UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA - CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS CURSO DE MESTRADO EM ESTUDO DE LINGUAGENS LINHA DE PESQUISA LINGUAGENS, DISCURSO E SOCIEDADE CAMILA LEITE OLIVER CARNEIRO CHICO BUARQUE: O TEMPO, OS TEMAS E AS FIGURAS Salvador 2011 2 CAMILA LEITE OLIVER CARNEIRO CHICO BUARQUE: O TEMPO, OS TEMAS E AS FIGURAS Dissertação apresentada ao programa de PósGraduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Estudo de Linguagens. Orientador: Dr. João Antonio de Santana Neto Área de concentração: Estudo de Linguagens Linha de pesquisa: Linguagens, Discurso e Sociedade Salvador 2011 3 FICHA CATALOGRÁFICA : Sistema de Bibliotecas da UNEB Carneiro, Camila Leite Oliver Chico Buarque : o tempo os temas e as figuras / Camila Leite Oliver Carneiro . – Salvador, 2011. 163f. Orientador: Prof. Dr. João Antonio de Santana Neto. Dissertação (Mestrado) – Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2010. Contém referências e anexo. 1. Hollanda, Chico Buarque, 1944 -. 2. Semiótica. 3. Música - Semiótica. 4. Censura. 5. Carnaval. I. Santana Neto, João Antonio de. II. Universidade do Estado da Bahia, Departamento de Ciências Humanas. CDD: 412 4 CAMILA LEITE OLIVER CARNEIRO CHICO BUARQUE: O TEMPO, OS TEMAS E AS FIGURAS Dissertação apresentada ao programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens da Universidade do Estado da Bahia como requisito parcial para a obtenção do título de mestre em Estudo de Linguagens. Banca Examinadora: _________________________________________________ Prof. Dr. João Antonio de Santana Neto Dr. Em Letras Filologia e Língua Portuguesa pela Universidade de São Paulo Universidade do Estado da Bahia _______________________________________ Prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza Dr.ª em Semiologia pela Université du Quebec Universidade do Estado da Bahia _______________________________________ Prof.ª Dr.ª Denise Maria Oliveira Zoghbi Dr.ª em Letras e Lingüística pela Universidade Federal da Bahia Universidade Federal da Bahia Salvador 2011 5 Ao meu avô, Francisco Oliver, por cada história contada à mesa; por ter sido o meu herói em seu cavalo que só falava inglês (a sua Harley Davidson); por ter me deixado atravessar, com ele, no correr das suas histórias, o rio São Francisco, enfim, por ter me ensinado a amar a narrativa. 6 AGRADECIMENTOS A Deus, pois sem ele não existiria vida, não existiria história, não existiria simulacro. Aos meus pais Inez e Edson, pela oportunidade de vida, pela confiança, pelo cuidado, pelo carinho, pelo amor. Eu sei que por mais que eu caminhe, nunca estarei distante, serei para sempre a “princesa que vocês fizeram coroar”. Ao meu irmão Edson Junior, meu mano, meu brother. Por ser parceiro, por me olhar sempre com os olhos de quem acredita e se orgulha em cada vitória. Por parecer sempre me dizer: “Vem, me dê a mão / a gente agora já não tinha medo / no tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido”. Ao meu esposo Everton, sem o seu apoio nada disso teria se tornado realidade. Muito obrigada pelo companheirismo, por tudo do que abriu mão junto comigo, por ter aceitado recomeçar quando, talvez, fosse tempo de acomodar-se. Muito obrigada então por me amar, pois apenas quem ama é capaz de entender o outro de forma tão intima. À minha prima Tarsila (Minimim), porque, a forma como demonstra gostar de parecer comigo, faz-me sentir especial e querer ser uma pessoa melhor a cada dia. À minha tia Sandra e a toda a sua família. Muito obrigada tia, por ter sido mais que tia, por ter sido tudo: por ter sido força, por ter sido amiga, por ter sido pai, por ter sido mãe, por ter sido o abraço de que precisava em tantos momentos de carência. Muito obrigada a toda a sua família: Wal, Bárbara, Felipe, Tarsila, Pedro. Vocês não abriram apenas a casa de vocês, abriram os braços e o coração, acolheram-me no momento em que eu precisava de segurança e paz para concluir esse trabalho e, não sei como, uma família tão grande, conseguiu ser tão silenciosa: “Psiu, faz silêncio! Camila precisa de concentração!”. Às minhas avós, Madalena e D‟Guia, muito obrigada por todo dengo, por todo afago, por todo carinho ao me chamar: “minha neta”! Pela sopa, pelo doce de leite, pelo feijão gostoso, pela pamonha, pelo bolo de leite. E, principalmente, por serem mulheres fortes e meigas ao mesmo tempo, sendo exemplo para mim. Aos meus tios Janaina, Jane, Saulo, Lindo, Júnior e Rita. Muito obrigada por festejarem comigo cada vitória e se orgulharem a cada novo passo. Aos meus tios Socorro, Urânia, Gracinha, Toinho, Luis, Zé Matos, Popó. Por estarem sempre perto, mesmo que muitas vezes pareçamos tão distantes. Por me deixarem ser “Minha”, aliás, de vocês. Aos meus primos. Principalmente, a Karlinha e Michele, por termos ido além do ser primas, por termos nos tornado amigas com quem podemos sempre contar, mesmo que estejamos há anos sem contato. 7 À minha tia de consideração mais considerada que existe: Tia Nil. Porque, desde que eu era pequenina, me amou e deixou o seu amor ser percebido apesar dos muros e portões que separavam as nossas casas, fazendo de Rafael, Gabriel, Nathália e tio Nathanael parentes muitas vezes mais próximos que os ligados por sangue. Aos meus enteados Gabriel e Amanda, por terem entendido as faltas, compreendido os excessos e, apesar deles, considerarem-me uma boadrasta. Por terem me ajudado a amadurecer, ensinado-me o que é ser responsável por alguém. Por serem também amigos, irmãos, filhos, por serem presentes de Deus para mim. À minha sogra Josemira, por chamar-me minha filha, por cuidar de mim e me amar como se assim o fosse. Ao meu cunhado Emerson, que, apesar da “metade da ótica”, vibrou por cada momento como se fosse dele, interessou-se por aquilo que eu estudo, quis saber o que “é mesmo isso”. E, mesmo sem compreender direito (nem a mim, nem a teoria com a qual trabalho), faz questão de apresentar-me a todos: “Essa é a minha cunhada!”. Aos pastores: Anaildes Lobo, Raimundo César, Neander Abreu e José Carlos, por toda oração e fé. Aos amigos Marcela Soares, Vanesca Leal, Erika Maciel, Maíse Silva, Esdras Santana, Miriam Ferreira, Irene Valentim, Michele O‟Agra, Fernando O‟Agra, Emanuel Teixeira, Amanda Teixeira que torcem por mim nessa caminhada. Aos colegas e amigos da rede CEPA, em especial, Tarcísio, Lionel, Eliete, Josinalva, por terem compreendido toda ausência e, mais que isso, suprido as minhas faltas para que eu pudesse ter tempo para concluir esse trabalho. À FAPESB, pelo apoio financeiro que tornou possível meus estudos e pesquisa. Agradecimento especial ao prof. Dr. João Antonio de Santana Neto, orientador, professor e mestre que me proporcionou inestimáveis espaços de construção de conhecimento. Muito obrigada por seu olhar cúmplice e incentivador a cada vez que apresentei o meu projeto, pela confiança enquanto estagiava, enfim, pela parceria na construção desse trabalho, que muitas vezes se confunde com a construção da minha história. Às professoras que compõem a banca, prof.ª Dr.ª Lícia Soares de Souza e prof.ª Dr.ª Denise Maria Oliveira Zoghbi, por aceitarem fazer parte desse momento tornando-o ainda mais especial. A todos os professores do PPGEL, em especial, à professora doutora Márcia Rios que, enquanto coordenadora, demonstrou todo o seu afinco e dedicação ao programa dando-nos suporte em tudo o que foi necessário. Aos funcionários do PPGEL Camila Araújo e Danilo Araujo, que sempre nos deram um grande apoio durante todo o processo. 8 A todos os componentes do GELLC, principalmente à Prof.ª Dr.ª Rosa Helena Blanco e à Prof.ª Dr.ª Lígia Pellon, pelas discussões sempre enriquecedoras. Aos meus amigos do PPGEL, em especial a Verena Abreu, minha irmã por parte de orientador, nascida também em 19 de abril, que compartilhou, seja presencialmente, por telefone, por e-mail ou por scrap, cada aflição, cada momento de bloqueio, cada desanimo, mas também cada alegria, cada brado de vitória, enfim, irmã sem fronteiras, para quem não existiu distância entre Salvador e Santo Antonio de Jesus, muito menos entre a Bahia e o Pará; Quézia Lima (foi critério de seleção ter nascido em 19 de abril) que nasceu no mesmo dia, mês e ano que eu, apresentou-me o GELLC e me fez amar esse grupo de pesquisa, bem como me fez amar também a UNEB, incentivou-me a estudar francês e a compreender que ser mulher é sinônimo de força; e Rafaella Elisa, que me ajudou a compreender e a amar aquele que de tão semelhante, parece tão distinto de mim. 9 “Nessa narrativa que se incrusta na história de vida ou dos desejos de muitas pessoas, relações são trabalhadas, medos apresentados, desejos reprimidos ou realizados. É história porque está fantasiada nos tesouros da linguagem, narrada de forma a nos levar a brincar e a imaginar.” Antonio Magalhães (2008) 10 RESUMO Nesse trabalho, propõe-se analisar as letras das canções de Chico Buarque: Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972); Fado Tropical (1972-1973); Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha (1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar (1984) de acordo com o nível discursivo da Semiótica Greimasiana, observando a configuração do tempo, dos temas e das figuras, com o intuito de que se perceba que é da relação entre a invariante do sistema e a variação social que surgem os sentidos do discurso. Além disso, aprofundar o olhar por sobre as figuras ligadas à temática do carnaval tomando como base de análise a referência do mundo carnavalizado apontado por Bakhtin ([1965] 2008) no contexto de Françoais Rabelais, figuras que, relacionadas às ancoragens de tempo e espaço, remetem à necessidade de libertação diante da situação de opressão vigente no país no momento em que as letras foram compostas; e perceber a relação entre a tensão e significação apresentada por Fontanille e Zilberberg (2001), analisando como o trabalho com a intensidade e a duratividade no texto também contribuem no que tange a identificar a sua relação com os fatos da época da composição. Palavras-chave: Semiótica. Chico Buarque. Ditadura. Tensão. Carnavalização. 11 ABSTRACT This work seeks to analyze the lyrics of songs by Chico Buarque: Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972); Fado Tropical (1972-1973); Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha (1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar (1984), according to the level of discourse of Semiotics Greimas, noting the time setting, the themes and figures, with the intention of being noticed is that the relationship between the invariant of the system and change the social meanings that arise from the discourse. In addition, deeper look over the figures related to the theme of the carnival taking as reference the basis of analysis of the world carnavalized pointed out by Bakhtin ([1965] 2008) in the context of Francois Rabelais, figures related to the anchors of time and space, refer to the need to release before the oppressive situation prevailing in the country at the time the letters were written, and understand the relationship between tension and meaning by Fontanille and Zilberberg (2001), analyzing how the work with intensity and durative also contribute to the text when it comes to identifying their relationship to the facts at the time of composition. Key-words: Semiotic. Chico Buarque. Dictatorship. Tension. Carnivalization. 12 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 14 1 PRA LÁ DESTE QUINTAL: CHICO BUARQUE E A NOITE QUE QUASE NÃO TEVE FIM. 23 2 SE TU FALAS MUITAS PALAVRAS SUTIS: A TEORIA SEMIÓTICA GREIMASIANA 61 2.1 PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO 64 2.1.1 O NÍVEL FUNDAMENTAL 71 2.1.2 O NÍVEL NARRATIVO 79 2.1.3 O NÍVEL DISCURSIVO 100 3 SE ME PERMITEM, VOU TENTAR LHE REMETER NOTÍCIAS FRESCAS. 109 3.1 FIGURAS DO CARNAVAL 109 3.2 A CENSURA, O EXÍLIO, A TORTURA 134 CONCLUSÃO 155 REFERÊNCIAS 159 ANEXO 163 13 LISTA DE FIGURAS E QUADROS FIGURA O1 68 FIGURA 02 73 FIGURA 03 73 FIGURA 04 74 FIGURA 05 77 FIGURA 06 77 FIGURA 07 77 FIGURA 08 78 FIGURA 09 81 FIGURA 10 93 FIGURA 11 93 FIGURA 12 94 FIGURA 13 94 FIGURA 14 95 FIGURA 15 96 FIGURA 16 97 FIGURA 17 97 FIGURA 18 97 FIGURA 19 97 FIGURA 20 113 FIGURA 21 113 FIGURA 22 118 FIGURA 23 122 QUADRO 01 67 QUADRO 02 143 14 INTRODUÇÃO A música brasileira, diferente da européia ou asiática, não teve um desenvolvimento livre de preocupação quanto a sua afirmação nacional e social. Do contrário, partiu das necessidades sociais e delas se alimentou. “De início, e sempre do ponto de vista social, a música brasileira teve um desenvolvimento lógico, que chega a ser primário de tão ostensivo e fácil de perceber: primeiro Deus, depois o amor e finalmente a nacionalidade” (ANDRADE, [1941] 1991, p.11). Isso porque a música brasileira nasce das necessidades do que viria a ser o povo brasileiro: existiam os cantos dos rituais dos indígenas, os batuques dos africanos e as cantigas dos colonizadores europeus, cada um tentando, através do seu ritmo, afirmar-se e relembrar-se enquanto povo. Depois da necessidade de afirmar-se enquanto povo, cada um, individualmente, nasce a necessidade de unir-se enquanto nação e, mais uma vez, a música mostra-se a mais coletivista das artes e, sendo assim, exige a coletividade para se realizar ao mesmo tempo em que está sujeita às condições dessa mesma coletividade. Essa música foi então uma força que cresceu de baixo para cima. Dessa forma, “o compositor, diante da obra a construir, ainda não é um ser livre, ainda não é um ser “estético”, esquecido em consciência de seus deveres e obrigações” (ANDRADE, [1941] 1991, p.26). E, se desde o início já não foram livres, em diversos momentos bem posteriores a esse quadro que Mário de Andrade traça em 1932, também não o puderam ser, pois, em diferentes momentos da história do Brasil, foi através da música que aqueles que eram povo1 tiveram a oportunidade de se expressar. Isto porque é a mais coletivista de todas as artes e o desenvolvimento da coletividade exerce função absolutamente predeterminante no aparecimento do indivíduo musical, o qual, desta maneira, fornece dados importantes para avaliá-la; pois, permitindo diversas leituras, permite que o leitor/ouvinte também o complete com a sua experiência e reavalie a sua vida, reavaliando assim a sociedade. 1 Nesse parágrafo, povo não significa toda uma coletividade componente de uma nação, como foi feita referência dois parágrafos atrás, e sim classe que não ocupa o poder. 15 E, sendo a letra da música texto, permite a duplicidade da qual a cultura é uma margem, como relata Barthes (1987, p.12): Daí, talvez, um meio de avaliar as obras da modernidade: seu valor proviria de sua duplicidade. Cumpre entender por isto que elas têm sempre duas margens. A margem subversiva pode parecer privilegiada porque é a da violência; mas não é a violência que impressiona o prazer; a destruição não lhe interessa; o que ele quer é o lugar de uma perda, é a fenda, o corte, a deflação, ofading que se apodera do sujeito no imo da fruição. A cultura retorna, portanto, como margem: sob não importa qual forma. É por entender que as obras têm sempre duas margens; por entender que a revolução e a transformação da realidade são duas das funções da arte; por entender que somente a arte consegue elevar o homem de um estado fragmentado a um estado de ser total; por entender que a sociedade precisa do artista, uma vez que ela capacita o homem a compreender a realidade, e mais ainda, a suportá-la e, ainda melhor, a transformá-la, tornando-a mais humana e hospitaleira para a humanidade; e por entender que “a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas é a de abrir as portas fechadas” (FISCHER, 1973, p. 38), que esse trabalho tem como proposta a análise da seguinte questão: como se configuram, de acordo com o nível discursivo da Semiótica Greimasiana, o tempo, os temas e as figuras nas letras2 das canções Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972), Fado Tropical (1972-1973), Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha (1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar (1984), compostas por Chico Buarque em um momento de extrema censura e repressão no Brasil, articulando a linguagem de forma a tornarem-se discursos de transformação política e social da sua época e atravessam os anos permanecendo importantes para o contínuo processo de libertação em que vive a sociedade? Pode-se observar que as letras das canções elencadas para a análise datam da década de 1970 ao início da década de 1980. A escolha se deu pelo fato de ser o período compreendido entre o Ato Institucional nº5 (AI-5) e o movimento pelas eleições “Diretas Já”. Em 31 de março de 1964, um golpe depôs o presidente João Goulart e, em 1º de abril do mesmo ano, os militares assumem o poder no Brasil, decretando em 09 de abril de 1964 o Ato Institucional nº 1 que cassou quarenta 2 Todas as letras utilizadas nesse trabalho foram retiradas do site: www.chicobuarque.com.br. 16 mandatos de parlamentares dando início, a partir do dia 11 de abril, com a eleição à presidência do General Castelo Branco pelo Congresso Nacional, a vinte e um anos de Ditadura Militar no Brasil. Porém, foi a partir de 1968, também conhecido como “o ano que não acabou”, que o governo militar mostrou toda a sua força de repressão. Isso porque, no mundo inteiro, o ano de 1968 foi um ano de intensa contestação da política e dos costumes. Foi o ano dos movimentos estudantis, do movimento feminista, do assassinato de Martin Luther King, dos preparativos para a luta armada no Araguaia, das greves, dos assaltos a bancos e instalações militares. Assim, o governo militar reagiu, o marechal Costa e Silva decretou o Ato Institucional nº 5 (AI-5) em uma sexta-feira 13 de dezembro de 1968. Esse ato institucional deu início aos “anos de chumbo” no Brasil, pois, dentre outras coisas, suspendeu todas as garantias individuais, fechou o Congresso Nacional, estabeleceu formalmente a censura à imprensa e legalizou a perseguição e prisão de todos aqueles que se manifestassem contra o regime. No dia 18 de dezembro de 1968, Chico Buarque foi apresentado à repressão. Foi retirado de seu quarto e levado para o departamento de Ordem Política e Social (Dops) e depois para um quartel do exército para tratar da sua peça Roda-Viva (1967) e da passeata dos “Cem Mil” da qual havia participado junto com outros artistas. Após o interrogatório, foi informado de que deveria comunicar às autoridades militares toda vez que necessitasse retirar-se da cidade. Como já havia agendado uma série de shows na França, partiu para lá. Porém, a estadia que seria de apenas dez dias, estendeu-se, por “conselho” de parentes e amigos até 1970, quando o diretor da PolyGram, André Midani, o chamou a retornar. E, com o aval de Vinícius de Moraes, Chico Buarque retornou ao Brasil em março de 1970, mas logo percebeu que, neste período, “a coisa aqui tá preta”3. Em resposta a tudo o que via (as perseguições, prisões, torturas, forte atuação do Destacamento de Operações e Informações ao Centro de Operações de Defesa Interna), Chico Buarque lança a música que ele mesmo reconhece como sendo de protesto: Apesar de Você. A princípio, a música passa pela censura como um caso de amor com uma mulher autoritária, começa a tocar nas rádios, o LP faz sucesso, 3 Trecho da letra Meu Caro Amigo (1976). 17 porém, o governo passa a entender que “você” é o sistema, é o governo militar. Assim, a música é proibida, o censor punido, e Chico Buarque passa a ter as suas composições perseguidas e censuradas, pois transformou-se em traidor, “aquele que enganou a censura”. É também com esta música que Chico traz um diferencial entre as canções de protesto no Brasil e no resto do mundo, porque, mesmo sendo de protesto4, Apesar de Você é uma música alegre, é samba, remete ao carnaval. Mas, antes de Apesar de Você, ainda em seu exílio na França, Chico compõe, em parceria com Toquinho e Vinícius de Moraes, Samba de Orly. Chico Buarque fez para a música, que Toquinho o entregou um dia antes deste voltar da Itália para o Brasil, uma letra de alguém que se despede do amigo, mas que está com muita saudade da sua terra natal. Porém, ao ver a letra, Vinícius de Moraes troca os versos “Pede perdão / pela duração / dessa temporada”, por “Pede perdão / pela omissão / um tanto forçada”, demonstrando que não é apenas uma saudade, mas uma saudade de um lugar para onde não se pode voltar. Todavia, no momento de lançar a música no Brasil, a censura vetou os versos de Vinícius de Moraes. Quando o carnaval chegar, composta para o filme Quando o Carnaval Chegar, de Cacá Diegues, traz, assim como “Apesar de Você”, a alegria, o samba, a referência ao carnaval. Isso porque, em muitas das composições de Chico Buarque, a música e o carnaval são apresentados como elementos de libertação, de catarse, de desregramento e harmonia ao mesmo tempo. Pois, nessas canções, Chico concretiza sua ideologia5 social, busca a negação da realidade a partir do encanto com a passagem do cortejo dionisíaco como um convite à desrepressão. Assim, o sujeito de Quando o carnaval chegar passa a vida reprimido, esperando confiante a chegada do carnaval, que será o seu elemento libertador. 4 Ao se tratar em canção de protesto nesse trabalho, tratar-se-á na visão de Anazildo Vasconcelos Silva (2004, p.174), em que a obra lírica define-se como expressão subjetiva do eu lírico que integra, através da referencialidade sígnica, a proposição de realidade diante da qual o eu lírico reagiu. Tal qual se explanou parágrafos antes a partir da citação de Ernest Fischer: “a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas é a de abrir as portas fechadas”. 5 “...Vale afirmar que uma ideologia, dependendo do nível das estruturas semióticas de superfície, pode definir-se como uma estrutura actancial que atualiza os valores que ela seleciona no interior dos sistemas axiológicos (de ordem virtual). [...] Em outros termos, a ideologia é uma busca permanente dos valores, e a estrutura actancial que a informa deve ser considerada como recorrente em todo discurso ideológico.” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 253) 18 Em Fado Tropical, Chico Buarque faz uma comparação entre Brasil e Portugal, que ainda vivia sob o regime fascista de Marcelo Caetano. Com a Revolução dos Cravos, que em abril de 1975 depôs a ditadura portuguesa, essa letra tomou uma conotação subversiva e ameaçadora para o regime militar que ainda vigorava no Brasil. Composta por Chico Buarque e Gilberto Gil, Cálice tem duas estrofes de cada autor. Gil fez a primeira e a terceira estrofes e o refrão “Pai, afasta de mim esse cálice”. Chico logo observou o jogo de palavras “cálice x cale-se” e compôs as outras estrofes. Essa música foi proibida no dia do show Phono 73, realizado em maio de 1973, no Anhembi, São Paulo. Mas, os dois cantores resolveram cantá-la logo assim e tiveram os microfones desligados. Cálice apenas foi liberada em 1978. Os compositores que já tinham uma letra proibida apresentavam mais dificuldades de aprovar outras letras, as quais muitas vezes eram vetadas pelo simples fato de os seus autores terem os seus nomes na lista da censura. Dessa forma, para fugir da lista da censura, Chico Buarque criou o pseudônimo Julinho de Adelaide e, dentre outras composições, fez Acorda Amor, que a censura aprovou sem restrições, sem nem mesmo perceber que essa letra descreve uma prisão muito parecida com a de Chico em dezembro de 1968, quando foi surpreendido dentro de casa por agentes da ditadura. Composta também sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, Jorge Maravilha apresenta outra técnica utilizada por Chico Buarque para “driblar” a censura. Para conseguir a liberação, inseria a parte que lhe interessava misturada a estrofes desconexas e, como não havia a obrigação de gravar todo o texto, eliminava-se as estrofes excedentes e gravava-se a música. Em algumas matérias, jornalistas afirmavam que o “você‟ desta letra seria o general Geisel, cuja filha declarou-se apaixonada por Chio Buarque, porém, Chico revelou que baseava-se na imagem dos agentes de segurança que iam à sua casa para levá-lo detido e pediam autógrafos para as filhas. Já, Meu Caro Amigo é uma carta-canção para o teatrólogo Augusto Boal, exilado em Portugal, que se lamentava de não receber, por parte dos seus amigos, notícias do Brasil. 19 Em 1975, no governo do general Ernesto Geisel, a censura à imprensa foi suspensa, o habeas-corpus foi restaurado e as condições para a abertura política rumo à redemocratização começaram a ser criadas. Dessa forma, Corrente, composta em 1976, já não encontrou tantos problemas com a censura. O “samba que vai pra frente” contradiz a idéia de que o samba não pode ser engajado, de que uma música não pode ser ao mesmo tempo alegre e relacionada à realidade política e social. O subtítulo “Este é um samba que vai pra frente”, faz referência a uma espécie de hino do regime que dizia: Este é um país que vai pra frente Hô, hô, hô, hô, hô De uma gente amiga e tão contente Hô, hô, hô, hô, hô Este é um país que vai pra frente De um povo unido, de grande valor É um país que canta, trabalha e se agiganta. É o Brasil do nosso amor! (HOMEM, 2009, p.152) Além do samba, Chico mostra que também que a valsa pode ser usada para tratar de opressão. É de 1977 a letra que opõe inocência e liberdade a maturidade e repressão. João e Maria têm como melodia uma valsa composta por Sivuca em 1947, período em que Chico ainda era criança. E, é a partir das brincadeiras de criança trazidas ao texto por meio da expressão “agora eu era...”, menção a um passado onírico, que o compositor trata da liberdade que acaba quando o faz-deconta termina. Em 1984, o movimento pelas eleições “Diretas Já” tomou forma com a participação de artistas, políticos de oposição e milhões de brasileiros, mas a Emenda Dante de Oliveira (que garantia as eleições diretas) não foi aprovada pela Câmara dos Deputados. É nesse ano que Chico compõe Pelas Tabelas e a partir da imagem de um sujeito apaixonado que procura a sua amada no meio da manifestação, remete ao que já foi discutido sobre a função da arte, mais precisamente da música ao apresentar-se como a mais coletivista das artes. Assim sendo, o desenvolvimento da coletividade exerce função absolutamente predeterminante no aparecimento do indivíduo musical, o qual, desta maneira, fornece dados importantes para avaliá-la. A realização do desejo de mudança, a morte e ressureição na praça, alegria e o riso que invadem a cidade durande o carnaval, parece concretizar-se em Vai passar. O 20 mundo ao avesso parece possível. Ao passar do samba, até aquilo que é cotidianamente destítuido de vida e sentimentos, tal como o paralelepípedo, pode arrepiar-se, ter lembranças, tomar consciência de sua vida, de seu passado de passividade e desejar um futuro diferente, mais alegre. Assim, transformou-se quase em um hino deste momento, pois, estava ali na emenda que não foi aprovada a expectativa de um tempo novo, porém, a esperança de que a “página infeliz” da história do Brasil seria virada não se perdeu junto com a emenda, continuou-se acreditando no clarear do dia6 e em uma “vida boa” que estava para surgir. Sendo dessa maneira, com a finalidade de responder a questão proposta, nesse trabalho, tem-se como objetivo geral analisar as letras das canções Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972); Fado Tropical (1972-1973); Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha (1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar (1984), a partir do nível discursivo da Semiótica Greimasiana, focando o tempo, os temas e as figuras, examinando como esses recursos utilizados pelo compositor fizeram da sua música uma arte coletiva e o ajudaram a burlar a censura e operar um discurso de esperança de transformação política e social. Como objetivos específicos, nesse trabalho pretende-se visitar o contexto histórico da época em que as letras foram escritas e a participação de Chico Buarque naquele momento; explicitar, ilustrando com letras de canções de Chico Buarque, os princípios da Semiótica Greimasiana; analisar como o tempo parece fazer-se sempre presente através da memória do olhar e da espera cada vez que as letras dessas canções são revisitadas, examinar como os temas e as figuras distribuem-se nas letras dessas canções; aprofundar a temática do carnaval ao observar as suas figuras a partir da teoria da carnavalização proposta por Bakhtin; e observar como se dá a tensão e a significação nessas letras. Para atingir tais objetivos, utiliza-se como método: levantamento bibliográfico (livros sobre Semiótica Greimasiana e letras de canções de Chico Buarque); leitura e 6 Em oposição à idéia do dia que traz o fim da festa, o fim da alegria, presente nas letras das canções mais boêmias, nas músicas de Chico Buarque, em que a música e o cortejo carnavalesco são libertadores, o raiar do dia é signo do raiar da esperança, do raiar da vida, da alegria. É a inversão do dia e da noite própria do mundo carnavalizado, como nos explana Bakhtin (2008). 21 fichamento de livros sobre Semiótica Greimasiana; descrever o tempo, os temas e as figuras nessas canções; atribuir significados a essas passagens de tempo e o uso dos temas e das figuras pelo autor. Ou seja, quanto à abordagem, essa pesquisa é qualitativa. Isto por concordar com Minayo (1999) ao afirmar que a abordagem qualitativa não pode pretender o alcance da verdade, com o que é certo ou errado. Deve-se ter como preocupação primeira a compreensão da lógica que permeia a prática que se dá na realidade. Por trabalhar com o universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, preocupa-se então com um nível de realidade que não pode ser quantificado. Corresponde a um espaço mais profundo das relações, dos processos e dos fenômenos que não podem ser reduzidos à operacionalização de variáveis. Tem o significado como conceito central, e o fenômeno é entendido nas suas determinações e transformações dadas pelos sujeitos. Cabe ainda observar, no que se refere ao método, que a Semiótica Greimasiana interessa-se pelo texto como um todo, e aceita o fato de o texto não ser a simples soma de frases, quebrando as barreiras que impedem tanto a passagem da frase ao discurso, como a que separa a língua da fala, ou seja, dos fatores sócio-históricos que a envolvem. Vale também ressaltar que para Greimas e Courtés (2008, p. 166168) a enunciação é a instância que produz o discurso, que promove a passagem das estruturas semióticas narrativas às estruturas discursivas. E, sendo o discurso lugar tanto do social como do individual, as estruturas narrativas são o suporte sintático-semântico das estruturas discursivas de qualquer tipo de discurso. Dessa maneira, busca-se integrar, por meio da enunciação, a análise interna do texto, fundamental para que se reconheçam os mecanismos e regras de geração do discurso, com a análise externa do contexto histórico, em que o texto se insere e de que guarda sentido. Também para abranger os objetivos propostos, esse trabalho divide-se em três capítulos. No primeiro capítulo, utilizando como referencial teórico Homem (2009), Wernek (2006), Cezar (2007), Zappa (1999), Gaspari (2002a), Gaspari (2002b), Bertoncelo (2007) e Chiavenato (1994), faz-se uma visita ao contexto histórico da ditadura no Brasil, desde o governo da Junta Militar até as eleições de 1989, quando os brasileiros puderam eleger por voto direto o seu presidente. E, ao mesmo tempo 22 em que se passeia pela história do Brasil, conta-se a história de Chico Buarque, citando composições que foram marcantes para cada momento. Já no capítulo dois, abordam-se os princípios da Semiótica Greimasiana, em todos os seus três níveis (fundamental, narrativo e discursivo), ilustrado pelas letras das canções7 João e Maria (1977), Minha História8 (1970), Boi voador não pode (1972), Teresinha (1978), Quem te viu quem te vê (1966), Ana de Amsterdam (1972). Para isto, lança-se mão de referenciais tais quais Greimas e Courtés (2008), Greimas e Fontanille (1993), Greimas (1976), Zilberberg (1981), Fontanille e Zilberberg (2001), Barros (1988), Barros (2007), Fiorin (2006), Landowski (1989). E, tendo já conhecido todo o contexto sócio-histórico em que foram compostas e a teoria a partir da qual são analisadas, o capítulo três, utilizando como referencial Greimas e Courtés (2008), Zilberberg (1981), Barros (1988), Barros (2007), Fiorin (2006), Fiorin (2007), Fiorin (2008), Souza (2006) Landowski (1989), Tatit( 2007), Tatit (1997), Tatit (2001), Fontanille (2007), Fontanille e Zilberberg (2001) e Bakhtin ([1965] 2008) é o capítulo de análise das letras das canções Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972); Fado Tropical (1972-1973); Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha ( 1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar(1984) sob o prisma do nível discursivo da Semiótica Greimasiana focando o tempo, os temas e as figuras, além das categorias de tensão e significação cunhadas por Fontanille e Ziberberg ( 2001). Vale ressaltar que, na perspectiva do nível discursivo da Semiótica Greimasiana, o tempo, o espaço e as pessoas presentes no discurso dependem dos dispositivos de 7 Para imprimir maior riqueza ao trabalho, buscou-se não repetir músicas que são trabalhadas em outros capítulos e também lançar mão de letras que melhor ilustrassem cada nível semiótico. 8 “Minha História” foi eleita para ilustrar a sintaxe narrativa porque, como o próprio título já sugere descreve a história de um sujeito, o percurso de um sujeito. E, mesmo sendo uma versão da canção “A Gesú Bambino” de Lucio Dalla e Paola Pallottino, conta uma história bem brasileira, não sendo uma tradução literal do original italiano, como é possível perceber na tradução em anexo feita pela professora especialista Érika Maciel. Esta canção recebeu à princípio o título “Menino Jesus”, mas a censura não aprovou e o autor substituiu por “Minha História”. Wagner Homem (2009, p. 89) apresenta uma curiosidade sobre o quão brasileira é esta letra de Chico: “O original de Dalla e Pallottino tinha o subtítulo de “O filho da guerra”, que é como são conhecidas as crianças nascidas de mães solteiras italianas com soldados estrangeiros. Ao fazer a adaptação, Chico brincava, dizendo que o subtítulo seria “O filho da puta”. 23 desembreagem, que podem ser enunciativos (quando o efeito é de proximidade da enunciação com uso da primeira pessoa, o tempo é o presente e o espaço é o do aqui), ou enuncivos (quando produz efeito de distanciamento da enunciação, usa-se a terceira pessoa, tempo do então e o espaço do lá). Essas desembreagens serão abordadas a partir das marcas lingüísticas presentes nas letras das músicas. Bem como é importante também explicitar que tema é a disseminação dos traços semânticos de forma abstrata em um texto e as figuras, os traços semânticos “sensoriais”, que culminam no efeito de concretização sensorial. Portanto, são as isotopias figurativas que permitem leituras temáticas sócio-políticas, e os discursos são relidos do ponto de vista do autoritarismo, da opressão e da repressão, atribuindo papel social ao fazer do sujeito, ao discurso. Por fim, é o propósito desse trabalho investigar as composições elencadas do período compreendido entre o AI-5 e as Diretas Já tomando como base o nível discursivo da Semiótica Greimasiana no que diz respeito aos temas e as figuras; as relações de tensão, significação e tempo a partir da timia teorizada por Zilberberg e as figuras relacionadas ao carnaval por meio do conceito de carnavalização cunhado por Bakhtin. Sabe-se que outros trabalhos já foram desenvolvidos tanto no que tange à análise de músicas de Chico Buarque, como no que diz respeito à teoria Semiótica Greimasiana e ao conceito de carnavalização bakhtiniano. Alguns desses trabalhos foram utilizados como referenciais para o desenvolvimento dessa dissertação, como é o exemplo de Fernandes (2004), Calado (2004), Tatit (2004), Tatit (2001), Tatit(1997), Tatit (2007), Cesar (2007). Porém, o que diferencia essa dissertação dos trabalhos citados é que se buscou unir a teoria Semiótica Greimasiana ao conceito de carnavalização bakhtiniano a fim de aprofundar o olhar por sobre as figuras relativas ao tema do carnaval. Além disso, observa-se nessa dissertação, a partir das timias e das paixões, que o discurso semiótico é a descrição das estruturas imanentes e a construção dos simulacros que dão conta das condições e das precondições da manifestação do sentido e do ser. Pois, analisa-se, nessa dissertação, não o percurso de um sujeito puramente cognitivo, mas um sujeito que encontra em seu percurso uma fase de sensibilização tímica. 24 1 PRA LÁ DESTE QUINTAL: CHICO BUARQUE E A NOITE QUE QUASE NÃO TEVE FIM Em dezenove de junho de 1944, nasce, no Rio de Janeiro, Francisco Buarque de Hollanda. O quarto dos sete filhos do historiador e sociólogo Sérgio Buarque de Hollanda e da pianista amadora Maria Amélia Cesário Alvim. Porém, mesmo entendendo a importância da família na formação do cantor e compositor, não se pretende montar a sua biografia, tratar da sua infância em São Paulo e na Itália tendo a casa sempre freqüentada por artistas e intelectuais como Vinícius de Morais, ou o fato de ser irmão da Miúcha: 9 JCL - Você pertence a uma família tradicional, uma família de intelectuais. O que você diria que acendeu em você a chama do não-conformismo? Chico - Nessa coisa de família aí, a minha, já de cara, não tem nada de conformista, exatamente por ser uma família de intelectuais. O meu pai nunca foi conformista, muito pelo contrário, teve inclusive uma certa participação política na época do Estado Novo, embora ele seja um cara, assim, mais do mundo dos livros. Agora, pra começo de conversa, eu diria que sou um inconformista também por causa dessa origem. O que se observa é esse inconformismo que partiu da sua família e se expressa em suas letras. As suas histórias, como a de ter sido preso na adolescência por “puxar” carros com alguns amigos e a sua foto ter aparecido no jornal com uma tarja preta nos olhos; fotos estas que se transformaram, mais tarde, em capa do seu LP Paratodos de 1993 e inspiraram, para o mesmo disco, a canção A foto da capa (1993), são contadas à medida que se encontrem com a história do Brasil no período da ditadura militar, mais precisamente, a partir do Ato Institucional nº 5 (AI-5) quando a censura por sobre a imprensa e os artistas ficou mais acirrada e muitas das suas composições foram proibidas. O retrato do artista quando moço Não é promissora, cândida pintura É a figura do larápio rastaqüera Numa foto que não era para capa 9 Entrevista a Jorge Cunha Lima – Senhor Vogue 03/1979. 25 Uma pose para câmera tão dura Cujo foco toda lírica solapa Era rala a luz naquele calabouço Do talento a clarabóia se tampara E o poeta que ele sempre se soubera Claramente não mirava algum futuro Via o tira da sinistra que rosnara E o fotógrafo frontal batendo a chapa É uma foto que não era para capa Era a mera contracara, a face obscura O retrato da paúra quando o cara Se prepara para dar a cara a tapa. Portanto, não se pretende narrar a sua paixão pelo futebol, as proezas do seu time, o Politheama ou a sua torcida pelo Fluminense, a não ser quando o fato de torcer por este time o livrou de ficar preso nos quartéis da ditadura. 10 Antes de deixar o quartel , o general Assunção, que tinha dado vários sustos em Chico, avisou que ele não ia ser preso – tinham achado-o muito 11 simpático, além de ele ser torcedor do Fluminense – mas que ficasse no Rio. Se quisesse sair da cidade ou do país, teria que falar com o coronel Átila, que virou seu interlocutor para assuntos afins (ZAPPA, 1999, p. 101). Nem tampouco o fato de quase ter morado em uma casa projetada pelo Niemeyer e a bela forma poética com que trata desse assunto. Não se desfiará as suas experiências religiosas, a sua convivência com frei Beto (seu padrinho), seu envolvimento com os Ultramontanos, com a “Organização Auxílio Fraterno”, até tornar-se ateu. Não se trata, nesse trabalho, de discutir se ele seria um bom arquiteto; se é mais poeta, letrista, músico ou escritor; 12 nA - Você escreve a letra antes da música? Chico - Não. Nunca escrevi uma letra sem ter antes a melodia. Ou a melodia de meus parceiros, ou as que faço sozinho: é sempre a música que conduz a letra. E quando uma avança mais rápido, é sempre a música: a letra vem depois. Porque muitas foram as entrevistas e tantas são as discussões, quando o que verdadeiramente interessa é compreender quais temas essas letras abordam e a 10 Chico foi acordado em sua casa e levado ao quartel da Praça 15 para falar sobre a Passeata dos 100 Mil e sobre Roda Viva. 11 Grifo da mestranda. 