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temas de escatologia

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TEMAS DE ESCATOLOGIA
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Luiz Antonio BELINI
TEMAS DE ESCATOLOGIA
Humanitas Vivens Ltda
Uma Instituição a serviço da Vida!
Sarandi (PR) 2009
5
Copyright 2009 by Humanitas Vivens Ltda
EDITOR:
Prof. Dr. José Francisco de Assis DIAS
CONSELHO EDITORIAL:
Prof. Ms. José Aparecido PEREIRA
Prof. Ms. Leomar Antônio MONTAGNA
Prof. Gunnar Gabriel ZABALA MELGAR
REVISÃO GERAL:
André Luis Sena dos SANTOS
Anna Ligia CORDEIRO BOTTOS
Paulo Cezar FERREIRA
CAPA, DIAGRAMAÇÃO E DESIGN:
Agnaldo Jorge MARTINS
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
B431t
Belini, Luiz Antonio
Temas de escatologia [recurso eletrônico] /
Luiz Antonio
Belini. -- Sarandi, Pr : Humanitas Vivens,
2009.
ISBN: 978-85-61837-12-9
Modo de acesso:
<www.humanitasvivens.com.br>.
1. Escatologia. 2. Teologia. 3. História. 4.
Filosofia.
CDD 21.ed. 236.9
Bibliotecária: Ivani Baptista CRB-9/331
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responsabilidade exclusiva de seus autores, não representando o
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Fone: (44) 3042-2233
6
SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO .............................................................09
1. INTRODUÇÃO À ESCATOLOGIA .............................11
2. DO FUTURO UTÓPICO À ESPERANÇA
ESCATOLÓGICA ...............................................................19
21
2.1 Tempo humano e futuro do homem .................................
2.2 Crítica à utopia desde a escatologia .................................23
2.3 Crítica à escatologia desde a utopia .................................26
2.4 Esperança e escatologia ...................................................32
3. A MORTE ........................................................................35
35
3.1 Morte e escatologia na Bíblia ...........................................
3.2 Reflexões teológicas .......................................................40
3.3 Teologia da morte ............................................................43
4. MORTE E SENTIDO DA VIDA ...................................47
4.1 Questão complementar:
morte-imortalidade-ressurreição ............................................50
4.1.1 Ressurreição versus imortalidade? ...............................50
4.1.2 Imortalidade versus ressurreição? ................................52
4.1.3 Alma separada em um estado intermediário? ..............53
5. RESSURREIÇÃO ...........................................................55
65
6. RESSURREIÇÃO DA CARNE ......................................
7. O CATÓLICO PODE ACREDITAR
73
EM REENCARNAÇÃO? ....................................................
7
8. PARUSIA ..........................................................................81
8.1 Vem Senhor! .................................................................... 81
8.2 (...) de novo há de vir em sua glória,
para julgar os vivos e os mortos” .......................................... 86
9. FIM DO MUNDO:
A PLENITUDE DA CRIAÇÃO ..........................................91
10. E O MUNDO NÃO ACABOU! .....................................97
11. SERÁ O CÉU UM LUGAR
EM MEIO AS NUVENS? ....................................................99
105
12. O INFERNO É REAL, MAS NÃO FÍSICO .................
13. CÉU E INFERNO ..........................................................111
115
14. O PURGATÓRIO ...........................................................
121
15. PODEMOS REZAR PELOS MORTOS? ....................
16. A ORAÇÃO PELOS MORTOS E
127
O SENTIDO DA VIDA ........................................................
131
BIBLIOGRAFIA ..................................................................
8
APRESENTAÇÃO
Este texto foi elaborado ao longo de alguns anos,
conforme as necessidades do autor e publicados em um
jornal diocesano.
São artigos independentes, o que justifica a repetição
constante de determinadas idéias. O autor preferiu deixar em
seu estado original.
O Autor é devedor, sobretudo, a um teólogo espanhol
falecido em 1996, Juan Luis Ruiz de la Pena. Seus escritos
influenciaram suas (do Autor) formação teológica, eis o
motivo das constantes referências.
9
10
1. INTRODUÇÃO À ESCATOLOGIA
A situação de hoje frente à temática escatológica é um
tanto ambígua. Desde meados do século XX temos assistido
a uma preocupação crescente com esta problemática e,
conseqüentemente, com uma publicação expressiva. Por
outro lado, não parece que estejamos muito melhores, desde
um ponto de vista geral, preparados, existencialmente, para
enfrentar suas questões básicas. Já o editorial da revista
Concilium, em 1969, fazia tal constatação:
“Muitos sacerdotes encontram hoje dificuldade de
falar em assuntos escatológicos. Todavia, os
documentos oficiais do magistério, particularmente
os textos do Vaticano II, acentuam a dimensão
escatológica da nossa salvação. Donde, portanto,
este hiato entre o ensino oficial e a prática
ordinária? A razão está provavelmente em que, na
sua pregação de todos os dias, os sacerdotes
consideram como tarefa indispensável atenderem o
mais possível à maneira como o comum dos fiéis
experimenta a sua existência concreta. Pareceria
bastante difícil falar de assuntos escatológicos de
maneira que a gente de hoje, vivendo numa sociedade
desmitizada, os pudesse inserir na sua vida e
experiência diárias. É como se tivéssemos perdido a
terminologia, as ‘categorias’, que nos tornariam
11
aptos a falar também da dimensão ‘supramundana’
da nossa salvação”1.
E continua essa constatação alertando agora para o
problema pastoral aqui envolvido:
“Porque a escatologia se tem conservado há muito
tempo como uma espécie de região subdesenvolvida
no pensamento eclesiástico, a nossa geração precisa
de uma intensa investigação inspirada pela fé,
particularmente neste campo. Mas não devem ficar
limitadas aos teólogos profissionais esta investigação
e esta nova reflexão. Também os pastores, que estão
em contacto direto com o povo, devem dar o seu
contributo. Se o não fizerem, verificarão – como
acontece já com um número muito razoável – haver
1
SCHILLEBEECKX, E.; WILLEMS, B., A
Escatologia: perspectiva cheia de esperança da Vida Cristã
(Editorial). Concilium 1969/1, p.5. Embora tenham passado
algumas décadas, parece não ter mudado muito,
especialmente quanto à fé popular, como constata
BETIATO, M. A., Escatologia cristã: entre ameaças e a
esperança. Petrópolis: Vozes, 2006, p.21: “Existe uma larga
diferença entre o discurso escatológico na teologia e a
religiosidade popular. (...) O fato é que o nosso povo, à sua
maneira, vive e respira escatologia no cotidiano da vida. A
reflexão escatológica tem feito a diferença no inconsciente
coletivo da nossa gente. Porém, a teologia popular é uma
teologia produzida a partir do senso comum e na maioria
das vezes viciada, distorcida, carregada de mitos, que
passou de pai para filho nos moldes do discurso teológico da
Idade Média”.
12
um setor importante da história da salvação acerca
do qual dificilmente poderão falar”2.
É, portanto, urgente e necessário uma reflexão
escatológica. Mas deve levar em conta toda circunstância do
mundo moderno. É para o homem de hoje que queremos
falar. E significativamente. Comecemos com um
esclarecimento sobre o próprio termo e conteúdo da
escatologia.
Escatologia indica, literalmente, doutrina das coisas
últimas (eschaton). Em outras palavras: doutrina daquilo
que se espera aconteça aos homens e ao cosmo em seu
término, cronológico e ontológico, os levando à sua situação
final e definitiva, elaborando teologicamente a esperança
cristã. Embora esta temática seja antiqüíssima, o termo
apareceu apenas no século XVII, se tornando corrente
apenas após Schleiermacher3. Havia o costume de se indicar
este tratado teológico de De Novissimis, ou seja, Das coisas
ultimas, e sua sistematização aconteceu na história da
SCHILLEBEECKX, E.; WILLEMS, B., A Escatologia:
perspectiva cheia de esperança da Vida Cristã (Editorial). Concilium
1969/1, p.6.
3
SCHÜTZ, C., Fundamentação geral da escatologia. Em:
FEINER, J.; LOEHRER, M. (Editores), Mysterium Salutis, V/3: A
Escatologia. Petrópolis: Vozes, 1985, p.12: “O próprio conceito
‘escatologia’ é de origem relativamente recente. Aparece pela primeira
vez no Systema locorum theologicorum de A. Calov (+1686); o
volume XII da obra aborda sob o título Eschatologia sacra a morte, a
ressurreição, o juízo e a definitiva consumação do mundo. Somente
com Schleiermacher, todavia, é que ele assume um sentido bem
preciso e vai entrar no uso mais geral”.
2
13
teologia bem tarde4. A origem do termo nos é apresentado
por Schütz:
“O texto bíblico a que geralmente se recorre para
ilustrar o conceito ‘escatologia’ é Eclo 7,36 (40 da
Vulgata): ‘Em todas as tuas ações lembra-te do teu
fim e jamais pecarás!’. Vulgata: ‘In omnibus
operibus tuis memorare novíssima tua et in aeternum
non peccabis’. Aqui o ‘novissima tua’ traduz o grego
‘ta éschata’. Antigamentese tentava legitimar a
necessidade e a utilidade de um especial tratado
teológico, o De Novissimis ou De Extremis, etc.,
recorrendo justamente a este passo”5.
O conhecimento que as pessoas possuem a este
respeito é, geralmente, aquilo que aprenderam na catequese,
que poderá assim ser sintetizado:
“Na morte, a alma se separa do corpo e entra numa
nova dimensão, chamada ETERNIDADE. Nesta nova
4
GRESHAKE, G., Escatologia. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.),
Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004,
pp.620. Em relação à sua situação tardia basta atentar para a
afirmação, no contexto da discussão sobre o juízo de HÜNERMANN,
P., Juízo. 3. Novo Testamento e teologia da história. Em: LACOSTE,
J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia. São Paulo: Paulinas;
Loyola, 2004, pp.965: “A teologia da alta Idade Média até o século
XII, inclusive, não apresenta ainda uma discussão sistemática do juízo
divino no quadro dos eschata. Esta só é tornada possível no s.XIII,
com a elaboração de uma antropologia dotada de um aparato
conceitual estruturado”.
5
SCHÜTZ, C., Fundamentação geral da escatologia. Em:
FEINER, J.; LOEHRER, M. (Editores), Mysterium Salutis, V/3: A
Escatologia. Petrópolis: Vozes, 1985, p.11.
14
dimensão, a alma da pessoa está sendo JULGADA
por Deus no assim chamado JUÍZO PARTICULAR.
Conforme o resultado deste Juízo, a alma ou entra
diretamente no inferno, ou, depois de ter passado
talvez certo tempo no PURGATÓRIO, entra no céu.
Ela aguarda, numa situação de felicidade ou de
tormento, a chegada do JUÍZO FINAL.
Quando o momento deste segundo juízo chegar,
acontecerá também a RESSURREIÇÃO DO CORPO
e, de novo conforme o resultado dos dois
julgamentos, a alma humana, agora reunida com o
seu corpo, passará para toda a eternidade numa
situação de felicidade total, chamada CÉU, ou de
tormento inimaginável, chamado INFERNO”6
Aqui estão elencados os principais temas que uma
Escatologia
deve
contemplar.
Ela
organiza
sistematicamente nossa fé na salvação consumada, portanto,
se articula entre as categorias de salvação e esperança. Estes
temas, embora possam vir com terminologia diversa e numa
ordem que expressa uma intencionalidade de fundo são:
ressurreição, juízo particular e universal, retribuição, ou
seja, céu e inferno, purgatório.
No conjunto teológico, a escatologia está articulada
com as demais disciplinas: por referir-se a salvação do
homem e do cosmo, apresenta uma concepção
antropológica e cosmológica na qual se alicerça todo
discurso. Esta concepção cosmológica possui uma
intencionalidade especifica: o cosmo é criatura de Deus e,
BLANK, R., Escatologia da Pessoa. Vida, morte e
ressurreição. São Paulo: Paulus, 2000, p.75.
6
15
portanto, está veiculado no tratado da Criação. A salvação
oferecida ao homem e ao cosmo é a própria comunhão com
o Criador, comunhão experienciada7 como Graça. Mas esta
salvação nos é oferecida de modo específico no mistério da
encarnação-morte-ressurreição de Cristo. A cristologia é a
espinha dorsal da escatologia cristã.
Devemos, no entanto, sermos conscientes da
possibilidade de uma escatologia não cristã e nem mesmo
teológica. Para não decepcionarmos ninguém, seria
inclusive salutar, no mundo hodierno, intitularmos nossa
escatologia de escatologia cristã católica, visto que nesta
questão, existem divergências serias inclusive dentro do
cristianismo. Mas a salvação é uma ação trinitária, inclui,
portanto, um tratado de Deus Pai e uma pneumatologia.
A salvação não é apenas para o futuro, acontece
germinalmente no hoje da nossa história e é celebrada na
liturgia e antecipada nos sacramentos, sobretudo na
eucaristia. É evidente que uma escatologia cristã deva
fundamentar-se na Palavra de Deus e em seu
desdobramento dogmático, levando em conta a contribuição
dada pelos santos padres.
A mariologia representa um capítulo importante da
escatologia: qualquer escatologia cristã católica deverá dar
conta em sua elaboração de verdades pela Igreja
professadas, como o dogma da Assunção. A elaboração
teológica em cada período da história, levada a termo pelos
grandes teólogos, mostram a vitalidade que a atualização e
inculturação da fé atingiu, da qual não podemos ficar
7
Prefiro a palavra “experienciada” a experimentada.
16
alheios. Com esse pequeno excurso, incompleto por sinal,
quis apenas mostrar que a escatologia se inscreve no edifício
teológico e está imbricada com toda a temática teológica.
17
18
2. DO FUTURO UTÓPICO À ESPERANÇA
ESCATOLÓGICA
O discurso escatológico é inerente ao discurso
teológico. Isto porque o ser humano, em sua peculiaridade, é
estruturalmente aberto para o futuro8; e o ser cristão
8
SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca
da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1,
p.40: “Parece-me, por conseguinte, que a indagação do
futuro é um elemento ‘existencial’ na nossa condição
humana. Embora inserido no tempo e nunca fora dele, o
homem não é prisioneiro do tempo no seu crescimento
histórico: transcende o tempo a partir de dentro. Por isso não
pode ele nunca sentir-se satisfeito. Dentro desta condição
temporal, o homem tem, por conseguinte, liberdade de
alcançar uma certa abertura em face do tempo”. Um pouco
antes, o autor havia chamado a atenção para uma
preocupação crescente com o futuro do homem em sua
implicância terrena: “o conceito do ‘futuro terreno do
homem’ começa a exercer uma espécie de polaridade no
pensamento e conhecimento do homem, ao passo que no
passado – pelo menos no Ocidente – a dimensão futura da
história era quase unicamente considerada como uma
questão de finis ultimus, o fim último do homem, depois e
para além desta vida terrena. Desde a redescoberta da
verdadeira historicidade do homem como criatura do
‘tempo’ que, com base no seu passado, fixa o seu curso de
vida no presente com vista a um futuro, desde então a
escatologia é considerada como uma questão que se
encontra encarnada na existência do homem”.
19
comporta um modo específico de vivenciar o futuro: a
esperança9.
Por causa desta propensão para o futuro, o homem
sempre construiu teorias futurológicas. A teologia, contudo,
continua trabalhando com sua própria concepção de futuro.
“A recente quebra das esperanças seculares demanda uma
reflexão sobre suas causas e coloca a pergunta de como
possa afetar também à esperança escatológica cristã”10.
9
GEORGE, A., O juízo de Deus. Esboço de
interpretação de um tema escatológico. Em: Concilium
1969/1, p.9: “Do Antigo ao Novo Testamento, o Povo de
Deus vive incessantemente voltado para o futuro. É mesmo
uma das características que o distingue dos povos que o
rodeiam. Enquanto esses povos vivem num mundo fechado,
submetido ao perpetuo recomeço dos ciclos naturistas, Israel
vive na tensão da salvação que vem; e vê a sua garantia nas
intervenções de Deus ao longo do seu passado: a história
santa”. SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca
da interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1,
p.42: “Mas, segundo a Bíblia, a base da expectativa
escatológica do futuro é a certeza, na fé, de uma relação real
e atual com Deus. Esta relação real com o Deus da aliança,
que torna o passado de novo presente, não se deve sacrificar
ao primado do futuro. (...) A base da nossa esperança é, por
conseguinte, a nossa fé em Javé, que tanto no passado como
no futuro se revela como o Deus vivo da comunidade”.
10
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.4. SCHILLEBEECKX, E.;
WILLEMS, B., A Escatologia: perspectiva cheia de esperança da
Vida Cristã (Editorial). Concilium 1969/1, p.5: “Por conseguinte,
uma das questões básicas que assomam repetidas vezes ao longo dos
artigos deste número de Concilium é a de saber se o aspecto
escatológico da nossa salvação, isto é, o aspecto que diz respeito ao
20
2.1 Tempo humano e futuro do homem.
Uma das caracterizações mais comuns hoje é do
homem como um ser-no-tempo. Ou seja, o modo peculiar do
existir humano está revestido da temporalidade,
distinguindo-se do mundo infra-humano. O homem
ultrapassa a diacronia inexorável do tempo físico, o
vivenciando em suas três dimensões: passado, presente e
futuro, outorgando a este último a primazia. “O instante
genesíaco do homem não se ubíqua nem no passado nem no
presente, mas no futuro”11.
O futuro somente será futuro se apresentar dois
elementos dialeticamente referidos e harmonicamente
conjugados: continuidade e novidade. “Todo futuro
autêntico terá de conter uma certa dose de continuidade”12
que garanta a identidade, portanto, “não há projeto válido de
futuro sem recordação ativa do passado; não há utopia
concreta sem história nem esperança sem memória”13. Mas
para ser futuro deverá também comportar um elemento de
futuro último, consiste puramente em algo de ‘para além deste mundo’
ou se também tem sentido para este mundo atual. As discussões
indagadoras com os marxistas acerca da expectativa humana do futuro
tornaram a nossa presente geração de cristãos mais sensível à censura
de que a nossa pregação do além leva os fiéis a descurarem as suas
responsabilidades terrenas na esperança, por vezes pietista, de um
futuro feliz que existe algures, verticalmente acima da presente
condição”.
11
Ibidem , p.5.
12
Ibidem.
13
Ibidem, p.6.
21
novidade. Ou seja, globalmente considerando,
magnitude imprevisível, não evolutiva.
uma
“O elemento novidade, em suma, entranha o
postulado do salto qualitativo, da ruptura do
processo, e por isso mesmo, delineia a questão da
heterogeneidade de seus fatores constituintes.
Assim, pois, a validade dos modelos de futuro
elaborados pelas diversas ideologias dependerá de
sua aptidão para integrar harmonicamente os
momentos continuidade-novidade”14.
A partir destas indicações é possível avaliar as
futurologias que polarizaram o século passado, em especial
duas, de caráter secular: a fé no progresso (modelo
tecnocrático de futuro, expresso emblematicamente pelo
Círculo de Viena, no qual o futuro aparece rigorosamente
deduzível e controlável desde o presente, possibilitando
apenas uma mudança quantitativa) e a utopia neomarxista
(marcada principalmente pelo pensamento de Ernest Bloch e
seu otimismo histórico, que teve um impacto efêmero).
Em todo caso, é preciso se perguntar: em nossos dias
o espírito utópico parece ter morrido, por quê? Como isto
afeta o discurso escatológico de cunho cristão?
Entre os muitos motivos para a morte da utopia, Ruiz
de la Peña se concentra em dois: o cientificismo com seu
pensamento forte (que conferindo exclusividade ao
Ibidem, p. 6-7: “o que jaz sob este binômio é a dialética
presente-futuro; um futuro sem novidade é mera extrapolação do
presente, e um presente sem continuidade é a negação pura e simples
do futuro”.
14
22
empiricamente verificável, leva a uma eliminação do sujeito
histórico e da própria história: antropologia estrutural,
Foucault e Althusser); e a pós-modernidade com seu
pensamento débil (Vattimo: decreta também o fim da
história como processo unitário, progressivo e teleológico; o
resultado é o nihilismo).
O que se percebe é que o espírito utópico morreu pela
debilidade dos próprios pilares nos quais se assentava
(“sonho americano”, “comunismo soviético”, cientificismo):
prometeram uma felicidade e esperança imanente que ruiu
diante de suas evidentes contradições. Isto, por outro lado,
não afeta à escatologia cristã, já que esta se fundamenta em
outras bases: “a morte do pensamento utópico não leva
consigo a do pensamento escatológico; este goza de uma
certa imunidade frente ao vírus que corroeu aquele”15.
2.2 Crítica à utopia desde a escatologia.
A primeira crítica procede do modo de conceber a
temporalidade com a qual opera o pensamento utópico: é
uma temporalidade indefinida ou limitada? Quando se apóia
em uma concepção indefinida, concebendo como um
processus in infinitum, se atribui à realidade um
inacabamento crônico, com um incurável déficit ontológico.
Em geral, se adota aqui uma concepção cíclica do tempo.
Para fugir destas dificuldades, já que “o postulado
15
Ibidem, p.16.
