2 TEMAS DE ESCATOLOGIA 3 4 Luiz Antonio BELINI TEMAS DE ESCATOLOGIA Humanitas Vivens Ltda Uma Instituição a serviço da Vida! Sarandi (PR) 2009 5 Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda EDITOR: Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS CONSELHO EDITORIAL: Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA Prof. Gunnar Gabriel ZABALA MELGAR REVISÃO GERAL: André Luis Sena dos SANTOS Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS Paulo Cezar FERREIRA CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN: Agnaldo Jorge MARTINS Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP) B431t Belini, Luiz Antonio Temas de escatologia [recurso eletrônico] / Luiz Antonio Belini. -- Sarandi, Pr : Humanitas Vivens, 2009. ISBN: 978-85-61837-12-9 Modo de acesso: <www.humanitasvivens.com.br>. 1. Escatologia. 2. Teologia. 3. História. 4. Filosofia. CDD 21.ed. 236.9 Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331 O conteúdo da obra, bem como os argumentos expostos, é de responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o ponto de vista da Editora, seus representantes e editores. Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita do Autor e da Editora Humanitas Vivens Ltda. Praça Ipiranga, 255 B, CEP: 87111-005, Sarandi - PR www.humanitasvivens.com.br – [email protected] Fone: (44) 3042-2233 6 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO .............................................................09 1. INTRODUÇÃO À ESCATOLOGIA .............................11 2. DO FUTURO UTÓPICO À ESPERANÇA ESCATOLÓGICA ...............................................................19 21 2.1 Tempo humano e futuro do homem ................................. 2.2 Crítica à utopia desde a escatologia .................................23 2.3 Crítica à escatologia desde a utopia .................................26 2.4 Esperança e escatologia ...................................................32 3. A MORTE ........................................................................35 35 3.1 Morte e escatologia na Bíblia ........................................... 3.2 Reflexões teológicas .......................................................40 3.3 Teologia da morte ............................................................43 4. MORTE E SENTIDO DA VIDA ...................................47 4.1 Questão complementar: morte-imortalidade-ressurreição ............................................50 4.1.1 Ressurreição versus imortalidade? ...............................50 4.1.2 Imortalidade versus ressurreição? ................................52 4.1.3 Alma separada em um estado intermediário? ..............53 5. RESSURREIÇÃO ...........................................................55 65 6. RESSURREIÇÃO DA CARNE ...................................... 7. O CATÓLICO PODE ACREDITAR 73 EM REENCARNAÇÃO? .................................................... 7 8. PARUSIA ..........................................................................81 8.1 Vem Senhor! .................................................................... 81 8.2 (...) de novo há de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos” .......................................... 86 9. FIM DO MUNDO: A PLENITUDE DA CRIAÇÃO ..........................................91 10. E O MUNDO NÃO ACABOU! .....................................97 11. SERÁ O CÉU UM LUGAR EM MEIO AS NUVENS? ....................................................99 105 12. O INFERNO É REAL, MAS NÃO FÍSICO ................. 13. CÉU E INFERNO ..........................................................111 115 14. O PURGATÓRIO ........................................................... 121 15. PODEMOS REZAR PELOS MORTOS? .................... 16. A ORAÇÃO PELOS MORTOS E 127 O SENTIDO DA VIDA ........................................................ 131 BIBLIOGRAFIA .................................................................. 8 APRESENTAÇÃO Este texto foi elaborado ao longo de alguns anos, conforme as necessidades do autor e publicados em um jornal diocesano. São artigos independentes, o que justifica a repetição constante de determinadas idéias. O autor preferiu deixar em seu estado original. O Autor é devedor, sobretudo, a um teólogo espanhol falecido em 1996, Juan Luis Ruiz de la Pena. Seus escritos influenciaram suas (do Autor) formação teológica, eis o motivo das constantes referências. 9 10 1. INTRODUÇÃO À ESCATOLOGIA A situação de hoje frente à temática escatológica é um tanto ambígua. Desde meados do século XX temos assistido a uma preocupação crescente com esta problemática e, conseqüentemente, com uma publicação expressiva. Por outro lado, não parece que estejamos muito melhores, desde um ponto de vista geral, preparados, existencialmente, para enfrentar suas questões básicas. Já o editorial da revista Concilium, em 1969, fazia tal constatação: “Muitos sacerdotes encontram hoje dificuldade de falar em assuntos escatológicos. Todavia, os documentos oficiais do magistério, particularmente os textos do Vaticano II, acentuam a dimensão escatológica da nossa salvação. Donde, portanto, este hiato entre o ensino oficial e a prática ordinária? A razão está provavelmente em que, na sua pregação de todos os dias, os sacerdotes consideram como tarefa indispensável atenderem o mais possível à maneira como o comum dos fiéis experimenta a sua existência concreta. Pareceria bastante difícil falar de assuntos escatológicos de maneira que a gente de hoje, vivendo numa sociedade desmitizada, os pudesse inserir na sua vida e experiência diárias. É como se tivéssemos perdido a terminologia, as ‘categorias’, que nos tornariam 11 aptos a falar também da dimensão ‘supramundana’ da nossa salvação”1. E continua essa constatação alertando agora para o problema pastoral aqui envolvido: “Porque a escatologia se tem conservado há muito tempo como uma espécie de região subdesenvolvida no pensamento eclesiástico, a nossa geração precisa de uma intensa investigação inspirada pela fé, particularmente neste campo. Mas não devem ficar limitadas aos teólogos profissionais esta investigação e esta nova reflexão. Também os pastores, que estão em contacto direto com o povo, devem dar o seu contributo. Se o não fizerem, verificarão – como acontece já com um número muito razoável – haver 1 SCHILLEBEECKX, E.; WILLEMS, B., A Escatologia: perspectiva cheia de esperança da Vida Cristã (Editorial). Concilium 1969/1, p.5. Embora tenham passado algumas décadas, parece não ter mudado muito, especialmente quanto à fé popular, como constata BETIATO, M. A., Escatologia cristã: entre ameaças e a esperança. Petrópolis: Vozes, 2006, p.21: “Existe uma larga diferença entre o discurso escatológico na teologia e a religiosidade popular. (...) O fato é que o nosso povo, à sua maneira, vive e respira escatologia no cotidiano da vida. A reflexão escatológica tem feito a diferença no inconsciente coletivo da nossa gente. Porém, a teologia popular é uma teologia produzida a partir do senso comum e na maioria das vezes viciada, distorcida, carregada de mitos, que passou de pai para filho nos moldes do discurso teológico da Idade Média”. 12 um setor importante da história da salvação acerca do qual dificilmente poderão falar”2. É, portanto, urgente e necessário uma reflexão escatológica. Mas deve levar em conta toda circunstância do mundo moderno. É para o homem de hoje que queremos falar. E significativamente. Comecemos com um esclarecimento sobre o próprio termo e conteúdo da escatologia. Escatologia indica, literalmente, doutrina das coisas últimas (eschaton). Em outras palavras: doutrina daquilo que se espera aconteça aos homens e ao cosmo em seu término, cronológico e ontológico, os levando à sua situação final e definitiva, elaborando teologicamente a esperança cristã. Embora esta temática seja antiqüíssima, o termo apareceu apenas no século XVII, se tornando corrente apenas após Schleiermacher3. Havia o costume de se indicar este tratado teológico de De Novissimis, ou seja, Das coisas ultimas, e sua sistematização aconteceu na história da SCHILLEBEECKX, E.; WILLEMS, B., A Escatologia: perspectiva cheia de esperança da Vida Cristã (Editorial). Concilium 1969/1, p.6. 3 SCHÜTZ, C., Fundamentação geral da escatologia. Em: FEINER, J.; LOEHRER, M. (Editores), Mysterium Salutis, V/3: A Escatologia. Petrópolis: Vozes, 1985, p.12: “O próprio conceito ‘escatologia’ é de origem relativamente recente. Aparece pela primeira vez no Systema locorum theologicorum de A. Calov (+1686); o volume XII da obra aborda sob o título Eschatologia sacra a morte, a ressurreição, o juízo e a definitiva consumação do mundo. Somente com Schleiermacher, todavia, é que ele assume um sentido bem preciso e vai entrar no uso mais geral”. 2 13 teologia bem tarde4. A origem do termo nos é apresentado por Schütz: “O texto bíblico a que geralmente se recorre para ilustrar o conceito ‘escatologia’ é Eclo 7,36 (40 da Vulgata): ‘Em todas as tuas ações lembra-te do teu fim e jamais pecarás!’. Vulgata: ‘In omnibus operibus tuis memorare novíssima tua et in aeternum non peccabis’. Aqui o ‘novissima tua’ traduz o grego ‘ta éschata’. Antigamentese tentava legitimar a necessidade e a utilidade de um especial tratado teológico, o De Novissimis ou De Extremis, etc., recorrendo justamente a este passo”5. O conhecimento que as pessoas possuem a este respeito é, geralmente, aquilo que aprenderam na catequese, que poderá assim ser sintetizado: “Na morte, a alma se separa do corpo e entra numa nova dimensão, chamada ETERNIDADE. Nesta nova 4 GRESHAKE, G., Escatologia. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, pp.620. Em relação à sua situação tardia basta atentar para a afirmação, no contexto da discussão sobre o juízo de HÜNERMANN, P., Juízo. 3. Novo Testamento e teologia da história. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, pp.965: “A teologia da alta Idade Média até o século XII, inclusive, não apresenta ainda uma discussão sistemática do juízo divino no quadro dos eschata. Esta só é tornada possível no s.XIII, com a elaboração de uma antropologia dotada de um aparato conceitual estruturado”. 5 SCHÜTZ, C., Fundamentação geral da escatologia. Em: FEINER, J.; LOEHRER, M. (Editores), Mysterium Salutis, V/3: A Escatologia. Petrópolis: Vozes, 1985, p.11. 14 dimensão, a alma da pessoa está sendo JULGADA por Deus no assim chamado JUÍZO PARTICULAR. Conforme o resultado deste Juízo, a alma ou entra diretamente no inferno, ou, depois de ter passado talvez certo tempo no PURGATÓRIO, entra no céu. Ela aguarda, numa situação de felicidade ou de tormento, a chegada do JUÍZO FINAL. Quando o momento deste segundo juízo chegar, acontecerá também a RESSURREIÇÃO DO CORPO e, de novo conforme o resultado dos dois julgamentos, a alma humana, agora reunida com o seu corpo, passará para toda a eternidade numa situação de felicidade total, chamada CÉU, ou de tormento inimaginável, chamado INFERNO”6 Aqui estão elencados os principais temas que uma Escatologia deve contemplar. Ela organiza sistematicamente nossa fé na salvação consumada, portanto, se articula entre as categorias de salvação e esperança. Estes temas, embora possam vir com terminologia diversa e numa ordem que expressa uma intencionalidade de fundo são: ressurreição, juízo particular e universal, retribuição, ou seja, céu e inferno, purgatório. No conjunto teológico, a escatologia está articulada com as demais disciplinas: por referir-se a salvação do homem e do cosmo, apresenta uma concepção antropológica e cosmológica na qual se alicerça todo discurso. Esta concepção cosmológica possui uma intencionalidade especifica: o cosmo é criatura de Deus e, BLANK, R., Escatologia da Pessoa. Vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus, 2000, p.75. 6 15 portanto, está veiculado no tratado da Criação. A salvação oferecida ao homem e ao cosmo é a própria comunhão com o Criador, comunhão experienciada7 como Graça. Mas esta salvação nos é oferecida de modo específico no mistério da encarnação-morte-ressurreição de Cristo. A cristologia é a espinha dorsal da escatologia cristã. Devemos, no entanto, sermos conscientes da possibilidade de uma escatologia não cristã e nem mesmo teológica. Para não decepcionarmos ninguém, seria inclusive salutar, no mundo hodierno, intitularmos nossa escatologia de escatologia cristã católica, visto que nesta questão, existem divergências serias inclusive dentro do cristianismo. Mas a salvação é uma ação trinitária, inclui, portanto, um tratado de Deus Pai e uma pneumatologia. A salvação não é apenas para o futuro, acontece germinalmente no hoje da nossa história e é celebrada na liturgia e antecipada nos sacramentos, sobretudo na eucaristia. É evidente que uma escatologia cristã deva fundamentar-se na Palavra de Deus e em seu desdobramento dogmático, levando em conta a contribuição dada pelos santos padres. A mariologia representa um capítulo importante da escatologia: qualquer escatologia cristã católica deverá dar conta em sua elaboração de verdades pela Igreja professadas, como o dogma da Assunção. A elaboração teológica em cada período da história, levada a termo pelos grandes teólogos, mostram a vitalidade que a atualização e inculturação da fé atingiu, da qual não podemos ficar 7 Prefiro a palavra “experienciada” a experimentada. 16 alheios. Com esse pequeno excurso, incompleto por sinal, quis apenas mostrar que a escatologia se inscreve no edifício teológico e está imbricada com toda a temática teológica. 17 18 2. DO FUTURO UTÓPICO À ESPERANÇA ESCATOLÓGICA O discurso escatológico é inerente ao discurso teológico. Isto porque o ser humano, em sua peculiaridade, é estruturalmente aberto para o futuro8; e o ser cristão 8 SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.40: “Parece-me, por conseguinte, que a indagação do futuro é um elemento ‘existencial’ na nossa condição humana. Embora inserido no tempo e nunca fora dele, o homem não é prisioneiro do tempo no seu crescimento histórico: transcende o tempo a partir de dentro. Por isso não pode ele nunca sentir-se satisfeito. Dentro desta condição temporal, o homem tem, por conseguinte, liberdade de alcançar uma certa abertura em face do tempo”. Um pouco antes, o autor havia chamado a atenção para uma preocupação crescente com o futuro do homem em sua implicância terrena: “o conceito do ‘futuro terreno do homem’ começa a exercer uma espécie de polaridade no pensamento e conhecimento do homem, ao passo que no passado – pelo menos no Ocidente – a dimensão futura da história era quase unicamente considerada como uma questão de finis ultimus, o fim último do homem, depois e para além desta vida terrena. Desde a redescoberta da verdadeira historicidade do homem como criatura do ‘tempo’ que, com base no seu passado, fixa o seu curso de vida no presente com vista a um futuro, desde então a escatologia é considerada como uma questão que se encontra encarnada na existência do homem”. 19 comporta um modo específico de vivenciar o futuro: a esperança9. Por causa desta propensão para o futuro, o homem sempre construiu teorias futurológicas. A teologia, contudo, continua trabalhando com sua própria concepção de futuro. “A recente quebra das esperanças seculares demanda uma reflexão sobre suas causas e coloca a pergunta de como possa afetar também à esperança escatológica cristã”10. 9 GEORGE, A., O juízo de Deus. Esboço de interpretação de um tema escatológico. Em: Concilium 1969/1, p.9: “Do Antigo ao Novo Testamento, o Povo de Deus vive incessantemente voltado para o futuro. É mesmo uma das características que o distingue dos povos que o rodeiam. Enquanto esses povos vivem num mundo fechado, submetido ao perpetuo recomeço dos ciclos naturistas, Israel vive na tensão da salvação que vem; e vê a sua garantia nas intervenções de Deus ao longo do seu passado: a história santa”. SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.42: “Mas, segundo a Bíblia, a base da expectativa escatológica do futuro é a certeza, na fé, de uma relação real e atual com Deus. Esta relação real com o Deus da aliança, que torna o passado de novo presente, não se deve sacrificar ao primado do futuro. (...) A base da nossa esperança é, por conseguinte, a nossa fé em Javé, que tanto no passado como no futuro se revela como o Deus vivo da comunidade”. 10 RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.4. SCHILLEBEECKX, E.; WILLEMS, B., A Escatologia: perspectiva cheia de esperança da Vida Cristã (Editorial). Concilium 1969/1, p.5: “Por conseguinte, uma das questões básicas que assomam repetidas vezes ao longo dos artigos deste número de Concilium é a de saber se o aspecto escatológico da nossa salvação, isto é, o aspecto que diz respeito ao 20 2.1 Tempo humano e futuro do homem. Uma das caracterizações mais comuns hoje é do homem como um ser-no-tempo. Ou seja, o modo peculiar do existir humano está revestido da temporalidade, distinguindo-se do mundo infra-humano. O homem ultrapassa a diacronia inexorável do tempo físico, o vivenciando em suas três dimensões: passado, presente e futuro, outorgando a este último a primazia. “O instante genesíaco do homem não se ubíqua nem no passado nem no presente, mas no futuro”11. O futuro somente será futuro se apresentar dois elementos dialeticamente referidos e harmonicamente conjugados: continuidade e novidade. “Todo futuro autêntico terá de conter uma certa dose de continuidade”12 que garanta a identidade, portanto, “não há projeto válido de futuro sem recordação ativa do passado; não há utopia concreta sem história nem esperança sem memória”13. Mas para ser futuro deverá também comportar um elemento de futuro último, consiste puramente em algo de ‘para além deste mundo’ ou se também tem sentido para este mundo atual. As discussões indagadoras com os marxistas acerca da expectativa humana do futuro tornaram a nossa presente geração de cristãos mais sensível à censura de que a nossa pregação do além leva os fiéis a descurarem as suas responsabilidades terrenas na esperança, por vezes pietista, de um futuro feliz que existe algures, verticalmente acima da presente condição”. 11 Ibidem , p.5. 12 Ibidem. 13 Ibidem, p.6. 21 novidade. Ou seja, globalmente considerando, magnitude imprevisível, não evolutiva. uma “O elemento novidade, em suma, entranha o postulado do salto qualitativo, da ruptura do processo, e por isso mesmo, delineia a questão da heterogeneidade de seus fatores constituintes. Assim, pois, a validade dos modelos de futuro elaborados pelas diversas ideologias dependerá de sua aptidão para integrar harmonicamente os momentos continuidade-novidade”14. A partir destas indicações é possível avaliar as futurologias que polarizaram o século passado, em especial duas, de caráter secular: a fé no progresso (modelo tecnocrático de futuro, expresso emblematicamente pelo Círculo de Viena, no qual o futuro aparece rigorosamente deduzível e controlável desde o presente, possibilitando apenas uma mudança quantitativa) e a utopia neomarxista (marcada principalmente pelo pensamento de Ernest Bloch e seu otimismo histórico, que teve um impacto efêmero). Em todo caso, é preciso se perguntar: em nossos dias o espírito utópico parece ter morrido, por quê? Como isto afeta o discurso escatológico de cunho cristão? Entre os muitos motivos para a morte da utopia, Ruiz de la Peña se concentra em dois: o cientificismo com seu pensamento forte (que conferindo exclusividade ao Ibidem, p. 6-7: “o que jaz sob este binômio é a dialética presente-futuro; um futuro sem novidade é mera extrapolação do presente, e um presente sem continuidade é a negação pura e simples do futuro”. 14 22 empiricamente verificável, leva a uma eliminação do sujeito histórico e da própria história: antropologia estrutural, Foucault e Althusser); e a pós-modernidade com seu pensamento débil (Vattimo: decreta também o fim da história como processo unitário, progressivo e teleológico; o resultado é o nihilismo). O que se percebe é que o espírito utópico morreu pela debilidade dos próprios pilares nos quais se assentava (“sonho americano”, “comunismo soviético”, cientificismo): prometeram uma felicidade e esperança imanente que ruiu diante de suas evidentes contradições. Isto, por outro lado, não afeta à escatologia cristã, já que esta se fundamenta em outras bases: “a morte do pensamento utópico não leva consigo a do pensamento escatológico; este goza de uma certa imunidade frente ao vírus que corroeu aquele”15. 