12 Entrevista à Revista Nossa América 1989. 26 partir de que figuras o fazem (como é discutido no capítulo três desse trabalho) para que estas músicas sejam ou não censuradas: É que naquela época tudo tinha outro sentido... 13 As pessoas atribuíam às vezes outros sentidos que eu mesmo não tinha 14 atribuído. Era uma brincadeira pro Mários Reis , sem nenhuma implicação política, mesmo porque o Mário era uma pessoa absolutamente distanciada da política. Ele ficou tão revoltado com esse caso... Ele morava no Copacabana Palace, e vivia com os grã-finos. Ele ia pra esses lugares, ele cantava a música nos cabeleireiros, pra madames (...). Por que esses outros sentidos são atribuídos? Quais figuras levam a esses temas políticos? Em que a época contribui com esses outros sentidos? São essas as questões que ocupam esse trabalho. Também não se explana como se dá o seu processo de criação, a não ser quando as imagens que o obsessionam ganham traços de revestimento sensorial e se transformaram em figuras, dando forma aos temas que levanta nas letras das suas canções: 15 nA - E o processo interior é penoso? Chico - Bem, acontece de tudo. Muitas vezes, insônias tremendas. Viro noites com uma imagem na cabeça, uma idéia, amanheço exausto, sem conseguir me livrar. Isso acontece durante a escritura, ou até depois. As vezes vou deitar com papel e lápis na cabeceira, mas não durmo, tento escrever, rabisco alguma coisa, e de repente amanhece, desço, vejo minha filha tomando o café da manhã e indo para a escola, e eu torno a insistir, sem conseguir me libertar da imagem que me obsessiona. É um processo misterioso, sempre. Nem se aplaude o “Chico dos Festivais”, mas sim como este período foi importante para o desenvolvimento das artes no Brasil. Já que a partir de 1958 a Bossa Nova rompeu com o samba tradicional, renovando a música brasileira e, a partir de 1962, identificadas com o meio universitário, as músicas da Bossa Nova passam a fazer parte de uma política engajada como um “samba participante”, pois, nem neste momento, nem ainda em 1965, no momento dos festivais, a arte havia sido 13 Entrevista a Geraldo Leite – Rádio Eldorado – 27/09/1989 A letra a que se refere é Bolsa de Amores (1971) 15 Entrevista à Revista Nossa América 1989. 14 27 “incomodada” pelo governo militar, podendo então exercer as suas funções de informação e revolução dentro da sociedade. 16 17 Chico Buarque - Esse período , o período mais fértil da música e o período que deu início a tudo o que a gente conhece hoje como moderno 18 cinema brasileiro, como moderno teatro, isso antecede a censura . Há um equívoco muito grande. Falam em época dos festivais, mas foi a partir da 19 bossa nova que se desencadeou isso tudo . Foram os finais dos anos 50, ali que a coisa explodiu. E, quando comecei a gravar, a segunda geração da bossa nova e tal foi nos anos 60, até meados dos anos 60 não havia censura. Volta e meia ouço falar: "Não, porque a censura não sei o que..." A censura só passou a existir institucionalizada a partir do AI-5, fim de 68. A partir de 69 é que existe censura. Tive nessa época, antes de 68, um problema com uma música, Tamandaré, que aí a Marinha implicou e proibiu. Mas a censura como censura não existia. Então, entre 64 e 68 - já tínhamos uma ditadura militar -, as artes praticamente não foram incomodadas. A chamada música de protesto, teatro de resistência, tudo floresceu entre 64 e 68. Então, esse período a que as pessoas se referem 20 tanto, "ah, os festivais, hã, hã, hã" não, não havia censura . Dessa maneira, o interesse não é apenas pelo Chico Buarque, “artista criador” 21, que foi arrebatado para a música pela Bossa Nova, quando do lançamento de Chega de Saudade por João Gilberto: [...] Mas um acontecimento, em 1959, foi determinante na sua vida, como foi na vida de muitos cantores e compositores brasileiros: o lançamento de Chega de Saudade, com João Gilberto. “O que me levou para a música dessa forma arrebatadora foi o fato de eu ter 15 anos quando apareceu a Bossa Nova” Chico tem certeza de que se tivesse 18 anos, ou 11, a música não aconteceria do mesmo jeito em sua vida (ZAPPA, 1999, p.45). 22 [...] Eu conheci Vinícius quando eu era criança. Mas eu passei a ser fã de Vinícius a partir da bossa-nova. Foi aí que eu me interessei... Eu não lia muita poesia. Acho que eu não conhecia o poeta Vinícius de Moraes. Eu conhecia o boêmio e compositor Vinícius de Moraes, amigo lá de casa, e a partir de Chega de saudade passei a conhecer. A bossa-nova foi que desencadeou a minha paixão pela música popular e a paixão da minha geração inteira. É um ponto comum de referência de todos nós. É João Gilberto, é Tom Jobim e é Vinícius. Virou uma página mesmo. Foi a partir daí que eu comecei a me interessar pelo violão e querer fazer música mesmo. Eu gostava muito de musica. Mas eu seria talvez um arquiteto que gostasse de música. 16 Entrevista a Carlos Trajan – Revista Caros Amigos – 12/1998 Finais dos anos 1950, início dos anos 1960. 18 Grifos da mestranda – Esse período a que Chico Buarque se refere é o final da década de 1950 e o início de 1960. 19 Grifos da mestranda 20 Grifos da mestranda 21 Como ele mesmo se designa, segundo a Regina Zappa (1999, p. 35). 22 Entrevista a Geraldo Leite – Rádio Eldorado – 27/09/1989. 17 28 E sim pelo artista criador que se alimentou de política e deixou que esses temas políticos aparecessem nas letras das suas composições: 23 JCL - O ser político está pegando muito mais do que o ser artista. Você é um ser muito político, hoje? Chico - Isso é mais de fora para dentro, entende? Quer dizer, eu me alimento dessas coisas, estou sabendo tudo, o nome dos deputados, dos senadores. Não é que eu me faça mais inteligente com uma conversa política... numa dessas eu vou ouvir muito mais do que eu vou falar. E acho normal que isso acabe perspirando na minha música. Não estou com vontade de escrever, de ser comentarista político, nem de emitir opiniões teóricas. Mas me alimento com isso tudo. Mais do que isso, é observado nesse trabalho o artista que tratou de política em um momento extremamente delicado no Brasil e que, apesar disso, conseguiu não ser panfletário, compondo letras que marcaram uma época, mas que não ficaram presas a ela. O Chico Buarque a que esse trabalho se refere é aquele que “botou a banda na rua” em pleno momento da Ditadura Militar no Brasil, trazendo a temática do carnaval, possibilitando que se viva o momento do extraordinário, em que o tempo é suprimido e o que prevalece é o espaço utópico: a alegria carnavalesca, a harmonização da desigualdade e da comunhão universal . Como afirma Carlos Drummond de Andrade24, [...] A ordem, meus manos e desconhecidos meus, é abrir a janela, abrir não, escancará-la, é subir ao terraço como fez o velho que era fraco, mas subiu assim mesmo, é correr à rua no rastro da meninada, e ver e ouvir a banda que passa. Viva a música, viva o sopro de amor que a música e banda vêm trazendo, Chico Buarque de Hollanda à frente, e que restaura em nós hipotecados palácios em ruínas, jardins pisoteados, cisternas secas, compensando-nos da confiança perdida nos homens e suas promessas, da perda dos sonhos que o desamor puiu e fixou, e que são agora como o paletó roído de traça, a pele escarificada de onde fugiu a beleza, o pó no ar, na falta de ar. A felicidade geral com que foi recebida essa banda tão simples, tão brasileira e tão antiga na sua tradição lírica, que um rapaz de pouco mais de vinte anos botou na rua, alvoroçando novos e velhos, dá bem a idéia de como andávamos precisando de amor. Pois a banda não vem entoando marchas militares, dobrados de guerra. Não convida a matar o inimigo, ela não tem inimigos, nem a festejar com uma pirâmide de camélias e discursos as conquistas da violência. Esta banda é de amor, prefere rasgar corações, na receita do sábio maestro Anacleto Medeiros, fazendo penetrar neles o fogo que arde sem se ver, o contentamento descontente, a dor que desatina 23 Entrevista a Jorge Cunha Lima – Revista Senhor Vogue – 03/1979. 24 Correio da Manhã, 14/10/1966. 29 sem doer, abrindo a ferida que dói e não se sente, como explicou um velho e imortal especialista português nessas matérias cordiais. [...] E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente. Enquanto a Banda passa não se conhece outra vida senão a do carnaval, só se pode viver de acordo com as suas leis, ou seja, as leis da liberdade. Ao passar da Banda há o renascimento e a renovação do mundo e cada indivíduo participa deste momento. É a fuga provisória da realidade. A gente sofrida despede-se da dor, o velho fraco esquece-se do seu cansaço, a moça triste sorri, a rosa fechada se abre, a moça feia ganha a sua serenata. Enfim, enquanto a passagem da Banda/carnaval dura, é a própria vida que representa e interpreta uma outra forma livre da sua realização, a vida festiva do povo. Na circunstância de festa, o povo penetra temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância. O carnaval é a festa em que se celebra o futuro, as alternâncias e renovações. È o tempo da abolição das relações hierárquicas, tempo em que todos são iguais, em que reina um contato livre e familiar entre todos aqueles que se encontram separados na vida cotidiana, seja pelas barreiras sociais, econômicas, de sexo, de idade ou situação familiar. Todos, indistintamente, param para ver a Banda passar: a gente sofrida, o homem que contava dinheiro, a namorada, as crianças, criando uma movimentação inconcebível em situações normais, pois esse momento de coletividade e de relações verdadeiramente humanas só são possíveis enquanto durar o carnaval, já que cada um com a sua dor retorna ao seu canto tomando o seu lugar depois que a Banda passa. Porém, vale ressaltar que, ao tratar o carnaval, Chico não está apenas falando da festa, mas de um tempo-espaço em que a comunidade liberta-se de todas as suas expressões, dos seus lugares sociais, dos seus medos. Este caráter utópico e universalizador, o qual é devido à dualidade na percepção do mundo e da vida 30 humana, é uma das principais características do conceito de carnavalização 25 em Bakhtin (2008). Quando Chico Buarque “colocou a Banda na rua”, ou seja, gravou A Banda26, ficando conhecido como “unanimidade nacional” pela estrondosa venda de LPs, havia dois anos que o Brasil estava sob o regime ditatorial. Pois, no dia 31 de março de 1964, o país sofreu um Golpe de Estado facilitado pela fragilidade política em que se encontrava desde a renúncia do presidente Jânio Quadros e a posse do João Goulart. A década de 1960 foi marcada por importantes manifestações populares não só no Brasil como no mundo. Havia os movimentos estudantis, os movimentos feministas, a Guerra Fria. E, no Brasil, os três anos do governo do presidente Goulart foram marcados pelos movimentos de organizações sociais de esquerda, gerando insatisfação nos conservadores que, temendo o domínio do socialismo com um golpe comunista, articularam-se para derrubar o governo populista e suas Reformas de Base. Com o aumento da crise política, tropas nas ruas e a iminência de uma guerra civil, João Goulart abandona a presidência e parte para o Uruguai. Dessa maneira, os militares tomam o poder em 1º de abril de 1964, decretando o Ato Institucional Nº1, que cassava os mandatos políticos dos opositores ao novo regime, a estabilidade dos funcionários públicos, a vitaliciedade dos magistrados. O golpe teve início com o deslocamento das tropas em Minas Gerais, na madrugada de 31 de março de 1964. O chefe da IV Região Militar, general Mourão Filho, justificou o movimento alegando que o presidente Goulart tinha abusado do poder e devia ser afastado. Em vários pontos do país, militares e políticos de direita solidarizaram-se com a movimentação das tropas em Minas. Os governadores de São Paulo e da Guanabara adotaram atitudes francamente golpistas. O governo Federal pouco fez: errou na tática defensiva ou foi incapaz de reagir. O golpe desabou rapidamente sobre a nação. O famoso “dispositivo 25 O conceito de carnavalização cunhado por Bakhtin (2008) será sempre retomado nesse trabalho para tratar de temas com inversão do dia e da noite; inversão das relações sociais; tempo-espaço utópicos; passagem do cortejo popular como ação libertadora. 26 “Maquiavélica, a ditadura utilizou “A Banda” numa campanha do alistamento militar – e, diante do protesto formal de Chico, jogou a responsabilidade sobre a agência de propaganda que fizera o anúncio” (WERNECK, 2006, p.89). 31 militar” do general Assis Brasil mostrou-se tão inoperante que muitos acreditam que ele nunca existiu de fato. [...] [...] A tentativa de colocar a população nas ruas, em defesa do governo, falhou: a greve dos transportes na cidade do Rio de Janeiro deixou o povo “a pé”, sem meios de dirigir-se ao centro, rapidamente ocupado pelos militares. Em resumo, a defesa foi tão precária que não considerou sequer os avisos de que o golpe tinha data (CHIAVENATO, 1994, p.46-47). Esperava-se mais. Esperava-se que o governo e o povo reagissem. O golpe tinha data marcada. Esperava-se que o povo lutasse, junto com o governo, pela liberdade. Mas, nada disso aconteceu. O governo não reagiu, o povo não foi às ruas. As bombas ficaram guardadas e os gritos ficaram presos na garganta. Foi neste momento de tomada de poder pelos militares que Chico Buarque disse ter se “despolitizado”, Eu achava mesmo que ia ter uma reação. Eu estava preparado, tinha uma garagem cheia de garrafas de coquetel molotov. Fiquei esperando e a resistência não veio. Nada aconteceu. Só quem resistiu foi o Brizola no Sul. 27 Aí me deu uma desilusão. De certa forma me despolitizei depois do golpe. Toda a atividade estudantil ficou desmobilizada. Não fui chamado para a luta armada, talvez naquele momento eu tivesse ido (ZAPPA, 1999, p.90). Aquele era o momento de resistir. Reagir antes que a repressão acontecesse. O Leonel Brizola sozinho no sul não conseguiria, bem como nenhuma outra ação individual. Era aquele o momento da coletividade, era aquele o momento da mobilização estudantil. Mas, por despreparo ou medo, nada do que era esperado aconteceu. Porém, como afirma Regina Zappa (1999, p. 90-91), Não só a luta armada não aconteceu naquela época, como as garrafas, vazias de líquidos explosivos, voltaram a ser usadas para fins mais prosaicos, como acolher a loura gelada. A decepção, de fato, o paralisou momentaneamente, mas Chico, por mais que o diga, na verdade nunca se 28 despolitizou . O rompante revolucionário dos verdes anos de estudante universitário não se repetiu. Nem mesmo no período mais duro da repressão militar. Mas não foi a desilusão que o afastou da militância escancarada. Por temperamento, 27 28 Grifo da autora. Grifo da autora 32 Chico passou a atuar discretamente, e a resistência que um dia pretendera incendiária, foi retomada através das suas composições, da participação em shows, do apoio a movimentos de esquerda. Ele sempre soube onde estava e, embora rejeitasse o papel de porta voz político que a mídia, a direita e a esquerda lhe imputavam, a intenção de tudo o que dizia nas suas músicas estava ali, dentro dele, para ser reconhecida pelo público. Passado o momento do grito escancarado, o grito, outrora preso na garganta, passou a ser censurado. Não era mais o momento das bombas, dos incêndios, dos protestos. Era o momento da resistência quase muda, velada, cantada. Essa resistência era tão discreta que, muitas vezes, o público não a reconhecia como aconteceu com as canções Bom Tempo e Sabiá que faziam uma crítica à problemática social, mas não foram entendidas dessa forma pelo público. Bom Tempo traz uma proposta lírica e irônica que rompe com a realidade ao anunciar um tempo novo que não tem condições de chegar, ao passo que Sabiá propõe um autoexílio, parodiando a Canção do Exílio do poeta romântico Gonçalves dias, todavia negando o nativismo e pregando uma ideologia revolucionária crítica ao utilizar-se de símbolos brasileiros como sabiá, palmeira e flor para contrapor o passado ao presente em uma idéia de negação deste. No dia 11 de abril de 1964, o General Humberto de Alencar Castelo Branco foi o primeiro dos militares a assumir a Presidência do Brasil, dando início a 21 anos de ditadura militar. Castelo Branco assumiu a presidência prometendo entregar o poder a um civil em 1966. Porém, o seu mandato foi estendido até março 1967 e durante este período foram baixados mais três Atos Institucionais que decretavam cassações de mandatos federais e estaduais, transferência ao congresso para escolha do presidente e a dissolução dos partidos políticos, estabelecendo o bipartidarismo, em que a Aliança Renovadora Nacional (ARENA) apoiava o regime e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) era de oposição. No dia 11 de abril, depois de um conciliábulo de governadores e generais, destinado a evitar a coroação de Costa e Silva, o general Humberto de Alencar Castello Branco foi eleito presidente da República pelo Congresso Nacional, como mandava a Constituição. Prometeu “entregar, ao iniciar-se o ano o ano de 1966, ao meu sucessor legitimamente eleito pelo povo em eleições livres, uma nação coesa”. Em 1967, entregou uma nação dividida a um sucessor eleito por 295 pessoas (GASPARI, 2002 a, p.125). 33 Nesse governo, criou-se o Serviço Nacional de Informações (SNI), ligado ao presidente e dirigido pelo General Golbery do Couto e Silva. Todas as pessoas, instituições e movimentos que oferecessem qualquer tipo de problema ao sistema ditatorial eram investigados em segredo por este órgão. Foi ainda no governo do Marechal Castelo Branco, em 1966, que Chico Buarque experimentou pela primeira vez a censura. Não era ainda a censura organizada, como veio a seguir ao ser baixado o Ato Institucional Nº5, mas já o impediu de cantar uma de suas músicas, Tamandaré (1965), no show Meu Refrão, na boate Arpège, Rio de Janeiro, com Odete Lara e o MPB-4. A letra da música tratava da situação econômica do país a partir de um diálogo com o Almirante Joaquim Marques Lisboa, marquês de Tamandaré, que tinha o seu rosto estampado nas notas de um cruzeiro, e apresentava como refrão: Pois é, Tamandaré A maré não tá boa Vai virar a canoa E este mar não dá pé, Tamandaré Cadê as batalhas Cadê as medalhas Cadê a nobreza Cadê a marquesa, cadê. Não diga que o vento levou Teu amor até Pois é, Tamandaré A maré não tá boa Vai virar a canoa E este mar não dá pé, Tamandaré Meu marquês de papel Cadê teu troféu Cadê teu valor Meu caro almirante O tempo inconstante roubou De acordo com Homem (2009, p.33-34), [...] A marinha entendeu que havia na letra desrespeito à figura de seu patrono, e a música foi proibida. Já naquela época ele não levava desaforo pra casa. O psicanalista Roberto Freire conta que o compositor reagiu com bom humor à proibição, inserindo estes versos na melodia de “Meu refrão” durante algumas apresentações: Você me procura Pede explicação 34 Depois me censura O que é de coração Mesmo assim não brigo Não me importo não Pois quem canta comigo Canta o meu refrão Meu melhor amigo É o meu violão E, em entrevista ao jornalista Tarso de Castro29, o próprio Chico Buarque explana, "Tamandaré" era uma música brincadeira com a nota de um cruzeiro. A nota de um cruzeiro, na época, era Tamandaré, lembra? Então era uma brincadeira sobre a desvalorização da moeda, falando de Tamandaré, quer dizer, a desvalorização do próprio Marquês de Tamandaré [...]. Mas, nesse momento, se não existia ainda uma censura prévia, organizada, também não era permitido tratar com tanta intimidade um Almirante, desvalorizando a sua imagem. Um ano depois da censura de “Tamandaré”, foi aprovada a Constituição de 1967, a qual normatizava a ditadura mantendo o princípio constitucional da legalidade, que deveria ser respaldado pelos militares através das suas idéias e ações. Castello queria um ato institucional que durasse só três meses. Assinou três. Queria que as cassações se limitassem a uma ou duas dezenas dos dirigentes do regime deposto. Cassou cerca de quinhentas pessoas e demitiu 2 mil. Seu governo durou 32, 23 dos quais sob a vigência de outros 37 atos complementares, seis deles associados aos poderes de baraço e cutelo do Executivo. Debaixo da Constituição que conclamou os seus subordinados a defender em março de 1964, manteve-se apenas nove meses. Era um oficial de formação liberal, sem dúvida, mas faltou-lhe, em diversas ocasiões, a vocação para o risco (GASPARI, 2002 a, p.137). Nesse mesmo ano, foi eleito indiretamente pelo congresso o Marechal Arthur da Costa e Silva. Foi nesse governo que a ditadura militar mostrou-se com todas as suas faces, agindo violentamente contra o crescente movimento de oposição ao regime. Castello sofria procurando preservar alguma forma de legalidade, mas Costa e Silva, seu sucessor, numa só vacilação, precipitou o país na ditadura dezoito meses depois de entrar no palácio (GASPARI, 2002 a, 139). 29 Jornal Folha de São Paulo de 11 de setembro 1977. 35 E, foi em oposição ao regime que a União Nacional dos Estudantes (UNE) promoveu, em meados de 1968, no Rio de Janeiro, uma manifestação de luta pelas liberdades públicas chamada de “Passeata dos Cem Mil”, da qual participaram jovens, artistas, padres e deputados, formando a maior vitória da oposição desde as eleições de 1965. E, ao mesmo tempo, aconteciam as greves operárias em Contagem (MG) e Osasco (SP): O movimento estudantil no Brasil e no mundo teve motivações políticas e reivindicações diferentes. Em comum, o sentimento de opressão e a . disposição em lutar por seus ideais [...] Segundo Maria Aparecida, enquanto que na França a luta dos estudantes não tem motivação política, no Brasil o movimento estudantil luta contra a ditadura imposta pelos militares. Os franceses reivindicavam melhores condições de ensino, com ideais libertários contra a tradição da sociedade burguesa da época. No Brasil, o início do movimento estudantil foi marcado pelo assassinato do estudante Edson Luiz, em 28 de março de 1968, no Rio de Janeiro. A morte provocou manifestações em todo o país contra a opressão do regime militar. Ao contrário dos jovens franceses, que não tinham ligação com partidos políticos, os brasileiros eram em sua maioria dissidentes do PCB, fiéis ao marxismo e organizados. Tinham como objetivo tomar o poder por meio da revolução armada. Mas a repressão imposta pelos militares resultou em prisões, torturas, mortes, desaparecidos e culminou com o AI-5 (Ato Institucional), que pois fim à liberdade de expressão dos jovens. (SOARES, 2008) Enfim, a luta armada que Chico Buarque esperava em 1964, começava a despontar em 1968, ajudada por todo um movimento de reivindicações que acontecia, ao mesmo tempo, no mundo todo, mesmo que com motivações diferentes em cada país. Mas o compositor já havia jogado fora as suas garrafas de coquetel molotov e, sobre a sua participação na “Passeata dos Cem Mil”, Chico Buarque afirma: [...] Eu era contra o governo militar, mas não tive uma atividade política tão destacada nesse tempo. O máximo que fiz na época foi participar da Passeata dos 100 Mil. Era eu, além dos outros 99 mil 999 (ZAPPA, 1999, p.90). Todavia, as participações de artistas como Chico Buarque, Gilberto Gil, Caetano Veloso, Tônia Carreiro, Eva Vilma, Odete Lara, Norma Bengell e Ruth Escobar 36 deram força ao movimento e, a maioria deles, de alguma forma, teve de responder aos ditadores por essa participação, como explana Zappa (1999, p.90), [...] Modéstia. Chico não pode negar o peso que a sua participação, além da de outros artistas como Gil, Caetano, Odete Lara, Edu Lobo, conferia à manifestação. E, apesar de ter participado “para não parecer reacionário”, 30 isso ainda lhe renderia muita dor de cabeça num futuro bem próximo . Assim, com manifestações de estudantes, artistas, políticos, religiosos, o ano de 1968, conhecido como “o ano que não acabou”, ficou marcado na história mundial e na do Brasil como um momento de grande contestação da política e dos costumes. Como explica Rodrigo Schwarz (2008): No Natal de 1968, os tripulantes da Apollo 8 foram os primeiros homens a deixar a órbita terrestre. Circundando a Lua, eles capturaram uma imagem não só inédita, como redentora: nosso planeta, visto a partir de seu satélite natural. Ao vislumbrar aquele globo azul e branco, por um momento, todos esqueceram que a situação ali na Terra esteve bem quente, durante quase todo o ano. Em maio daquele ano, milhares de estudantes levantaram barricadas em Paris, e enfrentarem a polícia durante dias. A luta era contra o status quo, mas pouca gente compreendeu a real motivação de tamanho afinco no embate. Nem Sartre, que conviveu com os jovens, entendeu. Antes disso, a Primavera de Praga revelou os primeiros laivos de ferrugem na Cortina de Ferro, e os assassinatos de Martin Luther King e Robert Kennedy colocaram os Estados Unidos em polvorosa. Mas a intempestiva agenda de 1968 não estava ainda cheia. Os americanos acirram sua participação na Guerra do Vietnã, e a ativista Robin Morgan desencadeia mundialmente o movimento feminista, em um protesto contra o complexo de Barbie da miss América. Ao contrário da lenda, ela não ateou fogo a sutiãs. “Somos radicais, mas muito elegantes. O cheiro de tecido queimado é horrível”, contou mais tarde a ativista. O acontecimento mais marcante de 1968, no Brasil, é desprovido de bom humor. No dia 13 de dezembro, o presidente Costa e Silva decreta o Ato Institucional Número 5 (AI-5), eliminando a própria Constituição. “Eu confesso que é com verdadeira violência aos meus princípios e idéias que adoto uma atitude como esta”, afirmou Costa e Silva. A violência desencadeada com o AI-5 não seria apenas contra os princípios do general. Conhecido também como o ano que mudou tudo – devido à efervescência cultural e política –, 1968 pareceu para muitos uma temporada no inferno. Na época, para encontrar nexo ou serenidade, só mesmo na Lua [...]. Em 1968, o mundo inteiro parecia conspirar, queria mudança, gostaria de ver-se carnavalizado, ao avesso. Os estudantes lutavam por melhor acesso à educação, os 30 Quando foi levado da sua casa no dia 20 de dezembro de 1968, Chico foi diversas vezes questionado sobre a sua participação na Passeata dos cem Mil. 37 negros lutavam por liberdade verdadeira, as mulheres lutavam por um espaço além da cozinha, o povo almejava o poder. Parece que a banda resolveu passar em 1968 e em cada ponto do planeta as pessoas começavam a desejar deixar o seu lugar, ocupar outras posições e, os desejos de um ponto afetavam o outro, como uma grande corrente. Houve também nessa “temporada no inferno”, no Brasil, o pronunciamento do Deputado Márcio Moreira Alves, do MDB, na câmara, no dia 2 de setembro de 1968, e os artigos contra o regime do Jornalista e Deputado Hermano Alves no Jornal Correio da Manhã, ambos usados pelo governo militar como pretexto para instaurar o Ato Institucional número 5 (AI-5), que se transformou em um dos principais símbolos da ditadura. Segundo o Deputado Hermano Alves, o AI-5 era inevitável: “Para mim, o ano de 1968, pontilhado de incidentes, transformou-se na longa e ansiosa espera do inevitável. Eu previra um golpe entre setembro e dezembro daquele ano”31 Já o Deputado Márcio Moreira Alves chama a atenção para a força feminina defendida pelo movimento feminista no mundo, como arma contra o regime: Senhor presidente, senhores deputados, Todos reconhecem ou dizem reconhecer que a maioria das forças armadas não compactua com a cúpula militarista que perpetra violências e mantém este país sob regime de opressão. Creio ter chegado, após os acontecimentos de Brasília, o grande momento da união pela democracia. Este é também o momento do boicote. As mães brasileiras já se manifestaram. Todas as classes sociais clamam por este repúdio à polícia. No entanto, isto não basta. É preciso que se estabeleça, sobretudo por parte das mulheres, como já começou a se estabelecer nesta Casa, por parte das mulheres parlamentares da Arena, o boicote ao militarismo. Vem aí o 7 de setembro. [...] Seria necessário que cada pai, cada mãe, se compenetrasse de que a presença dos seus filhos nesse desfile é o auxílio aos carrascos que os espancam e os metralham nas ruas. Portanto, que cada um boicote esse desfile. [...]sempre falando de mulheres, às moças. Aquelas que dançam com cadetes e namoram jovens oficiais. Seria preciso fazer hoje, no Brasil, que 31 O Estado de São Paulo 03/07/2010. 38 as mulheres de 1968 repetissem as paulistas da Guerra dos Emboabas e recusassem a entrada à porta de sua casa àqueles que vilipendiam-nas. Só assim conseguiremos fazer com que os silenciosos que não compactuam com os desmandos de seus chefes, sigam o magnífico exemplo dos 14 oficiais de Crateús que tiveram a coragem e a hombridade de, publicamente, se manifestarem contra um ato ilegal e arbitrário dos seus 32 superiores. A atitude da ativista americana Robin Morgan fortalece o discurso do Deputado Márcio Moreira Alves, que encontra na nova atitude da mulher a brecha para uma forte e eficaz oposição aos desmandos do governo militar. Chico também trata da questão da mulher, da mudança da posição e da atitude feminina no decorrer dos anos: Nos anos 70 a mulher deu um salto incrível em direção a sua própria liberdade. Quando a Nara me pediu uma canção em 66, era da mulher submissa, não é à toa. Mais tarde a mulher começou a sair e vieram os 33 movimentos feministas etc. [...] Dessa maneira, no Brasil, com o crescimento dos movimentos de oposição ao regime, o Marechal Costa e Silva viu-se pressionado pelos militares linha dura e decretou o Ato Institucional Nº5 (AI-5), em dezembro de 1968. Este decreto deu início a dez anos de violenta repressão política. Por meio dele, o presidente determinava o fechamento do congresso, a cassação de mandatos parlamentares, a suspensão do direito a habeas-corpus em casos de crimes contra a segurança nacional e o fim da liberdade de imprensa. Ou seja, dava plenos poderes ao ditador, conforme se pode observar nos trechos do decreto em destaque: O PRESIDENTE DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, ouvido o Conselho de Segurança Nacional, e CONSIDERANDO que a Revolução brasileira de 31 de março de 1964 teve, conforme decorre dos Atos com os quais se institucionalizou, fundamentos e propósitos que visavam a dar ao País um regime que, atendendo às exigências de um sistema jurídico e político, assegurasse autêntica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade da pessoa humana, no combate à subversão e às ideologias contrárias às tradições de nosso povo, na luta contra a corrupção, buscando, deste modo, "os. meios indispensáveis à obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira a poder enfrentar, de modo direito e imediato, 32 Disponível em: http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u545663.shtml. Acessado em 21 jul 2010. 33 Entrevista a Geraldo Leite – Rádio Eldorado – 27/09/1989 39 os graves e urgentes problemas de que depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa pátria" (Preâmbulo do Ato Institucional nº 1, de 9 de abril de 1964); [...] CONSIDERANDO que esse mesmo Poder Revolucionário, exercido pelo Presidente da República, ao convocar o Congresso Nacional para discutir, votar e promulgar a nova Constituição, estabeleceu que esta, além de representar "a institucionalização dos ideais e princípios da Revolução", deveria "assegurar a continuidade da obra revolucionária" (Ato Institucional nº 4, de 7 de dezembro de 1966); [...] CONSIDERANDO que, assim, se torna imperiosa a adoção de medidas que impeçam sejam frustrados os ideais superiores da Revolução, preservando a ordem, a segurança, a tranqüilidade, o desenvolvimento econômico e cultural e a harmonia política e social do País comprometidos por processos subversivos e de guerra revolucionária; CONSIDERANDO que todos esses fatos perturbadores, da ordem são contrários aos ideais e à consolidação do Movimento de março de 1964, obrigando os que por ele se responsabilizaram e juraram defendê-lo, a adotarem as providências necessárias, que evitem sua destruição, Resolve editar o seguinte ATO INSTITUCIONAL Art 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional. Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República. [...] Art 3º - O Presidente da República, no interesse nacional, poderá decretar a intervenção nos Estados e Municípios, sem as limitações previstas na Constituição. [...] Art 5º - A suspensão dos direitos políticos, com base neste Ato, importa, simultaneamente, em: I - cessação de privilégio de foro por prerrogativa de função; II - suspensão do direito de votar e de ser votado nas eleições sindicais; III - proibição de atividades ou manifestação sobre assunto de natureza política; IV - aplicação, quando necessária, das seguintes medidas de segurança: a) liberdade vigiada; b) proibição de freqüentar determinados lugares; c) domicílio determinado, § 1º - o ato que decretar a suspensão dos direitos políticos poderá fixar restrições ou proibições relativamente ao exercício de quaisquer outros direitos públicos ou privados. 40 [...] Art 6º - Ficam suspensas as garantias constitucionais ou legais de: vitaliciedade, mamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. [...] Art 7º - O Presidente da República, em qualquer dos casos previstos na Constituição, poderá decretar o estado de sítio e prorrogá-lo, fixando o respectivo prazo. [...] Art 10 - Fica suspensa a garantia de habeas corpus, nos casos de crimes políticos, contra a segurança nacional, a ordem econômica e social e a economia popular. Art 11 - Excluem-se de qualquer apreciação judicial todos os atos praticados de acordo com este Ato institucional e seus Atos Complementares, bem como os respectivos efeitos. Art 12 - O presente Ato Institucional entra em vigor nesta data, revogadas as disposições em contrário. Brasília, 13 de dezembro de 1968; 147º da Independência e 80º da República. A. COSTA E SILVA Luís Antônio da Gama e Silva Augusto Hamann Rademaker Grünewald Aurélio de Lyra Tavares José de Magalhães Pinto Antônio Delfim Netto Mário David Andreazza Ivo Arzua Pereira Tarso Dutra Jarbas G. Passarinho Márcio de Souza e Mello Leonel Miranda José Costa Cavalcanti Edmundo de Macedo Soares Hélio Beltrão Afonso A. Lima 34 Carlos F. de Simas Percebe-se que esse decreto é, nele mesmo, contraditório: foi instituído por um regime que buscava assegurar a “autentica ordem democrática, baseada na liberdade, no respeito à dignidade humana...”, porém, para isso, utiliza-se de elementos contrários a estas, como a suspensão dos direitos políticos, proibição de manifestações contrárias ao regime (censura), suspensão da garantia de habeas corpus. Dessa maneira, foi a partir desse decreto que a população brasileira, principalmente políticos contrários ao regime, sindicalistas, componentes de 34 Disponível em: http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/ditadura-militar/ato-institucional-numero5.php. Acessado em 20 de julho de 2010. 41 movimentos estudantis, artistas e jornalistas passaram a conhecer o rigor da censura. Chico Buarque a conheceu com toda a sua força e violência quando da estréia da sua peça Roda Viva no Teatro Ruth Escobar em São Paulo: [...] Roda Viva. Com direção de Zé Celso Martinez Corrêa, a peça que estreou no Rio em 1968, demo Le o sistema do show business e do artista que vende a alma ao diabo. [...] Em São Paulo, o teatro onde estava sendo encenada foi invadido pelo comando de caça aos comunistas (CCC), o cenário destruído, atores e público espancados. [...] “No Dops, o general me perguntava sobre Roda Viva e eu dizia, „mas é uma sátira, não tem nada a ver com o governo, é uma crítica ao show business‟. Aí esse general insistia: „Se não tem nada, por que uma hora o sujeito senta e defeca no capacete?‟ – e eu comigo pensava, puxa o Zé Celso exagerou. Mas também não podia dizer que não era coisa minha.” Depois Chico soube que isso acontecia, não na sua, mas em outra peça, no mesmo Teatro Ruth Escobar, chamada Feira Paulista de Opinião (ZAPPA, 1999, p.99). E, sobre este assunto, Chico concedeu ainda muitas entrevistas: Sérgio de Souza 35 - Na própria imprensa, antes de 68, não havia. Chico Buarque - Não havia. Leio, às vezes, barbaridades sobre isso. A censura começou a existir em 69, e foi abrandando em 75/76. O período Médici foi o de pior censura, e não ajudou em nada. Se você for olhar o que se produziu em música e em cinema, em teatro, vai haver um buraco. Isso são fatos. São fatos. Constatei isso com o meu trabalho, quando fui olhar o primeiro livro compilando as minhas músicas, edição dupla da Companhia das Letras. Você vai ver lá, 61/62 eu vinha produzindo em quantidade razoável, ali aquilo foi esvaziando, e em 75/76 começa a crescer de novo. E vai ver o que é que se produziu em cinema, tudo, nesse período. Não é verdade. Volta e meia surge esse argumento: "Não, porque a censura de certa forma estimulava" - não estimulava nada. Pelo contrário. Regina Echeverria - É que isso ficou mesmo meio no ar. Chico Buarque - Mas as pessoas misturam muito 64 com 68. O Plínio Marcos sabe disso. Quando veio aquela coisa, aí sim houve todo um movimento muito grande em torno do teatro e... Plínio Marcos - Porque queríamos, se você me permite, combater com a nossa arte. Chico Buarque - E combatíamos, por quê? E a arte tinha uma importância maior, por quê? Porque, a partir de 64, partidos políticos foram banidos, sindicatos, movimento estudantil, tudo isso foi muito afetado em 64. A arte, a cultura, não foi. Deixaram esse espaço livre. Diziam que Castelo Branco gostava muito de teatro. Havia um espaço para produzir. E esse espaço até 35 Entrevista à revista Caros Amigos – 12/1988 – Entrevistadores: Ana Miranda, Regina Echeverria, Plínio Marcos, José Arbex Jr., Carlos Tranjan, Marco Frenette, Jhonny, Walter Firmo, Sérgio de Souza. 42 ficou supervalorizado por causa disso. Pela carência de discussão política onde deveria acontecer, no Congresso, nas universidades, nos sindicatos. Depois do AI-5, o “espaço livre” se fechou. Com a censura acirrada, a arte não seria mais intocável, para “combater” com arte seriam necessárias estratégias de guerrilha, não haveria mais de ser um combate aberto. Para se tratar de política, haveria primeiro de falar de amor, usar rosas contra os canhões, um samba popular contra os batalhões. [...] “Eu morava há uns dois anos no Rio quando baixaram o AI-5, aquele clima horrível na cidade, todo mundo falando fulano foi preso, fulano sumiu. Um belo dia, acordo com a polícia no meu quarto. O AI-5 foi dia 13 de dezembro, isso foi lá pelo dia 20, antes do Natal. Aí me levaram. Eram civis. Entraram no meu quarto, lembro da cara do zelador. Acho que a empregada abriu a porta. Aqueles caras chegaram lá com medo que eu fugisse para algum lugar. Estavam afoitos, aí viram que não tinha problema. Me vesti e saí com eles. O carro não era de polícia, tinha chapa fria e eles me levaram pra Praça 15.” [...] Nesse dia que passou no quartel, perguntaram muito sobre o Geraldo Vandré. O problema, como ele disse, era com a passeata dos 100 mil e 36 Roda Viva . “Eles perguntavam umas coisas horrorosas. Diziam: „O que é que você estava fazendo na passeata de braços dados com aquele crioulo sujo do Gilberto Gil? Quando saí de lá, mandei pelo Paulinho da Viola, que jogava futebol comigo no campo do Madureira, um recado para o Gil. (ZAPPA, 1999, p.100-101) Depois do AI-5, a censura chegou com força total, Chico ia para os shows e cantava as músicas proibidas. Ou não cantava, porque a música estava proibida, e deixava o público cantar. De um jeito ou de outro, era chamado a depor. “Virei freguês. Recebia um papel com as palavras convite ou 37 38 intimação , e a palavra convite riscada, para comparecer pra depor. Fui milhares de vezes. Na primeira, fui com advogado, me indicaram o Miguel Lins, que botou um advogado jovem para me acompanhar. [...] Foi quando, nas palavras do jornalista Tárik de Souza, “o AI-5 promoveu a MPB a inimiga cultural número um do regime militar. Diz ele: “Como ocorreu na política e na economia, o AI-5 mudou o cursor da MPB. A violência institucional quebrou a espinha da chamada linha evolutiva que partia da Bossa Nova em direção à política estética da era dos festivais e da canção de protesto (ZAPPA, 1999.p.102-103). Depois da sua visita ao quartel da Praça 15, quando, em 1969, o presidente Costa e Silva sofreu um derrame sendo obrigado a afastar-se do cargo e uma junta militar composta pelos Ministros Márcio de Sousa e Melo (Aeronáutica), Aurélio de Lira Tavares (Exército) e Augusto Rademaker (Marinha) assumiu o poder, Chico já havia 36 Grifo da autora. Grifos da autora. 