média, aquela que, desde o início da
década de 2000, transitou de uma aversão genérica “ao sistema político” ou “à corrupção
em geral” a uma oposição mais organizada e declarada ao projeto levado a cabo pelos
governos dos Partidos dos Trabalhadores, cujo resultado foi o surgimento e/ou
fortalecimento de reações de direita nessa camada da população brasileira.
O texto divide-se em seis partes. No primeiro, apresentamos e justificamos o
problema geral de pesquisa. No segundo, indicamos o modo pelo qual caracterizamos os
governos Lula e Dilma, sugerindo a ideia de um “ciclo neodesenvolvimentista” que não
rompe com a política neoliberal de fundo. No terceiro, são problematizadas as
explicações
existentes
sobre
a
relação
da
classe
média
com
o
ciclo
neodesenvolvimentista. No quarto, formulamos e desenvolvemos hipóteses explicativas
que buscam apreender o fenômeno de modo alternativo à abordagem economicista. Para
tanto, exige-se uma discussão conceitual e teórica sobre o funcionamento de diferentes
ideologias nesse processo, o que discutimos na quinta parte deste texto. Ao fim,
1
Uma versão modificada deste texto (que foca problemas distintos a partir do mesmo objeto) será
publicada com o título “Classe média e conservadorismo liberal”, ainda no segundo semestre de 2015, em
livro organizado por Sebastião Velasco e Cruz, André Kaysel e Gustavo Codas. Agradeço a Armando
Boito Jr. pela leitura e pelos comentários feitos a uma das versões do texto.
2
sugerimos como certas pesquisas de opinião sobre as manifestações podem revelar
importantes dimensões para análises futuras.
1. O problema geral de pesquisa
É preciso reconhecer, antes de tudo, que a relação entre o ciclo político
caracterizado pelos governos Lula e Dilma e as classes médias no Brasil tornou-se um
exercício sociológico difícil em razão de certos obstáculos conceituais que o debate sobre
as classes sociais enfrentou no mesmo período, particularmente devido ao significativo
aumento de renda verificado em parte da população, um estrato que, equivocadamente do
ponto de vista sociológico, recebeu o nome de “nova classe média”.
Não foi pouca a atenção dirigida a esse contingente da população, especialmente
por ele ter se alçado à condição de um “novo consumidor” carente de serviços e
mercadorias “específicos”. A confluência dos governos do PT com esses grupos – que
são, na verdade, novos grupos da classe trabalhadora – tendeu a ocultar o que de fato
ocorria em relação à classe média digna de ser assim designada: seu gradual afastamento
político em relação aos projetos desses governos.
O indício mais evidente desse processo é o mesmo descrito por A. Singer (2012)
por meio da tese do realinhamento eleitoral, ocorrido especialmente a partir das eleições
de 2006. Essa eleição é importante por explicitar dois movimentos fundamentais
subjacentes ao “lulismo” na política brasileira: a adesão do subproletariado e o
afastamento da alta classe média em relação à plataforma política representada pelos
governos do PT2. É a partir desses fenômenos que se procura, neste trabalho, sugerir e
desenvolver hipóteses explicativas que conjuguem esses dois movimentos com vistas a
compreender os impactos causados por esse projeto na reprodução social da classe média
nesse período.
Além do realinhamento eleitoral, fenômenos recentes corroboram a oposição mais
acirrada proveniente da classe média: a formação e radicalização de grupos liberais e/ou
2
É preciso observar, contudo, que entendemos o subproletariado e a alta classe média como “classesapoio” de programas políticos distintos e não como as classes que têm seus interesses priorizados por esses
programas. Ver Boito Jr. (2013).
3
conservadores com presença marcante da classe média e manifestações de rua de 20133
e, principalmente, de 2015, que foram conclamadas em grande parte por esses mesmos
grupos4. O perfil dos manifestantes, como revelam as pesquisas realizadas em 2015,
denotam um caráter explicitamente de classe média ao movimento5.
Ainda que não a realizemos nesse espaço, é uma tarefa necessária, em outro
momento, diferenciar os efeitos da política econômica e social no conjunto heterogêneo
que é a classe média. Contudo, como indicamos, nosso foco no momento é a alta classe
média. Sugerimos que a aproximação a essa noção “prática” de pesquisa6 leve em
consideração três dimensões que, na maior parte dos casos, se combinam quando o
objetivo é identificar indivíduos ou famílias de alta classe média.
A primeira aproximação é aquela que diz respeito estritamente ao âmbito da renda
e teria como referência as famílias com rendimento superior a 10 salários mínimos e não
pertencente ao 1% mais rico da sociedade brasileira. A segunda aproximação é
determinada pelas relações de trabalho e faz referência a profissionais autônomos, como
médicos e advogados, ou assalariados com graus mais elevados de autonomia, como
professores universitários, e aqueles assalariados diplomados mais diretamente
vinculados às funções de gestão e controle técnico-administrativo nas burocracias
privadas ou estatais, como economistas e engenheiros. A terceira aproximação busca dar
conta do âmbito social mais geral e se refere àqueles que monopolizam o acesso ao
capital cultural e que transformam a pertença a esse espaço social em um atributo do
talento e méritos individuais7.
3
Evidentemente que a referência não é ao “junho de 2013” de caráter popular, em que demandas de grupos
que não se satisfizeram com a melhoria vivenciada da “porta para dentro de casa” exigiram um
desenvolvimento mais agudo da “porta para fora”. Trata-se do momento das manifestações de 2013
dominado pela pauta contrária à corrupção em geral e de perfil notadamente de classe média.
4
Grupos com projetos e bandeiras distintos como “Vem Pra Rua”, “Movimento Brasil Livre”, “Revoltados
On Line”.
5
Em São Paulo, as pesquisas (Ortellado et al., 2015; Perseu Abramo, 2015; Datafolha) convergem num
perfil de manifestantes em que 70% têm ensino superior completo e de 40% a 50% possuem renda mensal
superior a 10 salários mínimos.
6
O termo “noção prática de pesquisa” foi utilizado por Décio Saes (1977) com o intuito de observar, no
plano metodológico, que o fenômeno da classe média não é um dado a priori deduzível de um sistema
teórico, mas resultado de uma análise das práticas políticas de diferentes setores do trabalho assalariado no
capitalismo. Em nossa definição provisória de alta classe média, estamos incluindo trabalhadores
“autônomos” com níveis elevados de qualificação e não apenas a classe média assalariada.
7
Uma combinação, como se pode notar, da teoria marxista com formulações de Bourdieu e Passeron
(1975) e Bourdieu (2007).
4
Não se trata, evidentemente, de um modelo fechado com pretensões estatísticas.