2.2 Crítica à utopia desde a escatologia. A primeira crítica procede do modo de conceber a temporalidade com a qual opera o pensamento utópico: é uma temporalidade indefinida ou limitada? Quando se apóia em uma concepção indefinida, concebendo como um processus in infinitum, se atribui à realidade um inacabamento crônico, com um incurável déficit ontológico. Em geral, se adota aqui uma concepção cíclica do tempo. Para fugir destas dificuldades, já que “o postulado 15 Ibidem, p.16. 23 teleológico, consubstancial à utopia, exige um fim, no duplo sentido de finalidade e término”16, esta concepção é insustentável, tanto que o próprio Bloch se vê obrigado a tomar da Bíblia a idéia de término, mas que não aceitando Deus, também se torna problemática. “Assim pois, (...) uma interpretação secular da história como processo imanente e auto-propulsor, tem que optar entre dois esquemas de temporalidade (limitada/ilimitada). E os dois entranham dificuldades para uma leitura não teísta da realidade”17. A segunda questão posta desde a escatologia para a utopia refere-se ao presente. Já que na utopia o que se espera refere-se a algo que se situa exclusivamente no futuro. O presente é irremediável. Esta polarização sobre o ainda-não é inevitável quando a salvação se constrói na história. “A escatologia considera, em troca, que não há que esperar ao final da história para alcançar a salvação: tudo já é kairós, espaço de graça. Mas pode pensar assim porque crê que a salvação é dom divino – não manufatura humana – e que, como dom, pré-existe à história, coexiste com ela e a ela ad-vem penetrando-a em todos e cada um de seus momentos. Por ser dom, cabe desfrutar de suas genuínas antecipações e esperar sua ulterior configuração. Cabe, em suma, articular a esperança salvífica sobre 16 17 Ibidem, p.18. Ibidem. 24 a dupla fase do já e o ainda-não, e celebrar regularmente seu real advento; a salvação está vindo constantemente à história graças à sua existência não depender da história, senão da infinita generosidade de Deus”18. Qual a garantia que a utopia pode dar que deverá terminar no summum bonum e não no pessimum do nihil? Todas as experiências históricas de utopias que temos terminaram de forma frustrante. Qual sua razoabilidade? (Como pode Bloch querer que o seu seja um discurso metareligioso e o religioso seja mitológico?). Na utopia que exclui Deus, o salvador e o salvado se identificam. E ainda que se atingisse este estágio de summum bonum, o que garantiria a permanência nele? Alguém sempre poderia contradize-lo, o destruindo (as utopias ignoram o fenômeno da culpa). As utopias apelam para a justiça na consecução de seu projeto, mas esta é cega. Somente o amor poderá, tornando os homens diferentes, instaurar tal situação (e Deus é o Amor). Por último, a utopia fala de um futuro gerador de autêntica novidade, apelando para a idéia religiosa da transcendência, ainda que escamoteada: “transcendência intramundana” ou “transcender sem transcendência”. “Em resumo: uma interpretação otimista da história, como a proposta pelas utopias seculares, não pode assegurar nem o desembocar do processo histórico em um término, nem seu caráter positivo, nem sua permanência e definitividade. Tal interpretação 18 Ibidem, p.19. 25 trabalha, em fim, com elementos análogos aos que emprega a escatologia: aposta de fé, esperança no futuro, abertura à transcendência... Deveria, portanto, dar-se conta que, se a acusa de irracionalidade ou utopismo acrítico, se compromete a si mesma em identica acusação. “A escatologia sim está em grau de justificar a idéia de um fim da história que seja real e definitivamente plenificador, e de dar com sobras, razão da dialética presente-futuro. E isto porque dispõe da idéia forte de transcendência, sem a que não há salvação para o presente, e a que se aplica ao futuro, por mais que se maquie de novidade absoluta, não é senão a extrapolação evolutiva do genuinamente alojado no passado”19. 2.3 Crítica à escatologia desde a utopia. Se a escatologia é superior à utopia, por que foi substituída por esta em amplos setores da cultura ocidental? A explicação poderá estar na própria escatologia: “exígua e depauperada não estava em situação de sustentar a esperança de uma sociedade adulta e de uma cultura legitimamente orgulhosa de sua racionalidade ilustrada. Era, pois, inevitável que o vazio escatológico fosse preenchido por um discurso 19 Ibidem, p.22. 26 utópico que, além de propor seu próprio projeto de futuro, denunciava as carências do que ofereciam os crentes. Se é verdade que tais carências foram sanadas (ao menos em boa parte) pela teologia pósconciliar, não o é menos que, até a mesma vigília do Vaticano II, as denúncias a que deram lugar seguiam sendo pertinentes”20. A primeira e merecida crítica do pensamento secular à escatologia, referia-se ao seu caráter mítico. Neste contexto, a escatologia aspira a ser uma “geografia” ou “física” das realidades últimas, entendidas em termos locais ou espaciais (discussões sobre a topografia e ubiquação de alguns lugares: céu, inferno, purgatório, limbo). A atenção dispensada às suas propriedades, tais como o fogo do inferno e purgatório (se era real ou metafórico; como poderia um agente químico agir sobre um espiritual, etc.). A utopia não teve dificuldade em desautorizar um discurso tão desarraigado da experiência cotidiana. Traços de mitificação já estavam presentes na patrística. Os escolásticos tentaram superá-los com uma forte dose de intelectualismo e abstracionismo (organizando-se em torno de uma categoria cardeal: visão beatífica, sancionada pela constituição de Bento XII, Benedictus Deus). “A partir deste primado da visão beatífica, compreendida mais como conhecimento intelectual que como integração pessoal do homem no mistério de Deus, a escatologia vai oferecer um novo flanco às críticas da utopia, que detecta nela uma tríplice 20 Ibidem, p.22-23. 27 limitação: individualismo, desmundanização”21. espiritualismo, Individualismo: a pergunta pelo fim da história é deslocada pela pergunta sobre o fim individual. O centro passa a ser o problema da morte e, conseqüentemente, a constituição de uma “escatologia individual” ao qual se acrescentava um tratado de “escatologia coletiva” como mero apêndice. Neste esquema, um juízo particular prevalecia sobre o universal. A vida eterna compreendida como “visão beatífica” acabava eclipsando a dimensão comunitária e eclesial do reino de Deus. “Do espiritualismo subjacente a certas interpretações ou construções teológicas da fé à representação utilizada para plasmar ao eu individual: a alma separada. O que no NT era o objetivo último da esperança cristã, a ressurreição dos mortos, passa a ser simples ‘incremento acidental da bemaventurança’”22. O individualismo e o espiritualismo acabam por instalar na teologia uma visão excessivamente desmundanizada do eschaton. A doutrina da nova criação se mantém, mas sem ser explorada e, o que é pior, dentro do marco da apocalíptica: “este mundo está destinado a perecer na conflagração cósmica, para dar passagem ao outro mundo, com o risco de entende-lo como uma creatio ex nihilo”23. 21 22 23 Ibidem, p.24. Ibidem, p.24-25. Ibidem, p.25. 28 “Foi justamente a incardinação da escatologia nestas três coordenadas (individualismo, espiritualismo, desmundanização) o que conferiu credibilidade à crítica da utopia, que, no extremo oposto, confeccionava uma interpretação do futuro humano em chave social (não individual), encarnada (não espiritualizada) e mundana (no mais nobre sentido do termo)”24. Crítica que teve efeitos devastadores. Embora se poderia argumentar que estas objeções tenham sido corrigidas, permanece uma: “o futuro absoluto do que fala hoje a teologia tem algo a ver com o presente e o futuro histórico? Não será certo que, como acontecia ao marxismo, também a ortodoxia cristã exige o sacrifício do presente ao Moloch do porvir?”25. Teoricamente a fé cristã resolve este problema equacionando o já e o ainda-não26 e rejeitando duas opções Ibidem. Ibidem. 26 SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.45: “Neste sentido, não pode haver verdadeira escatologia do futuro sem uma certa escatologia do presente. Conquanto o futuro tenha em si um elemento de ‘ainda não’, não podemos ignorar o elemento ‘já’. De fato, apenas o ‘já’ nos permite dizer algo de significativo acerca do futuro ainda desconhecido. É, por isso, típico o fato de o Antigo Testamento nunca descrever o futuro desconhecido em termos totalmente novos e inesperados. A esperança procura sempre alguma ‘restauração’ ideal, cujos traços particulares se supõe serem conhecidos do passado. Todavia, o quadro total é sempre novo. A 24 25 29 hermenêuticas opostas: a escatologia conseqüente (o reino de Deus é pura futuridade) e a escatologia realizada (o reino está já realizado na vida, morte e ressurreição de Jesus). Teoricamente, porque com freqüência o ainda-não tem absorvido o já (o discurso privilegia o transcendente com descrédito para com a imanência: “tem falado muito do céu – ou, o que é pior, do inferno – e pouco da terra”27). Agora se fala muito da nova criação, mas não se tem clareza da relação com este mundo: “em vez da justaposição, o que se tem que tentar é a iluminação da recíproca interdependência e complementariedade de ambos futuros, o intraexpectativa não consiste apenas em procurar uma simples reedição do passado”. 27 RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.26. POLITI, S., História e esperança: a escatologia cristã. São Paulo: Paulinas, 1995, p.93, analisando como isto se concretiza, por exemplo, em nossas orações cotidianas, conclui quanto à Salve Rainha: “Encontra-se aqui uma forma de esperança que separa este mundo do outro, dando a este uma qualificação negativa. A esperança consiste em sair deste mundo, no qual apenas se encontra sofrimento, salvo quando o ser humano se lembra da pátria e recebe o consolo da misericórdia da Virgem, sua advogada,. A esperança volta-se aqui totalmente para a salvação eterna no céu. Há, assim, um primeiro modelo: esperança de o homem ser liberto deste mundo – lugar de sofrimentos – e de chegar à pátria celestial”. 30 histórico e o meta-histórico, e a elaboração de pautas teórico-práticas de mediação entre eles”28. 28 Ibidem, p.26: ao que tem contribuído a teologia política de Metz e a teologia latino-americana da libertação. SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.47, neste sentido comenta: “A Bíblia não nos dá um relato histórico de antecipação deste eschaton. Nada sabemos acerca das últimas coisas transcendentes – o juízo, o regresso de Cristo, o céu, o inferno, o purgatório – exceto na medida em que já estão indicados no decurso dos acontecimentos históricos que exprimem a relação real e atual entre o Deus da aliança e a humanidade, particularmente em Cristo, ‘último Adão’, isto é, ‘o homem do eschaton’ (1Cor 15,45; cf. Ap 1,18 e 22,13). Portanto, a escatologia não nos permite retirar-nos da história terrena, porque é apenas na profundidade desta história que a eternidade pode começar a tomar forma. O eschaton pós-terrestre não é senão o problema de saber como receberá o seu cumprimento final o que já está a crescer na história deste mundo”. E continua na p.48: “A escatologia não nos permite já tirar proveito do além, mas é uma tarefa que se deve realizar responsavelmente por todos os fiéis, dentro do quadro da nossa história terrestre. (...) Esta salvação deve ser já realizada agora na nossa história, neste mundo, e assim essa própria história se transforma numa profecia do eschaton final e transcendente. É a promessa de um ‘mundo novo’, um poderoso símbolo que nos põe a pensar e, acima de tudo, a agir. E a credibilidade desta promessa está na renovação atual, desde já, da nossa história humana. Através da sua ‘justificação’, os próprios fiéis se tornam responsáveis pela ‘novidade’ deste mundo novo...”. Continua na p.49: “‘o mundo novo’, irrevogavelmente prometido e, de fato, já a caminho em Jesus Cristo, não é, portanto, uma realidade pré-fabricada; antes vai tomando forma como um mundo histórico dentro do processo histórico da ação na fé neste mundo”. 31 2.4 Esperança e escatologia. A função da escatologia é “elaborar e articular sistematicamente os conteúdos da esperança cristã”29. Sendo assim, é necessário partirmos de uma compreensão desta esperança, que é a forma específica de viver o processo histórico como cristãos: “o Deus da criação é o Deus da salvação”30, convicção que perpassa toda a revelação bíblica31. Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a idéia de esperança é expressa com uma variação semântica e riqueza de matizes que nos permite afirmar que: a esperança tem que ver-se com a salvação; indica alguns conteúdos que não são fabricação humana mas dom de Deus; é esperança contra esperança (Rm 4,18), ou seja, aguarda com confiança o impossível; a esperança cristã se constitui tendo como marco a temporalidade humana (abertura ao futuro) e sua socialidade (abertura ao tu). Ibidem, p.27. Ibidem. 31 SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.45: “É interessante notar aqui que o pensamento bíblico acerca do princípio (‘protologia’) se acha entretecido com o pensamento escatológico. Esta ‘protologia’, como é formulada no esboço final da história da criação, no Gênesis apenas se pode entender com base na experiência atual da fidelidade de Deus, com suas conseqüentes expectativas escatológicas. A história da criação é, portanto, uma afirmação escatológica também”. 29 30 32 Por escatologia podemos “entender aquele setor da teologia ao qual incumbe refletir sobre o futuro da promessa aguardada pela esperança cristã. Seu lugar teológico se ubíqua na intersecção da antropologia, a doutrina da criação e a cristologia”32. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.30. 32 33 34 3. A MORTE33 Este é um tema propriamente antropológico. Aqui o interesse está no aspecto especificamente escatológico da problemática da morte: o fato de que o fim da história começa para cada ser humano em sua morte. 3.1 Morte e escatologia na Bíblia. A tradição bíblica consagra muito mais atenção à escatologia comunitária que à individual. Não obstante, encontramos uma série de textos que desenvolvem a relação morte-escatologia que podem ser divididos em dois grupos, que são, por isso mesmo, complementares: Aqueles que ensinam que com a morte termina o tempo de prova, de decisão: com a morte termina este tempo de decidir-se por ou contra Deus (Sb 2-5; Mt 13,37s; 25,34ss; Jo 3,17ss; 5,29; 12,47ss; particularmente: 2Cor 5,10 e Hb 9,27). Esta apresentação do problema da morte humana é uma simples síntese de RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000. Penso ser importante publica-la aqui, pois não existe em lingua portuguesa uma tradução de sua obra. A fidelidade ao seu texto justifica as constantes citações literais. 33 35 Aqueles que ensinam que com a morte começa a retribuição definitiva: esta idéia é desconhecida do AT; ela pressupõe a revelação neo-testamentária: Lc 23,42s (Ap 1,6). “A salvação definitiva não é uma realidade meramente escatológica, que atinja o homem somente numa existência pós-morte, senão que surte efeitos imediatos para quem optou pela comunhão com Cristo. Isto é bem expresso pelo termo paradeisos que designa o estado teminal da vida com Deus, é o símbolo da bem-aventurança. O cumprimento da esperança messiânica não se demora até o eschaton: é realidade que já se faz presente desde o hoje do sacrifício de Cristo. Outros textos: 2Cor 5,8; Flp 1,21-23. “Em resumo: o Novo Testamento introduz no pensamento bíblico um fato novo, que acelerará o processo de evolução das idéias sobre o destino pósmortal do homem. O fato novo é Cristo. Sua ressurreição consagrará de forma imprescritível o caráter escatológico da esperança ultraterrena, anunciada já pelo Antigo Testamento. Mas, por sua vez (e esta é a novidade com respeito às crenças vétero-testamentárias), Cristo proporciona a certeza de que a salvação não é um bem exclusivamente futuro, estritamente escatológico, no sentido temporal do término. O anunciado pelo Novo Testamento já não é algo meramente por vir em um futuro indeterminado”34. Em conclusão, Lc 23,43; Flp 1,23 e quem sabe mesmo 1Ts 4,14.16 e 2Cor 5,6-8 ensinam que, a partir de RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.253. 34 36 Cristo, os que morrem nele gozam desde já dessa perfeita comunhão com ele que é a vida eterna. História da doutrina. Existe consenso em interpretar a morte o término do período de decisão pró ou contra Deus. “Pelo contrário, quanto ao fato de que o estado definitivo de vida ou morte eternas siga à morte, sem esperar ao final da história, tem sido amplamente controvertido até bem entrado o século XIV”35. A época patrística. Inácio de Antioquia, Clemente Romano e Policarpo afirmam o estado definitivo imediatamente após a morte (ao menos para os mártires). Mas já entre os séculos II e IV, “a tendência predominante sustenta que a morte inaugura uma discriminação transitória, com uma retribuição ainda não perfeita, até o momento do juízo final”36. O primeiro a defender esta tese foi Justino (mas parece “que a crença em uma retribuição definitiva imediata se associava aos proverbiais pré-juízos dualistas contra a ressurreição”37. “Como se vê, o ensinamento dos Padres sobre nosso tema se debate entre o reconhecimento de uma retribuição imediata e a necessidade de reconhecer também a dilatação da retribuição plena. As indecisões em ponto de tão grande importância se explicam quando se tem em conta que a doutrina da retribuição imediata suscita duas sérias dificuldades: uma de caráter antropológico e outra de índole 35 36 37 Ibidem, p.254. Ibidem, p.255. Ibidem. 37 teológica. O problema antropológico reside na dificuldade de conceber como sujeito apto da retribuição não ao homem inteiro, mas a uma de suas partes (a alma). A dificuldade teológica está no peso que exerce sobre os Padres a importância dos acontecimentos finais – juízo, ressurreição – tão insistentemente inculcada pela Escritura, assim como a índole comunitária da vida eterna; uma bemaventurança plena antes do eschaton não reduzirá severamente a transcendência deste? A estes dois fatores (a preocupação anti-dualista e a vontade de fidelidade à Bíblia) teria que acrescentar que os lugares escriturísticos onde se ensina uma retribuição definitiva antes da ressurreição são – como podemos comprovar – muito escassos; é compreensível que se tenha necessitado tempo para atender a seu conteúdo. Provavelmente o estímulo mais eficaz para um correto delineamento do problema tenha sido não tanto a reflexão especulativa quanto a práxis litúrgica, ou seja, o culto que se tributou primeiro aos mártires e logo ao resto dos santos, e que não teria sentido se não se lhes atribuísse já uma glorificação definitiva. Por isto, os problemas de fundo (a compatibilidade de uma escatologia individual com a escatologia coletiva) seguiram sem resolver-se; a tese de uma dilatação da plenitude da retribuição apresentava indubitável vantagem em ordem a sua solução. Isto explica seu reflorescimento na época medieval, que, por sua vez, dará lugar a uma declaração definitiva do magistério sobre o tema”38. 38 Ibidem, p.258. 38 Intervenção magisterial. O papa João XXII, em uma homilia no dia de todos os santos de 1331 retomou a questão, que já havia sido abandonada: “...seguindo a São Bernardo, o pontífice distingue entre o seio de Abraão e o altar celeste. No seio de Abraão esperam os justos do Antigo Testamento e esperaremos todos, consolados pela visão da humanidade de Cristo, até a entrada no ‘gozo do Senhor’, que acontecerá com a ressurreição e o juízo. João XXII funda esta doutrina não só na autoridade de São Bernardo, mas em argumentos da Escritura (unicamente o juízo outorga a posse do reino de Deus) e de razão (para a perfeita bem-aventurança a alma precisa do corpo)”39. Esta homilia causou escândalo e o papa voltou por outras duas vezes a este assunto: em dezembro de 1331 e janeiro de 1332. Nesta última, o papa “estende a doutrina de uma dilatação da retribuição também para o caso dos réprobos, que habitam até o juízo no ar tenebroso, junto aos demônios”40. Embora sempre deixando claro que sua posição era sustentada como doutor privado. O próprio papa constituiu uma comissão para examinar a questão. Na véspera de sua morte revogou sua posição, escrevendo uma retratação [DS 990s] que foi publicada pelo seu sucessor, Benedito XII (que tinha sido o teólogo de confiança do papa e que já empreendera um 39 40 Ibidem, p.259. Ibidem. 