38 Grifo da autora. 37 43 partido para a Itália. Partiu em janeiro de 1969 com pretensões de ficar apenas dez dias a fim de fazer um show no Midem, em Cannes, França, e lançar um disco na Itália pela RCA, porém, foi aconselhado a não voltar: [...] Chico e Marieta, grávida de quase sete meses da primeira filha, foram para a Itália em janeiro de 1969, para ficar 10 dias. O objetivo da viagem era fazer um show no Midem, em Cannes, França e lançar um disco na Itália, pela RCA. O quarto do bebê já estava preparado no Brasil, o enxoval pronto. Afinal, era o primeiro filho. A situação do país, porém, foi se complicando. Começavam a chegar notícias que não eram difundidas aqui. Chico soube da prisão de Gil e Caetano pelo produtor Guilherme Araújo, em Cannes. A família e os amigos telefonavam, escreviam, e os aconselhavam a não voltar. [...] “Não tínhamos mais dúvidas de que era melhor ficar lá do que encarar a volta para o Brasil. Lembro da carta do Caetano, levada por Nelsinho Motta, quando Caetano saiu da prisão e foi para Londres. A carta dizia: „o tenente amigo mandou dizer para você nem pensar em voltar‟” (ZAPPA, 1999, p. 104-105). No início do exílio, tudo foi mais fácil para Chico Buarque e Marieta Severo. Havia os shows, ficavam hospedados em um hotel por conta da gravadora. Mas, com o tempo, tiveram de ir para um apartamento, a filha nasceu, não havia mais os shows e Chico só tinha A Banda. Então, em meio a essa situação tão difícil, surge a oportunidade de gravar um LP Itália – Brasil: Contatado pela PolyGram, Chico iniciou uma nova fase. “Recebi um adiantamento que salvou a pátria”, conta. O disco foi gravado entre Brasil e Itália. Chico registrou as músicas num gravadorzinho, enquanto o produtor Manoel Berembereim (“que a gente chamava de Manoel Berimbau”) esperava ali na sala. [...] O resultado não agradou o compositor. “Minha cabeça estava confusa. Compus todo um disco, mas acho que a única música que sobreviveu foi Samba e amor. Tem também aquela brincadeira com Silvio Monteiro, que mandou uma camisa do Flamengo para Silvinha (Receita para virar casaca 39 de neném). O Samba de Orly , com Toquinho, também é dessa época. Não podia usar o nome do aeroporto de Roma – Fiumiccino – porque ninguém no Brasil sabia muito bem o que era, e Orly era conhecido, era de Paris, a cidade dos exilados” (ZAPPA, 1999, p.108-109), Vai meu irmão Pega esse avião Você tem razão De correr assim Desse frio Mas beija O meu Rio de Janeiro 39 Composta em 1970 44 Antes que um aventureiro Lance mão Pede perdão Pela duração (Pela omissão) Dessa temporada (Um tanto forçada) Mas não diga nada Que me viu chorando E pros da pesada Diz que eu vou levando Vê como é que anda Aquela vida à toa E se puder me manda Uma notícia boa Sobre a composição desta música, Homem (2009, p.90) conta: Um dia antes de voltar da Itália para o Brasil, em novembro de 1969, Toquinho deixou o tema com o parceiro que na mesma hora fez os versos finais: “Vê como é que anda / Aquela vida à toa / E se puder me manda / Uma notícia boa”. Quando, tempos depois, Chico mostrou a letra completa, estava por perto o ciumento Vinícius de Moraes, que disse ser ela muito branda para expressar todas as agruras do tempo vivido no exílio e propôs substituir “pede perdão pela duração dessa temporada” por “pede perdão pela omissão um tanto forçada”. Os autores concordaram, mas a censura não. Os versos do Poetinha foram proibidos, mas a parceria ficou. E, depois de alguns meses de “omissão um tanto forçada”, parecia que era hora de voltar para casa: “O diretor da PolyGram, André Midani, me escreveu então uma carta dizendo que as coisas no Brasil estavam mais sob controle, o clima mais ameno. Que eu viria cercado de todos os cuidados, teria um especial da TV Globo logo na chegada” (e realmente teve). Chico pensou: “No Brasil eu tinha um belo apartamento, tinha o direito autoral, podia fazer show. Bem ou mal tinha como me manter. E lá na Itália, duro, duro, pedindo dinheiro emprestado”. Vinícius deu o sinal verde: “Então volta, mas volta fazendo barulho”. Chico voltou em março de 1970 (ZAPPA, 1999, p.109). Porém, ao chegar ao Brasil, Chico logo percebeu que a situação não estava tão sob controle como narrou Midani. Havia pessoas sendo presas, torturadas, desaparecendo e a censura continuava implacável: [...] E, rapidamente, deu-se conta de como era ilusório o panorama pintado nas cartas de André Midani. [...] Em torno, a situação era assustadora. Ao mesmo tempo em que a tortura e o desaparecimento de adversários do regime se tornavam rotina, grassava o mais ensandecido ufanismo (WERNECK, 2006, p.76). versos originais vetados pela censura 45 Eu voltei só porque havia todo um esquema cercando esta volta. Eu tinha recomendação para não voltar. Surgiu um especial para televisão, contratos assinados. Com estas coisas eu me senti protegido. Na Itália o pior era a sensação de provisório, eu estava morando em apartamento alugado por temporada. Nem a sensação de estar exilado, estas recomendações que eu tinha para não voltar nunca foram oficiais. Eu tinha porque voltar quando tudo recomendava o contrário, avisos, cartas.... Uma situação ingrata, porque até, talvez fosse mais agradável estar com uma proibição oficial do que algo velado. Se tivesse a certeza que não poderia voltar eu assinaria um contrato que me ocuparia por alguns anos, ou seja, no esquema europeu. Agora, a falta de definição do exílio também era uma brincadeira, na verdade você está sabendo que está exilado para valer e não vai poder voltar tão cedo a teu país . Este é um sentimento dramático. A não ser com algumas exceções como Flávio Tavares que consegue ser correspondente do Estado e do Excelsior e que de repente está arriscado a ser seqüestrado. Não tem graça nenhuma ser exilado. O exilado em país 40 estanho é o cocô do cavalo do bandido. Ao retornar ao Brasil, em março de 1970, Chico Buarque encontrou o governo do General Emílio Garrastazú Médici, que teve início no segundo semestre de 1969 (quando Chico já estava na Itália e foi “aconselhado” a ficar) e se estendeu até o começo de 1974. Foram os chamados “Anos de Chumbo”, pois, foi no governo Médici que a luta armada começou a ficar mais forte estendendo-se para a guerrilha rural, como por exemplo, a Guerrilha do Araguaia, fazendo com que, em resposta, o governo intensificasse a repressão no país. O fato é que à doença de Costa e Silva seguiu-se um golpe: o vicepresidente Pedro Aleixo, um civil com fama de “liberal”, não pôde assumir a Presidência. Os três ministros militares tomaram o governo, formando uma junta militar que apertou ainda mais o aparelho repressivo. Criaram-se as penas de morte e de banimento, em resposta aos seqüestros políticos que a guerrilha urbana vinha fazendo. A constituição ganhou mais um “remendo”: a Emenda nº 1, que deu ao presidente poderes para a aplicação da Lei de Segurança Nacional. E, “democraticamente”, reabriu-se o Congresso para que ele aprovasse o novo ditador: o presidente Garrastazu Médici. Médici inaugurou o período mais duro da repressão, contra a crescente oposição clandestina. Será o presidente mais bem-sucedido, o patrocinador do “milagre econômico”. Em pouco tempo, porém, os resultados artificiais da sua política de “Segurança e Desenvolvimento” iriam aparecer, demonstrando que a propaganda e a censura encobriam a deteriorização das bases econômicas, enquanto o povo e principalmente a classe média alta festejavam a conquista da Copa do Mundo e um consumismo desvairado (CHIAVENATO, 1994, p.77-78). Como ação repressiva, o Destacamento de Operações e Informações ao Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI) espalhou-se por todo o país com torturas aos considerados inimigos do regime. 40 Entrevista a Hélio Goldztejn – Revista Versos – 08/09/1977 46 É também nesse momento que Chico Buarque conhece a sua rotina de perseguições e contato policial: 41 Playboy - O show do Caetano pode ser considerado um marco na sua carreira, de cantor pelo menos. Agora, na sua vida pessoal, poderia citar momentos de guinada radical? Chico - Dezembro de 68 foi um marco, não é? Um marco muito claro para mim, porque eu estava posto em sossego e um dia me tiraram da cama para ir ao Exército. Não estava envolvido em nada, estava um pouco descrente daquela coisa pré-Ato 5, e naquela jogada pente fino me pegaram. Me pegaram e me marcaram muito. Viajei, fui embora para a Itália, tive minha primeira filha - isso muda muita coisa, entende? Quer dizer: de repente eu já não era mais um moleque. Depois voltei para o Brasil. E como fui um dos primeiros a voltar, me senti um pouquinho acusado justamente de estar voltando. Ao mesmo tempo retomei contato com o país - foi uma mudança brusca, um ano e meio fora. Encontrei o Brasil da Copa do Mundo, aquela coisa toda de 1970 e fiz Apesar de Você, uma música que não tem valor muito grande em si mesma, mas que para mim tem, porque foi justamente a minha resposta a tudo isso que vi. Aí começou a rotina da perseguição e do contato policial. Fiz Construção, que para mim é um disco esteticamente muito importante, e antes mesmo do show com Caetano eu fiz um filme com Cacá Diegues (Quando o Carnaval Chegar), que era assim um pouco a maneira de marcar o lado lúdico da Construção. E também para não ficar enquadrado como "cantor de protesto" - um termo que aqui no Brasil só quem usa são os reacionários, são as direitas. 42 "Canção de protesto" tem um tom pejorativo aqui, uma conotação esquisita. Aí fora, não. Em Portugal, eles dizem "canção de intervenção" [Ri] Mas eu não estou intervindo em nada. Em Apesar de você, Chico Buarque apresenta um tempo histórico, o qual é um elemento transformador e irreversível. Aqui, utilizando-se da estrutura musical em forma de narrativa, das cantigas populares, samba-canção, o autor lança mão de uma temática de repressão, realizando uma crítica político social. Quando, em um interrogatório, perguntaram a Chico: “Quem é esse você?”, ele explicou que era uma mulher mandona, autoritária. Em outro momento, explicou que “você” não era um general e sim uma generalidade, era toda a situação que encontrou no Brasil quando retornou da Itália. Apesar de você foi o protesto lírico, foi a arte que se colocava a serviço de abrir portas, foi a estratégia de guerrilha ao tratar de política como quem fala de amor. 41 42 Entrevista concedida à Playboy – 02/1979. A expressão canção de protesto é vista neste trabalho não como designando uma produção poética circunstancial típica, mas concordando Anazildo Vasconcelos da Silva (2004, p.174), em que a obra lírica define-se como expressão subjetiva do eu lírico que integra, através da referencialidade sígnica, a proposição de realidade diante da qual o eu lírico reagiu. Dessa forma, em 1960, com a ditadura militar, o protesto era um recurso poético inerente à criação artística, não desaparecendo da produção poética da geração de 1960 com o fim do regime militar. 47 Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão A minha gente hoje anda Falando de lado E olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado E inventou de inventar Toda a escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar O perdão Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Eu pergunto a você Onde vai se esconder Da enorme euforia Como vai proibir Quando o galo insistir Em cantar Água nova brotando E a gente se amando Sem parar Quando chegar o momento Esse meu sofrimento Vou cobrar com juros, juro Todo esse amor reprimido Esse grito contido Este samba no escuro Você que inventou a tristeza Ora, tenha a fineza De desinventar Você vai pagar e é dobrado Cada lágrima rolada Nesse meu penar Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Inda pago pra ver O jardim florescer Qual você não queria Você vai se amargar Vendo o dia raiar Sem lhe pedir licença E eu vou morrer de rir Que esse dia há de vir Antes do que você pensa Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai ter que ver A manhã renascer E esbanjar poesia Como vai se explicar Vendo o céu clarear 48 De repente, impunemente Como vai abafar Nosso coro a cantar Na sua frente Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai se dar mal Etc. e tal. Foi por conta desse “você” mal explicado que toda a perseguição começou: “Quando cheguei da Itália já existia a censura prévia, mas eu não tinha conhecimento de toda essa parte burocrática. Cheguei com esse disco, e essas músicas com certeza foram submetidas à censura. Foi na volta que eu fiz e gravei Apesar de você. O problema começou aí, porque a música foi submetida à censura e passou. O disco saiu, começou a fazer sucesso, tocar no rádio. Então foi apreendido. Proibiram uma coisa que já tinha sido liberada. O censor que deixou passar foi punido. Ficou então aquela marcação cerrada. Fiquei sendo uma espécie de traidor que tinha enganado a censura e o negócio começou a pesar”. Chico disse algumas vezes que nunca fez música de protesto, com exceção de Apesar de você, “que afinal é a composição mais alegre que tenho”. Virou assunto dizer que Apesar de você tinha sido escrita para o general Médici. [...] “E Apesar de você também é tudo, é o contexto” (ZAPPA, 1999, p.122-123). O censor acreditou no amor e deixou o samba passar. Quem entenderia um protesto tão alegre? Quem entenderia por oprimido aquele que é capaz de vislumbrar a felicidade no dia que está para nascer? Depois de escutado repetidas vezes, o clamor por liberdade começa a soar como algo familiar e é reconhecido. Assim, tendo se transformado em “aquele que enganou a censura”, Chico Buarque passou a ter proibidas integral ou parcialmente as suas composições. Portanto, ele é quem pode falar melhor sobre o que foi a censura naquele período: A propósito, até que ponto a censura limita sua criatividade? 43 Esse tema é chato. De cara sou rigorosamente contra a censura. Não por motivos pessoais, mas por princípio. Do ponto de vista pessoal, ela tem me incentivado na mesma medida em que me bloqueia. Vou dizer, no momento mesmo em que tenho um trabalho censurado, fico como que entorpecido, desnorteado. Aí eles conseguem o que querem, porque já estou convencido que a intenção dos censores é mais punir o autor do que interditar a sua obra. Então eu fico realmente vazio, fico achando tudo inútil, por alguns dias. Mas tem a volta. Daí a pouco a gente se mete noutro trabalho com mais garra ainda, sem se incomodar se vai ser censurado ou não, pelo prazer de trabalhar, ou para não enferrujar, ou só pra chatear. Agora, saindo 43 Revista 365 - 1976 49 do plano pessoal, acho que a censura à informação é um erro grave, porque, limitando a divulgação, impede o conhecimento amplo das verdades e cria uma falsa realidade que acaba contagiando os próprios responsáveis pela censura. Além de criar um clube fechado de impunidades. A censura à criação e manifestação artística limita e marginaliza o autor teatral, o músico, o cineasta, muitas vezes obrigando o cara a fazer malabarismo pra dizer alguma coisa. Alguma coisa que só passa para uma pequena elite que já sabe dessa coisa. A obra de arte nacional acaba se afastando do povo, acaba ficando chata. Como me disse um garotão chofer de táxi outro dia: "Essa música de vocês não tá com nada. Eu gosto de música americana que a gente não entende nada mas tem aquele ritmo." Enfim, a censura acaba dificultando o surgimento de gente nova em todas as áreas da criação. Acredito que isso atende a altos interesses que não são os da nossa cultura. Como eram feitas as proibições da censura? 44 Havia proibição de músicas integralmente, e havia proibição de palavras dentro do texto. Ou você era obrigado a mudar essas palavras ou simplesmente não podia pronunciá-las. Você podia optar. Em algumas músicas eu desisti. Outras eu troquei palavras. Não só em Calabar como em outras músicas desse período. Por exemplo, em Partido alto, onde estava brasileiro, eu botei batuqueiro, onde estava titica eu botei coisica. Ou, então você cortava simplesmente a palavra. Ou como no disco ao vivo com Caetano na Bahia, o recurso foi aumentar os aplausos na hora das palavras proibidas. Atrás da porta tinha: "me agarrei nos seus cabelos, nos teus pêlos". Pêlos foram proibidos. Já a Elis quando gravou eu mudei para no teu peito. Já, aí, eu não podia mudar porque eu tinha cantado. Por um descuido eu cantei a letra correta no dia do show. Então o quê que a gente fez no disco? Aumentou o volume dos aplausos. Na hora dos teus pêlos sobe um aplauso assim, ah!!!! Como era o esquema de funcionamento da censura para liberar as músicas? A censura prévia que valia pra teatro valia para letras de músicas também. Antes de gravar qualquer música tinha que mandar a letra pra censura federal. E espera até a volta dessa letra, com carimbo e assinatura do chefe de censura. O que, aliás, provocava problemas graves porque gerava uma burocracia muito grandes, atrasos... E às vezes não era nem implicância. As letras se perdiam no meio do caminho. Os produtores ficavam desesperados. Era um atraso de vida danado. É evidente que, uma vez proibido, ficava marcado. Eu e outros autores que tínhamos uma ou outra música proibida, ficávamos numa espécie de index da censura. Então a música que chegava com o meu nome chamava a atenção. E eu comecei a sofrer uns cortes bastante arbitrários. Tinha uma música que eu fiz pro Mário Reis e que não era nada, era brincadeira, e eles proibiram alegando que era uma ofensa à mulher brasileira. Chamava-se Bolsa de amores. Era uma brincadeira que eu fiz com o Mário Reis porque ele gostava muito jogar na bolsa, tinha mania dessas coisas... Era a época em que só se falava em bolsa. Dessa forma, de corte em corte, de proibição em proibição, encontrou-se uma forma de fugir do veto da censura e continuar tratando dos temas relativos ao regime: 44 Entrevista concedida a Geraldo Leite – Rádio Eldorado – 27/09/1989 50 Saturado com as proibições, Chico tomou uma decisão: criou o nome de guerra Julinho da Adelaide. E gravou o disco Sinal fechado como cantor com músicas de outros compositores, incluindo Julinho (Acorda Amor). “Servia para testar se passava. E passou”, conta Chico. Julinho aprontou durante muitos anos. [...] deu uma entrevista hilariante à edição paulista do jornal Última Hora, em 1974, falando barbaridades. [...] Julinho de Adelaide morreu em 1975, apunhalado por uma reportagem do Jornal do Brasil sobre censura que revelava sua identidade. Julinho era Chico. (ZAPPA, 1999, p.123-124) 45 Folhetim - Que outras coisas você fazia para driblar a censura? CHICO - Teve uma época que minha criatividade estava mais voltada pra isso do que propriamente para a música. Mas tenho medo de ficar contando essas coisas porque amanhã a censura volta mais brava ainda. Em todo caso, a gente tem que inventar outros recursos mesmo... Um deles era... 46 não, esse não vou contar não , esse vale ainda, posso usar outras vezes. Um que não dá mais é pseudônimo. Depois da história do Julinho da Adelaide começaram a exigir junto com o nome do autor o CPF, a carteira de identidade etc. Nesse tempo o camarim estava infestado de policiais, então o pseudônimo de músicas só dava pra usar com as músicas desconhecidas, caso contrário você saía do palco direto pro camburão. Folhetim - Nos momentos mais difíceis, de repressão mais violenta, você quando era preso tinha certeza de... CHICO - Ah, isso nunca tirei da cabeça, o fato de que a minha popularidade era meu guarda-costas. Eu sabia que nunca seria um Vlado. Tinha certeza de que gozava de uma certa cobertura e até brinquei com isso naquela música do Julinho de Adelaide: "Você mãe gosta de mim mas sua filha gosta..." Aconteceu de eu ser detido por agentes da segurança e no elevador o cara pedir um autógrafo pra filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo da delegacia... Enfrentei grosseria, mas sempre tive a garantia que não iam me tocar. Normalmente ia com essa certeza e com uma obrigação: já que tenho essa cobertura, posso ir mais longe que outras pessoas, se não for.... ah sim, estou sendo fraco, covarde, canalha. Tentava descobrir a medida: posso ir até aqui e mais também é bobagem. Não havia nenhum sentimento heróico nisso e isso até uma ofensa diante de tanta gente que apanhou tanto, que morreu, que até hoje está sofrendo por causa de uma luta mais conseqüente e mais concreta e mais séria. Também por conta de tantas perseguições, Chico passou a dialogar com jovens em seus shows, tendo sempre a sua atitude reprimida pelos fiscais do regime: Eu sou um compositor, não um político. Faço música e não política. Mas, a partir do exato momento em que a política ou a situação do país me impedem de trabalhar, me vejo obrigado a transformar-me em político e a manifestar-me e defender-me. 45 Entrevista a Jary Cardoso e Maria da Paz – Folhetim – Folha de São Paulo – 1978. Esse recurso é o de escrever extensas e cansativas subliteraturas no início e no fim das músicas a fim de enganar o censor. (WERNECK 2006, p.80) Como não havia obrigação de gravar todo o texto aprovado, excluía-se essas estrofes. 46 51 A mim não vão amordaçar. A única coisa que me assusta é chegar a um ponto em que a autocensura me impeça de trabalhar. Atualmente, quando escrevo uma letra, já não sei se vão aprová-la ou não. Divido minhas músicas entre as que, na minha opinião, vão ser qualificadas com um "não" e as que podem receber um "talvez." Porém, da mesma forma, me equivoco constantemente. Letras que pra mim estavam entre as que tinham possibilidades de serem autorizadas, terminaram recebendo um "não" por parte da censura. Tento jogar respeitando as regras, procuro escrever de tal forma que possa burlar a censura. Mas ocorre que ela, lentamente vai aguçando seu olfato. Às vezes se chega a ter a impressão que age com alguma inteligência, e isso, claro, vai me obrigar, da mesma forma que a todos os meus colegas, a afinar ainda mais meu repertório de truques. Em meu caso, o problema da censura é algo habitual. Porém eu me pergunto o que vai ser dos novos compositores, de todos os que ainda não são conhecidos, quando se virem obrigados a enfrentar a máquina da opressão e da repressão. Tenho medo de que morram antes de terem nascido, e é um temor fundado. Minha geração - nascida em 66 - foi a última conhecida dentro da Música Popular Brasileira. Depois de Milton Nascimento, Edu Lobo, Caetano Veloso, Gil, e Egberto Gismonti e alguns outros, não surgiu mais ninguém e isso não ocorre somente na música. Ocorre nos campos onde a criação e a expressão são um ponto de partida. Não vou falar da situação política de meu país. Não sou um teórico. Porém, posso falar com conhecimento, da Censura. É o único instrumento de que dispõe o regime para calar os que desejam dizer algo que possa incitar a pensar. Algo que, principalmente, pode encontrar eco entre os universitários, entre a juventude. Houve momentos em que tive vontade de renunciar a tudo. Agora não. Agora quero lutar. Quero devolver uma por uma as bofetadas que me dão. Sei que minha resposta não poderá representar nada contra a força do sistema, mas não pretendo ficar calado. Hoje me interessa, mais do que nunca, ser conhecido. Ser conhecido, em meu caso, é algo que opera como um mecanismo defensivo: não vão poder me eliminar quando queiram. Se desapareço, haverá muita gente que vai tentar averiguar o que aconteceu comigo. Ninguém mais pode ficar em um canto observando o que ocorre. É necessário assumir uma posição definida. Eu escolhi a minha. Optei pela 47 denúncia. Não sei o que vai suceder, mas continuarei lutando. " No trecho acima, Chico Buarque levanta questões importantes. Afirma que não é político, mas que assume uma posição política em suas composições pós 1968. Trata da falta de critérios de análise das composições por parte da censura, ao mesmo tempo em que admite utilizar-se de meios para burlá-la e que esses meio 47 Declaração de Chico Buarque em show a estudantes em 1972 – Fonte: Revista Crisis, 1973. 52 precisaram ser cada vez mais refinados. Aborda também o fato de a censura servir como empecilho para o surgimento de novos compositores e o fato de que ser conhecido dava-lhe imunidade contra o regime. Por fim, mas retornando ao começo, aventa a necessidade da arte enquanto denúncia no momento em que a opressão e a repressão impedem o refletir, o questionar, o pensar. Quando o governo repreende qualquer possibilidade de manifestação, é a arte com todas as suas figuras, com todas as suas possibilidades de resignificações que tematiza sobre o tempo presente a partir de um tempo qualquer, propondo um tempo novo. Dessa forma, foi também durante o período do governo Médici, mais precisamente de 1969-1973, que o Brasil viveu uma época de grande desenvolvimento econômico, o “Milagre Econômico”, avançando com investimentos internos e empréstimos do exterior. São realizados mega-projetos como a Transamazônica, a ponte Rio-Niterói e a hidrelétrica de Itaipu, feitas para agradar as elites. Em referência a esse momento, Chico Buarque compõe, para o cantor Mário Reis, a letra de Bolsa de Amores (1971), letra que fazia parte da lista das que Chico acreditava que passaria pela censura, mas não passou. Comprei na bolsa de amores As ações melhores Que encontrei por lá Ações de uma morena dessas Que dão lucro à beça Pra quem pode E sabe jogar Mas o mercado entrou em baixa Estou sem nada em caixa Já perdi meu lote Minha morena me esquecendo Não deu dividendo Nem deixou filhote E eu que queria De coração Ganhar um dia Alguma bonificação Bem me dizia Meu corretor A moça é fria É ordinária Ao portador Ao perceber que grande parte das músicas cantadas por Mário Reis faziam referências ao que estavam acontecendo na época, Chico compõe uma música que 53 trata de uma desilusão amorosa utilizando o jargão da bolsa de valores, que era a euforia do momento e onde Mário Reis também gostava de aplicar. Porém, a canção foi proibida pela censura e o LP de Mário Reis que costumava ter doze faixas, saiu com apenas onze, em sinal de protesto. Mas, como afirma Homem (2009, p.96), “o que não se conseguiu proibir foi a derrocada da Bolsa, em agosto de 1971”. E, em 1974, com o fim do “Milagre Econômico”, o aumento da inflação e a crise do petróleo, assume a presidência Ernesto Geisel. O quarto presidente do ciclo militar começa o lento processo rumo à democracia. O governo Geisel apresentou o enterro do AI-5 como o começo da nova democracia. Na verdade, pouco se alterou: as mudanças no comportamento repressivo do governo não passaram de um recuo diante do avanço das lutas populares e dos resultados eleitorais. Com o fim do AI-5 criaram-se as “salva-guardas” e a Lei de Segurança Nacional praticamente ficou incorporada à Constituição (CHIAVENATO, 1994, p. 84). Nesse governo, com a abertura política, a oposição ganhou espaço, vencendo nos Estados e nas cidades mais importantes do país. Dessa maneira, estando insatisfeitos com o governo Geisel, os militares da linha dura promoveram ataques a membros da esquerda. Nesse ano, Chico compõe, sob o pseudônimo de Julinho de Adelaide, Jorge Maravilha, cuja letra deu origem à lenda de que o seu destinatário era o General, pois sua filha, Amália Lucy, manifestara admiração pelas obras do autor. Chico explicou que outros acontecimentos deram origem à imagem utilizada: “Aconteceu de eu ser detido por agentes de segurança, e no elevador o cara me pedir autógrafo para a filha dele. Claro que não era o delegado, mas aquele contínuo do delegado”. Segue a letra: Há nada como um tempo Após um contratempo Pro meu coração E não vale a pena ficar Apenas ficar chorando, resmungando Até quando, não, não, não E como já dizia Jorge maravilha Prenhe de razão Mais vale uma filha na mão Do que dois pais voando Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Você não gosta de mim 54 Mas sua filha gosta Ela gosta do tango, do dengo Do Mengo, domingo e de cócega Ela pega e me pisca, belisca Petisca, me arrisca e me enrosca Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Há nada como um dia Após o outro dia Pro meu coração E não vale a pena ficar Apenas ficar chorando, resmungando Até quando, não, não, não E como já dizia Jorge maravilha Prenhe de razão Mais vale uma filha na mão Do que dois pais sobrevoando Você não gosta de mim Mas sua filha gosta A censura à imprensa foi suspensa em 1975 e, três anos depois, o Presidente Ernesto Geisel acabou com o Ato Institucional Nº 5 (AI-5), restaurando o habeascorpus, criando assim condições para a abertura política rumo à redemocratização. Folhetim48 - A gente podia começar falando do que está acontecendo, quer dizer, fora todos os feriados... das pessoas falando de partidos, procurando espaços políticos. O Chico Buarque falando como criador, não apenas como cidadão. CHICO - Tem horas que essas duas coisas se misturam. Acho que esse não é o momento para se misturar as duas coisas, inclusive de ficar cobrando do artista uma postura como cidadão, porque esse momento é adiantado ou atrasado. Aconteceu muito, de 68 a 74 principalmente. Havia um vazio político profundo no país inteiro. As opções que se apresentavam eram muito pobres para interessar o jovem, as pessoas que gostariam de estar participando de alguma forma da sociedade. Então, é evidente que nesse período qualquer palco virava uma tribuna, mesmo não querendo o sujeito estava lá assumindo uma posição. O tempo todo, a cada momento, a cada canção e a cada entrevista. Agora, acho que chegou um pouco a hora do artista. Estou falando do meu ponto de vista pessoal, passar um pouquinho dessa função, porque na realidade esse artista não está preparado para responder com muita nitidez a uma questão mais profunda. Num momento em que eu transfiro em termos de popularidade meu prestígio pessoal para um candidato a senador, a deputado, essa é a posição política mais clara que eu posso assumir. Apoiei fulano, então ele vai falar por mim. A posição de fulano é a que eu apoio. Em 72, por exemplo, não existia isso, as pessoas votavam nulo, não tinham por que falar se preocupando com discussão política. Eu andava pelo interior fazendo show com estudantes e mesmo a grande maioria deles, a discussão mais profunda que travavam era se a maconha do Ceará era 48 Entrevista a Jary Cardoso e Maria da Paz – Folhetim – Folha de São Paulo – 1978. 55 melhor que a do Maranhão. Não ia muito além disso. Eu, lá, cantava Construção, Deus lhe pague e aquilo tinha uma função política efetiva, tenho consciência que tinha. Depois de um certo tempo, aí já não me satisfazia mais esse papel, porque parecia que eu estava jogando com um baralho falso, estava continuando a transformar um palco numa tribuna quando na verdade os problemas nacionais pra valer já podem ser discutidos, principalmente a partir do momento em que a imprensa começou a ser menos censurada. A grande mudança foi essa. Eu sou uma pessoa de oposição, não tenho simpatia nenhuma pelo governo... mas esse governo abriu a imprensa, e não abriu porque é bonzinho, foi forçado a abrir, mudou tudo no País. Em 14 de maio de 1976, morre Zuleika Angel Jones (Zuzu Angel), a mãe que lutava por justiça pela morte do seu filho Stuart Angel, o qual foi torturado, arrastado por uma corda amarrada a um jipe militar e com a boca colada no cano da descarga. Zuzu Angel elegeu Chico Buarque para guardar os seus bilhetes e, em 25 de abril de 1975, um ano antes de morrer na saída do túnel que hoje tem o seu nome, deixou o seguinte bilhete na casa de Chico: “Há dias recebi um documento descrevendo com pormenores as torturas e o assassinato de que foi vítima meu filho Stuart Jones, pelo governo militar brasileiro. Este documento está fora do país, em mãos de uns parentes americanos do meu filho mártir. Se algo vier a acontecer comigo, se eu aparecer morta, por acidente, assalto ou qualquer outro meio, terá sido obra dos mesmos assassinos do meu amado filho” (ZAPPA, 1999, p. 126). Foi para ela que Chico escreveu a letra de Angélica, datada de 1977, que trata de uma mulher que repete sempre a mesma fala, o mesmo lamento pelo corpo do seu filho que não sabe onde está: Quem é essa mulher Que canta sempre esse estribilho Que mora na escuridão do mar Quem é essa mulher Que canta sempre esse lamento Só queria lembrar o tormento Que fez o meu filho suspirar Quem é essa mulher Que canta sempre o mesmo arranjo Só queria agasalhar meu anjo E deixar seu corpo descansar Quem é essa mulher Que canta como dobra um sino Queria cantar por meu menino Que ele já não pode mais cantar 56 Foi também em 1976 que Chico escreveu para o teatrólogo Augusto Boal que estava exilado em Lisboa a música Meu caro Amigo: Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta Muita mutreta pra levar a situação Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça E a gente vai tomando que, também, sem a cachaça Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu não pretendo provocar Nem atiçar suas saudades Mas acontece que não posso me furtar A lhe contar as novidades Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta É pirueta pra cavar o ganha-pão Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu quis até telefonar Mas a tarifa não tem graça Eu ando aflito pra fazer você ficar A par de tudo que se passa Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n‟roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta Muita careta pra engolir a transação E a gente tá engolindo cada sapo no caminho E a gente vai se amando que, também, sem um carinho Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever Mas o correio andou arisco Se me permitem, vou tentar lhe remeter Notícias frescas nesse disco Aqui na terra ‟tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta A Marieta manda um beijo para os seus Um beijo na família, na Cecília e nas crianças O Francis aproveita pra também mandar lembranças A todo o pessoal Adeus 57 Chico escreveu essa canção porque Boal queixava-se de que os amigos não mandavam notícias do Brasil. Nessa carta-canção, Chico saúda os amigos e descreve a situação no Brasil: “a coisa aqui tá preta”. Em seu depoimento para o livro Chico Buarque do Brasil, Boal descreve os sentimentos ao ouvir a música pela primeira vez: [...] Chico resistia, aqui no Brasil, escrevendo “Apesar de Você” e “Vai Passar”; e nos ajudava a resistir, lá fora, cantando a sua amizade. Sua lírica era a mais pura épica: seu caro amigo eram todos os nossos amigos, e todos os nossos amigos eram seus (FERNANDES, 2004, p. 45). E é por essa lírica tão épica que não se pode pensar em Chico Buarque apenas como um “músico popular”, já que o grau de elaboração e as imagens permitem incorporar as suas letras à literatura brasileira e, desta maneira, têm sido objeto de análise em estudos literários. De 1979 até 1985 assumiu a presidência o último general-presidente a comandar o Brasil, o João Baptista de Oliveira Figueiredo. Figueiredo decretou a Lei da Anistia (1979), dando direito de retorno ao Brasil para artistas, políticos e demais cidadãos brasileiros exilados por crimes políticos. Durante o governo Figueiredo, em 1979, foi restabelecido o pluripartidarismo e, além da Aliança Renovadora Nacional (ARENA) que se tornou Partido Democrático Social (PDS) e o Movimento Democrático Brasileiro (MDB) que se tornou Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), foram criados outros partidos como Partido dos Trabalhadores (PT) e Partido Democrático Trabalhista (PDT). 49 Folhetim - Durante a campanha eleitoral você apoiou alguns candidatos e tal, mas você fez muito mais do que isso. Você ressuscitou a paródia, naqueles jingles para o Fernando Henrique, o Audálio Dantas, etc... A paródia, que é uma coisa que se fazia antigamente. CHICO - Você falou nisso e lembrei, nesse tempo também se usava muito músicas de carnaval: Lata d'água na cabeça. Chora doutor e por aí. Essas músicas são da minha infância, dos anos 50, lembro que cantava esse tipo de música que desapareceu. A música de protesto brasileira é uma música alegre, ao contrário do que se ouve por aí afora. Tanto que talvez uma das minhas únicas músicas que pode ser chamada de protesto, o que no Brasil é um palavrão, compositor de protesto é um insulto incrível é Apesar de você, que é alegre, um pouco com a idéia dessas músicas antigas de carnaval. Foi engraçado que no caso do Modesto da Silveira, candidato aqui Rio, mas ia fazer até uma gravaçãozinha para tocar nesses altos-falantes e 49 Entrevista a Jary Cardoso e Maria da Paz – Folhetim – Folha de São Paulo – 1978. 58 eu falei: aí precisa ver essa coisa de direito autoral. "A música é a melodia do Sacarolha do Zé da Zilda e da Zilda do Zé. O Zé da Zilda já morreu, aí foram procurar a Zilda, que mora longe. Foram pedir licença e dar um dinheirinho. Foi bom porque ela não tá bem de vida. Ficou contentíssima e disse que ia votar para esse candidato. Esse negócio de direito autoral é bom falar também: hoje, comparando com três anos atrás, o sistema tá moralizado na medida em que o compositor recebe pela música que efetivamente toca nas rádios e nos lugares públicos, enquanto que antigamente prevalecia o critério misterioso. Mas em contrapartida, o sujeito que fez sucesso no passado hoje não vê um tostão e o autor de música sertaneja também não. Porque a arrecadação é feita com base em algumas emissoras do Rio, São Paulo e algumas capitais. Então eu, por exemplo, que sou beneficiado com isso, recebo muito mais do que recebia antes. Mas outro dia peguei um táxi e o motorista disse: sou seu colega. Disse o nome dele, eu não tava localizando, mas era parceiro do João do Vale em Carcará! Essa foi uma das poucas músicas dele que fizeram sucesso em São Paulo, Rio, mas ele tem uma porção de músicas sertanejas, especialidade dele, que tocam no interior. Perguntei, então como é que ficou agora? Ficou muito pior... Motorista de táxi, né? E autor de Carcará. As coisas no Brasil são assim: ou oito ou oitenta. No trecho da entrevista acima, já se percebe um país com alguma abertura política, com partidos disputando uma campanha eleitoral. Nesta entrevista, Chico Buarque também trata da característica da música de protesto brasileira, bem mais alegre e repleta de figuras; de como é pejorativa a palavra protesto no Brasil (isto devido à ideologia da própria ditadura) e, de um fenômeno que começa a surgir com mais força, uma nova bandeira levantada pelos artistas após a abertura dos direitos de imprensa, o direito autoral. Porém, apesar da suspensão da censura à imprensa, da restauração do habeascorpus e do restabelecimento do pluripartidarismo, aconteceu também durante o governo Figueiredo o episódio que ficou conhecido como o “atentado Riocentro” em 1981. 