23
teleológico, consubstancial à utopia, exige um fim, no duplo
sentido de finalidade e término”16, esta concepção é
insustentável, tanto que o próprio Bloch se vê obrigado a
tomar da Bíblia a idéia de término, mas que não aceitando
Deus, também se torna problemática.
“Assim pois, (...) uma interpretação secular da
história como processo imanente e auto-propulsor,
tem que optar entre dois esquemas de temporalidade
(limitada/ilimitada).
E
os
dois
entranham
dificuldades para uma leitura não teísta da
realidade”17.
A segunda questão posta desde a escatologia para a
utopia refere-se ao presente. Já que na utopia o que se
espera refere-se a algo que se situa exclusivamente no
futuro. O presente é irremediável. Esta polarização sobre o
ainda-não é inevitável quando a salvação se constrói na
história.
“A escatologia considera, em troca, que não há que
esperar ao final da história para alcançar a
salvação: tudo já é kairós, espaço de graça. Mas
pode pensar assim porque crê que a salvação é dom
divino – não manufatura humana – e que, como dom,
pré-existe à história, coexiste com ela e a ela ad-vem
penetrando-a em todos e cada um de seus momentos.
Por ser dom, cabe desfrutar de suas genuínas
antecipações e esperar sua ulterior configuração.
Cabe, em suma, articular a esperança salvífica sobre
16
17
Ibidem, p.18.
Ibidem.
24
a dupla fase do já e o ainda-não, e celebrar
regularmente seu real advento; a salvação está vindo
constantemente à história graças à sua existência não
depender da história, senão da infinita generosidade
de Deus”18.
Qual a garantia que a utopia pode dar que deverá
terminar no summum bonum e não no pessimum do nihil?
Todas as experiências históricas de utopias que temos
terminaram de forma frustrante. Qual sua razoabilidade?
(Como pode Bloch querer que o seu seja um discurso metareligioso e o religioso seja mitológico?).
Na utopia que exclui Deus, o salvador e o salvado se
identificam. E ainda que se atingisse este estágio de
summum bonum, o que garantiria a permanência nele?
Alguém sempre poderia contradize-lo, o destruindo (as
utopias ignoram o fenômeno da culpa). As utopias apelam
para a justiça na consecução de seu projeto, mas esta é cega.
Somente o amor poderá, tornando os homens diferentes,
instaurar tal situação (e Deus é o Amor). Por último, a
utopia fala de um futuro gerador de autêntica novidade,
apelando para a idéia religiosa da transcendência, ainda que
escamoteada:
“transcendência
intramundana”
ou
“transcender sem transcendência”.
“Em resumo: uma interpretação otimista da história,
como a proposta pelas utopias seculares, não pode
assegurar nem o desembocar do processo histórico
em um término, nem seu caráter positivo, nem sua
permanência e definitividade. Tal interpretação
18
Ibidem, p.19.
25
trabalha, em fim, com elementos análogos aos que
emprega a escatologia: aposta de fé, esperança no
futuro, abertura à transcendência... Deveria,
portanto, dar-se conta que, se a acusa de
irracionalidade ou utopismo acrítico, se compromete
a si mesma em identica acusação.
“A escatologia sim está em grau de justificar a idéia
de um fim da história que seja real e definitivamente
plenificador, e de dar com sobras, razão da dialética
presente-futuro. E isto porque dispõe da idéia forte
de transcendência, sem a que não há salvação para o
presente, e a que se aplica ao futuro, por mais que se
maquie de novidade absoluta, não é senão a
extrapolação evolutiva do genuinamente alojado no
passado”19.
2.3 Crítica à escatologia desde a utopia.
Se a escatologia é superior à utopia, por que foi
substituída por esta em amplos setores da cultura ocidental?
A explicação poderá estar na própria escatologia:
“exígua e depauperada não estava em situação de
sustentar a esperança de uma sociedade adulta e de
uma cultura legitimamente orgulhosa de sua
racionalidade ilustrada. Era, pois, inevitável que o
vazio escatológico fosse preenchido por um discurso
19
Ibidem, p.22.
26
utópico que, além de propor seu próprio projeto de
futuro, denunciava as carências do que ofereciam os
crentes. Se é verdade que tais carências foram
sanadas (ao menos em boa parte) pela teologia pósconciliar, não o é menos que, até a mesma vigília do
Vaticano II, as denúncias a que deram lugar seguiam
sendo pertinentes”20.
A primeira e merecida crítica do pensamento secular
à escatologia, referia-se ao seu caráter mítico. Neste
contexto, a escatologia aspira a ser uma “geografia” ou
“física” das realidades últimas, entendidas em termos locais
ou espaciais (discussões sobre a topografia e ubiquação de
alguns lugares: céu, inferno, purgatório, limbo). A atenção
dispensada às suas propriedades, tais como o fogo do
inferno e purgatório (se era real ou metafórico; como
poderia um agente químico agir sobre um espiritual, etc.).
A utopia não teve dificuldade em desautorizar um
discurso tão desarraigado da experiência cotidiana. Traços
de mitificação já estavam presentes na patrística. Os
escolásticos tentaram superá-los com uma forte dose de
intelectualismo e abstracionismo (organizando-se em torno
de uma categoria cardeal: visão beatífica, sancionada pela
constituição de Bento XII, Benedictus Deus).
“A partir deste primado da visão beatífica,
compreendida mais como conhecimento intelectual
que como integração pessoal do homem no mistério
de Deus, a escatologia vai oferecer um novo flanco às
críticas da utopia, que detecta nela uma tríplice
20
Ibidem, p.22-23.
27
limitação:
individualismo,
desmundanização”21.
espiritualismo,
Individualismo: a pergunta pelo fim da história é
deslocada pela pergunta sobre o fim individual. O centro
passa a ser o problema da morte e, conseqüentemente, a
constituição de uma “escatologia individual” ao qual se
acrescentava um tratado de “escatologia coletiva” como
mero apêndice. Neste esquema, um juízo particular
prevalecia sobre o universal. A vida eterna compreendida
como “visão beatífica” acabava eclipsando a dimensão
comunitária e eclesial do reino de Deus.
“Do espiritualismo subjacente a certas interpretações
ou construções teológicas da fé à representação
utilizada para plasmar ao eu individual: a alma
separada. O que no NT era o objetivo último da
esperança cristã, a ressurreição dos mortos, passa a
ser simples ‘incremento acidental da bemaventurança’”22.
O individualismo e o espiritualismo acabam por
instalar na teologia uma visão excessivamente
desmundanizada do eschaton. A doutrina da nova criação se
mantém, mas sem ser explorada e, o que é pior, dentro do
marco da apocalíptica: “este mundo está destinado a perecer
na conflagração cósmica, para dar passagem ao outro
mundo, com o risco de entende-lo como uma creatio ex
nihilo”23.
21
22
23
Ibidem, p.24.
Ibidem, p.24-25.
Ibidem, p.25.
28
“Foi justamente a incardinação da escatologia nestas
três coordenadas (individualismo, espiritualismo,
desmundanização) o que conferiu credibilidade à
crítica da utopia, que, no extremo oposto,
confeccionava uma interpretação do futuro humano
em chave social (não individual), encarnada (não
espiritualizada) e mundana (no mais nobre sentido do
termo)”24.
Crítica que teve efeitos devastadores. Embora se
poderia argumentar que estas objeções tenham sido
corrigidas, permanece uma:
“o futuro absoluto do que fala hoje a teologia tem
algo a ver com o presente e o futuro histórico? Não
será certo que, como acontecia ao marxismo, também
a ortodoxia cristã exige o sacrifício do presente ao
Moloch do porvir?”25.
Teoricamente a fé cristã resolve este problema
equacionando o já e o ainda-não26 e rejeitando duas opções
Ibidem.
Ibidem.
26
SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da
interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.45: “Neste
sentido, não pode haver verdadeira escatologia do futuro sem uma
certa escatologia do presente. Conquanto o futuro tenha em si um
elemento de ‘ainda não’, não podemos ignorar o elemento ‘já’. De
fato, apenas o ‘já’ nos permite dizer algo de significativo acerca do
futuro ainda desconhecido. É, por isso, típico o fato de o Antigo
Testamento nunca descrever o futuro desconhecido em termos
totalmente novos e inesperados. A esperança procura sempre alguma
‘restauração’ ideal, cujos traços particulares se supõe serem
conhecidos do passado. Todavia, o quadro total é sempre novo. A
24
25
29
hermenêuticas opostas: a escatologia conseqüente (o reino
de Deus é pura futuridade) e a escatologia realizada (o
reino está já realizado na vida, morte e ressurreição de
Jesus).
Teoricamente, porque com freqüência o ainda-não
tem absorvido o já (o discurso privilegia o transcendente
com descrédito para com a imanência: “tem falado muito do
céu – ou, o que é pior, do inferno – e pouco da terra”27).
Agora se fala muito da nova criação, mas não se tem
clareza da relação com este mundo:
“em vez da justaposição, o que se tem que tentar é a
iluminação da recíproca interdependência e
complementariedade de ambos futuros, o intraexpectativa não consiste apenas em procurar uma simples reedição do
passado”.
27
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la
Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.26.
POLITI, S., História e esperança: a escatologia cristã. São
Paulo: Paulinas, 1995, p.93, analisando como isto se
concretiza, por exemplo, em nossas orações cotidianas,
conclui quanto à Salve Rainha: “Encontra-se aqui uma
forma de esperança que separa este mundo do outro, dando
a este uma qualificação negativa. A esperança consiste em
sair deste mundo, no qual apenas se encontra sofrimento,
salvo quando o ser humano se lembra da pátria e recebe o
consolo da misericórdia da Virgem, sua advogada,. A
esperança volta-se aqui totalmente para a salvação eterna no
céu. Há, assim, um primeiro modelo: esperança de o homem
ser liberto deste mundo – lugar de sofrimentos – e de
chegar à pátria celestial”.
30
histórico e o meta-histórico, e a elaboração de pautas
teórico-práticas de mediação entre eles”28.
28
Ibidem, p.26: ao que tem contribuído a teologia política de
Metz e a teologia latino-americana da libertação. SCHILLEBEECKX,
E., Algumas reflexões acerca da interpretação da escatologia. Em:
Concilium 1969/1, p.47, neste sentido comenta: “A Bíblia não nos dá
um relato histórico de antecipação deste eschaton. Nada sabemos
acerca das últimas coisas transcendentes – o juízo, o regresso de
Cristo, o céu, o inferno, o purgatório – exceto na medida em que já
estão indicados no decurso dos acontecimentos históricos que
exprimem a relação real e atual entre o Deus da aliança e a
humanidade, particularmente em Cristo, ‘último Adão’, isto é, ‘o
homem do eschaton’ (1Cor 15,45; cf. Ap 1,18 e 22,13). Portanto, a
escatologia não nos permite retirar-nos da história terrena, porque é
apenas na profundidade desta história que a eternidade pode começar
a tomar forma. O eschaton pós-terrestre não é senão o problema de
saber como receberá o seu cumprimento final o que já está a crescer
na história deste mundo”. E continua na p.48: “A escatologia não nos
permite já tirar proveito do além, mas é uma tarefa que se deve
realizar responsavelmente por todos os fiéis, dentro do quadro da
nossa história terrestre. (...) Esta salvação deve ser já realizada agora
na nossa história, neste mundo, e assim essa própria história se
transforma numa profecia do eschaton final e transcendente. É a
promessa de um ‘mundo novo’, um poderoso símbolo que nos põe a
pensar e, acima de tudo, a agir. E a credibilidade desta promessa está
na renovação atual, desde já, da nossa história humana. Através da
sua ‘justificação’, os próprios fiéis se tornam responsáveis pela
‘novidade’ deste mundo novo...”. Continua na p.49: “‘o mundo
novo’, irrevogavelmente prometido e, de fato, já a caminho em Jesus
Cristo, não é, portanto, uma realidade pré-fabricada; antes vai
tomando forma como um mundo histórico dentro do processo
histórico da ação na fé neste mundo”.
31
2.4 Esperança e escatologia.
A função da escatologia é “elaborar e articular
sistematicamente os conteúdos da esperança cristã”29. Sendo
assim, é necessário partirmos de uma compreensão desta
esperança, que é a forma específica de viver o processo
histórico como cristãos: “o Deus da criação é o Deus da
salvação”30, convicção que perpassa toda a revelação
bíblica31.
Tanto no Antigo como no Novo Testamento, a idéia
de esperança é expressa com uma variação semântica e
riqueza de matizes que nos permite afirmar que: a esperança
tem que ver-se com a salvação; indica alguns conteúdos que
não são fabricação humana mas dom de Deus; é esperança
contra esperança (Rm 4,18), ou seja, aguarda com confiança
o impossível; a esperança cristã se constitui tendo como
marco a temporalidade humana (abertura ao futuro) e sua
socialidade (abertura ao tu).
Ibidem, p.27.
Ibidem.
31
SCHILLEBEECKX, E., Algumas reflexões acerca da
interpretação da escatologia. Em: Concilium 1969/1, p.45: “É
interessante notar aqui que o pensamento bíblico acerca do princípio
(‘protologia’) se acha entretecido com o pensamento escatológico.
Esta ‘protologia’, como é formulada no esboço final da história da
criação, no Gênesis apenas se pode entender com base na experiência
atual da fidelidade de Deus, com suas conseqüentes expectativas
escatológicas. A história da criação é, portanto, uma afirmação
escatológica também”.
29
30
32
Por escatologia podemos
“entender aquele setor da teologia ao qual incumbe
refletir sobre o futuro da promessa aguardada pela
esperança cristã. Seu lugar teológico se ubíqua na
intersecção da antropologia, a doutrina da criação e
a cristologia”32.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.30.
32
33
34
3. A MORTE33
Este é um tema propriamente antropológico. Aqui o interesse
está no aspecto especificamente escatológico da problemática da
morte: o fato de que o fim da história começa para cada ser humano
em sua morte.
3.1 Morte e escatologia na Bíblia.
A tradição bíblica consagra muito mais atenção à
escatologia comunitária que à individual. Não obstante,
encontramos uma série de textos que desenvolvem a relação
morte-escatologia que podem ser divididos em dois grupos,
que são, por isso mesmo, complementares:
Aqueles que ensinam que com a morte termina o
tempo de prova, de decisão: com a morte termina este tempo
de decidir-se por ou contra Deus (Sb 2-5; Mt 13,37s;
25,34ss; Jo 3,17ss; 5,29; 12,47ss; particularmente: 2Cor
5,10 e Hb 9,27).
Esta apresentação do problema da morte humana é uma
simples síntese de RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la
Creacion. Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000. Penso ser importante
publica-la aqui, pois não existe em lingua portuguesa uma tradução de
sua obra. A fidelidade ao seu texto justifica as constantes citações
literais.
33
35
Aqueles que ensinam que com a morte começa a
retribuição definitiva: esta idéia é desconhecida do AT; ela
pressupõe a revelação neo-testamentária: Lc 23,42s (Ap
1,6). “A salvação definitiva não é uma realidade meramente
escatológica, que atinja o homem somente numa existência
pós-morte, senão que surte efeitos imediatos para quem
optou pela comunhão com Cristo. Isto é bem expresso pelo
termo paradeisos que designa o estado teminal da vida com
Deus, é o símbolo da bem-aventurança. O cumprimento da
esperança messiânica não se demora até o eschaton: é
realidade que já se faz presente desde o hoje do sacrifício de
Cristo. Outros textos: 2Cor 5,8; Flp 1,21-23.
“Em resumo: o Novo Testamento introduz no
pensamento bíblico um fato novo, que acelerará o
processo de evolução das idéias sobre o destino pósmortal do homem. O fato novo é Cristo. Sua
ressurreição consagrará de forma imprescritível o
caráter escatológico da esperança ultraterrena,
anunciada já pelo Antigo Testamento. Mas, por sua
vez (e esta é a novidade com respeito às crenças
vétero-testamentárias), Cristo proporciona a certeza
de que a salvação não é um bem exclusivamente
futuro, estritamente escatológico, no sentido temporal
do término. O anunciado pelo Novo Testamento já
não é algo meramente por vir em um futuro
indeterminado”34.
Em conclusão, Lc 23,43; Flp 1,23 e quem sabe
mesmo 1Ts 4,14.16 e 2Cor 5,6-8 ensinam que, a partir de
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.253.
34
36
Cristo, os que morrem nele gozam desde já dessa perfeita
comunhão com ele que é a vida eterna.
História da doutrina. Existe consenso em interpretar
a morte o término do período de decisão pró ou contra Deus.
“Pelo contrário, quanto ao fato de que o estado definitivo de
vida ou morte eternas siga à morte, sem esperar ao final da
história, tem sido amplamente controvertido até bem
entrado o século XIV”35.
A época patrística. Inácio de Antioquia, Clemente
Romano e Policarpo afirmam o estado definitivo
imediatamente após a morte (ao menos para os mártires).
Mas já entre os séculos II e IV, “a tendência
predominante sustenta que a morte inaugura uma
discriminação transitória, com uma retribuição ainda não
perfeita, até o momento do juízo final”36. O primeiro a
defender esta tese foi Justino (mas parece “que a crença em
uma retribuição definitiva imediata se associava aos
proverbiais pré-juízos dualistas contra a ressurreição”37.
“Como se vê, o ensinamento dos Padres sobre nosso
tema se debate entre o reconhecimento de uma
retribuição imediata e a necessidade de reconhecer
também a dilatação da retribuição plena. As
indecisões em ponto de tão grande importância se
explicam quando se tem em conta que a doutrina da
retribuição imediata suscita duas sérias dificuldades:
uma de caráter antropológico e outra de índole
35
36
37
Ibidem, p.254.
Ibidem, p.255.
Ibidem.
37
teológica. O problema antropológico reside na
dificuldade de conceber como sujeito apto da
retribuição não ao homem inteiro, mas a uma de suas
partes (a alma). A dificuldade teológica está no peso
que exerce sobre os Padres a importância dos
acontecimentos finais – juízo, ressurreição – tão
insistentemente inculcada pela Escritura, assim como
a índole comunitária da vida eterna; uma bemaventurança plena antes do eschaton não reduzirá
severamente a transcendência deste?
A estes dois fatores (a preocupação anti-dualista e a
vontade de fidelidade à Bíblia) teria que acrescentar
que os lugares escriturísticos onde se ensina uma
retribuição definitiva antes da ressurreição são –
como podemos comprovar – muito escassos; é
compreensível que se tenha necessitado tempo para
atender a seu conteúdo.
Provavelmente o estímulo mais eficaz para um
correto delineamento do problema tenha sido não
tanto a reflexão especulativa quanto a práxis
litúrgica, ou seja, o culto que se tributou primeiro aos
mártires e logo ao resto dos santos, e que não teria
sentido se não se lhes atribuísse já uma glorificação
definitiva. Por isto, os problemas de fundo (a
compatibilidade de uma escatologia individual com a
escatologia coletiva) seguiram sem resolver-se; a tese
de uma dilatação da plenitude da retribuição
apresentava indubitável vantagem em ordem a sua
solução. Isto explica seu reflorescimento na época
medieval, que, por sua vez, dará lugar a uma
declaração definitiva do magistério sobre o tema”38.
38
Ibidem, p.258.
38
Intervenção magisterial. O papa João XXII, em uma
homilia no dia de todos os santos de 1331 retomou a
questão, que já havia sido abandonada:
“...seguindo a São Bernardo, o pontífice distingue
entre o seio de Abraão e o altar celeste. No seio de
Abraão esperam os justos do Antigo Testamento e
esperaremos todos, consolados pela visão da
humanidade de Cristo, até a entrada no ‘gozo do
Senhor’, que acontecerá com a ressurreição e o juízo.
João XXII funda esta doutrina não só na autoridade
de São Bernardo, mas em argumentos da Escritura
(unicamente o juízo outorga a posse do reino de
Deus) e de razão (para a perfeita bem-aventurança a
alma precisa do corpo)”39.
Esta homilia causou escândalo e o papa voltou por
outras duas vezes a este assunto: em dezembro de 1331 e
janeiro de 1332. Nesta última, o papa “estende a doutrina de
uma dilatação da retribuição também para o caso dos
réprobos, que habitam até o juízo no ar tenebroso, junto aos
demônios”40. Embora sempre deixando claro que sua
posição era sustentada como doutor privado.
O próprio papa constituiu uma comissão para
examinar a questão. Na véspera de sua morte revogou sua
posição, escrevendo uma retratação [DS 990s] que foi
publicada pelo seu sucessor, Benedito XII (que tinha sido o
teólogo de confiança do papa e que já empreendera um
39
40
Ibidem, p.259.
Ibidem.
39
estudo sistemático sobre o caso: De statu animarum
sanctorum ante generale judicium, no qual negava a
dilatação da visão beatífica, como queria João XXII).
Elevado a papa, Benedito XII “emitiu a constituição
Benedictus Deus (DS 1000-1002), na qual ensina que tanto
o estado de vida eterna, como o de morte eterna começa
‘imediatamente (mox) depois da morte’. Sendo que por vida
eterna compreende a visão intuitiva do ser divino. Esta
postura será confirmada pelo Concílio de Florença (DS
1305) e também pelo Vaticano II (LG 49: os justos já
purificados “gozam da glória contemplando claramente a
Deus mesmo, uno e trino, tal qual é”).