Apenas uma orientação prática de pesquisa capaz de situar e tornar compreensíveis os
espaços econômicos e sociais em que a alta classe média se reproduz. No registro
individual, inúmeros casos poderiam ser situados em apenas um ou dois desses âmbitos.
Porém, nos parece bastante razoável afirmar que o perfil sociológico específico de alta
classe média brasileira responde positivamente a essas três dimensões de análise.
Seguimos o argumento geral de Décio Saes segundo o qual a classe média é uma
camada distinta de trabalhadores na medida em que absorve de maneira particular a
ideologia dominante de valorização do trabalho e mobilidade social, em razão de sua
posição nas funções intelectuais de produção e gestão em diversos setores da economia.
A forma particular pela qual absorve a ideologia dominante produz sua ideologia
orgânica específica, qual seja, a ideologia meritocrática própria a trabalhadores
intelectuais mais distante da fábrica e do trabalho manual, os quais justificam e
naturalizam a hierarquia do trabalho como se essa hierarquia fosse uma expressão de uma
pirâmide natural de “dons e méritos”, como apresentaram Bourdieu e Passeron (1975).
A contradição entre capital e trabalho é parcialmente apagada e substituída por
um sentimento de superioridade do trabalho não manual conquistado por mérito
individual, especialmente nas funções técnico-científicas. No Brasil, essa ideologia é
potencializada pela herança escravocrata e é reproduzida por meio de uma complexa
imbricação entre valores meritocráticos e privilégios de classe “naturalizados”.
Eis a tese que aqui iremos desenvolver, ainda que sua completa fundamentação
esteja em processo e diversas questões sejam apenas tangenciadas: a política econômica e
social dos governos Lula e Dilma – a despeito de diferenças entre os mandatos –
promoveu impactos significativos na reprodução social da classe média brasileira. Esse
impacto não pode ser avaliado apenas em termos “financeiro-econômicos”. Trata-se de
pensar a articulação com o componente ideológico e social mais geral que justifica o
lugar superior desta classe na hierarquia social: por isso, enfatizamos como um dos
efeitos mais importantes dessas políticas sociais (como Bolsa Família e cotas) o fato de
que elas secundarizam o critério meritocrático como forma de escolha/seleção a serviços
ou instituições públicas.
5
2. O ciclo político dos governos do PT
As reações da classe média nos últimos anos precisam ser compreendidas no
interior de um ciclo político específico inaugurado pelo governo Lula no Brasil. Trata-se
de um tema bastante controverso, já que a caracterização desses governos mobiliza
diferentes marcos teóricos e programas políticos em disputa. Não temos a intenção, neste
breve espaço, de esgotar o problema, mas indicar o caminho de análise que adotamos
neste texto.
Nessa polêmica, destacam-se duas tendências mais claramente discerníveis. A
primeira enfatiza o quadro macroeconômico que denota a preservação do modelo
neoliberal herdado da década de 1990, em que se destaca a prioridade ao capital
bancário-financeiro, e avalia a relativa melhora em aspectos sociais como resultado de
políticas compensatórias ajustadas a esse modelo. Tratar-se-ia, de maneira geral, de um
social-liberalismo. A segunda tendência enfatiza as descontinuidades com o modelo
neoliberal e identifica um novo desenvolvimentismo como o traço característico desse
ciclo, pois, ao reorientar a ação do Estado no âmbito das políticas de investimento, de
crédito e social, teria ocorrido uma inversão da lógica neoliberal anterior.
Orientamo-nos por uma posição distinta de ambas, que não se apresenta,
importante observar, como um “meio-termo”, mas como deslocamento parcial de eixos
de referência, isto é, neodesenvolvimentismo e neoliberalismo, nos marcos de um
capitalismo internacionalmente financeirizado, não são, necessariamente, termos
mutuamente exclusivos.
O ciclo político do período foi marcado pela existência de uma frente
neodesenvolvimentista que tinha como objetivo melhorar a posição da grande burguesia
interna brasileira no interior do bloco no poder e, ao mesmo tempo, obter concessões,
com medidas anticíclicas e pró-consumo, às classes populares. Porém, como tudo isso foi
feito sem que fossem atacados diretamente os pilares da política neoliberal
macroeconômica, há uma distância enorme entre a existência de uma frente
neodesenvolvimentista e a consecução de seus objetivos. Com o ciclo em crise e
possivelmente em seus estertores, é possível dizer que o limite foi justamente não
conseguir abalar (ou sequer ter se proposto a tanto) os fundamentos que garantem a
hegemonia
da
fração
bancário-financeira,
cujos
interesses
limitam
tanto
o
6
desenvolvimento no longo prazo quanto projetos mais substantivos de distribuição de
riqueza. E, por estar baseado fortemente em setores exportadores de commodities, há
pouca alteração da estrutura produtiva nacional.
Ainda que numa formulação paradoxal, pensamos ser pertinente caracterizar esse
ciclo
como
um
desenvolvimentistas.
modelo
Algo
neoliberal
próximo
modificado
a
que
Boito
parcialmente
Jr.
(2012)
por
políticas
chamou
de
“desenvolvimentismo possível num modelo neoliberal periférico reformado” e que Saad
Filho e Morais (2011) mostraram como o caráter complementar, mas não substitutivo, de
propostas neodesenvolvimentistas em relação à política econômica neoliberal.
Para os objetivos aqui traçados, mesmo que, desse processo, o resultado tenha
sido um “reformismo fraco”, o fato é que ele produziu efeitos significativos e
importantes quando se toma como referência o ponto de partida do projeto, como salienta
Singer (2012): uma sociedade com altos níveis de pobreza e miséria, com uma
desigualdade extremamente elevada e parte considerável da população sequer integrada à
massa que vende força de trabalho nos moldes capitalistas.
3. Classe média e o ciclo neodesenvolvimentista
Se existem diferenças importantes, como já assinalamos, na relação da baixa
classe média com o ciclo neodesenvolvimentista, o sentimento de aversão e reação
negativa aos efeitos mais gerais desse projeto por parte da alta classe média é o que
predomina em suas fileiras. As manifestações de rua em 2015 contra o governo podem
ser vistas como o clímax de um processo que anunciava uma revolta conservadora.
Interessa-nos mais propriamente entender como se efetivou esse processo, que fez a
discordância se transformar em oposição explícita, mais bem articulada e, não raro,
virulenta. Duas explicações destacam-se na literatura sobre o tema e nas intervenções dos
próprios agentes: a revolta contra a corrupção e os impactos socioeconômicos negativos
sentidos pela alta classe média nos últimos anos. Essas duas razões tocam em aspectos
importantes do processo, mas se mostram insuficientes ao descurar de determinações de
maior alcance.