50 O primeiro show do Primeiro de Maio foi promovido pelo Centro Brasil Democrático (Cebrade), organizado por Chico e dirigido por Fernando Faro. O Cebrade foi fundado em agosto de 1978 por 150 intelectuais de 10 estados do país. Segundo seu presidente, o arquiteto Oscar Niemeyer, os objetivos da organização eram a defesa da democracia e dos direitos humanos, a luta por melhores condições de vida e oposição à intervenção estrangeira nos setores político, econômico, artístico e cultural. Ênio Silveira e Sérgio Buarque de Hollanda eram vice-presidentes, Antonio Houaiss, secretário geral, e Mauro Lins e Silva, tesoureiro. O show no Riocentro, em 30 de abril de 1979, era a segunda promoção do Cebrade. A primeira fora o Encontro Nacional pela Democracia, no Hotel Nacional. Outros Shows do 50 Os shows do Primeiro de Maio começaram em 1979 e foram até 1981, quando a bomba explodiu. Chico foi um dos seus principais idealizadores. Esses shows tinham como objetivo arrecardar fundos para sindicatos ou campanhas políticas como as Diretas Já. Depois de 1981, esses shows se transformaram em Canta Brasil e se espalharam pelo Brasil. 59 Primeiro de Maio no Riocentro aconteceram nos anos seguintes, nunca tão vibrantes quanto aquele primeiro. No último deles, em 30 de abril de 1981, Chico fez o roteiro e não se apresentou, mas correu para o Riocentro de madrugada quando pipocou na televisão a notícia da bomba. [...] correram todos para lá quando souberam da explosão no carro de dois militares no estacionamento. [...] A bomba, que por descuido explodiu antes da hora, tinha endereço certo: o lugar onde se realizava o show (ZAPPA, 1999, p.112). Com a inflação alta e a recessão, os partidos de oposição começaram a surgir e os sindicatos se fortaleceram. Assim, o movimento das “Diretas Já” ganhou forma em 1984, com a participação de artistas, políticos de oposição e milhões de brasileiros, mas a Emenda Dante de Oliveira (que garantia as eleições diretas) não foi aprovada pela Câmara dos Deputados. Todavia, como afirma Bertoncelo (2007, p. 175), [...] De fato, a derrota da emenda Dante impediu que os efeitos mais transformadores possivelmente associados à escolha direta do presidente pela população se materializassem. Ainda assim, as amplas mobilizações por eleições diretas não apenas fragmentaram e isolaram ainda mais o regime político, como intensificaram a corrosão dos pilares de sustentação do Estado Varguista. E nessa mesma linha de perdida a batalha, mas nunca a guerra, nesse ano, Chico Buarque compõe Vai Passar transformada quase em símbolo desse momento. A esperança de um tempo novo em que essa “página infeliz” da história fosse “virada”: Vai passar nessa avenida um samba popular Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais Que aqui sangraram pelos nossos pés Que aqui sambaram nossos ancestrais Num tempo página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória Das nossas novas gerações Dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes Erguendo estranhas catedrais E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval, o carnaval, o carnaval Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos O bloco dos napoleões retintos e os pigmeus do boulevard Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar A evolução da liberdade até o dia clarear Ai que vida boa, ô lerê, ai que vida boa, ô lará O estandarte do sanatório geral vai passar 60 Ai que vida boa, ô lerê, ai que vida boa, ô lará O estandarte do sanatório geral... vai passar Todavia, no dia 15 de janeiro de 1985, o Colégio Eleitoral escolheu o primeiro presidente civil. Após 21 anos da ditadura, foi eleito indiretamente o Deputado Tancredo Neves, mas, por motivos de uma diverticulite aguda perfurada quem assume a presidência é o seu vice José Sarney. Dessa maneira, foi apenas em 1989 que os brasileiros puderam escolher o seu presidente pelo voto direto elegendo o Presidente Fernando Collor de Melo. Chico Buarque manifesta-se sobre esta eleição em entrevista a Pedro Alexandre Sanches para o Jornal Folha de São Paulo de 6 de novembro de 1998: Chico - A última grande movimentação política nacional foi a eleição de 89, quando a sociedade inteira se dividiu e houve a possibilidade de haver uma mudança significativa com a eleição do Lula. Ali acho que foi a grande porrada. Durante todo esse período politicamente difícil para o Brasil, Chico Buarque teve consciência do seu papel: “Todas as informações que tenho, inclusive aquelas sobre problemas sociais, vão se manifestar na música” (ZAPPA, 1999, p. 116). Como foi visto, sua luta contra a censura, principalmente na década de 1970, era uma briga quase solitária, quase que pessoal, mas, como ele mesmo afirma: [...] Isso me dava gás, não porque eu seja especialmente corajoso, mas porque eu sou orgulhoso. „Ah, como não pode?‟... de certa forma me atiçava. Era contraproducente. A censura, a proibição, os recados que eu recebia, que eram barra pesada, os telefonemas. Aquilo mexia comigo e me dava gás [...] (ZAPPA, 1999, p.120-121). E são essas letras, compostas com o “gás” da ditadura, que se pretende analisar no decorrer desse trabalho a partir dos princípios do nível discursivo da Semiótica Greimasiana. 61 2 SE TU FALAS MUITAS PALAVRAS SUTIS: A TEORIA SEMIÓTICA GREIMASIANA Em seu Dicionário de Semiótica, Greimas e Courtés (2008, p.448) afirmam que o termo semiótica é empregado em sentido diferente, conforme designe: (A) uma grandeza manifestada qualquer, que se propõe conhecer; (B) um objeto de conhecimento, tal qual aparece no decorrer e em seguida à sua descrição; e (C) o conjunto dos meios que tornam possível seu conhecimento. No sentido (A), o termo semiótica serve para designar um conjunto significante anteriormente à sua descrição. Um conjunto significante que possua uma organização interna autônoma, designado como uma semiótica-objeto. Já no sentido (B), esse termo é empregado para denominar um objeto do conhecimento em via de constituição ou já constituído: uma semiótica objeto considerada quer como projeto de descrição, quer como já submetida à análise, quer, enfim, como objeto construído. Propondo, nesse sentido, que se aceite a definição de L. Hjelmslev como o primeiro a indicar uma teoria semiótica coerente, Greimas e Courtés (2008, p. 450) explanam: Ele a considera como uma hierarquia (isto é, como uma rede de relações, hierarquicamente organizada) dotada de um duplo modo de existência, a paradigmática e a sintagmática (apreensível, portanto, como sistema ou como processo semiótico), e provida de pelo menos dois planos de articulação – expressão e conteúdo -, cuja reunião constitui a semiose. Se no sentido (B), concebia-se a semiótica como a superposição adequada de uma semiótica objeto a uma linguagem de descrição, no sentido (C), pode-se observá-la: Ao mesmo tempo, como lugar de elaboração de procedimentos, de construção de modelos e da escolha dos sistemas de representação, que regem o nível descritivo (isto é, o nível metalingüístico metodológico), mas também como lugar de controle da homogeneidade e da coerência desses procedimentos e modelos, ao mesmo tempo que de explicitação – sob forma de uma axiomática – dos indefiníveis e do fundamento de toda essa armação teórica (é o nível epistemológico propriamente dito) (GREIMAS e COURTÉS 2008, p.454). 62 Nessa última perspectiva, pode-se entender semiótica como uma semiótica geral (explicar a existência e o funcionamento de todas as semióticas particulares) ou como teoria semiótica. A teoria semiótica é, para Greimas, uma teoria da significação, a qual tem como preocupação primeira explicar, sob forma de construção conceitual, as condições da produção e da apreensão do sentido. Baseando-se em Saussure e Hjelmslev, entende a significação como a criação e/ou a apreensão das “diferenças” e reúne todos os conceitos que, mesmo sendo indefiníveis, são necessários para estabelecer a definição da estrutura elementar da significação. Mas em lugar de uma coisa que se distingue de outra coisa imaginemos alguma coisa que se distingue de outra coisa imaginemos alguma coisa que se distingue – e no entanto aquilo de que ela se distingue não se distingue dela. O relâmpago, por exemplo, distingue-se do céu escuro, mas deve levá-lo consigo como se ele se distinguisse do que não se distingue. É como se o fundo emergisse à superfície, sem deixar de ser fundo. [...] A diferença é esse estado de determinação como distinção unilateral. Deve-se dizer que ela é feita, ou que ela se faz, como na expressão „fazer a diferença (DELEUZE, 1989, p.43, apud, FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.42). Em termos semióticos essa concepção é reformulada como “primado da negação”, em que o termo primeiro é aquele que não é qualquer um e que, por isso, destacase do qualquer um. “A distinção precederia de direito a diferença ou, em outros termos, a independência como negação da dependência precederia a diferença” (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.43). E, considerando estrutura como uma rede relacional, formula uma tipologia das relações (pressuposição, contradição, etc.) que permite constituir um estoque de definições formais tais quais a da categoria semântica (unidade mínima) e da própria semiótica (unidade máxima). Assim, como explica Barros (1988, p.12), A semiótica, como a vê Greimas, tenta determinar as condições em que um objeto se torna objeto significante para o homem. Herdeira de Saussure e de Hjelmslev, não toma a linguagem como sistema de signos e sim como sistema de significações, ou melhor, de relações, pois a significação decorre da relação. Falar da significação é falar do sentido negativo decorrente do postulado saussuriano da “diferença”. Uma grandeza semiótica qualquer é, por conseguinte, uma rede de relações e nunca um termo isolado. Em uma etapa posterior, está a organização de uma linguagem formal mínima: a distinção entre as relações-estados e as relações-operações permite postular os 63 termos-símbolos e os termos operadores e, a partir daí, a teoria semiótica pode ocupar-se dos sistemas de representação, nos quais ela tem de formular os procedimentos e modelos (o quadrado semiótico ou enunciado elementar, por exemplo). Essa teoria articula-se em uma forma gerativa, um caminho que conduz do mais simples ao mais complexo e do mais abstrato ao mais concreto, que permite introduzir aquisições da teoria lingüística como: as problemáticas relativas à língua (Benveniste) e à “competência” (Chomsky), como também a articulação das estruturas em níveis, de acordo com seus modos de existência: virtual, atual ou realizada. Dessa forma, a semiótica de um discurso é representada sob forma de um percurso gerativo que vai do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto, do nível mais profundo ao mais superficial. As estruturas menos profundas são as discursivas tais como se constroem na instância da enunciação. Dessa maneira, a teoria semiótica mostra-se mais do que uma teoria do enunciado, como é o caso da gramática gerativa, e mais do que uma semiótica da enunciação, conciliando aquilo que à primeira vista é inconciliável. Assim, de forma prática, semiótica é a teoria que se (pre)ocupa com o texto. Entendendo texto como a dualidade: objeto de significação (exame dos procedimentos e mecanismos que o estruturam, que o tecem como um “todo de sentido” – análise interna ou estrutural do texto) e objeto de comunicação (encontra seu lugar entre os objetos culturais, inserido numa sociedade (de classes) e determinado por “formações ideológicas específicas” (BARROS, 2007, p.07) – examinado em relação ao contexto sócio-histórico que o envolve e que, em última instância, lhe atribui sentido. – análise externa do texto – examina tanto os mecanismos internos quanto os fatores contextuais ou sócio-históricos de fabricação do sentido). Sendo desta maneira, é a teoria que busca examinar os procedimentos da organização textual e, ao mesmo tempo, os mecanismos enunciativos de produção e de recepção do texto, procura explicar o ou os sentidos do texto pelo exame de seu plano de conteúdo. 64 2.1 O PERCURSO GERATIVO DE SENTIDO A teoria semiótica de Greimas parte de sua definição de estrutura como diferença, princípios de oposições binárias e pertinência, e prioriza a relação entre elementos e relações de oposição: o mundo estruturado na forma de diferenças e oposições. Isto porque, tendo permanecido fiel aos princípios da análise estrutural, é uma semiótica narrativa do discurso baseada na análise estrutural (Hjelmeslev), antropologia estrutural de Lévi-Strauss, teoria formalista dos contos de Propp e a teoria das situações dramáticas de Etienne Souriáu. Na semiótica narrativa, o discurso é compreendido como uma superposição de níveis de profundidade diferente, articulados em um percurso que parte do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto. Assim, é uma teoria da significação que apenas se torna possível quando a sua análise é situada em níveis tanto acima como abaixo dos signos – percurso gerativo de sentido. No nível inferior, estão os semas, elementos analíticos ainda não-signos. No nível superior, as unidades textuais que produzem unidades semânticas, que são mais que signo. Em semiótica, as estruturas profundas são as estruturas mais simples que geram as estruturas mais complexas. A maior complexidade deve ser entendida também como uma “complementação” ou um “enriquecimento” do sentido, já que novas articulações são introduzidas em cada etapa do percurso e a significação nada mais é que articulação. Considera-se, portanto, o trabalho de construção do sentido, da imanência à aparência, como um percurso gerativo (BARROS, 1988, p.15). Dessa maneira, esse percurso gerativo parte do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto, organizado em três etapas, podendo cada uma delas ser explicada por uma gramática autônoma, embora o sentido dependa da relação entre os níveis. São estas três etapas ou níveis: fundamental, narrativo e discursivo, cada um com dois componentes diferentes, uma sintaxe e uma semântica. Esses dois componentes complementam-se na gramática semiótica. A sintaxe semiótica é conceptual com relações abstratas, porém significantes, e a semântica: 65 51 a) Deve ser gerativa , vale dizer, concebida sob forma de investimentos de conteúdo progressivos, dispostos em patamares sucessivos, que vão dos investimentos mais abstratos aos mais concretos e figurativos, de tal maneira que cada patamar possa receber uma representação metalingüística explícita. 52 b) Deve ser sintagmática , e não mais apenas taxionômica, procurando assim dar conta não de unidades lexicais particulares, mas da produção e da apreensão dos discursos. Sob esse ponto de vista, a importância atribuída aos semas contextuais na construção dos sememas permite-nos postular a hipótese seguinte: os investimentos semânticos mais profundos correspondem a unidades sintagmáticas cujas direções são as mais amplas e servem de base para o estabelecimento das isotopias discursivas; dessa forma, novas camadas de investimento darão lugar então a especificações de conteúdos que decompõem o discurso em unidades sintagmáticas menores, para chegar finalmente a combinações semêmicas. 53 c) A semântica dever ser geral : sendo as línguas naturais, tanto quanto os mundos naturais, lugares de aparecimento e de produção de semióticas múltiplas, deve-se postular a unicidade do sentido e reconhecer que ele pode ser manifestado por diferentes semióticas ou por várias semióticas ao mesmo tempo (no caso do espetáculo, por exemplo): é por isso que a semântica depende de uma teoria geral da significação (GREIMAS E COURTÉS, 2088, p. 433-434). O percurso gerativo do sentido é dotado de uma semântica fundamental (representação lógica abstrata) e uma semântica narrativa, cujos investimentos se inscrevem nos moldes da sintaxe narrativa de superfície. A representação semântico-sintática resultante é a das estruturas semióticas, aptas a serem assumidas pela instancia da enunciação, com vista à produção do discurso. Portanto, No nível das estruturas fundamentais, uma sintaxe explica as primeiras articulações da substância semântica e das operações sobre elas efetuadas e uma semântica surge como um inventário de categorias sêmicas com representação sintagmática assegurada pela sintaxe; na instância das estruturas narrativas, uma sintaxe regulamenta o fazer – simulacro do fazer do homem no mundo e das suas relações com outros homens – e uma semântica atribui estatuto de valor aos objetos do fazer; na etapa mais superficial das estruturas discursivas, uma sintaxe organiza as relações entre enunciação e discurso, e uma semântica estabelece percursos temáticos e reveste figurativamente os conteúdos da semântica narrativa. Passa-se, assim, do lógico-conceptual ao narrativo graças à ação do homem, sujeito do fazer, e do narrativo ao discursivo pela intervenção do sujeito da enunciação (BARROS, 1988, p.16). 51 52 53 Grifos dos autores. Grifos dos autores. Grifos dos autores. 66 Analisando-se o texto de Chico Buarque, João e Maria (1977), pode-se entender melhor a noção de percurso gerativo. João e Maria Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês A noiva do cowboy Era você além das outras três Eu enfrentava os batalhões Os alemães e seus canhões Guardava o meu bodoque E ensaiava o rock para as matinês Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz E pela minha lei A gente era obrigado a ser feliz E você era a princesa que eu fiz coroar E era tão linda de se admirar Que andava nua pelo meu país Não, não fuja não Finja que agora eu era o seu brinquedo Eu era o seu pião O seu bicho preferido Vem, me dê a mão A gente agora já não tinha medo No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido Agora era fatal Que o faz-de-conta terminasse assim Pra lá deste quintal Era uma noite que não tem mais fim Pois você sumiu no mundo sem me avisar E agora eu era um louco a perguntar O que é que a vida vai fazer de mim? No nível das estruturas fundamentais, é preciso determinar a oposição ou oposições semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto. Em João e Maria, a categoria semântica fundamental é: Inocência/Liberdade vs. Maturidade/Repressão No texto, podemos perceber essa oposição de diversas formas: (QUADRO 01) 67 INOCÊNCIA/ LIBERDADE MATURIDADE/REPRESSÃO “Agora eu era o herói” “Agora era fatal” “Eu enfrentava os batalhões “Era uma noite que não tem mais fim” Os alemães e seus canhões” “Guardava o meu bodoque “Pra lá deste quintal” E ensaiava o roque para as matinês” “E você era a princesa que eu fiz “Pois você sumiu no mundo sem me coroar” avisar” “Que andava nua pelo meu país” “E agora eu era um louco a perguntar” “Finja que agora eu era o seu “Que brinquedo o faz-de-conta terminasse assim” Eu era o seu peão O seu bicho preferido” “Vem, me dê a mão “ O que é que a vida vai fazer de mim?” A gente agora já não tinha medo No tempo da maldade acho que a gente nem tinha nascido” Assim, a inocência representa para o sujeito a possibilidade de liberdade, ao refugiar-se na infância, o sujeito entende-se livre pois pode “fazer-de-conta”, pode ser herói, enfrentar batalhões, coroar quantas princesas quiser. É livre aquele que pode apresentar-se inocentemente despido diante do outro, que pode dar a mão sem temer. É livre o sujeito que não carrega consigo a maldade. Em oposição a esta inocência, o texto apresenta a maturidade, que vem carrega de elementos de repressão, trazendo consigo a fatalidade, o fim do faz-de-conta, a inocência perdida 68 na figura poética da escuridão da noite. A maturidade que oprime quando se consegue perceber os limites que são impostos, as pessoas que somem e a loucura de questionar aquilo que não pode ser questionado. Desta maneira, a oposição inocência vs maturidade apresenta também a oposição liberdade vs repressão, pois, tendo sido composto em 1977, período da ditadura militar pós AI-5, este texto pode ser lido como a oposição entre aqueles que buscavam tratar da liberdade por meio das suas canções, marchas, textos, e a repressão ditatorial que exilava, sequestrava e torturava aqueles que se opunham ao governo. Essas categorias fundamentais são classificadas axiologicamente como atraentes ou eufóricas e repulsivas ou disfóricas. Em João e Maria, a inocência é eufórica e a maturidade é disfórica. A liberdade é atraente, enquanto a repressão é repulsiva. Além disso, pode-se estabelecer, ainda neste nível, um percurso entre os termos. Neste texto, diferente dos contos de fadas, dos quais muito se aproxima pelo uso recorrente da expressão “Agora era” (que transporta o leitor do mundo real, maduro, repressivo, ao mundo do faz-de-conta, inocente, livre, em que tudo é possível.), passa-se da euforia (inocência) para a disforia (maturidade). (FIGURA 01) inocência → não-inocência → maturidade (euforia) (não-euforia) (disforia) A não-euforia, ou seja, a negação da euforia apresenta-se, sobretudo, em “Agora era fatal”. Então, João e Maria tem como conteúdo mínimo fundamental a negação da inocência, sentida como atraente, e a afirmação da maturidade disfórica, ou seja, repulsiva o que faz desse um texto disforizante. No nível das estruturas narrativas, os elementos das oposições semânticas fundamentais transformam-se em valores assumidos por um sujeito e circulam entre os sujeitos graças à ação de sujeitos. Nesse nível, vai-se transformar, pela ação do sujeito, estados de inocência em estados de maturidade, ou seja, de estados de liberdade em estados de repressão. João e Maria é a história de um sujeito (“eu”) que manipula um outro sujeito (“você”) por sedução – ser a noiva do cowboy, a princesa coroada, linda de se admirar – e por tentação – finja que agora eu era o seu brinquedo, eu era o seu peão, o seu bicho preferido – para que esse “você” 69 “não, não fuja não”, permaneça no mundo inocente, livre. O sujeito “você” não cumpre o contrato e some no mundo sem avisar. Porém, este sujeito “você” (infância, pureza) não tem sanção explícita no texto por sua fuga, já que a sua partida não é reconhecida pelo sujeito julgador como uma quebra de contrato. Todavia, o sujeito manipulador tem o segredo revelado, atinge, mesmo sem querer, a maturidade, toma consciência da repressão (noite) existente no mundo, e passa a viver preso em seu quintal, pois, após as suas fronteiras há “uma noite que não tem mais fim”, há o desconhecido, a falta da inocência e as incertezas da vida, há o exílio, a tortura. A última etapa do percurso gerativo é o nível das estruturas discursivas, as quais devem ser analisadas do ponto de vista das relações que se instauram entre a instância da enunciação, responsável pela produção e pela comunicação do discurso, e o texto-enunciado. A fim de criar a ilusão de verdade (verossimilhança ou simulacro), em João e Maria, tem-se um narrador em primeira pessoa (“eu”), obtendo-se um efeito enunciativo de subjetividade, portanto, proximidade. Além disso, utiliza-se o advérbio indicativo de tempo presente “agora” e o verbo ser no pretérito imperfeito, criando um passado que é presente, um passado de brincadeira, de faz-de-conta, um imperfeito feito para brincar, como se faz nos contos infantis ao se criar um momento temporal que só se faz possível na imaginação “Era uma vez...”, como forma de fuga à realidade de repressão. Ainda neste terceiro e último nível, as oposições fundamentais, assumidas como valores narrativos, desenvolvem-se em temas e concretizam-se por meio de figuras. No texto em análise, pode-se identificar várias leituras temáticas: a) A infância; b) A coragem; c) O governo militar; d) A censura; e) A pureza; f) O medo; 70 g) O exílio; h) As incertezas. As leituras temáticas abstratas são concretizadas pelos investimentos figurativos, caracterizados pela oposição de traços sensoriais, espaciais e temporais que separam a inocência da maturidade. a) A infância pode ser observada nas figuras do herói, do cawboy, do bodoque, das matinês, da princesa, do brinquedo, do pião, do bicho preferido e o dar a mão, contrastando com as figuras do fim do faz-de-conta e do quintal que agora é limitado por uma noite, oposto aos quintais sem fronteiras, sem muros, sem limites da imaginação infantil; b) A coragem, própria dos inocentes, é percebida na figura daquele que enfrenta os “batalhões”, “os alemães e seus canhões” apenas com um bodoque, contrastando com o medo descoberto na maturidade; c) O governo militar é figurativizado por um rei que é ao mesmo tempo bedel e juiz, que cria, guarda e sanciona as próprias leis, que obriga até mesmo a ser feliz, contrastando com a figura da felicidade inocente; d) A censura é observada na figura de um rei que vigia, que pune e que obriga a uma felicidade, em contraste a uma princesa que anda nua pelo país, uma princesa inocente, sem a malícia da maturidade que a faria tapar as “suas vergonhas”, esconder as suas verdades; e) A pureza, composição da inocência, encontra-se figurativizada em uma princesa nua, no pedido de dar-se as mãos, em contraste com a maldade e com o fingir; f) O medo, próprio daquele que já atingiu maturidade suficiente para perceber a maldade e as punições, é trazido na figura da noite que não deixa enxergar a vida de maneira nítida, que impõe barreiras, contrastando com a figura inocente do herói e do cawboy que tudo enfrentam de maneira destemida; 71 g) O exílio aproxima-se tanto da inocência como da maturidade. Nas figuras da fuga e do sumiço, tem-se aquele que é maduro o suficiente para querer fugir e aquele que inocente o suficiente para pedir para ficar, enfrentar e, enfim, sumir (morrer, ser preso, desaparecer nos porões da ditadura); h) As incertezas da vida madura estão figurativizadas na imagem do louco que não sabe o que mais a vida o trará (se a inocência de volta ou se mais medo) em contraste com a inocência infantil que quer ser tudo ao mesmo tempo agora. Esta análise tem como objetivo esboçar, de maneira geral, como estão articuladas as três etapas do percurso gerativo de sentido e como a semiótica utiliza-se dele para a leitura dos textos. A partir de então é realizada uma análise mais detalhada de cada nível. 2.1.1 O nível fundamental O nível fundamental é a primeira etapa do percurso, a mais simples e abstrata – nele surge a significação como uma oposição semântica mínima. Nesse nível, o mais profundo da gramática sêmio-narrativa, é preciso determinar a oposição ou as oposições semânticas a partir das quais se constrói o sentido do texto. No nível das estruturas fundamentais, os sentidos do texto são interpretados como um antagonismo semântico e seus termos são afirmados ou negados, são determinados pelas relações sensoriais do ser vivo com os conteúdos e considerados atraentes ou eufóricos e repulsivos ou disfóricos. a) Sintaxe fundamental De acordo com Greimas e Courtés (2008, p.474), 54 A sintaxe fundamental constitui, com a semântica fundamental, o nível profundo da gramática semiótica e narrativa. Presume-se que ela dê conta 54 Grifos do autor. 72 da produção, do funcionamento e da apreensão das organizações sintagmáticas chamadas discursos, tanto os pertencentes à semiótica lingüística como à não-lingüística. Ela representa, pois, a instância a quo do percurso gerativo desses discursos. Essa sintaxe é taxionômica e operatória, pois procura dar conta, ao mesmo tempo, do modo de existência e do modo de funcionamento da significação. E pode ser ilustrada da seguinte forma: o termo “contradição” designa, ao mesmo tempo, uma relação entre dois termos e a negação de um termo que provoca o aparecimento de outro. [...] Para conhecer, é necessário primeiramente negar. [...] A negação é a primeira operação pela qual o sujeito funda-se como sujeito operador e funda o mundo como cognoscível. [...] Com efeito, o mundo como valor oferecia-se inteiro ao sentir do sujeito tensivo; mas para conhecê-lo é preciso parar o desfile contínuo, isto é, generalizar o “encerramento” – essa é, pois, a fonte da primeira negação - , cercar uma zona, somar um lugar, ou seja, negar o que não é esse lugar. [...] Sem a contradição, a somação determinaria apenas uma pura singularidade no contínuo tensivo e fracassaria em fazer advir a significação [...] (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p.38-39). O modelo taxionômico é, ao mesmo tempo, formulado em termos de lógica qualitativa e é representado sob a forma de um quadrado semiótico, constituindo, assim, um espaço organizado que comporta termos interdefinidos sobre os quais podem efetuar-se as operações sintáticas que dão lugar ou a combinações sintáticas novas ou a seqüências sintáticas ordenadas. As operações sintáticas fundamentais são de negação e asserção. A negação produz termos contraditórios, enquanto a asserção reúne os termos situados no eixo dos contrários e dos subcontrários. Desse modo, a sintaxe fundamental “é puramente relacional e, simultaneamente, conceitual e lógica, pois, os termossímbolos de sua taxionomia se definem como interseções de relações, ao passo que as operações são apenas atos que estabelecem relações” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p. 475). Assim, pode-se representar o quadrado semiótico da seguinte forma: (FIGURA 02) 73 S1 --------------------------------------------------- S2 S2 ----------------------------------------------------------------------- S1 ---------------------- relação de contrariedade relação de contradição relação de complementaridade Pode-se observar que os termos da categoria S1 e S2 mantêm entre si relação de oposição por contraste dentro de um mesmo eixo semântico, podendo, cada um deles, projetar por uma operação de negação um novo termo que é seu contraditório (S1 e S2). Vale ressaltar que só se pode pensar em estrutura elementar quando S 1 e S2 ocuparem pontos opostos no interior de um mesmo eixo semântico. Retomando como ilustração o texto João e Maria utilizado no item anterior, pode-se construir o seguinte quadrado semiótico: (FIGURA 03) Inocência/Liberdade ------------------------------------- Maturidade/Repressão Não-maturidade/ ------------------------------------------------ Não-inocência/ Não-repressão Não-Liberdade Nota-se que inocência/liberdade e maturidade/repressão são termos de uma mesma categoria semântica e que o modelo do quadrado semiótico define seis dimensões: 74 dois eixos: S1 + S2 e S1 + S2 dois esquemas: S1 + S1 e S2 + S2 duas dêixis: S1 + S2 e S2 + S1 (BARROS, 1988, p.22). O quadrado semiótico é a representação lógica de uma categoria semântica. O eixo paradigmático da linguagem é caracterizado pela distinção de oposição entre dois termos. Partindo da oposição S / não-S em um dado eixo semântico, contrai-se novamente uma nova relação do tipo S / S, definida pela impossibilidade que têm os dois termos de se apresentarem juntos, denominada relação de contradição. Desta forma, é a relação de negação efetuada sobre o termo S ou não-S que gera o seu contraditório S ou não-S. E, a partir dos termos primitivos, pode-se gerar dois novos termos contraditórios. Outra operação é a de asserção. Esta é efetuada sobre os termos contraditórios S ou não-S e faz aparecer os dois termos primitivos como pressupostos dos termos asseverados (S ›não-S; não-S › S), assim, se essa dupla asserção produz essas duas implicações paralelas, pode-se dizer que os dois termos primitivos pressupostos pertencem a uma mesma categoria semântica, esta é, então, uma relação de complementaridade. Os dois termos primitivos pressupostos também contraem uma relação de pressuposição recíproca, ou seja, uma relação de contrariedade. Assim, o quadrado semiótico, por meio da reformulação das relações em operações, responde também pela representação dinâmica da estrutura elementar. (FIGURA 04) S1 S1 S2 S2 Inocência não-maturidade Maturidade não-inocência 75 Operação de asserção. Operação de negação. Tais operações realizadas no quadrado semiótico negam um conteúdo e afirmam outro, concebendo a significação e tornando-a passível de narrativização. Portanto, duas tarefas lhe foram confiadas: a de modelo constitucional, ou seja, ponto de partida do percurso de geração de todo discurso, seja ele linguístico ou não; e a de representar as relações semânticas na dimensão paradigmática, sintagmatizando-as pelas relações orientadas em qualquer etapa da descrição, pois pertence ao nível metalingüístico da semiótica. b) Semântica Fundamental A semântica fundamental tem caráter abstrato e, junto com a sintaxe fundamental, constitui o ponto inicial da geração do discurso. É instituído por estruturas elementares da significação que podem ser formuladas como categorias semânticas passíveis de serem articuladas no quadrado semiótico. Em um primeiro momento, considera-se que uma única categoria semântica é suficiente para ordenar e produzir um único microuniverso de discurso, mas duas categorias semânticas distintas, tomadas como esquemas do quadrado semiótico podem também gerar um discurso inovador. Pode-se também prever que uma única categoria, que rege um microuniverso, domine outras categorias que lhes são subordinadas de forma hierárquica. Vale ressaltar que um universo semântico pode articular-se como individual (uma “pessoa”) ou social (uma “cultura”). A semântica fundamental é, então, uma taxionomia de categorias sêmicas, aptas a serem exploradas pelo sujeito da enunciação, como outros tantos sistemas axiológicos virtuais (ainda sem relação com o sujeito, pois a atualização só ocorre na semântica narrativa, quando esses valores são assumidos por um sujeito, passando de valor virtual para atualizado). Essa estrutura axiológica elementar, de ordem paradigmática, é sintagmatizada devido às operações sintáticas que fazem com que seus termos efetuem percursos previsíveis no quadrado semiótico. E, portanto, pela projeção da categoria tímica 76 /euforia/ X /disforia/ sobre o quadrado que as articula, as categorias semânticas podem ser axiologizadas. Sobre a foria, Greimas (1993, p.19) explica: Tudo se passa como se outra voz se elevasse repentinamente para dizer sua própria verdade, para dizer as coisas de outro modo. Enquanto o corpo humano desempenhava, na percepção, o papel de instância de mediação, isto é, de lugar de transação entre o êxtero e o introceptivo, instaurando um espaço semiótico tensivo mas homogêneo, é a carne viva, a propioceptividade “selvagem” que se manifesta e reclama seus direitos como o “sentir” global. Não é mais o mundo natural que vem em direção ao sujeito, mas o sujeito que se proclama mestre do mundo, seu significado, e o reorganiza figurativamente a seu modo. O mundo dito natural, o do sentido comum, torna-se então o mundo para o homem, mundo que se poderia dizer humano. Esse “entusiasmo” que, segundo Diderot, sobe calorosamente das entranhas para abafar-se na garganta, é evidentemente um caso-limite, mas nos é necessário para dar conta, entre outros, da criação artística, e também de todos os excessos semióticos da cólera e do desespero; além disso, ele explica, moderato contabile, o desdobramento da figuratividade, o carater “representacional” de toda manifestação passional, em que o corpo afetado torna-se, graças a seu poder figurativo, o centro de referência da encenação passional inteira. É esse aquém do sujeito da enunciação, esse substituto pertubador, que designamos de foria. Sendo assim, categoria tímica é a categoria primitiva que considera o ser vivo como um sistema de atrações e repulsões e assim, procura formular como todo ser vivo, em um dado contexto, sente-se e reage ao seu meio. Desta maneira, euforia é o termo positivo da categoria tímica que serve para valorizar os microuniversos semânticos, transformando-os em axiologias; euforia se opõe a disforia; a categoria tímica comporta, além disso, um termo neutro, 55 aforia. (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.192). E, disforia é o “termo negativo da categoria tímica, que serve para valorizar os microuniversos semânticos – instituindo valores negativos – e para transformá-los em axiologias” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.149) Consequentemente, é eufórica a relação de conformidade do ser-vivo com o meio ambiente e disfórica a não-conformidade. No texto de Chico Buarque, João e Maria, a categorias semântica geradora é axiologizada: a inocência é eufórica, em oposição à maturidade que é disfórica. Passando-se, desta forma, da euforia para a disforia em um texto disforizante. (FIGURA 05) 55 Grifos dos autores 77 Euforia { S1 inocência/Liberdade S2 maturidade/Repressão } Disforia S1 não-inocência } Não-disforia É a partir da aplicação do tímico sobre o narrativo e os valores axiológicos resultantes que são constituídos os sistemas de valores virtuais, os quais são explorados pelo sujeito da enunciação. E, é também a partir desta aplicação da categoria tímica sobre o narrativo, que são explicadas, no nível narrativo, as articulações modo-passionais regentes das relações entre os sujeitos e os objetos. Isto porque é a categoria tímica que está por baixo das organizações modais que definem as paixões. Zilberberg (1981) propõe a categoria da tensividade /tensão/ vs /relaxamento/. De acordo com Barros (1988, p.26): A categoria da tensividade poderá levar a melhor categorizar a categoria tímica /euforia/ vs /disforia/, responsável, como foi visto, pela axiologização das categorias semânticas fundamentais. A categoria tímica será redefinida como categoria fórica. A troca de nomes, de timia para foria, explicita o caráter articulador da categoria, a ser entendida, a partir daí, não só pela oposição tímica de /bem, benéfico (eu-)/ vs /mal, maléfico (dis-), mas também pela relação de /tenso/ vs /relaxado/. A euforia define-se, assim, como uma tensão decrescente e um relaxamento crescente; a disforia, como aumento de tensão e diminuição de relaxamento. (FIGURA 06) (FIGURA 07) Tensão Relaxamento Disforia Intensão Distensão Não-euforia Euforia Não-disforia 78 (FIGURA 08) Inocência/Liberdade Relaxamento Euforia Maturidade/Repressão Tensão Disforia Não-maturidade Não-repressão Distensão Não-disforia Não-inocência/ Não-liberdade Intensão Não-euforia Para Zilberberg (1981), a tensividade é uma categoria própria do ser-vivo, do seu encontro com o objeto, homologando a foria ao princípio do prazer de Freud, à pulsão. Então, a variação e a conservação tensiva são organizadoras dos conteúdos das estruturas no nível fundamental à medida em que correspondem à categoria tímico/fórica, a qual determina o descritivo e o transforma em axiológico, e ajudam na passagem de um nível semiótico a outro. Ou seja, [...] a saber que os universos de valores são secretamente regidos no espaço tensivo por dois grandes tipos de valências: as valências de intensidade, que modulam as energias em conflito, e as valências quantitativas, que modulam notadamente as propriedades merológicas da percepção. Os dois grandes regimes axiológicos assentam na correlação inversa ou conversa desses dois gradientes. Identificamos a exclusãoconcentração, regida pela triagem, e a participação-expansão, regida pela mistura, como as duas principais direções capazes de ordenar os sistemas de valores (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p.49). Portanto, cada fase de concentração gera um deslocamento na escala da quantidade e cada “abertura” (ultrapassagem de uma fronteira) ocorre ao preço de uma queda de intensidade. Sendo assim, a avaliação é positiva quando a intensidade aumenta e a extensidade diminui e negativa quando a intensidade enfraquece e a extensidade aumenta. Já no regime da “importância” dos valores é função de sua extensão: a avaliação é positiva quando a extensidade e a intensidade estão no nível mais alto e negativa quando estão ambas no nível mais baixo. E, dessa maneira, Esse tipo de desdobramento do sujeito em sujeito-que-percebe e sujeitoque-sente – talvez um pouco “figurado” demais – pareceu-nos, no entanto, 79 necessário para justificar os disfuncionamentos do discurso, os transes do sujeito, apropriando-se e metaforizando não apenas o mundo, mas também a existência, por um fio tênue, a fidúcia intersubjetiva, que sustenta a veridicção discursiva. Essa passagem obrigatória pela instância da enunciação permite, então, operar a transferência da problemática do nível epistemológico profundo àquele que poderá inscrever-se no horizonte ôntico como “simulacro fórico”, regendo o percurso gerativo. [...] Isso permite circunscrever o espaço teórico da semiótica a duas precondições, modelando-as sob a forma de dois simulacros, tensivo e fórico, e conceber 56 a tela do “ser” como uma tensividade fórica (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 20). Considerando, então, o componente passional do discurso, a teoria semiótica é conduzida a ajustamentos que ressoam nos seus patamares mais profundos. E, desse ponto, vai-se retornando à superfície, progressivamente, observando a validade das premissas e dos instrumentos metodolódgicos. 