MORTE E NASCIMENTO Considerar um momento como página virada em nossas vidas, não é fácil. Imagina toda uma história feita de pequenas glórias e magníficas derrotas. E essa história sempre é uma história palpável, narrável e não leva em conta os pensamentos, conclusões, decisões, observações e percepções de uma pessoa durante o decurso de toda a sua existência. Na verdade, a mente humana e seu apreço pela segurança da racionalidade não comportaria esse tipo de relembrança. Não importa de quem se trate. A história de uma pessoa comum pode ser mais profunda que a história de um grande estadista...Não que eu me considere uma pessoa comum. Digo, comum sim, no físico. Não na mente. Os cientologistas defendem uma reorganização mental dirigida pelo que chamam de Thetan. A memória humana é repleta de flashes, de pequenos momentos, onde a lembrança está ligada aos elementos e objetos mais improváveis: “ignoro onde vi, quando vi, e se uma parte do caso remoto não desaguasse noutro posterior, julgá-lo-ia sonho”. Nossa vida é feita de pequenos recortes de nossa infância, de nossa adolescência e de momentos que julgamos ou nos foram reputados como importantes. Não há ligação necessária ao campo cronológico. No entanto, os nascidos na Era Digital não irão se ressentir desse vácuo. Suas vidas têm sido muito bem documentadas por miríades de celulares e câmeras dirigidas por uma necessidade religiosa de aparecer e de controlar. Aparecer é viver! Essa delegação do lembrar pode em algum momento ser fatal aos lembrares humanos. Nosso cérebro vai sendo confortavelmente substituído pelos mecanismos de busca e a nuvens de dados. Resta-nos o papel de espectador de nossas vidas e das alheias. Sonho com uma crise energética que nos recoloque nos antigos e quase saudáveis padrões de consciência. Sem mais discursos, iniciemos os jogos. Nasci recentemente. Como nos relatos budistas, esse nascimento resultou de uma morte. A data mais precisa foi 28 de dezembro de 2019. Eu seguia feliz com T. Uma pessoa especial pra mim que ressurgira em minha vida. digo ressurgira porque nossa amizade preexistia. Me sentia feliz em vê-la, me divertia com seu jeito divertido. Mas agora em outro momento, era outra a mesma pessoa. Me sentia apaixonado, não vou mentir. O fato principal é que finalmente me sentia bem de verdade após 5 anos de separação de L. Nos últimos tempos minha vida estava voltada para uma curtição sem limites, ao léu, tendo como endereço principal (entre outros) a Praça Perilo Teixeira no centro da cidade. Minha epopeia ali merece (e terá) um capítulo à parte. Vim a descobrir nos 12 passos que as pessoas disfuncionais, como eu, sentem não merecer a vida que levam. A vida boa, lógico. No tal dia 28, fui ao banco pela manhã. T. estava comigo. Os planos estavam feitos: passar a virada do ano na praia da baleia. Familiares, amigos, champanhe. Enfim, aquele ritual tão caro aos réveillons. Quando Cazuza dizia que os jogos e os dados inventaram a humanidade, eu pensava no dominó. O fato primordial, o epicentro, a justificativa, o motor. Com apenas um toque dois americanos derrubaram quase 80.000 dominós em 2017, indo parar no Guiness. Eu vi o que ocorreu assim. Estávamos no banco pra receber o dinheiro e eu deixei de tomar uma decisão simples: não ficar com o dinheiro, entrega-lo à T. Lembro de tê-lo pego após a contagem do caixa e trocado um rápido olhar com ela. Educada que é, também não propôs a guarda, mas seu olhar era interrogativo. Guardei comigo, a febre ia começar. De fato, quando chegou a noite estava possesso já. A vontade de beber era incontrolável e a de cheirar, idem. Eu sabia que minha adicção estava ligada diretamente ao dinheiro e tinha, literalmente, pagado pra ver. Ela foi digna: escondeu a chave da casa, escondeu a chave da moto. Tentou me dissuadir: - não saia, não saia! Depois de muita contenda, me aquietei. Ou melhor, assim fingi. Pela manhã, acordei, dei-lhe um beijo de Judas e disse que ia comprar algo para o café da manhã. Desci. Mototáxi. Bocada. Voltei dois dias depois. Daquele preço: liso, fedendo, com cara de cachorro