No tocante à corrupção – a mais forte motivação autodeclarada dos próprios
manifestantes – é inegável que esse tema tenha se transformado no maior aglutinador das
7
reações contrárias ao governo, especialmente a partir da crise do “mensalão” ocorrida no
primeiro governo Lula. Para parte significativa dos manifestantes de 2015, a revolta se
dirige ao “sistema político como um todo”8.
Seria um equívoco desconsiderar o papel que tem cumprido a crítica à corrupção
na escalada de rejeição aos governos petistas e, mais ainda, menosprezar as
consequências gerais de um projeto político (como o do PT) que, para alcançar seus
objetivos, não construiu alternativas às já tradicionais formas, legais ou ilegais, de
financiamento de campanha e conquista de apoio político, isto é, que admitiu como uma
“necessidade tática” seguir as regras existentes.
Contudo, como a corrupção é estrutural a qualquer sistema político que está
inscrito no interior da luta entre frações da classe dominante e grupos econômicos – e as
particularidades da formação brasileira servem aí de mola propulsora – qualquer luta
anticorrupção é necessariamente seletiva e orientada por fins diversos. Em outras
palavras, para que o discurso anticorrupção ganhe corpo e se mostre atrativo não apenas a
“indivíduos”, mas a uma classe ou camada social como um todo, outros interesses
precisam ser despertados e o decisivo é saber que programa alternativo se pretende
implantar em substituição ao que é atacado. Assim, ainda que, no limite, tal movimento
possa estar reacendendo um espírito udenista já conhecido na história brasileira, é preciso
reconhecer suas novas feições.
A segunda razão mais comumente oferecida – desta feita, pelos críticos aos
protestos - atribui a um declínio socioeconômico as causas da revolta de classe média.
Ressalta-se, igualmente, que a elevação de renda de estratos inferiores fez com que
espaços reservados à classe média e à burguesia (o caso dos aeroportos é emblemático)
começassem a ser frequentados também por camadas populares, o que teria se chocado
com a “demofobia das elites”. Parece-nos, de fato, que essa consideração toca parte da
base objetiva que condiciona a reação negativa da alta classe média. Porém, é preciso
evitar um viés economicista de apreensão dos fenômenos que pode daí surgir – ou
mesmo superestimar o impacto econômico que teria sofrido a classe média.
O fato é que a política econômica neodesenvolvimentista não pode ser vista
simplesmente como negativa para a alta classe média, e as possíveis perdas financeiras
8
Ver Ortelado et al. (2015).
8
devem ser avaliadas em termos absolutos e relativos. Se, por um lado, é possível que as
classes populares tenham se aproximada da classe média em geral – o que se conclui a
partir da queda de índices que expressam a desigualdade social – por outro lado, alguns
dos espaços mais importantes de reprodução socioeconômica dos indivíduos de classe
média perceberam um crescimento importante em comparação à década de 1990. É o
caso, sobretudo, da trajetória de expansão dos concursos públicos e do emprego em geral
no funcionalismo vinculado ao Estado.
Gomes e Sória (2014) mostram que os governos Lula e Dilma interromperam a
trajetória de declínio do funcionalismo público e o nível de emprego neste setor
recuperou os índices do começo da década de 1990, ou seja, antes dos programas mais
abrangentes de redução de empregos públicos. Novas diretrizes foram estabelecidas,
especialmente as que tinham por objetivo substituir funcionários com baixa qualificação
por quadros técnicos com escolarização mais elevada. E, importante destacar, o campo
mais positivamente afetado foi a área de educação: quase metade dos novos servidores
públicos, no período de 2002 a 2013, eram vinculados ao Ministério da Educação,
principalmente via o programa REUNI (Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e
Expansão das Universidades Públicas).
Porém, como indicamos a seguir, a estrutura geral do mercado de trabalho e as
políticas de transferência de renda sinalizam pressões no sentido inverso, isto é,
movimentos que tendem a deteriorar de maneira absoluta ou relativa os ganhos da alta
classe média. De qualquer modo, evitar o economicismo das análises significa não
reduzir um problema sociológico a um cálculo utilitário de ganhos e perdas. Em verdade,
não se deve entender o “econômico” de modo limitado, como um sinônimo de problema
“monetário” ou “financeiro”, mas numa concepção mais ampla, que o concebe
simultaneamente como estrutura determinada e determinante na relação que estabelece
com as estruturas políticas e ideológicas.
A hipótese aqui levantada é a seguinte: mesmo que existam possíveis perdas em
termos de renda, o impacto econômico só pode ser avaliado por “perturbações”
ideológicas e simbólicas que atingem um modo de vida de classe média. Indo além,
diríamos que é o componente ideológico que parece potencializar de forma mais aguda a
revolta da classe média. Essa revolta será marcada, nesse sentido, por uma reação
político-ideológica particular: para sustentar o privilégio de classe média – produto da
9
formação brasileira que resistiu à incorporação completa da ordem competitiva de classes
– recorre-se a um apego peculiar à meritocracia que se combina com uma aversão
conversadora à massa “ignorante e preguiçosa” que é “complacente” com a corrupção ou
“comprada” pelo governo.
Mas, como a ideologia e condições materiais não se dissociam, comecemos por
analisar o grau e sentido de algumas transformações do mercado de trabalho. A
característica mais importante do ciclo foi promover um crescimento econômico que,
embora moderado na média, permitiu, ao ser combinado com outros fatores, um
decréscimo forte do desemprego, aumentou as taxas de formalização do emprego e
elevou a renda média per capita. Em 2003, a taxa de desocupação nas maiores regiões
metropolitanas do Brasil, segundo o IBGE, era de 12% - uma das maiores do mundo à
época. Uma década depois, o sentido foi invertido e o país apresentava uma das menores
taxas mundiais, em torno de 5%. O estoque de empregos formais praticamente duplicou
entre 1999 e 2013, de 25 para 48 milhões de vínculos (Oliveira, 2015). O rendimento do
trabalho na renda nacional aumentou 14,8% de 2004 a 2010 e o grau de desigualdade na
distribuição pessoal da renda do trabalho diminuiu em 10,7% (Pochmann, 2012). O
índice de Gini – se construído com base na distribuição do rendimento médio mensal de
todos os trabalhos das pessoas acima de 15 anos – caiu de 0,563, em 2001, para 0,494,
em 2013 (Oliveira, 2015).