2.1.2 O nível narrativo Na passagem do nível fundamental para o nível narrativo, podem-se reconhecer alguns elementos: as operações da sintaxe fundamental transformam-se em enunciados do fazer que regem enunciados de estado, devido ao sujeito do fazer. Portanto, as operações lógicas da sintaxe fundamental são substituídas por sujeitos do fazer e definem sujeitos de estado pela junção com objetos-valor, simulando a relação básica do homem com o mundo. A partir dessa conversão semântica, os valores virtuais (ainda não assumidos por um sujeito) são selecionados e atualizados no nível narrativo. Essa atualização acontece quando os valores são inseridos nos objetos, que se tornam objeto-valor, e na relação de junção dos objetos-valor com os sujeitos. Assim, os valores axiológicos virtuais transformam-se em valores ideológicos, assumidos por um sujeito pela seleção no interior dos sistemas axiológicos. Desse modo, a narrativa se configura pela mudança de estados operada pelo fazer transformador de um sujeito que age no e sobre o mundo em busca de valores investidos nos objetos; sucessão de estabelecimentos e de rupturas de contratos 56 Grifo dos autores. 80 entre um destinador e um destinatário, de que decorrem a comunicação e os conflitos entre sujeitos e a circulação de objetos. a) Sintaxe narrativa A sintaxe narrativa deve ser entendida como um espetáculo, um simulacro do fazer do homem que transforma o mundo. De acordo com Greimas e Courtés (2008, p. 475-477): Ao contrário do que sucede no nível da sintaxe fundamental, que descreve um conjunto de operações efetuadas sobre termos, a forma geral da sintaxe de superfície é a de uma manipulação de enunciados. Recorrendo a uma imagem analógica que é apenas parcialmente adequada, poder-se-ia dizer que a passagem do nível da sintaxe profunda ao da sintaxe de superfície corresponde, grosso modo, à passagem da lógica de classes à lógica das proposições. A construção de um modelo sintático implica certo número de opções teóricas (epistemológicas e metodológicas), das quais depende, em definitivo, a forma que será impressa ao mesmo. A primeira dessas opções consiste na escolha das unidades que a sintaxe será levada a manipular: enquanto as gramáticas categoriais optam pelas classes morfológicas, enquanto as gramáticas transformacionais escolhem as classes sintagmáticas (tomadas, aliás, à análise distribucional), nós optamos pelas classes sintáticas (tradicionalmente chamadas de funções sintáticas), que consideramos hierarquicamente superiores às precedentes, deixando a cargo dos níveis sintáticos mais superficiais – como o da discursivização e o da textualização – a tarefa de prescrever a integração das classes morfológicas e sintagmáticas. a.1) Enunciado elementar A concepção greimasiana de enunciado é relacional, pois considera o enunciado como uma expansão relacional do predicado que projeta, como termos resultantes da relação, os actantes. O enunciado narrativo elementar é, então, uma relaçãofunção entre pelo menos dois actantes. O enunciado elementar tem como relação característica a de transitividade, que comporta um investimento semântico mínimo e que define, dando-lhes existência, o actante sujeito e o actante objeto. Essa relação de transitividade apresenta duas diferentes funções: a junção e a transformação, e duas formas canônicas de enunciados elementares: enunciado de estado e enunciado de fazer, sendo que o 81 enunciado de fazer rege o enunciado de estado do mesmo modo que as transformações operam sobre as relações. Junção é a relação que une o sujeito ao objeto, ou seja, a função constitutiva dos enunciados de estado. Se for observada como eixo semântico, essa categoria se desenvolve, de acordo com o quadrado semiótico, em: (FIGURA 09) Conjunção Não-disjunção Disjunção Não-conjunção È a posição do objeto-valor no percurso sintático que permite a distinção, por exemplo, entre disjunção (objeto que nunca foi possuído) e não-conjunção (pressuposição de que o objeto já foi possuído em algum momento). Logo, disjunção é a relação de não posse do objeto-valor por parte do sujeito, contraditória à conjunção que é a relação de posse do objeto-valor por parte do sujeito. Com isso, pode-se perceber que o estado de disjunção não implica em uma não relação do sujeito com o objeto, mas numa relação de separação daquele com este. Até porque, o sujeito não existe semântica nem semioticamente se não for determinado pela relação transitiva com o objeto. Se esta relação for a de disjunção, são chamados de sujeitos e objetos atualizados, se a relação for de conjunção são chamados de sujeitos e objetos realizados. Antes da relação de junção, os sujeitos são chamados virtuais. O objeto-valor é constituído quando o objeto, enquanto objeto sintático, está em uma posição em pode receber investimentos de projetos do sujeito (objeto do fazer) e de suas determinações (objeto do estado). Assim, os enunciados de fazer são os responsáveis por operar a passagem de um estado de junção a outro, ou seja, de um estado conjuntivo a um estado disjuntivo e vice-versa. 82 Partindo do texto Minha História, uma versão de Chico Buarque (1970) para Gesú Bambino de Dalla – Palotino, analisar-se-á a relação de transitividade, característica do enunciado elementar, e as suas duas funções: a de junção e a de transformação. Minha História Ele vinha sem muita conversa, sem muito explicar Eu só sei que falava e cheirava e gostava de mar Sei que tinha tatuagem no braço e dourado no dente E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe Esperando, parada, pregada na pedra do porto Com seu único velho vestido cada dia mais curto Quando enfim eu nasci minha mãe embrulhou-me num manto Me vestiu como se eu fosse assim uma espécie de santo Mas por não se lembrar de acalantos, a pobre mulher Me ninava cantando cantigas de cabaré Minha mãe não tardou a alertar toda a vizinhança A mostrar que ali estava bem mais que uma simples criança E não sei bem se por ironia ou se por amor Resolveu me chamar com o nome do Nosso Senhor Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo Quando vou bar em bar, viro a mesa, berro, bebo e brigo Os ladrões e as amantes, meus colegas de copo e de cruz Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus. Em Minha História, a categoria semântica fundamental é reconhecer vs desconhecer. Em que o reconhecer é eufórico e o desconhecer é disfórico. O menino cresce sem conhecer o pai porque nem ele, nem a sua mãe foram por este reconhecidos. Desta forma, os valores de reconhecimento estão investidos nos objetos: homem/marido, figura paterna e sobrenome paterno. Tem-se então: 1) Enunciado de estado... F junção (S,O) “E minha mãe se entregou a esse homem perdidamente” S (mãe) ∩ O (homem/marido) => o sujeito mãe estava em conjunção com o objeto homem. 83 2) Enunciado de transformação ... F transformação (S,O) “Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde” 3) Enunciado de estado ... F junção (S,O) “E deixou minha mãe com o olhar cada dia mais longe Esperando, parada, pregada na pedra do porto Com seu único velho vestido cada dia mais curto” S (mãe) U O (homem/marido) => o sujeito mãe entra em disjunção com o objeto homem/marido. S (criança) U O (figura paterna/ sobrenome paterno) => o sujeito criança entra em disjunção com os objetos figura paterna e sobrenome paterno (“Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus”). Logo, em Minha história, seguem-se estados de conjunção e de disjunção do sujeito com os objetos-valor (homem/marido, figura paterna / nome), tendo sido as mudanças provocadas por enunciados do fazer. A figura homem/marido está com a mãe; a figura homem/marido abandona a mãe grávida; a criança fica sem a figura paterna e sem sobrenome paterno. a.2) O programa narrativo O programa narrativo (PN) é um sintagma elementar da sintaxe narrativa. É constituído de um enunciado de fazer que rege um enunciado de estado. Pode ser representado sob as formas: PN = F [ S1 → ( S2 ∩ OV)] PN = F [ S1 → ( S2 U OV)] F = função → = transformação S1 = Sujeito do fazer S2 = Sujeito do estado ∩ = conjunção U = disjunção OV = Objeto-valor 84 Ao transformar estados, o sujeito do fazer altera a junção do sujeito do estado com os valores e, portanto, afeta-o. É possível citar como exemplos de programas narrativos: PN1 = F (relacionar-se com a mulher) [S1 (homem) → (S2 (mulher) ∩ OV (homem/marido))] PN2 = F (deixar de relacionar-se com a mulher) [S1 (homem) → (S2 (mulher) U OV (homem/marido))] [S1 (homem) → (S2 (criança) U OV (figura paterna))] PN3 = F (ter um filho sozinha) a) [S1 (mulher) → (S2 (mulher) U OV (homem/marido))] b) [S1 (mulher) → (S2 (criança) U Ov (figura paterna))] PN4 = F (dar um nome) [S1 (homem) → (S2 (criança) U OV (sobrenome paterno))] O enunciado que rege outro enunciado é um enunciado modal, o enunciado regido é descritivo. Desta forma, o enunciado de fazer é modal e o enunciado de estado é descritivo. Há diferentes tipos de programa narrativo, de acordo com: 1) A natureza da junção: conjunção ou disjunção. Se a transformação resulta em conjunto do sujeito com o objeto, tem-se um programa de aquisição do objeto-valor, como é o exemplo do PN1. Se a transformação resulta em disjunção do sujeito com o objeto, o programa é de privação do objeto valor, como é o caso dos programas: PN2, PN3 (a e b), PN4. 2) O valor investido no objeto: modal ou descritivo. Os valores podem ser modais como dever, querer, poder e saber ou descritivos (nome, pai, liberdade, infância). Nos programas analisados foram apresentados como programas de valores descritivos, homem/marido, figura paterna e sobrenome paterno, porém, ao analisálos com mais profundidade, percebe-se que o homem leva a mulher a dever ter um 85 filho sem a figura do marido (“Ele assim como veio partiu não se sabe pra onde”) e a sociedade leva a criança a querer ter o sobrenome paterno (“Me conhecem só pelo meu nome de Menino Jesus”). 3) A complexidade do programa narrativo: simples ou complexo.. Em geral, os programas narrativos são complexos, ou seja, constituídos de mais de um programa hierarquizado, havendo um programa narrativo de base e programas secundários. No caso do texto em análise, o programa narrativo de base é o PN2. 4) A relação entre os sujeitos, actantes narrativos, e os atores discursivos: O sujeito do estado e o do fazer podem ser assumidos por um único ator, o que caracteriza um programa reflexivo (PN3a), ou por atores diferentes ( PN1, PN2, PN3b, PN4). Existem dois tipos fundamentais de programas narrativos baseados nos critérios acima levantados: a competência e a performance. A competência é a doação de valores modais, enquanto a performance é a apropriação de valores descritivos. Assim em: F [ S1 → ( S2 U OVd)] Ex.: F (ter um filho sozinha) [S1 (mulher) → (S2 (mulher) U OVd (homem/marido))] Tem-se a representação da performance em que S1 = S2, ou seja, o sujeito do estado e o da transformação são desempenhados pelo mesmo ator e o valor é descritivo. Já em: F [ S1 → ( S2 U OVm)] Ex.: F (ter um filho sozinha) [S1 (homem) → (S2 (mulher) U OVm (dever-fazer))] Tem-se a competência em que S1 ≠ S2, ou seja, os sujeitos do estado e da transformação são diferentes e o valor é modal. Portanto, a performance faz-ser e, na competência, doa-se os valores modais ao sujeito do estado, tornando-o capaz para agir, viver as paixões. A competência são as condições necessárias à realização da performance. Caracteriza-se como a organização hierárquica de valores modais em que o quererfazer ou o dever-fazer regem o poder-fazer e/ou o saber-fazer. 86 No que tange à performance, há as performances de aquisição de valores (como a que foi apresentada anteriormente), quando os objetos em que estão investidos os valores já existem e circulam entre os sujeitos, e as performances de construção de objetos ainda não existentes, para serem lugares de investimentos dos valores visados. Como por exemplo, o texto Boi voador não pode de Chico Buarque (1972/1973): Quem foi, quem foi Que falou no boi voador Manda prender esse boi Seja esse boi o que for O boi ainda dá bode Qual é a do boi que revoa Boi realmente não pode Voar à toa É fora, é fora, é fora É fora da lei, é fora do ar É fora, é fora, é fora Segura esse boi Proibido voar Em que o sujeito da transformação “constrói” a imagem do boi voador para imprimir o valor da liberdade. O segundo passo da análise narrativa está em descrever e explicar a organização dos programas narrativos, ou seja, em traçar o percurso narrativo. a3) Percurso narrativo O percurso narrativo é uma seqüência lógica de programas narrativos relacionados por pressuposição. “É uma progressão de um ponto a outro, graças a instâncias intermediárias” (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.362). O encadeamento lógico de um programa de competência e de performance constitui, por exemplo, um percurso narrativo denominado percurso do sujeito. E, o sujeito do estado, o sujeito do fazer e o objeto serão redefinidos no interior do percurso narrativo como papéis actanciais. Esses papéis actanciais dependem da posição que os actantes sintáticos, ou o programa de que fazem parte, ocupam no percurso (sujeitos competentes e sujeitos realizados), e da natureza dos objetos- 87 valor com quem estabelecem relação de junção (sujeitos do querer, ou sujeitos do saber). Se os percursos são definidos pelo encadeamento de programas narrativos, emprega-se, para denominá-los, a noção de actante funcional. A caracterização do sujeito depende de algumas determinações mínimas, como: ser o sujeito de estado afetado pelo programa da competência e ser o sujeito realizador da performance, ou pelo menos, adquirir a competência para realizá-la.. Os outros papéis actanciais farão com que o sujeito seja diferente em cada texto, basta observar que o “eu” do texto João e Maria não cumpre o mesmo papel actancial que a “mãe” no texto Minha história, mas ambos são sujeitos em seus textos. Na organização narrativa, não há apenas o percurso do sujeito. Existem também o percurso do destinador-manipulador e o percurso do destinador-julgador. [...] O destinador-manipulador é a fonte dos valores, ou melhor, é quem determina os valores que serão visados pelo sujeito ou o valor dos valores – competência semântica do sujeito – e quem dota o sujeito dos valores modais necessários ao fazer – competência, modal do sujeito. Manipulação e competência são correlativos, ou seja, são pontos de vista diferentes sobre o programa de aquisição por doação. Na manipulação, adota-se a perspectiva do sujeito do fazer; na competência, a do sujeito do estado que “recebe” os valores modais (BARROS, 1988, p.37). A manipulação cognitiva (dotação de competência semântica) deve ser entendida como um contrato fiducitário, ou seja, de crença, em que o destinador, por persuasão, busca a adesão do destinatário. Dessa forma, o manipulador transforma o sujeito, modificando as suas determinações semânticas e modais, faz-fazer, representando a ação do homem sobre o homem. Assim, “na fase da manipulação, um sujeito age sobre o outro para levá-lo a querer e/ou dever fazer alguma coisa”. (FIORIN, 2006, p.29) Existem quatro grandes tipos de manipulação: a provocação, a sedução, a tentação e a intimidação. Para explicá-los, utilizaremos como ilustração o texto Teresinha, de Chico Buarque (1978). O primeiro me chegou Como quem vem do florista Trouxe um bicho de pelúcia Trouxe um broche de ametista Me contou suas viagens 88 E as vantagens que ele tinha Me mostrou o seu relógio Me chamava de rainha Me encontrou tão desarmada Que tocou meu coração Mas não me negava nada E, assustada, eu disse não O segundo me chegou Como quem chega do bar Trouxe um litro de aguardente Tão amarga de tragar Indagou o meu passado E cheirou minha comida Vasculhou minha gaveta Me chamava de perdida Me encontrou tão desarmada Que arranhou meu coração Mas não me entregava nada E, assustada, eu disse não O terceiro me chegou Como quem chega do nada Ele não me trouxe nada Também nada perguntou Mal sei como ele se chama Mas entendo o que ele quer Se deitou na minha cama E me chama de mulher Foi chegando sorrateiro E antes que eu dissesse não Se instalou feito um posseiro Dentro do meu coração. Quando o destinador-manipulador apresenta ao destinatário-manipulado uma recompensa, ou seja, um objeto que tenha para este manipulado um valor positivo, com a finalidade de levá-lo a fazer algo, dá-se uma tentação. Neste tipo de manipulação, o destinador mostra, por meio dos objetos de valor positivo, que detém o poder, para levar o manipulado a querer-fazer. É o que pode ser constatado nos primeiros versos do texto Teresinha, nos quais o manipulador oferece a Teresinha (manipulado) objetos que representam culturalmente valor positivo como: bicho de pelúcia, broche de ametista, viagens, vantagens, relógio. Porém, para Teresinha, especificamente, estes objetos não têm a representação positiva o suficiente para levá-la a querer-fazer o que o seu manipulador deseja, ou seja, entregar-se a ele. Ainda este primeiro sujeito-manipulador apresenta um outro tipo de manipulação. Ao chamá-la de rainha, o manipulador tenta seduzi-la persuadindo pelo saber de uma imagem positiva do destinatário (Teresinha) para levá-lo a querer-fazer alguma 89 coisa. Este primeiro manipulador também não é feliz neste tipo de manipulação, pois o sujeito-manipulado não se reconhece na imagem que o manipulador faz dele. Diferente do primeiro manipulador, o terceiro consegue por meio da manipulação por sedução levar o sujeito-manipulado a fazer o que ele deseja. Ao chamá-la de mulher, este último manipulador faz com que o manipulado reconheça-se na imagem que é feita dele e queira entregar-se. O segundo destinador tenta manipular Teresinha através da intimidação e da provocação. Ao trazer uma aguardente amarga, indagar sobre o passado, cheirar a comida e vasculhar as gavetas, este manipulador invade a vida de Teresinha, mostrando-se ameaçador, aparentando que pode algo de negativo por sobre a vida do sujeito-manipulado, querendo levar o destinatário a dever-fazer algo. Ao chamála de perdida, o manipulador constrói uma imagem negativa de Teresinha, provocando-a, pretendendo levá-la a querer entregar-se a ele. Nenhuma das duas manipulações funciona neste texto, pois tanto a intimidação, quanto a provocação acabam por assustar o sujeito manipulado, o qual acaba por não reagir da forma pretendida pelo destinatário. Dessa maneira, de acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p. 263-265): Se a confiança tem por verbo pivô crer, o campo da fidúcia se torna também o da fé, isto é, da relação entre destinador e destinatário. Mas como o crer remete a um fazer-crer, os papéis temáticos do tolo e do trapaceiro, tais como aparecem na literatura antiga e notadamente no teatro, chamam também a atenção, como se a trapaça e a astúcia fossem, diante dos privilégios do poder, instrumentos, programas de uso de uma justiça imanente: já que o mestre dispõe legalmente do monopólio da força, o trapaceiro recebe aplausos de um público cuja simpatia soube conquistar. [...] consiste talvez em conseguir admitir que o crer se mantém à custa de constantes deslocamentos e dissimulações... [...] Essa definição baseia-se num dispositivo de três actantes: um objeto e dois sujeitos, em que o valor do objeto seria condicionado por uma certa relação entre os dois sujeitos. A fidúcia seria, desse ponto de vista, um espaço de acolhimento das valências, concebidas como “condições do valor”. Portanto, a manipulação só será bem sucedida se o manipulado compartilhar do mesmo sistema de valores do manipulador, pois, o bom funcionamento da manipulação depende de uma certa cumplicidade entre manipulador e manipulado. 90 O último percurso é o do destinador-julgador, ou seja, o da sanção. É o encadeamento lógico de programas narrativos, um responsável pela sanção cognitiva (reconhecimento do “herói” e desmascaramento do “vilão”), e o outro responsável pela sanção pragmática (recompensa ou punição). Sendo que a sanção pragmática pressupõe a cognitiva e ambas são caracterizadas como programas de doação de valores modais e descritivos modificadores do ser do sujeito. Cabe ao sujeito-julgador verificar se o sujeito cumpriu o compromisso assumido no momento da performance. No texto Quem te viu, quem te vê, de Chico Buarque (1966), podese perceber o percurso do sujeito julgador. Quem te viu, Quem te vê (1966) Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala Você era a favorita onde eu era mestre-sala Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua Hoje o samba saiu procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer Quando o samba começava, você era a mais brilhante E se a gente se cansava, você só seguia adiante Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado Hoje o samba saiu procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer O meu samba se marcava na cadência dos seus passos O meu sono se embalava no carinho dos seus braços Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão Hoje o samba saiu procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer Todo ano eu lhe fazia uma cabrocha de alta classe De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia Quem brincava de princesa acostumou na fantasia Hoje o samba saiu procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria 91 Quero que você assista na mais fina companhia Se você sentir saudade, por favor não dê na vista Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista Hoje o samba saiu procurando você Quem te viu, quem te vê Quem não a conhece não pode mais ver pra crer Quem jamais a esquece não pode reconhecer. Nesse texto, o sujeito-julgador atribui sanção à cabrocha. Cabrocha é um termo folclórico que quer dizer mulata que sabe dançar ou batucar57. O sujeito-julgador foi quem doou as competências para que a cabrocha se tornasse a favorita, fazia o samba para que ela sambasse, dava-lhe alta classe, vestia-lhe de dourado para que o povo admirasse. Porém, o reconhecimento ocorre sob a forma de desmascaramento: a cabrocha parecia cumpridora dos compromissos assumidos com o mestre-sala/sambista, mas não o era, o que pode ser observado em trechos como: “Hoje a gente nem se fala, mas a festa continua/Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua”; “Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado/Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado”; “Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia/Quem brincava de princesa acostumou na fantasia”. O sujeito julgador até lhe oferece a possibilidade de um retorno: “Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão/Pra lembrar que sobra espaço no barraco e no cordão”, porém ela não retorna nem para o amor, nem para o samba da rua. Assim, o sujeito-julgador a reconhece como mentirosa e aplica-lhe a sanção cognitiva, o desmascaramento: “Hoje o samba saiu procurando você/Quem te viu, quem te vê/Quem não a conhece não pode mais ver pra crer/Quem jamais a esquece não pode reconhecer”. A cabrocha não é mais quem era, está irreconhecível, acreditou que era princesa e negou o samba da rua, desta maneira, recebe como sanção pragmática a negação da possibilidade de sentir saudade, a negação da possibilidade de um retorno: “Hoje eu vou sambar na pista, você vai de galeria/Quero que você assista na mais fina companhia/Se você sentir saudade, por favor não dê na vista/Bate palmas com vontade, faz de conta que é turista”. b) Semântica Narrativa 57 Ver TOJI, Simone Sayuri Takahashi. Samba no pé e na vida: Carnaval e ginga de passistas da escola de samba Estação Primeira de Mangueira. Dissertação de Mestrado. UFRJ: 2006. 92 O primeiro aspecto da conversão da semântica fundamental em semântica narrativa é a inscrição de elementos semânticos no objeto, pois, a relação do sujeito com o objeto lhe dá existência semiótica e o investimento de traços semânticos neste objeto, atribui-lhe existência semântica. A categoria semântica é então convertida em valores narrativos que podem ser descritivos ou modais. Os modais são o saber e o poder, por exemplo, e os descritivos classificam-se em objetivos (consumíveis e armazenáveis) e subjetivos (prazeres e estados de alma). b1) Modalização É da conversão das categorias tímico-fóricas em categorias modais, modificando a relação do sujeito com o objeto-valor, que resultam as modalidades. Já a modalização, [...] deve ser entendida como a determinação sintática de enunciados: um enunciado, que será determinado modal, modifica um enunciado dito descritivo. O enunciado modal pode ser tanto um enunciado de estado quanto um enunciado de fazer, e modalizar enunciados de estados ou de fazer, indiferentemente. A natureza do enunciado modalizado é um primeiro critério de classificação das modalidades , distinguidas, assim, em modalidades de fazer e de ser (BARROS, 1988, p. 50). São os dois tipos de modalidade do fazer: /fazer-fazer/ e /ser-fazer/. /Fazer-fazer/ é a modalidade factiva, constituída por dois enunciados do fazer com atores diferentes para os sujeitos do fazer. Desta maneira, o fazer modalizador é o percurso do destinador-manipulador, e o fazer modalizado é o percurso do sujeito. Para fazerfazer, o modalizador (manipulador) precisa tornar o sujeito competente, para que este esteja disposto a operar o segundo fazer. Ou seja, o manipulador precisa, primeiro, /fazer-ser/ (modalidade do ser) transformando o estado modal do sujeito de estado ao doa-lhe valores que o levarão a fazer. Neste caso, o terceiro manipulador do texto Teresinha, anteriormente analisado, faz o destinatário-sujeito (Teresinha) fazer, atribuindo-lhe os valores modais querer e poder-fazer, tornando-a competente para realizar o fazer transformador: passar do estado de solidão ao de companhia ao abrir o seu coração para que o destinador-manipulador se instalasse. Já o /ser-fazer/ é o que caracteriza a competência do sujeito, e organiza-se em quatro modalidades: o querer, o dever, o poder e o saber. Estes valores modais determinam tanto o ser (enunciados de estado), quanto o fazer (enunciados de 93 fazer) e organizam-se em modalidades exotáxicas e endotáxicas. Pertencem à modalidade exotáxica, em que o sujeito modalizado e o modalizador são atores diferentes, a modalidade virtualizante do dever, atualizante do poder e realizante do fazer. E, às modalidades endotáxicas, em que o sujeito modalizado e o modalizador são o mesmo ator, pertencem a modalidade virtualizante do querer, atualizante do saber e realizante do ser. No texto já trabalhado Quem te viu, quem te vê, a cabrocha deve, sabe e pode sambar no cordão (na rua), mas ela não-quer sambar no cordão. Em outro texto, também anteriormente trabalhado, Minha história, o sujeito deve ter um nome, quer ter um nome, mas não-pode porque o seu pai não o reconheceu, ou seja, ele é apenas sujeito virtual para o fazer de ter um nome, pois não conseguiu atualizar-se, já que lhe falta o poder-fazer. Como se pode perceber, são as modalidades atualizantes que qualificam o sujeito para a ação posterior, mas só o fazer é que torna o sujeito realizado. As modalidades virtualizantes do querer-fazer e do dever-fazer dão ao sujeito as condições mínimas para o fazer e, projetadas do quadrado semiótico (GREIMAS e COURTÉS, 2008, p.124), são apresentadas: (FIGURAS 10 e 11) querer-fazer (vontade ou volição) querer-não-fazer (abulia) não-querer-não-fazer não-querer-fazer (vontade passiva) (má-vontade) dever-fazer (prescrição) dever-não-fazer (interdição) não-dever-não-fazer (permissividade) não-dever-fazer (facultatividade) Já as modalidades atualizantes do poder-fazer e do saber-fazer estruturam-se no quadrado semiótico como: (FIGURAS 12 e 13) 94 poder-fazer (liberdade) poder-não-fazer (independência) não-poder-não-fazer não-poder-fazer (obediência) (impotência) saber-fazer (competência) saber-não-fazer (habilidade) não-saber-não-fazer (inabilidade) não-saber-fazer (incompetência) Observe-se que o poder-fazer e o dever-fazer relacionam-se por implicação, já que o não-poder-não-fazer (obediência) implica o dever-fazer (prescrição) e, o dever-fazer e o querer-fazer são compatíveis e constituem a obediência ativa (exemplo do sujeito do texto Minha história), enquanto o dever-fazer e o não-querer-fazer não se harmonizam e caracterizam a resistência passiva (a cabrocha do texto Quem te viu, quem te vê). Há também compatibilidade entre o dever-fazer e o saber-fazer e incompatibilidade entre o dever-fazer e o não-saber-fazer. São essas combinações, compatíveis ou incompatíveis, que determinam os tipos diferentes de narrativa. A modalização do ser é resultante da regência de um enunciado do fazer (fazer-ser) ou de um enunciado de estado (ser-ser). O fazer-ser caracteriza a performance do sujeito, enquanto o ser-ser determina a sanção no percurso do destinador julgador. O predicado modal – o ser do ser – , ou seja, o ser que modaliza o ser, é chamado modalidade veridictória e pode ser considerado a forma debreada do saber-ser, sendo suscetível de ser tratado como uma categoria modal e projetado no quadrado semiótico, conforme Greimas e Courtés (2008, 532): (FIGURA 14) 95 Verdade ser parecer Segredo mentira não-parecer não-ser falsidade Modalizando-se um enunciado de estado por outro enunciado de estado resultam a verdade ou a falsidade das relações juntivas do sujeito com o objeto. A categoria de veridicção é constituída, percebe-se, pela colocação em relação de dois esquemas: o esquema parecer/não-parecer é chamado de manifestação, o do ser/não-ser, de imanência. É entre essas duas dimensões da existência que atua o “jogo da verdade”: estabelecer, a partir da manifestação, a existência da imanência, é decidir sobre o ser do ser (GREMAS e COURTÉS, 2008, 533). Dessa maneira, para modalizar veridictoriamente um enunciado de estado parte-se da manifestação e infere-se a imanência e, assim, o destinador-julgador, ao dizer verdadeiro ou falso ou mentiroso, realiza um fazer interpretativo. Como exemplo desse fazer interpretativo, tem-se o texto Quem te viu, quem te vê analisado acima. O destinador-julgador observa que existe um segredo (é e não parece), o sujeito é cabrocha e não parece princesa: “Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala/Você era a favorita onde eu era mestre-sala”, depois uma falsidade (não parece e não é), o sujeito não parece princesa e não é mais cabrocha: “Quando o samba começava, você era a mais brilhante/E se a gente se cansava, você só seguia adiante/Hoje a gente anda distante do calor do seu gingado/Você só dá chá dançante onde eu não sou convidado”. O destinador- 96 julgador relembra a verdade (é e parece), o sujeito é cabrocha e parece uma princesa: “De dourado eu lhe vestia pra que o povo admirasse”, para, por fim, desvendar a mentira (não é e parece), o sujeito não é cabrocha e parece uma princesa: “Eu não sei bem com certeza porque foi que um belo dia/Quem brincava de princesa acostumou na fantasia”. É por ter sua mentira desvendada que o sujeito recebe do destinador-manipulador a sanção negativa, não vai mais poder sentir saudades, não vai mais poder dançar na rua. Esses enunciados modalizados veridictoriamente são também determinados pelas modalidades do crer, isto porque o contrato estabelecido é fiducitário, ou seja, de crença. No quadrado semiótico, tem-se: (FIGURA 15) crer-ser (certeza) não-crer-não-ser (probabilidade) crer-não-ser (impossibilidade/exclusão) não-crer-ser (incerteza) Assim, o enunciado de estado interpretado é chamado, por conseguinte, certamente verdadeiro (crer-ser e parecer), provavelmente verdadeiro (não-crer-não-ser e nãocrer-não-parecer), certamente falso (crer-não-ser e não-parecer), e assim por diante. O julgamento é, então, uma transformação de um estado de crença em outro, para isso, o sujeito que interpreta e julga realiza uma operação de reconhecimento da verdade, comparando e identificando o que o sujeito do fazer persuasivo lhe apresenta com aquilo em que crê. Também regem enunciados de estado, as modalidades do dever, querer, poder e saber. Estas modalidades incidem sobre o valor que se encontra investido no objeto e constituem a existência modal do sujeitos, ao passo que determinam a existência modal dos objetos. A modalização do ser é, portanto, responsável pela existência modal do sujeito do estado. No texto Quem te viu, quem te vê, a cabrocha define-se, do ponto de vista da competência modal, como o sujeito que deve, sabe, pode, mas 97 não quer dançar na rua. E, enquanto a existência modal, em relação ao objeto-valor (vida de princesa), como um sujeito que quer, mas não pode, nem sabe ser. Observe-se esta representação no quadrado semiótico: (FIGURA 16) Querer-ser (desejável) não-querer-não-ser (não prejudicial) (FIGURA 17) querer-não-ser (prejudicial ou nocivo) não-querer-ser (indesejável) (FIGURA 18) poder-ser (possível) não-poder-não-ser (imprescindível inevitável) dever-ser (indispensável) não-dever-não-ser (realizável) dever-não-ser (irrealizável) não-dever-ser (fortuito ocasional) (FIGURA 19) poder-não-ser (prescindível ou evitável) não-poder-ser (impossível) saber-ser (verdadeiro) saber-não-ser (ilusório) não-saber-não-ser (?) não-saber-ser (?) Desta maneira, um objeto-valor é desejável, indispensável, possível, verdadeiro, quando seu valor for determinado pelo querer, dever, poder e saber-ser. b2) As paixões Em semiótica greimasiana, entende-se por paixões os efeitos de sentido de qualificações modais que modificam o sujeito do estado. 98 [...] Ora, o estado, na perspectiva do sujeito que age, é ou o resultado da ação, ou o seu ponto de partida: haveria, portanto, “estado” e “estado”, e as mesmas dificuldades ressurgem; o estado é antes de mais nada um “estado de coisas” do mundo que se acha transformado pelo sujeito, mas é também um “estado de alma” do sujeito competente em vista da ação e a própria competência modal, que sofre ao mesmo tempo transformações. Com base nessas duas concepções do “estado”, reaparece o dualismo sujeito/mundo. Apenas a afirmação de uma existência semiótica homogênea – tornada tal pela mediação do “corpo que sente” – permite enfrentar essa aporia: graças a essa transmutação, o mundo enquanto “estado das coisas” vê-se rebaixado ao “estado do sujeito”, isto é, reintegrado no espaço interior uniforme do sujeito. Em outras palavras, a homogeneização do interoceptivo e do exteroceptivo, por intermédio do proprioceptivo, institui uma equivalência formal entre os “estados de coisas” e os “estados de alma” do sujeito. Não seria demais insistir, ainda aqui, no fato de que se as duas concepções do estado – estado de coisas, transformado ou transformável, e estado de alma do sujeito, como competência para e depois da transformação – se reconciliam numa dimensão semiótica da existência homogênea, isso ocorre à custa de uma mediação somática e “sensibilizante” (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p.14-15). Assim, o “ser” do mundo e do sujeito não cabem à semiótica, mas espera-se dela que capte o “parecer do ser”. Porém, cabe observar, que não apenas o sujeito do discurso pode transformar-se em sujeito apaixonado, mas também o sujeito do dito discursivo pode interromper e desviar sua própria racionalidade narrativa para emprestar um percurso passional, ou mesmo acompanhar o precedente com pulsações discordantes. Ao se considerar as paixões “violentas”, tais como a cólera, o desespero, o deslumbramento ou o terror, ver-se-á surgir a sensibilização como quebra do discurso, como fator de heterogeneidade, transformando o sujeito em um sujeito outro. É nesse momento que a paixão aparece nua, negando o racional e o cognitivo, fazendo com que o “sentir” transborde o “perceber”. Aborda-se as paixões lexicalizadas: cólera, desespero, indiferença. A descrição destas paixões é feita em termos de sintaxe modal e de suas combinações sintagmáticas. Dessa maneira, em Quem te viu, quem te vê, a organização sintagmática de /quererser, não-crer-ser e saber-não-poder-ser/ é uma estrutura patêmica que produz o efeito de sentido de amargura, ao mesmo tempo em que a combinação de /quererser, crer-ser, saber-poder-ser e querer-fazer (dançar na rua) gera o efeito passional de amor. 99 Pode-se distinguir as paixões simples das paixões complexas. As paixões simples surgem da modalização pelo querer-ser, desta forma: querer-ser (desejo, anseio, ambição, cupidez, avidez, curiosidade); não-querer-não-ser (avareza, mesquinhez, usura, sovinice); querer-não-ser (despreendimento, generosidade, liberalidade, prodigialidade); não-querer-ser (repulsa, medo, aversão, desinteresse). Na classificação das paixões simples, pode-se também observar: o desdobramento polêmico, na inveja, por exemplo, o querer-ser implica querer que o outro não seja; a intenção de conservar o estado de conjunção, como na avareza. Já as paixões complexas têm um estado inicial denominado espera, a qual pode ser simples ou fiducitária. Se o sujeito deseja estar em conjunção ou disjunção com um objeto-valor, sem, no entanto, nada fazer para isso, essa espera é simples. O sujeito da espera simples quer ter o seu estado transformado, mas não deseja ser o sujeito da transformação. Porém, se o sujeito do estado tem com o sujeito do fazer uma relação de confiança, o sujeito do estado acredita que o sujeito do fazer realizará as suas expectativas, atribuindo ao sujeito do fazer um dever-fazer. Na maioria das vezes, esse contrato é um pseudocontrato ou um contrato imaginário, assim, o sujeito do fazer não se sente obrigado a fazer. Esse fazer cognitivo contratual do sujeito do estado é denominado construção de simulacros (GREIMAS, 1981, p.11). Um simulacro é um objeto do imaginário, sem fundamento intersubjetivo, mas que determina relações intersubjetivas. A satisfação e a confiança ou a insatisfação e a decepção decorrentes da conjunção ou disjunção do sujeito com o objeto-valor desejado e da conservação ou perda da confiança depositada no contrato simulado são a contrapartida da espera. Por si só, a espera é um estado tenso-disfórico de disjunção, ao contrário da satisfação e da confiança que são estados relaxados/eufóricos de conjunção. A insatisfação e a decepção são estados intensos e não eufóricos de não conjunção. Porém, a espera pode relaxada, no caso da esperança, em que se espera com segurança, mas a espera tensa tem como fator a insegurança que gera a aflição. Ao se denominar e explicar as configurações passionais previstas a partir do estado inicial da espera tem-se: a insatisfação e/ou a decepção que não conduzem à liquidação da falta e que se prolongam ou não, definem três grupos de paixões: 100 amargura ou mágoa, decepção ou desilusão e frustração ou tristeza; a satisfação e/ou a confiança determinam a esperança ou crença e alegria ou felicidade; a insatisfação e a decepção que geram um programa narrativo de liquidação da falta caracterizam a cólera ou rancor. A falta pode ser resolvida de duas formas diferentes: pela reparação, liquidando a falta de objeto e a falta de confiança, ou pela resignação e conformação. A falta de confiança é acompanhada da malevolência, bem como a como a confiança é acompanhada da benevolência, são elas que levam o sujeito a querer-fazer mal ou bem a alguém, dando início à competência do sujeito reparador da falta. Assim, a vingança é o programa narrativo de liquidação da falta causada, na perspectiva do sujeito, pelo anti-sujeito. Por estarem em busca dos mesmos valores, este e aquele confrontam-se na narrativa, e o destinador-julgador (sujeito ofendido) sancionando negativamente o anti-sujeito que não foi cumpridor do contrato esperado. Porém, a revolta surge quando o sujeito coloca-se como destinatário cumpridor da sua parte do contrato, merecedor, portanto, da sanção positiva, recebe uma sanção negativa, ficando decepcionado, inseguro, aflito, revoltado. Assim, enquanto o ódio é a paixão que impele a causar ou desejar o mal a alguém, o amor é o sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem ou outra coisa. 