3.2 Reflexões teológicas.
As dimensões da morte. O século XX vivenciou o
drama da morte e refletiu sobre ele como em nenhum outro
período. O fato antropológico mais indubitável é o da
finitude – porque a morte o denuncia. A pergunta pelo
significado da morte implica a pergunta pelo significado da
vida, e vice-versa. Com a pergunta pelo significado da
morte, aparecem muitas outras.
Algumas questões expressivas:
40
a) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o
sentido da vida”41. O homem é um ser para a
morte: do ponto de vista biológico (Engels) e
existencial-ontológico (Heidegger). Sua vida terá
um sentido na medida em que o tenha sua morte.
Uma morte sem sentido compromete a própria
existência.
b) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o
significado da história”42. Não é mais possível
escamotear o significado da morte pessoal, como
se fosse algo particular e secundário, um “sonho
pequeno-burguês”. A morte do indivíduo
compromete toda a história.
c) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre os
imperativos éticos de justiça, liberdade,
dignidade”43. É possível pregar estes valores de
sujeitos contingentes que desaparecerão por
completo com a morte? Teria sentido o martírio
por uma destas causas?
d) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre a
dialética presente-futuro”44. Vivemos uma
situação presente sonhando com um futuro
melhor; trabalhamos e sofremos por isso. Haverá
uma relação entre este futuro e nós? Ou nossa
geração será apenas um “andaime” para a geração
escatológica?
41
42
43
44
Ibidem, p.261.
Ibidem, p.262.
Ibidem.
Ibidem.
41
e) “A pergunta sobre a morte é a pergunta sobre o
sujeito da esperança”45.
f) “Em fim, a pergunta sobre a morte é uma variante
da pergunta sobre a pessoa, sobre a densidade,
irrepetibilidade e validade absoluta de quem a
sofre”46.
“Resumindo, a magnitude que se reconheça à morte
está na razão direta da que se reconheça à seu sujeito
paciente. A minimalização da morte é o índice mais
revelador da minimalização do indivíduo mortal. E o
inverso, uma ideologia que trivialize ao indivíduo,
trivializará a morte. Pelo contrário, se a morte é
captada como problema é porque o homem é
apreendido como um valor que transcende o puro
fato bruto”47.
45
46
47
Ibidem, p.263.
Ibidem.
Ibidem, p.264.
42
3.3 Teologia da morte.
Diante das perguntas levantadas pela morte a resposta
cristã é muito clara: a morte adquire um sentido desde a fé
na ressurreição e da vida eterna.
O que se pretende fazer neste momento é uma leitura
cristã da morte e do morrer.
“O homem da humanidade pecadora está submetido,
segundo a Escritura, a uma morte que, na ordem se
sua realização concreta, é pena do pecado, diante do
qual não é livre mas escravo, e que se apresenta a ele
como algo incompreensível, contra o que não pode
senão rebelar-se. Mas houve um homem que morreu
a morte humana de outro modo: como ato de
suprema liberdade (‘ninguém tira minha vida; sou eu
quem a da’: Jo 10,18) e de liberalidade (‘ninguém
tem maior amor que o que dá a vida por seus
amigos”: Jo 15,13). Cristo morreu a morte com a
angústia que lhe é
própria no que tem de
necessidade imposta, mas por sua vez, na fé no Deus
vivo, na esperança da ressurreição e na caridade
para com os irmãos. Desta forma, a morte mudou de
sentido. Não é já, necessariamente, visibilidade da
culpa, pena do pecado; pode ser ato livre de fé,
esperança e amor.
Esta inversão de sentido se patentiza sobretudo no
fato de que Cristo morreu para ressuscitar. O serpara-a-morte que, segundo a análise filosófica, é o
homem, volta-se a sua vocação original (segundo a
ordem querida por Deus na criação) de ser-para-a43
vida. Tampouco o cristão morre para ficar morto,
mas, igual a Cristo, para ressuscitar. Sua morte é,
por conseguinte – em si mesma, e não somente no que
está por trás dela – uma morte distinta da morte-pena
do pecado. Não é fim, senão transito; não é término,
senão páscoa, passagem da forma de existência
provisória à forma de existência definitiva”48.
Paulo descreve o cristão como quem reproduz em si
os mistérios da vida de Cristo. Como para Cristo, “a morte
para ele não é pena, mas um morrer com Cristo para
ressuscitar com ele”49. A partir desta perspectiva, adquirem
um sentido os sacramentos e as virtudes teologais. Só a fé
pode iluminar um começo no que aparenta ser o fim, só a
esperança permite substituir a angústia pela confiança e só a
caridade possibilita entrega total.
“Pois bem, ali onde a morte é vivida como trânsito e
não como término, com confiança e não com
desespero (ainda que poderá ser uma confiança
obscura e assediada pela angústia”, ali está presente
– saiba-se ou não – a graça. (...) Ali onde a morte é
vivida como cumprimento da existência ou como
destino sereno e resignadamente aceito, ali acontece
a morte cristã, ou seja, a morte que é confissão do
Deus vivo. Esta confissão tem lugar: a) no
reconhecimento de que a vida tinha um significado
(já que, por hipótese, se aceita a morte como o que
cumpre a vida); b) na submissão obediente aos
próprios limites (na aceitação do próprio ser
48
49
Ibidem, p.265-6.
Ibidem, p.266.
44
criatural). (...) O ato de morrer, em suma, é sempre e
necessariamente um ato de fé (explícita ou implícita)
ou um ato de incredulidade”50.
Por fim, a morte conduz a pessoa à sua definitividade,
ou seja, a fixa em seu destino. Coloca-se aqui a pergunta:
“este caráter definitivo da morte é um momento interior à
morte mesma, ou lhe advém exteriormente por vontade de
Deus (por um convencional decreto divino)?”51. Todas as
nossas análises nos levam a concluir pela primeira
afirmação, negando aquilo que ficou conhecido como a
“tese da opção final”.
“Se a vida tem sentido, e não é o jogo absurdo que
pensava Sartre, a morte deve dar ao homem o
permanecer durante a eternidade no que quis ser
durante o tempo; e isto não em virtude de uma última
e isolada decisão (como sustenta a teoria da opção
final), que esvaziaria irremediavelmente a vida
mesma, mas enquanto suma totalizante das atitudes
vividas e acumulação sem futuro do inteiro passado,
convertido já, de forma irreversível, em presente
eterno. Ao ser a morte anulação de toda
possibilidade de devir, é a facticidade consumada,
ou, o que é o mesmo, ‘término do estado de prova por
sua natureza’, segundo estipulava a fórmula
escolástica em uso”52.
50
51
52
Ibidem, p.267-8.
Ibidem, p.268.
Ibidem, p.270.
45
46
4. MORTE E SENTIDO DA VIDA
A morte é um fato humano. Só o homem morre. Os
outros seres desaparecem. Isto significa que só o homem
tem consciência que deve morrer. Alguns pensadores
quiseram ver nesta consciência da própria morte o mais
especificamente humano. Tanto que o homem poderia ser
definido como “o ser que sabe que vai morrer”. E aqui
estaria o que mais o distingue de todos os outros seres vivos.
O saber que deve morrer marca profundamente a vida
do homem. Todos os seus atos, inclusive os mais
insignificantes, tomam um aspecto definitivo e ultimativo.
Heidegger – filósofo alemão do século vinte – afirmava que
o homem é um “ser para a morte”. A morte não é
simplesmente o ponto final de sua existência. Não é algo
estranho à sua vida – como queria Sartre, filósofo
existencialista francês, também do século vinte – mas o
homem começa a morrer quando nasce. A morte está
presente e acompanha o homem em toda sua existência.
Esta consciência da morte não a adquirimos direta e
imediatamente. Não fazemos “experiência” da morte em
primeira pessoa. O conhecimento que temos da
inexorabilidade da morte humana é sempre um
conhecimento da morte do outro. É melhor, portanto, um
conhecimento de como a morte do outro me atinge. A partir
dela começo a fazer idéia de minha própria morte. E entre as
vivências que temos da morte dos outros, algumas são
especialmente marcantes: a morte daqueles a quem amamos.
Para usar as palavras de Karl Jaspers, a morte da pessoa
47
querida é uma situação-limite que me abre para o sentido
profundo da existência.
A morte da pessoa querida é vivenciada em primeiro
lugar como ausência. Não é mais possível compartilhar de
sua presença. Por isso toda ausência, ainda que por um curto
tempo, é sinal da ausência irremediável e definitiva.
Justamente por este caráter de ausência definitiva, a morte
apresenta-se como tragédia. Em qualquer circunstância que
a morte ocorrer, será sempre uma perda dolorosa. Por isso,
a dor da perda não é um sinal de falta de fé, mas é um
sentimento humano. Muito humano. Revela a fragilidade de
nossa existência.
Todos em algum momento nos questionamos sobre a
morte, procurando uma explicação que atenue sua
tragicidade. Na verdade, a pergunta pelo porquê da morte é
uma pergunta sobre o sentido da existência. Perguntar por
que devemos morrer equivale a perguntar porquê vivemos.
O caráter transitório da vida faz-nos procurar o mais
intensamente viver bem. E viver bem o presente.
Muitos preferem resposta que fujam da pergunta. Já
pensadores antigos formulavam raciocínios neste caminho.
Houve quem dissesse (Epicuro, filósofo grego do século IV
antes de Cristo) que não devemos temer a morte porque
“enquanto eu existir, não existe ainda a morte, quando a
morte existir, eu não existirei mais”. É uma atitude de fuga
também o inconformismo sartriano: “é absurdo que
tenhamos nascido, é absurdo que tenhamos que morrer”.
Mas nem as pretensões da ciência contemporânea –
quando quer ultrapassar seus limites epistêmicos e invadir
48
campos que não são propriamente seus – pode dar uma
resposta convincente, acaba servindo apenas de fuga. A
prometida eterna juventude ou a perpetuidade por outros
meios – como a própria clonagem – são na verdade fantasias
de rejeição da morte. A pessoa humana é única e irrepetível,
por isso, insubstituível e jamais pode ser tornada objeto. E
nisto reside seu caráter de absolutidade. Também da
tragicidade da morte.
Diante da morte, a única resposta realmente
consoladora vem da fé. Fé que não esvazia o significado
presente da vida, mas o plenifica - e por isso mesmo não é
uma fuga, como tantos quiseram interpreta-la. A fé nos leva
mais longe, abre nossos olhos para uma realidade que
transcende a imediaticidade de nosso cotidiano. Como nos
diz a carta aos Hebreus: “A fé é um modo de já possuir
aquilo que se espera, é um meio de conhecer realidades que
não se vêem”. E nossa fé assenta-se na ressurreição de
Jesus Cristo e em sua promessa de vida: “Não fique
perturbado o coração de vocês. Acreditem em Deus e
acreditem também em mim. Existem muitas moradas na
casa de meu Pai. Se não fosse assim, eu lhes teria dito,
porque vou preparar um lugar para vocês. E quando eu for e
lhes tiver preparado um lugar, voltarei e levarei vocês
comigo, para que onde eu estiver, estejam vocês também”
(Jo 14, 1-3). Jesus é a única resposta plausível diante da
morte. “Se com Ele morremos, com ele viveremos” (2Tim
2, 11).
49
4.1 Questão complementar: morte-imortalidaderessurreição.
4.1.1 Ressurreição versus imortalidade?
A teologia protestante do século passado foi marcada
pelas discussões em torno do binômio: imortalidaderessurreição: a tese da imortalidade (da alma), de origem
filosófica, seria incompatível com a da ressurreição. A
solução estaria em abandonar a primeira para afirmar a
segunda. Conseqüentemente, a morte foi interpretada como
morte total (Ganztod) e a ressurreição uma espécie de
creatio ex nihilo.
Atualmente esta discussão perdeu vigor e a tese da
morte total é muito minoritária (entre a última geração de
teólogos protestantes que defendem esta tese cabe lembrar
E. Jüngel). No extremo oposto está F. Heidler que crê poder
demonstrar a afirmação da imortalidade da alma já pelos
extratos mais antigos da Bíblia. Entre estes dois extremos
poderemos situar o debate.
Hoje existe uma convergência entre teólogos
protestantes e católicos quanto à necessidade de negar a tese
da morte total e afirmar a imortalidade da alma (o que não
implica em assumir a categoria alma dentro de uma
metafísica helenizante, como a platônica, por exemplo).
Duas são as razões para esta convergência: a Bíblia
desconhece a tese da morte total; a tese da morte total
50
inviabiliza a tese da ressurreição (que postula
intrinsecamente um elemento de continuidade, ou seja,
aquilo que foi expresso pela tradição com a idéia de alma)53.
A tese da morte total foi possível dentro da teologia
luterana porque, para esta, a natureza humana estaria
totalmente corrompida. Sendo assim, a salvação realmente
seria uma creatio ex nihilo. Mas a forma mentis católica é
outra. A partir do pensamento luterano, como explicar a
relação entre o mundo presente e o mundo futuro? Entre o
progresso e o reino? Ela pressupõe uma total
descontinuidade entre história e escatologia. Terreno fértil
para “a tese cataclismática de uma aniquilação do mundo
presente e sua substituição por um mundo futuro que seja
creatio ex nihilo”54.
“Em resumo, a idéia cristã da imortalidade da alma
quer dizer nem mais nem menos que isto: a ação
ressuscitadora de Deus não se exerce sobre o vazio
absoluto da criatura, sobre a nulidade total de seu
ser, senão que se apóia na alteridade reclamada pela
relação dialógica interpessoal Deus-homem. Que,
portanto, existe ‘algo’ no homem que, pese a morte,
não é amortizado pelo nada e se impõe a atenção de
Deus. Que, enfim, a partir desse ‘algo’ (chame-se
como se chame), que certamente por si só já não é o
homem completo, é como Deus restaura a vida do
É bom lembrar uma distinção: quando falamos desde a
teologia cristã em “imortalidade da alma”, esta “imortalidade” não é
uma propriedade da própria alma – como para o pensamento grego –
mas ação divina.
54
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.274.
53
51
sujeito mortal em sua cabal identidade e integridade,
operando assim uma ressurreição e não uma criação
desde o nada”55
4.1.2 Imortalidade versus ressurreição?
Alguns autores postularam justamente o contrário da
resposta anterior: absorvendo o conceito de ressurreição no
de imortalidade (Tresmontant e Boismard). Para este último,
a expressão ressurreição somente seria compreensível
dentro da antropologia semítica, mas não tem validade para
hoje e, estritamente falando, seria melhor falar de
imortalidade (embora procure se desvincular da concepção
platônica, já que a alma não é imortal por si, mas por graça).
“A resposta mais pertinente para a tese que se acaba
de resenhar nos oferece Gilson: ‘um cristianismo sem
imortalidade da alma não teria sido absolutamente
inconcebível, e a prova disso está em que foi
concebido. Em troca, o que seria absolutamente
inconcebível é um cristianismo sem ressurreição do
homem’”56.
55
56
Ibidem.
Ibidem, p.276.
52
4.1.3 Alma separada em um estado intermediário?
Esta foi uma das questões escatológicas mais quentes
do século XX. Hoje parece ter perdido a atração. Segundo o
Ruiz de la Peña, estamos em um “ponto morto”57.
“Para encerrar este já longo item sobre as categorias
morte-imortalidade-ressurreição,
valham
as
seguintes considerações conclusivas:
a) Uma imortalidade sem ressurreição é um enigma
metafísico. Uma imortalidade natural da alma em
um hipotético status naturae purae seria, além
disso, um enigma teológico.
b) Uma ressurreição sem imortalidade – isto é,
desde a ‘morte total’ – envolve uma contradição:
Deus ‘ressuscita’ (cria ex nihilo) a outro ser
humano (numericamente distinto do que morreu,
pois se supõe que este morreu totalmente), que
não obstante é o mesmo que se dava por
totalmente morto.
c) Na atual economia histórico-salvífica, a
imortalidade da alma tem de ser entendida como
Chegado a este ponto, o Ruiz de la Peña simplesmente
apresenta – na estrutura atual do livro – em 7 pontos, o escrito da
Congregação para a Doutrina da Fé sobre algumas questões
escatológicas. É preciso lembrar de sua morte prematura, ocorrida
antes que pudesse terminar esta obra, vitimado pelo câncer em
27/09/96. Para melhores informações, a apresentação do livro feita por
Joaquin L. Ortega.
57
53
condição de possibilidade da ressurreição. Neste
sentido, deveria falar-se de uma imortalidade que
é mais dom sobrenatural, que mera qualidade o
condição natural”58.
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La Pascua de la Creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.278.
58
54
5. RESSURREIÇÃO
Escrever
sobre
a
ressurreição
e,
mais
especificamente, sobre a ressurreição em geral, já que
poderíamos nos restringir à ressurreição de Cristo, faz
lembrar uma constatação de Santo Agostinho que parece
perfeitamente atual: “Em nenhum ponto a fé cristã se depara
com mais contradição do que em torno da ressurreição da
carne” (Psal. 88, 2,5). E Orígenes reclama que: “o mistério
da ressurreição, por não ser compreendido devidamente, é
motivo de escárnio constante dos descrentes”59.
E, no entanto, “a ressurreição dos mortos é na
tradição cristã, um dos artigos de fé mais longamente
atestados”60. Esta perplexidade nos lembra dos discípulos ao
descerem da montanha após a experiência da
transfiguração: “Jesus recomendou-lhes que não contassem
a ninguém o que tinham visto, até que o filho do Homem
tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram a
recomendação e se perguntavam o que queria dizer
‘ressuscitar dos mortos’” (Mc 9, 9-10).
Hoje a palavra ressurreição é, além de um termo
técnico da teologia cristã, um termo popularizado. Seu
significado está mais ou menos fixado. Mas é preciso
ORÍGENES, Contra Celso. São Paulo: Paulus, 2004, Livro I,
7 (p.46).
60
DARTIGUES, A., Ressurreição dos mortos. B. Teologia
histórica. Em: LACOSTE, J-Y. (Dir.), Dicionário Crítico de Teologia.
São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004, p. 1533.
59
55
lembrar que para o ambiente dos apóstolos – e mesmo antes
– esta realidade que estavam vivenciando era algo novo e
não possuíam uma palavra para designa-la em toda sua
riqueza, o que os forçava a expressar-se através de palavras
já conhecidas, mas carregadas de um significado novo.
Etienne Charpentier nos explica que “ressuscitar: esta única
palavra em português traduz, na realidade, duas imagens
‘fazer levantar, surgir’ (anistai, em grego) ou então ‘fazer
levantar, despertar’ (égeirein, em grego). Estas duas
palavras fazem parte da linguagem corrente para exprimir a
passagem da posição deitada para a posição de pé ou do
sono ao despertar. Quando aplicadas aos defuntos, apelam
para uma mentalidade mítica (comum a muitos povos) na
qual a morte é concebida como um sono ou como a descida
aos ‘infernos’”61, que era, para estes povos, um lugar
indiferenciado para todos os mortos, como o Hades para os
gregos ou o Sheol (por exemplo: Jó 3, 19; Ecl 2, 15) para os
judeus, não tendo ainda o significado que tem hoje62.
CHARPENTIER, E., Cristo ressuscitou! São Paulo: Paulinas,
1983, p.31.
62
Isto nos mostra que nem o povo grego nem o judeu
acreditaram em uma morte “total”. Embora tenha sido uma postura
teológica comum entre os teólogos protestantes do final do século
XIX e início do século XX. J. Ratzinger, Escatologia. Morte e vida
eterna. 2ºed. Assis: Cittadella Editrice, 1979, p.119, cita por exemplo
Carl Stange (1870-1959) e Adolf Schatter (1852-1938), aos quais
aderiu em um primeiro momento também o famoso Paul Althaus. Mas
que teria já suas conseqüências a partir da posição de Lutero, como o
mesmo Ratzinger procura demonstrar em um artigo: Entre a morte e
a ressurreição, COMMUNIO 1/1982, p. 73ss. Isto é importante para o
modo de compreender a ressurreição: se a morte é a aniquilação
completa do homem, a ressurreição deveria ser entendida como uma
nova criação, ficando assim comprometida a identidade entre a pessoa
que morreu e a que ressuscitou. Neste contexto poderemos entender o
conceito alma imortal tal como foi usado pela tradição: indicando esta
61
56
Com a palavra ressurreição se começou a indicar uma
experiência que ia muito além de um simples “levantar-se”
ou “acordar” de uma noite de sono. Com ela se começou a
indicar esta experiência de fé em uma existência pessoal
depois da morte. É uma experiência de fé porque brota da
certeza que Deus é fiel e não abandona os que são seus.
Deus se revela como o Deus da vida também para aqueles
que passam pela morte. Deus possibilita uma existência
pessoal, ou seja, quem ressuscita é verdadeiramente aquele
que morreu, há aqui uma identidade que expressa uma
continuidade, embora para uma situação existencial
completamente nova, expressa em nossa frase com o
“depois da morte”, indicando assim uma novidade.