Outra marca do período foi o processo de valorização do salário mínimo (SM),
que ocupou um papel fundamental na redução da pobreza ao lado das políticas de
transferência de renda. O valor real do salário mínimo mais do que duplicou em uma
década e, segundo boletim do Banco Central (BC 2015), seu poder de compra em 2015
foi o maior desde agosto de 1965, mais precisamente, o maior da série histórica à
exceção do período de 1954 a 1965. As políticas de oferta de crédito, ampliadas desde o
primeiro mandato de Lula, tiveram também um efeito importante ao destravarem um
potencial de consumo popular represado.
Porém,
está
igualmente no
mercado
de
trabalho
o
lado
frágil
do
neodesenvolvimentismo: o ciclo de crescimento econômico não alterou a estrutura
produtiva nacional a ponto de elevar na mesma proporção os postos de trabalho que
exigem maior qualificação. O parque industrial e as cadeias produtivas continuaram
10
dependentes da lógica externa e a proeminência da exportação de commodities promoveu
os receios de uma desindustrialização negativa para o país.
Um dos sinais mais claros é o fato de quase 95% dos empregos criados na década
de 2000 estiveram na faixa de até 1,5 salário mínimo (Pochmann, 2012),
majoritariamente no setor de serviços e em postos com exigência de baixa qualificação.
Se, em 2000, os empregos reunidos nessa faixa correspondiam a 29,7% do total de
empregos, em 2013 eles representam 49,9%. Na parte superior, o movimento foi
contrário: os empregos na faixa dos 5 a 10 SM caíram de 16,2% para 9,2%, e a faixa
acima dos 10 SM recuou de 10,7% para 4,9%9.
No tocante à renda, os dados da PNAD indicam que houve uma relativa melhora
da distribuição de rendimentos no período10. Os 10% mais ricos, em 2004, se
apropriavam de 45,5% da renda total, enquanto os 40% mais pobres detinham 10,6%. Em
2013, essas proporções passaram a ser, respectivamente, de 41,4% e 13,2%. Mudança
pequena, se comparada ao “ponto de partida” brutalmente desigual, como observou A.
Singer, mas nem por isso desprezível.
Ainda que fraco e muito aquém de um viés socialdemocrata tradicional ou um
reformismo forte, esse processo acarretou, entre outras questões, dois movimentos
significativos para a compreensão mais geral que temos até aqui discutido. Para as
camadas organizadas da classe trabalhadora, representou um poder de barganha
desconhecido por uma geração e que permitiu, após negociações e greves, reajustes
quase sempre acima da inflação. Para a massa empobrecida e precariamente inserida nas
relações de trabalho, houve um processo de maior integração ao mercado (de consumo
ou de venda da força de trabalho).
O outro pilar desse ciclo foi construído por políticas sociais que tiveram um papel
importante na redução dos níveis de pobreza extrema e por projetos na área de educação
responsáveis por ampliar o acesso, especialmente, ao ensino superior. Nesse sentido, é
crucial apreender os efeitos causados pelos principais programas do governo, como Bolsa
Família, programas de cotas sociais e étnico-raciais e aumento de vagas, no ensino
9
Ver dados do DIEESE em Oliveira (2015).
Quando as pesquisas se baseiam em outras fontes, como informações tributárias, percebe-se que mesmo
a limitada queda da desigualdade não se aplica quando a referência é a renda do 0,1%, 1% e 5% mais ricos
da população. Ver Medeiros et al. (2014). O fato é que há dificuldades de se auferir as rendas do topo
apenas com pesquisas de amostras domiciliares.
10
11
superior público e, além das vagas, bolsas e crédito estudantil no sistema privado
(REUNI, PROUNI e FIES).
O Bolsa Família provoca um efeito aparentemente contraditório: se, por um lado,
vai de encontro à ideologia burguesa geral de valorização do trabalho ao desvincular
renda de emprego, por outro, ajusta-se e fortalece uma concepção liberal de resolução de
problemas sociais na medida em que a sociedade é vista como uma divisão de ricos e
pobres. Os pobres, nesse esquema, não são aqueles produzidos por um tipo específico de
desenvolvimento do capitalismo, mas apenas os que não têm “ainda” a chance de serem
ricos – não é à toa que seus principais formuladores foram economistas liberais que
conseguiram reduzir propostas originais de renda básica universal a políticas focalizadas
compensatórias com certas condicionalidades.
Já os programas de cotas atingem frontalmente a ideologia meritocrática que,
embora subproduto da ideologia burguesa de valorização do trabalho em geral, é uma
ideologia orgânica a trabalhadores de classe média – aprofundaremos esse ponto a seguir.
Por fim, a expansão do ensino superior, ao elevar (com qualidade ou não) o número de
diplomados, altera as relações de oferta e demanda por força de trabalho qualificada e
potencialmente acirra a disputa por determinados postos de trabalho.
4. Hipóteses sobre a revolta de classe média
Como, afinal, esse conjunto de mudanças afeta a reprodução social da alta classe
média? As respostas que oferecemos a seguir tentam incorporar o “econômico” sem cair
no economicismo.
a) o resultado da soma de efeitos causados pela queda do desemprego, aumento
da renda média do trabalho com queda da desigualdade e pelo Bolsa Família é um
impacto considerável tanto em termos econômicos quanto simbólicos, o que significa
dizer que há uma série de variáveis que pressiona os gastos que socialmente caracterizam
uma vida de classe média. E, nesse aspecto, os serviços pessoais tradicionalmente
prestados pelo subproletariado, especialmente o emprego doméstico, ganham destaque.
Alguns dados da cidade de São Paulo são bastante expressivos nesse sentido.
Serviços “essenciais” para a alta classe média – como babá, caseiro, faxineira, lavadeira,
passadeira, motorista particular, auxiliar de enfermagem, emprega doméstica e outros de
12
serviços eventuais de construção e reparo, como pintores e marceneiros – tiveram seus
preços elevados em patamares muito superiores aos da inflação no período de 2008 a
2013.
Nesse período, a inflação (pelo índice IPC-Fipe) foi de 31%. A variação dos
preços de todos os serviços indicados ficou acima dos 50%: babá (102%), caseiro em São
Paulo (89%), caseiro no interior/litoral (80%), faxineira/lavadeira/passadeira (66%),
motorista particular (61%), auxiliar de enfermagem (54%), empregada doméstica (51%),
diferentes tipos de pintura (cerca de 110%), colocação de revestimento em parede (80%)
e colocação de piso (59%) (Datafolha, 201311).
As elevações dos preços não são simples fatos “de mercado”. Estão diretamente
ligadas aos efeitos de medidas tomadas pelo governo, como a política de valorização do
salário mínimo e programas de qualificação técnica para a população de baixa renda que,
em conjunto, diminuem relativamente a oferta de força de trabalho nessas ocupações.