39 estudo sistemático sobre o caso: De statu animarum sanctorum ante generale judicium, no qual negava a dilatação da visão beatífica, como queria João XXII). Elevado a papa, Benedito XII “emitiu a constituição Benedictus Deus (DS 1000-1002), na qual ensina que tanto o estado de vida eterna, como o de morte eterna começa ‘imediatamente (mox) depois da morte’. Sendo que por vida eterna compreende a visão intuitiva do ser divino. Esta postura será confirmada pelo Concílio de Florença (DS 1305) e também pelo Vaticano II (LG 49: os justos já purificados “gozam da glória contemplando claramente a Deus mesmo, uno e trino, tal qual é”). 3.2 Reflexões teológicas. As dimensões da morte. O século XX vivenciou o drama da morte e refletiu sobre ele como em nenhum outro período. O fato antropológico mais indubitável é o da finitude – porque a morte o denuncia. A pergunta pelo significado da morte implica a pergunta pelo significado da vida, e vice-versa. Com a pergunta pelo significado da morte, aparecem muitas outras. Algumas questões expressivas: 40 a) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sentido da vida”41. O homem é um ser para a morte: do ponto de vista biológico (Engels) e existencial-ontológico (Heidegger). Sua vida terá um sentido na medida em que o tenha sua morte. Uma morte sem sentido compromete a própria existência. b) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o significado da história”42. Não é mais possível escamotear o significado da morte pessoal, como se fosse algo particular e secundário, um “sonho pequeno-burguês”. A morte do indivíduo compromete toda a história. c) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre os imperativos éticos de justiça, liberdade, dignidade”43. É possível pregar estes valores de sujeitos contingentes que desaparecerão por completo com a morte? Teria sentido o martírio por uma destas causas? d) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre a dialética presente-futuro”44. Vivemos uma situação presente sonhando com um futuro melhor; trabalhamos e sofremos por isso. Haverá uma relação entre este futuro e nós? Ou nossa geração será apenas um “andaime” para a geração escatológica? 41 42 43 44 Ibidem, p.261. Ibidem, p.262. Ibidem. Ibidem. 41 e) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o sujeito da esperança”45. f) “Em fim, a pergunta sobre a morte é uma variante da pergunta sobre a pessoa, sobre a densidade, irrepetibilidade e validade absoluta de quem a sofre”46. “Resumindo, a magnitude que se reconheça à morte está na razão direta da que se reconheça à seu sujeito paciente. A minimalização da morte é o índice mais revelador da minimalização do indivíduo mortal. E o inverso, uma ideologia que trivialize ao indivíduo, trivializará a morte. Pelo contrário, se a morte é captada como problema é porque o homem é apreendido como um valor que transcende o puro fato bruto”47. 45 46 47 Ibidem, p.263. Ibidem. Ibidem, p.264. 42 3.3 Teologia da morte. Diante das perguntas levantadas pela morte a resposta cristã é muito clara: a morte adquire um sentido desde a fé na ressurreição e da vida eterna. O que se pretende fazer neste momento é uma leitura cristã da morte e do morrer. “O homem da humanidade pecadora está submetido, segundo a Escritura, a uma morte que, na ordem se sua realização concreta, é pena do pecado, diante do qual não é livre mas escravo, e que se apresenta a ele como algo incompreensível, contra o que não pode senão rebelar-se. Mas houve um homem que morreu a morte humana de outro modo: como ato de suprema liberdade (‘ninguém tira minha vida; sou eu quem a da’: Jo 10,18) e de liberalidade (‘ninguém tem maior amor que o que dá a vida por seus amigos”: Jo 15,13). Cristo morreu a morte com a angústia que lhe é própria no que tem de necessidade imposta, mas por sua vez, na fé no Deus vivo, na esperança da ressurreição e na caridade para com os irmãos. Desta forma, a morte mudou de sentido. Não é já, necessariamente, visibilidade da culpa, pena do pecado; pode ser ato livre de fé, esperança e amor. Esta inversão de sentido se patentiza sobretudo no fato de que Cristo morreu para ressuscitar. O serpara-a-morte que, segundo a análise filosófica, é o homem, volta-se a sua vocação original (segundo a ordem querida por Deus na criação) de ser-para-a43 vida. Tampouco o cristão morre para ficar morto, mas, igual a Cristo, para ressuscitar. Sua morte é, por conseguinte – em si mesma, e não somente no que está por trás dela – uma morte distinta da morte-pena do pecado. Não é fim, senão transito; não é término, senão páscoa, passagem da forma de existência provisória à forma de existência definitiva”48. Paulo descreve o cristão como quem reproduz em si os mistérios da vida de Cristo. Como para Cristo, “a morte para ele não é pena, mas um morrer com Cristo para ressuscitar com ele”49. A partir desta perspectiva, adquirem um sentido os sacramentos e as virtudes teologais. Só a fé pode iluminar um começo no que aparenta ser o fim, só a esperança permite substituir a angústia pela confiança e só a caridade possibilita entrega total. “Pois bem, ali onde a morte é vivida como trânsito e não como término, com confiança e não com desespero (ainda que poderá ser uma confiança obscura e assediada pela angústia”, ali está presente – saiba-se ou não – a graça. (...) Ali onde a morte é vivida como cumprimento da existência ou como destino sereno e resignadamente aceito, ali acontece a morte cristã, ou seja, a morte que é confissão do Deus vivo. Esta confissão tem lugar: a) no reconhecimento de que a vida tinha um significado (já que, por hipótese, se aceita a morte como o que cumpre a vida); b) na submissão obediente aos próprios limites (na aceitação do próprio ser 48 49 Ibidem, p.265-6. Ibidem, p.266. 44 criatural). (...) O ato de morrer, em suma, é sempre e necessariamente um ato de fé (explícita ou implícita) ou um ato de incredulidade”50. Por fim, a morte conduz a pessoa à sua definitividade, ou seja, a fixa em seu destino. Coloca-se aqui a pergunta: “este caráter definitivo da morte é um momento interior à morte mesma, ou lhe advém exteriormente por vontade de Deus (por um convencional decreto divino)?”51. Todas as nossas análises nos levam a concluir pela primeira afirmação, negando aquilo que ficou conhecido como a “tese da opção final”. “Se a vida tem sentido, e não é o jogo absurdo que pensava Sartre, a morte deve dar ao homem o permanecer durante a eternidade no que quis ser durante o tempo; e isto não em virtude de uma última e isolada decisão (como sustenta a teoria da opção final), que esvaziaria irremediavelmente a vida mesma, mas enquanto suma totalizante das atitudes vividas e acumulação sem futuro do inteiro passado, convertido já, de forma irreversível, em presente eterno. Ao ser a morte anulação de toda possibilidade de devir, é a facticidade consumada, ou, o que é o mesmo, ‘término do estado de prova por sua natureza’, segundo estipulava a fórmula escolástica em uso”52. 50 51 52 Ibidem, p.267-8. Ibidem, p.268. Ibidem, p.270. 45 46 4. MORTE E SENTIDO DA VIDA A morte é um fato humano. Só o homem morre. Os outros seres desaparecem. Isto significa que só o homem tem consciência que deve morrer. Alguns pensadores quiseram ver nesta consciência da própria morte o mais especificamente humano. Tanto que o homem poderia ser definido como “o ser que sabe que vai morrer”. E aqui estaria o que mais o distingue de todos os outros seres vivos. O saber que deve morrer marca profundamente a vida do homem. Todos os seus atos, inclusive os mais insignificantes, tomam um aspecto definitivo e ultimativo. Heidegger – filósofo alemão do século vinte – afirmava que o homem é um “ser para a morte”. A morte não é simplesmente o ponto final de sua existência. Não é algo estranho à sua vida – como queria Sartre, filósofo existencialista francês, também do século vinte – mas o homem começa a morrer quando nasce. A morte está presente e acompanha o homem em toda sua existência. Esta consciência da morte não a adquirimos direta e imediatamente. Não fazemos “experiência” da morte em primeira pessoa. O conhecimento que temos da inexorabilidade da morte humana é sempre um conhecimento da morte do outro. É melhor, portanto, um conhecimento de como a morte do outro me atinge. A partir dela começo a fazer idéia de minha própria morte. E entre as vivências que temos da morte dos outros, algumas são especialmente marcantes: a morte daqueles a quem amamos. Para usar as palavras de Karl Jaspers, a morte da pessoa 47 querida é uma situação-limite que me abre para o sentido profundo da existência. A morte da pessoa querida é vivenciada em primeiro lugar como ausência. Não é mais possível compartilhar de sua presença. Por isso toda ausência, ainda que por um curto tempo, é sinal da ausência irremediável e definitiva. Justamente por este caráter de ausência definitiva, a morte apresenta-se como tragédia. Em qualquer circunstância que a morte ocorrer, será sempre uma perda dolorosa. Por isso, a dor da perda não é um sinal de falta de fé, mas é um sentimento humano. Muito humano. Revela a fragilidade de nossa existência. Todos em algum momento nos questionamos sobre a morte, procurando uma explicação que atenue sua tragicidade. Na verdade, a pergunta pelo porquê da morte é uma pergunta sobre o sentido da existência. Perguntar por que devemos morrer equivale a perguntar porquê vivemos. O caráter transitório da vida faz-nos procurar o mais intensamente viver bem. E viver bem o presente. Muitos preferem resposta que fujam da pergunta. Já pensadores antigos formulavam raciocínios neste caminho. Houve quem dissesse (Epicuro, filósofo grego do século IV antes de Cristo) que não devemos temer a morte porque “enquanto eu existir, não existe ainda a morte, quando a morte existir, eu não existirei mais”. É uma atitude de fuga também o inconformismo sartriano: “é absurdo que tenhamos nascido, é absurdo que tenhamos que morrer”. Mas nem as pretensões da ciência contemporânea – quando quer ultrapassar seus limites epistêmicos e invadir 48 campos que não são propriamente seus – pode dar uma resposta convincente, acaba servindo apenas de fuga. A prometida eterna juventude ou a perpetuidade por outros meios – como a própria clonagem – são na verdade fantasias de rejeição da morte. A pessoa humana é única e irrepetível, por isso, insubstituível e jamais pode ser tornada objeto. E nisto reside seu caráter de absolutidade. Também da tragicidade da morte. Diante da morte, a única resposta realmente consoladora vem da fé. Fé que não esvazia o significado presente da vida, mas o plenifica - e por isso mesmo não é uma fuga, como tantos quiseram interpreta-la. A fé nos leva mais longe, abre nossos olhos para uma realidade que transcende a imediaticidade de nosso cotidiano. Como nos diz a carta aos Hebreus: “A fé é um modo de já possuir aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que não se vêem”. E nossa fé assenta-se na ressurreição de Jesus Cristo e em sua promessa de vida: “Não fique perturbado o coração de vocês. Acreditem em Deus e acreditem também em mim. Existem muitas moradas na casa de meu Pai. Se não fosse assim, eu lhes teria dito, porque vou preparar um lugar para vocês. E quando eu for e lhes tiver preparado um lugar, voltarei e levarei vocês comigo, para que onde eu estiver, estejam vocês também” (Jo 14, 1-3). Jesus é a única resposta plausível diante da morte. “Se com Ele morremos, com ele viveremos” (2Tim 2, 11). 49 4.1 Questão complementar: morte-imortalidaderessurreição. 4.1.1 Ressurreição versus imortalidade? A teologia protestante do século passado foi marcada pelas discussões em torno do binômio: imortalidaderessurreição: a tese da imortalidade (da alma), de origem filosófica, seria incompatível com a da ressurreição. A solução estaria em abandonar a primeira para afirmar a segunda. Conseqüentemente, a morte foi interpretada como morte total (Ganztod) e a ressurreição uma espécie de creatio ex nihilo. Atualmente esta discussão perdeu vigor e a tese da morte total é muito minoritária (entre a última geração de teólogos protestantes que defendem esta tese cabe lembrar E. Jüngel). No extremo oposto está F. Heidler que crê poder demonstrar a afirmação da imortalidade da alma já pelos extratos mais antigos da Bíblia. Entre estes dois extremos poderemos situar o debate. Hoje existe uma convergência entre teólogos protestantes e católicos quanto à necessidade de negar a tese da morte total e afirmar a imortalidade da alma (o que não implica em assumir a categoria alma dentro de uma metafísica helenizante, como a platônica, por exemplo). Duas são as razões para esta convergência: a Bíblia desconhece a tese da morte total; a tese da morte total 50 inviabiliza a tese da ressurreição (que postula intrinsecamente um elemento de continuidade, ou seja, aquilo que foi expresso pela tradição com a idéia de alma)53. A tese da morte total foi possível dentro da teologia luterana porque, para esta, a natureza humana estaria totalmente corrompida. Sendo assim, a salvação realmente seria uma creatio ex nihilo. Mas a forma mentis católica é outra. A partir do pensamento luterano, como explicar a relação entre o mundo presente e o mundo futuro? Entre o progresso e o reino? Ela pressupõe uma total descontinuidade entre história e escatologia. Terreno fértil para “a tese cataclismática de uma aniquilação do mundo presente e sua substituição por um mundo futuro que seja creatio ex nihilo”54. “Em resumo, a idéia cristã da imortalidade da alma quer dizer nem mais nem menos que isto: a ação ressuscitadora de Deus não se exerce sobre o vazio absoluto da criatura, sobre a nulidade total de seu ser, senão que se apóia na alteridade reclamada pela relação dialógica interpessoal Deus-homem. Que, portanto, existe ‘algo’ no homem que, pese a morte, não é amortizado pelo nada e se impõe a atenção de Deus. Que, enfim, a partir desse ‘algo’ (chame-se como se chame), que certamente por si só já não é o homem completo, é como Deus restaura a vida do É bom lembrar uma distinção: quando falamos desde a teologia cristã em “imortalidade da alma”, esta “imortalidade” não é uma propriedade da própria alma – como para o pensamento grego – mas ação divina. 54 RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.274. 53 51 sujeito mortal em sua cabal identidade e integridade, operando assim uma ressurreição e não uma criação desde o nada”55 4.1.2 Imortalidade versus ressurreição? Alguns autores postularam justamente o contrário da resposta anterior: absorvendo o conceito de ressurreição no de imortalidade (Tresmontant e Boismard). Para este último, a expressão ressurreição somente seria compreensível dentro da antropologia semítica, mas não tem validade para hoje e, estritamente falando, seria melhor falar de imortalidade (embora procure se desvincular da concepção platônica, já que a alma não é imortal por si, mas por graça). “A resposta mais pertinente para a tese que se acaba de resenhar nos oferece Gilson: ‘um cristianismo sem imortalidade da alma não teria sido absolutamente inconcebível, e a prova disso está em que foi concebido. Em troca, o que seria absolutamente inconcebível é um cristianismo sem ressurreição do homem’”56. 55 56 Ibidem. Ibidem, p.276. 52 4.1.3 Alma separada em um estado intermediário? Esta foi uma das questões escatológicas mais quentes do século XX. Hoje parece ter perdido a atração. Segundo o Ruiz de la Peña, estamos em um “ponto morto”57. “Para encerrar este já longo item sobre as categorias morte-imortalidade-ressurreição, valham as seguintes considerações conclusivas: a) Uma imortalidade sem ressurreição é um enigma metafísico. Uma imortalidade natural da alma em um hipotético status naturae purae seria, além disso, um enigma teológico. b) Uma ressurreição sem imortalidade – isto é, desde a ‘morte total’ – envolve uma contradição: Deus ‘ressuscita’ (cria ex nihilo) a outro ser humano (numericamente distinto do que morreu, pois se supõe que este morreu totalmente), que não obstante é o mesmo que se dava por totalmente morto. c) Na atual economia histórico-salvífica, a imortalidade da alma tem de ser entendida como Chegado a este ponto, o Ruiz de la Peña simplesmente apresenta – na estrutura atual do livro – em 7 pontos, o escrito da Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões escatológicas. É preciso lembrar de sua morte prematura, ocorrida antes que pudesse terminar esta obra, vitimado pelo câncer em 27/09/96. Para melhores informações, a apresentação do livro feita por Joaquin L. Ortega. 57 53 condição de possibilidade da ressurreição. Neste sentido, deveria falar-se de uma imortalidade que é mais dom sobrenatural, que mera qualidade o condição natural”58. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.278. 58 54 5. RESSURREIÇÃO Escrever sobre a ressurreição e, mais especificamente, sobre a ressurreição em geral, já que poderíamos nos restringir à ressurreição de Cristo, faz lembrar uma constatação de Santo Agostinho que parece perfeitamente atual: “Em nenhum ponto a fé cristã se depara com mais contradição do que em torno da ressurreição da carne” (Psal. 88, 2,5). E Orígenes reclama que: “o mistério da ressurreição, por não ser compreendido devidamente, é motivo de escárnio constante dos descrentes”59. E, no entanto, “a ressurreição dos mortos é na tradição cristã, um dos artigos de fé mais longamente atestados”60. Esta perplexidade nos lembra dos discípulos ao descerem da montanha após a experiência da transfiguração: “Jesus recomendou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram a recomendação e se perguntavam o que queria dizer ‘ressuscitar dos mortos’” (Mc 9, 9-10). Hoje a palavra ressurreição é, além de um termo técnico da teologia cristã, um termo popularizado. Seu significado está mais ou menos fixado. Mas é preciso ORÍGENES, Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, Livro I, 7 (p.46). 60 DARTIGUES, A., Ressurreição dos mortos. B. Teologia histórica. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 1533. 59 55 lembrar que para o ambiente dos apóstolos – e mesmo antes – esta realidade que estavam vivenciando era algo novo e não possuíam uma palavra para designa-la em toda sua riqueza, o que os forçava a expressar-se através de palavras já conhecidas, mas carregadas de um significado novo. Etienne Charpentier nos explica que “ressuscitar: esta única palavra em português traduz, na realidade, duas imagens ‘fazer levantar, surgir’ (anistai, em grego) ou então ‘fazer levantar, despertar’ (égeirein, em grego). Estas duas palavras fazem parte da linguagem corrente para exprimir a passagem da posição deitada para a posição de pé ou do sono ao despertar. Quando aplicadas aos defuntos, apelam para uma mentalidade mítica (comum a muitos povos) na qual a morte é concebida como um sono ou como a descida aos ‘infernos’”61, que era, para estes povos, um lugar indiferenciado para todos os mortos, como o Hades para os gregos ou o Sheol (por exemplo: Jó 3, 19; Ecl 2, 15) para os judeus, não tendo ainda o significado que tem hoje62. CHARPENTIER, E., Cristo ressuscitou! São Paulo: Paulinas, 1983, p.31. 62 Isto nos mostra que nem o povo grego nem o judeu acreditaram em uma morte “total”. Embora tenha sido uma postura teológica comum entre os teólogos protestantes do final do século XIX e início do século XX. J. Ratzinger, Escatologia. Morte e vida eterna. 