Eis a chave de leitura para falarmos em ressurreição:
entre a pessoa que morre e ressuscita, existe uma
continuidade – expressa pela sua identidade (é a mesma
pessoa que morre a que ressuscita) – e uma
descontinuidade, ou seja, uma novidade (a pessoa
ressuscitada possui uma condição existencial toda nova que
nós somente ousamos imaginar como seria63).
possibilidade que Deus tem de ressuscitar a pessoa mesma que
morreu. RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Imagen de Dios. Antropologia
teológica fundamental. 2ªed. Santander: Editorial Sal Terrae, 1988,
p.150: “para poder falar de ressurreição do mesmo sujeito pessoal da
existência histórica tem que haver em tal sujeito algo que sobreviva à
morte, que atue como nexo entre as duas formas de existência (a
histórica e a meta-histórica), sem o que não se daria, a rigor,
ressurreição, senão criação do nada”.
63
Aqui é preciso sempre estar atentos: o “como” será esta
existência após a morte é para nós um grande mistério. Nossa
linguagem é mais negativa do que positiva, ou seja, podemos mais
dizer o que não é do que é, a partir de nossa experiência. Por exemplo:
a vivência do espaço e tempo, que são nossas características de seres
57
Podemos
constatar
esta
continuidade
e
descontinuidade já na experiência de Jesus ressuscitado:
Jesus ressuscitado é o mesmo que foi crucificado (o texto
mais forte desta identidade é o que se refere à descrença de
Tomé: “Estenda aqui o seu dedo e veja minhas mãos.
Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo,
mas tenha fé” – Jo 20, 27; ver também: Lc 24, 36-43, onde
Jesus até come para demonstrar que é real); são também
inúmeras
as passagens onde percebemos
esta
descontinuidade: a dificuldade que possuem de imediato
para “reconhecer” Jesus; o fato de Jesus ressuscitado não
estar mais sujeito às nossas leis físicas (como em Jo 20, 26:
“Estando fechadas as portas, Jesus entrou”)64.
Frente aos povos vizinhos, Israel chegou a uma idéia
de existência pessoal pós-morte somente tardiamente65. Em
seus inícios, a concepção que possuíam era de uma longa
descendência (este era justamente o objeto da bênção). O
que se pode vislumbrar aqui é, portanto, uma existência
impessoal (o pai continua nos filhos, netos e assim por
diante). Este modo de concepção não é estranho também em
nossa época. Muitas pessoas acreditam que se perpetuam em
seus feitos ou na memória das pessoas ou da sociedade.
situados, deverá ser completamente diferente. Como vivemos em uma
tensão entre momentos felizes e infelizes, cremos que “junto de Deus”
seremos completamente felizes, não havendo mais infelicidade, e
assim por diante.
64
CATECISMO DA IGREJA CATOLICA, n.645.
65
G. BARBAGLIO afirma de modo enfático que os judeus
chegaram à idéia de ressurreição como forma privilegiada de salvação
depois da morte “com um atraso escandaloso” (citado por:
TAMAYO-ACOSTA,
J-J., Para comprender la escatologia
cristiana. Estella: Editorial Verbo Divino, 1993, p.93).
58
O horizonte de compreensão do homem judeu
também é diferente do nosso. Ali, a sociedade, o povo é que
é referência, ainda não se tem a idéia de indivíduo como
posteriormente. Por isso, mesmo as primeiras expressões de
uma fé na ressurreição serão para o povo e não para o
indivíduo. Um exemplo a ser lembrado é Os 6, 1-3,
principalmente o versículo 2: “em dois dias ele nos fará
reviver, e no terceiro dia nos fará levantar, e passaremos a
viver na sua presença”66. Quando a situação obrigar a fé
judaica a dar uma resposta para além da coletividade, isto é,
para o indivíduo, emergirá então a fé na ressurreição dos
mortos. Esta situação é aquela dos mártires. Temos então o
primeiro testemunho categórico da ressurreição dos mortos
no livro de Daniel, especialmente ao longo do capítulo 12.
Também o segundo livro dos Macabeus, principalmente os
capítulos 7 e 12 (7,9: “Você bandido, nos tira desta vida
presente, mas o rei do mundo nos fará ressuscitar para uma
ressurreição eterna de vida, a nós que agora morremos pelas
leis dele”).
Para Ruiz de la Peña “esta fé na ressurreição não
surge de uma elucubração conceitual, senão da reflexão dos
crentes sobre uma circunstância histórica. O fato do martírio
re-propõe agudamente as velhas perguntas de Jó. (...) a
única resposta digna de Deus, a única que o faz crível, digno
de crédito, é a ressurreição, a saber, a ação pela qual Deus
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.78: “é claro que não se fala
de uma ressurreição dos indivíduos, senão do povo enquanto tal”.
Segundo este autor, é a mesma situação de Ez 37, 1-14.
66
59
devolve, centuplicada, essa vida que o mártir havia
entregue”67.
O Novo Testamento nos mostra a comunidade dos
judeus dividida frente à fé na ressurreição. A posição de
Jesus é firme e clara. Embora não fale com freqüência da
ressurreição, sua polêmica com os saduceus não deixa
dúvida (Mc 12, 18-27). Os Apóstolos e tantos outros das
primeiras comunidades fizeram a experiência da
ressurreição de Jesus (Lc 24, 9-10.34.36; At 1,22), que
passa a ser o fundamento da fé em nossa própria
ressurreição (1Cor 15, 12-18). Esta experiência é o fato
central de todo o NT. E o primeiro anúncio (querigma) dos
cristãos foi justamente este: “Deus ressuscitou Jesus”. Podese lembrar, por exemplo, At 2, 14-36. Entre os textos mais
antigos do NT que procuram refletir sobre a ressurreição:
1Ts 4, 13-17 (no qual São Paulo deve explicar para a
comunidade o que acontece com os irmãos que morrem
antes da segunda vinda de Cristo, a parusia); 1Cor 15 e
2Cor 5, 1-5 (onde São Paulo reflete também sobre a
corporeidade na ressurreição).
Podemos concluir: quando o NT afirma a
ressurreição, não está afirmando uma salvação
“desencarnada” (como a que pregavam os gregos através
da sobrevivência da alma imortal68); também não está
Ibidem, p.83. É preciso notar que aqui se menciona a fé na
ressurreição apenas dos bons: “Vale a pena morrer pela mão dos
homens, quando se espera que o próprio Deus nos ressuscite. Para
você [rei injusto], porém, não haverá ressurreição para a vida” (2Mac
7, 14).
68
Esta problemática da alma imortal ocupa boa parte da reflexão
teológica na história. Desenvolvida e popularizada em ambiente grego
67
60
afirmando uma salvação “privatizada” (do indivíduo
somente): a promessa de salvação é para todo o gênero
humano e a ressurreição é um evento comunitário. Em nossa
existência o outro, aquele com o qual nos encontramos,
convivemos, não é um mero acréscimo, faz parte
verdadeiramente do que somos, por isso afirmamos que o
ser humano é “naturalmente” um ser social69.
Portanto, não podemos pensar a ressurreição
individualisticamente, como muitas vezes foi apresentada na
história moderna. Estaria completamente fora do espírito
pelo orfismo (como o de Pitágoras) e por Platão, influenciou também
alguns livros do AT, como o da Sabedoria. Recentemente alguns
teólogos quiseram afirmar a incompatibilidade entre uma concepção
do homem como a grega, que fala de imortalidade da alma com a
concepção judaica, que prega a ressurreição dos mortos. Não
podemos entrar aqui neste problema, bastará dizer que a teologia
católica tem preferido conservar o uso da palavra alma para indicar a
possibilidade que Deus tem de ressuscitar aquele mesmo que morreu,
ou seja, com ela se garante aquela dimensão de continuidade
anteriormente explicada. Vale lembrar: contra um discurso que pregue
a existência pós-morte apenas de uma “alma imortal” e não do homem
inteiro (da “pessoa”), a tradição tornou artigo de fé a “ressurreição da
carne”.
69
A Constituição Pastoral Gaudium et Spes, do Vaticano II
(GS), se expressa assim: “A índole social do homem evidencia que o
aperfeiçoamento da pessoa humana e o desenvolvimento da própria
sociedade dependem um do outro. A pessoa humana é e deve ser o
princípio, sujeito e fim de todas as instituições sociais, porque, por sua
natureza, necessita absolutamente da vida social. A vida social não é
portanto algo acrescentado ao homem: assim o homem desenvolve-se
em todas as suas qualidades mediante a comunicação com os outros,
pelas obrigações mutuas, pelo diálogo com os irmãos, e pode
corresponder à sua vocação” (n.25). Não se compreenderia portanto
como manteria aquela identidade entre a pessoa que morre e a que
ressuscita se a ressurreição não conservasse toda sua dimensão social.
61
bíblico e da tradição da Igreja70. Por fim, a salvação não é
uma “desmundanização”: a salvação prometida pela
ressurreição envolve a realidade inteira e não só a
humanidade (Cl 1, 20: “para por meio dele [Jesus
ressuscitado], reconciliar consigo todas as coisas, tanto as
terrestres como as celestes, estabelecendo a paz pelo seu
sangue derramado na cruz”).
De tudo aquilo que foi exposto acima podemos
concluir: a ressurreição não é a continuidade de uma alma
imortal “desencarnada”; não é nem mesmo o retorno desta
“alma” a um novo corpo (que seria a reencarnação); não é
simplesmente voltar a viver, como aconteceu com a filha de
Jairo e com Lázaro, tendo recuperado a vida, voltaram à
mesma condição existencial de antes e de novo morreram
(isto seria reviver)71; não é nem mesmo uma ação de Deus
para recriar quem houvesse morrido totalmente, porque
neste caso não haveria mais continuidade entre o que
morreu e o que ressuscitou (seria verdadeiramente uma
criação nova).
Ao iniciar o documento Gaudium et Spes, o Concílio explicita
que é esta a visão de homem que orienta sua compreensão: “É a
pessoa humana que deve ser salva. É a sociedade humana que deve ser
renovada. É, portanto, o homem considerado em sua unidade e
totalidade, corpo e alma, coração e consciência, inteligência e vontade,
que será o eixo de toda a nossa explanação”(n.3) .
71
CATECISMO DA IGREJA CATOLICA, n.646: “A
ressurreição de Cristo não constitui uma volta à vida terrestre, como
foi o caso das ressurreições que Ele havia realizado antes da Páscoa: a
filha de Jairo, o jovem de Naim e Lázaro. Tais fatos eram
acontecimentos miraculosos, mas as pessoas contempladas pelos
milagres voltaram simplesmente à vida ‘ordinária’, pelo poder de
Jesus. Em determinado momento, voltariam a morrer. A ressurreição
de Cristo é essencialmente diferente”.
70
62
A ressurreição é esta existência transformada e
plenificada pela presença de Deus Trindade (elemento de
novidade) da pessoa na totalidade de seu ser individual e
social (elemento de continuidade). Podemos afirmar que a
ressurreição faz de nós aquilo que Deus sempre quis que
fôssemos (condição que havíamos perdido – não apenas
enquanto indivíduo, mas também como gênero – pelo
pecado72). Portanto, com o termo ressurreição expressamos
tanto o processo de restauração daquilo que Deus quer que
sejamos quanto o estado definitivo que alcançamos no
termo deste processo73.
Por fim, a ressurreição é uma “certeza de nossa fé”,
horizonte dentro do qual nós a podemos desde já
experienciar, por exemplo, nos sacramentos, como no
batismo: “Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos
batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte?
Pelo batismo fomos sepultados como ele na morte, para que,
GAUDIUM ET SPES, n.18: “Ensina a fé cristã que a morte
corporal, da qual o homem seria subtraído se não tivesse pecado, será
vencida um dia, quando a salvação perdida pela culpa do homem lhe
for restituída por seu onipotente e misericordioso Salvador. Pois Deus
chamou e chama o homem para que ele, com a sua natureza inteira, dê
sua adesão a Deus na comunhão perpétua da incorruptível vida
divina”.
73
Ibidem, n.39: “Nós ignoramos o tempo da consumação da
terra e da humanidade e desconhecemos a maneira de transformação
do universo. Passa certamente a figura deste mundo deformada pelo
pecado, mas aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra.
Nela habita a justiça e sua felicidade irá satisfazer e superar todos os
desejos da paz que sobem nos corações dos homens. Então, vencida a
morte, os filhos de Deus ressuscitarão em Cristo, e o que foi semeado
na fraqueza e na corrupção revestir-se-á de incorrupção. Permanecerão
o amor e sua obra e será libertada da servidão da vaidade toda aquela
criação que Deus fez para o homem”.
72
63
assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por meio da
glória do Pai, assim também nós possamos caminhar numa
vida nova” (Rm 6, 3-4). E esta fé em uma existência pósmorte, longe de nos afastar de nossos compromissos na
construção deste mundo, serve de estímulo74.
Só podemos concluir com a resposta pascal:
Aleluia, Aleluia!
Ibidem, n.21: “A Igreja ensina, além disso, que a esperança
escatológica não diminui a importância das tarefas terrestres, mas
antes apóia o seu cumprimento com motivos novos”. E “a esperança
de uma nova terra, longe de atenuar, antes deve impulsionar a
solicitude pelo aperfeiçoamento desta terra” (n.39).
74
64
6. RESSURREIÇÃO DA CARNE
Em outras edições deste jornal já tratei do tema da
ressurreição, especialmente quando trabalhei a ressurreição
de Cristo. Aqui retomo este tema, mas dando uma atenção
particular à nossa esperança na “ressurreição da carne”.
Podemos iniciar lembrando uma constatação de Santo
Agostinho que parece perfeitamente atual: “Em nenhum
ponto a fé cristã se depara com mais contradição do que em
torno da ressurreição da carne” (Psal. 88, 2,5). E Orígenes
reclama que: “o mistério da ressurreição, por não ser
compreendido devidamente, é motivo de escárnio constante
dos descrentes” (Contra Celso I,7). E, no entanto, a
ressurreição dos mortos sempre foi na tradição cristã, um
dos artigos de fé mais categoricamente atestados.
Esta perplexidade nos lembra a dos discípulos ao
descerem da montanha após a experiência da
transfiguração: “Jesus recomendou-lhes que não contassem
a ninguém o que tinham visto, até que o filho do Homem
tivesse ressuscitado dos mortos. Eles observaram a
recomendação e se perguntavam o que queria dizer
‘ressuscitar dos mortos’” (Mc 9, 9-10).
Hoje a palavra ressurreição é, além de um termo
técnico da teologia cristã, um termo popularizado. Seu
significado está mais ou menos fixado. Mas é preciso
lembrar que para o ambiente dos apóstolos – e mesmo antes
– esta realidade que estavam vivenciando era algo novo e
não possuíam uma palavra para designá-la em toda sua
65
riqueza, o que os forçava a expressar-se através de palavras
já conhecidas, mas carregadas de um significado novo.
Etienne Charpentier nos explica que ressuscitar: “esta única
palavra em português traduz, na realidade, duas imagens
‘fazer levantar, surgir’ (anistai, em grego) ou então ‘fazer
levantar, despertar’ (égeirein, em grego).
Estas duas palavras fazem parte da linguagem
corrente para exprimir a passagem da posição deitada para a
posição de pé ou do sono ao despertar. Quando aplicadas
aos defuntos, apelam para uma mentalidade mítica (comum
a muitos povos) na qual a morte é concebida como um sono
ou como a descida aos ‘infernos’”75, que era para estes
povos, um lugar indiferenciado para todos os mortos, como
o Hades para os gregos ou o Sheol para os judeus (por
exemplo: Jó 3, 19; Ecl 2, 15), não tendo ainda o significado
que tem hoje, concepção possível porque nem os gregos
nem os judeus acreditaram em uma morte “total” do
homem.
Com a palavra ressurreição se começou a indicar
uma experiência que ia muito além de um simples “levantarse” ou “acordar” de uma noite de sono. Com ela se começou
a indicar esta experiência de fé em uma existência pessoal
depois da morte. É uma experiência de fé porque brota da
certeza que Deus é fiel e não abandona os que são seus.
Deus se revela como o Deus da vida, também para aqueles
que passam pela morte. Deus possibilita uma existência
pessoal, ou seja, quem ressuscita é verdadeiramente aquele
que morreu. Há aqui uma identidade que expressa uma
CHARPENTIER, E., Cristo ressuscitou! São Paulo: Paulinas,
1983, p.31.
75
66
continuidade, embora para uma situação existencial
completamente nova, expressa em nossa frase com o
“depois da morte”, indicando assim uma novidade. Eis a
chave de leitura para falarmos em ressurreição: entre a
pessoa que morre e ressuscita, existe uma continuidade –
expressa pela sua identidade (é a mesma pessoa que morre a
que ressuscita) – e uma descontinuidade, ou seja, uma
novidade (a pessoa ressuscitada possui uma condição
existencial toda nova que nós somente ousamos imaginar
como seria).
Podemos
constatar
esta
continuidade
e
descontinuidade já na experiência de Jesus ressuscitado:
Jesus ressuscitado é o mesmo que foi crucificado (o texto
mais forte desta identidade é o que se refere à descrença de
Tomé: “Estenda aqui o seu dedo e veja minhas mãos.
Estenda a sua mão e toque o meu lado. Não seja incrédulo,
mas tenha fé” – Jo 20, 27; ver também: Lc 24, 36-43, onde
Jesus até come para demonstrar que é real); são também
inúmeras
as passagens onde percebemos
esta
descontinuidade: a dificuldade que possuem de imediato
para “reconhecer” Jesus; o fato de Jesus ressuscitado não
estar mais sujeito às nossas leis físicas (como em Jo 20, 26:
“Estando fechadas as portas, Jesus entrou”).
Frente aos povos vizinhos, Israel chegou a uma idéia
de existência pessoal pós-morte somente tardiamente. Em
seus inícios, a concepção que possuíam era de uma longa
descendência (esta era justamente o objeto da bênção). O
que se pode vislumbrar aqui é, portanto, uma existência
impessoal (o pai continua nos filhos, netos e assim por
diante). Este modo de concepção não é estranho também em
nossa época. Muitas pessoas acreditam que se perpetuam em
67
seus feitos ou na memória das pessoas ou da sociedade. O
horizonte de compreensão do homem judeu também é
diferente do nosso. Ali, a sociedade, o povo é que é
referência, ainda não se tem a idéia de indivíduo como
posteriormente. Por isso, mesmo as primeiras expressões de
uma fé na ressurreição serão para o povo e não para o
indivíduo.
Um exemplo a ser lembrado é Os 6, 1-3,
principalmente o versículo 2: “em dois dias ele nos fará
reviver, e no terceiro dia nos fará levantar, e passaremos a
viver na sua presença”. Quando a situação obrigar a fé
judaica a dar uma resposta para além da coletividade, isto é,
para o indivíduo, emergirá a fé na ressurreição dos mortos.
Esta situação é aquela dos mártires. Temos então o primeiro
testemunho categórico da ressurreição dos mortos no livro
de Daniel, especialmente ao longo do capítulo 12. Também
o segundo livro dos Macabeus, principalmente os capítulos
7 e 12 (7,9: “Você bandido, nos tira desta vida presente,
mas o rei do mundo nos fará ressuscitar para uma
ressurreição eterna de vida, a nós que agora morremos
pelas leis dele”).
Para Ruiz de la Peña “esta fé na ressurreição não
surge de uma elucubração conceitual, senão da reflexão dos
crentes sobre uma circunstância histórica. O fato do martírio
re-propõe agudamente as velhas perguntas de Jó. (...) a
única resposta digna de Deus, a única que o faz crível, digno
de crédito, é a ressurreição, a saber, a ação pela qual Deus
devolve, centuplicada, essa vida que o mártir havia
entregue”.
68
O Novo Testamento nos mostra a comunidade dos
judeus dividida frente à fé na ressurreição. A posição de
Jesus é firme e clara. Embora não fale com freqüência da
ressurreição, sua polêmica com os saduceus não deixa
dúvida (Mc 12, 18-27). Os Apóstolos e tantos outros das
primeiras comunidades fizeram a experiência da
ressurreição de Jesus (Lc 24, 9-10.34.36; At 1,22), que
passa a ser o fundamento da fé em nossa própria
ressurreição (1Cor 15, 12-18). Esta experiência é o fato
central de todo o NT. E o primeiro anúncio (querigma) dos
cristãos foi justamente este: “Deus ressuscitou Jesus”.
Pode-se lembrar, por exemplo, At 2, 14-36. Entre os
textos mais antigos do NT que procuram refletir sobre a
ressurreição: 1Ts 4, 13-17 (no qual São Paulo deve explicar
para a comunidade o que acontece com os irmãos que
morrem antes da segunda vinda de Cristo, a parusia); 1Cor
15 e 2Cor 5, 1-5 (onde São Paulo reflete também sobre a
corporeidade na ressurreição).
Podemos concluir: quando o NT afirma a
ressurreição, não está afirmando uma salvação
“desencarnada” (como a que pregavam os gregos através
da sobrevivência da alma imortal); também não está
afirmando uma salvação “privatizada” (do indivíduo
somente): a promessa de salvação é para todo o gênero
humano e a ressurreição é um evento comunitário. Em nossa
existência o outro, aquele com o qual nos encontramos,
convivemos, não é um mero acréscimo, faz parte
verdadeiramente do que somos, por isso afirmamos que o
ser humano é “naturalmente” um ser social. Portanto, não
podemos pensar a ressurreição individualisticamente, como
muitas vezes foi apresentada na história moderna. Estaria
69
completamente fora do espírito bíblico e da tradição da
Igreja. Por fim, a salvação não é uma “desmundanização”.