E, importante notar, não se trata apenas de possível elevação dos gastos, mas
também de nova conformação política da relação entre “patrões” e “empregados” com o
advento da lei que regulamenta a profissão de trabalhador(a) doméstico.
Segundo J. Souza (2009), seria esta uma cotidiana e silenciosa “luta de classes”, a
saber, entre a classe média e a “ralé”12, que não tem alternativa de sobrevivência exceto
se vender como corpo e energia muscular bruta para famílias de classe média que, “por
comparação com suas similares europeias (...), têm o privilégio de poder poupar o tempo
das repetitivas e cansativas tarefas domésticas, que pode ser reinvestido em trabalho
produtivo e reconhecido fora de casa” (p.24). Para a classe média, dificilmente o mérito
de seus filhos será relacionado, pela proporção inversa, aos “desvios” e demérito dos
filhos dessa outra classe.
b) Ainda que o Brasil atual apresente uma desigualdade brutal – e, em parte,
justamente por isso – o ritmo de queda na década de 2000 foi muito forte. Segundo o
estudo de S. Soares (2010), a taxa de redução do coeficiente de Gini no Brasil até 2006
foi comparável ou até superior àquela relativa aos processos de implementação de
Estados de Bem-estar Social na Europa. Contudo, décadas de manutenção desse ritmo
11
“Valores dos serviços superam inflação”. Pesquisa Datafolha de 7/02/2013.
É o termo que Souza utiliza para se referir à situação de classe mais precária e ignorada da sociedade,
próximo ao que temos indicado aqui por subproletariado.
12
13
(apoiadas em políticas de desenvolvimento) seriam necessárias para estabelecer um
padrão social distinto.
Mesmo assim, esse sentimento não passou incólume nas camadas superiores da
classe média. Não é que eles tenham percebido, via cálculo prospectivo, que, se mantida
a redução anual de 0,7 no Gini para as próximas duas décadas, como observa Soares
(2010, p. 376), não seria possível continuar a viver num país com tantas contradições,
que continue a ver “um exército de empregados particulares passando as roupas,
encerando os pisos e lavando os banheiros da classe média”. Mas, possivelmente, tiveram
que aprender a lidar de outro modo com indivíduos que, se antes já frequentavam os
mesmos espaço, estavam ali apenas na condição de subordinados.
Talvez quem mais bem capturou esse espírito tenha sido um célebre conservadorliberal do momento, que, por estilo, não perde a chance de se autoelogiar por não temer
expor seus sentimentos ante o “politicamente correto”. Assim se expressou L. F. Pondé:
Estou a 25 mil pés de altitude, voando num desses turbohélices. Adoro o som
da hélice. Lá embaixo, paisagens distantes. Gosto de voar. Comecei a voar com um
ano de idade, quando meu pai, então um jovem capitão médico da aeronáutica, me
levava para voar em aviões da FAB. Entretanto, detesto aeroportos e classes sociais
recém-chegadas a aeroportos, com sua alegria de praças de alimentação. Viajar, hoje
em dia, é quase sempre como ser obrigado a frequentar um churrasco na laje (Folha
de São Paulo, 15/11/2010).
Essa avaliação não seria explicitada (pelo menos dessa forma) pelo sujeito médio
de classe média, porém, é interessante notar como a crítica ao “consumismo” do pobre
que percebeu aumento de renda assume tons moralistas – justamente por uma classe que
se entrega ao consumo de maneira conspícua.
c) se focarmos, agora, o impacto dos programas que elevaram o contingente de
alunos
no
ensino
superior,
percebe-se
um
dos
efeitos
perversos
do
neodesenvolvimentismo: ao não promover mudanças estruturais no mercado de trabalho
– o aumento dos empregos foi em setores de baixa intensidade tecnológica e com pouca
exigência de qualificação – ocorre o que os liberais chamam de “diminuição do retorno
de investimento em capital humano”. As credenciais de antes não garantem os postos de
trabalho do presente. Eleva-se uma competição entre diplomados que, por um lado,
contribui para diminuição da desigualdade de renda, mas, por outro, faz com que
14
gradualmente os esforço dispendidos em educação se transformem em frustações,
dificuldades de reprodução da condição social dos pais ou, simplesmente, dívidas13.
Para que as frustações e dívidas não abatam a alta classe média, novos
“investimentos” em educação precisam ser feitos em estágios superiores14. Há um
adiamento da entrada de jovens no mercado de trabalho, o que causa, cada vez mais, um
atraso da saída dos filhos das casas dos pais – efeito bastante presente e discutido
também na Europa. Trata-se, portanto, do efeito inverso ao provocado pelo
desenvolvimentismo antigo, principalmente no período militar, em que a transformação
da base produtiva aumentou a oferta de postos de trabalho qualificados no seio de uma
população semiletrada. O resultado foi uma enorme disparidade de ganhos em favor dos
diplomados.
Chegamos, nesse ponto, a uma questão fundamental. O desenvolvimento do
capitalismo no Brasil efetivou-se deixando à margem boa parte da população, que pouca
concorrência exerce com a classe trabalhadora. Esse contingente é força de trabalho
barata para prestação de serviços pessoais, principalmente para classe média e burguesia.
Assim, se o desenvolvimentismo tradicional construiu o melhor dos mundos para a classe
média– gerou maiores oportunidades de emprego e renda preservando as condições
precárias de parte da população que sustenta um modo de vida particular –, o
neodesenvolvimentismo, se radicalizado, poderia ser o pior dos mundos: a existência de
uma inclusão social e pressão dos de baixo, ainda que relativa, sem proporcional
melhoria de sua inserção no mercado de trabalho. É possível que, subjacente às
manifestações de ódio político seletivo que crescem nesses setores, exista um sentimento
de frustação e indignação quanto à dificuldade de reproduzir as mesmas condições um
determinado modo de vida – ainda mais em um programa que concede bolsas e prioriza
grupos da população em nome de uma forma de justiça social15.
13
Ver, para tanto, a análise de A. Cardoso (2010) sobre o fim do padrão desenvolvimentista de inserção
ocupacional, que se expressa por uma deterioração das chances, por parte dos mais qualificados, em aceder
aos mesmos postos de trabalho.
14
Dados recentes da PNAD revelam que, de fato, os assalariados com mais anos de estudo tiveram um
crescimento significativamente menor da renda em comparação aos demais. Contudo, há indícios de novas
(e fortes) desigualdades sendo constituídas um “passo adiante”, isto é, em relação aos que possuem pósgraduação.