2.1.3 O nível discursivo a) Sintaxe discursiva Antes de mais nada, é válido observar que, quando assumidas pelo sujeito da enunciação, as estruturas narrativas convertem-se em estruturas discursivas. Dessa forma, o sujeito da enunciação faz uma série de opções de pessoa, tempo, espaço, figuras, contando ou passando a narrativa, transformando-a em discurso. Ou seja, 101 “no nível discursivo, as formas abstratas do nível narrativo são revestidas58 de termos que lhes dão concretude” (FIORIN, 2006, p.41). Porém, para abordar a sintaxe discursiva, é preciso antes entender o que é discurso. E, “o discurso nada mais é, portanto, que a narrativa “enriquecida” 59 por todas essas opções do sujeito da enunciação, que marcam os diferentes modos pelos quais a enunciação se relaciona com o discurso que enuncia” (BARROS, 2007, p.52). Mas o que é enunciação? Assim como vários são os teóricos que refletem acerca deste assunto, várias também são as definições. Acata-se neste trabalho a definição de Landowski (1989, p.222) de que a enunciação é o “ato pelo qual o sujeito faz ser o sentido”, e o enunciado, “o objeto cujo sentido faz ser o sujeito”. Isto porque, fazer ser é a própria definição de ato: o sujeito que gera o sentido através do ato é criado pelo enunciado. A estrutura discursiva pode ser reconstruída a partir das marcas que espalha no discurso e, é nesta estrutura que a enunciação mais se revela e onde mais facilmente se percebem os valores sobre os quais ou para os quais o texto foi construído. Nous entendons par débrayage Le mécanisme qui permet La projection hors d‟une isotopie donnée de certains de sés éléments, a fin d‟instituer um 60 nouveau <<lieu>> imaginare et, éventuellement, une nouvelle isotopie. 1. Le débreyage temporel se produit dans notre texte par La notation <<avant La guerre>>, que disjoint La séquence intercalée de La temporalité générale Du texte. L‟isotopie temporelle nouvellement obtenue peut être considérée, de CE point de vue, comme Le résultat d‟une anachronisation, 61 détruisant partiellement La linéarité temporelle du récit. Le déictique avant présuppose l‟étalemente implicite de La catégorie: 58 Grifos do autor 59 Grifos da autora 60 Nós entendemos por debreagem, o mecanismo que permite a projeção de uma dada isotopia, certamente de alguns dos seus elementos, a fim de instituir um novo <<lugar>> imaginário e, possivelmente, uma nova isotopia. (tradução da mestranda) 1. 61 A debreagem temporal se produz em nosso texto pela notação <<Antes da guerra>>, que desarticula a seqüência de intervenção da temporalidade geral do texto. A isotopia temporal recém-obtido pode ser visto a partir deste ponto de vista, como o resultado de um anacronismo, destruindo parcialmente a linearidade temporal da narrativa. (tradução da mestranda) 102 Avant VS pendant VS aprés, 62 <<pendant>> étant le présent imaginaire du récit obtenu lui-même par um premier débrayage temporel, qui l‟avait pose comme um alors quelconque, 63 sans rapport avec Le temps de l‟énonciateur. 2. Le débrayage spatial est annoncé par Le verbe <<partait>> qui denote un déplacement de l‟acteur Morissot de l‟espace <<Paris>> - que nous avons déjà defini comme englobe -, vers uns dehors qui apparaît, Du fait de cette disjuonction, comme espace englobant. On voit que La spatialisation Du discours n‟est pás une distribution quel conque dês espaces imaginaires Le long Du texte, mais qu‟elle s‟accompagne de leur mise em relation avec lês 64 acteurs discursifs qui lês exploitent (GREIMAS, 1976, p.40-41). São esses mecanismos discursivos que têm a finalidade de criar, no texto, a ilusão de verdade. Os dois efeitos básicos criados com a finalidade de convencerem de sua verdade são: proximidade ou distanciamento e realidade ou referente. A fim de produzir o efeito de distanciamento, utiliza-se como procedimento: produzir o discurso em terceira pessoa, no tempo do “então” e no espaço do”lá”. Esse procedimento denomina-se desembreagem enunciva. No texto já trabalhado, Boi voador não pode, tem-se o exemplo de desembreagem enunciva. O texto é produzido em terceira pessoa: “Quem foi, quem foi/Que falou no boi voador /Manda prender esse boi /Seja esse boi o que for”, no tempo do “então”, verbos conjugados no pretérito perfeito “foi” e no presente do indicativo com efeito de tempo que perdura: “É fora da lei”, e no espaço do “lá”, no caso deste texto, um lugar que não se conhece, que só é possível na imaginação, onde também possa existir um boi voador. A desembreagem enunciativa é o procedimento de produzir o discurso em primeira pessoa, no tempo do “agora”, espaço do “aqui”. Este procedimento pode ser percebido na maioria dos textos já trabalhados. Por serem textos mais líricos, 62 O dêitico anterior pressupõe o elemento implícito da categoria: Antes vs durante vs depois, (tradução da mestranda) 63 <<Durante o>> Este é o presente imaginário obtido por uma primeira debreagem temporal que se passou em um tempo qualquer, sem relação com o tempo do enunciador. (tradução da mestranda) 64 A debreagem actancial é anunciada pelo verbo <<partindo>> que denota uma mudança de espaço do ator Morissot<<Paris>> - que nos deixa definir como abrangendo – um que aparece para o exterior devido a disjunção com o espaço envolvente. Vemos que a espacialização do discurso não é uma distribuição que conquistou espaços imaginários ao longo do texto, mas é acompanhado por sua relação discursiva com os atores que as exploram. (tradução da mestranda) 103 valorizam o uso da primeira pessoa: “Eu enfrentava os batalhões” (João e Maria); “Minha história é esse nome que ainda hoje carrego comigo” (Minha história); “E, assustada, eu disse não” (Teresinha); “Hoje de teimoso eu passo bem em frente ao seu portão” (Quem te viu, quem te vê). O tempo do “agora” pode ser percebido nos verbos conjugados no presente do indicativo e nos advérbios de tempo: “Hoje o samba saiu procurando você” (Quem te viu, quem te vê). Esse tempo do “agora” pode ser também percebido em: “Agora eu era o herói” (João e Maria), em que o advérbio de tempo presente, agora, une-se ao verbo ser no pretérito imperfeito, construindo uma temporalidade imaginária, que nos transporta imediatamente do real para um outro tempo, o tempo do faz-de-conta, tempo em que as coisas mais impossíveis fazem-se verdadeiras por força da imaginação. O espaço do aqui pode também ser percebido em: “Pra lá deste quintal”, em que o pronome demonstrativo aponta exatamente para o lugar de onde se fala. A fim de adotar perspectivas variadas, alguns textos trazem uma ou mais vozes confundidas: “Mal sei como ele se chama /... Se instalou feito um posseiro” (Teresinha). Esse mecanismo é conhecido como enunciação enunciada, em que o sujeito que diz eu denomina-se narrador, e o tu, por ele instalado, narratário. O outro efeito básico criado com a finalidade de convencer da verdade é: realidade ou referente. Este efeito é a ilusão discursiva de que o discurso copia o real. Esses efeitos de realidade geralmente decorrem da desembreagem interna. Esta desembreagem acontece quando, no interior do texto, cede-se a palavra aos interlocutures em discurso direto. Isto funciona para produzir uma imagem do real porque não se trata de dizer o que foi dito por alguém, mas de repetir tais e quais as suas palavras: “E agora eu era um louco a perguntar/O que é que a vida vai fazer de mim?” O „eu‟ que narra a história dá voz a si mesmo, à sua consciência, e em: “É fora, é fora, é fora /É fora da lei, é fora do ar /É fora, é fora, é fora”, o narrador dá voz a uma multidão. Há também um procedimento oposto à desembreagem, denominado embreagem. Embreagem é uma operação de retorno das formas já desembreadas à enunciação criando a ilusão de identificação com a instância da enunciação. 104 Ainsi projetée hors Du texte, La séquence intercalaire se trouve récupérée par Le mécanisme d‟ embrayage qui La rattache de nouveau au continu 65 discursif... (GREIMAS, 1976) O que pode ser visto em: Quando vi um bocado de gente descendo as favelas Eu achei que era o povo que vinha pedir A cabeça de um homem que olhava as favelas Minha cabeça rolando no Maracanã 66 Em que se emprega os recursos de debreagem enunciativa (eu/você) e de embreagem enunciva (um homem que olhava as favelas). Há também um recurso semântico de construção dos efeitos de realidade, este recurso denomina-se ancoragem e trata-se de atar os discursos a pessoas, espaços e datas que o receptor reconhece como reais ou existentes, criando assim um simulacro. O que pode ser percebido nestes trechos do texto Ana de Amsterdam de Chico Buarque (1972) Sou Ana do dique e das docas Da compra, da venda, da troca das pernas Dos braços, das bocas, do lixo, dos bichos, das fichas Sou Ana das loucas Até amanhã Sou Ana, da cama Da cana, fulana, bacana (sacana)* Sou Ana de Amsterdam ... Sou Ana de cabo a tenente Sou Ana de toda patente, das Índias Sou Ana do Oriente, Ocidente, acidente, gelada Sou Ana, obrigada Até amanhã, sou Ana Do cabo, do raso, do rabo, dos ratos Sou Ana de Amsterdam Em que, “Ana”, “Amsterdam”, “cabo”, “tenente”, “Índias” “Oriente”, “Ocidente” ancoram o texto na história criando a ilusão de referente e, portanto, de veracidade. Assim, o discurso constrói a sua verdade, ou seja, o enunciador não é quem produz 65 E projetada para fora do texto, a seqüência intercalada é recuperada pelo mecanismo de embreagem, que a traz de volta para o contínuo discursivo... (tradução da mestranda) 66 Trecho da letra Pelas Tabelas analisada no capítulo 03. 105 discursos verdadeiros ou falsos, mas quem cria efeitos de verdade ou falsidade e como tais são interpretados. Porém, se o discurso é mal construído ou um texto é inserido no contexto de outros textos, nega-se a verdade de um discurso, a qual é elaborada na relação contratual entre enunciador e enunciatário. b) Semântica discursiva No nível discursivo, os valores que são assumidos pelos sujeitos no nível narrativo são difundidos sob a forma de percursos temáticos e recebem investimentos figurativos. São esses percursos temáticos e figurativos que asseguram coerência semântica ao discurso e os efeitos de realidade. A tematização e a figurativização são dois níveis de concretização do sentido. Tematizar um discurso é constituir percursos pela recorrência de traços semânticos abstratos. Desta maneira, analisa-se os percursos à partir da semântica determinando os traços ou semas que se repetem no discurso e o tornam coerente. Como exemplo, no texto João e Maria a recorrência de traços semânticos de “infância” (herói, princesa, bodoque, etc) permite organizar uma leitura com o tema inocência. Desta maneira, a recorrência de um tema no discurso dependerá da conversão dos sujeitos narrativos em atores que cumprem papéis temáticos e da determinação de coordenadas espácio-temporais para os percursos narrativos. Portanto, o percurso do sujeito que transforma seu estado de inocência em estado de maturidade é convertido no percurso temático da infância: há o que faz-de-conta que é criança, o local da infância (o quintal), os brinquedos e a imaginação que tornam a infância possível. Ainda neste texto, o sujeito é projetado no discurso como „eu‟, no papel temático daquele que brinca, faz-de-conta, e transforma-se de inocente a maduro. Antes de passar à análise do percurso figurativo, vale ressaltar que ainda não se tem encontrado discursos não figurativos, e sim discursos de figuração esparsa, os quais têm a sua coerência garantida pela recorrência temática, sendo então denominados discursos temáticos. Entende-se por figurativização, figuras de conteúdo que recobrem os percursos temáticos abstratos, atribuindo-lhes traços de revestimento sensorial. E, a partir do 106 revestimento figurativo do objeto valor, todo o percurso do sujeito é figurativizado: as transformações narrativas tornam-se ações; o tempo e o espaço determinam-se sob a forma de figuras. Ainda utilizando como exemplo o texto João e Maria, o objeto em que está inserido o valor do poder-ser e fazer da inocência/liberdade aparece sob as figuras: herói, cawboy, bodoque, rock, brinquedo, peão; as ações são as de enfrentar, ensaiar, ser, dar a mão; o tempo e o espaço apresentam-se através de “agora era”, “quintal”; o sujeito representa-se pelos atores “eu” e “você”. Na figurativização há duas etapas: a figurativização, que é a instalação das figuras, quando se passa do tema à figura e a iconização, que é o investimento figurativo exaustivo final, com o objetivo de produzir ilusão de verdade. A reiteração dos temas e a recorrência das figuras no discurso denominam-se isotopia. A isotopia assegura, graças à idéia de recorrência, a linha sintagmática do discurso e sua coerência semântica. Esta isotopia pode ser temática ou figurativa. É temática quando decorre da recorrência de traços semânticos abstratos no interior de um dado percurso temático, e figurativa quando há a redundância de traços figurativos ao associar-se figuras aparentadas. Sur le plan textuel, le próbleme qui se pose lorsqu‟on veut aménager le passage d‟une phrase réalisée dans une langue naturelle à la phrase qui la suit immédiatement, est celui de la cohérence discursive: l‟existence du discours – et non d‟une suit de phrases indépendantes – ne peut être affirmée que si l‟on peut postuler à la totalité dês phrases qui le constituent une isotopie commune, reconnaissable grâce à la récurrence d‟une catégorie ou d‟um faisceau de catégories linguistiques tout le long de son déroulement. Ainsi, nous sommes enclins à penser qu‟um discours <<logique>> doit être supporté par um réseau d‟anaphoriques qui, em se renvoyant d‟une phrase à l‟autre, garantissent as permanence topique. A l‟inverse, le discours poétique – surtout lorsqu‟il vise consciemment <<l‟abolition de la syntaxe>> - manifeste à la surface, du fait de l‟omission des marques de la récurrence, une certaine incohérence grammaticale. Entre lês deux extremes, se situent toutes sortes de discours qu‟on peut dire imparfaits, dans le même sens que toutes lês manifestations em langues naturalles sont imparfaites par rapport à l‟idéalité dês formes grammaticales que nous leur postulons. Ces discours sont à la fois immédiatement compréhensibles et incohérents à la surface, et leur lecture qui releve de l‟évidence pour l‟usager de la langue, fait surgir dês obstacles presque insurmontables au linguiste, soucieux de faire ressortir toutes lês implicitations et de fonder objectivement, par la reconnaissance dês marques de la récurrence, la permanence de l‟isotopie discursive. Aussi les inquietudes tatillonnes du linguiste, qui s‟efforce de mettre à jour lês réseaux complexes de présupposés sous-jacents à tout discours, paraissent-elles 107 souvent futiles au sémioticien ne s‟intéressant qu‟au maniement dês 67 grandeurs textuelles transphrastiques (GREIMAS, 1976, p. 28). Há por exemplo, isotopia temática de “inocência” no texto João e Maria, resultante da retomada de valores relativos à fase da infância. Neste mesmo texto também são construídas diversas isotopias figurativas: infância, coragem, governo militar, censura, pureza, medo, exílio, maturidade. A isotopia de infância reitera traços visuais em herói, cawboy, bodoque, matinês, brinquedo, bicho preferido. A de coragem reitera traços visuais em batalhões, alemães, canhões. A de governo militar reitera traços visuais em rei, bedel, juiz. A isotopia de censura é marcada em „obrigado a ser feliz‟. A isotopia de pureza reitera traços visuais em princesa nua. A de medo está marcada em noite. A isotopia de exílio é percebida em “sumir no mundo”. E, por fim, a isotopia de maturidade reitera traços visuais em louco. Esses percursos figurativos recobrem percursos temáticos. As figuras da infância, da coragem e da pureza ligam-se ao tema da liberdade de expressão, enquanto as figuras do governo, medo, exílio, censura e maturidade ligam-se ao tema da repressão no período do governo militar. Essa leitura política faz-se possível graças às palavras rei, bedel e juiz, que ocupam no texto a função de desencadeadores de isotopias, ou seja, elementos que não se integram facilmente em uma linha isotópica já reconhecida, levando à descoberta de novas leituras. 67 No nível textual, o problema surge quando se quer renovar parte de uma frase realizada em uma linguagem natural para a frase que a segue imediatamente, é a coerência discursiva: a existência do discurso – e não de uma seqüência de frases independentes – não se pode afirmar que, se podem aplicar a todas as sentenças de frases que a constituem uma isotopia comum, reconhecíveis pela recorrência de uma categoria ou de uma gama de categorias lingüísticas todas em sua direção. E, nós somos inclinados a pensar que um discurso <<lógico>> deve ser apoiado por uma rede de anáforas, que vão empregar uma frase referindo-se a outra, garantindo sempre a permanência do tópico. Por outro lado, o discurso poético especialmente quando é consciente << abolição da sintaxe>> a superfície clara devido à omissão de marcas de reincidência, uma certa incoerência gramatical. Entre os dois extremos, situam-se toda a sorte de discursos que podem ser chamados imperfeitos, da mesma forma em que todas as manifestações das línguas naturais são imperfeitas em relação ao ideal das formas gramaticais que postulamos. Esses discursos são facilmente compreensíveis e inconsistentes sobre a superfície e a leitura que levanta evidências por usuários da língua, faz surgir obstáculos quase intransponíveis para os lingüistas ansiosos para apontar motivos implícitos e razões objetivas para o reconhecimento da marca de reincidência da isotopia discursiva. Também as inquietudes do lingüista, que se esforça para atualizar as complexas redes de pressupostos subjacentes a qualquer discurso, elas parecem, muitas vezes, triviais aos semioticistas interessados apenas na manipulação de grandes transfrásticos textuais. (tradução da mestranda) 108 Já os conectores de isotopias são palavras que podem ser lidas em várias isotopias, fazendo a passagem de uma leitura a outra. Por exemplo, neste texto, brinquedo é um conector com acepções possíveis: de criança e manipulação. Assim, os discursos podem apresentar mais de uma leitura temático-figurativa, sendo pluri-isotópicos. E, são estas isotopias temáticas e figurativas que estabelecem a coerência semântica do discurso, condição para que o texto seja coerente. Com isso, a coerência narrativa localiza-se no nível das estruturas narrativas, e a coerência argumentativa, bem como a coerência das isotopias, no nível das estruturas discursivas. 109 3 SE ME PERMITEM, VOU TENTAR LHE REMETER NOTÍCIAS FRESCAS 3.1 FIGURAS DO CARNAVAL A possibilidade de trabalhar o conceito de carnavalização cunhado por Bakhtin ([1965] 2008) acontece porque é inevitável reconhecer figuras literárias nas canções de Chico Buarque. Como afirma Perrone (1988, 46), Textos musicais populares brasileiros demonstram sua relação com a série literária através da apropriação criativa de textos e temas da literatura e através da alusão a, ou recriação de, momentos literários. Tal intertextualidade pode ser observada, em menores ou maiores proporções, nas primeiras canções de Chico Buarque... A comparação é mais válida levando-se em conta um aspecto óbvio, que remete ao trovadorismo e à poesia de Chico de um modo geral: suas produções foram destinadas à transmissão oral com acompanhamento musical e tornaram-se literatura impressa em cancioneiro. Por este motivo, Luciana Eleonora de Freitas Calado (2004) afirma que não podemos pensar Chico Buarque apenas como um “músico popular”, já que o grau de elaboração e as imagens permitem identificar suas letras com a poesia, incorporando-as à literatura brasileira e, desta maneira, têm sido objeto de análise em estudos literários. Como já foi observado no primeiro capítulo, esse trabalho não trata da sua proximidade com as cantigas de amigo trovadorescas ao empregar um eu lírico feminino, mas as suas canções de caráter contra-ideológico, nas quais coexistem duas temáticas: As canções de protesto e resistência, com linguagem velada e signos verbais carregados de signos políticos; e as canções de conteúdo órfico, de apelo dionisíaco. Nessas, a música é apresentada como elemento de libertação, de catarse, de desregramento e harmonia ao mesmo tempo. Pois, nessas canções, Chico concretiza sua ideologia social, busca a negação da realidade a partir do encanto com a passagem do cortejo dionisíaco como um convite à desrepressão. De acordo com Bakhtin ([1965] 2008, p.4), E é verdade que as formas do espetáculo teatral na Idade Média se aproximavam na essência dos carnavais populares, dos quais constituíam até certo ponto uma parte. No entanto, o núcleo dessa cultura, isto é, o carnaval, não é de maneira alguma a forma puramente artística do espetáculo teatral e, de forma geral, não entra no domínio da arte. Ele se 110 situa na fronteira entre a arte e a vida. Na realidade, é a própria vida apresentada com os elementos característicos da representação. Na verdade, o carnaval ignora toda distinção entre atores e espectadores. Também ignora o palco, mesmo na sua forma embrionária. Pois o palco teria destruído o carnaval ( e inversamente, a destruição do palco teria destruído o espetáculo teatral). Os espectadores não assistem ao carnaval, eles o vivem, uma vez que o carnaval pela sua própria natureza existe para todo o povo. Enquanto o cortejo passa, não se conhece outra vida senão a do carnaval, só se pode viver de acordo com as suas leis, ou seja, as leis da liberdade. Ao passar do cortejo há o renascimento e a renovação do mundo e cada indivíduo participa desse momento. É a fuga provisória da realidade. Enfim, enquanto a passagem do carnaval dura, é a própria vida que representa e interpreta uma outra forma livre da sua realização, a vida festiva do povo. Na circunstância de festa, o povo penetra temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância. O carnaval é a festa em que se celebra o futuro, as alternâncias e renovações. É o tempo da abolição das relações hierárquicas, tempo em que todos são iguais, em que reina um contato livre e familiar entre todos aqueles que se encontram separados na vida cotidiana, seja pelas barreiras sociais, econômicas, de sexo, de idade ou situação familiar. Todos, indistintamente, integram-se ao cortejo, criando uma movimentação inconcebível em situações normais, pois esse momento de coletividade e de relações verdadeiramente humanas só são possíveis enquanto durar o carnaval. Porém, vale ressaltar que, ao tratar o carnaval, Chico não está apenas falando da festa, mas de um tempo-espaço em que a comunidade liberta-se de todas as suas expressões, dos seus lugares sociais, dos seus medos. Este caráter utópico e universalizador, o qual é devido à dualidade na percepção do mundo e da vida humana, é uma das principais características do conceito de carnavalização em Bakhtin. Este tempo-espaço em que a comunidade vive relações não hierárquicas, libertando-se dos seus lugares sociais, dos seus medos, das suas tristezas produz uma linguagem carnavalesca típica impregnada da alternância e da renovação, da consciência da alegre relatividade das verdades e autoridades no poder. 111 Ao integrar-se ao cortejo, deixa-se o comodismo do cotidiano, é iniciado o processo de mudança, de ebulição. O povo vai à rua viver a coletividade, abandonam as dores individuais, vão sorrir o riso coletivo. Tudo aquilo que estava em estado de morte ressuscita por meio da alegria de sentir-se parte do cortejo. Assim, em sua composição Quando o carnaval chegar, Chico apresenta o caráter transformador de liberação, de permissão. A cada atitude de conformismo do cotidiano repete-se: “Tô me guardando para quando o carnaval chegar”, o que reforça a idéia de mudança contida na ideologia carnavalesca. O primeiro trecho da letra já traz uma narrativa condensada que contém essencialmente os elementos funcionais que são desenvolvidos mais adiante: o sujeito esconde uma mentira, ele parece incompetente, mas não o é, parece não saber realizar a ação de sambar, porém, está apenas se guardando para a chegada do carnaval, quando o seu segredo será revelado e ele mostrará aquilo que é, mas não parece. Quem me vê sempre parado, distante garante que eu não sei sambar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. No momento que antecede ao carnaval, o sujeito vê-se impotente diante das situações cotidianas, porém, com a chegada do carnaval, o sujeito é livre, ele pode fazer, pode ver, saber, sentir, escutar e falar. Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Esse sujeito quer fazer, ou seja, deseja as pernas de louça da moça e o beijo molhado de maracujá, porém, sem o carnaval, o sujeito não pode fazer, ou seja, é impotente. Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. O sujeito parece passivo e acomodado diante das intimidações do cotidiano, mas apenas espera o momento de liberdade trazido pelo carnaval para que lhe seja permitido agir. 112 E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. A esperança do poder fazer surge com o dia que manipula o sujeito a querer fazer, querer cantar e assim libertar-se de toda a interdição que sofre antes da chegada do carnaval. Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar. Sobre essa composição, Calado (2004, p.283) explana: [...] Na canção, os elementos que constituem a vida oficial podem ser inseridos em um campo semântico denominado de “Repressão”, os quais justificam as seguintes atitudes: “sempre parado”, “não posso falar”, “não posso pegar”, “há quanto tempo desejo”, “me ofende, humilhando, pisando”, “apanhando da vida”, “tanta alegria, adiada, abafada”. Tais elementos se contrapõe aos do campo semântico da “Permissão”, constituídos por elementos que sugerem ação, poder, realização dos desejos, com os verbos “revidar”, “cantar”, “gritar” e as frases inacabadas deixando subtender uma reação, como nos versos: “E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando/ que eu vou aturar”. Através dessa oposição entre os campos semânticos “Repressão” X “Permissão” cria-se a relação “vida oficial” X “carnaval”, “repressão” X “permissão”. Não se podendo negar a dimensão política da composição, que reflete a insatisfação da sociedade, em particular do artista em face da ditadura militar. Tendo sido composta em 1972, período da Ditadura Militar, Quando o carnaval chegar utiliza-se da metáfora do carnaval, tempo-espaço de liberdade e permissão para burlar a censura e conseguir aquilo que só parece possível quando é carnaval: desabafar. É por esse motivo que o carnaval é essencial na vida da comunidade, para que, pelo menos, uma vez por ano ela possa manifestar-se livremente, possa desejar que a vida seja um eterno carnaval. O percurso que segue reflete as operações de negação e afirmação no texto: (FIGURA 20) 113 (afirmação) (negação) repressão não-repressão (disforia) (não-disforia) (afirmação) desrepressão (euforia) Dessa maneira, a análise efetuada do nível fundamental de Quando o carnaval chegar (1972) pode ser visualizada no modelo abaixo do quadrado semiótico: (FIGURA 21) repressão disforia desrepressão __________________ tensão Não-desrepressão euforia relaxamento não-repressão Não-euforia_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ não-disforia Retensão - - - - termos contrários termos contraditórios operações de negação ⇩ termos complementares ⇧ operação de afirmação distensão 114 Além da oposição proposta por Calado, analisando a composição partir do nível narrativo da Semiótica Greimasiana, percebe-se que o sujeito é manipulado pela situação social e política (Ditadura Militar) em que está inserido, para que esteja conformado com o seu cotidiano. Em “Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar”, pode-se observar, a partir da expressão “não posso falar”, que o sujeito é intimidado por outro para que não fale sobre o que vê, sabe, sente e escuta. Esse sujeito é também intimidado para que não relize os seus desejos, a ele é vetado o direito de amar, beijar, gritar ou qualquer outra reação que o faça sentirse livre: Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá Tô me guardando pra quando o carnaval chegar ... Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar. O sujeito é também provocado por humilhações, pelo próprio correr da vida: E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Eu vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Porém, esse sujeito não aceita o contrato com os seus manipuladores, pois qualquer reação às intimidações e provocações poderiam acarretar graves punições. Ele espera o carnaval chegar. O carnaval, que instaura novas regras, que coloca o mundo ao avesso, torna o sujeito competente para libertar-se da repressão e operar uma verdadeira transformação em sua vida e, nesse momento, ele poderá falar, beijar, gritar, enfim, poderá viver a liberdade plena. Dessa maneira, se, de acordo com Tatit (2001, p. 189), “podemos dizer que o poder não fazer é o coeficiente modal do tema do desengajamento”, o não poder fazer, mesmo sendo próprio da impotência, demonstra engajamento do sujeito com relação às questões da sociedade. 115 Passando-se assim a uma análise a partir do nível discursivo da Semiótica Greimasiana, pode-se perceber os temas e as figuras que brotam dessa letra. O tema do conformismo concretiza-se na figura de uma pessoa parada, distante ( “Quem me vê sempre parado, distante”), em oposição à figura do carnaval, que trará liberdade de movimentação e aproximação, pois, como afirma Bakhtin ([1965] 2008, p. 239): [...] O carnaval (repetimos, na sua acepção mais ampla) liberava a consciência do domínio da concepção oficial, permitia lançar um olhar novo sobre o mundo; um olhar destituído de medo, de piedade, perfeitamente crítico, mas ao mesmo tempo positivo e não niilista, pois descobria o princípio material e generoso do mundo, o devir e a mudança, a força invencível e o triunfo eterno do novo, a imortalidade do povo. (...) É isso que nós entedemos como carnavalização do mundo, isto é, a libertação total da seriedade gótica, a fim de abrir o caminho a uma seriedade nova, livre e lúcida. Também em oposição ao carnaval, que libera a consciência de todo o domínio oficial, que reconhece a liberdade e a imortalidade do povo, o tema da censura aparece duas vezes nesta canção, uma na segunda e outra na última estrofe, figurativizado naquele que vê, sabe, sente, escuta, mas não pode falar e na alegria adiada, abafada, na vontade de gritar. Eu tô só vendo, sabendo, sentindo, escutando e não posso falar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar ... Eu tenho tanta alegria, adiada, abafada, quem dera gritar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Isto porque: Enquanto houvesse razão para ter medo, na medida em que o homem se sentia ainda fraco diante das forças da natureza e da sociedade, a seriedade do medo e do sofrimento em suas formas religiosas, sociais, estatais e ideológicas, fatalmente tinha que se impor. A consciência da liberdade só podia ser limitada e utópica (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 82). Assim, o medo leva ao não poder fazer (impotência), gerando no sujeito um crer não ser (impossibilidade / exclusão), que reprime todos os seus desejos. Nesta letra, desejo reprimido é tema que se concretiza nas pernas de louça da moça e no beijo molhado de maracujá. 116 Eu vejo as pernas de louça da moça que passa e não posso pegar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar Há quanto tempo desejo seu beijo molhado de maracujá Tô me guardando pra quando o carnaval chegar A idéia de fraqueza e medo imposta em suas formas religiosas, sociais, estatais e ideólogicas é também figurativizada nas ofenças, na humilhação, no “apanhar da vida”. E quem me ofende, humilhando, pisando, pensando que eu vou aturar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar E quem me vê apanhando da vida duvida que eu vá revidar Tô me guardando pra quando o carnaval chegar. Durante o carnaval, quando o sujeito crer ser o dono do poder, é quando ele se liberta do medo e é livre (pode fazer) para revidar todos os desmandos dos poderosos da vida cotidiana. Surge então o desejo de vingança ou de revolta, e o sujeito de estado torna-se competente para o fazer, pois, quer-fazer e pode-fazer. Nesse momento, o sujeito assume o papel de destinador-julgador e sanciona negativamente o anti-sujeito (“os donos do poder na vida cotidiana”), por terem realizado fazeres prejudiciais à sua vida, neste caso, repressão, ofenças humilhações. Chico Buarque utiliza-se da imagem do carnaval como portadora da possibilidade de vingança à partir das inversões dos lugares de poder, pois, tal como Bakhtin ([1965] 2008, p. 184) descreve no contexto de Rabelais, durante a festa, é o povo que domina as ruas e instaura uma forma outra de governo, com reis que serão destronados, surrados, injuriados: Em cada indivíduo surrado e injuriado, Rabelais discerne o rei, um ex-rei ou um pretendente ao trono. Ao mesmo tempo, as figuras de todos os destronados são perfeitamente reais e vivas, como o são todos esses chicaneiros, esses sinistros hipócritas e caluniadores que ele golpeia, expulsa e injuria. Todas essas personagens são escarnecidas, injuriadas e espancadas porque representam individualmente o poder e a verdade moribundos: as idéias, o direito, a fé, as virtudes dominantes. E é por escarnecer as idéias dominantes, que o carnaval traz consigo o tema da esperança, o qual é figurativizado na barra do dia surgindo, pedindo para cantar (“Eu 117 vejo a barra do dia surgindo, pedindo pra gente cantar”). A figura do dia nascendo é recorrente na obra de Chico Buarque no período da ditadura militar. O dia, ao nascer, traz a novidade de vida e a esperança de que algo novo e alegre venha acontecer. [...] Dessa forma, o paralelismo é integral: aquele que participa do carnaval, o povo, é o senhor absoluto e alegre da terra inundada de claridade, porque ele só conhece a morte prenhe de um novo nascimento, porque ele conhece a alegre imagem do devir e do tempo, porque ele possui inteiramente esse “stirb und werd”. Não se trata aqui dos graus de consciência subjetiva no espírito da multidão, mas da sua comunhão objetiva à sensação popular da sua eternidade coletiva, da sua imortalidade terrestre histórica e da sua renovação-crescimento incessantes (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 218). Portanto, tendo sido composta em 1972, Quando o carnaval chegar utiliza-se da figura do carnaval, tematizando sobre um tempo-espaço especial, de festa, de liberdade e permissão. Pois, nessa ocasião o “sol se diverte no céu” (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 241), criando um tempo de festa. Para isso, Chico utiliza o tempo presente de um eu- aqui – agora, observado nos verbos: vê, garante, vendo, sabendo, sentindo, escutando, posso, desejo, ofende, apanhando, vejo, surgindo, tenho. De acordo com Tatit (2001, p. 185), “tal debreagem enunciativa tem a função precípua de vincular o sujeito aos fatos e símbolos de sua época sem tecer considerações sobre a procedência histórica desse estado atual”. Dessa forma, sabe-se que a letra dessa canção faz relação com o momento social, político e econômico em que foi escrita (1972), período da Ditadura Militar no Brasil, em que não era permitido qualquer posicionamento diante das situações de humilhação, tortura e censura a que a população era submetida. Todavia, essa canção apresenta também um futuro possível na esperança de um dia de alegria: “Tô me guardando para quando o carnaval chegar”. Enquanto se guarda, esperançoso, para o carnaval, o sujeito observa aquilo que não é ainda, como aquilo que já é. Greimas e Fontanille (1993, p. 71) explicam: Por outro lado, a sintaxe aspectual que preside à colocação das disposições traduz-se mais superficialmente sob a forma de uma aspectualização temporal, que é só um dos traços mais evidentes e de mais imediata identificação do universo passional, em particular nas definições que propõe os dicionários da língua dos diferentes sentimentos ou paixões. O “rancor” é 118 “ressentimento durável”, a “paciência”, “capacidade para suportar”, a “esperança”, “o esperar alguma coisa com confiança”; o encolerizado é visto como sempre prestes a encolerizar-se. Outros, em compensação, parecem comportar uma aspectualidade intrínseca: a esperança, porque consiste em esperar com confiança, funda-se num dever-ser e num crer-ser cuja interpretação é quase temporal; esse dever-ser poderia ser fundado , na versão aspectualizada proposta aqui, na modulação do devir que opera, como vimos, por suspensão pontualizante; o dever-ser funda a espera exatamente no que assegura a identidade de todos os instantes com respeito ao devir: a duração nada mais é, então, que prazo, os diferentes instantes que a compõem não comportam mais nenhuma potencialidade de mudança, pois, essas “micropotencialidades” foram neutralizadas pela modulação. Ao esperar com confiança, o sujeito espera por um tempo já presente em sua potencialidade e, portanto, por uma mudança já existente na própria espera. A realização desse desejo de mudança parece concretizar-se em Vai passar. O mundo ao avesso parece possível. Ao passar do samba, o sujeito toma consciência de sua vida, de seu passado de passividade e passa a desejar um futuro diferente, mais alegre. Essa oposição entre a passividade e o samba pode ser observada no percurso das operações de afirmação e negação e no quadrado semiótico abaixo: (FIGURA 22) (afirmação) passividade (disforia) (negação) → não-passividade (não-disforia) (afirmação) → samba (euforia) passividade samba disforia _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ euforia tensão relaxamento Não- samba não-passividade Não-euforia_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ não-disforia Retensão distensão 119 - - - - termos contrários termos contraditórios operações de negação ⇩ termos complementares ⇧ operação de afirmação Toda a estrutura oficial consagra a ordem social vigente, consagra a estabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regem o mundo: hierarquias, valores, normas e tabus religiosos, políticos e morais correntes. A festa popular liberta, mesmo que temporariamente, da verdade dominante, pois, resgata o passado que existe em cada um enquanto memória e aponta para a possibilidade de um futuro carregado de novidade. Vai passar nessa avenida um samba popular Cada paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais Que aqui sangraram pelos nossos pés Que aqui sambaram nossos ancestrais Num tempo página infeliz da nossa história, passagem desbotada na memória Das nossas novas gerações Dormia a nossa pátria mãe tão distraída sem perceber que era subtraída Em tenebrosas transações Seus filhos erravam cegos pelo continente, levavam pedras feito penitentes Erguendo estranhas catedrais. A partir da passagem do samba, os sujeitos tornam-se competentes, podem lembrar, e com isso, agir. Ao contrário da festa oficial, o carnaval era o triunfo de uma espécie de liberação temporária da verdade dominante e do regime vigente, de abolição provisória de todas as relações hierárquicas, privilégios, regras e tabus. Era a autêntica festa do tempo, a do futuro, das alternâncias e renovações. Opunha-se a toda perpetuação, a todo aperfeiçoamento e regulamentação, apontava para um futuro ainda incompleto (BAKHTIN, 2008, p. 8-9). 