2ºed. Assis: Cittadella Editrice, 1979, p.119, cita por exemplo Carl Stange (1870-1959) e Adolf Schatter (1852-1938), aos quais aderiu em um primeiro momento também o famoso Paul Althaus. Mas que teria já suas conseqüências a partir da posição de Lutero, como o mesmo Ratzinger procura demonstrar em um artigo: Entre a morte e a ressurreição, COMMUNIO 1/1982, p. 73ss. Isto é importante para o modo de compreender a ressurreição: se a morte é a aniquilação completa do homem, a ressurreição deveria ser entendida como uma nova criação, ficando assim comprometida a identidade entre a pessoa que morreu e a que ressuscitou. Neste contexto poderemos entender o conceito alma imortal tal como foi usado pela tradição: indicando esta 61 56 Com a palavra ressurreição se começou a indicar uma experiência que ia muito além de um simples “levantar-se” ou “acordar” de uma noite de sono. Com ela se começou a indicar esta experiência de fé em uma existência pessoal depois da morte. É uma experiência de fé porque brota da certeza que Deus é fiel e não abandona os que são seus. Deus se revela como o Deus da vida também para aqueles que passam pela morte. Deus possibilita uma existência pessoal, ou seja, quem ressuscita é verdadeiramente aquele que morreu, há aqui uma identidade que expressa uma continuidade, embora para uma situação existencial completamente nova, expressa em nossa frase com o “depois da morte”, indicando assim uma novidade. Eis a chave de leitura para falarmos em ressurreição: entre a pessoa que morre e ressuscita, existe uma continuidade – expressa pela sua identidade (é a mesma pessoa que morre a que ressuscita) – e uma descontinuidade, ou seja, uma novidade (a pessoa ressuscitada possui uma condição existencial toda nova que nós somente ousamos imaginar como seria63). possibilidade que Deus tem de ressuscitar a pessoa mesma que morreu. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Imagen de Dios. Antropologia teológica fundamental. 2ªed. Santander: Editorial Sal Terrae, 1988, p.150: “para poder falar de ressurreição do mesmo sujeito pessoal da existência histórica tem que haver em tal sujeito algo que sobreviva à morte, que atue como nexo entre as duas formas de existência (a histórica e a meta-histórica), sem o que não se daria, a rigor, ressurreição, senão criação do nada”. 63 Aqui é preciso sempre estar atentos: o “como” será esta existência após a morte é para nós um grande mistério. Nossa linguagem é mais negativa do que positiva, ou seja, podemos mais dizer o que não é do que é, a partir de nossa experiência. Por exemplo: a vivência do espaço e tempo, que são nossas características de seres 57 Podemos constatar esta continuidade e descontinuidade já na experiência de Jesus ressuscitado: Jesus ressuscitado é o mesmo que foi crucificado (o texto mais forte desta identidade é o que se refere à descrença de Tomé: “Estenda aqui o seu dedo e veja minhas mãos. Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo, mas tenha fé” – Jo 20, 27; ver também: Lc 24, 36-43, onde Jesus até come para demonstrar que é real); são também inúmeras as passagens onde percebemos esta descontinuidade: a dificuldade que possuem de imediato para “reconhecer” Jesus; o fato de Jesus ressuscitado não estar mais sujeito às nossas leis físicas (como em Jo 20, 26: “Estando fechadas as portas, Jesus entrou”)64. Frente aos povos vizinhos, Israel chegou a uma idéia de existência pessoal pós-morte somente tardiamente65. Em seus inícios, a concepção que possuíam era de uma longa descendência (este era justamente o objeto da bênção). O que se pode vislumbrar aqui é, portanto, uma existência impessoal (o pai continua nos filhos, netos e assim por diante). Este modo de concepção não é estranho também em nossa época. Muitas pessoas acreditam que se perpetuam em seus feitos ou na memória das pessoas ou da sociedade. situados, deverá ser completamente diferente. Como vivemos em uma tensão entre momentos felizes e infelizes, cremos que “junto de Deus” seremos completamente felizes, não havendo mais infelicidade, e assim por diante. 64 CATECISMO DA IGREJA CATOLICA, n.645. 65 G. BARBAGLIO afirma de modo enfático que os judeus chegaram à idéia de ressurreição como forma privilegiada de salvação depois da morte “com um atraso escandaloso” (citado por: TAMAYO-ACOSTA, J-J., Para comprender la escatologia cristiana. Estella: Editorial Verbo Divino, 1993, p.93). 58 O horizonte de compreensão do homem judeu também é diferente do nosso. Ali, a sociedade, o povo é que é referência, ainda não se tem a idéia de indivíduo como posteriormente. Por isso, mesmo as primeiras expressões de uma fé na ressurreição serão para o povo e não para o indivíduo. Um exemplo a ser lembrado é Os 6, 1-3, principalmente o versículo 2: “em dois dias ele nos fará reviver, e no terceiro dia nos fará levantar, e passaremos a viver na sua presença”66. Quando a situação obrigar a fé judaica a dar uma resposta para além da coletividade, isto é, para o indivíduo, emergirá então a fé na ressurreição dos mortos. Esta situação é aquela dos mártires. Temos então o primeiro testemunho categórico da ressurreição dos mortos no livro de Daniel, especialmente ao longo do capítulo 12. Também o segundo livro dos Macabeus, principalmente os capítulos 7 e 12 (7,9: “Você bandido, nos tira desta vida presente, mas o rei do mundo nos fará ressuscitar para uma ressurreição eterna de vida, a nós que agora morremos pelas leis dele”). Para Ruiz de la Peña “esta fé na ressurreição não surge de uma elucubração conceitual, senão da reflexão dos crentes sobre uma circunstância histórica. O fato do martírio re-propõe agudamente as velhas perguntas de Jó. (...) a única resposta digna de Deus, a única que o faz crível, digno de crédito, é a ressurreição, a saber, a ação pela qual Deus RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.78: “é claro que não se fala de uma ressurreição dos indivíduos, senão do povo enquanto tal”. Segundo este autor, é a mesma situação de Ez 37, 1-14. 66 59 devolve, centuplicada, essa vida que o mártir havia entregue”67. O Novo Testamento nos mostra a comunidade dos judeus dividida frente à fé na ressurreição. A posição de Jesus é firme e clara. Embora não fale com freqüência da ressurreição, sua polêmica com os saduceus não deixa dúvida (Mc 12, 18-27). Os Apóstolos e tantos outros das primeiras comunidades fizeram a experiência da ressurreição de Jesus (Lc 24, 9-10.34.36; At 1,22), que passa a ser o fundamento da fé em nossa própria ressurreição (1Cor 15, 12-18). Esta experiência é o fato central de todo o NT. E o primeiro anúncio (querigma) dos cristãos foi justamente este: “Deus ressuscitou Jesus”. Podese lembrar, por exemplo, At 2, 14-36. Entre os textos mais antigos do NT que procuram refletir sobre a ressurreição: 1Ts 4, 13-17 (no qual São Paulo deve explicar para a comunidade o que acontece com os irmãos que morrem antes da segunda vinda de Cristo, a parusia); 1Cor 15 e 2Cor 5, 1-5 (onde São Paulo reflete também sobre a corporeidade na ressurreição). Podemos concluir: quando o NT afirma a ressurreição, não está afirmando uma salvação “desencarnada” (como a que pregavam os gregos através da sobrevivência da alma imortal68); também não está Ibidem, p.83. É preciso notar que aqui se menciona a fé na ressurreição apenas dos bons: “Vale a pena morrer pela mão dos homens, quando se espera que o próprio Deus nos ressuscite. Para você [rei injusto], porém, não haverá ressurreição para a vida” (2Mac 7, 14). 68 Esta problemática da alma imortal ocupa boa parte da reflexão teológica na história. Desenvolvida e popularizada em ambiente grego 67 60 afirmando uma salvação “privatizada” (do indivíduo somente): a promessa de salvação é para todo o gênero humano e a ressurreição é um evento comunitário. Em nossa existência o outro, aquele com o qual nos encontramos, convivemos, não é um mero acréscimo, faz parte verdadeiramente do que somos, por isso afirmamos que o ser humano é “naturalmente” um ser social69. Portanto, não podemos pensar a ressurreição individualisticamente, como muitas vezes foi apresentada na história moderna. Estaria completamente fora do espírito pelo orfismo (como o de Pitágoras) e por Platão, influenciou também alguns livros do AT, como o da Sabedoria. Recentemente alguns teólogos quiseram afirmar a incompatibilidade entre uma concepção do homem como a grega, que fala de imortalidade da alma com a concepção judaica, que prega a ressurreição dos mortos. Não podemos entrar aqui neste problema, bastará dizer que a teologia católica tem preferido conservar o uso da palavra alma para indicar a possibilidade que Deus tem de ressuscitar aquele mesmo que morreu, ou seja, com ela se garante aquela dimensão de continuidade anteriormente explicada. Vale lembrar: contra um discurso que pregue a existência pós-morte apenas de uma “alma imortal” e não do homem inteiro (da “pessoa”), a tradição tornou artigo de fé a “ressurreição da carne”. 69 A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Vaticano II (GS), se expressa assim: “A índole social do homem evidencia que o aperfeiçoamento da pessoa humana e o desenvolvimento da própria sociedade dependem um do outro. A pessoa humana é e deve ser o princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, porque, por sua natureza, necessita absolutamente da vida social. A vida social não é portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem desenvolve-se em todas as suas qualidades mediante a comunicação com os outros, pelas obrigações mutuas, pelo diálogo com os irmãos, e pode corresponder à sua vocação” (n.25). Não se compreenderia portanto como manteria aquela identidade entre a pessoa que morre e a que ressuscita se a ressurreição não conservasse toda sua dimensão social. 61 bíblico e da tradição da Igreja70. Por fim, a salvação não é uma “desmundanização”: a salvação prometida pela ressurreição envolve a realidade inteira e não só a humanidade (Cl 1, 20: “para por meio dele [Jesus ressuscitado], reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz”). De tudo aquilo que foi exposto acima podemos concluir: a ressurreição não é a continuidade de uma alma imortal “desencarnada”; não é nem mesmo o retorno desta “alma” a um novo corpo (que seria a reencarnação); não é simplesmente voltar a viver, como aconteceu com a filha de Jairo e com Lázaro, tendo recuperado a vida, voltaram à mesma condição existencial de antes e de novo morreram (isto seria reviver)71; não é nem mesmo uma ação de Deus para recriar quem houvesse morrido totalmente, porque neste caso não haveria mais continuidade entre o que morreu e o que ressuscitou (seria verdadeiramente uma criação nova). Ao iniciar o documento Gaudium et Spes, o Concílio explicita que é esta a visão de homem que orienta sua compreensão: “É a pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que deve ser renovada. É, portanto, o homem considerado em sua unidade e totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade, que será o eixo de toda a nossa explanação”(n.3) . 71 CATECISMO DA IGREJA CATOLICA, n.646: “A ressurreição de Cristo não constitui uma volta à vida terrestre, como foi o caso das ressurreições que Ele havia realizado antes da Páscoa: a filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro. Tais fatos eram acontecimentos miraculosos, mas as pessoas contempladas pelos milagres voltaram simplesmente à vida ‘ordinária’, pelo poder de Jesus. Em determinado momento, voltariam a morrer. A ressurreição de Cristo é essencialmente diferente”. 70 62 A ressurreição é esta existência transformada e plenificada pela presença de Deus Trindade (elemento de novidade) da pessoa na totalidade de seu ser individual e social (elemento de continuidade). Podemos afirmar que a ressurreição faz de nós aquilo que Deus sempre quis que fôssemos (condição que havíamos perdido – não apenas enquanto indivíduo, mas também como gênero – pelo pecado72). Portanto, com o termo ressurreição expressamos tanto o processo de restauração daquilo que Deus quer que sejamos quanto o estado definitivo que alcançamos no termo deste processo73. Por fim, a ressurreição é uma “certeza de nossa fé”, horizonte dentro do qual nós a podemos desde já experienciar, por exemplo, nos sacramentos, como no batismo: “Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Pelo batismo fomos sepultados como ele na morte, para que, GAUDIUM ET SPES, n.18: “Ensina a fé cristã que a morte corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse pecado, será vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do homem lhe for restituída por seu onipotente e misericordioso Salvador. Pois Deus chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, dê sua adesão a Deus na comunhão perpétua da incorruptível vida divina”. 73 Ibidem, n.39: “Nós ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade e desconhecemos a maneira de transformação do universo. Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo pecado, mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra. Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então, vencida a morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção. Permanecerão o amor e sua obra e será libertada da servidão da vaidade toda aquela criação que Deus fez para o homem”. 72 63 assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova” (Rm 6, 3-4). E esta fé em uma existência pósmorte, longe de nos afastar de nossos compromissos na construção deste mundo, serve de estímulo74. Só podemos concluir com a resposta pascal: Aleluia, Aleluia! Ibidem, n.21: “A Igreja ensina, além disso, que a esperança escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas antes apóia o seu cumprimento com motivos novos”. E “a esperança de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra” (n.39). 74 64 6. RESSURREIÇÃO DA CARNE Em outras edições deste jornal já tratei do tema da ressurreição, especialmente quando trabalhei a ressurreição de Cristo. Aqui retomo este tema, mas dando uma atenção particular à nossa esperança na “ressurreição da carne”. Podemos iniciar lembrando uma constatação de Santo Agostinho que parece perfeitamente atual: “Em nenhum ponto a fé cristã se depara com mais contradição do que em torno da ressurreição da carne” (Psal. 88, 2,5). E Orígenes reclama que: “o mistério da ressurreição, por não ser compreendido devidamente, é motivo de escárnio constante dos descrentes” (Contra Celso I,7). E, no entanto, a ressurreição dos mortos sempre foi na tradição cristã, um dos artigos de fé mais categoricamente atestados. Esta perplexidade nos lembra a dos discípulos ao descerem da montanha após a experiência da transfiguração: “Jesus recomendou-lhes que não contassem a ninguém o que tinham visto, até que o filho do Homem tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram a recomendação e se perguntavam o que queria dizer ‘ressuscitar dos mortos’” (Mc 9, 9-10). Hoje a palavra ressurreição é, além de um termo técnico da teologia cristã, um termo popularizado. Seu significado está mais ou menos fixado. Mas é preciso lembrar que para o ambiente dos apóstolos – e mesmo antes – esta realidade que estavam vivenciando era algo novo e não possuíam uma palavra para designá-la em toda sua 65 riqueza, o que os forçava a expressar-se através de palavras já conhecidas, mas carregadas de um significado novo. Etienne Charpentier nos explica que ressuscitar: “esta única palavra em português traduz, na realidade, duas imagens ‘fazer levantar, surgir’ (anistai, em grego) ou então ‘fazer levantar, despertar’ (égeirein, em grego). Estas duas palavras fazem parte da linguagem corrente para exprimir a passagem da posição deitada para a posição de pé ou do sono ao despertar. Quando aplicadas aos defuntos, apelam para uma mentalidade mítica (comum a muitos povos) na qual a morte é concebida como um sono ou como a descida aos ‘infernos’”75, que era para estes povos, um lugar indiferenciado para todos os mortos, como o Hades para os gregos ou o Sheol para os judeus (por exemplo: Jó 3, 19; Ecl 2, 15), não tendo ainda o significado que tem hoje, concepção possível porque nem os gregos nem os judeus acreditaram em uma morte “total” do homem. Com a palavra ressurreição se começou a indicar uma experiência que ia muito além de um simples “levantarse” ou “acordar” de uma noite de sono. Com ela se começou a indicar esta experiência de fé em uma existência pessoal depois da morte. É uma experiência de fé porque brota da certeza que Deus é fiel e não abandona os que são seus. Deus se revela como o Deus da vida, também para aqueles que passam pela morte. Deus possibilita uma existência pessoal, ou seja, quem ressuscita é verdadeiramente aquele que morreu. Há aqui uma identidade que expressa uma CHARPENTIER, E., Cristo ressuscitou! São Paulo: Paulinas, 1983, p.31. 75 66 continuidade, embora para uma situação existencial completamente nova, expressa em nossa frase com o “depois da morte”, indicando assim uma novidade. Eis a chave de leitura para falarmos em ressurreição: entre a pessoa que morre e ressuscita, existe uma continuidade – expressa pela sua identidade (é a mesma pessoa que morre a que ressuscita) – e uma descontinuidade, ou seja, uma novidade (a pessoa ressuscitada possui uma condição existencial toda nova que nós somente ousamos imaginar como seria). Podemos constatar esta continuidade e descontinuidade já na experiência de Jesus ressuscitado: Jesus ressuscitado é o mesmo que foi crucificado (o texto mais forte desta identidade é o que se refere à descrença de Tomé: “Estenda aqui o seu dedo e veja minhas mãos. Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo, mas tenha fé” – Jo 20, 27; ver também: Lc 24, 36-43, onde Jesus até come para demonstrar que é real); são também inúmeras as passagens onde percebemos esta descontinuidade: a dificuldade que possuem de imediato para “reconhecer” Jesus; o fato de Jesus ressuscitado não estar mais sujeito às nossas leis físicas (como em Jo 20, 26: “Estando fechadas as portas, Jesus entrou”). Frente aos povos vizinhos, Israel chegou a uma idéia de existência pessoal pós-morte somente tardiamente. Em seus inícios, a concepção que possuíam era de uma longa descendência (esta era justamente o objeto da bênção). O que se pode vislumbrar aqui é, portanto, uma existência impessoal (o pai continua nos filhos, netos e assim por diante). Este modo de concepção não é estranho também em nossa época. Muitas pessoas acreditam que se perpetuam em 67 seus feitos ou na memória das pessoas ou da sociedade. O horizonte de compreensão do homem judeu também é diferente do nosso. Ali, a sociedade, o povo é que é referência, ainda não se tem a idéia de indivíduo como posteriormente. Por isso, mesmo as primeiras expressões de uma fé na ressurreição serão para o povo e não para o indivíduo. Um exemplo a ser lembrado é Os 6, 1-3, principalmente o versículo 2: “em dois dias ele nos fará reviver, e no terceiro dia nos fará levantar, e passaremos a viver na sua presença”. Quando a situação obrigar a fé judaica a dar uma resposta para além da coletividade, isto é, para o indivíduo, emergirá a fé na ressurreição dos mortos. Esta situação é aquela dos mártires. Temos então o primeiro testemunho categórico da ressurreição dos mortos no livro de Daniel, especialmente ao longo do capítulo 12. Também o segundo livro dos Macabeus, principalmente os capítulos 7 e 12 (7,9: “Você bandido, nos tira desta vida presente, mas o rei do mundo nos fará ressuscitar para uma ressurreição eterna de vida, a nós que agora morremos pelas leis dele”). Para Ruiz de la Peña “esta fé na ressurreição não surge de uma elucubração conceitual, senão da reflexão dos crentes sobre uma circunstância histórica. O fato do martírio re-propõe agudamente as velhas perguntas de Jó. (...) a única resposta digna de Deus, a única que o faz crível, digno de crédito, é a ressurreição, a saber, a ação pela qual Deus devolve, centuplicada, essa vida que o mártir havia entregue”. 