15
Nas palavras de outro célebre liberal-conservador, ainda em 2007, ao comentar a crítica feita ao
movimento “Cansei” por ser de classe média: “Um grito de protesto da classe média é ilegítimo? É ela hoje
o verdadeiro ‘negro’ do Brasil: paga impostos abusivos; não utiliza um miserável serviço do Estado, sendo
obrigado a arcar com os custos de saúde, educação e segurança; tem perdido progressivamente a
15
d) É preciso discutir, portanto, os efeitos dos programas sociais e de cotas. E, com
isso, atingimos a questão central do argumento que temos desenvolvido: a reação
conservadora da classe média se efetiva em meio a mudanças materiais e objetivas
importantes, mas o teor e intensidade da revolta explicam-se em maior medida em razão
de uma afronta a ideologias que fornecem a justificação de mundo da classe média.
A introdução de cotas sociais e étnico-raciais tem um efeito duplo: retiram
espaços em universidades públicas e em outros concursos que antes constituíam reservas
de mercado da classe média. E, ao fazer isso, questionam a validade prática e normativa
de mecanismos meritocráticos. Essa perturbação na “normalidade meritocrática” de
processos sociais constitui um elemento decisivo para a consolidação de um sentimento
de revolta na classe média16.
Essa forma de apreender o problema remete a um cuidado que Saes (1985)
apresentou ao discutir a adesão da classe média aos governos da ditadura militar. A tese
comum procurava mostrar que a classe média havia sido seduzida (como se “comprada”)
pelo crescimento do consumo possibilitado à época. Saes recusa o viés economicista da
explicação e sugere que o apoio aos militares por parte especialmente do corpo técnicocientífico da classe média era fruto de um sentimento que via no modelo ditatorial militar
uma força social competente e disciplinadora da força de trabalho. O autoritarismo dos
militares era, portanto, “a imagem engrandecida de suas práticas cotidianas” nas grandes
empresas que então se desenvolviam no Brasil.
Nosso argumento procura enfatizar, de modo semelhante, que, hoje, essa
“imagem” que vem de cima é justamente o inverso da lógica que sustenta a justificação
de mundo de classe média. Não se trata, portanto, apenas de reações advindas de
(possíveis) perdas financeiras, mas de um medo mais geral de um processo que atinge o
mecanismo que justifica, até entre os dominados, seu lugar superior na sociedade.
Parafraseando a sociologia francesa que discute o déclassement, diríamos que a classe
capacidade de consumo e poupança; é o esteio das políticas ditas sociais do governo, e, por que não
lembrar?, ninguém a protege (...)” (Reinaldo Azevedo, Veja, 8/08/2007). Azevedo e R. Sherazade foram os
“comentaristas políticos” citados como os mais confiáveis pelo público da manifestação de 12 de abril de
2015 (Ortellado e Solano, 2015).
16
Nas manifestações de 12 de abril e 16 de agosto, a oposição às cotas, por elas gerarem “privilégios” e
“racismos”, foi declarada por 70% dos entrevistados (Ortellado e Solano, 2015 e Ortellado et al. 2015).
Voltaremos a esse ponto no item final.
16
média não reage por propriamente passar por um processo de desclassificação social, mas
pelo medo que tem dele quando certos pilares sociais e ideológicos são tocados.
Para que esse argumento seja desenvolvido, é preciso discutir conceitualmente
diferentes ideologias que tornam a reprodução do capitalismo possível e justificável nas
diferentes classes sociais.
5. Ideologia de valorização do trabalho em geral e ideologia meritocrática
Na linguagem cotidiana, as ideologias de valorização do trabalho em geral e a
ideologia meritocrática são frequentemente mobilizadas como equivalentes. Mesmo no
campo teórico, costuma-se operar com a ideia de que existe uma noção geral de
“desempenho” em sociedades capitalistas ou na ordem social competitiva a partir da qual
os indivíduos informam suas ações e baseiam suas avaliações. O efeito dessa ideologia
em geral seria o de construir uma base valorativa que justifica e naturaliza a posição
social desigual de cada um em razão de uma desigualdade anterior, qual seja, a diferença
de esforços e competências que cada indivíduo “investiu” em sua formação, o que
“explicaria”, para dominantes e dominados, as razões que colocam uns, e não outros, em
posições superiores da sociedade em termos de acesso ao capital econômico e cultural.
Contudo, é preciso diferenciar analiticamente essas duas ideologias. E, a partir
disso, destacar e apreender como cada uma delas se torna mais ou menos funcional às
diferentes classes e frações: burguesia, classe média e classes populares (classe
trabalhadora/proletariado e subproletariado/ralé).
O ponto de partida é considerar que a ideologia burguesa fundamental que
informa todas as demais é aquela que valoriza – isto é, fornece um sentido e uma ética a
– qualquer tipo de atividade laborativa, ou seja, a ideologia de valorização do trabalho
duro em geral. Como perceberam Marx e Weber, cada um a seu modo, a burguesia no
capitalismo apresenta uma característica fundamental que a diferencia de outras classes
proprietárias e dominantes existentes: ela se vê e se justifica perante os outros como
produtiva e trabalhadora17. Diferentemente, portanto, da negação ou apatia em relação ao
trabalho da época pré-moderna, a exaltação do trabalho duro, disciplinado e ascético se
populariza entre todos os indivíduos submetidos à logica de produção capitalista,
17
Discuto a “base objetiva” da noção de produtividade da classe burguesa em outro trabalho: Cavalcante,
2012.
17
proprietários ou não proprietários. Se essa escolha era uma “opção” para os primeiros
empreendedores do capitalismo racional, como observa Weber, para os demais, com o
sistema reproduzindo-se continuadamente, tal predisposição torna-se um imperativo – no
qual o poder das máquinas agrega um componente técnico impessoal de coerção.
Ao se constituir como moral dominante em relação à atividade produtiva, a
sociedade burguesa constrói a sua “sociedade do trabalho”. Em seu interior, apenas são
vistos como legítimos e reconhecidos os indivíduos que aceitam, consciente e
inconscientemente, a disciplina necessária ao trabalho. Importante frisar: necessária a
qualquer tipo de trabalho. A própria noção de cidadania passa a ser determinada por essa
sujeição, de modo que riqueza ou a pobreza acabam por ser avaliadas mediante a
capacidade de cada indivíduo em galgar as posições “abertas” pelo mercado.
Cada classe, porém, absorve de uma maneira específica a ideologia de
valorização do trabalho em geral. E, no que interessa à nossa discussão, a classe média
apresenta uma diferença importante em relação às demais, pois uma ideologia derivada,
mas com relativa autonomia, é mobilizada pelos grupos sociais que a compõem, a saber,
a ideologia meritocrática.