120 Nessa canção, observa-se um futuro incompleto pois o devir, “o produto de um desequilíbrio das tensões que confirma a cisão” (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p.32) é circular. O samba manipula o sujeito (povo) a querer lembrar de tudo o que ainda existe nele enquanto memória de tortura e opressão, e assim, querer ser alegre, livre, porém, o samba está apenas passando, transforma a realidade no momento em que passa, mas, não permanece na vida daqueles que começou a transformar: [...] se os termos extremos do percurso permanecem distintos, o devir será considerado linear; se, ao contrário, os termos extremos do percurso são identicos, o devir será circular (FONTANILLE e ZILBERBERG, 2001, p. 161). Esse querer lembrar, querer ser livre procede de uma “abertura”, sendo reconhecido por uma aceleração do devir e, cada nova ocorrência desse querer determina nova abertura ou nova aceleração. Assim, o futuro mais alegre começa a despontar no dia do carnaval, em que se ganha o direito a uma alegria, mesmo que passageira, quando aqueles que sofrem agora podem ser reis, porque o mundo está de cabeça para baixo os famintos podem ser barões (os “reis para rir”, reis enquanto durar o carnaval), a loucura de Napoleão é bem vinda, o estandarte do sanatório geral passeia no meio de todos, pois permite olhar o mundo com um olhar diferente, desnudado da “verdade” oficial. E um dia, afinal, tinham o direito a uma alegria fugaz Uma ofegante epidemia que se chamava carnaval, o carnaval, o carnaval Vai passar, palmas pra ala dos barões famintos O bloco dos napoleões retintos e os pigmeus do boulevard Meu Deus, vem olhar, vem ver de perto uma cidade a cantar A evolução da liberdade até o dia clarear Ai que vida boa, ô lerê, ai que vida boa, ô lará O estandarte do sanatório geral vai passar Ai que vida boa, ô lerê, ai que vida boa, ô lará O estandarte do sanatório geral... vai passar A temática do carnaval traz consigo outros temas. O tema do povo nas ruas aparece concretizado na figura do samba popular. A consciência do passado é figurativizada 121 na lembrança. A debreagem enunciva, um ele-lá-outrora, remete a um passado, que ancorado na expressão “Num tempo página infeliz da nossa história” figurativiza a própria Ditadura. Assim, nas figuras: “Que aqui sangraram pelos nossos pés”; “Que aqui sambaram os nossos ancestrais” está o tema da tortura. O golpe e o esquecimento são figurativizados em: “Página infeliz da nossa história”; “Passagem desbotada na memória”; “Pátria mãe tão distraída”; “Tenebrosas transações”. O exílio é figurativizado em: “Seus filhos erravam cegos pelo continente”. Já os temas da Liberdade; o mundo ao avesso; o poder nas mãos do povo são figurativizados em: “O carnaval”; “A ala dos barões famintos”; “napoleões retintos”; “pigmeus do boulevar”; “cidade a cantar”; “estandarte do sanatório geral”. O tema: concretização do desejo de mudança está figurativizado em “Vida boa”. [...] Outro elemento de grande importância era a permutação do superior e do inferior hierárquicos: o bufão era sagrado rei; durante a festa dos loucos , procedia-se à eleição de um abade, de um bispo e de um arcebispo para rir (...) eram numerosas as festas nas quais se elegiam obrigatoriamente reis e rainhas efêmeros (por um dia), por exemplo o dia da festa de Reis ou de São Valentim (BAKHTIN, 2008, p.70). O carnaval traz a possibilidade da inversão, mesmo que temporária, entre o superior e o inferior. E a loucura é característica do carnaval, permite observar o mundo com um olhar descolado do ponto de vista “normal”, impregnado pelas verdades oficiais, é uma loucura alegre e festiva, bandeira da revolução proposta pelo samba que passa, estandarte daqueles que sambam propondo-se a participar das mudanças. Vale também observar as duas ocorrências da expressão “dia” nessa composição. Em sua primeira ocorrência, indica uma ênfase positiva sobre o novo dia que vai chegar, concretizando a esperança de um futuro melhor, num regime social e econômico mais justo, numa nova verdade, mesmo que fugaz. Em sua segunda ocorrência, o dia que surge, que clareia, traz consigo o fim da festa, da alegria e, por conseqüência, da liberdade (bem próximo do uso dessa expressão pelas músicas que tratam da boemia, nas quais, o dia nasce fazendo desaparecer a festa e o retorno às verdades oficiais). O autor utiliza-se também do tempo no futuro, pois, “[...] durante a festa, a voz do tempo fala principalmente no futuro” (BAKHTIN, [1965] 2008, p.250). Esse futuro é expresso já no título “Vai passar”. Porém, é um futuro bem próximo: “Cada 122 paralelepípedo da velha cidade essa noite vai se arrepiar”. É um futuro já quase presente na realização do aqui: “Ao lembrar que aqui passaram sambas imortais”; “Que aqui sangraram pelos nossos pés”; “Que aqui sambaram nossos ancestrais”. Esse futuro aqui-agora, apresenta-se misturado com o passado lá-outrora representado em: “passaram”, “sambaram”, “sangraram”, “num tempo”, “dormia”, “era”, “erravam”, “levavam”, “um dia”, “tinham”, “chamava”. Além do presente que pode ser percebido por meio do vocativo expresso por um eu que já está na avenida e chama “Deus” para vir agora olhar a cidade a cantar, a evolução da liberdade até o dia clarear. Já, em Apesar de Você, proibida pela censura em 1970 e só liberada oito anos depois, Chico Buarque apresenta um tempo histórico, o qual é um elemento transformador e irreversível. Utilizando-se da estrutura musical em forma de narrativa, das cantigas populares, samba-canção, o autor lança mão de uma temática de repressão, realizando uma crítica político social. O percurso dessa crítica se sustenta na oposição entre um hoje disfórico ou repulsivo e um amanhã eufórico, ou seja, atraente ao sujeito. (FIGURA 23) (afirmação) hoje (negação) → (disfórico) não-hoje (afirmação) → amanhã (não-disfórico) hoje (eufórico) amanhã disforia _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ euforia tensão relaxamento não- amanhã não-hoje não-euforia_ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ _ não-disforia retensão distensão 123 - - - - termos contrários termos contraditórios operações de negação ⇩ termos complementares ⇧ operação de afirmação É então um texto de proposta euforizante, partindo de um estado de tensão para a proposição de um estado de relaxamento. Diz-se proposta euforizante, porque o estado de relaxamento ocorrerá com a chegada de um amanhã, que mesmo existindo enquanto potência, até o final da composição ainda não se realiza, é apenas ameaça. Ou seja, até o final da composição, o sujeito não deixa de ser virtual para passar a ser o sujeito realizado, já que não entra em conjunção com o amanhã em que está investido o valor de liberdade. Hoje você é quem manda Falou, tá falado Não tem discussão A minha gente hoje anda Falando de lado E olhando pro chão, viu Você que inventou esse estado E inventou de inventar Toda a escuridão Você que inventou o pecado Esqueceu-se de inventar O perdão ... Apesar de você Amanhã há de ser Outro dia Você vai se dar mal Etc. e tal Assim, durante todo o percurso do sujeito nessa composição, ele se mostra amargurado, pois quer ser livre, não crer ser livre e sabe não poder ser livre enquanto o amanhã, que o tornará competente, não chegar. É por esse motivo, que 124 o sujeito amargurado deseja vingar-se do anti-sujeito que o oprime, tornando-o impotente no hoje (“Você vai se dar mal / Etc. e tal”). O tempo é o presente, debreagem enunciativa, de um eu – aqui – agora que, como já foi afirmado em momento anterior, vincula o sujeito aos fatos e símbolos de sua época, como se pode perceber na primeira estrofe: “Hoje você é quem manda/Falou, tá falado/Não tem discussão, não./A minha gente hoje anda/Falando de lado e olhando pro chão”. O eu é então narrador que institui “você” como narratário e o hoje representa o momento em que esse eu que, ao mesmo tempo em que conta a história, participa da mesma e o aqui é o Brasil deste período. Pode-se perceber também a ocorrência da embreagem enunciva (então – lá). O futuro, o tempo da festa, é utilizado nessa letra como um futuro anterior (futuro do presente composto,) indicando uma “anterioridade em relação a um momento de refrência futuro” (FIORIN, 2008, p.161). O que pode ser percebido em trechos como: “Amanhã há de ser outro dia”; “Onde vai se esconder”; “E eu vou morrer de rir”; Você vai se dar mal”. Esse futuro anterior enfatiza, quase que como uma profecia, o dia que virá. Profetiza-se o tempo da liberdade, da alegria despreocupada, da desrepressão. E uma ênfase positiva é colocada sobre o novo que vai chegar. Esse elemento toma então um sentido mais amplo e mais profundo: ele concretiza a esperança popular num futuro melhor, num regime social e econômico mais justo, numa nova verdade (BAKHTIN, [1965] 2008, p.70). Em oposição ao amanhã, o hoje é figura da opressão. No hoje, há censura (“falou, tá falado/não tem discussão), há um estado engessado, há a escuridão. Essa escuridão (e inventou de inventar/toda a escuridão) opõe-se ao dia que nasce (“vendo o dia raiar”; “vendo o céu clarear/ de repente, impunemente”) trazendo a novidade de vida, a inversão do poder, a desrepressão. Neste caso, o dia que nasce difere-se do clarear do dia na composição anterior, a nova aurora não traz consigo o fim da festa e o inicio de um mesmo ciclo, mas, o romper de um ciclo. Em Apesar de Você, o raiar do dia traz consigo o amanhã, tempo-espaço onde a festa será possível. Isto porque: “a face risonha popular olhava para o futuro e ria-se nos funerais do passado e do presente” (BAKHTIN, [1965] 2008, p.70). 125 Observa-se também que há nessa composição a inversão do dia e da noite. Para os românticos, é a noite que instaura a festa, é quando há a escuridão que há a possibilidade de ser livre. Já no mundo carnavalizado, a luz é figura da liberdade, precioso é o momento em que a luz sucede à obscuridade, a manhã à noite, a primavera ao inverno (“a manhã renascer e esbanjar poesia”), pois, “[...] no grotesco popular a luz é o elemento imprescindível: o grotesco popular é primaveril, matinal e auroreal por excelência” (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 36). Portanto, não é possível no mundo carnavalizado a figura do “samba no escuro”, pois na circunstancia da nova vida que surge com o novo dia, o samba é elemento órfico, libertador e, dessa forma, auroreal. O tema da opressão é também figurativizado no pecado que se opõe ao perdão (“Você que inventou o pecado/Esqueceu-se de inventar/O perdão”). O perdão liberta, enquanto a idéia do pecado aprisiona, traz um elemento de medo e intimidação, já que “o cristão deve conservar uma seriedade constante, o arrependimento e a dor em expiação dos seus pecados” (BAKHTIN, [1965] 2008, p.63), pois a consciência do pecado interdita o sujeito, ou seja, ele deve afastar-se de tudo aquilo que se deve não fazer (de acordo com as convenções sociais, religiosas, enfim, ideológicas) mesmo que haja nele a volição (querer fazer). O novo dia (a nova vida) surge figurativizado em um galo que canta sem tomar conhecimento da proibição, sem conhecimento do não poder fazer, sem conhecimento do seu dever não ser portador da boa nova. O tema dessa vida outra do povo, essa vida outra que desconhece proibições, hierarquias e separações aparece também nas figuras da água nova que brota e das pessoas que se amam sem parar em oposição ao amor reprimido. A água é imagem de renascimento, de limpeza de purificação, enquanto o amor é paixão daquele que é livre, pois, apenas quem é livre quer ser amante e amado, crer ser amante e amado, sabe poder ser amante e amado e quer fazer o bem a quem ama. Portanto, [...] Nessa circunstancia a festa convertia-se na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o qual penetrava temporariamente no reino utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância (BAKHTIN, [1965] 2008, p.8). O medo é tema que encontra suas figuras em um grito contido, na tristeza e na lágrima que rola, em oposição à figura do jardim que floresce, do coro que canta e 126 do sujeito que morre de rir. O medo cala, entristece e embrutece, porque, “na boca do poder, a seriedade visava a intimidar, exigia e proibia; na dos súditos, pelo contrário, tremia, submetia-se, louvava, abençoava ... A seriedade oprimia, aterrorizava, acorrentava, mentia e distorcia; era avara e magra” (BAKHTIN, [1965] 2008, p.81). Já o riso, [...] menos do que qualquer outra coisa, jamais poderia ser um instrumento de opressão e embrutecimento do povo. Ninguém conseguiu jamais torná-lo inteiramente oficial. Ele permaneceu sempre uma arma de liberação nas mãos do povo (BAKHTIN, [1965] 2008, p.81). E esse riso é contra toda a realidade, contra o mundo perfeito e acabado. Isto porque, durante o carnaval, é possível até “morrer de rir”, já que o povo não se exclui do mundo, ele é também incompleto e renasce e se renova com a morte. A morte que não é negação da vida, mas parte da vida, está incluída na vida, paralelamente ao nascimento. “Morrer de rir” é uma das variedades da morte alegre, a morte é uma imagem ambivalente, e é por isso que ela pode ser alegre. A morte carnavalesca pode trazer também a idéia de satisfação, é por isso que se deseja morrer durante o carnaval, pois, “onde há morte, há ao mesmo tempo nascimento, alternância, renovação” (BAKHTIN, [1965] 2008, p.358-359). O riso e a visão carnavalesca do mundo destroem a seriedade unilateral, destroem o medo e o silêncio. O coro canta porque o povo se uniu sem hierarquias, sem separações e o amanhã iluminou a liberação da consciência, do pensamento e da imaginação humana, que ficaram disponíveis para o desenvolvimento de novas possibilidades de vida. Nesse sentido, ao observar o universo poético de Chico Buarque, percebe-se a existência de canções de conteúdo órfico, de apelo dionisíaco. Assim como a música encantadora de Orfeu o ajudou a atravessar do reino dos vivos ao reino dos mortos em busca da sua amada, e dele retornar, o samba, em sua passagem, altera o indivíduo e a natureza, fazendo-lhe atravessar do estado de morte, ao estado de vida. É por esse motivo que em Corrente o samba coloca em oposição a alegria (atraente) e a tristeza (repulsiva). O sujeito (eu) utiliza-se do samba para poder dizer o que 127 pensa e operar uma transformação na vida da multidão levando-a do estado de tristeza ao estado de alegria. O tempo é o presente, debreagem enunciativa, um eu-aqui-agora que compõe um samba “bem pra frente”, em oposição a um passado lá-então em que esse eu andou “sambando errado”. Nessa composição, torna-se mais nítida ainda a idéia de que a debreagem enunciativa vincula o sujeito aos fatos da sua época, pois nos trechos, Hoje é preciso refletir um pouco E ver que o samba está tomando jeito Só mesmo embriagado ou muito louco Pra contestar e pra botar defeito Percebe-se o engajamento do sujeito em relação à realidade em que está inserido, já que ele percebe que deve não contestar, que não pode botar defeito, mas entende que essa é a função do samba e o faz, por isso, “o samba está tomando jeito”. O samba como uma corrente tematiza a harmonização da desigualdade e a comunhão universal. Portanto, a multidão deve sambar contente, ela não é um “hóspede melancólico” (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 217), ela é parte integrante do samba, é ela que dá vida ao samba. Observa-se ainda nos versos acima que a festa acontece em um momento de crise. A crise intimida, mas não consegue sobresair-se à embriaguez e à loucura. A embriaguez tematiza a liberdade do espírito e da palavra: Acontece o mesmo na embriaguez: em seguida a um aumento súbito de sangue, as almas mudam com os pensamentos que elas contêm, e os homens, esquecidos dos males presentes, aceitam a esperança de bens futuros (Tratados de Hipócrates, apud BAKHTIN, [1965] 2008, p.250). E assim, embriagado, o sujeito adquire competência para poder ser livre e contestar. A loucura parodia o espírito oficial e tematiza a construção de uma nova verdade liberada de todas as regras e restrições do mundo oficial, bem como das suas preocupações e seriedade. 128 Dessa maneira, a embriaguez e a loucura atribuem as competências necessárias para que o sujeito possa ser sincero e claro e possa confessar que sambava errado, revelando a vitória de um samba que entoa um tempo alegre sobre o passado de desengajamento. Portanto, o samba “pra frente” propõe o rebaixamento do medo e do sofrimento, lança abaixo o tom sério, impede que o sério se fixe e se isole da integridade inacabada da existência cotidiana. Já em Pelas Tabelas, percebe-se, desde o início, um contínuo estado de tensão do sujeito do percurso. A insegurança, que gera a aflição, decorre da espera tensa. O sujeito está em estado de disjunção e, portanto, de tensão, pois, quer ser em conjunção com o seu estado anterior de paz, crer não ser mais em paz, e não sabe poder ser em paz: Ando com minha cabeça já pelas tabelas Claro que ninguém se importa com minha aflição Um sujeito que está com a cabeça pelas tabelas é aquele que está prestes a perder o seu espaço, a sua posição, está com a “cabeça a prêmio”. Um sujeito aflito, angustiado. Aflição, segundo o Dicionário Aurélio do Português (FERREIRA, 2004) , é “grande sofrimento, dor profunda, tormento; pena moral, ansia, mágoa, padecimento físico, tortura”. Esse sujeito é também solitário no meio da multidão, já que ninguém percebe o quão aflito ele está. O sujeito solitário é então um sujeito em estado de incompletude, pois não sente apenas a necessidade do outro, mas a urgencia de que o outro o ajude a recompor o seu ser, perceba a sua angústa e o conduza ao estado de relaxamento. É também um sujeito descrente, um sujeito sem nenhuma certeza, um sujeito que faz apenas suposições, como se pode perceber no uso dos verbos: “achei”, “jurei”, “pensei”, e dos advérbios de dúvida: “talvez”, “provavelmente”. Nesse sentido, cabe observar as variações tensivas68 na letra da música Pelas Tabelas, pois, de acordo com Fontanille e Zilberberg (2001, p.20), “o corpo próprio é 68 Essas variações serão observadas a partir das reflexões de Fontanille e Zilberberg (2001). 129 o lugar em que se fazem e se sentem, de uma só vez, as correlações entre valências perceptivas (intensidade e extensidade)”. Assim, vale observar que não há no texto um momento de relaxamento, pois as suposições não acabam, a última frase do texto é justamente “eu achei que era ela puxando o cordão”. É um texto sem grande extensão temporal, por isso tão intenso já que reflete as emoções do sujeito em apenas um recorte de tempo, sem que o sujeito realize grandes movimentações dentro do seu percurso para alterar o seu estado de disjunção com a paz, transformando-o em estado de junção. A única performance do sujeito é a de dançar de blusa amarela, mesmo assim, sem tanta certeza de que estará em conjunção com seu estado de paz: “Minha cabeça talvez faça as pazes assim”. Sobre isso Fontanille e Ziberberg (2001, p.287) discorrem: O momento da emoção reduz a duração da narrativa a um “ponto”, e reorganiza o conjunto do percurso em torno do centro dêitico e sensível. De fato, o momento presente é sensibilizado porque compõe uma apreensão, isto é, um “já”, e um foco, isto é, um “doravante”. Tal sincretismo inibe a possibilidade da debreagem narrativa, a história de um amor é “vivida” num instante, o da dêixis, ao invés de ser desdobrada e relatada num espaçotempo narrativo: é assim que poderíamos compreender, em ato e em discurso, o que Semiótica das Paixões chama de “reembreagem sobre o sujeito tensivo”. Percebe-se em Pelas Tabelas que a duração da narrativa foi reduzida a um ponto: o momento da aflição do sujeito. E o conjunto do percurso dá-se em torno desse centro dêitico e sensível: o sujeito está aflito por acreditar que a sua cabeça anda “pelas tabelas”. O momento presente é sensibilizado, o “já”, que se apresenta na conjugação dos verbos “ando”, “toca” e na própria expressão “já” presentes nos dois primeiros versos: Ando com a minha cabeça já pelas tabelas Claro que ninguém se toca com minha aflição O foco, o “doravante”, está no momento em que “todo mundo” toma as ruas de blusa amarela e o sujeito começa a sua série de suposições em torno da sua cabeça que já “anda pelas tabelas”: Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela Eu achei que era ela puxando um cordão Oito horas e danço de blusa amarela 130 Minha cabeça talvez faça as pazes assim Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas Eu pensei que era ela voltando pra Minha cabeça de noite batendo panelas Provavelmente não deixa a cidade dormir Quando vi um bocado de gente descendo as favelas Eu achei que era o povo que vinha pedir A cabeça de um homem que olhava as favelas Minha cabeça rolando no Maracanã Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas Eu jurei que era ela que vinha chegando Com a minha cabeça já pelas tabelas Claro que ninguém se toca com minha aflição Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela Eu achei que era ela puxando um cordão Oito horas e danço de blusa amarela Minha cabeça talvez faça as pazes assim Quando ouvi a cidade de noite batendo as panelas Eu pensei que era ela voltando pra Minha cabeça de noite batendo panelas Provavelmente não deixa a cidade dormir Quando vi um bocado de gente descendo as favelas Eu achei que era o povo que vinha pedir A cabeça de um homem que olhava as favelas Minha cabeça rolando no Maracanã Quando vi a galera aplaudindo de pé as tabelas Eu jurei que era ela que vinha chegando Com a minha cabeça já numa baixela Claro que ninguém se toca com a minha aflição Quando vi todo mundo na rua de blusa amarela Eu achei que era ela puxando um cordão É a história de uma aflição vivida em um instante, o momento em que o povo toma as ruas de blusa amarela e que o sujeito supõe que “ela” vem puxando um cordão, liderando a festa. Não é, então, uma história desdobrada e relatada num espaçotempo narrativo. É também um texto veloz, os versos se emendam no percurso da leitura: Eu achei que era ela puxando o cordão Oito horas e danço de blusa amarela ... Eu pensei que era ela voltando pra minha cabeça de noite batendo panelas E, ao se emendarem, constroem um novo sentido, observe-se que, ao ler: ... cordão oito horas e danço de blusa amarela, parece que se lê: dão oito horas e danço de blusa amarela. Bem como, ao ler: ... pra minha cabeça de noite batendo panelas, parece que se lê: Eu pensei que era ela voltando pra mim, a cabeça de noite batendo panelas. Sobre isso, Greimas e Fontanille (1993, p.139) explanam: 131 Também uma reembreagem sobre o sujeito que sente é necessária para convocar no discurso os efeitos somáticos da paixão. [...] Um dos índices mais significativos desse retorno do sujeito tensivo no discurso deve-se à aparente incapacidade do “sujeito que discorre” de dominar os encadeamentos sintáticos; as trajetórias se perdem, a sintaxe parece submissa à influencia das oscilações e das mudanças de equilíbrio da tensividade. Tudo se passa como se, em lugar de manifestar transformações programadas, a aspectualização regesse o encadeamento dos predicados: o estilo semiótico prevaleceria sobre a lógica da ação. O “sujeito que discorre” em Pelas Tabelas não consegue dominar os encadeamentos sintáticos, tanto que as suas orações encontram a conclusão ao ligar-se às orações seguintes, tal qual se pode perceber nos trechos supracitados. Assim, a aspectualização rege o encadeamento dos predicados ao passo que, em curta duração (extensão), no instante da dêixis, o sujeito vive, com intensidade, todo o sofrimento, dor e mágoa da aflição. Partindo para uma análise dos temas e figuras presentes na letra dessa música, percebe-se também a presença de figuras ligadas à temática do carnaval. O tema do mundo carnavalizado, às avessas, encontra-se presente na figura de “uma cabeça já pelas tabelas”, uma cabeça que rola no Maracanã, no povo que desce as favelas e toma as ruas pedindo a cabeça do homem que olhava as favelas. Essas figuras remetem à transgressão da ordem, cabeças rolando indicam o destronamento de alguém que detinha o poder, enquanto aqueles que deveriam submeter-se ao poder por serem favelados, marginalizados, são agora os donos da rua, os intimidadores. A blusa amarela figurativiza a fantasia, a máscara, a alegre negação da identidade e do sentido único [...] expressão das transferências, das metamorfoses, das violações das fronteiras naturais [...] cria uma atmosfera especial, como se pertencesse a outro mundo (BAKHTIN, [1965] 2008, p.35). É a blusa amarela que faz o povo tomar as ruas enquanto povo e não cada um individualmente, que cria uma atmosfera de novidade, de expectativa, de coletividade. A figura do cordão traz consigo a própria instância da festa. Uma festa que não é individual, mas que é coletiva, que não tem hierarquias nem diferenças. Uma festa 132 que não é espetáculo para ser assistida, mas uma festa da qual todos devem participar ativamente, devem vivê-la, pois é impossível escapar a esse cortejo que passa sem nenhuma fronteira espacial, trazendo renascimento e renovação. Bem como a figura da cidade que não dorme, esperando que a festa não acabe, que a nova ordem se estabeleça. A dança apresenta duas imagens. Primeiro, a imagem da festa, a alegria de integrar o cortejo que canta e dança livremente. Segundo, a imagem do poder que se esvai, que desvanece, que é ridicularizado e rebaixado durante o carnaval. A “cabeça de noite batendo panelas” é a mesma que rola no Maracanã, é a mesma que anda pelas tabelas, é a mesma que será destronada. Observe-se a relação da cabeça que bate as panelas com a figura do tamborim quebrado em Bakhtin ([1965] 2008, p.178-179): A figura do tamborim quebrado é significativa. Para melhor compreender todo o episódio, é indispensável saber que o tamborim de bodas tem um valor erótico. “Bater o tamborim nupcial”, e de maneira geral o tamborim, significa realizar o ato sexual; o “tamborineiro” significa o amante. Na época de Rabelais esse sentido era conhecido de todos. [...] No mesmo sentido eram empregados os vocábulos “golpe”, “bater”, “golpear”, “bastão”. O falo se chamava “bastão de casamento” ou “bastão de uma só ponta”. E muito naturalmente os” murros de bodas” têm o sentido de ato sexual. Esse sentido se transmite aos golpes recebidos pelos chicaneiros, e é como um desígnio muito claro que esses golpes lhes são dados ao som do tamborim. [...] Todos os golpes tem uma significação simbolicamente ampliada e ambivalente: eles dão a morte (no limite) e dão uma vida nova, põem fim ao antigo e iniciam o novo. [...] As imagens rabelesianas fixam o próprio instante da transição, incluindo os seus dois pólos. Todo golpe dado ao mundo velho ajuda o nascimento do novo; é uma espécie de cesariana que é fatal para a mãe, mas faz nascer a criança. Golpeiam-se e injuriam-se os representantes do mundo velho mas nascente. Por causa disso, os golpes e injúrias se transformam em alegre ato festivo. Dessa maneira, a cabeça de noite bate panelas, golpeando, injuriando o mundo velho, a ordem vigente, fazendo nascer o novo, a nova ordem, tudo isso em forma de festa. E, aliada a isso, a figura da “galera aplaudindo de pé as tabelas”, comemorando a vitória do novo sobre o velho, a partir dos golpes que se deram neste. 133 O velho mundo golpeado tem a sua cabeça lançada fora e a figura da cabeça em uma baixela, além de fazer menção ao episódio bíblico de João Batista, é também figura carnavalesca, ao passo que certas formas carnavalescas são uma verdadeira paródia do culto religioso, sendo que O princípio cômico que preside aos ritos do carnaval, liberta-os totalmente de qualquer dogmatismo religioso ou eclesiástico, do misticismo, da piedade, e eles são, além disso, completamente desprovidos de caráter mágico ou encantatório (não pedem nem exigem nada) (BAKHTIN, [1965] 2008, p. 6). No episódio narrado no Evangelho de Marcos (Bíblia de Jerusalém, 2002), Salomé dança e pede ao rei Herodes a cabeça do amado. Assim, o povo nas ruas, livre de qualquer dogmatismo religioso, de qualquer piedade, dança esperando a cabeça daquele que olha as favelas. E por fim, “Ela”, liberdade, o poder nas mãos daqueles que nunca o detiveram. Essa expressão causa tensão ao longo de todo o texto – É “ela” que o sujeito “acha” que vem puxando um cordão; É “ela” que o sujeito “pensa” que está voltando; É “ela” que o sujeito “jura” que vem chegando com a sua cabeça numa baixela. A liberdade perturba a ordem porque permite a vida festiva do povo, permite o riso, a inversão da ordem, permite que se destronem os reis, permite o renascimento e a renovação da vida. Por isso, a liberdade causa tensão naqueles que detém o poder na vida ordinária, hierárquica e engessada, emprestando, nesse caso, um percurso passional, perturbando o sujeito com suas pulsações discordantes. Ora, um fato perturbador surgiu de imediato: não apenas o sujeito do discurso é suscetível de transformar-se em sujeito apaixonado, perturbando seu dizer cognitiva e pragmaticamente programado, mas também o sujeito do “dito” discursivo é capaz de interromper e desviar sua própria racionalidade narrativa para emprestar um percurso passional, ou mesmo acompanhar o precedente, perturbando-o por suas pulsações discordantes (GREIMAS e FONTANILLE, 1993, p. 17). Portanto, a liberdade é primordial no mundo carnavalizado, não existe festa do povo sem o contato livre e familiar que se estabelece na praça pública. A consciência do poder fazer é imprescindível para a interrupção do poder oficial, com suas interdições e barreiras hierárquicas. É imprescindível para que a vida saia de seus trilhos habituais, legalizados e consagrados, e penetre no domínio da liberdade utópica. 134 3.2 A CENSURA, O EXÍLIO, A TORTURA Escancarada, a ditadura firmou-se. A tortura foi o seu instrumento extremo de coerção e o extermínio, o último recurso da repressão política que o Ato Institucional n 5 libertou das amarras da legalidade (GASPARI, 2002 b, p.4). No período da Ditatura Militar no Brasil, as artes foram censuradas e quem não obedecia à ordem vigente era exilado ou torturado. Não era tempo de carnaval porque a liberdade era cerceada e a coletividade punida. Não era dia, era uma densa noite em que o riso carnavalesco revolucionário fora censurado, exilado, preso e torturado. A censura era também forma de tortura, já que forçar a não manifestação também violenta e aprisiona. A liberdade de imprensa foi assegurada aos brasileiros em 28 de agosto de 1821, assinada por D. Pedro I. Cento e cinqüenta e um anos depois, precisamente no dia 6 de setembro de 1972, o decreto de D. Pedro foi censurado pelo Departamento da Polícia Federal, com a seguinte ordem a todos os jornais do País: "Está proibida a publicação do decreto de D. Pedro I, datado do século passado, abolindo a Censura no Brasil. Também está proibido qualquer comentário a respeito" (SOARES, sd., p.1). Não se podia protestar e também não se podia comentar o não protesto. Tudo fora proibido de todas as formas. A censura política foi feita através de diversas formas, e a utilização de uma forma ou de outra tinha conseqüências financeiras e organizacionais, além das obviamente políticas, para o jornal ou revista em questão. A censura prévia implicava seja a presença de uma equipe de censores na Redação, que foi a forma adotada contra vários grandes jornais que se recusaram a se submeter à autocensura, seja a obrigação de enviar a Brasília todos os materiais para que fossem examinados, que foi o caso da imprensa alternativa, geralmente de freqüência semanal (SOARES, sd., p.5). Ou seja, a censura fora, principalmente, um instrumento de proteção autoritária do próprio Estado, buscando esconder o autoritarismo de forma autoritária, assim como as resistências a ele. 135 E, de forma autoritária, o governo reagia àqueles que não se rendessem aos seus mandos. Era o Brasil para quem soubesse ficar calado, do contrário cabia a prisão, a tortura, o exílio. Talvez não seja coerente tratar de exílio ou tortura como se fossem opostos ou excludentes. O exílio era também forma de tortura, menos brusca, porém mais extensa. Porque a saudade arde tanto quanto a dor do pau-de-arara, porém, arde devagar, machuca aos poucos e consome na mesma proporção. E o exílio provoca uma saudade ainda mais intensa, porque é a saudade de um lugar para onde não se pode voltar. A intensidade do ser exilado é percebida na letra de Samba de Orly (1970): Vai meu irmão Pega esse avião Você tem razão De correr assim Desse frio Mas beija O meu Rio de Janeiro Antes que um aventureiro Lance mão Pede perdão Pela duração (Pela omissão)* Dessa temporada (Um tanto forçada)* Mas não diga nada Que me viu chorando E pros da pesada Diz que eu vou levando Vê como é que anda Aquela vida à toa E se puder me manda Uma notícia boa * versos originais vetados pela censura Nessa letra, o sujeito modalizado, que está prestes a pegar o avião, quer-fazer (vontade), deve-fazer (Vai meu irmão / pega esse avião) e pode-fazer, é livre para partir. Já o sujeito modalizador quer-fazer, porém não deve e não pode deixar o lugar onde estar, pois é interditado e impotente para fazê-lo. Então, o sujeito modalizador busca realizar a sua vontade por meio do sujeito modalizado, que pode partir, beijar o Rio de Janeiro, pedir perdão, levar notícias e enviar notícias. 136 É, portanto, um sujeito regido pela espera, que é em si um estado tenso, disfórico, porém, há a possibilidade de prever também estados de espera relaxada. Nesse caso, diferente da espera insegura que gera aflição no sujeito de Pelas Tabelas, o sujeito de Samba de Orly parece ser (Mas não diga nada / que me viu chorando) mais seguro, mais esperançoso, e a esperança é um dos efeitos de sentido da espera relaxada, é uma espera paciente, de um sujeito em estado de não-disjunção e distensão, já que o sujeito quer ser livre para partir, não crer não ser livre e sabe poder ser livre, tudo isso a partir do outro que parte, possibilitando, com a sua partida, a realização do desejo daquele que fica. Por isso, apesar de viver um momento de privação, o sujeito não se mostra amargurado, nem há o desejo de vingança ou revolta, há apenas o desejo de realizar a sua junção com o seu objeto de valor (Rio de Janeiro), mesmo que essa junção se dê por meio de outro sujeito. Na segunda estrofe temos uma outra versão, escrita por Vinícius de Moraes, para os versos de Chico Buarque: “Pela duração / Dessa temporada”. Vinícius escreve: “Pela omissão / Um tanto forçada”. Chico aceitou a idéia de Vinícius para a melodia de Toquinho, mas tais versos foram proibidos pela censura. A versão de Chico Buarque trata de tempo, extensão, duratividade e não de intensidade. Segundo o Dicionário Aurélio, temporada é um grande espaço de tempo, ou seja, o sujeito pede perdão pela extensão dos seus atos e não pela intensidade deles. Na versão censurada, tem-se a intensidade. Segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), omissão é falta, lacuna, ausência de ação, inércia, ato ou efeito de não fazer aquilo que moral ou juridicamente se devia fazer. E, forçar é obter por força, conquistar, conseguir, constranger, violentar, levar alguém a fazer alguma coisa contra a vontade, constranger, obrigar. Portanto, o sujeito, moralmente, devia fazer (devia partir), mas não o fez porque não pode, porque algo/alguém o tornou impotente. A impotência ocorreu pelo uso brusco da força de algo/alguém por sobre o sujeito. O que é forçado é brusco, implica ruptura no sujeito. O ser que sofre tem o seu tempo interior subtraído e deixa de ser sujeito (no sentido ativo), e se sujeita (no sentido passivo) aos desígnios que vêm de fora. Esse sujeitar-se é manifestado na 137 forma passiva do verbo “forçada”, essa terminação indica que o sujeito da oração não foi o que praticou, mas o que sofreu a ação. Assim, a censura vetou a intensidade dos versos de Vinícius e não percebeu a dor extensa nos versos de Chico Buarque. E, antes de dar continuidade a essa análise, vale ressaltar que, com a desembreagem, criam-se, ao mesmo tempo, o sujeito, o tempo e o espaço da enunciação e a representação actancial/actorial, espacial e temporal do enunciado. Logo, nessa música, um eu (“meu”, “me”, “eu”), indicador de desembreagem enunciativa, faz uma série de prescrições a um você que parte. Prescrições ancoradas em um tempo do agora (“Vai”, “pega”, “tem”, “beija”, “lance”, “pede”, “diga”, “diz”, “vê”, “manda”) e em um espaço do aqui, disfórico (desse frio), e do lá, eufórico (“o meu Rio de Janeiro”, “aquela vida à toa”). Os espaços do aqui e do lá, ao mesmo tempo em que ancoram o texto, são figuras que expressão o tema do exílio. Como em Canção do Exílio, de Gonçalves Dias, as figuras do aqui são disfóricas, enquanto as figuras do lá são eufóricas. O aqui é “frio”, que segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), é aquilo que cedeu calor, que perdeu calor; isento de paixão, insensível, indiferente; impassível, desumano, cruel. Ou seja, o aqui tortura, consome, é cruel, pois exclui o apego e a duratividade da paixão e não se atém à emoção. Enquanto o lá merece um beijo, merece ser guardado dos aventureiros. No lá se tem uma vida boa e é de lá que se aguarda, com esperança, uma notícia boa, enfim, é do espaço do lá que se sente saudade, que se manifesta o apego da paixão. Além da saudade, tortura de grande extensão, a tortura brusca, intensa, que esgana e trucida em um só golpe “duro e presto”, pode ser também observada em Fado Tropical. Élio Gaspari (2002 b, p.5) apresenta em A Ditadura Escancarada o que foi a tortura no período da Ditadura Militar no Brasil: [...] A tortura envenenou a conduta dos encarregados da segurança pública, desvirtuou a atividade dos militares da época, e impôs constrangimentos, limites e fantasias aos próprios governos ditatoriais. Em Fado Tropical, nota-se, além da comparação entre Brasil e Portugal, a presença do torturado, que é exilado que relembra a sua pátria com todas as suas 138 contradições e a presença do torturador nas passagens aspeadas, demonstrando todas as paixões daquele que tortura. Oh, musa do meu fado Oh, minha mãe gentil Te deixo consternado No primeiro abril Mas não sê tão ingrata Não esquece quem te amou E em tua densa mata Se perdeu e se encontrou Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal “Sabe, no fundo eu sou um sentimental Todos nós herdamos no sangue lusitano uma boa dosagem de lirismo...(além da sífilis, é claro)* Mesmo quando as minhas mãos estão ocupadas em torturar, esganar, trucidar Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora..." Com avencas na caatinga Alecrins no canavial Licores na moringa Um vinho tropical E a linda mulata Com rendas do Alentejo De quem numa bravata Arrebato um beijo Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal "Meu coração tem um sereno jeito E as minhas mãos o golpe duro e presto De tal maneira que, depois de feito Desencontrado, eu mesmo me contesto Se trago as mãos distantes do meu peito É que há distância entre intenção e gesto E se o meu coração nas mãos estreito Me assombra a súbita impressão de incesto Quando me encontro no calor da luta Ostento a aguda empunhadura à proa Mas o meu peito se desabotoa E se a sentença se anuncia bruta Mais que depressa a mão cega executa Pois que senão o coração perdoa..." Guitarras e sanfonas Jasmins, coqueiros, fontes Sardinhas, mandioca Num suave azulejo E o rio Amazonas Que corre Trás-os-Montes E numa pororoca Deságua no Tejo 139 Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um império colonial * trecho original, vetado pela censura A comparação entre Brasil e Portugal já aparece latente no título da letra: Fado Tropical. De acordo com o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), fado “é uma canção popular portuguesa, de caráter triste e fatalista, linha melódica simples, ao som da guitarra ou do acordeão, e que provavelmente se origina do lundu do Brasil colônia, introduzido em Lisboa após o regresso de D. João VI (1821); no Brasil, no século XVIII, dança popular, ao som da viola, com coreografia de roda movimentada, sapateados e maneios sensuais”. A idéia de um fado tropical alia aquilo que é popular em Portugal com Portugal dos trópicos, o Brasil. Na primeira estrofe, apresenta-se um sujeito em disjunção com a sua pátria, a sua “mãe gentil”. Apresenta-se, então, um sujeito saudoso. Vê-se mais uma vez a ligação entre Brasil e Portugal: saudade é palavra que só existe em português. Saudade não é apenas sentir falta, é mais que isso, é presença na ausência porque é lembrança, é o ser em disjunção e tensão. Por isso, o sujeito deixa a sua pátria consternado, ou seja, profundamente triste, de ânimo abatido, prostrado, desalentado. Não se trata de extensão, mas de profundidade, de intensidade, de densidade (“em tua densa mata”), o que torna o texto tenso. Na segunda estrofe, as aspas abrem espaço para um simulacro discursivo em primeira pessoa, a enunciação-enunciada estabelece uma ligação metafórica que se funda na similaridade, na equivalência que o simulacro mantém com a enunciação pressuposta. Desse modo, a voz é dada a um outro sujeito, o sujeito que tortura. Esse sujeito constrói-se em oposições: é capaz de ser sentimental, ou seja, passível às emoções e ao apego das paixões (uma boa dosagem de lirismo) e, ao mesmo tempo, capaz de esganar, torturar, trucidar. Ou seja, o poder ser sensível (“Meu coração fecha os olhos e sinceramente chora”), não bloqueia o poder fazer o mal ao outro. Gaspari (2002, p. 7) cita Sartre: “A tortura não é desumana; é simplesmente um crime ignóbil, crapuloso, cometido por homens [O desumano não existe, salvo nos pesadelos que o medo engendra]. A natureza imoral dos suplícios desaparece aos olhos daqueles que os fazem funcionar, confundindo-se primeiro com razões de Estado e depois com a qualidade do desempenho.” 