A salvação prometida pela ressurreição envolve a realidade
inteira e não só a humanidade (Cl 1, 20: “para por meio dele
[Jesus ressuscitado], reconciliar consigo todas as coisas,
tanto as terrestres como as celestes, estabelecendo a paz
pelo seu sangue derramado na cruz”).
De tudo aquilo que foi exposto acima podemos
concluir: a ressurreição não é a continuidade de uma alma
imortal “desencarnada”; não é nem mesmo o retorno desta
“alma” a um novo corpo (que seria a reencarnação); não é
simplesmente voltar a viver, como aconteceu com a filha de
Jairo e com Lázaro, tendo recuperado a vida, voltaram à
mesma condição existencial de antes e de novo morreram
(isto seria reviver); não é nem mesmo uma ação de Deus
para recriar quem houvesse morrido totalmente, porque
neste caso não haveria mais continuidade entre o que
morreu e o que ressuscitou (seria verdadeiramente uma
criação nova).
Foi justamente em um momento em que se colocou
em risco esta integridade da fé na ressurreição, que o
magistério da Igreja usou a expressão ressurreição da
carne, que é substancialmente o mesmo que ressurreição
dos mortos ou simplesmente, ressurreição. Somente de
modo secundário, a palavra carne indica biblicamente no
homem a matéria de seu corpo, e ainda quando o faz, é de
modo positivo.
A carne foi criada por Deus (e tudo o que Deus criou
é bom!), a carne foi assumida pelo Filho de Deus e
transfigurada pelo Espírito de Deus (é por isso que nós
70
cristãos podemos afirmar que cremos na ressurreição da
carne). Mas a carne indica a condição de criatura em sua
dependência absoluta do criador. A carne passou a indicar o
homem concreto, em sua existência cotidiana, em suas
relações com os outros e com a natureza. Com a palavra
carne, se quer expressar que o ressuscitado será
integralmente o homem mesmo e não apenas uma parte
dele, ou isolado de suas relações.
A ressurreição é esta existência transformada e
plenificada pela presença de Deus Trindade (elemento de
novidade) da pessoa na totalidade de seu ser individual e
social (elemento de continuidade).
Podemos afirmar que a ressurreição faz de nós aquilo
que Deus sempre quis que fôssemos (condição que
havíamos perdido – não apenas enquanto indivíduo, mas
também como gênero – pelo pecado (cf. Gaudium et Spes,
18). Portanto, com o termo ressurreição expressamos tanto o
processo de restauração daquilo que Deus quer que sejamos,
quanto o estado definitivo que alcançamos no termo deste
processo (cf. Gaudium et Spes, 18).
Por fim, a ressurreição é uma “certeza de nossa fé”,
horizonte dentro do qual nós a podemos desde já
experienciar, por exemplo, nos sacramentos, como no
batismo: “Ou vocês não sabem que todos nós, que fomos
batizados em Jesus Cristo, fomos batizados na sua morte?
Pelo batismo fomos sepultados como ele na morte, para
que, assim como Cristo foi ressuscitado dos mortos por
meio da glória do Pai, assim também nós possamos
caminhar numa vida nova” (Rm 6, 3-4).
71
E esta fé em uma existência pós-morte, longe de nos
afastar de nossos compromissos na construção deste mundo,
serve de estímulo (cf. Gaudium et Spes, 21).
72
7. O CATÓLICO PODE ACREDITAR EM
REENCARNAÇÃO?
Não!
A reencarnação é incompatível com a fé cristã.
Portanto, não apenas os católicos não crêem na
reencarnação, mas qualquer cristão76. Mas será que esta
afirmação reflete a realidade? Segundo Boaventura
Nos pronunciamentos do Magistério da Igreja podemos
encontrar muitas condenações – ainda que nem sempre explícitas – à
doutrina da reencarnação, um exemplo é a condenação das teses de
Orígenes pelo Sínodo de Constantinopla, em 543 (DS 403-411). Um
exemplo mais atual e acessível é a condenação que faz o Catecismo
da Igreja Católica: “A morte é o fim da peregrinação terrestre do
homem, do tempo de graça e de misericórdia que Deus lhe oferece
para realizar a sua vida terrestre segundo o projeto divino e para
decidir o seu destino último. Quando tiver terminado ‘o único curso da
nossa vida terrestre’, não voltaremos mais a outras vidas terrestres.
‘Os homens devem morrer uma só vez’ (Hb 9,27). Não existe
‘reencarnação’ depois da morte” (n.1013). Também o papa João Paulo
II se manifestou contra a reencarnação em sua Carta apostólica Tertio
Milennio Adveniente, n.9: “Alguns imaginam várias formas de
reencarnação: consoante o modo como tivesse vivido durante a
existência mais nobre ou mais humilde, até atingir a plena purificação.
Muito radicada nalgumas religiões orientais, esta crença indica, entre
outras coisas, que o homem não pode resignar-se à irrevogabilidade da
morte. Está convencido da própria natureza essencialmente espiritual e
imortal”. E o papa continua: “A revelação cristã exclui a reencarnação
e fala de um cumprimento que o homem é chamado a realizar no curso
de uma única existência sobre a terra”.
76
73
Kloppenburg, uma pesquisa feita em 1996, revelou que 35%
da população brasileira aceita a doutrina da reencarnação77.
Se esta estatística é exata ou não, não importa muito,
mostra que em um país de maioria esmagadora de cristãos
como o nosso, certamente existem muitos cristãos que
aceitam a doutrina da reencarnação. Como afirmei antes, a
fé cristã na ressurreição é incompatível com a doutrina da
reencarnação, ou seja, há uma falta de compreensão ou do
cristianismo ou do reencarnacionismo78.
Mas porque então a reencarnação atrai? São muitos os
motivos costumeiramente alegados, lembramos alguns:
antes de tudo, porque vem de encontro com um anseio
profundo de todos que é justamente a busca de salvação. A
afirmação de muitas vidas – além de preencher o desejo de
imortalidade – parece permitir uma maior segurança
psicológica de salvação: muitas vidas = muitas chances de
salvação.
KLOPPENBURG, B., Reencarnação? Petrópolis: Vozes,
1998, p.13. Battista Mondin cita uma pesquisa feita em nove países
europeus cujo resultado indicou que 21% dos entrevistados aceitam a
doutrina
da
reencarnação
(Preesistenza,
sopravvivenza,
reincarnazione. Milão: Editrice Àncora, 1989, p.33).
78
KLOPPENBURG, B., Reencarnação? Petrópolis: Vozes,
1998, p.9: “Os cristãos rezam: ‘Creio na ressurreição da carne’.
Jamais como hoje, tem havido tanta necessidade de sublinhar esta
parte do Credo da Igreja. A ressurreição e a esperança cristã são
unidas de maneira indissolúvel. Onde desaparece a fé na ressurreição,
ela é substituída pela crença na reencarnação. A fé na ressurreição e a
teoria da reencarnação são duas interpretações profundamente
diferentes do enigma da vida e do mistério depois da morte. Trata-se
de duas tomadas de posição fundamentais acerca da vida e de duas
diferentes formas de esperança”.
77
74
A doutrina da reencarnação atrai também pela
simplicidade de suas afirmações (é uma resposta muito
simples para os sofrimentos presentes: sofre-se como
purificação de males cometidos no passado); além de
explorar uma região do ser humano que ainda é mistério, o
sobrenatural – algo muito precioso em um mundo
racionalizado e tecnificado como o nosso. Assim, aqueles
fenômenos que ainda não possuem uma explicação
convincente pela ciência acabam sendo utilizados como
justificação de “vidas passadas”.
Por que não podemos aceitar a doutrina da
reencarnação? Os motivos também são muitos. Lembremos
ao menos os principais. Antropologicamente (ou seja, do
ponto de vista do homem) parte de um equívoco. Afirma
que a pessoa humana identifica-se com sua alma. Em outras
palavras: o homem é a sua alma. É isto que possibilita a
transmigração da alma (reencarnar-se em um outro corpo).
Nesta visão, o corpo não importa decisivamente para
o ser da pessoa, é um acessório, instrumento ou princípio de
limitação; tanto é verdade que para o reencarnacionista o
corpo é algo “exterior”, tão secundário que, para muitos
tipos de reencarnacionistas, a alma poderá se encarnar em
um animal qualquer e não apenas em “corpos humanos”. Já
dizia Platão – fazendo eco aos pitagóricos – que o corpo é o
cárcere da alma. Há uma desvalorização da corporeidade e
de tudo o que diretamente se refere a ela.
A libertação significa libertar-se do “peso” da
corporeidade. Diante da crença na reencarnação, a seriedade
e tragicidade da morte é enfraquecida, banalizada. Perde-se
75
a “unicidade e irrepetibilidade” da pessoa. As decisões
livres do homem, que comprometem sua existência, acabam
sendo desvalorizadas.
Foi frente a este perigo de desvalorização da
corporeidade que a Igreja sentiu necessidade de proclamar
como dogma de fé: “creio na ressurreição da carne”79. Ou
seja, a promessa de ressurreição é para o homem inteiro,
corpo e alma80.
O mundo e tudo o que está diretamente relacionado
ao homem perde sentido, já que o corpo – a “mundaneidade
do homem” – não é levada a sério. A reencarnação não leva
a sério o fato do “homem ser pó e voltar ao pó”. Na visão
re-encarnacionista a promessa de plenitude, vida eterna, não
envolve o cosmo (o universo por inteiro), mas somente a
alma. Isto contrasta com nossa fé na ressurreição que se
refere a toda a criação. São Paulo é muito claro:
Catecismo da Igreja Católica, n.990: “O termo ‘carne’
designa o homem na sua condição de fraqueza e de mortalidade. A
‘ressurreição da carne’ significa que após a morte não haverá somente
a vida da alma imortal, mas que mesmo os nossos ‘corpos mortais’
(Rm 8,11) readquirirão vida”.
80
O “como” será esta corporeidade ressuscitada já incomodava
os cristãos do tempo de Paulo, que responde de um modo singelo e
poético em sua primeira carta aos Coríntios, principalmente no
capítulo 15. “Ressuscitar ‘com o mesmo corpo’ significa, como
conseqüência e desde logo, recuperar a própria vida em todas as suas
dimensões autenticamente humanas; não perder nada de tudo aquilo
que agora constitui e singulariza a cada homem” (RUIZ DE LA
PEÑA, J. L., La Pascua de la creación. Escatologia. Madri: BAC,
2000, p.173).
79
76
“Penso que os sofrimentos do momento presente não
se comparam com a glória futura que deverá ser
revelada em nós. A própria criação espera com
impaciência a manifestação dos filhos de Deus.
Entregue ao poder do nada – não por sua própria
vontade, mas por vontade daquele que a submeteu – a
criação abriga a esperança, pois ela também será
liberta da escravidão da corrupção, para participar
da liberdade dos filhos de Deus. Sabemos que a
criação toda geme e sofre dores de parto até agora”
(Rm 8, 18-22)81.
A fé cristã desconhece a promessa de vida eterna para
uma “alma espiritual desmundanizada”82, pelo contrário, a
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., Resurrección o reencarnación?
Communio (1980) p.298: escrevendo sobre a incompatibilidade entre
a ressurreição (fé cristã) e a reencarnação afirma: “Seu não à
reencarnação está já pré-anunciada no não às premissas desta, a seus
pressupostos ontológicos e éticos. O último artigo do Creio cristão
(‘cremos na ressurreição dos mortos’) se deriva rigorosamente do
primeiro (‘cremos em Deus Pai, criador de todas as coisas, visíveis e
invisíveis’). Não é casual, pois, que as três grandes religiões que
assentam sua compreensão da realidade no dado criação (judaísmo,
cristianismo, islamismo) repudiam o conceito de metempsicose”.
Metempsicose é a transmigração da alma.
82
Aqui cabe lembrar também da sociabilidade fundamental do
ser humano. O homem se constitui naquilo que é a partir de sua
vivência com os outros homens. A afirmação de ser o homem “um ser
relacional”, que se constitui no “encontro” com o outro, impede
qualquer antropologia individualista: “ressurreição é um conceito
corporativo, comunitário. A carne que ressuscita está feita de
proximidade, tem sido amassada no molde da socialidade. A salvação
que se promete e confere com a ressurreição não é individualista, não
é o salvamento do naufrago solitário, senão a reconstituição da
81
77
promessa é para todas as criaturas (embora cada uma a seu
modo). Porque Deus é o criador de tudo, é também O
salvador de tudo. E tudo o que faz o faz por amor83.
Temos que rejeitar a doutrina da reencarnação porque
ela não valoriza a Encarnação e morte redentora de Cristo.
Não somos salvos por nossas próprias forças. Por mais vidas
que tivéssemos, a plenitude ou vida eterna, é dom de Deus.
Afirmar que a salvação é graça não significa que isto
dispense nossos esforços por sermos melhores e termos um
mundo melhor. Por outro lado, ter muitas vidas não
significa garantia de salvação.
No fundo, uma ou muitas vidas, representam a mesma
possibilidade de resposta ao diálogo amoroso com o
Criador. Falar em salvação sem ter claro a graça salvífica e
mediadora de Cristo é anti-cristão.
A Palavra de Deus também nos ensina que a
reencarnação não faz sentido84. Basta-nos recordar duas
unidade originária de toda a família humana” (RUIZ DE LA PEÑA, J.
L., Resurrección o reencarnación? Communio (1980) p.299).
83
Catecismo da Igreja Católica, n.992: “A ressurreição dos
mortos foi revelada progressivamente por Deus a seu povo. A
esperança na ressurreição corporal dos mortos foi-se impondo como
uma conseqüência intrínseca da fé em um Deus criador do homem
inteiro, alma e corpo”.
84
Embora muitos reencarnacionistas queiram ver na Bíblia um
fundamento para a reencarnação, segundo eles “o próprio Cristo teria
ensinado formalmente a pluralidade de nossas existências corporais.
Porquanto, doutrina Kardec, ‘o princípio da reencarnação era ponto de
uma das crenças fundamentais dos Judeus, ponto que Jesus e os
profetas confirmaram de modo formal: donde se segue que negar a
reencarnação é negar as palavras de Cristo’” (KLOPPENBURG, B.,
Reencarnação? Petrópolis: Vozes, 1998, p.41). O próprio
78
citações: o capítulo 15 da primeira carta aos Coríntios e Hb
9,27: “Está estabelecido que os homens devem morrer uma
só vez e depois disso vem o julgamento”. Mas olhando mais
profundamente a questão, percebemos que a concepção de
homem que perpassa toda a Bíblia é uma noção unitária,
incompatível com a doutrina da reencarnação.
Concluindo, nossa fé na ressurreição assenta-se em
Cristo. “Se se prega que Cristo ressuscitou dos mortos,
como podem alguns dentre vós dizer que não há
ressurreição dos mortos? Se não há ressurreição dos mortos,
também Cristo não ressuscitou. E se Cristo não ressuscitou,
vazia é nossa pregação, ilusória é também vossa fé” (1Cor
12ss).
“É por isso que tudo suporto por causa dos
escolhidos, para que também eles alcancem a
salvação que está em Jesus Cristo, com a glória
eterna. Estas palavras são certas: se com ele
morremos, com ele viveremos; se com ele sofremos,
com ele reinaremos. Se nós o renegamos, também ele
nos renegará. Se lhe formos infiéis, ele permanece
fiel, pois não pode renegar a si mesmo” (2Tim 2, 1013).
Kloppenburg responde detalhadamente a esta questão, fazendo ver
como a interpretação que fazem da Bíblia é equivocada e tendenciosa.
79
8. PARUSIA.
8.1 Vem Senhor!
Seguindo
a
fórmula
do
Credo
Nicenoconstantinopolitano rezamos: “Ressuscitou ao terceiro dia,
conforme as escrituras, e subiu aos céus, onde está sentado
à direita do Pai. E de novo há de vir, em sua glória, para
julgar os vivos e os mortos; e o seu reino não terá fim”.
O juízo ou julgamento é uma verdade de fé comum
em nossa escatologia (o discurso teológico a respeito
daquelas realidades últimas, tais como a morte,
ressurreição, céu e inferno). Mas na interpretação deste
“julgar” se tem feito muita confusão ao longo da história.
Este é, portanto, um tema de imenso interesse para nossa
religiosidade.
Não se pode falar de juízo ou juízo final sem
mencionar a segunda vinda de Cristo, a parusia. São duas
categorias que possuem uma intrínseca relação, expressando
a convicção de nossa fé quanto ao sentido último da história
humana. Com o termo parusia indica-se este “momento” em
que Deus levará à plenitude toda sua criação e, portanto, não
apenas o gênero humano, realizando seu objetivo amoroso
de nossa criação.
O Novo Testamento (NT), para afirmar este
acontecimento salvífico, faz uso deste vocábulo grego,
80
tomado do helenismo, parusia (de páreimi, que significa
“estar presente” ou “chegar”). No helenismo indicava a
visita do imperador, principalmente como boa notícia,
trazendo ajuda. Como os reis e imperadores eram
considerados de condição “divina”, o imperador era saudado
como senhor e portador de salvação. Tudo isto faz com que
a parusia tenha um caráter jubiloso e festivo.
O Antigo Testamento (AT) não conheceu o termo
parusia. Mas o NT o usa com freqüência: 24 vezes e com o
sentido que tinha no helenismo. Com ele indica o advento
glorioso de Cristo no final dos tempos (uma exceção, no
entanto, encontramos em 2Ts 2,9). Mas o NT o faz com
imagens nitidamente bíblicas. A passagem neotestamentária
mais antiga onde se faz referência à parusia é 1Ts 4,15:
“Pois isto vos declaramos, segundo a palavra do
Senhor: que os vivos, os que ainda estivermos aqui
para a Vinda do Senhor, não passaremos à frente dos
que morreram” (tradução da Bíblia de Jerusalém).
Paulo, nesta passagem, está respondendo à
comunidade de Tessalônica quanto à preocupação
manifestada sobre os que morreram antes da parusia,
preocupação expressa nos versículos de 13 a 14:
“Irmãos, não queremos que ignoreis o que se refere
aos mortos, para não ficardes tristes como os outros
que não têm esperança. Se cremos que Jesus morreu
e ressuscitou, assim também os que morreram em
Jesus, Deus há de levá-los em sua companhia”.
81
A parusia está conectada com o fim do mundo:
“Estando ele sentado no monte das Oliveiras, os discípulos
se aproximaram dele, a sós, dizendo: ‘Dize-nos quando vai
ser isso, e qual o sinal da tua Vinda e da consumação dos
tempos’” (82P 24,3; outras citações 82P 24,27.37.39; 1Ts
2,19; 3,13; 2Ts 2,1.8; 1Pd 3,4.12) e com o juízo: “O Deus da
paz vos conceda santidade perfeita; e que o vosso ser
inteiro, o espírito, a alma e o corpo sejam guardados de
modo irrepreensível para o dia da Vinda de nosso Senhor
Jesus Cristo” (1Ts 5,23; ver também: 1Jo 2, 28).
A descrição mais direta e completa da parusia está em
1Ts 4,13-18. A inseparabilidade da parusia dos outros
elementos que compõe o eschaton (palavra grega que indica
os acontecimentos últimos, como o juízo, e que foi utilizada
em Eclo 7,36 (40 da Vulgata): “Em todas as tuas ações
lembra-te do teu fim e jamais pecarás!”. Teu fim traduz o
grego ta eschata, daí eschaton) encontra-se principalmente
em 1Cor 15.
Existem outras expressões que indicam a mesma
realidade que nós nomeamos com parusia: a mais comum é
o “dia do senhor”(1Ts 5,2; 2Ts 2,2; 1Cor 5,5), com suas
variantes: “o dia de nosso senhor Jesus Cristo (1Cor 1,8), “o
dia de nosso senhor Jesus” (2Cor 1,14), “o dia de Cristo” (Fl
1,10) ou simplesmente “o dia” (1Cor 3,13; Rm 2,16). Na
verdade, é uma transposição cristológica do “dia de Javé”
do AT. Outras expressões equivalentes: epifania: “aparição”
(2Tm 1,10); apocalipses: “revelação” (1Cor 1,7);
phaneroun: “manifestação” (Cl 3,4).
Podemos encontrá-la também em um contexto
litúrgico, como na oração aramaica marana tha (“vem
82
Senhor” cf. 1Cor 16,22; 83P 22,20); Que permite também a
leitura maran atha (“o Senhor vem”).
Embora do ponto de vista ético a parusia possa ter
sido entendida por alguns como evasão do mundo (1Cor
7,29-31), ela expressa compromisso com o mundo (2Ts 3,612). Na verdade, a chave de leitura está em 1Cor 7,32: a
esperança na parusia é libertadora enquanto relativiza os
valores intramundanos, e quem estiver livre de
preocupações passageiras, poderá se dedicar integralmente
ao Senhor.
Uma das questões mais debatidas é se a afirmação da
parusia comporta um “fim do mundo”, entendido como
término. Foram defendidas tanto uma quanto outra postura:
a parusia implica um término da história; a parusia não
implica um término “temporal” da história. A postura dos
principais teólogos do século vinte é pela primeira. A
consumação escatológica implica um término da história,
um “fim do mundo”. Mas isso não quer dizer que será
catastrófico.