Como apontamos, a ideia de mérito já está presente na ideologia de valorização
do trabalho em geral e, consequentemente, nas visões que se orientam pela ascensão
social via trabalho duro e disciplinado. Contudo, em sociedades capitalistas “modernas”
com aparelhos escolares universais, essa ideia tende a se descolar de noções gerais a
qualquer esforço de trabalho e passa a ser organicamente utilizada para justificar a
desigualdade entre trabalhadores socialmente vistos como “intelectuais” e “manuais”18.
Análise com orientações distintas permitem uma visualização mais profunda da questão.
Em seus estudos sobre a “ralé” e a nova classe trabalhadora brasileira, chamada
de “batalhadores”, J. Souza (2009, 2010) apresenta e diferencia dois tipos de “éticas” por
meio das quais indivíduos de classes sociais distintas são condicionados ao trabalho. Nas
famílias da nova classe trabalhadora, prevalece a transmissão direta de uma “ética do
18
Lembramos, contudo, a ressalva de Poulantzas (1977, p. 95): “Esta distinção (entre trabalho ‘manual’ e
‘intelectual’), com efeito, e Gramsci notou-o bem, não vale como tal. A não ser que se perca em argúcias
fisiológico-biológicas duvidosas, está claro que todo trabalho manual comporta componentes ‘intelectuais’
e vice-versa”. De forma que, “em contraposição, a distinção ‘trabalho manual’/‘trabalho intelectual’ é uma
categoria surgida da vivência operária, que leva a distinções reais, mas que não são distinções físicobiológicas: leva a distinções políticas e ideológicas no seio das empresas”.
18
trabalho” duro e disciplinado, diferente da classe média em que essa ética do trabalho é
aprendida como prolongamento natural da “ética do estudo”:
Os batalhadores, na sua esmagadora maioria, não possuem o privilégio de
terem vivido toda uma etapa importante da vida dividida entre brincadeira e estudo.
A necessidade do trabalho se impõe desde cedo, paralelamente ao estudo, o qual
deixa de ser percebido como atividade principal e única responsabilidade dos mais
jovens como na “verdadeira” e privilegiada classe média. Esse fator é fundamental
porque o aguilhão da necessidade de sobrevivência se impõe como fulcro da vida de
toda essa classe de indivíduos. Como consequência, toda a vida posterior e todas as
escolhas – a maior parte delas, na verdade, escolhas “pré-escolhidas” pela situação e
pelo contexto – passam a receber a marca dessa necessidade primária e fundamental
(Souza, 2010, p. 51).
Os batalhadores encontram-se a meio caminho entre a “prisão da necessidade
cotidiana”, que acomete a parte excluída da população (“ralé”), e o “privilégio de ‘poder
esperar e se preparar para o futuro’”, que caracteriza a classe média. Dessa maneira, sem
ter as condições de se dedicar exclusivamente aos estudos – ou, poderíamos também
dizer, sem perspectivas concretas que identifiquem nos estudos uma saída plausível para
o futuro – esses trabalhadores apresentam tendencialmente menor apropriação de capital
cultural e escolar. Por conseguinte, os “privilégios da escolha” são tolhidos: “o trabalho e
o aprendizado das virtudes do trabalho vai ser, para muitos (...), a verdadeira ‘escola da
vida’”(p. 52)19.
Não é sem razão que uma atitude comum de grupos proletários em determinados
contextos com pessoas “estudadas” é a brincadeira ou ironia de que estes pouco sabem da
realidade da vida, do que não se ensina nos livros.
No interior do debate marxista, foi D. Saes quem, já na década de 1970, procurou
analiticamente expor a especificidade da ideologia meritocrática e sua relação com a
classe média. O autor enfatizou o caráter direto da subordinação da classe média ao
capital, o que a distancia de situações e ideologias da pequena burguesia tradicional, esta
apenas subordinada indireta e externamente ao capital (Saes, 1977). O fenômeno da
classe média seria, de fato, para Saes, da ordem da estratificação social, como queriam as
19
Souza (2010) levanta um argumento importante a partir de suas pesquisas: os indivíduos
provenientes da ralé ou dos batalhadores que percebem um aumento de renda em razão de pequenos
negócios que têm êxito não deixam para trás os laços comunitários, ainda que o volume de suas empresas
se torne maior. Isso se evidenciaria com a recusa, por parte desses indivíduos, em mudar de bairro e na
defesa que fazem de políticas compensatórias, como o Bolsa Família, que visam a erradicação da miséria.
Sua origem de classe preservariam os laços comunitários e solidários com os trabalhadores pobres.
19
análises orientadas pela sociologia weberiana. Contudo, é uma questão de estratificação
social profundamente determinada pela divisão capitalista do trabalho. Nas palavras do
autor:
a estratificação social sendo aqui entendida como o aspecto da ideologia
dominante que reduz a divisão capitalista de trabalho a uma hierarquia do
trabalho, correspondente, para empregar a expressão de Bourdieu e Passeron, a
uma “escala de dons e méritos”. Mais claramente: a ideologia dominante apaga da
consciência de certos trabalhadores improdutivos – aqueles menos diretamente
“ligados ao mundo da fábrica” e às tarefas mais claramente manuais – a contradição
entre capital e trabalho assalariado, substituindo-a aí pelo sentimento da
superioridade do trabalho não-manual com relação ao trabalho manual. Nessa
perspectiva, a “classe média” se define como o conjunto dos efeitos políticos reais
produzidos sobre certos setores do trabalho assalariado pela ideologia dominante,
que apresenta a hierarquia do trabalho como a expressão de uma pirâmide natural
de dons e méritos (Saes, 1977, p. 99, grifos do autor).
Subjacente ao argumento de Saes está o fato de que não há nenhuma garantia
objetiva, dada pela divisão do trabalho, de que trabalhadores intelectuais serão mais bem
valorizados econômica e socialmente do que trabalhadores manuais. É preciso uma luta
social e ideológica para que essa distinção seja validada pelo conjunto das classes. Seria
esta, portanto, a dimensão que a ideologia meritocrática alude, mas também oculta: a luta
pela não igualização social e econômica de todos os trabalhadores. Seria este o cerne da
ideologia meritocrátrica:
este grupo precisa provar ao conjunto da sociedade, e mais especificamente à
classe capitalista, que os detentores dos postos de trabalho não-manual, dentro da
divisão capitalista do trabalho, ocupam esses lugares por terem provado – na vida
escolar, em provas, em concursos, etc. – que são os mais competentes para tanto
(Saes, 2005, p. 102).
Como observa Boito Jr. (2004), ao enaltecer especificamente o produto particular
do seu esforço, o trabalho intelectual, a ideologia meritocrática não se confunde com a
valorização do trabalho em geral, tal como faz a burguesia, e nem com a versão proletária
que, politicamente, valoriza o trabalho como forma de se opor aos proprietários e ao
parasitismo em geral.