68 O Novo Testamento nos mostra a comunidade dos judeus dividida frente à fé na ressurreição. A posição de Jesus é firme e clara. Embora não fale com freqüência da ressurreição, sua polêmica com os saduceus não deixa dúvida (Mc 12, 18-27). Os Apóstolos e tantos outros das primeiras comunidades fizeram a experiência da ressurreição de Jesus (Lc 24, 9-10.34.36; At 1,22), que passa a ser o fundamento da fé em nossa própria ressurreição (1Cor 15, 12-18). Esta experiência é o fato central de todo o NT. E o primeiro anúncio (querigma) dos cristãos foi justamente este: “Deus ressuscitou Jesus”. Pode-se lembrar, por exemplo, At 2, 14-36. Entre os textos mais antigos do NT que procuram refletir sobre a ressurreição: 1Ts 4, 13-17 (no qual São Paulo deve explicar para a comunidade o que acontece com os irmãos que morrem antes da segunda vinda de Cristo, a parusia); 1Cor 15 e 2Cor 5, 1-5 (onde São Paulo reflete também sobre a corporeidade na ressurreição). Podemos concluir: quando o NT afirma a ressurreição, não está afirmando uma salvação “desencarnada” (como a que pregavam os gregos através da sobrevivência da alma imortal); também não está afirmando uma salvação “privatizada” (do indivíduo somente): a promessa de salvação é para todo o gênero humano e a ressurreição é um evento comunitário. Em nossa existência o outro, aquele com o qual nos encontramos, convivemos, não é um mero acréscimo, faz parte verdadeiramente do que somos, por isso afirmamos que o ser humano é “naturalmente” um ser social. Portanto, não podemos pensar a ressurreição individualisticamente, como muitas vezes foi apresentada na história moderna. Estaria 69 completamente fora do espírito bíblico e da tradição da Igreja. Por fim, a salvação não é uma “desmundanização”. A salvação prometida pela ressurreição envolve a realidade inteira e não só a humanidade (Cl 1, 20: “para por meio dele [Jesus ressuscitado], reconciliar consigo todas as coisas, tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu sangue derramado na cruz”). De tudo aquilo que foi exposto acima podemos concluir: a ressurreição não é a continuidade de uma alma imortal “desencarnada”; não é nem mesmo o retorno desta “alma” a um novo corpo (que seria a reencarnação); não é simplesmente voltar a viver, como aconteceu com a filha de Jairo e com Lázaro, tendo recuperado a vida, voltaram à mesma condição existencial de antes e de novo morreram (isto seria reviver); não é nem mesmo uma ação de Deus para recriar quem houvesse morrido totalmente, porque neste caso não haveria mais continuidade entre o que morreu e o que ressuscitou (seria verdadeiramente uma criação nova). Foi justamente em um momento em que se colocou em risco esta integridade da fé na ressurreição, que o magistério da Igreja usou a expressão ressurreição da carne, que é substancialmente o mesmo que ressurreição dos mortos ou simplesmente, ressurreição. Somente de modo secundário, a palavra carne indica biblicamente no homem a matéria de seu corpo, e ainda quando o faz, é de modo positivo. A carne foi criada por Deus (e tudo o que Deus criou é bom!), a carne foi assumida pelo Filho de Deus e transfigurada pelo Espírito de Deus (é por isso que nós 70 cristãos podemos afirmar que cremos na ressurreição da carne). Mas a carne indica a condição de criatura em sua dependência absoluta do criador. A carne passou a indicar o homem concreto, em sua existência cotidiana, em suas relações com os outros e com a natureza. Com a palavra carne, se quer expressar que o ressuscitado será integralmente o homem mesmo e não apenas uma parte dele, ou isolado de suas relações. A ressurreição é esta existência transformada e plenificada pela presença de Deus Trindade (elemento de novidade) da pessoa na totalidade de seu ser individual e social (elemento de continuidade). Podemos afirmar que a ressurreição faz de nós aquilo que Deus sempre quis que fôssemos (condição que havíamos perdido – não apenas enquanto indivíduo, mas também como gênero – pelo pecado (cf. Gaudium et Spes, 18). Portanto, com o termo ressurreição expressamos tanto o processo de restauração daquilo que Deus quer que sejamos, quanto o estado definitivo que alcançamos no termo deste processo (cf. Gaudium et Spes, 18). Por fim, a ressurreição é uma “certeza de nossa fé”, horizonte dentro do qual nós a podemos desde já experienciar, por exemplo, nos sacramentos, como no batismo: “Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte? Pelo batismo fomos sepultados como ele na morte, para que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa vida nova” (Rm 6, 3-4). 71 E esta fé em uma existência pós-morte, longe de nos afastar de nossos compromissos na construção deste mundo, serve de estímulo (cf. Gaudium et Spes, 21). 72 7. O CATÓLICO PODE ACREDITAR EM REENCARNAÇÃO? Não! A reencarnação é incompatível com a fé cristã. Portanto, não apenas os católicos não crêem na reencarnação, mas qualquer cristão76. Mas será que esta afirmação reflete a realidade? Segundo Boaventura Nos pronunciamentos do Magistério da Igreja podemos encontrar muitas condenações – ainda que nem sempre explícitas – à doutrina da reencarnação, um exemplo é a condenação das teses de Orígenes pelo Sínodo de Constantinopla, em 543 (DS 403-411). Um exemplo mais atual e acessível é a condenação que faz o Catecismo da Igreja Católica: “A morte é o fim da peregrinação terrestre do homem, do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece para realizar a sua vida terrestre segundo o projeto divino e para decidir o seu destino último. Quando tiver terminado ‘o único curso da nossa vida terrestre’, não voltaremos mais a outras vidas terrestres. ‘Os homens devem morrer uma só vez’ (Hb 9,27). Não existe ‘reencarnação’ depois da morte” (n.1013). Também o papa João Paulo II se manifestou contra a reencarnação em sua Carta apostólica Tertio Milennio Adveniente, n.9: “Alguns imaginam várias formas de reencarnação: consoante o modo como tivesse vivido durante a existência mais nobre ou mais humilde, até atingir a plena purificação. Muito radicada nalgumas religiões orientais, esta crença indica, entre outras coisas, que o homem não pode resignar-se à irrevogabilidade da morte. Está convencido da própria natureza essencialmente espiritual e imortal”. E o papa continua: “A revelação cristã exclui a reencarnação e fala de um cumprimento que o homem é chamado a realizar no curso de uma única existência sobre a terra”. 76 73 Kloppenburg, uma pesquisa feita em 1996, revelou que 35% da população brasileira aceita a doutrina da reencarnação77. Se esta estatística é exata ou não, não importa muito, mostra que em um país de maioria esmagadora de cristãos como o nosso, certamente existem muitos cristãos que aceitam a doutrina da reencarnação. Como afirmei antes, a fé cristã na ressurreição é incompatível com a doutrina da reencarnação, ou seja, há uma falta de compreensão ou do cristianismo ou do reencarnacionismo78. Mas porque então a reencarnação atrai? São muitos os motivos costumeiramente alegados, lembramos alguns: antes de tudo, porque vem de encontro com um anseio profundo de todos que é justamente a busca de salvação. A afirmação de muitas vidas – além de preencher o desejo de imortalidade – parece permitir uma maior segurança psicológica de salvação: muitas vidas = muitas chances de salvação. KLOPPENBURG, B., Reencarnação? Petrópolis: Vozes, 1998, p.13. Battista Mondin cita uma pesquisa feita em nove países europeus cujo resultado indicou que 21% dos entrevistados aceitam a doutrina da reencarnação (Preesistenza, sopravvivenza, reincarnazione. Milão: Editrice Àncora, 1989, p.33). 78 KLOPPENBURG, B., Reencarnação? Petrópolis: Vozes, 1998, p.9: “Os cristãos rezam: ‘Creio na ressurreição da carne’. Jamais como hoje, tem havido tanta necessidade de sublinhar esta parte do Credo da Igreja. A ressurreição e a esperança cristã são unidas de maneira indissolúvel. Onde desaparece a fé na ressurreição, ela é substituída pela crença na reencarnação. A fé na ressurreição e a teoria da reencarnação são duas interpretações profundamente diferentes do enigma da vida e do mistério depois da morte. Trata-se de duas tomadas de posição fundamentais acerca da vida e de duas diferentes formas de esperança”. 77 74 A doutrina da reencarnação atrai também pela simplicidade de suas afirmações (é uma resposta muito simples para os sofrimentos presentes: sofre-se como purificação de males cometidos no passado); além de explorar uma região do ser humano que ainda é mistério, o sobrenatural – algo muito precioso em um mundo racionalizado e tecnificado como o nosso. Assim, aqueles fenômenos que ainda não possuem uma explicação convincente pela ciência acabam sendo utilizados como justificação de “vidas passadas”. Por que não podemos aceitar a doutrina da reencarnação? Os motivos também são muitos. Lembremos ao menos os principais. Antropologicamente (ou seja, do ponto de vista do homem) parte de um equívoco. Afirma que a pessoa humana identifica-se com sua alma. Em outras palavras: o homem é a sua alma. É isto que possibilita a transmigração da alma (reencarnar-se em um outro corpo). Nesta visão, o corpo não importa decisivamente para o ser da pessoa, é um acessório, instrumento ou princípio de limitação; tanto é verdade que para o reencarnacionista o corpo é algo “exterior”, tão secundário que, para muitos tipos de reencarnacionistas, a alma poderá se encarnar em um animal qualquer e não apenas em “corpos humanos”. Já dizia Platão – fazendo eco aos pitagóricos – que o corpo é o cárcere da alma. Há uma desvalorização da corporeidade e de tudo o que diretamente se refere a ela. A libertação significa libertar-se do “peso” da corporeidade. Diante da crença na reencarnação, a seriedade e tragicidade da morte é enfraquecida, banalizada. Perde-se 75 a “unicidade e irrepetibilidade” da pessoa. As decisões livres do homem, que comprometem sua existência, acabam sendo desvalorizadas. Foi frente a este perigo de desvalorização da corporeidade que a Igreja sentiu necessidade de proclamar como dogma de fé: “creio na ressurreição da carne”79. Ou seja, a promessa de ressurreição é para o homem inteiro, corpo e alma80. O mundo e tudo o que está diretamente relacionado ao homem perde sentido, já que o corpo – a “mundaneidade do homem” – não é levada a sério. A reencarnação não leva a sério o fato do “homem ser pó e voltar ao pó”. Na visão re-encarnacionista a promessa de plenitude, vida eterna, não envolve o cosmo (o universo por inteiro), mas somente a alma. Isto contrasta com nossa fé na ressurreição que se refere a toda a criação. São Paulo é muito claro: Catecismo da Igreja Católica, n.990: “O termo ‘carne’ designa o homem na sua condição de fraqueza e de mortalidade. A ‘ressurreição da carne’ significa que após a morte não haverá somente a vida da alma imortal, mas que mesmo os nossos ‘corpos mortais’ (Rm 8,11) readquirirão vida”. 80 O “como” será esta corporeidade ressuscitada já incomodava os cristãos do tempo de Paulo, que responde de um modo singelo e poético em sua primeira carta aos Coríntios, principalmente no capítulo 15. “Ressuscitar ‘com o mesmo corpo’ significa, como conseqüência e desde logo, recuperar a própria vida em todas as suas dimensões autenticamente humanas; não perder nada de tudo aquilo que agora constitui e singulariza a cada homem” (RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la creación. Escatologia. Madri: BAC, 2000, p.173). 79 76 “Penso que os sofrimentos do momento presente não se comparam com a glória futura que deverá ser revelada em nós. A própria criação espera com impaciência a manifestação dos filhos de Deus. Entregue ao poder do nada – não por sua própria vontade, mas por vontade daquele que a submeteu – a criação abriga a esperança, pois ela também será liberta da escravidão da corrupção, para participar da liberdade dos filhos de Deus. Sabemos que a criação toda geme e sofre dores de parto até agora” (Rm 8, 18-22)81. A fé cristã desconhece a promessa de vida eterna para uma “alma espiritual desmundanizada”82, pelo contrário, a RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Resurrección o reencarnación? Communio (1980) p.298: escrevendo sobre a incompatibilidade entre a ressurreição (fé cristã) e a reencarnação afirma: “Seu não à reencarnação está já pré-anunciada no não às premissas desta, a seus pressupostos ontológicos e éticos. O último artigo do Creio cristão (‘cremos na ressurreição dos mortos’) se deriva rigorosamente do primeiro (‘cremos em Deus Pai, criador de todas as coisas, visíveis e invisíveis’). Não é casual, pois, que as três grandes religiões que assentam sua compreensão da realidade no dado criação (judaísmo, cristianismo, islamismo) repudiam o conceito de metempsicose”. Metempsicose é a transmigração da alma. 82 Aqui cabe lembrar também da sociabilidade fundamental do ser humano. O homem se constitui naquilo que é a partir de sua vivência com os outros homens. A afirmação de ser o homem “um ser relacional”, que se constitui no “encontro” com o outro, impede qualquer antropologia individualista: “ressurreição é um conceito corporativo, comunitário. A carne que ressuscita está feita de proximidade, tem sido amassada no molde da socialidade. A salvação que se promete e confere com a ressurreição não é individualista, não é o salvamento do naufrago solitário, senão a reconstituição da 81 77 promessa é para todas as criaturas (embora cada uma a seu modo). Porque Deus é o criador de tudo, é também O salvador de tudo. E tudo o que faz o faz por amor83. Temos que rejeitar a doutrina da reencarnação porque ela não valoriza a Encarnação e morte redentora de Cristo. Não somos salvos por nossas próprias forças. Por mais vidas que tivéssemos, a plenitude ou vida eterna, é dom de Deus. Afirmar que a salvação é graça não significa que isto dispense nossos esforços por sermos melhores e termos um mundo melhor. Por outro lado, ter muitas vidas não significa garantia de salvação. No fundo, uma ou muitas vidas, representam a mesma possibilidade de resposta ao diálogo amoroso com o Criador. Falar em salvação sem ter claro a graça salvífica e mediadora de Cristo é anti-cristão. A Palavra de Deus também nos ensina que a reencarnação não faz sentido84. Basta-nos recordar duas unidade originária de toda a família humana” (RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Resurrección o reencarnación? Communio (1980) p.299). 83 Catecismo da Igreja Católica, n.992: “A ressurreição dos mortos foi revelada progressivamente por Deus a seu povo. A esperança na ressurreição corporal dos mortos foi-se impondo como uma conseqüência intrínseca da fé em um Deus criador do homem inteiro, alma e corpo”. 84 Embora muitos reencarnacionistas queiram ver na Bíblia um fundamento para a reencarnação, segundo eles “o próprio Cristo teria ensinado formalmente a pluralidade de nossas existências corporais. Porquanto, doutrina Kardec, ‘o princípio da reencarnação era ponto de uma das crenças fundamentais dos Judeus, ponto que Jesus e os profetas confirmaram de modo formal: donde se segue que negar a reencarnação é negar as palavras de Cristo’” (KLOPPENBURG, B., Reencarnação? Petrópolis: Vozes, 1998, p.41). O próprio 78 citações: o capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios e Hb 9,27: “Está estabelecido que os homens devem morrer uma só vez e depois disso vem o julgamento”. Mas olhando mais profundamente a questão, percebemos que a concepção de homem que perpassa toda a Bíblia é uma noção unitária, incompatível com a doutrina da reencarnação. Concluindo, nossa fé na ressurreição assenta-se em Cristo. “Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos, como podem alguns dentre vós dizer que não há ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos, também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou, vazia é nossa pregação, ilusória é também vossa fé” (1Cor 12ss). “É por isso que tudo suporto por causa dos escolhidos, para que também eles alcancem a salvação que está em Jesus Cristo, com a glória eterna. Estas palavras são certas: se com ele morremos, com ele viveremos; se com ele sofremos, com ele reinaremos. Se nós o renegamos, também ele nos renegará. Se lhe formos infiéis, ele permanece fiel, pois não pode renegar a si mesmo” (2Tim 2, 1013). Kloppenburg responde detalhadamente a esta questão, fazendo ver como a interpretação que fazem da Bíblia é equivocada e tendenciosa. 79 8. PARUSIA. 8.1 Vem Senhor! Seguindo a fórmula do Credo Nicenoconstantinopolitano rezamos: “Ressuscitou ao terceiro dia, conforme as escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim”. O juízo ou julgamento é uma verdade de fé comum em nossa escatologia (o discurso teológico a respeito daquelas realidades últimas, tais como a morte, ressurreição, céu e inferno). Mas na interpretação deste “julgar” se tem feito muita confusão ao longo da história. Este é, portanto, um tema de imenso interesse para nossa religiosidade. Não se pode falar de juízo ou juízo final sem mencionar a segunda vinda de Cristo, a parusia. São duas categorias que possuem uma intrínseca relação, expressando a convicção de nossa fé quanto ao sentido último da história humana. Com o termo parusia indica-se este “momento” em que Deus levará à plenitude toda sua criação e, portanto, não apenas o gênero humano, realizando seu objetivo amoroso de nossa criação. O Novo Testamento (NT), para afirmar este acontecimento salvífico, faz uso deste vocábulo grego, 80 tomado do helenismo, parusia (de páreimi, que significa “estar presente” ou “chegar”). No helenismo indicava a visita do imperador, principalmente como boa notícia, trazendo ajuda. Como os reis e imperadores eram considerados de condição “divina”, o imperador era saudado como senhor e portador de salvação. Tudo isto faz com que a parusia tenha um caráter jubiloso e festivo. O Antigo Testamento (AT) não conheceu o termo parusia. Mas o NT o usa com freqüência: 24 vezes e com o sentido que tinha no helenismo. Com ele indica o advento glorioso de Cristo no final dos tempos (uma exceção, no entanto, encontramos em 2Ts 2,9). Mas o NT o faz com imagens nitidamente bíblicas. A passagem neotestamentária mais antiga onde se faz referência à parusia é 1Ts 4,15: “Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos que morreram” (tradução da Bíblia de Jerusalém). Paulo, nesta passagem, está respondendo à comunidade de Tessalônica quanto à preocupação manifestada sobre os que morreram antes da parusia, preocupação expressa nos versículos de 13 a 14: “Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere aos mortos, para não ficardes tristes como os outros que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu e ressuscitou, assim também os que morreram em Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia”. 81 A parusia está conectada com o fim do mundo: “Estando ele sentado no monte das Oliveiras, os discípulos se aproximaram dele, a sós, dizendo: ‘Dize-nos quando vai ser isso, e qual o sinal da tua Vinda e da consumação dos tempos’” (82P 24,3; outras citações 82P 24,27.37.39; 1Ts 2,19; 3,13; 2Ts 2,1.8; 1Pd 3,4.12) e com o juízo: “O Deus da paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor Jesus Cristo” (1Ts 5,23; ver também: 1Jo 2, 28). A descrição mais direta e completa da parusia está em 1Ts 4,13-18. A inseparabilidade da parusia dos outros elementos que compõe o eschaton (palavra grega que indica os acontecimentos últimos, como o juízo, e que foi utilizada em Eclo 7,36 (40 da Vulgata): “Em todas as tuas ações lembra-te do teu fim e jamais pecarás!”