caído da mudança. Era prática antiga já. Meu filho M. me deu logo a notícia óbvia, mas não esperada: ela tinha ido embora. Na verdade, já estava na praia. Era o combinado afinal. Eu que “esqueci” que fazia parte. Os dramas da consciência só vêm depois do fim da festa. Antes e durante ninguém pensa. O vitimismo é a arma número um. Mas quem conhece e, mesmo assim, compra, leva diabo por anjo. A consciência culpada é uma 9mm engatilhada na cabeça. Muita gente se oportunizou de mim através da exploração desse mecanismo. Mecanismo sim, prova-o Augusto Cury com sua teoria do gatilho emocional e das janelas mentais. O gatilho detonara e a killer window se escancarou. Sem pensar, fui atrás dela na praia. Vendi não sei que troço em casa e açoitei pra Baleia. Ao chegar naquela noite do dia 30 o litoral pulsava de gente. No caminho pensava em como encontrá-la. Não foi difícil. Foi a primeira pessoa que vi quando entrei na rua principal. Em um momento posterior ela me diria que eu parecia um doido. Realmente...mal amanhado, com cara de ressaca, com um menino comigo, semi liso...tudo aquilo que as mulheres não sonham, principalmente num réveillon de praia. Chuta que é macumba! O resultado era óbvio. Um fora bem dado e merecido. Fui pra Lagoa do Mato. Rave louca onde perdi a chave da moto. Queda e coice. Depois de muito perrengue e macacada volto doente e perdido (não são e salvo) à Itapipoca. Me empurro na vodka. A descida (ou subida?) da Ladeira foi deprimente. Comecei a vender tudo do nosso AP e colocar no prato. Era uma feira. Apareceram toda sorte de oportunistas que me compraram a mobília a preço de banana. Me vi em menos de 3 dias no fundo de uma rede verde, pobre de sujo. Até essa sumiu, destino ignorado. Ainda teve o golpe final: empenhei minha moto. Nan!! A “triste partida” como disse Gonzaga se deu num fim de tarde, quando rumei para a casa da minha mãe no centro da cidade com uma sacola de roupas com o logotipo da Macavi e um volume de John Gray. Tinha perdido o “meu tudo” naquele momento. Não era o “tudo”, afinal ninguém tem isso. Minhas conquistas que sonhara e conseguira tinham sido postas abaixo. Era coisa pouca, pode imaginar um observador externo. Mas, sair da casa da minha mãe, superar o “ciclo de ferro” e ter alguém de novo ao meu lado eram suficientes para mim. De repente, nada. Tinha destruído tudo. Naquela noite, quando minha mãe metodicamente fechava as portas, crescia um desespero dentro de mim. Quando ela terminou e se trancou no quarto pra dormir, me vi em nossa grande sala sozinho com minhas apavorantes certezas da queda. Nunca tinha sofrido uma crise de pânico. Tive o desprazer da minha primeira. Foi uma angústia tão profunda, que rumei pra varanda com a intenção de me atirar. Minha valência foi minha precavida mãe, que tinha colocado o cadeado no portão que dá acesso. Fui pro quarto e a acordei, pedindo que abrisse o portão urgente. Sai pelas ruas de madrugada sem destino. Foram 31 porres contados só em janeiro. Era o tal beber, cair, levantar. O financiamento da bebida era diverso. Intensifiquei minha campanha “troque cultura por alcoolismo” e vendi diversos livros da minha biblioteca pra continuar bebendo. Logicamente fora o que pedi, mangueei e ganhei. Um aspecto interessante é que pedir comida é entendido como mendicância, mas bebida não. Dar bebida é visto por alguns como o ato mais nobre do que dar comida, por incrível que pareça. As pessoas não entendem um aspecto: a retroalimentação do vício. O detonador é qualquer coisa ou pessoa, real ou imaginária, próxima ou distante. Após a detonação, o pivô desaparece e a substancia ganha vida própria. Portanto, penso que ninguém permanece bebendo ou usando qualquer droga por algo ou alguém. Inicia e justifica, mas permanece pela substancia em si. Já depois do ano novo eu sabia que não estava mais bebendo e me drogando por ela. A figura dela tinha se desvanecido, permanecia como justificativa para vitimização perante os outros, para chorar por mim mesmo, para alegações lamuriosas diversas, que terminavam num pedido financeiro de qualquer monta.