Ocorre que, por razões opostas, a ideologia meritocrática, definida nesses termos,
não é diretamente funcional nem à burguesia, nem às classes populares. A burguesia, em
razão da propriedade jurídica dos meios de produção, no limite prescinde do aparelho
20
escolar para preservar sua reprodução enquanto classe. Não é difícil encontrar casos e
mais casos de desapego à vida acadêmica por parte dos filhos dessa classe, cuja
transmissão se efetiva desde cedo nos trabalhos das empresas dos pais. Já para as classes
populares – novamente, entendidas aqui como a junção de trabalhadores proletários e do
subproletariado – também há um distanciamento, mas por razões “negativas”: a falta de
propriedade e de poupança e condições sociais capazes de manter os jovens
exclusivamente nos estudos fazem com que a relação com essa ideologia seja distante e
não correspondente à dinâmica de suas vidas.
É evidente que, em toda essa discussão, fazemos referência à lógica que orienta
ações e organizações coletivas de classe, ou seja, formas de conduta que são mais ou
menos condizentes com a condição de classes não de um ou outro indivíduo, mas de
todos aqueles sujeitos a uma determinada condição. No plano das representações
individuais, a distância ou proximidade da ideologia meritocrática – ou da ideologia de
valorização do trabalho em geral – se explica por um conjunto variados de fatores, não
apenas o pertencimento de classe. Qualquer indivíduo pode expressar, a qualquer
momento, a ideologia meritocrática. Mas, quando se analisam ações coletivas, como a
partir das posições de entidades profissionais ou de manifestações de rua com perfil
social homogêneo, torna-se possível colocar a questão das especificidades e relações de
cada ideologia com as classes que delas se utilizam organicamente.
6. Considerações finais: as ideologias das manifestações de 2015
Para concluir, reunimos aqui algumas considerações preliminares que permitem
construir hipóteses de trabalho a partir de pesquisas de opinião realizadas mais
amplamente em São Paulo, nas manifestações de rua ocorridas em 2015 contra o governo
Dilma e contra “a corrupção”.
Como foi indicado, o perfil de classe média – com grande destaque para a alta
classe média – denota-se pelos critérios de renda, cor/etnia, escolaridade e ocupação
profissional. Isso não significa que setores populares estivessem completamente ausentes
nas manifestações – desconsiderando, é claro, o subproletariado que encontrou nesses
eventos chances de ganho com a venda de bebidas, artefatos, bandeiras, etc. Mas, pelos
dados e pela experiência in loco, elas podem ser considerados uma minoria.
21
As avaliações mais gerais do que foi retratado pelas pesquisas tornam-se
limitadas pela ausência de quadros de referência mais abrangentes com o restante da
população. Apenas alguns temas apresentam pesquisas em que dados podem ser
avaliados comparativamente.
Um aspecto importante refere-se a questões que envolvem liberdades individuais,
como o casamento ou a união homoafetiva e a descriminalização do uso de certas drogas.
A princípio, uma tendência mais “progressista” é delineada pelo público das
manifestações se a comparação for feita com pesquisas com toda população. Esse
movimento, contudo, segue o perfil de grupos mais escolarizados em geral. Uma
discussão mais pormenorizada nesse sentido – incluindo também a defesa da redução da
maioridade penal – nos levaria a problematizações que estão além dos objetivos e limites
deste texto.
Porém, há elementos diretamente relacionados ao que discutimos até aqui. Na
pesquisa coordenada por Ortellado et al. (2015), uma correlação muito emblemática foi
estabelecida pelas perguntas formuladas para manifestantes do evento de 16 de agosto de
2015. Em uma delas, os entrevistados foram interrogados se concordam os discordam da
seguinte sentença: “É justo quem estudou e se esforçou mais na vida tenha alguns
privilégios”. Em outra, cinco perguntas após a anterior, os mesmos entrevistados eram
questionados se concordam ou discordam da frase: “Negros não devem usar a cor da pele
para conseguirem privilégios como cotas raciais”.
Instados a reagir, portanto, a duas formas de “privilégio”, o resultado, ainda que
de certa forma esperado, não deixa de ser revelador do conteúdo das ideologias que
foram mencionadas: 70,4% concordaram (total ou parcialmente) com a primeira frase e
79,5 concordaram (total ou parcialmente) com a segunda: “privilégios” são aceitos,
apenas se forem para aqueles que se esforçaram e estudaram.
É certo que inúmeras questões de ordem metodológica e conceitual poderiam ser
levantadas. Será que a noção de “privilégio” opera da mesma forma nas duas sentenças?
De nossa parte, chamamos a atenção para o fato de que, na primeira pergunta, as noções
de mérito pelo estudo e ascensão pelo trabalho duro parecem se confundir na mesma
avaliação – sinal, por certo, do modo conjunto pelo qual comumente se avaliam essas
questões.
22
Em outra pesquisa, coordenada por M. Cortês e P. Trópia (2015), sobre os
manifestantes do protesto de 12 de abril, o mesmo perfil socioeconômico foi identificado.
As pesquisadoras solicitaram aos entrevistados que enumerassem três ações dos governos
do PT que mais os afetavam negativamente, numa lista de quinze medidas de maior
alcance. Os três mais indicados foram: Bolsa Família (44,5%), Auxílio reclusão a
famílias de detentos (43,7%) e os programas de cotas raciais nas universidades públicas
(35,6%).
Todos esses dados carecem ainda de melhor interpretação e controle, além dos
quadros de referência mais gerais. Contudo, são importantes por expressarem a forte
adesão da classe média às ideologias de valorização do trabalho em geral e da
meritocracia. Se elas aparecem indistintas nas reações políticas, é necessário, do ponto de
vista analítico, distingui-las. Trata-se de uma tarefa importante na medida em que cada
uma responde a problemas específicos e afetam de maneira desigual a reprodução social
da classe média brasileira.
Uma hipótese que, aqui, apenas mencionamos em linhas gerais seria a seguinte:
como a crítica ao pobre “vagabundo” que supostamente recebe sem trabalhar parece ter
maior aderência social em outras classes e na população em geral, a classe média se sente
à vontade para impulsionar a recusa a esses programas sociais porque isso também
ampliaria as chances de fomentar posições críticas a temas mais diretamente
comprometedores da ideologia meritocrática, como é o caso das políticas de cotas sociais
e étnicos/raciais, isto é, serviria para fortalecer seus interesses últimos de resistência à
igualização social. Essa postura explicar-se-ia pela dificuldade da pauta geral da classe
média ser incorporada em nível partidário e eleitoral na atual conjuntura política
brasileira. Questões que, evidentemente, exigem outros esforços de explicação e análise.
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