A parusia finaliza o mundo não o destruindo, mas o
consumando. Cristologicamente, a parusia pode ser
entendida como o desvelamento ou revelação de algo que já
é atual: que Ele é o Senhor. Propriamente falando, não
existe duas vindas de Cristo, mas uma única, a encarnação.
O NT não fala de um “retorno” ou “volta” de Cristo; não
existe aqui um vazio cristológico. Cristo continua presente
(no tempo da Igreja de maneira especial nos sacramentos).
É preciso evitar a impressão que os fatos aguardados
para o final dos tempos sejam um conjunto de
83
acontecimentos (parusia, ressurreição, juízo, nova criação),
sejam fatos independentes entre si. A parusia é o último ato
da história da salvação: é a páscoa da criação. O destino
cristológico está presente na criação desde seu início: Cristo
é o eschaton (não “tem” eschaton).
Várias passagens do NT usam imagens fortes para
falar do eschaton: “são muito mais a roupagem simbólica de
seu caráter transcendente, situado mais além de nossos
pobres recursos expressivos. Na realidade, o único meio
apto para verbalizar esse evento é precisamente o símbolo,
já que, em si mesmo, é indescritível e inimaginável. Com
efeito, o término do tempo, como seu começo, escapa à
nossa experiência sensível...”85.
É preciso lembrar que, assim como hoje aceitamos
sem maiores problemas que o relato da criação seja
simbólico, não há porque não aceitarmos que seu término
também o seja.
A parusia é a páscoa da criação porque indica a
passagem para uma vida nova, para a nova criação, a
plenitude de todas as criaturas. Só posso terminar esse artigo
com maranatha! (“Vem Senhor!”).
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000, p.139 .
85
84
8.2 (...) de novo há de vir em sua glória, para julgar
os vivos e os mortos”
Acima escrevi sobre a Parusia. Com esta palavra
expressamos nossa fé na consumação da história;
“momento” no qual toda a criação atingirá a sua plenitude
pela presença (esta é, justamente, uma das traduções da
palavra parusia) vivificante e elevante do Filho. Os
primeiros cristãos esperavam ansiosos esta “vinda”. Ela se
tornou mesmo objeto de pedido litúrgico: marana-tá – Vem
Senhor! (1Cor 16,22 - sigo a transliteração da Bíblia
Sagrada – Edição Pastoral).
A razão desta expectativa na vinda do Senhor estava
justamente na felicidade desta plenitude. Implica uma
transformação das criaturas, de todas as criaturas, cada uma
conforme ao seu modo de existir. Podemos simplesmente
dizer que Cristo fará das criaturas aquilo que sempre almejou
que fossem. Estabelecerá sobre elas o seu poder, o seu
governo. Em termos bíblicos: o Reinado de Deus estará
totalmente estabelecido.
Mas no mundo dos homens e mulheres,
diferentemente das outras criaturas, nem tudo poderá ser
assumido e elevado à sua plenitude. Antes, deverá ser
negado e superado. Refiro-me a todo mal. Na experiência
que fazemos do mundo, existem muitos limites naturais.
Mas, também fazemos experiência de um limite
propriamente humano, aquele fruto da ação livre e
consciente. Costumamos nomeá-lo simplesmente como
pecado. Em nosso encontro definitivo com Cristo na parusia,
85
nossas ações pecaminosas não poderão ser integradas,
porque a parusia pressupõe justamente a plenitude da
comunhão com Cristo (e por extensão com os irmãos e toda
a criação), e o pecado é a ruptura dessa comunhão. É preciso,
portanto, um juízo sobre o bem e o mal.
Acostumamos com a idéia de que seremos julgados.
Que haverá um juízo particular, pessoal, e um juízo final. O
julgar faz parte de nossa experiência humana cotidiana. Não
deveria ser diferente quando pensamos em nossa existência
como um todo. Mas como compreender o juízo, como por
exemplo, quando rezamos o Creio?
No creio rezamos: “... de novo há de vir em sua
glória, para julgar os vivos e os mortos”. Mas na
interpretação deste “julgar” se tem feito muita confusão. É
preciso começar distinguindo entre o juízo escatológico (que
o credo liga à parusia) e o juízo-crise (determinação do
destino último de cada pessoa). Esse duplo significado para
juízo já está contido na Bíblia: o verbo hebraico safat
significa indiferentemente julgar e governar. Quando Deus
intervém na história, Deus julga.
E sua intervenção tem sempre uma dupla vertente:
salvífica e judicial. A prioridade corresponde, contudo, ao
aspecto salvífico; o juízo divino é, fundamentalmente, para
a salvação. As vitórias de Israel, manifestações da soberania
de Javé, podem assim ser chamadas ‘juízos’: o Javé juiz é o
auxílio de seu povo (cf. Jz 11,27; 2Sm 18,31; Dt 33,21; etc).
Esta concepção do juízo como desenrolar do poder régio se
conservará no Novo Testamento. Textos como Mt 25,31ss;
Lc 10,18; 2Ts 2,8; 1Cor 15,24-28, etc., mostram que o juízo
será a vitória definitiva de Cristo sobre os poderes hostis.
86
Compreende-se assim, que parusia e juízo apareçam, tanto
no Novo Testamento como nos Credos elaborados pelos
Concílios na história da Igreja, estreitamente unidos.
Podemos até afirmar que “a parusia é o juízo e o juízo é a
parusia”.
Mas não podemos nos esquecer que ao longo da
história muitas vezes esta esperançosa vinda do Senhor foi
usada para amedrontar as pessoas, tendo como finalidade, o
mais das vezes, um rigorismo moral, chegando mesmo a
criar pânico nas pessoas o pensar em um juízo final (ou
escatológico).
O papa Bento XVI, em sua encíclica Spe Salvi - Sobre
a Esperança Cristã, liga essa passagem da esperança para a
ameaça à evolução da iconografia, ou seja, à arte de
representar por meio da imagem:
“Na evolução da iconografia, porém, foi se dando
cada vez mais relevo ao aspecto ameaçador e lúgubre
do Juízo, que obviamente fascinava os artistas mais
do que o esplendor da esperança que acabava, com
freqüência, excessivamente escondido sob a ameaça”
(n.51).
Frente a essas deformações, é preciso recuperar a
compreensão original do juízo escatológico como
intervenção decisiva do Cristo salvador. Deus criou o
mundo para a comunhão consigo. O papa também fez
questão de salientar essa idéia: “a imagem do Juízo final
não é primariamente uma imagem aterradora, mas de
esperança; a nosso ver, talvez mesmo a imagem decisiva da
87
esperança” (n.44). O evento terminal dessa história a
finaliza na plena comunhão com Ele.
Deste significado de juízo enquanto governo que
conduz à plenitude toda a criação, surge também o juízo
enquanto discernimento entre as ações boas e as más.
Podemos chamá-lo de Juízo-crise. É o juízo particular ou
pessoal. Juízo que se estabelece sobre o nosso
comportamento ético e religioso e que marca nosso destino
definitivo. Mas, o lugar deste juízo é durante a própria
existência do homem e não apenas no momento de sua
morte.
Em outras palavras, em cada ato livre, quando
decidimos, acontece este juízo. É na verdade um auto-juízo.
Ele se concretiza em cada ação onde decidimos pelo bem ou
pelo mal, vale dizer, em favor da comunhão com Deus e com
os irmãos ou nos afastando de Deus e dos irmãos.
Essa compreensão é importante, porque a ação de
Deus é sempre pela nossa salvação, somos nós quem nos
condenamos. Jesus nos expressa isso com uma clareza
inigualável:
“Deus enviou seu Filho ao mundo, não para condenar
o mundo, e sim para que o mundo seja salvo por meio
dele. Quem acredita nele, não está condenado; quem
não acredita, já está condenado, porque não
acreditou no nome do Filho único de Deus. O
julgamento é este: a luz veio ao mundo, mas os
homens preferiram as trevas à luz, porque suas ações
eram más. Quem pratica o mal, tem ódio da luz, e não
se aproxima da luz, para que suas ações não sejam
88
desmascaradas. Mas, quem age conforme à verdade,
se aproxima da luz, para que suas ações sejam vistas,
porque são feitas como Deus quer” (Jo 3, 17-21).
São Paulo, em uma pergunta, nos transmite essa
mesma verdade: “Quem condenará? Jesus Cristo? Ele que
morreu, ou melhor, que ressuscitou, que está à direita de
Deus e intercede por nós?” (Rm 8,34).
Somos nós quem nos condenamos todas as vezes que
decidimos agir contra os valores do Evangelho. Deus, pelo
infinito amor que tem por nós, permite que o rejeitemos,
embora Ele continue nos amando. Podemos dizer mesmo que
Deus “sofre” com nossa ruptura, com nosso pecado.
Não podemos dizer, portanto, que Deus nos condena,
nós nos condenamos; que Deus nos castigue, nós nos
castigamos nos afastando d’Ele, única fonte de vida plena;
contra como popularmente se costuma dizer: Deus não nos
“manda para o inferno”, somos nós que “vamos por conta
própria”, e isso contra a vontade d’Ele.
Para concluir, poderíamos nos perguntar: qual o
critério desse julgamento? Para o evangelista João, é a fé,
porque ela nos faz ver Cristo no irmão; para Mateus, é o
amor, porque nos faz agir como Cristo nos pede, o que dá no
mesmo. Quem crê em Jesus, vive seu mandamento do amor
aos irmãos. Neste sentido, deparar-se com Cristo – o homem
perfeito – é uma forma de julgamento. E viver bem, é viver
responsavelmente cada hora como a hora da decisão.
89
9. FIM DO MUNDO:
A PLENITUDE DA CRIAÇÃO
Escrevendo sobre o céu (Será o céu um lugar em
meio às nuvens?), fiz algumas afirmações que contrastam
com o que geralmente pensam as pessoas.
A salvação, que é, em última instância, o que se quer
exprimir com a palavra céu, não é apenas salvação de uma
parte do homem (sua alma) mas sim do homem inteiro
(corpo e alma, que são inseparáveis); não é apenas para o
homem individualmente, mas para todo o gênero humano
(há uma solidariedade entre todas as pessoas), não é apenas
para o gênero humano, mas para toda criatura (cada uma a
seu modo, é claro).
Acima expliquei porque a promessa da salvação
envolve toda criatura. É preciso agora tratar de um outro
problema, com o anterior estreitamente conexo. Se a
salvação é para toda criatura, ou seja, se o “mundo” também
será salvo, então ele não será destruído? Escrevendo sobre
os “novos céus e nova terra” dos quais fala a Bíblia, afirmei
que isso não significa que Deus destruirá este mundo para
criá-lo novamente, mas ele será transformado, como
compreender isso? Em outras palavras, o que queremos
dizer quando falamos em fim do mundo?
Quando falamos em fim do mundo, é evidente que
não identificamos aqui o mundo simplesmente com o
“nosso” mundo ou com o planeta terra, mas com tudo o que
existe. Mundo sem o qual a existência humana não pode ser
90
pensada. Mundo no qual a existência humana vivencia o
tempo como história.
O cristianismo, diferente de muitas outras religiões,
não entende o mundo como eterno, mas como criado, o que
significa dizer, absolutamente dependente do criador, e,
portanto, embora não necessariamente, que teve um início.
Início que implica um fim. Entre o início e o fim, a
existência humana transcorre como história. Mas história
da salvação. Para nós, perguntar sobre o fim do mundo,
significa perguntar sobre o fim da história. O que é o
mesmo que perguntar pelo seu significado, pelo seu sentido.
A existência humana tem um sentido, tem um porquê, ou
tudo transcorre por mero acaso?
Cremos que a existência humana tem um sentido, que
lhe é conferido pelo seu criador: o convite de existir em sua
plenitude. É o que chamamos de salvação, e toda criação é
para a salvação, ou seja, para existir na plenitude divina,
em comunhão com Ele. É preciso refletir também sobre a
palavra fim, como é usada nas expressões fim do mundo ou
fim da história. Fim pode ser entendido aqui em dois
sentidos: término ou finalidade.
O problema está em compreendermos fim enquanto
término, como destruição. Quando o fazemos, imaginamos
o fim do mundo como uma série de grandes eventos
destruindo tudo. Por isso, quando acontecem grandes
desastres naturais, tais como os furacões, terremotos,
tempestades, ou mesmo longas secas, pragas, epidemias, ou
aquelas mais propriamente humanas, como as guerras, se
diz que é o fim do mundo.
91
Essas idéias encontraram um gênero literário: a
apocalíptica. Mas embora muitas pessoas pensem que isso
tenha um fundamento bíblico, é, na verdade, uma leitura
equivocada. Posso dar dois exemplos muito lembrados. Mt
24, 1-14: Jesus fala em guerras, fome e terremotos, diz que
“essas coisas devem acontecer, mas ainda não é o fim”
(v.6). Embora os discípulos tenham perguntado a Jesus
quando seria sua vinda, a parusia e o fim do mundo, Jesus
não tem nenhuma intenção de dar uma informação a este
respeito, mas sim uma exortação, manter-se fiel: “quem
perseverar até o fim, será salvo” (v.13).
Mais adiante Jesus é ainda mais claro: “Quanto a esse
dia e essa hora, ninguém sabe nada, nem os anjos do céu,
nem o Filho. Somente o Pai é quem sabe” (v.36).
Decididamente, a intenção de Jesus não é nos dar
informação sobre o fim do mundo, muito menos que o
mundo será destruído.
O segundo texto é 2Pd 3,5-13. Este é um texto de
gênero claramente apocalíptico e tem servido na história
para fundamentar a tese cataclismática, ou seja, da
destruição universal. Mas aqui também é preciso o esforço
para compreender o texto por inteiro e dentro do seu gênero
literário. Aqui também a intenção é exortar para a
fidelidade, embora possa parecer que a parusia, o dia da
vinda do Senhor, esteja demorando.
Nós sabemos que muitos esperavam a parusia para
logo, pois o próprio Jesus havia dito que muitos deles ainda
viveriam. No entanto, o Senhor tarda. Muitos começam a
desanimar. Todo este texto de 2Pd encontra sua luz no
versículo 4: “E dirão: ‘não deu em nada a promessa de sua
92
Vinda? De fato, desde que os pais morreram, tudo continua
como desde o princípio da criação!’”. A carta exorta para
manterem-se fiéis, pois “para o Senhor, um dia é como mil
anos e mil anos é como um dia.
O Senhor não demora para cumprir o que prometeu,
como alguns pensam, achando que há demora; é que Deus
tem paciência com vocês, porque não quer que ninguém se
perca, mas que todos cheguem a se converter” (vv.8-9). Este
texto fala que “os céus se dissolverão com estrondo” e a
terra desaparecerá (v.10); que haverá uma “desintegração
universal” (v.11). Mas com isso não quer informar sobre a
destruição do mundo, e sim exortar para a vida que deve ser
“de santidade e piedade” (v.11), em vista do cumprimento
da promessa: “o que nós esperamos, conforme a promessa
dele, são novos céus e nova terra, onde habitará a justiça”
(v.13).
Um argumento a mais para esta interpretação está no
fato de começar se referindo à criação após o dilúvio, ou
seja, da primeira criação restaurada. Esse paralelo nos
permite pensar, dentro da lógica do texto, que os novos céus
e nova terra serão os atuais, mas restaurados.
O que é preciso evitar é pensar que este mundo será
destruído, deixando por completo de existir, e que Deus vá
criar do nada um novo mundo. Também para o mundo
deveremos manter firmes os pressupostos inegáveis da
cristologia (o discurso teológico sobre Cristo) e da
antropologia (o discurso teológico sobre o homem) a esse
respeito, ou seja, que há uma identidade entre o que morre e
o que ressuscita, embora o ressuscitado apresente uma
novidade frente ao que morreu. Explico melhor: o Cristo
93
ressuscitado é o mesmo que morreu (identidade), embora
numa nova condição existencial (novidade).
Também a nosso respeito cremos assim: seremos nós
mesmos quem Deus irá ressuscitar (identidade), embora
para uma vida nova, plena (novidade). Este binômio
identidade – novidade deve ser mantido. Se não mantiver a
identidade, não será ressurreição, será uma criação
totalmente nova; se não houver novidade, não será
ressurreição, mas revivificação. É, por exemplo, a diferença
entre a ressurreição de Jesus e a revivificação de Lázaro,
que voltou a viver na mesma condição existencial de antes e
novamente morreu.
Pois bem, esta identidade (continuidade) e novidade
(diversidade) deverá ser mantida também em relação ao
mundo. Este mundo presente, criado e amado por
Deus,participa da salvação trazida por Cristo, o que
significa uma transformação e não uma destruição. O
estado de felicidade plena que chamamos de “céu” envolve
toda a criação, “todo mundo”. Nem poderíamos seriamente
pensar o homem sem “o seu mundo”. O fim do mundo não
será de catástrofes, de desintegração total, mas de elevação
à plenitude de toda a criação pelo Criador.
94
95
10. E O MUNDO NÃO ACABOU!
E o mundo não acabou! Muitos previram o fim do
mundo nesta virada de milênio. Chegaram até a marcar data.
Suas “profecias” trágicas não se confirmaram.
Em todo o Novo Testamento perpassa uma mensagem
que precisa ser lida e interpretada com amor, carinho,
atenção e acima de tudo com sabedoria. Com aquela
sabedoria que vem do alto, do Espírito Santo. Jesus promete
que voltará; que suas palavras se cumprirão. Mas o “tempo”
de Deus é diferente do “tempo” humano.
De fato, com Jesus o tempo já começa a se cumprir,
mas ainda não definitivamente. O próprio S. Paulo
apresenta um “crescimento” na compreensão desde “já”
mas “ainda não”. Muitos cristãos esperavam para logo a
parusia – mas precisaram retornar ao trabalho ( “quem não
quiser trabalhar também não coma”).
Nós cremos na “segunda vinda” de Cristo, mas o
“como” e o “quando” desta promessa não cabe a nós,
criaturas de Deus, sabermos. Certamente quando isto
acontecer será enorme nossa alegria.
Pois bem, o mundo não acabou e como ficam aqueles
que “profetizaram” seu fim? O Miranda Leal mudou-se para
a Inglaterra! O mundo não acabou e para ele começou uma
“vida nova”; bem longe dos problemas brasileiros... Um
pastor de sua Igreja disse (em entrevista para o citado
jornal) que a “profecia” era algo pessoal, sem o
96
compromisso da igreja... E as pessoas continuarão
escutando estes discursos de “enganos pessoais”...
Poderíamos hoje dizer que existe uma distância
dogmática imensurável entre a Igreja Católica e estas igrejas
(“dos fins dos tempos”), mas a distância maior está no senso
de responsabilidade e compromisso com o povo
(principalmente com os “próximos”).
Que todos abram os olhos, não se iludam com as
promessas fáceis. Nós não precisamos de pessoas que
preguem a tragédia cósmica. Deus criou o mundo e,
segundo o Gênesis, viu que tudo o que havia feito era bom.
Nós precisamos de pessoas que arregassem as mangas e
lutem na construção de um mundo melhor, mais justo,
fraterno e pacífico, onde o evangelho de Jesus seja
realmente uma Boa Notícia proclamada e vivida.
Certamente é mais fácil explorar econômica e
religiosamente as pessoas através da emoção que libertá-las
das amarras...
97
11. SERÁ O CÉU UM LUGAR EM MEIO AS
NUVENS?
No jornal SERVINDO do mês passado86, respondi a
um artigo da revista Veja de 20/02/2008, assinado por
Jerônimo Teixeira, que veladamente põe em ridículo
algumas verdades de nossa fé.
Ali, este autor jogava com duas idéias: uma
pretendida defesa da realidade “física” do inferno pelo papa
Bento XVI e da natureza do céu, defendida por um bispo
anglicano chamado N. T. Wright, em um livro de recente
publicação (“Surprise by hope”, ou seja, “Surpreendido pela
Esperança”). Quanto à primeira questão, basta o que já
escrevi. Aqui pretendo analisar a segunda.
O que causou o espanto no autor do mencionado
artigo, foi o fato do Bispo Wright ter contestado, segundo
ele, em seu livro, “a visão do céu como um lugar elevado,
um paraíso espiritual no meio das nuvens. Os fiéis não vão
ascender aos céus, diz Wright – é Jesus que descerá à Terra,
unificando-a com o plano divino. E não se viverá apenas em
espírito: no Juízo Final, haverá a ressurreição da carne. Os
fiéis se levantarão para tomar seu lugar junto a Jesus”.
Existe uma idéia muito difundida, até pela iconografia
(pelas pinturas, como as de Dante ou Michelangelo, por
exemplo), do céu como um lugar e localizado sobre nosso
Trata-se do texto intitulado: O inferno é real mas não físico,
publicado aqui na seqüência.
86
98
mundo, até por isso, popularmente se diz “subir aos céus”. É
evidente que esse modo de falar apóia-se em uma
determinada cultura com sua cosmovisão.
O “mundo”, ou seja, a totalidade do que existe, estaria
dividido em três esferas: embaixo da terra (inferior, daí
“inferno”, para onde “desciam” os mortos); sobre a terra,
considerada um plano; e acima da terra, o céu com suas
estrelas fixas (considerado sempre a “morada” de Deus ou
dos deuses).