. Teu fim traduz o grego ta eschata, daí eschaton) encontra-se principalmente em 1Cor 15. Existem outras expressões que indicam a mesma realidade que nós nomeamos com parusia: a mais comum é o “dia do senhor”(1Ts 5,2; 2Ts 2,2; 1Cor 5,5), com suas variantes: “o dia de nosso senhor Jesus Cristo (1Cor 1,8), “o dia de nosso senhor Jesus” (2Cor 1,14), “o dia de Cristo” (Fl 1,10) ou simplesmente “o dia” (1Cor 3,13; Rm 2,16). Na verdade, é uma transposição cristológica do “dia de Javé” do AT. Outras expressões equivalentes: epifania: “aparição” (2Tm 1,10); apocalipses: “revelação” (1Cor 1,7); phaneroun: “manifestação” (Cl 3,4). Podemos encontrá-la também em um contexto litúrgico, como na oração aramaica marana tha (“vem 82 Senhor” cf. 1Cor 16,22; 83P 22,20); Que permite também a leitura maran atha (“o Senhor vem”). Embora do ponto de vista ético a parusia possa ter sido entendida por alguns como evasão do mundo (1Cor 7,29-31), ela expressa compromisso com o mundo (2Ts 3,612). Na verdade, a chave de leitura está em 1Cor 7,32: a esperança na parusia é libertadora enquanto relativiza os valores intramundanos, e quem estiver livre de preocupações passageiras, poderá se dedicar integralmente ao Senhor. Uma das questões mais debatidas é se a afirmação da parusia comporta um “fim do mundo”, entendido como término. Foram defendidas tanto uma quanto outra postura: a parusia implica um término da história; a parusia não implica um término “temporal” da história. A postura dos principais teólogos do século vinte é pela primeira. A consumação escatológica implica um término da história, um “fim do mundo”. Mas isso não quer dizer que será catastrófico. A parusia finaliza o mundo não o destruindo, mas o consumando. Cristologicamente, a parusia pode ser entendida como o desvelamento ou revelação de algo que já é atual: que Ele é o Senhor. Propriamente falando, não existe duas vindas de Cristo, mas uma única, a encarnação. O NT não fala de um “retorno” ou “volta” de Cristo; não existe aqui um vazio cristológico. Cristo continua presente (no tempo da Igreja de maneira especial nos sacramentos). É preciso evitar a impressão que os fatos aguardados para o final dos tempos sejam um conjunto de 83 acontecimentos (parusia, ressurreição, juízo, nova criação), sejam fatos independentes entre si. A parusia é o último ato da história da salvação: é a páscoa da criação. O destino cristológico está presente na criação desde seu início: Cristo é o eschaton (não “tem” eschaton). Várias passagens do NT usam imagens fortes para falar do eschaton: “são muito mais a roupagem simbólica de seu caráter transcendente, situado mais além de nossos pobres recursos expressivos. Na realidade, o único meio apto para verbalizar esse evento é precisamente o símbolo, já que, em si mesmo, é indescritível e inimaginável. Com efeito, o término do tempo, como seu começo, escapa à nossa experiência sensível...”85. É preciso lembrar que, assim como hoje aceitamos sem maiores problemas que o relato da criação seja simbólico, não há porque não aceitarmos que seu término também o seja. A parusia é a páscoa da criação porque indica a passagem para uma vida nova, para a nova criação, a plenitude de todas as criaturas. Só posso terminar esse artigo com maranatha! (“Vem Senhor!”). RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.139 . 85 84 8.2 (...) de novo há de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos” Acima escrevi sobre a Parusia. Com esta palavra expressamos nossa fé na consumação da história; “momento” no qual toda a criação atingirá a sua plenitude pela presença (esta é, justamente, uma das traduções da palavra parusia) vivificante e elevante do Filho. Os primeiros cristãos esperavam ansiosos esta “vinda”. Ela se tornou mesmo objeto de pedido litúrgico: marana-tá – Vem Senhor! (1Cor 16,22 - sigo a transliteração da Bíblia Sagrada – Edição Pastoral). A razão desta expectativa na vinda do Senhor estava justamente na felicidade desta plenitude. Implica uma transformação das criaturas, de todas as criaturas, cada uma conforme ao seu modo de existir. Podemos simplesmente dizer que Cristo fará das criaturas aquilo que sempre almejou que fossem. Estabelecerá sobre elas o seu poder, o seu governo. Em termos bíblicos: o Reinado de Deus estará totalmente estabelecido. Mas no mundo dos homens e mulheres, diferentemente das outras criaturas, nem tudo poderá ser assumido e elevado à sua plenitude. Antes, deverá ser negado e superado. Refiro-me a todo mal. Na experiência que fazemos do mundo, existem muitos limites naturais. Mas, também fazemos experiência de um limite propriamente humano, aquele fruto da ação livre e consciente. Costumamos nomeá-lo simplesmente como pecado. Em nosso encontro definitivo com Cristo na parusia, 85 nossas ações pecaminosas não poderão ser integradas, porque a parusia pressupõe justamente a plenitude da comunhão com Cristo (e por extensão com os irmãos e toda a criação), e o pecado é a ruptura dessa comunhão. É preciso, portanto, um juízo sobre o bem e o mal. Acostumamos com a idéia de que seremos julgados. Que haverá um juízo particular, pessoal, e um juízo final. O julgar faz parte de nossa experiência humana cotidiana. Não deveria ser diferente quando pensamos em nossa existência como um todo. Mas como compreender o juízo, como por exemplo, quando rezamos o Creio? No creio rezamos: “... de novo há de vir em sua glória, para julgar os vivos e os mortos”. Mas na interpretação deste “julgar” se tem feito muita confusão. É preciso começar distinguindo entre o juízo escatológico (que o credo liga à parusia) e o juízo-crise (determinação do destino último de cada pessoa). Esse duplo significado para juízo já está contido na Bíblia: o verbo hebraico safat significa indiferentemente julgar e governar. Quando Deus intervém na história, Deus julga. E sua intervenção tem sempre uma dupla vertente: salvífica e judicial. A prioridade corresponde, contudo, ao aspecto salvífico; o juízo divino é, fundamentalmente, para a salvação. As vitórias de Israel, manifestações da soberania de Javé, podem assim ser chamadas ‘juízos’: o Javé juiz é o auxílio de seu povo (cf. Jz 11,27; 2Sm 18,31; Dt 33,21; etc). Esta concepção do juízo como desenrolar do poder régio se conservará no Novo Testamento. Textos como Mt 25,31ss; Lc 10,18; 2Ts 2,8; 1Cor 15,24-28, etc., mostram que o juízo será a vitória definitiva de Cristo sobre os poderes hostis. 86 Compreende-se assim, que parusia e juízo apareçam, tanto no Novo Testamento como nos Credos elaborados pelos Concílios na história da Igreja, estreitamente unidos. Podemos até afirmar que “a parusia é o juízo e o juízo é a parusia”. Mas não podemos nos esquecer que ao longo da história muitas vezes esta esperançosa vinda do Senhor foi usada para amedrontar as pessoas, tendo como finalidade, o mais das vezes, um rigorismo moral, chegando mesmo a criar pânico nas pessoas o pensar em um juízo final (ou escatológico). O papa Bento XVI, em sua encíclica Spe Salvi - Sobre a Esperança Cristã, liga essa passagem da esperança para a ameaça à evolução da iconografia, ou seja, à arte de representar por meio da imagem: “Na evolução da iconografia, porém, foi se dando cada vez mais relevo ao aspecto ameaçador e lúgubre do Juízo, que obviamente fascinava os artistas mais do que o esplendor da esperança que acabava, com freqüência, excessivamente escondido sob a ameaça” (n.51). Frente a essas deformações, é preciso recuperar a compreensão original do juízo escatológico como intervenção decisiva do Cristo salvador. Deus criou o mundo para a comunhão consigo. O papa também fez questão de salientar essa idéia: “a imagem do Juízo final não é primariamente uma imagem aterradora, mas de esperança; a nosso ver, talvez mesmo a imagem decisiva da 87 esperança” (n.44). O evento terminal dessa história a finaliza na plena comunhão com Ele. Deste significado de juízo enquanto governo que conduz à plenitude toda a criação, surge também o juízo enquanto discernimento entre as ações boas e as más. Podemos chamá-lo de Juízo-crise. É o juízo particular ou pessoal. Juízo que se estabelece sobre o nosso comportamento ético e religioso e que marca nosso destino definitivo. Mas, o lugar deste juízo é durante a própria existência do homem e não apenas no momento de sua morte. Em outras palavras, em cada ato livre, quando decidimos, acontece este juízo. É na verdade um auto-juízo. Ele se concretiza em cada ação onde decidimos pelo bem ou pelo mal, vale dizer, em favor da comunhão com Deus e com os irmãos ou nos afastando de Deus e dos irmãos. Essa compreensão é importante, porque a ação de Deus é sempre pela nossa salvação, somos nós quem nos condenamos. Jesus nos expressa isso com uma clareza inigualável: “Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar o mundo, e sim para que o mundo seja salvo por meio dele. Quem acredita nele, não está condenado; quem não acredita, já está condenado, porque não acreditou no nome do Filho único de Deus. O julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações eram más. Quem pratica o mal, tem ódio da luz, e não se aproxima da luz, para que suas ações não sejam 88 desmascaradas. Mas, quem age conforme à verdade, se aproxima da luz, para que suas ações sejam vistas, porque são feitas como Deus quer” (Jo 3, 17-21). São Paulo, em uma pergunta, nos transmite essa mesma verdade: “Quem condenará? Jesus Cristo? Ele que morreu, ou melhor, que ressuscitou, que está à direita de Deus e intercede por nós?” (Rm 8,34). Somos nós quem nos condenamos todas as vezes que decidimos agir contra os valores do Evangelho. Deus, pelo infinito amor que tem por nós, permite que o rejeitemos, embora Ele continue nos amando. Podemos dizer mesmo que Deus “sofre” com nossa ruptura, com nosso pecado. Não podemos dizer, portanto, que Deus nos condena, nós nos condenamos; que Deus nos castigue, nós nos castigamos nos afastando d’Ele, única fonte de vida plena; contra como popularmente se costuma dizer: Deus não nos “manda para o inferno”, somos nós que “vamos por conta própria”, e isso contra a vontade d’Ele. Para concluir, poderíamos nos perguntar: qual o critério desse julgamento? Para o evangelista João, é a fé, porque ela nos faz ver Cristo no irmão; para Mateus, é o amor, porque nos faz agir como Cristo nos pede, o que dá no mesmo. Quem crê em Jesus, vive seu mandamento do amor aos irmãos. Neste sentido, deparar-se com Cristo – o homem perfeito – é uma forma de julgamento. E viver bem, é viver responsavelmente cada hora como a hora da decisão. 89 9. FIM DO MUNDO: A PLENITUDE DA CRIAÇÃO Escrevendo sobre o céu (Será o céu um lugar em meio às nuvens?), fiz algumas afirmações que contrastam com o que geralmente pensam as pessoas. A salvação, que é, em última instância, o que se quer exprimir com a palavra céu, não é apenas salvação de uma parte do homem (sua alma) mas sim do homem inteiro (corpo e alma, que são inseparáveis); não é apenas para o homem individualmente, mas para todo o gênero humano (há uma solidariedade entre todas as pessoas), não é apenas para o gênero humano, mas para toda criatura (cada uma a seu modo, é claro). Acima expliquei porque a promessa da salvação envolve toda criatura. É preciso agora tratar de um outro problema, com o anterior estreitamente conexo. Se a salvação é para toda criatura, ou seja, se o “mundo” também será salvo, então ele não será destruído? Escrevendo sobre os “novos céus e nova terra” dos quais fala a Bíblia, afirmei que isso não significa que Deus destruirá este mundo para criá-lo novamente, mas ele será transformado, como compreender isso? Em outras palavras, o que queremos dizer quando falamos em fim do mundo? Quando falamos em fim do mundo, é evidente que não identificamos aqui o mundo simplesmente com o “nosso” mundo ou com o planeta terra, mas com tudo o que existe. Mundo sem o qual a existência humana não pode ser 90 pensada. Mundo no qual a existência humana vivencia o tempo como história. O cristianismo, diferente de muitas outras religiões, não entende o mundo como eterno, mas como criado, o que significa dizer, absolutamente dependente do criador, e, portanto, embora não necessariamente, que teve um início. Início que implica um fim. Entre o início e o fim, a existência humana transcorre como história. Mas história da salvação. Para nós, perguntar sobre o fim do mundo, significa perguntar sobre o fim da história. O que é o mesmo que perguntar pelo seu significado, pelo seu sentido. A existência humana tem um sentido, tem um porquê, ou tudo transcorre por mero acaso? Cremos que a existência humana tem um sentido, que lhe é conferido pelo seu criador: o convite de existir em sua plenitude. É o que chamamos de salvação, e toda criação é para a salvação, ou seja, para existir na plenitude divina, em comunhão com Ele. É preciso refletir também sobre a palavra fim, como é usada nas expressões fim do mundo ou fim da história. Fim pode ser entendido aqui em dois sentidos: término ou finalidade. O problema está em compreendermos fim enquanto término, como destruição. Quando o fazemos, imaginamos o fim do mundo como uma série de grandes eventos destruindo tudo. Por isso, quando acontecem grandes desastres naturais, tais como os furacões, terremotos, tempestades, ou mesmo longas secas, pragas, epidemias, ou aquelas mais propriamente humanas, como as guerras, se diz que é o fim do mundo. 91 Essas idéias encontraram um gênero literário: a apocalíptica. Mas embora muitas pessoas pensem que isso tenha um fundamento bíblico, é, na verdade, uma leitura equivocada. Posso dar dois exemplos muito lembrados. Mt 24, 1-14: Jesus fala em guerras, fome e terremotos, diz que “essas coisas devem acontecer, mas ainda não é o fim” (v.6). Embora os discípulos tenham perguntado a Jesus quando seria sua vinda, a parusia e o fim do mundo, Jesus não tem nenhuma intenção de dar uma informação a este respeito, mas sim uma exortação, manter-se fiel: “quem perseverar até o fim, será salvo” (v.13). Mais adiante Jesus é ainda mais claro: “Quanto a esse dia e essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu, nem o Filho. Somente o Pai é quem sabe” (v.36). Decididamente, a intenção de Jesus não é nos dar informação sobre o fim do mundo, muito menos que o mundo será destruído. O segundo texto é 2Pd 3,5-13. Este é um texto de gênero claramente apocalíptico e tem servido na história para fundamentar a tese cataclismática, ou seja, da destruição universal. Mas aqui também é preciso o esforço para compreender o texto por inteiro e dentro do seu gênero literário. Aqui também a intenção é exortar para a fidelidade, embora possa parecer que a parusia, o dia da vinda do Senhor, esteja demorando. Nós sabemos que muitos esperavam a parusia para logo, pois o próprio Jesus havia dito que muitos deles ainda viveriam. No entanto, o Senhor tarda. Muitos começam a desanimar. Todo este texto de 2Pd encontra sua luz no versículo 4: “E dirão: ‘não deu em nada a promessa de sua 92 Vinda? De fato, desde que os pais morreram, tudo continua como desde o princípio da criação!’”. A carta exorta para manterem-se fiéis, pois “para o Senhor, um dia é como mil anos e mil anos é como um dia. O Senhor não demora para cumprir o que prometeu, como alguns pensam, achando que há demora; é que Deus tem paciência com vocês, porque não quer que ninguém se perca, mas que todos cheguem a se converter” (vv.8-9). Este texto fala que “os céus se dissolverão com estrondo” e a terra desaparecerá (v.10); que haverá uma “desintegração universal” (v.11). Mas com isso não quer informar sobre a destruição do mundo, e sim exortar para a vida que deve ser “de santidade e piedade” (v.11), em vista do cumprimento da promessa: “o que nós esperamos, conforme a promessa dele, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça” (v.13). Um argumento a mais para esta interpretação está no fato de começar se referindo à criação após o dilúvio, ou seja, da primeira criação restaurada. Esse paralelo nos permite pensar, dentro da lógica do texto, que os novos céus e nova terra serão os atuais, mas restaurados. O que é preciso evitar é pensar que este mundo será destruído, deixando por completo de existir, e que Deus vá criar do nada um novo mundo. Também para o mundo deveremos manter firmes os pressupostos inegáveis da cristologia (o discurso teológico sobre Cristo) e da antropologia (o discurso teológico sobre o homem) a esse respeito, ou seja, que há uma identidade entre o que morre e o que ressuscita, embora o ressuscitado apresente uma novidade frente ao que morreu. Explico melhor: o Cristo 93 ressuscitado é o mesmo que morreu (identidade), embora numa nova condição existencial (novidade). Também a nosso respeito cremos assim: seremos nós mesmos quem Deus irá ressuscitar (identidade), embora para uma vida nova, plena (novidade). Este binômio identidade – novidade deve ser mantido. Se não mantiver a identidade, não será ressurreição, será uma criação totalmente nova; se não houver novidade, não será ressurreição, mas revivificação. É, por exemplo, a diferença entre a ressurreição de Jesus e a revivificação de Lázaro, que voltou a viver na mesma condição existencial de antes e novamente morreu. Pois bem, esta identidade (continuidade) e novidade (diversidade) deverá ser mantida também em relação ao mundo. Este mundo presente, criado e amado por Deus,participa da salvação trazida por Cristo, o que significa uma transformação e não uma destruição. O estado de felicidade plena que chamamos de “céu” envolve toda a criação, “todo mundo”. Nem poderíamos seriamente pensar o homem sem “o seu mundo”. O fim do mundo não será de catástrofes, de desintegração total, mas de elevação à plenitude de toda a criação pelo Criador. 94 95 10. E O MUNDO NÃO ACABOU! E o mundo não acabou! Muitos previram o fim do mundo nesta virada de milênio. Chegaram até a marcar data. Suas “profecias” trágicas não se confirmaram. Em todo o Novo Testamento perpassa uma mensagem que precisa ser lida e interpretada com amor, carinho, atenção e acima de tudo com sabedoria. Com aquela sabedoria que vem do alto, do Espírito Santo. Jesus promete que voltará; que suas palavras se cumprirão. Mas o “tempo” de Deus é diferente do “tempo” humano. De fato, com Jesus o tempo já começa a se cumprir, mas ainda não definitivamente. O próprio S. Paulo apresenta um “crescimento” na compreensão desde “já” mas “ainda não”. Muitos cristãos esperavam para logo a parusia – mas precisaram retornar ao trabalho ( “quem não quiser trabalhar também não coma”). Nós cremos na “segunda vinda” de Cristo, mas o “como” e o “quando” desta promessa não cabe a nós, criaturas de Deus, sabermos. Certamente quando isto acontecer será enorme nossa alegria. Pois bem, o mundo não acabou e como ficam aqueles que “profetizaram” seu fim? O Miranda Leal mudou-se para a Inglaterra! O mundo não acabou e para ele começou uma “vida nova”; bem longe dos problemas brasileiros... Um pastor de sua Igreja disse (em entrevista para o citado jornal) que a “profecia” era algo pessoal, sem o 96 compromisso da igreja... E as pessoas continuarão escutando estes discursos de “enganos pessoais”... Poderíamos hoje dizer que existe uma distância dogmática imensurável entre a Igreja Católica e estas igrejas (“dos fins dos tempos”), mas a distância maior está no senso de responsabilidade e compromisso com o povo (principalmente com os “próximos”). Que todos abram os olhos, não se iludam com as promessas fáceis. Nós não precisamos de pessoas que preguem a tragédia cósmica. Deus criou o mundo e, segundo o Gênesis, viu que tudo o que havia feito era bom. Nós precisamos de pessoas que arregassem as mangas e lutem na construção de um mundo melhor, mais justo, fraterno e pacífico, onde o evangelho de Jesus seja realmente uma Boa Notícia proclamada e vivida. Certamente é mais fácil explorar econômica e religiosamente as pessoas através da emoção que libertá-las das amarras... 97 11. SERÁ O CÉU UM LUGAR EM MEIO AS NUVENS? No jornal SERVINDO do mês passado86, respondi a um artigo da revista Veja de 20/02/2008, assinado por Jerônimo Teixeira, que veladamente põe em ridículo algumas verdades de nossa fé. Ali, este autor jogava com duas idéias: uma pretendida defesa da realidade “física” do inferno pelo papa Bento XVI e da natureza do céu, defendida por um bispo anglicano chamado N. T. Wright, em um livro de recente publicação (“Surprise by hope”, ou seja, “Surpreendido pela Esperança”). Quanto à primeira questão, basta o que já escrevi. Aqui pretendo analisar a segunda. O que causou o espanto no autor do mencionado artigo, foi o fato do Bispo Wright ter contestado, segundo ele, em seu livro, “a visão do céu como um lugar elevado, um paraíso espiritual no meio das nuvens. Os fiéis não vão ascender aos céus, diz Wright – é Jesus que descerá à Terra, unificando-a com o plano divino. E não se viverá apenas em espírito: no Juízo Final, haverá a ressurreição da carne. Os fiéis se levantarão para tomar seu lugar junto a Jesus”. Existe uma idéia muito difundida, até pela iconografia (pelas pinturas, como as de Dante ou Michelangelo, por exemplo), do céu como um lugar e localizado sobre nosso Trata-se do texto intitulado: O inferno é real mas não físico, publicado aqui na seqüência. 