140 Não há falta de paixão ou características desumanas naquele que tortura. Aquele que tortura também tem como objeto de valor a sua pátria, acredita estar defendendo a sua “mãe gentil”, para esse sujeito, o anti-sujeito é o torturado e a tortura é apenas um meio de levá-lo a amar a sua pátria. São ambos sujeitos apaixonados com o foco em um mesmo objeto de valor, porém, os valores investidos e a performance em direção a esse objeto é que são diferentes em cada sujeito. São sujeitos egoístas, o querer ter de um, implica querer que o outro não tenha. O coração do torturador guarda a mentira das mãos: parece ser sereno, mas, na verdade, traz nas mãos um golpe duro e ligeiro. É um sujeito contraditório em si mesmo, por isso, contesta-se. Um sujeito que não quer fazer, não crê ser capaz de fazer, porém, faz: golpeia, tortura (“É que há distância entre intenção e gesto”). Reconhece no outro alguém que faz parte do seu mundo (“E se o meu coração nas mãos estreito/Me assombra a súbita impressão de incesto”), porém, movido pelo egoísmo, se o outro se coloca entre ele e o seu objeto valor, logo esse outro transforma-se em anti-sujeito e recebe o seu golpe/sanção: Quando me encontro no calor da luta Ostento a aguda empunhadura à proa Mas o meu peito se desabotoa E se a sentença se anuncia bruta Mais que depressa a mão cega executa Pois que senão o coração perdoa Todavia, contraditório, esse sujeito crê ser capaz de perdoar, ou seja, crê ser capaz de não guardar rancor por sua insatisfação ou decepção com o anti-sujeito. É então um texto estruturado nas oposições e diferenças, porém, oposições e diferenças que vão se cada vez mais se aproximar ao longo do texto: Com avencas na caatinga Alecrins no canavial Licores na moringa Um vinho tropical E a linda mulata Com rendas do Alentejo De quem numa bravata Arrebato um beijo 141 Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal É mistura do delicado e do espinhoso (avencas /caatinga), do cheiroso e do fétido (alecrins / canavial), da bebida na vasilha que não lhe pertence (licores na moringa), da bebida quente quando deveria ser gelada (vinho tropical), do deslocamento (mulata / Alentejo), do grosseiro e do amável (bravata/beijo). É a mistura daquilo que é daqui com o que é de lá: Guitarras e sanfonas Jasmins, coqueiros, fontes Sardinhas, mandioca Num suave azulejo E o rio Amazonas Que corre Trás-os-Montes E numa pororoca Deságua no Tejo Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um imenso Portugal Ai, esta terra ainda vai cumprir seu ideal Ainda vai tornar-se um império colonial É o Brasil (sanfonas, jasmins, coqueiros, mandiocas, Amazonas, pororoca) que se distingue e ao mesmo tempo se encontra com Portugal (guitarras, fontes, sardinhas, azulejo, Trás-os-montes, Tejo). São elementos contrários, mas não contraditórios, a presença de um não significa a necessidade da ausência do outro, são como termos opostos de um mesmo eixo semântico, apresentando traços de diferença e de semelhança, apenas com variação do grau. Sobre a temporalização, tem-se o tempo do agora, com a ocorrência dos verbos no presente (“deixo”, “sê”, “esquece”, “sabe”, “sou”, “tem”, “trago”, “há”) e, mesmo quando há a ocorrência do passado ou do futuro, são passado e futuro próximos, ligados e refletidos no presente: “todos nós herdamos”; “Quando me encontro”; “Ainda vai tornar-se”. Refletindo o que se recebeu da metrópole e o desejo da colônia de ser como a sua metrópole, ou seja, tudo o que se faz no hoje é reflexo do que se recebeu no passado, enquanto colônia, e o que é preciso fazer para no futuro ser tal qual a metrópole. Esse tema da relação Brasil – Portugal, colônia – metrópole, dá-se a partir do conector de isotopia: “herdamos”. O lexema “herdamos” conecta duas isotopias figurativas, a do Brasil (mata, caatinga, canavial, moringa, tropical, mulata, sanfonas, 142 coqueiros, mandioca, Amazonas, pororoca) e a de Portugal (lirismo,avencas, vinho, Alentejo, fontes, sardinhas, proa). Já o lexema “deixo” desencadeia a isotopia figurativa de exílio, fornecendo uma leitura sócio-econômica e política e pode-se reler o texto nessa nova perspectiva: o sujeito deixa “consternado” a sua “mãe gentil”, onde “se perdeu e se encontrou”. Ainda no caminho dessa leitura sócio-política, os lexemas “torturar”, “esganar” e “trucidar”, desencadeiam a isotopia figurativa da tortura, permitindo que se observe as mãos que esganam, golpeiam dura e rapidamente, que executam a sentença em um plano político, tratando do autoritarismo, da opressão e da repressão ligadas ao período da enunciação. A letra Cálice (1973), composta em parceria com Gilberto Gil, apresenta a isotopia temática da censura a partir do jogo de palavras cálice / cale-se. O tema da censura aparece desde a oposição silêncio x grito, em que o silêncio é disfórico e o grito é eufórico. Estar em silêncio causa tensão no sujeito, enquanto o grito o levaria ao relaxamento. Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice Pai, afasta de mim esse cálice De vinho tinto de sangue Como beber dessa bebida amarga Tragar a dor, engolir a labuta Mesmo calada a boca, resta o peito Silêncio na cidade não se escuta De que me vale ser filho da santa Melhor seria ser filho da outra Outra realidade menos morta Tanta mentira, tanta força bruta Como é difícil acordar calado Se na calada da noite eu me dano Quero lançar um grito desumano Que é uma maneira de ser escutado Esse silêncio todo me atordoa Atordoado eu permaneço atento Na arquibancada pra a qualquer momento Ver emergir o monstro da lagoa De muito gorda a porca já não anda De muito usada a faca já não corta Como é difícil, pai, abrir a porta Essa palavra presa na garganta Esse pileque homérico no mundo De que adianta ter boa vontade Mesmo calado o peito, resta a cuca 143 Dos bêbados do centro da cidade Talvez o mundo não seja pequeno Nem seja a vida um fato consumado Quero inventar o meu próprio pecado Quero morrer do meu próprio veneno Quero perder de vez tua cabeça Minha cabeça perder teu juízo Quero cheirar fumaça de óleo diesel Me embriagar até que alguém me esqueça A primeira estrofe parodia o versículo bíblico do Evangelho de Mateus 26.39 (Bíblia de Jerusalém, 2002) em que Jesus, no Monte das Oliveiras, na noite de ser crucificado, pede ao Pai que afaste dele esse cálice, ou seja, que o livre desse sacrifício, dessa dor. A própria dor contida na idéia da palavra cálice no texto bíblico, remete ao sacrifício intenso que é ficar calado, em oposição às figuras do grito. O conector de isotopia “calada” desencadeia a isotopia figurativa do silêncio forçado (censura) e remete à relação cálice / cale-se. O sujeito censurado não está em silencio porque deseja estar, pelo contrário, ele quer e sabe falar, porém não pode, não deve. Observe-se, então, a oposição entre silêncio e grito no texto: (QUADRO 02) SILÊNCIO GRITO Disfórico Eufórico Tenso Relaxado Sangue, amargor da bebida, dor Ser filho da outra, realidade menos tragada, engolir a labuta, mentira, morta, ser escutado, bêbados no força bruta, palavra garganta, pecado, veneno. presa na centro da cidade, boa vontade, perder sua cabeça, perder teu juízo. Assim, estando em disjunção com o seu objeto-de-valor (o grito) em que investiu o seu valor de poder expressar o que pensa e sente, o sujeito, insatisfeito, torna-se amargurado (como beber dessa bebida amarga). 144 Há, então, uma luta entre o sujeito intimidado a ficar em silêncio, intimidação observada no verso “tragar a dor, engolir a labuta” e o corpo próprio do sujeito que o manipula a falar: “Mesmo calada a boca resta o peito”. Os verbos tragar e engolir demonstram a intensidade de intimidação do sujeito, é rápida e forte, é uma ruptura brusca com o ser que sente. Aquilo que é tragado, é devorado, é engolido de uma vez e sem mastigar, é a dor sentida toda de uma vez. Ao passo que a labuta, o trabalho, o desgaste, é também consumido, é também sofrido em segredo. E, dessa maneira, mesmo sendo passiva a boca (calada), mesmo que ela sucumba à intimidação, o peito mantêm-se em atividade. E mesmo que o peito se intimide e apassive, resta a cuca dos bêbados do centro da cidade. O desencadeador de isotopia “bêbados” permite também uma leitura carnavalizada do texto, remetendo à loucura e à embriaguez do carnaval rabelaisiano, que são sinônimos de liberdade. Essa leitura é reforçada pelas figuras do atordoado que permanece atento, o pileque homérico do mundo, cheirar a fumaça de óleo diesel, me embriagar até que alguém me esqueça. Isso em oposição à realidade opressora vigente, figurativizada pelo pecado, veneno, “tua cabeça”, “teu juízo”, pois, o pecado é criação da realidade opressora, ou seja, criação da cabeça que tem o poder de deferir o juízo. Também, a desembreagem enunciativa (eu-aqui-agora) permite relacionar as figuras aos acontecimentos do momento em que a letra foi composta. O eu manifesta toda a tensão vivida no momento presente (afasta, escuta, é, dano, presa), no momento da enunciação, além do seu desejo de mudança de estado (quero). O estado de tensão é também recurso da letra Acorda Amor (1974): Acorda, amor Eu tive um pesadelo agora Sonhei que tinha gente lá fora Batendo no portão, que aflição Era a dura, numa muito escura viatura Minha nossa santa criatura Chame, chame, chame lá Chame, chame o ladrão, chame o ladrão Acorda, amor Não é mais pesadelo nada Tem gente já no vão de escada Fazendo confusão, que aflição São os homens 145 E eu aqui parado de pijama Eu não gosto de passar vexame Chame, chame, chame Chame o ladrão, chame o ladrão Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer Mas depois de um ano eu não vindo Ponha a roupa de domingo e pode me esquecer Acorda, amor Que o bicho é brabo e não sossega Se você corre o bicho pega Se fica não sei não Atenção Não demora Dia desses chega a sua hora Não discuta à toa, não reclame Clame, chame lá, clame, chame Chame o ladrão, chame o ladrão, chame o ladrão (Não esqueça a escova, o sabonete e o violão) A matriz concebida para a ordenação de todas as estrofes da letra da canção pode ser assim resumida: “Acorda, amor ... Chame (clame), chame, chame ...” As reticências determinam os espaços de variação, nos quais o autor insere conteúdos impregnados de valores tensivos. Porém, os elementos constantes na matriz já trazem associações sugestivas. Acordar, chamar e clamar são expressões próximas em significação (despertar), porém diferem em coeficiente tensivo. Acordar, segundo o Dicionário Aurélio (FERREIRA, 2004), é tirar do sono, despertar, chamar. Segundo esse mesmo dicionário, chamar e clamar pertencem à mesma matriz latina, clamare, e chamar é dizer em voz alta o nome de alguém para que venha; acordar; convocar; atrair, seduzir, enquanto clamar é proferir em voz alta, bradar, gritar, exclamar; implorar, rogar, exorar, exigir, reclamar. Logo, as estrofes iniciam com uma forma mais branda de conduzir o interlocutor à realidade: “acorda”. A seguir, o alongamento necessário para definir o espaço-tempo para o despertar vai sendo reduzido e tendo um tratamento mais acelerado, com uma repercussão emocional imediata ao atingir o 146 clamar, já que o andamento que rege essas duas ultimas formas é o da velocidade em seu grau mais elevado. Na primeira estrofe, o acordar remete ao sair do sono. O próprio tempo é o tempo do sonho instaurado pelas formas temporais que se combinam apenas no tempo do imaginário: “tive” (pretérito), tinha (pretérito) e agora (advérbio de tempo que indica presente, instante da enunciação), além da forma “Era”, muito utilizada nos contos de fadas para criar uma nova realidade, um simulacro ancorado no instante da fantasia. Porém, o sonho do qual o sujeito desperta é um “pesadelo”. De acordo com o Dicionário Aurélio, pesadelo é agitação ou opressão durante o sono, causada por sonhos aflitivos. É a aflição, a insegurança, a espera tensa, que reaparece nitidamente nessa mesma estrofe (“Batendo no portão, que aflição”) e na segunda estrofe (“Fazendo confusão, que aflição”), espalhando tensão por todo o texto (“sofrer”, “não sossega”, “não sei não”, “atenção”, “clame”). A passagem do sonho para a realidade acontece com a transição das formas verbais do pretérito para o presente. Na segunda estrofe, no lugar de “tinha gente lá fora”, aparece “tem gente já no vão da escada”, observe-se que há um aumento da velocidade. No pretérito imperfeito do sonho, a gente está lá fora, “batendo no portão”, com o verbo no gerúndio, ou seja, a ação acontece no momento da fala. Todavia, No presente da realidade, a velocidade aumenta, a idéia de presente imediato é reforçada com o advérbio de tempo “já”, e o espaço também é aproximado, a gente não está mais “lá fora”, está aqui/já, no “vão da escada”. Sobre essa aceleração no espaço-tempo que aumenta a tensão no texto, Tatit (2004, p.310) afirma: [...] Todo fato imprevisto traz como coeficiente tensivo a alta velocidade, que rompe a ordenação do nosso tempo interno e nos deixa desnorteado. O andamento que passa a reger o texto é o da velocidade em seu grau mais elevado. A perplexidade do ser que sofre o efeito do arranco e da invasão decorre da subtração do seu tempo interior e, ele deixa de ser sujeito (no sentido ativo), já que não controla o próprio tempo, e se sujeita (no sentido passivo – “parado de pijama”) aos desígnios externos. E, nessa letra, como a velocidade apenas aumenta 147 (“Não demora / Dia desses chega a sua hora”), o sujeito não se recompõe e segue se sujeitando (“Não discuta, não reclame”) até o final, já que a velocidade e o estado de alerta (“Atenção”) seguem também até o final. Na terceira estrofe, a extensão do tempo rege o sofrimento e o esquecimento. Quanto mais curto o tempo, mais intenso o sofrimento, pois ainda deve permanecer o apego, a paixão, o amor (“Se eu demorar uns meses convém, às vezes, você sofrer”). Amor que já aparece desde o título, no tratamento do interlocutor, e que é o sentimento que predispõe alguém a desejar o bem de outrem ou de alguma coisa, e é por isso que se tenta, acordar, alertar, chamar o outro. Porém, quanto mais longo for o tempo, menor deve ser a intensidade do sofrimento até que se chegue ao esquecimento, o que seria o relaxamento mesmo sem a liquidação da falta, pois, conforme o Dicionário Aurélio, esquecer é deixar sair da memória; perder da lembrança; perder o amor, a estima, ou seja, perder o apego, a paixão, não desejar mais o objeto, não mais investir valor no objeto (“Mas depois de um ano eu não vindo/ ponha a roupa de domingo e pode me esquecer”). Além do interlocutor que ama e alerta, percebe-se no texto a presença do antesujeito que intimida, causa aflição, tensão. Esse ante-sujeito que oprime, a polícia, instaura o tema da opressão militar e tem como desencadeador de isotopia: “viatura”, e espalha-se no texto à partir da figuras: “dura”, “os homens”, “bicho”, em oposição à figura do “ladrão” que é durante todo o texto chamado, clamado para perto. “Ladrão” é também desencadeador de isotopia que, em oposição a “viatura” permite uma leitura sócio-política, levantando o questionamento de quem na realidade é a polícia e quem é o ladrão. Em Jorge Maravilha (1974), a passagem (duração, alongamento do tempo) conduz ao relaxamento: Há nada como um tempo Após um contratempo Pro meu coração E não vale a pena ficar Apenas ficar chorando, resmungando Até quando, não, não, não E como já dizia Jorge maravilha Prenhe de razão Mais vale uma filha na mão Do que dois pais voando 148 Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Ela gosta do tango, do dengo Do Mengo, domingo e de cócega Ela pega e me pisca, belisca Petisca, me arrisca e me enrosca Você não gosta de mim Mas sua filha gosta Há nada como um dia Após o outro dia Pro meu coração E não vale a pena ficar Apenas ficar chorando, resmungando Até quando, não, não, não E como já dizia Jorge maravilha Prenhe de razão Mais vale uma filha na mão Do que dois pais sobrevoando Você não gosta de mim Mas sua filha gosta A primeira e a terceira estrofes trazem essa idéia do tempo se alongou, passou, e fez com que os acontecimentos fossem amenizados. Nos versos “Há nada como um tempo / Após um contratempo”, o acidente imprevisto do contratempo não deixa o sujeito desnorteado nem sujeitado, porque o seu tempo interior não é subtraído, o tempo se alonga e não há mais o efeito do arranco por sobre o sujeito, o qual agora não investe mais valor no objeto do momento do contratempo. A passagem do tempo trouxe o desapego havendo ou não a liquidação da falta. O tempo conduziu o sujeito ao relaxamento, pois se não há apego, não há valor investido, não há falta (disjunção), nem tristeza ou rancor. Há, a partir da segunda estrofe o surgimento de um novo objeto-de-valor, a “filha”, com a qual o sujeito já está em conjunção, logo, satisfeito. Observa-se também nessa segunda estrofe, pela expressão “Mais vale ... do que”, que o objeto-de-valor da situação de constrangimento era o pai, que agora está “voando”, ou seja, se perdeu. O conector de isotopia “gosta” conecta duas isotopias figurativas, a da “filha” (em que se lê a história das moças que se apaixonam e namoram com aqueles que seus pais não desejam), que gosta (“pega”, “pisca”, “belisca”, “arrisca”, “enrosca”) do sujeito e de tudo o que se liga a este (o tango, o dengo, o mengo, o domingo e a 149 cócega) e a do “pai” (em que se lê a história daqueles que querem conquistar a amizade dos pais das moças, mas nunca conseguem) que não gosta do sujeito e que o vigia (“sobrevoando”). “Sobrevoando” é desencadeador de isotopia, desencadeando a isotopia figurativa de censura, pois, sobrevoar é voar por cima de, ou seja, vigiar. O que os permite uma leitura sócio-política ligada aos fatos do momento em que a letra foi composta, quando os oficiais que interrogavam e censuravam Chico Buarque pediam-lhe autógrafos para suas filhas que eram fãs do compositor. Assim vale a prescrição em forma de ditado popular (“como já dizia”), em época de ditadura: “Mais vale uma filha na mão/Que dois pais sobrevoando”. Meu Caro Amigo (1976) é letra de música em forma de carta: Meu caro amigo me perdoe, por favor Se eu não lhe faço uma visita Mas como agora apareceu um portador Mando notícias nessa fita Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta Muita mutreta pra levar a situação Que a gente vai levando de teimoso e de pirraça E a gente vai tomando que, também, sem a cachaça Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu não pretendo provocar Nem atiçar suas saudades Mas acontece que não posso me furtar A lhe contar as novidades Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta É pirueta pra cavar o ganha-pão Que a gente vai cavando só de birra, só de sarro E a gente vai fumando que, também, sem um cigarro Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu quis até telefonar Mas a tarifa não tem graça Eu ando aflito pra fazer você ficar A par de tudo que se passa Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n‟roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta Muita careta pra engolir a transação E a gente tá engolindo cada sapo no caminho E a gente vai se amando que, também, sem um carinho 150 Ninguém segura esse rojão Meu caro amigo eu bem queria lhe escrever Mas o correio andou arisco Se me permitem, vou tentar lhe remeter Notícias frescas nesse disco Aqui na terra ‟tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n'roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta A Marieta manda um beijo para os seus Um beijo na família, na Cecília e nas crianças O Francis aproveita pra também mandar lembranças A todo o pessoal Adeus O formato de carta está na própria estrutura da letra. Há a saudação inicial “Meu caro amigo” e a saudação final “A Marieta manda um beijo para os seus/Um beijo na família, na Cecília e nas crianças/O Francis aproveita pra também mandar lembranças/A todo o pessoal/Adeus”. E a matriz que ordena todas as estrofes é: Meu caro amigo ... ... Aqui na terra 'tão jogando futebol Tem muito samba, muito choro e rock'n‟roll Uns dias chove, noutros dias bate sol Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta ... E a gente + gerúndio E a gente vai + gerúndio que, também, sem Ninguém segura esse rojão As reticências ocupam os espaços de variação com conteúdos repletos de valores tensivos, porém, a matriz já traz bastante elementos para análise. O tratamento do interlocutor como “Meu caro amigo” revela a intensidade do vínculo narrativo entre as duas personagens. Não é a qualquer pessoa que se manda notícia, é a alguém que faz parte do circulo de vivência, que compartilha as mesmas questões, que lhe é “caro”, de muito valor. A idéia de ciclo, de estagnação do estado apesar do tempo que passa, está na repetição, em todas as estrofes, dos versos: “Aqui na terra 'tão jogando futebol/Tem muito samba, muito choro e rock'n‟roll/Uns dias chove, noutros dias bate sol/Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta” e no gerúndio que alonga o tempo e a ação nos versos: “E a gente + gerúndio/E a gente vai + gerúndio”. 151 O desencadeador de isotopia “a coisa aqui tá preta” desperta a isotopia figurativa de dificuldade e opressão, permitindo ir além de uma simples notícia a um amigo distante, para uma leitura sócio-política da letra. Permite observar que, apesar de toda a alegria do futebol e do samba, há o choro e a dor que se repetem no espaçotempo alongado do gerúndio e da chuva e do sol que se repetem. Permite que se observe rojão como não apenas figura do ritmo intenso de vida, mas da opressão que se vivia no período militar, que se observe “a situação” como figura da própria situação política em que o país estava inserido, e o “correio arisco” à censura. Uma situação que o sujeito vai levando de teimoso e de pirraça, que vai “cavando” de birra e de sarro, ou seja, o sujeito obstinado e pertinaz, não se importa com o não dever fazer, nem com o não poder fazer, mesmo não podendo e não devendo fazer, o sujeito faz: leva a situação, cava o ganha-pão, engole a transação. Os verbos no gerúndio, mesmo provocando um alongamento do espaço-tempo de sofrimento, vão aumentando a intensidade ao longo da letra, tornando a ação, tanto contrária como a favor do sujeito, mais brusca. Na primeira estrofe, o sujeito vai levando (suportando) e tomando (sorvendo). Na segunda estrofe, o sujeito vai cavando (esforçando-se) e fumando (aspirando). Na terceira estrofe, o sujeito vai engolindo (devorando) e amando (desejando). Assim, de uma estrofe a outra, o coeficiente de tensão das noções dos verbos no gerúndio vão supondo ações mais bruscas dos fatores que manipulam o sujeito e, portanto, repercussões emocionais imediatas por sobre esse sujeito, que o levam a tomar atitudes de igual intensidade. Por fim, vale observar também as válvulas de escape que dão competência ao sujeito para realizar a performance de “segurar o rojão”. O sujeito apenas torna-se competente porque há a cachaça, o cigarro e o carinho, que o libertam da realidade de opressão e fazem com que não ceda ao não dever fazer, mas que reconheça que, apesar da situação, ele quer sabe e pode sobreviver. E, para concluir, cabe analisar as figuras e o tempo na letra João e Maria (1977): Agora eu era o herói E o meu cavalo só falava inglês A noiva do cowboy Era você Além das outras três Eu enfrentava os batalhões 152 Os alemães e seus canhões Guardava o meu bodoque E ensaiava um rock Para as matinês Agora eu era o rei Era o bedel e era também juiz E pela minha lei A gente era obrigada a ser feliz E você era a princesa Que eu fiz coroar E era tão linda de se admirar Que andava nua pelo meu país Não, não fuja não Finja que agora eu era o seu brinquedo Eu era o seu pião O seu bicho preferido Sim, me dê a mão A gente agora já não tinha medo No tempo da maldade Acho que a gente nem tinha nascido Agora era fatal Que o faz-de-conta terminasse assim Pra lá deste quintal Era uma noite que não tem mais fim Pois você sumiu no mundo Sem me avisar E agora eu era um louco a perguntar O que é que a vida vai fazer de mim Nessa letra, que já teve o seu percurso gerativo analisado no capítulo dois dessa dissertação, determinou-se a oposição semântica a partir da qual se constrói o sentido do texto: Inocência/Liberdade X Maturidade/Repressão Dessa forma, pelo menos duas leituras são permitidas nessa letra: Uma desencadeada pela relação com objetos do mundo inocente infantil e a expressão “faz-de-conta”, e uma segunda leitura, sócio-política, desencadeada pela expressão “lei” que desencadeia a isotopia figurativa de obrigação/repressão em oposição à liberdade, instaurada pela figura “você”, que permanece no mundo do sujeito apenas enquanto não há repressão. Observe-se que, nessa segunda leitura, as figuras ligadas à inocência, ligam-se à liberdade (herói, bodoque, roque, princesa, nua, 153 brinquedo, não ter medo, sem maldade), e as figuras ligadas à maturidade, ligam-se à repressão69 (fatalidade, noite, sumir, loucura, dúvida). Observe-se também que dentro da leitura sócio-política, outros temas podem ser desencadeados, como a própria Ditadura Militar nas figuras de um rei que é ao mesmo tempo bedel e juiz, que governa, cria as leis, sanciona e as faz cumprir e da noite (“uma noite que não tem mais fim”), pois, tendo sido a ditadura no Brasil concebida como a grande noite a que Chico Buarque opôs em diversas composições à figura do dia: “matinês”; a temática do exílio (“não, não fuja não”), em que se é obrigado a sair/fugir por conta de uma situação de opressão; da tortura, nas figuras do medo da maldade e do sumiço e da censura na figura da lei que obriga à felicidade, ou seja, à passividade do sujeito independente da situação. A leitura inocência X maturidade é conduzida não apenas pelos elementos da infância (herói, cavalo, cowboy, princesa, matinês, bodoque, brinquedo, peão, bicho preferido), mas também pelo tempo da infância: “Agora eu era”, “agora já não tinha”. A soma do advérbio de tempo indicativo de presente( “agora”), ao pretérito imperfeito (era, tinha), cria um espaço utópico (de performance principal do sujeito) paralelo ao real. Não é o espaço-tempo em que se vive, é um simulacro, um espaçotempo da brincadeira, onde tudo se torna possível e nenhuma ação é inverossimilhante, pois, as expressões “Agora eu era” e “agora já não tinha” convidam a que se penetre nesse novo mundo, estabelecendo um contrato novo, de que tudo seja tomado como real, e de que nada possa parecer impossível. A saída desse mundo de possibilidades é conduzida pela mesma expressão, porém, acrescida de outra: “fatal”. A fatalidade provoca um rompimento brusco com o tempo-espaço da inocência/liberdade e faz com que o sujeito penetre em um novo espaço-tempo, agora mais veloz e tenso. Portanto, sendo que a inocência/liberdade é eufórica ao sujeito e a maturidade/repressão é disfórica. O percurso do texto é disforizante, parte do relaxamento da inocência/liberdade para a tensão da maturidade/repressão. Além disso, o texto termina como sujeito em estado de disjunção e espera, em estado de dúvida, uma espera aflita, portanto, tensa. O interlocutor (“você”) “sumiu”, ou seja, 69 Ver páginas 65 e 66 dessa dissertação. 154 houve a cisão brusca entre os dois corpos, não houve um espaço-tempo suficiente para que o sujeito pudesse se reorientar (“louco”) e reorganizar suas paixões, já que, consoante Greimas e Fontanille (1993, p.150), “não há paixão solitária”, toda configuração passional é intersubjetiva, compreendendo, pelo menos dois sujeitos, assim, sem o outro, o sujeito encontra-se perdido, pois não é apenas a necessidade do outro, é a necessidade de recomposição do seu próprio ser, a ausência brusca desse outro é capaz de cindir o sujeito, desfazendo a sua identidade: “O que é que a vida vai fazer de mim”. 155 CONCLUSÃO A música é a imagem do homem livre e é por isso o canto órfico das reivindicações sociais o momento ritualístico que transporta a um lugar ideal, onde a vida é plena e livre. Em suas canções de protesto e resistência, Chico Buarque traz uma mensagem ideológica. A arte, com seu efeito catártico, opõe-se à repressão. Já que, para o compositor, a música é o meio de integração do homem e seu tempo, ajudando-o a reconstruir e recriar este tempo, pois a arte está no coletivo e deve ser feita para o povo. Assim, os poemas-canções de Chico Buarque, aliados ao momento, fazem dialeticamente sua denúncia do tempo do obscurantismo pelo qual passava o país no momento da Ditadura. É, então, observado nesse trabalho que as obras têm sempre duas ou mais margens; pode-se entender que por meio da arte há a possibilidade de revolução e de transformação da realidade e que, talvez, em alguns momentos, seja a única possibilidade de manifestação e posicionamento político-social. Pode-se observar também que somente a arte consegue elevar o homem de um estado fragmentado a um estado de ser total. E é por esse motivo que a sociedade precisa do artista, uma vez que a arte capacita o homem a compreender a realidade, e mais ainda, a suportá-la e, ainda melhor, a transformá-la, tornando-a mais humana e hospitaleira para a humanidade, já que “a função da arte não é a de passar por portas abertas, mas é a de abrir as portas fechadas” (FISCHER, 1973, p.38). Portanto, visita-se o contexto histórico da época em que as letras foram escritas e a participação de Chico Buarque naquele momento, observando como e porque cada música se encaixava naquele momento, se foram ou não censuradas, porque passaram pela censura, quais os recursos, além dos de linguagem, utilizados pelo compositor para que as suas composições não fossem censuradas, apresentando casos interessantes como a aprovação e posterior censura de Apesar de você, cuja isotopia figurativa permite duas leituras: uma leitura relacionada ao contexto amoroso e uma leitura sócio-política. Para uma melhor compreensão da teoria, buscou-se também, explicitar, ilustrando com letras de canções de Chico Buarque, os princípios da Semiótica Greimasiana fazendo um passeio por todos os níveis do percurso gerativo de sentido, observando 156 suas especificidades para que a análise final fosse feita, principalmente, a partir do seu nível discursivo. A análise da configuração, de acordo com o nível discursivo da Semiótica Greimasiana, do tempo, dos temas e das figuras nas letras das canções Apesar de Você (1970), Samba de Orly (1970), Quando o Carnaval Chegar (1972); Fado Tropical (1972-1973); Cálice (1973), Acorda Amor (1974), Jorge Maravilha (1974), Meu Caro Amigo (1976), Corrente (1976), João e Maria (1977), Pelas Tabelas (1984), Vai Passar (1984), compostas por Chico Buarque, fornecem inúmeras categorias semânticas, as quais possibilitam verificar que os discursos aí perceptíveis dialogam com outros discursos. Os traços semânticos, percebidos pelos temas e pelas figuras, permitem uma leitura dos temas ligados ao carnaval, ao exílio, à censura e à tortura. A percepção dos vários discursos subjacentes ao texto não seria possível numa leitura tradicional, atentando apenas para a ordem lingüística do texto, tratando-o como código apenas. Isso porque as letras das canções analisadas são pluri-isotópicas, nas quais as várias isotopias do seu discurso são facilmente rompidas ao se identificar os seus desencadeadores de isotopia e explorar a polissemia natural das palavras. Assim, os desencadeadores de isotopia, permitem leituras temáticas sócio-políticas, e os discursos são relidos do ponto de vista do autoritarismo, da opressão e da repressão, atribuindo papel social ao fazer do sujeito, ao discurso. Além disso, as figuras ligadas à temática do carnaval têm também como base de análise a referência do mundo carnavalizado apontado por Bakhtin ([1965] 2008) no contexto de Françoais Rabelais, o que permitiu um olhar mais profundo para essas figuras, pois músicas como Quando o Carnaval Chegar, Apesar de Você, Corrente, Pelas Tabelas e Vai Passar, apresentam, por meio das suas isotopias figurativas, imagens do contexto rabelaisiano tais como: o ideal de liberdade no argumento da festa, a representação do mundo às avessas, o destronamento dos poderosos, a força da coletividade, a inversão do dia e da noite, o clarear do dia como esperança de renovação, o riso transgressor, a morte alegre. Figuras que, relacionadas às ancoragens de tempo e espaço, remetem à necessidade de libertação diante da situação de opressão vigente no país no momento em que as letras foram compostas. 157 Tratando do tempo, observa-se que a debreagem enunciativa tem a função de vincular o sujeito aos fatos e símbolos de sua época sem tecer considerações sobre a procedência histórica desse estado atual, e que o futuro, o tempo da espera, o tempo existente no sujeito enquanto potência, é o tempo da festa, da libertação. Essa espera pode ser tensa ou relaxada, tensa, se é aflita e insegura, como no caso de Pelas Tabelas, relaxada se é esperançosa e segura, como no caso de Quando o Carnaval Chegar, Apesar de Você, Vai Passar, Samba de Orly. Observa-se também outras relações temporais oferecidas pela narrativa, como o tempo dos sonhos, que permite ligar verbos no pretérito a adverbios de tempo referentes ao presente, sem que se perca a verossimilhança, mas que, do contrário, ancorem a narrativa no tempo-espaço do imaginário, espaço-tempo criado para inventar e brincar, onde tudo passa a ser possível: “Eu tive um pesadelo agora” (Acorda Amor); “Agora eu era o herói” (João e Maria). A relação entre a tensão e significação apresentada por Fontanille e Zilberberg (2001) aliada às relações passionais teorizadas por Greimas e Fontanille (1993), permitiram perceber que a mediação do corpo não é inocente, pois acrescenta categorias propioceptivas que constituem a sua timia, e patemiza o universo de formas cognitivas que aí se delineiam. Esse processo de homogeneização pelo corpo não poupa nenhum universo semiótico, independente de qual seja o seu modo de manifestação. E, dessa maneira, perceber que o sujeito do percurso gerativo não é puramente cognitivo, racional, ele é também um sujeito que sente, ou seja, existe em seu percurso uma fase de sensibilização tímica. As letras de canções ligadas à temática do exílio, da censura e da tortura, são principalmente analisadas do ponto de vista tímico-fórico, observando que a intensidade e a extensão contribuem muitas vezes da identificação do tema e fazemse presentes nas próprias palavras empregadas na construção da letra. Muitas vezes, instaurando a tensão no texto, o objeto torna-se sujeito porque esconde-se, resiste, recusa-se ao sujeito de busca, como foi o caso do “você” em João e Maria e do “ela” em Pelas Tabelas, ambos objetos que se tornam sujeitos por uma espécie de projeção sobre o objeto dos obstáculos encontrados pelo sujeito. 158 Atenta-se também para o fato de que, na versão censurada da letra de Samba de Orly, se tem maior intensidade que extensão, as expressões “omissão” e “forçada”, indicam corte brusco, ruptura do sujeito, sua impotência e seu sujeitamento. Enquanto as expressões autorizadas pela censura: “duração” e “temporada” trazem em si a extensão, a duratividade e não a intensidade da saudade. Ou seja, o trabalho com a intensidade e a duratividade do texto também contribuem no que tange a identificar a sua relação com os fatos da época da composição. Dessa forma, o estudo das composições de Chico Buarque constitui um objeto que não se esgota nessa pesquisa de dissertação. O propósito desse trabalho é o de investigar as composições elencadas do período compreendido entre o AI-5 e as Diretas Já tomando como base o nível discursivo da Semiótica Greimasiana no que diz respeito aos temas e as figuras; as relações de tensão, significação e tempo a partir da timia teorizada por Zilberberg e as figuras relacionadas ao carnaval por meio do conceito de carnavalização cunhado por Bakhtin. Sabe-se que outras perspectivas teóricas poderiam dar conta desse objeto, tais como os estudos de comunicação, os estudos culturais, as teorias literárias. Não obstante, preferiu-se adotar a Semiótica Greimasiana, já que esta oferece princípios, métodos e técnicas adequados de análise interna do discurso, alcançado em níveis diferentes de geração e de abstração. Enfim, espera-se que esse trabalho possa contribuir para entender que a articulação do discurso com formação social não é fortuita, ocasional, secundária, acessória, mas que é da relação entre a invariante do sistema e a variação social que surgem os sentidos do discurso, pois, a enunciação cumpre o duplo papel de converter as estruturas narrativas em estruturas discursivas e relacionar o texto com as condições sócio-históricas de produção e recepção. 159 REFERÊNCIAS ANDRADE, Carlos Drummond de. A Banda. Correio da Manhã, 14/10/1966. ANDRADE, Mário. Aspectos da música brasileira. Belo Horizonte – Rio de Janeiro: Villa Rica, [1941] 1991. Obras de Mário de Andrade. Vol. 11. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento. O contexto de François Rabelais. Tradução de Yara Frateschi Vieira. São Paulo: Hucitec; Brasília: Editora Universidade de Brasília, [1965] 2008. BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria do Discurso: fundamentos Semióticos. 1.ed. 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ZILBERBERG, Claude. Essai sur lês modalités tensives. Amsterdam, Benjamins. 1981 163 ANEXO A GESU’ BAMBINO Para o Menino Jesus70 Lucio Dalla – Paola Pallottino OGGI MI SENTO FELICE, CARO BAMBINO GESU‟ Hoje me sinto feliz, querido menino Jesus SONO GIA‟ BIANCHE LE CASE, LA NEVE ANCORA VIENE GIU‟ As casas já estão brancas, A neve ainda cai IN QUESTA NOTTE DIVINA IO VORREI CHIEDERTI SE LEGGI LA MIA LETTERINA, Nesta noite divina eu gostaria de te pedir para ler a minha cartinha MIO CARO BAMBINO GESU‟ Meu caro menino Jesus CI SONO COSE NEL MONDO, IO NON CAPISCO IL PERCHE‟ Existem coisas no mundo, eu não entendo por quê 70 Tradução de Érika Maciel - graduada em Letras Vernáculas com Língua Italiana pela Universidade Federal da Bahia (2004); Especialista em Gramática e Texto pela UNIFACS. Atua com o ensino de Língua Italiana. Professora de Português para Estrangeiros no Brasil e no exterior. Atuou na Cidade do México como Coordenadora Pedagógica do curso de Língua Portuguesa do Grupo Figa, preparando e ministrando Cursos de Capacitação para professores de português como segunda língua, elaborando material específico para alunos não-nativos e atuando também como professora de português para alunos mexicanos. 164 LA GENTE UCCIDE… E‟ CATTIVA, UN BIMBO MUORE PERCHE‟ As pessoas matam, são más, um menino morre por que FA CHE SIAN TUTTI PIU‟ BUONI, Faz com que sejam todos mais bondosos CHE CI SIA FELICITA‟ Faz com que exista a felicidade QUESTO REGALO TI CHIEDO Este presente eu te peço OH CARO BAMBINO GESU‟ Oh querido menino Jesus TI CHIEDO IL PANE PER CHI HA FAME TI CHIEDO PACE PER CHI NASCERA‟ Te peço o pão para quem tem fome e te peço paz para quem nascerá E POI DACCI LA FEDE, E depois dai-nos a fé DACCI LA STELLA CHE GUIDA A TE, Daí-nos a estrela que nos guia até você FAI LUCE SULLA MIA STRADA, Seja a luz sobre a minha estrada PROTEGGI SEMPRE MAMMA E PAPA‟. Proteja sempre mamãe e papai 165 PROTEGGI SEMPRE MAMMA E PAPA‟. Proteja sempre mamãe e papai