É claro que essa maneira de entender foi superada
pela moderna cosmologia: a terra não é chata, não é o centro
do universo, estamos apenas no interior de uma galáxia, a
via láctea, etc. Hoje se fala em universo em expansão...
Embora a compreensão do universo tenha mudado
substancialmente, nosso linguajar simbólico continua se
referindo a realidades espirituais em termos de lugar. Basta
aqui lembrar que o que se quer expressar continua sendo
válido, embora quando entendido literalmente, seja
inapropriado. Muitos preferem hoje a palavra “estado”,
querendo com ela indicar “um modo de ser”, evitando assim
uma compreensão fisicista das realidades pós-morte.
Para o teólogo espanhol, Juan Luis Ruiz de la Peña87,
na história da teologia encontramos três atitudes frente aos
temas referidos àquelas realidades últimas que levaram a
uma compreensão diferente daquela bíblica. Um acentuado
individualismo: a pergunta pelo fim da história é deslocada
pela pergunta sobre o fim individual. Tudo passa a ser
RUIZ DE LA PEÑA, J. L., La pascua de la creacion.
Escatología. 3ªed. Madri: BAC, 2000.
87
99
centrado na morte de cada pessoa. Com isso se tem um
espiritualismo que afirma como sujeito da recompensa
eterna apenas a “alma separada”. Este acentuado
individualismo
e
espiritualismo
levam a
uma
“desmundanização” das realidades últimas.
O homem passa a pensar a promessa de salvação
apenas para si, rompendo sua unidade com o cosmo; e não
para todo seu ser, mas apenas para sua dimensão espiritual,
a “alma”. É como se tudo que existe devesse ser destruído e
Deus criasse um novo mundo, aquele chamado céu.
Uma rápida olhada no Novo Testamento e
perceberemos que a salvação ali prometida é sempre a
salvação do homem inteiro, da comunidade inteira e de toda
a realidade. O tema da ressurreição traz consigo o tema da
nova criação. Há na Bíblia uma solidariedade entre o
homem e o cosmos, desde sua origem até sua consumação, a
ponto de não ser possível compreender um sem o outro.
Como o cosmos participou na gestação, nascimento e
desenvolvimento do homem, participará, da mesma forma,
de sua consumação.
Deus cria para salvar, ou seja, para que sua criatura
participe integralmente de seu ser. A criação é para a
salvação, ou, dizendo de outro modo, tudo o que foi criado
por Deus será salvo. Deus não cria o mundo para destruí-lo,
mas para que ele exista em comunhão com Ele. O livro da
Sabedoria expressa isso da melhor maneira possível: “Tu
amas tudo o que existe, e não desprezas nada do que criaste.
Se odiasses alguma coisa, não a terias criado. De que modo
poderia alguma coisa subsistir, se tu não a quisesses? Como
se poderia conservar alguma coisa se tu não a tivesses
100
chamado à existência? Tu, porém, poupas todas as coisas,
porque todas pertencem a ti, Senhor, o amigo da vida”
(11,24-26). O que nós chamamos de céu será todo o cosmos
transformado, plenificado pela presença amorosa Deus. Mt
19,28 fala de um mundo renovado; 2Pe 3,13 afirma que
“esperamos um céu novo e uma terra nova onde habitará a
justiça”. Mas será principalmente em Paulo que
encontraremos esse tema desenvolvido.
Basta para nós aqui Rm 8,19-23: “Pois a criação em
expectativa anseia pela revelação dos filhos de Deus. De
fato, a criação foi submetida à vaidade – não por seu querer,
mas por vontade daquele que a submeteu – na esperança de
ela também ser libertada da escravidão da corrupção para
entrar na liberdade da glória dos filhos de Deus. Pois
sabemos que a criação inteira geme e sofre as dores de
parto até o momento presente. E não somente ela. Mas
também nós, que temos as primícias do Espírito, gememos
interiormente, suspirando pela redenção do nosso corpo”.
Nesse texto paulino três afirmações são importantes: a
sorte do universo está ligada à do gênero humano,
participando também ele da libertação; a libertação do
universo está diretamente ligada ao “resgate do nosso
corpo”; a ressurreição atinge a todo o universo, que será
libertado do que há atualmente nele de vão, escravidão e
corrupção.
O Concílio Vaticano II expressou essa fé
particularmente em dois momentos. Na Lumen Gentium 48:
“A Igreja, para a qual somos todos chamados em Cristo
Jesus e na qual pela graça de Deus adquirimos a santidade,
só se consumará na glória celeste, quando chegar o tempo
101
da restauração de todas as coisas (cf. At 3,21). E com o
gênero humano também o mundo todo, que intimamente
está ligado com o homem e que por ele chega ao seu fim,
será perfeitamente restaurado em Cristo...” É preciso tomar
cuidado em não entender este fim a que chega o mundo
como destruição, mas sim como finalização, realização
daquilo que o Criador quis ao criá-lo (finalidade).
E na Gaudium et Spes 39: “Nós ignoramos o tempo
da consumação da terra e da humanidade e desconhecemos
a maneira de transformação do universo. Passa certamente
a figura deste mundo deformada pelo pecado, mas
aprendemos que Deus prepara morada nova e nova terra.
(...) Contudo a esperança de uma nova terra, longe de
atenuar, antes deve impulsionar a solicitude pelo
aperfeiçoamento desta terra. (...) O Reino já está presente
em mistério aqui na terra. Chegando o Senhor, ele se
consumará”.
Concluindo. O que chamamos de céu não é um lugar
nas nuvens, que só pertença a “alma” humana. O nosso
universo não será destruído, se consumando. O que
chamamos de céu é nosso mundo plenificado pela presença
da Santíssima Trindade. A esperança nesta vida nova, em
plena comunhão com Deus, envolve todas as criaturas, cada
uma a seu modo. Penso que seja nesse sentido a afirmação
do bispo anglicano Wright, o que estaria plenamente de
acordo com nossa fé.
102
103
12. O INFERNO É REAL, MAS NÃO FÍSICO
Vemos com freqüência na imprensa escrita ou televisiva,
uma campanha contra a Igreja Católica, ou simplesmente, contra
as verdades nas quais cremos. Muitos ataques são frontais e
declarados, outros camuflados e indiretos. Entre os segundos, há
uma tendência preocupante que é a apresentação de uma
pretensa informação que na verdade visa levar ao ridículo algum
conteúdo de nossa fé.
A revista Veja, de 20 de janeiro de 2008, nas páginas 100
e 101, traz um artigo assinado por Jerônimo Teixeira intitulado
O fogo eterno queima mesmo. E seu subtítulo é: O papa e um
bispo da igreja anglicana tentam reafirmar a realidade física do
céu e do inferno. O artigo pretende partir de uma constatação:
está havendo um enfraquecimento na adesão aos princípios
morais pregados pelas igrejas tradicionais.
O problema é a abstração na qual cairam algumas crenças,
como as do céu e inferno, que até então haviam sido “um
recurso didático”. A conclusão do artigo: “é em resposta a esse
enfraquecimento de princípios que alguns líderes religiosos vêm
reafirmando a verdade física do céu e do inferno. No ano
passado, o papa Bento XVI reiterou, em um sermão para fiéis de
Roma, que o inferno não é uma imagem literária – trata-se
realmente de um lugar onde as pessoas queimam por toda a
eternidade (...)
A pregação direta e assustadora de Bento XVI não diverge
da linha dura que ele vem imprimindo a seu papado. O papa
anterior, João Paulo II, amainou um tanto a noção de inferno,
104
definindo-o como um lugar em que Deus está ausente. Cioso dos
fundamentos do catolicismo, Bento XVI não faz mais do que
relembrar o que está nos textos sagrados. O capítulo 25 do
Evangelho de São Mateus, para ficar em um exemplo, é
inequívoco: os colocados à esquerda de Deus, que não deram de
beber a quem teve sede nem alimentaram quem teve fome, serão
banidos ‘para o fogo eterno destinado ao demônio e seus
anjos’”.
Algumas perguntas poderiam ser feitas: se o papa falou
isso em um sermão “no ano passado aos fiéis de Roma”, porque
publicá-lo agora? (justamente quando a Igreja está no centro da
polêmica quanto à legalidade do uso ou não de embriões
humanos na pesquisa de células tronco, e por causa de sua
postura contrária vem sendo acusada sistematicamente de
“obscurantismo”!).
A citação da palavra do papa é feita sem o menor respeito
às regras básicas de qualquer artigo sério: quando foi feito tal
sermão? Onde está publicado? Não possui nenhuma referência,
de modo que não é possível saber se o papa realmente as disse, e
se as disse, em qual contexto? Quais foram realmente as
palavras usadas por ele?
Penso que nesta reportagem não há apenas imprecisão,
mas também leviandade jornalística. Pelas razões acima
mencionadas, não posso analisar o que realmente o papa disse.
Mas pelo que conheço de teologia e pelas publicações que já fez
a este respeito, duvido muito que este artigo esteja com a
verdade.
Façamos rapidamente uma análise. O papa Bento XVI,
então Joseph Ratzinger, apenas um professor de teologia, em
105
1976, terminava de escrever uma obra sobre Escatologia
(Eschatologie: tod und ewiges leben. Regensburg: Friedrich
Pustet, 1977, traduzido para o italiano já em 1979), tratado
teológico ao qual pertence o tema do inferno, após ter lecionado
esta disciplina por vinte anos, e a publicou no momento em que
recebeu o episcopado. Ali o papa reafirma a doutrina dogmática
da Igreja a esse respeito: a existência do inferno e a eternidade
de suas penas se apóiam em um terreno sólido, tanto bíblico
quanto dogmático.
O papa lembra aqueles que procuraram pensar um inferno
“temporário”, mas conclui que o respeito de Deus pela liberdade
humana faz que aceitemos a eternidade desta decisão humana de
rejeitar este diálogo amoroso com Ele, única fonte de vida.
Mostra a bondade de Deus que sofre com a rejeição dos homens
ao seu convite de salvação, mas que permite, por amor à
liberdade de suas criaturas, essa situação. Faz questão de
acrescentar: “em uma semelhante religiosidade, nada é
cancelado da terrificante realidade do inferno; ao contrário,
esse é tão real que entra na própria existência do homem” (trad.
it. 227).
Em nenhum momento o papa propõe o inferno como
realidade “física” ou afirma que o tal fogo queime fisicamente.
Em sua última encíclica, a Spe Salvi, sobre a Esperança
Cristã, publicada em 30 de novembro de 2007, o papa volta à
questão escatológica, mas seu objetivo é falar da esperança de
salvação e não de uma possível condenação, embora real,
quando no número 45 toque a questão do inferno, afirma
simplesmente: “Pode haver pessoas que destruíram totalmente
em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o
amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que
106
viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas.
Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da
nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora,
perfis desse gênero. Em tais indivíduos não haveria nada de
remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é isso que
se indica com a palavra inferno”. A esse ponto, o papa
simplesmente remete para o Catecismo da Igreja Católica,
nn.1033-1037.
Também o Catecismo retoma esta visão: a possibilidade
do inferno é uma conseqüência de levar a sério a liberdade
humana. O que o autor do referido artigo indica como uma
versão “amainada” de João Paulo II para o inferno está ali: “é
este estado de auto-exclusão definitiva da comunhão com Deus
e com os bem-aventurados que se designa com a palavra
‘inferno’” (n.1033).
E completa no n. 1035:
“A pena principal do Inferno consiste na separação
eterna de Deus, o Único em que o homem pode ter a vida
e a felicidade para as quais foi criado e às quais aspira”.
Notem que o Catecismo faz questão de evitar a palavra
lugar para designar o inferno, mas fala de “estado” e, isso,
justamente para evitar o mal-entendido de determinar
fisicamente o inferno. Conclusão lógica: o papa não se
refere ao inferno como lugar físico e nem mesmo os
“sofrimentos” infernais como físicos. Aliás, nestes textos
analisados, se quer toca na questão do “fogo do inferno”.
O problema pode estar na compreensão da palavra real. O
papa sempre afirmou que o inferno é “real”. Isso não quer dizer
“físico”. Há aqui um preconceito, comum no mundo moderno,
107
que o que é real é físico. Alguns afirmarão inclusive que
somente o físico é real, a ponto de real e físico se tornarem
sinônimos (por exemplo: alguns tipos de materialismos
sensistas). O que é plenamente aceitável, é que o inferno seja
real, isso não quer dizer, físico (ao menos no sentido costumeiro
que atribuímos a esta palavra).
Afirmar que o inferno é real, quer dizer que ele existe, não
se reduz a uma figura de linguagem. O sofrimento que esta
“situação” infernal comporta, deverá ser adequada a este novo
modo de existir, que pode ser dito somente com as palavras do
Catecismo: uma separação eterna de Deus. Em relação ao que
isto significa, não podemos afirmar nada, já que o ser humano
ainda não fez a experiência de existir completamente sem Deus.
Encerro esta questão com as palavras da Comissão
Teológica Internacional, em um documento de 1990, chamado
Algumas questões atuais de escatologia (documento que,
segundo se afirma em seus inícios “se publicou com a permissão
do eminentíssimo cardeal Joseph Ratzinger, presidente da
Comissão”):
“Todo teólogo é consciente das dificuldades que o homem,
tanto em nosso tempo como em qualquer outro tempo da
história, experimenta para aceitar a doutrina do Novo
Testamento sobre o inferno. Por isso, deve recomendar-se
muito um ânimo aberto à sóbria doutrina do evangelho
tanto para expô-la como para crê-la. Satisfeitos com essa
sobriedade, devemos evitar a tentativa de determinar, de
maneira concreta, os caminhos pelos quais podem
conciliar-se a infinita bondade de Deus e a verdadeira
liberdade humana. A Igreja leva a sério a liberdade
humana e a Misericórdia divina que tem concedido a
108
liberdade ao homem, como condição para obter a
salvação. Quando a Igreja reza pela salvação de todos,
na realidade está pedindo pela conversão de todos os
homens que vivem. Deus ‘quer que todos os homens se
salvem e cheguem ao conhecimento da verdade’ (1Tm
2,4). A Igreja creu sempre que esta vontade salvífica
universal de Deus tem, de fato, uma ampla eficácia. A
Igreja nunca declarou a condenação de alguma pessoa
em concreto. Mas porque o inferno é uma verdadeira
possibilidade real para cada homem, não é lícito – ainda
que se esqueça hoje às vezes na pregação das exéquias –
pressupor uma espécie de automatismo da salvação. Por
isto, com respeito a esta doutrina - é absolutamente
necessário fazer próprias as palavras de Paulo: ‘Ó
profundeza da riqueza, da sabedoria e da ciência de
Deus! Quão insondáveis são os seus julgamentos e
impenetráveis os seus caminhos!’ (Rom 11,33)”88.
Comisión Teológica Internacional, Documentos 1969-1996.
Veinticinco años de servicio a la teologia de la Iglesia. Madri: BAC,
1998, p.494-495.
88
109
13. CÉU E INFERNO
Durante o mês de agosto deste ano, motivados pelo
eclipse lunar, muito se falou em fim do mundo. Afinal, mais
um final de milênio se aproxima! Há mesmo quem tenha
marcado data para este acontecimento (Miranda Leal): entre
o Natal e o Novo. A onda de furacões, maremotos e
terremotos, têm incentivado a imaginação dos leitores
apocalípticos da bíblia.
Diante destes fatos, um pronunciamento do papa João
Paulo II causou estranheza à imprensa, que o divulgou como
a mais recente e bombástica afirmação escatológica: o céu e
o inferno não são lugares físicos!
A “novidade” desta afirmação ficou por conta da
ignorância teológica da própria imprensa. É evidente que
sendo o céu e o inferno referidos ao espírito e, portanto, ao
imaterial, não podem ser um lugar físico, mas uma
“condição”.
Aliás, tudo o que falarmos ou escrevemos sobre esta
condição pós-morte é muito impreciso e relativo. Antes de
mais nada, porque nossa linguagem e experiência é sempre
circunstancial (refere-se a um espaço e tempo); e pela
própria ausência de uma experiência “direta” do além. O
que afirmamos será sempre “relativo” à nossa experiência
terrena (e, portanto, física). Embora isso não deva nos
impossibilitar de estabelecer – ainda que muito
imperfeitamente – algum discurso sobre o espiritual e o
110
escatológico.
evangelhos.
Nossa
fonte
maior
serão
sempre
os
O que chamamos de céu e inferno não são lugares
físicos mas condições de “felicidade” ou “infelicidade”. E
felicidade aqui significa existência plenificada pela presença
da Santíssima Trindade. Em Jesus Ressuscitado é toda a
humanidade que ressuscita! “Infelicidade” é a incapacidade
deliberada de gozar desta felicidade.
Vão longe os anos em que a Igreja preocupava-se em
saber como o fogo, que é um elemento físico, poderia
queimar uma alma que é espiritual! Possivelmente este
recurso retórico ameaçador possa ter sido muito usado, mas
não faz mais sentido chamá-lo em causa hoje.
A respeito do inferno (e consequentemente do diabo),
que parece estar ganhando “ibope” hoje em dia, é preciso
que nos lembremos sempre de ao menos dois princípios:
* Nossa fé é primeiramente voltada para Deus Trino.
Ele sim é onipotente, onipresente e onisciente. Portanto,
também nosso discurso e nossa evangelização deverão falar
primeiramente da bondade de Deus e não do diabo! Seria
um grave equívoco pautar nossa fé e nosso discurso não
prioritariamente no amor de Deus mas na ameaça aterradora
do diabo;
* Que o inferno existe é uma verdade de nossa fé.
Mas ele deve ser interpretado como uma exceção e não
regra. Do contrário o projeto salvífico do Pai e a morte do
Filho seriam em vão. Além do que, é dever cristão desejar e
rezar para que todos se salvem, inclusive os “inimigos”. Isto
111
é conseqüência do mandamento do amor de Jesus. Um
teólogo – von Balthasar – dizia que: por verdade de fé devese afirmar que o inferno exista; mas por dever cristão devese desejar que esteja vazio!
112
113
14. O PURGATÓRIO
O purgatório é um tema complexo e delicado. A
Igreja, oficialmente, disse pouco sobre ele, sendo sóbrias
suas definições, principalmente em documentos conciliares.
Mas a imaginação popular e a iconografia (arte de
representar por meio de imagem, gravura, pintura, etc)
produziram muito e na maioria das vezes, distorcendo seu
fundo de verdade.
Esta verdade irrenunciável que expressamos com o
termo purgatório, é o convite para a comunhão plena com
Deus que Ele próprio nos faz e ao mesmo tempo nossa
consciência de indignidade, o que exige uma purificação e
uma capacitação para isso.
O purgatório expressa, portanto, nossa experiência
histórica. A de homens e mulheres que se sabem pecadores,
mas ao mesmo tempo, imbuídos do desejo de fidelidade ao
Evangelho e da vivência do amor aos irmãos, esperançosos
da promessa de vida eterna e da misericórdia do Pai.
Somos convidados a viver na santidade. Ser santo,
significa viver em plena comunhão com Deus e com os
irmãos. Bento XVI, em sua encíclica Spes Salvi, os explica
assim: “... pessoas puríssimas, que se deixaram penetrar
inteiramente por Deus e, consequentemente, estão
totalmente abertas ao próximo – pessoas em quem a
comunhão com Deus orienta desde já todo o seu ser e cuja
114
chegada a Deus apenas leva a cumprimento aquilo que já
são” (n.45).
Sabemos o quanto isso é difícil, embora creiamos não
ser impossível. Mas o contrário também é possível: “pode
haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o
desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas
nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para
o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de
uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa
história deixam entrever, de forma assustadora, perfis desse
gênero. Em tais indivíduos não haveria nada de remediável
e a destruição do bem seria irrevogável: é isso que se indica
com a palavra inferno” (n.45).
Nem puros suficientemente nem completamente
maldosos. O papa continua: “mas, segundo a nossa
experiência, nem um nem outro são o caso normal da
existência humana. Na maioria dos homens – como
podemos supor – perdura no mais profundo da sua essência
uma derradeira abertura interior para a verdade, para o
amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, ela é
sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita
sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e
que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda abjeção e
continua presente na alma” (n.46).
Embora o purgatório pareça ser uma exigência de
nossa experiência cotidiana, não é um fato diretamente
revelado. Em outras palavras, não encontramos na Bíblia
uma indicação precisa e direta daquilo que chamamos
purgatório. O que fez com que Lutero, em sua separação da
Igreja Católica, o negasse categoricamente. Não obstante,
115
não devemos nos esquecer de todo contexto sócio-cultural e
religioso no qual ele vivenciou essa discussão, contexto
certamente de muito abuso e afastamento da sã doutrina.
Encontramos, no entanto, na Palavra de Deus,
indicações que podem indiretamente fundamentar a
realidade que chamamos purgatório. A primeira delas é a
oração pelos mortos, prática presente no judaísmo antigo e
aceita pelos cristãos com naturalidade. Uma indicação
privilegiada encontramos no Segundo livro dos Macabeus
12,38-45 (do primeiro século antes de Cristo), quando Judas
faz oferenda pelos soldados mortos em guerra, culpados por
idolatria. Uma segunda indicação, agora do Novo
Testamento, pode ser da Primeira Carta aos Coríntios, onde
São Paulo nos diz que nossa existência, edificada sobre o
Cristo como fundamento, será testada como obra que passa
pelo fogo (3, 12-15).