86 98 mundo, até por isso, popularmente se diz “subir aos céus”. É evidente que esse modo de falar apóia-se em uma determinada cultura com sua cosmovisão. O “mundo”, ou seja, a totalidade do que existe, estaria dividido em três esferas: embaixo da terra (inferior, daí “inferno”, para onde “desciam” os mortos); sobre a terra, considerada um plano; e acima da terra, o céu com suas estrelas fixas (considerado sempre a “morada” de Deus ou dos deuses). É claro que essa maneira de entender foi superada pela moderna cosmologia: a terra não é chata, não é o centro do universo, estamos apenas no interior de uma galáxia, a via láctea, etc. Hoje se fala em universo em expansão... Embora a compreensão do universo tenha mudado substancialmente, nosso linguajar simbólico continua se referindo a realidades espirituais em termos de lugar. Basta aqui lembrar que o que se quer expressar continua sendo válido, embora quando entendido literalmente, seja inapropriado. Muitos preferem hoje a palavra “estado”, querendo com ela indicar “um modo de ser”, evitando assim uma compreensão fisicista das realidades pós-morte. Para o teólogo espanhol, Juan Luis Ruiz de la Peña87, na história da teologia encontramos três atitudes frente aos temas referidos àquelas realidades últimas que levaram a uma compreensão diferente daquela bíblica. Um acentuado individualismo: a pergunta pelo fim da história é deslocada pela pergunta sobre o fim individual. Tudo passa a ser RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000. 87 99 centrado na morte de cada pessoa. Com isso se tem um espiritualismo que afirma como sujeito da recompensa eterna apenas a “alma separada”. Este acentuado individualismo e espiritualismo levam a uma “desmundanização” das realidades últimas. O homem passa a pensar a promessa de salvação apenas para si, rompendo sua unidade com o cosmo; e não para todo seu ser, mas apenas para sua dimensão espiritual, a “alma”. É como se tudo que existe devesse ser destruído e Deus criasse um novo mundo, aquele chamado céu. Uma rápida olhada no Novo Testamento e perceberemos que a salvação ali prometida é sempre a salvação do homem inteiro, da comunidade inteira e de toda a realidade. O tema da ressurreição traz consigo o tema da nova criação. Há na Bíblia uma solidariedade entre o homem e o cosmos, desde sua origem até sua consumação, a ponto de não ser possível compreender um sem o outro. Como o cosmos participou na gestação, nascimento e desenvolvimento do homem, participará, da mesma forma, de sua consumação. Deus cria para salvar, ou seja, para que sua criatura participe integralmente de seu ser. A criação é para a salvação, ou, dizendo de outro modo, tudo o que foi criado por Deus será salvo. Deus não cria o mundo para destruí-lo, mas para que ele exista em comunhão com Ele. O livro da Sabedoria expressa isso da melhor maneira possível: “Tu amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que criaste. Se odiasses alguma coisa, não a terias criado. De que modo poderia alguma coisa subsistir, se tu não a quisesses? Como se poderia conservar alguma coisa se tu não a tivesses 100 chamado à existência? Tu, porém, poupas todas as coisas, porque todas pertencem a ti, Senhor, o amigo da vida” (11,24-26). O que nós chamamos de céu será todo o cosmos transformado, plenificado pela presença amorosa Deus. Mt 19,28 fala de um mundo renovado; 2Pe 3,13 afirma que “esperamos um céu novo e uma terra nova onde habitará a justiça”. Mas será principalmente em Paulo que encontraremos esse tema desenvolvido. Basta para nós aqui Rm 8,19-23: “Pois a criação em expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De fato, a criação foi submetida à vaidade – não por seu querer, mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança de ela também ser libertada da escravidão da corrupção para entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de parto até o momento presente. E não somente ela. Mas também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo”. Nesse texto paulino três afirmações são importantes: a sorte do universo está ligada à do gênero humano, participando também ele da libertação; a libertação do universo está diretamente ligada ao “resgate do nosso corpo”; a ressurreição atinge a todo o universo, que será libertado do que há atualmente nele de vão, escravidão e corrupção. O Concílio Vaticano II expressou essa fé particularmente em dois momentos. Na Lumen Gentium 48: “A Igreja, para a qual somos todos chamados em Cristo Jesus e na qual pela graça de Deus adquirimos a santidade, só se consumará na glória celeste, quando chegar o tempo 101 da restauração de todas as coisas (cf. At 3,21). E com o gênero humano também o mundo todo, que intimamente está ligado com o homem e que por ele chega ao seu fim, será perfeitamente restaurado em Cristo...” É preciso tomar cuidado em não entender este fim a que chega o mundo como destruição, mas sim como finalização, realização daquilo que o Criador quis ao criá-lo (finalidade). E na Gaudium et Spes 39: “Nós ignoramos o tempo da consumação da terra e da humanidade e desconhecemos a maneira de transformação do universo. Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo pecado, mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra. (...) Contudo a esperança de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra. (...) O Reino já está presente em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se consumará”. Concluindo. O que chamamos de céu não é um lugar nas nuvens, que só pertença a “alma” humana. O nosso universo não será destruído, se consumando. O que chamamos de céu é nosso mundo plenificado pela presença da Santíssima Trindade. A esperança nesta vida nova, em plena comunhão com Deus, envolve todas as criaturas, cada uma a seu modo. Penso que seja nesse sentido a afirmação do bispo anglicano Wright, o que estaria plenamente de acordo com nossa fé. 102 103 12. O INFERNO É REAL, MAS NÃO FÍSICO Vemos com freqüência na imprensa escrita ou televisiva, uma campanha contra a Igreja Católica, ou simplesmente, contra as verdades nas quais cremos. Muitos ataques são frontais e declarados, outros camuflados e indiretos. Entre os segundos, há uma tendência preocupante que é a apresentação de uma pretensa informação que na verdade visa levar ao ridículo algum conteúdo de nossa fé. A revista Veja, de 20 de janeiro de 2008, nas páginas 100 e 101, traz um artigo assinado por Jerônimo Teixeira intitulado O fogo eterno queima mesmo. E seu subtítulo é: O papa e um bispo da igreja anglicana tentam reafirmar a realidade física do céu e do inferno. O artigo pretende partir de uma constatação: está havendo um enfraquecimento na adesão aos princípios morais pregados pelas igrejas tradicionais. O problema é a abstração na qual cairam algumas crenças, como as do céu e inferno, que até então haviam sido “um recurso didático”. A conclusão do artigo: “é em resposta a esse enfraquecimento de princípios que alguns líderes religiosos vêm reafirmando a verdade física do céu e do inferno. No ano passado, o papa Bento XVI reiterou, em um sermão para fiéis de Roma, que o inferno não é uma imagem literária – trata-se realmente de um lugar onde as pessoas queimam por toda a eternidade (...) A pregação direta e assustadora de Bento XVI não diverge da linha dura que ele vem imprimindo a seu papado. O papa anterior, João Paulo II, amainou um tanto a noção de inferno, 104 definindo-o como um lugar em que Deus está ausente. Cioso dos fundamentos do catolicismo, Bento XVI não faz mais do que relembrar o que está nos textos sagrados. O capítulo 25 do Evangelho de São Mateus, para ficar em um exemplo, é inequívoco: os colocados à esquerda de Deus, que não deram de beber a quem teve sede nem alimentaram quem teve fome, serão banidos ‘para o fogo eterno destinado ao demônio e seus anjos’”. Algumas perguntas poderiam ser feitas: se o papa falou isso em um sermão “no ano passado aos fiéis de Roma”, porque publicá-lo agora? (justamente quando a Igreja está no centro da polêmica quanto à legalidade do uso ou não de embriões humanos na pesquisa de células tronco, e por causa de sua postura contrária vem sendo acusada sistematicamente de “obscurantismo”!). A citação da palavra do papa é feita sem o menor respeito às regras básicas de qualquer artigo sério: quando foi feito tal sermão? Onde está publicado? Não possui nenhuma referência, de modo que não é possível saber se o papa realmente as disse, e se as disse, em qual contexto? Quais foram realmente as palavras usadas por ele? Penso que nesta reportagem não há apenas imprecisão, mas também leviandade jornalística. Pelas razões acima mencionadas, não posso analisar o que realmente o papa disse. Mas pelo que conheço de teologia e pelas publicações que já fez a este respeito, duvido muito que este artigo esteja com a verdade. Façamos rapidamente uma análise. O papa Bento XVI, então Joseph Ratzinger, apenas um professor de teologia, em 105 1976, terminava de escrever uma obra sobre Escatologia (Eschatologie: tod und ewiges leben. Regensburg: Friedrich Pustet, 1977, traduzido para o italiano já em 1979), tratado teológico ao qual pertence o tema do inferno, após ter lecionado esta disciplina por vinte anos, e a publicou no momento em que recebeu o episcopado. Ali o papa reafirma a doutrina dogmática da Igreja a esse respeito: a existência do inferno e a eternidade de suas penas se apóiam em um terreno sólido, tanto bíblico quanto dogmático. O papa lembra aqueles que procuraram pensar um inferno “temporário”, mas conclui que o respeito de Deus pela liberdade humana faz que aceitemos a eternidade desta decisão humana de rejeitar este diálogo amoroso com Ele, única fonte de vida. Mostra a bondade de Deus que sofre com a rejeição dos homens ao seu convite de salvação, mas que permite, por amor à liberdade de suas criaturas, essa situação. Faz questão de acrescentar: “em uma semelhante religiosidade, nada é cancelado da terrificante realidade do inferno; ao contrário, esse é tão real que entra na própria existência do homem” (trad. it. 227). Em nenhum momento o papa propõe o inferno como realidade “física” ou afirma que o tal fogo queime fisicamente. Em sua última encíclica, a Spe Salvi, sobre a Esperança Cristã, publicada em 30 de novembro de 2007, o papa volta à questão escatológica, mas seu objetivo é falar da esperança de salvação e não de uma possível condenação, embora real, quando no número 45 toque a questão do inferno, afirma simplesmente: “Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que 106 viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis desse gênero. Em tais indivíduos não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é isso que se indica com a palavra inferno”. A esse ponto, o papa simplesmente remete para o Catecismo da Igreja Católica, nn.1033-1037. Também o Catecismo retoma esta visão: a possibilidade do inferno é uma conseqüência de levar a sério a liberdade humana. O que o autor do referido artigo indica como uma versão “amainada” de João Paulo II para o inferno está ali: “é este estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus e com os bem-aventurados que se designa com a palavra ‘inferno’” (n.1033). E completa no n. 1035: “A pena principal do Inferno consiste na separação eterna de Deus, o Único em que o homem pode ter a vida e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira”. Notem que o Catecismo faz questão de evitar a palavra lugar para designar o inferno, mas fala de “estado” e, isso, justamente para evitar o mal-entendido de determinar fisicamente o inferno. Conclusão lógica: o papa não se refere ao inferno como lugar físico e nem mesmo os “sofrimentos” infernais como físicos. Aliás, nestes textos analisados, se quer toca na questão do “fogo do inferno”. O problema pode estar na compreensão da palavra real. O papa sempre afirmou que o inferno é “real”. Isso não quer dizer “físico”. Há aqui um preconceito, comum no mundo moderno, 107 que o que é real é físico. Alguns afirmarão inclusive que somente o físico é real, a ponto de real e físico se tornarem sinônimos (por exemplo: alguns tipos de materialismos sensistas). O que é plenamente aceitável, é que o inferno seja real, isso não quer dizer, físico (ao menos no sentido costumeiro que atribuímos a esta palavra). Afirmar que o inferno é real, quer dizer que ele existe, não se reduz a uma figura de linguagem. O sofrimento que esta “situação” infernal comporta, deverá ser adequada a este novo modo de existir, que pode ser dito somente com as palavras do Catecismo: uma separação eterna de Deus. Em relação ao que isto significa, não podemos afirmar nada, já que o ser humano ainda não fez a experiência de existir completamente sem Deus. Encerro esta questão com as palavras da Comissão Teológica Internacional, em um documento de 1990, chamado Algumas questões atuais de escatologia (documento que, segundo se afirma em seus inícios “se publicou com a permissão do eminentíssimo cardeal Joseph Ratzinger, presidente da Comissão”): “Todo teólogo é consciente das dificuldades que o homem, tanto em nosso tempo como em qualquer outro tempo da história, experimenta para aceitar a doutrina do Novo Testamento sobre o inferno. Por isso, deve recomendar-se muito um ânimo aberto à sóbria doutrina do evangelho tanto para expô-la como para crê-la. Satisfeitos com essa sobriedade, devemos evitar a tentativa de determinar, de maneira concreta, os caminhos pelos quais podem conciliar-se a infinita bondade de Deus e a verdadeira liberdade humana. A Igreja leva a sério a liberdade humana e a Misericórdia divina que tem concedido a 108 liberdade ao homem, como condição para obter a salvação. Quando a Igreja reza pela salvação de todos, na realidade está pedindo pela conversão de todos os homens que vivem. Deus ‘quer que todos os homens se salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm 2,4). A Igreja creu sempre que esta vontade salvífica universal de Deus tem, de fato, uma ampla eficácia. A Igreja nunca declarou a condenação de alguma pessoa em concreto. Mas porque o inferno é uma verdadeira possibilidade real para cada homem, não é lícito – ainda que se esqueça hoje às vezes na pregação das exéquias – pressupor uma espécie de automatismo da salvação. Por isto, com respeito a esta doutrina - é absolutamente necessário fazer próprias as palavras de Paulo: ‘Ó profundeza da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Quão insondáveis são os seus julgamentos e impenetráveis os seus caminhos!’ (Rom 11,33)”88. Comisión Teológica Internacional, Documentos 1969-1996. Veinticinco años de servicio a la teologia de la Iglesia. Madri: BAC, 1998, p.494-495. 88 109 13. CÉU E INFERNO Durante o mês de agosto deste ano, motivados pelo eclipse lunar, muito se falou em fim do mundo. Afinal, mais um final de milênio se aproxima! Há mesmo quem tenha marcado data para este acontecimento (Miranda Leal): entre o Natal e o Novo. A onda de furacões, maremotos e terremotos, têm incentivado a imaginação dos leitores apocalípticos da bíblia. Diante destes fatos, um pronunciamento do papa João Paulo II causou estranheza à imprensa, que o divulgou como a mais recente e bombástica afirmação escatológica: o céu e o inferno não são lugares físicos! A “novidade” desta afirmação ficou por conta da ignorância teológica da própria imprensa. É evidente que sendo o céu e o inferno referidos ao espírito e, portanto, ao imaterial, não podem ser um lugar físico, mas uma “condição”. Aliás, tudo o que falarmos ou escrevemos sobre esta condição pós-morte é muito impreciso e relativo. Antes de mais nada, porque nossa linguagem e experiência é sempre circunstancial (refere-se a um espaço e tempo); e pela própria ausência de uma experiência “direta” do além. O que afirmamos será sempre “relativo” à nossa experiência terrena (e, portanto, física). Embora isso não deva nos impossibilitar de estabelecer – ainda que muito imperfeitamente – algum discurso sobre o espiritual e o 110 escatológico. evangelhos. Nossa fonte maior serão sempre os O que chamamos de céu e inferno não são lugares físicos mas condições de “felicidade” ou “infelicidade”. E felicidade aqui significa existência plenificada pela presença da Santíssima Trindade. Em Jesus Ressuscitado é toda a humanidade que ressuscita! “Infelicidade” é a incapacidade deliberada de gozar desta felicidade. Vão longe os anos em que a Igreja preocupava-se em saber como o fogo, que é um elemento físico, poderia queimar uma alma que é espiritual! Possivelmente este recurso retórico ameaçador possa ter sido muito usado, mas não faz mais sentido chamá-lo em causa hoje. A respeito do inferno (e consequentemente do diabo), que parece estar ganhando “ibope” hoje em dia, é preciso que nos lembremos sempre de ao menos dois princípios: * Nossa fé é primeiramente voltada para Deus Trino. Ele sim é onipotente, onipresente e onisciente. Portanto, também nosso discurso e nossa evangelização deverão falar primeiramente da bondade de Deus e não do diabo! Seria um grave equívoco pautar nossa fé e nosso discurso não prioritariamente no amor de Deus mas na ameaça aterradora do diabo; * Que o inferno existe é uma verdade de nossa fé. Mas ele deve ser interpretado como uma exceção e não regra. Do contrário o projeto salvífico do Pai e a morte do Filho seriam em vão. Além do que, é dever cristão desejar e rezar para que todos se salvem, inclusive os “inimigos”. Isto 111 é conseqüência do mandamento do amor de Jesus. Um teólogo – von Balthasar – dizia que: por verdade de fé devese afirmar que o inferno exista; mas por dever cristão devese desejar que esteja vazio! 112 113 14. O PURGATÓRIO O purgatório é um tema complexo e delicado. A Igreja, oficialmente, disse pouco sobre ele, sendo sóbrias suas definições, principalmente em documentos conciliares. Mas a imaginação popular e a iconografia (arte de representar por meio de imagem, gravura, pintura, etc) produziram muito e na maioria das vezes, distorcendo seu fundo de verdade. Esta verdade irrenunciável que expressamos com o termo purgatório, é o convite para a comunhão plena com Deus que Ele próprio nos faz e ao mesmo tempo nossa consciência de indignidade, o que exige uma purificação e uma capacitação para isso. O purgatório expressa, portanto, nossa experiência histórica. A de homens e mulheres que se sabem pecadores, mas ao mesmo tempo, imbuídos do desejo de fidelidade ao Evangelho e da vivência do amor aos irmãos, esperançosos da promessa de vida eterna e da misericórdia do Pai. Somos convidados a viver na santidade. Ser santo, significa viver em plena comunhão com Deus e com os irmãos. Bento XVI, em sua encíclica Spes Salvi, os explica assim: “... pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar inteiramente por Deus e, consequentemente, estão totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja 114 chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já são” (n.45). Sabemos o quanto isso é difícil, embora creiamos não ser impossível. Mas o contrário também é possível: “pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa história deixam entrever, de forma assustadora, perfis desse gênero. Em tais indivíduos não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é isso que se indica com a palavra inferno” (n.45). Nem puros suficientemente nem completamente maldosos. O papa continua: “mas, segundo a nossa experiência, nem um nem outro são o caso normal da existência humana. Na maioria dos homens – como podemos supor – perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, ela é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda abjeção e continua presente na alma” (n.46). Embora o purgatório pareça ser uma exigência de nossa experiência cotidiana, não é um fato diretamente revelado. Em outras palavras, não encontramos na Bíblia uma indicação precisa e direta daquilo que chamamos purgatório. O que fez com que Lutero, em sua separação da Igreja Católica, o negasse categoricamente. Não obstante, 115 não devemos nos esquecer de todo contexto sócio-cultural e religioso no qual ele vivenciou essa discussão, contexto certamente de muito abuso e afastamento da sã doutrina. Encontramos, no entanto, na Palavra de Deus, indicações que podem indiretamente fundamentar a realidade que chamamos purgatório. A primeira delas é a oração pelos mortos, prática presente no judaísmo antigo e aceita pelos cristãos com naturalidade. Uma indicação privilegiada encontramos no Segundo livro dos Macabeus 12,38-45 (do primeiro século antes de Cristo), quando Judas faz oferenda pelos soldados mortos em guerra, culpados por idolatria. Uma segunda indicação, agora do Novo Testamento, pode ser da Primeira Carta aos Coríntios, onde São Paulo nos diz que nossa existência, edificada sobre o Cristo como fundamento, será testada como obra que passa pelo fogo (3, 12-15). O papa nos explica assim este texto paulino: “Alguns teólogos recentes são do parecer que o fogo que simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e Salvador. O encontro com ele é o ato decisivo do Juízo. Ante seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor desse encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração, cura-nos por meio de uma transformação certamente dolorosa ‘como pelo fogo’. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do 116 seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo, totalmente de Deus” (n.46). Poderíamos lembrar ainda aqui: 1Cor 15,29 e 2Tm 1,16-18. A prática da oração pelos mortos na Igreja, desde seus inícios, é largamente testemunhada, principalmente na liturgia eucarística, como o atestam Tertuliano, Santo Éfrem e Cirilo de Jerusalém. Foi a partir do século XII que a doutrina sobre o purgatório começou a criar maiores dificuldades. A palavra, que até então vinha sendo usada como um adjetivo, ou seja, uma qualificação de uma outra realidade, como no caso de “fogo purificador” (do latim ignis purgatorius, como aparece nos escritos de São Cipriano), passar a ser utilizada como substantivo, ou seja, indicando uma realidade em si mesma, assumindo o sentido de um “lugar” onde as almas ainda não completamente puras se purificariam, expiando suas culpas. Essa interpretação também possibilitou falar de um “tempo” de purgatório. E a “pedagogia do medo” fez com que as imagens criadas para explicar o purgatório dessem asa à fantasia, descrevendo-o como um lugar terrível e tempo de sofrimento inimaginável, a ponto de logo alguns o interpretarem como um inferno temporário. Por essa época, vários concílios se ocuparam do tema do purgatório. A doutrina definitiva foi estabelecida no Concílio de Florença (Bula Laetentur Caeli, 6 de julho de 1439, DS 1304). A primeira conclusão foi não poder se falar do purgatório como de um lugar e nem de um tempo, mas como um estado, indicando com isso uma “situação”, aquela de purificação, expressa pela imagem do encontro da pessoa com Cristo. Escrevendo sobre isso, interpretando a imagem do fogo como o próprio Cristo, que 117 simultaneamente queima e salva (conforme a imagem de Paulo em 1Cor 3,12-15), o papa utiliza a palavra “momento”, mas não sem uma ulterior explicação: “No momento do Juízo, experimentamos e acolhemos esse prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo. O ‘momento’ transformador desse encontro escapa à medição terrena: é tempo do coração, tempo da ‘passagem’ à comunhão com Deus no Corpo de Cristo” (n.47). Em segundo lugar, a Igreja definiu que o purgatório não pode ser visto apenas como uma “capacitação” para Deus, mas tem realmente um caráter penal (expiatório, ou seja, de castigo), daí podermos falar das “penas do purgatório”. Em troca, o concílio não menciona quais sejam estas penas, deixando fora intencionalmente o fogo, tão explorado pela religiosidade popular. E por último, a ajuda que os sufrágios, isto é, apoio que os vivos prestam aos defuntos neste estado. Assim define o Concílio de Florença: “para que recebam um alívio dessas penas ajudam-nos os sufrágios dos fiéis viventes, como o sacrifício da missa, as orações, as esmolas e as outras práticas de piedade que os fiéis costumam oferecer pelos outros fiéis, segundo as disposições da Igreja” (DS 1304). O papa comenta assim essa última indicação: “O fato de que o amor possa chegar até o além, que seja possível um mútuo dar e receber, permanecendo ligados uns aos outros por vínculos de afeto para além das fronteiras da morte, constituiu uma convicção fundamental do cristianismo ao longo dos séculos e ainda hoje permanece uma experiência reconfortante (...) Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. 118 Ninguém se salva sozinho. A vida dos outros continuamente entra na minha existência: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem. Desse modo, a minha intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estranha, uma coisa exterior, nem mesmo após a morte. Na trama do ser, o meu agradecimento a ele, a minha oração por ele pode significar uma pequena etapa de purificação. E, para isso, não é preciso converter o tempo terreno no tempo de Deus: na comunhão das almas fica superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor um elemento importante do conceito cristão de esperança. A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim” (n.48). 119 15. PODEMOS REZAR PELOS MORTOS? Deus criou o homem como ser social. Não quis que Adão ficasse só. Criou também Eva e deu-lhes o poder de gerar filhos. Assim, a Bíblia nos narra o surgimento do homem, da família e da sociedade humana. Os seres humanos estão ligados por sentimentos. Lembro neste momento três: o amor, que os une e os tornam carinhosos e preocupados entre si; a indiferença, que é o sentimento neutro frente ao outro, nem a sua presença nem sua ausência são significativos emocionalmente; por fim, o ódio, que é exatamente o contrário do amor, é um sentimento negativo, ao invés de preservar o outro, quer sua destruição. No plano de Deus, deveria existir apenas o amor, em suas muitas variações: amor de amizade, amor de filiação, amor maternal e paternal, amor erótico ou conjugal, etc. O desequilíbrio instituído pelo homem, o que nós chamamos de pecado original, quebrou a harmonia. Os homens se tornaram um misto de amor e ódio. Por isso, a mensagem redentora de Jesus é amor e perdão. Em todo caso, o homem é um ser comunitário. Está em comunhão. Ainda que se apresente muitas vezes em desunião, ninguém é puramente ódio. Nesta vida em comum, nos sentimos responsáveis uns pelos outros, principalmente por aqueles que mais amamos. Expressamos este sentimento com gestos e símbolos: dar uma flor ou um beijo pode assumir significados que mudem inteiramente uma vida. Algo, em si mesmo muito banal, pode adquirir, no plano simbólico da humanidade, um sentido profundo. 120 Basta lembrar que todo o planeta se une em torno de uma tocha de fogo, que passa de mão em mão, pelos continentes, com toda a atenção dos meios de comunicação mais respeitados, por ocasião das olimpíadas. É claro, não é pela tocha de fogo e sim pelo que ela representa, a olimpíada. E a importância da Olimpíada não está apenas na competição, mas em seu significado de integração de toda a humanidade. Nós cristãos acreditamos que vivemos em comunhão mesmo com aqueles que já morreram. Existe entre nós um sentimento que continua nos ligando a eles, possivelmente mais do que com aqueles que ainda virão a existir e, com a emergente consciência ecológica, nós temos nos sentido responsáveis por aqueles que ainda virão. Este sentimento de comunhão para com os mortos, nos faz cuidar de seus sepulcros, adorná-los. Levamos flores e velas. Não porque precisem, mas porque este é um modo humano de vivenciar o sentimento de amor e comunhão. Como quem carrega a tocha olímpica sabe que a humanidade não depende daquele mísero foguinho, nem para se aquecer nem para se iluminar. Quem crítica o fato de se pôr flores e velas nos túmulos ou, como em algumas culturas, alimentos, desconhece a profundidade do sentimento humano. Nós cristãos católicos chamamos esta comunhão tão profunda de Comunhão dos Santos, ou seja, de todos aqueles que conheceram e vivenciaram ou vivenciam ainda, o amor redentor de Cristo. Nós que estivemos unidos em vida, não nos separaremos na morte. Afinal, quem poderá nos separar: tribulações, morte? Nos mantemos unidos: nós que ainda peregrinamos, àqueles que já existem na glória 121 do Pai e os que se purificam. Por isso podemos levar flores e velas aos túmulos, não porque aqueles que foram ali sepultados precisem, mas porque assim realizamos emocionalmente essa comunhão como seres humanos e históricos. Há um sentimento vital que une os que já viveram, nós que vivemos e os que ainda viverão: o amor. Amor que se realiza a seu modo em cada caso. Se podemos cuidar dos túmulos, embelezá-los e enfeitá-los, porque não poderíamos fazer também uma prece por aqueles que morreram? Ainda que não fosse de nenhuma utilidade para eles, poder unir-se a Deus em prece por eles, já seria algo maravilhoso. Mas cremos que nossa oração é de valia também para os que já morreram. Na Bíblia encontramos testemunhos que nos apóiam. Embora sejam testemunhos de difícil interpretação e muito discutíveis, vale a pena lembrá-los. No Antigo Testamento esses testemunhos só aparecem tardiamente, porque dependem do amadurecimento da fé na ressurreição pessoal. Vamos encontrar um primeiro testemunho explícito em 2Mac 12, 44-45: “Se não tivesse esperança na ressurreição dos que tinham morrido na batalha, seria coisa inútil e tola rezar pelos mortos. Mas, considerando que existe uma bela recompensa guardada para aqueles que são fiéis até à morte, então esse é um pensamento santo e piedoso. Por isso, mandou oferecer um sacrifício pelo pecado dos que tinham morrido, para que fossem liberados do pecado”. 122 No Novo Testamento encontramos um testemunho interessante em Paulo, que fala em oferecer o batismo pelos mortos, talvez como nós que oferecemos a celebração eucarística: “Se não fosse assim, o que ganhariam aqueles que se fazem batizar em favor dos mortos? Se os mortos não ressuscitam, porque se fazer batizar em favor deles?” (1Cor 15, 29). E o próprio Paulo reza por Onesíforo e sua família: “Que o Senhor lhe conceda misericórdia junto a Deus naquele dia” (2Tm 1, 18). A tradição cristã de rezar pelos mortos, desde os inícios do cristianismo, é riquíssima. Tanto de orações litúrgicas públicas quanto privadas. Indicações nesse sentido foram encontradas, por exemplo, pela arqueologia nas catacumbas ou nos cemitérios cristãos. O exemplo mais conhecido é a celebre Inscrição de Abércio, no qual conta a vida de Abércio, bispo de Hierápolis, do segundo século, descoberto em 1883, pelo arqueólogo protestante W. Ramsay, nas proximidades de Hierápolis, na Frigia e conservada agora no museu de Latrão, no qual em seu final se lê: “quem compreende e está de acordo com essas coisas, rogue por Abércio”. Tertuliano, que nasceu em Cartago pelo ano 155 e morreu por volta de 220, advogado convertido ao cristianismo, nos dá muitos testemunhos da prática cristã de rezar pelos mortos. Escreve em De Corona III, 3: recomendando a tradição entre os cristãos de “oferecer pelas almas dos defuntos sacrifícios no dia de seu aniversário”. E em De Monogamia X, 4 escreve que “a mulher viúva reza pela alma de seu marido e pede para ele a paz eterna, com o fim de estar com ele desde o primeiro momento da ressurreição e lhe oferece sacrifícios no 123 aniversario de sua morte”. Santo Efrém, do século IV, pede aos irmãos que rezem por ele no trigésimo dia de sua morte. Também no século IV temos o testemunho de São Cirilo de Jerusalém que em sua Catequese (23,9-10) defende a utilidade da oração pelos defuntos e do sacrifício eucarístico oferecido pelos mortos. Esta prática da Igreja de rezar pelos mortos e oferecer a celebração eucarística desde seus inícios, permeiam nossas próprias Orações Eucarísticas. Lembremos algumas: "Lembrai-vos também dos que morreram na paz do vosso Cristo e de todos os mortos dos quais só vós conheceis a fé". (Or. Euc. IV); "Lembrai-vos também dos nossos irmãos e irmãs que morreram na esperança da ressurreição e de todos os que partiram desta vida: acolhei-os junto a vós na luz da vossa face." (Or. Euc. II); "A todos os que chamastes para a outra vida na vossa amizade, e aos marcados com o sinal da fé, abrindo os vossos braços, acolhei-os. Que vivam para sempre bem felizes no reino que para todos preparastes." (Or. Euc. V). Podemos, portanto, levar flores e velas aos túmulos dos entes queridos, rezar por eles e oferecer o sacrifício eucarístico. Desejando, enquanto peregrinamos, que todos possamos nos unir um dia na morada do Pai, preparada para cada um de nós por Jesus. 124 125 16. A ORAÇÃO PELOS MORTOS E O SENTIDO DA VIDA Nós católicos mantemos a prática de rezar pelos mortos. Afirmo que mantemos, porque esta já era uma prática judaica (veja-se, por exemplo: 2Mac 12,40-45) e que os primeiros cristãos sempre cultivaram (1Cor 15,29: fala de oferecer o batismo “em favor dos mortos”). No mês de novembro ela se acentua pela comemoração de finados. Juntamente com a oração pelos mortos faz-se mais forte a pergunta pelo significado da morte. A morte é um mistério que permeia a existência humana. É um mistério porque por mais que saibamos hoje sobre o fato que chamamos morte (do ponto de vista da biologia, medicina, filosofia etc.), tudo o que sabemos refere-se à morte do outro. Sabemos que todos morreremos, observamos e estudamos como os outros morrem, mas nada sabemos do nosso próprio morrer. E, no entanto, esta é uma certeza. A morte é um fato universal: atinge a todos. Nos iguala a todos: frente à morte desaparecem todas as diferenças culturais, raciais, econômicas, intelectuais, etc. Quando se procura diferenciar o ser humano dos outros seres, é comum indicar justamente a consciência da própria morte. Até onde podemos constatar, apenas o homem sabe que deverá morrer. Em outras palavras, apenas o homem vive consciente da própria morte. A envolve em seu mundo simbólico e ritual. Desde o aparecimento do homem na face na terra é possível encontrar vestígios de seu 126 cuidado pelos mortos. Desde as maneiras mais rudimentares de sepultamento ou cremação como as mais sofisticadas como o embalsamento. Túmulos muito precários ou pirâmides. Frente ao fenômeno da morte podemos encontrar atitudes diversas: desde o desespero (para Sartre, filósofo francês do século XX, é “absurdo que tenhamos que morrer” e isso, porque a morte significa o nada da nãoexistência), como a atitude confiante de Sócrates (filósofo ateniense que viveu no século IV antes de Cristo, que condenado à morte, antes de beber o veneno, discursa sobre seu convencimento da imortalidade). Ou mesmo da fé na imortalidade como a professada por Sêneca (pensador nascido em Córdoba, Espanha, no I século e teve uma intensa atividade em Roma, sendo condenado por Nero ao suicídio em 65, em uma Carta a Lucílio, escreveu: “Este dia que temes como o último é o do nascimento para a eternidade”). O fato é que, frente à morte do outro e da possibilidade da própria morte, ninguém pode ficar indiferente. Esta é a questão central da existência. Justamente porque é ela quem confere sentido à existência. Muito ilustrativo pode ser a expressão deste dilema, como foi formulado por Albert Camus, um filósofo que nasceu na Argélia e em 1957 recebeu o prêmio Nobel por seus livros. Escreveu e refletiu sobre o suicídio, se vale à pena viver e, no entanto, morreu em 1960 num acidente de automóvel: “Só existe um problema filosófico realmente sério: o suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser vivida é responder a pergunta fundamental da 127 filosofia (...) Se eu me pergunto por que julgo que tal questão é mais premente que tal outra, respondo que é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi ninguém morrer por causa do argumento ontológico. Galileu, que sustentava uma verdade científica importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido, fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira. É profundamente indiferente saber qual dos dois, a terra ou o sol, gira em torno do outro. Em suma, é uma futilidade. Mas vejo, em contrapartida, que muitas pessoas morrem porque consideram que a vida não vale a pena ser vivida. Vejo outros que, paradoxalmente, deixam-se matar pelas idéias ou ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se denomina razão de viver é ao mesmo tempo uma excelente razão de morrer). Julgo, então, que o sentido da vida é a mais importante das perguntas”89. Nós cristãos católicos temos em Cristo nossa razão tanto do existir quanto do morrer. Pela sua ressurreição, Cristo venceu definitivamente o poder da morte e encheu de sentido nossa esperança. “Se permanecermos completamente unidos a Cristo com morte semelhante à dele, também permaneceremos com ressurreição semelhante à dele” (Rm 6,5). Isto significa que cremos que a morte não nos extingue por completo (como queria Sartre), mas também não cremos em uma imortalidade que é propriedade CAMUS, A., O Mito de Sísifo. 2ªed. Rio de Janeiro: Record, 2005, p.17-18. 89 128 intrínseca da alma (como queria Sêneca reproduzindo Platão). Cremos sim que a vida é comunhão com Deus que nos criou por amor, por amor nos sustenta na existência e por amor nos concede a imortalidade (ou seja, “vida eterna”). A imortalidade é então dom de Deus, não poder humano. Por isso, quem se afasta de Deus se afasta da vida (aquilo que chamamos de inferno poderá ser chamado, portanto, de “morte eterna”). Existimos porque Deus nos ama, eis a verdade central de nossa existência, proclamada desde nossa fé. Vale a pena ler isto no livro da Sabedoria: “Tu amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que criaste. Se odiasses alguma coisa, não a terias criado. De que modo poderia alguma coisa subsistir, se tu não a quisesses? Como se poderia conservar alguma coisa se tu não a tivesses chamado à existência? Tu, porém, poupas todas as coisas, porque todas pertencem a ti, Senhor, o amigo da vida” (11,24-26). O sentido de nossa existência é, portanto, travar um diálogo amoroso com Deus e com o próximo. Diante desta verdade, até a morte adquire sentido. 129 BIBLIOGRAFIA BETIATO, M. A., Escatologia cristã: entre ameaças e a esperança. Petrópolis: Vozes, 2006. BLANK, R., Escatologia da Pessoa. Vida, morte e ressurreição. São Paulo: Paulus, 2000 BOVATI, P., Juízo. 2. Antigo Testamento. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, pp.961-963. COLLANTES, J.(org., introd. e notas) A fé católica. Documentos do Magistério da Igreja: das origens aos nossos dias. Rio de Janeiro: Lumen Christi; Anápolis: Diocese de Anápolis, 2003. COMMISSIO THEOLOGICA INTERNATIONALIS, De quibusdam quaestionibus actualibus circa eschatologiam. Gregorianum 73 (1992) 395-435. 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Luiz Antonio BELINI, brasileiro, nascido em Londrina-Pr, em 22 de Junho de 1963, de formação escolar jesuíta, onde teve oportunidade de ler os grandes clássicos da literatura brasileira. Licenciado em Filosofia no Instituto Filosófico N. S. da Glória de Maringá-Pr, 1983-1985; e em Teologia no Instituto Teológico Paulo VI de Londrina-Pr, 1986-1989. Mestre em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma, 1993-1995, com a monografia A justiça na República de Platão. Atualmente ensina Metafísica e Antropologia no Curso de Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em Maringá-Pr; Suas áreas de interesse são a História da Filosofia grega e a Antropologia Filosófica e Escatologia. A originalidade do seu pensamento pode ser constatada a partir dos seus vários artigos publicados. 134 Publicou ainda pela Editora Humanitas Vivens Ltda, a obra A Justiça na República de Platão, Sarandi (PR) 2009, 100 p., ISBN: 978-85-61837-11-2. 135 A morte é um mistério que permeia a existência humana. É um mistério porque por mais que saibamos hoje sobre o fato que chamamos morte (do ponto de vista da biologia, medicina, filosofia etc.), tudo o que sabemos refere-se à morte do outro. Sabemos que todos morreremos, observamos e estudamos como os outros morrem, mas nada sabemos do nosso próprio morrer. E, no entanto, esta é uma certeza. A morte é um fato universal: atinge a todos. Nos iguala a todos: frente à morte desaparecem todas as diferenças culturais, raciais, econômicas, intelectuais, etc. Frente ao fenômeno da morte podemos encontrar atitudes diversas: desde o desespero (para Sartre, filósofo francês do século XX, é “absurdo que tenhamos que morrer” e isso, porque a morte significa o nada da nãoexistência), como a atitude confiante de Sócrates (filósofo ateniense que viveu no século IV antes de Cristo, que condenado à morte, antes de beber o veneno, discursa sobre seu convencimento da imortalidade). Ou mesmo da fé na imortalidade como a professada por Sêneca (pensador nascido em Córdoba, Espanha, no I século e teve uma intensa atividade em Roma, sendo condenado por Nero ao suicídio em 65, em uma Carta a Lucílio, escreveu: “Este dia que temes como o último é o do nascimento para a eternidade”). 136