O papa nos explica assim este texto paulino: “Alguns
teólogos recentes são do parecer que o fogo que
simultaneamente queima e salva é o próprio Cristo, o Juiz e
Salvador. O encontro com ele é o ato decisivo do Juízo.
Ante seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com
ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos
tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas
durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura
fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor desse encontro,
em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam
evidentes, está a salvação.
O seu olhar, o toque do seu coração, cura-nos por
meio de uma transformação certamente dolorosa ‘como pelo
fogo’. Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do
116
seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final
sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo,
totalmente de Deus” (n.46). Poderíamos lembrar ainda aqui:
1Cor 15,29 e 2Tm 1,16-18. A prática da oração pelos
mortos na Igreja, desde seus inícios, é largamente
testemunhada, principalmente na liturgia eucarística, como
o atestam Tertuliano, Santo Éfrem e Cirilo de Jerusalém.
Foi a partir do século XII que a doutrina sobre o
purgatório começou a criar maiores dificuldades. A palavra,
que até então vinha sendo usada como um adjetivo, ou seja,
uma qualificação de uma outra realidade, como no caso de
“fogo purificador” (do latim ignis purgatorius, como
aparece nos escritos de São Cipriano), passar a ser utilizada
como substantivo, ou seja, indicando uma realidade em si
mesma, assumindo o sentido de um “lugar” onde as almas
ainda não completamente puras se purificariam, expiando
suas culpas. Essa interpretação também possibilitou falar de
um “tempo” de purgatório. E a “pedagogia do medo” fez
com que as imagens criadas para explicar o purgatório
dessem asa à fantasia, descrevendo-o como um lugar terrível
e tempo de sofrimento inimaginável, a ponto de logo alguns
o interpretarem como um inferno temporário.
Por essa época, vários concílios se ocuparam do tema
do purgatório. A doutrina definitiva foi estabelecida no
Concílio de Florença (Bula Laetentur Caeli, 6 de julho de
1439, DS 1304). A primeira conclusão foi não poder se falar
do purgatório como de um lugar e nem de um tempo, mas
como um estado, indicando com isso uma “situação”,
aquela de purificação, expressa pela imagem do encontro da
pessoa com Cristo. Escrevendo sobre isso, interpretando a
imagem do fogo como o próprio Cristo, que
117
simultaneamente queima e salva (conforme a imagem de
Paulo em 1Cor 3,12-15), o papa utiliza a palavra
“momento”, mas não sem uma ulterior explicação: “No
momento do Juízo, experimentamos e acolhemos esse
prevalecer do seu amor sobre todo o mal no mundo. O
‘momento’ transformador desse encontro escapa à medição
terrena: é tempo do coração, tempo da ‘passagem’ à
comunhão com Deus no Corpo de Cristo” (n.47).
Em segundo lugar, a Igreja definiu que o purgatório
não pode ser visto apenas como uma “capacitação” para
Deus, mas tem realmente um caráter penal (expiatório, ou
seja, de castigo), daí podermos falar das “penas do
purgatório”. Em troca, o concílio não menciona quais sejam
estas penas, deixando fora intencionalmente o fogo, tão
explorado pela religiosidade popular.
E por último, a ajuda que os sufrágios, isto é, apoio
que os vivos prestam aos defuntos neste estado. Assim
define o Concílio de Florença: “para que recebam um alívio
dessas penas ajudam-nos os sufrágios dos fiéis viventes,
como o sacrifício da missa, as orações, as esmolas e as
outras práticas de piedade que os fiéis costumam oferecer
pelos outros fiéis, segundo as disposições da Igreja” (DS
1304).
O papa comenta assim essa última indicação: “O fato
de que o amor possa chegar até o além, que seja possível um
mútuo dar e receber, permanecendo ligados uns aos outros
por vínculos de afeto para além das fronteiras da morte,
constituiu uma convicção fundamental do cristianismo ao
longo dos séculos e ainda hoje permanece uma experiência
reconfortante (...) Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho.
118
Ninguém se salva sozinho. A vida dos outros continuamente
entra na minha existência: naquilo que penso, digo, faço e
realizo. E vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto
para o mal como para o bem. Desse modo, a minha
intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que
lhe é estranha, uma coisa exterior, nem mesmo após a
morte.
Na trama do ser, o meu agradecimento a ele, a minha
oração por ele pode significar uma pequena etapa de
purificação. E, para isso, não é preciso converter o tempo
terreno no tempo de Deus: na comunhão das almas fica
superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais
para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se
esclarece melhor um elemento importante do conceito
cristão de esperança. A nossa esperança é sempre
essencialmente também esperança para os outros; só assim é
verdadeiramente esperança também para mim” (n.48).
119
15. PODEMOS REZAR PELOS MORTOS?
Deus criou o homem como ser social. Não quis que
Adão ficasse só. Criou também Eva e deu-lhes o poder de
gerar filhos. Assim, a Bíblia nos narra o surgimento do
homem, da família e da sociedade humana. Os seres
humanos estão ligados por sentimentos. Lembro neste
momento três: o amor, que os une e os tornam carinhosos e
preocupados entre si; a indiferença, que é o sentimento
neutro frente ao outro, nem a sua presença nem sua ausência
são significativos emocionalmente; por fim, o ódio, que é
exatamente o contrário do amor, é um sentimento negativo,
ao invés de preservar o outro, quer sua destruição.
No plano de Deus, deveria existir apenas o amor, em
suas muitas variações: amor de amizade, amor de filiação,
amor maternal e paternal, amor erótico ou conjugal, etc. O
desequilíbrio instituído pelo homem, o que nós chamamos
de pecado original, quebrou a harmonia. Os homens se
tornaram um misto de amor e ódio. Por isso, a mensagem
redentora de Jesus é amor e perdão.
Em todo caso, o homem é um ser comunitário. Está
em comunhão. Ainda que se apresente muitas vezes em
desunião, ninguém é puramente ódio. Nesta vida em
comum, nos sentimos responsáveis uns pelos outros,
principalmente por aqueles que mais amamos. Expressamos
este sentimento com gestos e símbolos: dar uma flor ou um
beijo pode assumir significados que mudem inteiramente
uma vida. Algo, em si mesmo muito banal, pode adquirir,
no plano simbólico da humanidade, um sentido profundo.
120
Basta lembrar que todo o planeta se une em torno de uma
tocha de fogo, que passa de mão em mão, pelos continentes,
com toda a atenção dos meios de comunicação mais
respeitados, por ocasião das olimpíadas. É claro, não é pela
tocha de fogo e sim pelo que ela representa, a olimpíada. E a
importância da Olimpíada não está apenas na competição,
mas em seu significado de integração de toda a humanidade.
Nós cristãos acreditamos que vivemos em comunhão
mesmo com aqueles que já morreram. Existe entre nós um
sentimento que continua nos ligando a eles, possivelmente
mais do que com aqueles que ainda virão a existir e, com a
emergente consciência ecológica, nós temos nos sentido
responsáveis por aqueles que ainda virão. Este sentimento
de comunhão para com os mortos, nos faz cuidar de seus
sepulcros, adorná-los. Levamos flores e velas. Não porque
precisem, mas porque este é um modo humano de vivenciar
o sentimento de amor e comunhão.
Como quem carrega a tocha olímpica sabe que a
humanidade não depende daquele mísero foguinho, nem
para se aquecer nem para se iluminar. Quem crítica o fato
de se pôr flores e velas nos túmulos ou, como em algumas
culturas, alimentos, desconhece a profundidade do
sentimento humano.
Nós cristãos católicos chamamos esta comunhão tão
profunda de Comunhão dos Santos, ou seja, de todos
aqueles que conheceram e vivenciaram ou vivenciam ainda,
o amor redentor de Cristo. Nós que estivemos unidos em
vida, não nos separaremos na morte. Afinal, quem poderá
nos separar: tribulações, morte? Nos mantemos unidos: nós
que ainda peregrinamos, àqueles que já existem na glória
121
do Pai e os que se purificam. Por isso podemos levar flores
e velas aos túmulos, não porque aqueles que foram ali
sepultados precisem, mas porque assim realizamos
emocionalmente essa comunhão como seres humanos e
históricos. Há um sentimento vital que une os que já
viveram, nós que vivemos e os que ainda viverão: o amor.
Amor que se realiza a seu modo em cada caso.
Se podemos cuidar dos túmulos, embelezá-los e
enfeitá-los, porque não poderíamos fazer também uma prece
por aqueles que morreram? Ainda que não fosse de
nenhuma utilidade para eles, poder unir-se a Deus em prece
por eles, já seria algo maravilhoso. Mas cremos que nossa
oração é de valia também para os que já morreram.
Na Bíblia encontramos testemunhos que nos apóiam.
Embora sejam testemunhos de difícil interpretação e muito
discutíveis, vale a pena lembrá-los. No Antigo Testamento
esses testemunhos só aparecem tardiamente, porque
dependem do amadurecimento da fé na ressurreição
pessoal. Vamos encontrar um primeiro testemunho explícito
em 2Mac 12, 44-45:
“Se não tivesse esperança na ressurreição dos que
tinham morrido na batalha, seria coisa inútil e tola
rezar pelos mortos. Mas, considerando que existe
uma bela recompensa guardada para aqueles que são
fiéis até à morte, então esse é um pensamento santo e
piedoso. Por isso, mandou oferecer um sacrifício pelo
pecado dos que tinham morrido, para que fossem
liberados do pecado”.
122
No Novo Testamento encontramos um testemunho
interessante em Paulo, que fala em oferecer o batismo pelos
mortos, talvez como nós que oferecemos a celebração
eucarística: “Se não fosse assim, o que ganhariam aqueles
que se fazem batizar em favor dos mortos? Se os mortos não
ressuscitam, porque se fazer batizar em favor deles?” (1Cor
15, 29). E o próprio Paulo reza por Onesíforo e sua família:
“Que o Senhor lhe conceda misericórdia junto a Deus
naquele dia” (2Tm 1, 18).
A tradição cristã de rezar pelos mortos, desde os
inícios do cristianismo, é riquíssima. Tanto de orações
litúrgicas públicas quanto privadas. Indicações nesse sentido
foram encontradas, por exemplo, pela arqueologia nas
catacumbas ou nos cemitérios cristãos. O exemplo mais
conhecido é a celebre Inscrição de Abércio, no qual conta a
vida de Abércio, bispo de Hierápolis, do segundo século,
descoberto em 1883, pelo arqueólogo protestante W.
Ramsay, nas proximidades de Hierápolis, na Frigia e
conservada agora no museu de Latrão, no qual em seu final
se lê: “quem compreende e está de acordo com essas coisas,
rogue por Abércio”.
Tertuliano, que nasceu em Cartago pelo ano 155 e
morreu por volta de 220, advogado convertido ao
cristianismo, nos dá muitos testemunhos da prática cristã de
rezar pelos mortos. Escreve em De Corona III, 3:
recomendando a tradição entre os cristãos de “oferecer
pelas almas dos defuntos sacrifícios no dia de seu
aniversário”. E em De Monogamia X, 4 escreve que “a
mulher viúva reza pela alma de seu marido e pede para ele
a paz eterna, com o fim de estar com ele desde o primeiro
momento da ressurreição e lhe oferece sacrifícios no
123
aniversario de sua morte”. Santo Efrém, do século IV, pede
aos irmãos que rezem por ele no trigésimo dia de sua morte.
Também no século IV temos o testemunho de São Cirilo de
Jerusalém que em sua Catequese (23,9-10) defende a
utilidade da oração pelos defuntos e do sacrifício eucarístico
oferecido pelos mortos.
Esta prática da Igreja de rezar pelos mortos e oferecer
a celebração eucarística desde seus inícios, permeiam nossas
próprias Orações Eucarísticas. Lembremos algumas:
"Lembrai-vos também dos que morreram na paz do
vosso Cristo e de todos os mortos dos quais só vós
conheceis a fé". (Or. Euc. IV); "Lembrai-vos também
dos nossos irmãos e irmãs que morreram na
esperança da ressurreição e de todos os que partiram
desta vida: acolhei-os junto a vós na luz da vossa
face." (Or. Euc. II); "A todos os que chamastes para a
outra vida na vossa amizade, e aos marcados com o
sinal da fé, abrindo os vossos braços, acolhei-os. Que
vivam para sempre bem felizes no reino que para
todos preparastes." (Or. Euc. V).
Podemos, portanto, levar flores e velas aos túmulos
dos entes queridos, rezar por eles e oferecer o sacrifício
eucarístico. Desejando, enquanto peregrinamos, que todos
possamos nos unir um dia na morada do Pai, preparada para
cada um de nós por Jesus.
124
125
16. A ORAÇÃO PELOS MORTOS
E
O SENTIDO DA VIDA
Nós católicos mantemos a prática de rezar pelos
mortos. Afirmo que mantemos, porque esta já era uma
prática judaica (veja-se, por exemplo: 2Mac 12,40-45) e que
os primeiros cristãos sempre cultivaram (1Cor 15,29: fala de
oferecer o batismo “em favor dos mortos”). No mês de
novembro ela se acentua pela comemoração de finados.
Juntamente com a oração pelos mortos faz-se mais forte a
pergunta pelo significado da morte.
A morte é um mistério que permeia a existência
humana. É um mistério porque por mais que saibamos hoje
sobre o fato que chamamos morte (do ponto de vista da
biologia, medicina, filosofia etc.), tudo o que sabemos
refere-se à morte do outro. Sabemos que todos morreremos,
observamos e estudamos como os outros morrem, mas nada
sabemos do nosso próprio morrer. E, no entanto, esta é uma
certeza. A morte é um fato universal: atinge a todos. Nos
iguala a todos: frente à morte desaparecem todas as
diferenças culturais, raciais, econômicas, intelectuais, etc.
Quando se procura diferenciar o ser humano dos
outros seres, é comum indicar justamente a consciência da
própria morte. Até onde podemos constatar, apenas o
homem sabe que deverá morrer. Em outras palavras, apenas
o homem vive consciente da própria morte. A envolve em
seu mundo simbólico e ritual. Desde o aparecimento do
homem na face na terra é possível encontrar vestígios de seu
126
cuidado pelos mortos. Desde as maneiras mais rudimentares
de sepultamento ou cremação como as mais sofisticadas
como o embalsamento. Túmulos muito precários ou
pirâmides.
Frente ao fenômeno da morte podemos encontrar
atitudes diversas: desde o desespero (para Sartre, filósofo
francês do século XX, é “absurdo que tenhamos que
morrer” e isso, porque a morte significa o nada da nãoexistência), como a atitude confiante de Sócrates (filósofo
ateniense que viveu no século IV antes de Cristo, que
condenado à morte, antes de beber o veneno, discursa sobre
seu convencimento da imortalidade). Ou mesmo da fé na
imortalidade como a professada por Sêneca (pensador
nascido em Córdoba, Espanha, no I século e teve uma
intensa atividade em Roma, sendo condenado por Nero ao
suicídio em 65, em uma Carta a Lucílio, escreveu: “Este dia
que temes como o último é o do nascimento para a
eternidade”).
O fato é que, frente à morte do outro e da
possibilidade da própria morte, ninguém pode ficar
indiferente. Esta é a questão central da existência.
Justamente porque é ela quem confere sentido à existência.
Muito ilustrativo pode ser a expressão deste dilema, como
foi formulado por Albert Camus, um filósofo que nasceu na
Argélia e em 1957 recebeu o prêmio Nobel por seus livros.
Escreveu e refletiu sobre o suicídio, se vale à pena viver e,
no entanto, morreu em 1960 num acidente de automóvel:
“Só existe um problema filosófico realmente sério: o
suicídio. Julgar se a vida vale ou não vale a pena ser
vivida é responder a pergunta fundamental da
127
filosofia (...) Se eu me pergunto por que julgo que tal
questão é mais premente que tal outra, respondo que
é pelas ações a que ela se compromete. Nunca vi
ninguém morrer por causa do argumento ontológico.
Galileu, que sustentava uma verdade científica
importante, abjurou dela com a maior tranqüilidade
assim que viu sua vida em perigo. Em certo sentido,
fez bem. Essa verdade não valia o risco da fogueira.
É profundamente indiferente saber qual dos dois, a
terra ou o sol, gira em torno do outro. Em suma, é
uma futilidade. Mas vejo, em contrapartida, que
muitas pessoas morrem porque consideram que a
vida não vale a pena ser vivida. Vejo outros que,
paradoxalmente, deixam-se matar pelas idéias ou
ilusões que lhes dão uma razão de viver (o que se
denomina razão de viver é ao mesmo tempo uma
excelente razão de morrer). Julgo, então, que o
sentido da vida é a mais importante das perguntas”89.
Nós cristãos católicos temos em Cristo nossa razão
tanto do existir quanto do morrer. Pela sua ressurreição,
Cristo venceu definitivamente o poder da morte e encheu de
sentido
nossa
esperança.
“Se
permanecermos
completamente unidos a Cristo com morte semelhante à
dele, também permaneceremos com ressurreição semelhante
à dele” (Rm 6,5).
Isto significa que cremos que a morte não nos
extingue por completo (como queria Sartre), mas também
não cremos em uma imortalidade que é propriedade
CAMUS, A., O Mito de Sísifo. 2ªed. Rio de Janeiro: Record,
2005, p.17-18.
89
128
intrínseca da alma (como queria Sêneca reproduzindo
Platão). Cremos sim que a vida é comunhão com Deus que
nos criou por amor, por amor nos sustenta na existência e
por amor nos concede a imortalidade (ou seja, “vida
eterna”). A imortalidade é então dom de Deus, não poder
humano. Por isso, quem se afasta de Deus se afasta da vida
(aquilo que chamamos de inferno poderá ser chamado,
portanto, de “morte eterna”).
Existimos porque Deus nos ama, eis a verdade central
de nossa existência, proclamada desde nossa fé. Vale a pena
ler isto no livro da Sabedoria:
“Tu amas tudo o que existe, e não desprezas nada do
que criaste. Se odiasses alguma coisa, não a terias
criado. De que modo poderia alguma coisa subsistir,
se tu não a quisesses? Como se poderia conservar
alguma coisa se tu não a tivesses chamado à
existência? Tu, porém, poupas todas as coisas,
porque todas pertencem a ti, Senhor, o amigo da
vida” (11,24-26).
O sentido de nossa existência é, portanto, travar um
diálogo amoroso com Deus e com o próximo. Diante desta
verdade, até a morte adquire sentido.
129
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133
O AUTOR:
Prof. Ms. Pe. Luiz Antonio BELINI, brasileiro, nascido
em Londrina-Pr, em 22 de Junho de 1963, de formação
escolar jesuíta, onde teve oportunidade de ler os grandes
clássicos da literatura brasileira.
Licenciado em Filosofia no Instituto Filosófico N. S. da
Glória de Maringá-Pr, 1983-1985; e em Teologia no
Instituto Teológico Paulo VI de Londrina-Pr, 1986-1989.
Mestre em Filosofia na Pontifícia Universidade Gregoriana,
em Roma, 1993-1995, com a monografia A justiça na
República de Platão.
Atualmente ensina Metafísica e Antropologia no Curso de
Filosofia, da Pontifícia Universidade Católica do Paraná, em
Maringá-Pr;
Suas áreas de interesse são a História da Filosofia grega e a
Antropologia Filosófica e Escatologia.
A originalidade do seu pensamento pode ser constatada a
partir dos seus vários artigos publicados.
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Publicou ainda pela Editora Humanitas Vivens Ltda, a
obra A Justiça na República de Platão, Sarandi (PR) 2009,
100 p., ISBN: 978-85-61837-11-2.
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A morte é um mistério que permeia a existência humana.
É um mistério porque por mais que saibamos hoje sobre
o fato que chamamos morte (do ponto de vista da
biologia, medicina, filosofia etc.), tudo o que sabemos
refere-se à morte do outro. Sabemos que todos
morreremos, observamos e estudamos como os outros
morrem, mas nada sabemos do nosso próprio morrer. E,
no entanto, esta é uma certeza. A morte é um fato
universal: atinge a todos. Nos iguala a todos: frente à
morte desaparecem todas as diferenças culturais, raciais,
econômicas, intelectuais, etc.
Frente ao fenômeno da morte podemos encontrar
atitudes diversas: desde o desespero (para Sartre, filósofo
francês do século XX, é “absurdo que tenhamos que
morrer” e isso, porque a morte significa o nada da nãoexistência), como a atitude confiante de Sócrates
(filósofo ateniense que viveu no século IV antes de
Cristo, que condenado à morte, antes de beber o veneno,
discursa sobre seu convencimento da imortalidade). Ou
mesmo da fé na imortalidade como a professada por
Sêneca (pensador nascido em Córdoba, Espanha, no I
século e teve uma intensa atividade em Roma, sendo
condenado por Nero ao suicídio em 65, em uma Carta a
Lucílio, escreveu: “Este dia que temes como o último é o
do nascimento para a eternidade”).
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