durkheim e pistrak, a escola do século xx: instrumento de

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DURKHEIM E PISTRAK, A ESCOLA DO SÉCULO XX:
INSTRUMENTO DE CONSERVAÇÃO OU REORIENTAÇÃO
SOCIAL?
Andréa Giordanna Araujo Silva
[email protected]
Natália Santos Freitas
[email protected]
Universidade Federal de Alagoas
Palavras-chave: Escola, ideologia e trabalho.
Introdução
A pesquisa bibliográfica em desenvolvimento tem por objetivo identificar os
principais pontos de convergências e divergências entre os enunciados de Émile
Durkheim e Moisey Pistrak, pensadores sociais que se pronunciaram em circunstâncias
político-econômicas e culturais guiadas por lógicas de convívio social opostas, todavia
ambos credenciavam à escola como espaço indispensável na formação para a atuação
pública.
A escolarização dos indivíduos tem contribuindo com a legitimação ou
reorganização do sistema socioeconômico e político-cultural de distintos contextos
históricos. A concepção de individuo e a perspectiva formativa de sujeito social
configuram os currículos escolares (APPLE, 1982). No início do século XX, o
pensamento educacional soviético sofrera grande influência da concepção
rousseauniana de ser humano, ou seja, o sujeito da educação é um homem de nobreza
natural, o “bom selvagem”, cujas práticas perniciosas à coletividade eram o resultado da
coesão e aprendizagem vivenciadas no ambiente sociocultural (BOLEIZ JÚNIOR,
2008). Esse ideário de sujeito aparece nos enunciados de Pistrak, quando atribuía as
crianças à capacidade de participar, comprometer-se e responsabilizar-se pelo bem
coletivo, se instrumentalizadas pedagogicamente no ambiente escolar.
A auto-organização deve ser para eles (referindo-se às crianças e aos
jovens) um trabalho sério, compreendendo obrigações e sérias
responsabilidades. Se quisermos que as crianças conservem o
interesse pela escola, considerando-a como centro de organização
vital, como sua organização, é preciso perder de vista que as crianças
não se preparam para se tornar membros da sociedade, mas já o são,
tendo já seus problemas, interesses, objetivos, ideais, já estando
ligadas à vida dos adultos e do conjunto da sociedade. (PISTRAK,
2000, p. 42-43)
Contrapondo-se a docilidade humana inata, Émile Durkheim observa que
natureza anti-social e egoísta do ser humano deveria ser podada e moldada às
necessidades da sociedade em que nascera. Seria função das gerações mais velhas
garantir à continuidade e “avanço cultural” das gerações mais jovens, mediante uma
ação pedagógica racional e funcional: instrução sistemática e regida pelo estado, a
escola pública.
Uma breve passagem nos primórdios do século XX.
O século XX nasce permeado de inovações e “incertezas”, em âmbito material e
simbólico do universo científico. As grandes mudanças estruturais, ocorridas ainda no
século XVIII, tanto no quadro político, a Revolução Francesa, quanto no econômico, a
Revolução Industrial, resultaram em novas racionalidades e perspectivas em torno do
existir coletivo. A carga de mutação social foi tão considerável que a bandeira de
liberdade, igualdade e fraternidade passou a gerir as posteriores convulsões1, entre
1789 a 1917.
Ao contrário da Revolução Russa, a Francesa não foi estruturada sob o signo de
um partido e muito menos tinha um conteúdo programático definido. Ainda sim, a
burguesia conseguiu ratificar e disseminar na sociedade francesa e expandir pelo mundo
ocidental os ideários liberal e radical-democrático, que foram delineados na elaboração
da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Nela o conceito de igualdade
passou a ter novo significado, objetivamente apresentado nos enunciados de Hobsbawm
(1994, p. 77) “Este documento é um manifesto contra a sociedade hierárquica de
privilégios nobres, mas não um manifesto a favor de uma sociedade democrática e
igualitária”. Materializa-se, a partir desse momento, o discurso de ênfase na propriedade
privada, como direito inalienável dos homens, “legítimo” argumento da sociedade
capitalista.
Os resultados da Revolução Francesa puderam ser sentidos principalmente entre
1815 e 1848, período de grandes Revoluções, como a Espanhola, a Grega e a Mexicana.
Os anos de 1830 marcam a derrota das aristocracias e a Europa Ocidental passa a
presenciar o auge do pensamento burguês. Já no século XX, as transformações políticoeconômicas assumem um caráter mais radical. É o auge do imperialismo e do
neocolonialismo, França e Rússia participam ativamente deste cenário. A Rússia,
entretanto, com algumas particularidades, pois no período do ápice industrial, ainda era
quase que totalmente agrária. Todas estas discrepâncias desembocam na Primeira
Guerra Mundial e na Revolução de 1917, a primeira a ter um governo liderado pelo
operariado russo.
Neste contexto, a educação sofreu várias mutações, materializada em novos
instrumentos técnico-científicos. Estruturou-se de modo a suprir às necessidades de
mão-de-obra mais específica. Na ótica liberal, a instrução pública aparece como um
meio para o progresso social, em âmbito material e moral (BASTOS, 2000).
Num outro cenário, é instituído o governo socialista na União Soviética. No
novo panorama sociocultural, a formação política marxista do professorado torna-se
condição indispensável à mudança das práticas sociais, pois seriam os professores os
mediadores-mentores da formação intelectual 2e técnica dos sujeitos da nova sociedade.
Assim, seria necessário ao governo do operariado assumir uma veemente luta contra os
processos educativos que corporificavam os “Aparelhos Ideológicos do Estado”, ou
1
Segundo Hobsbawm (1994), os levantes que ocorreram posteriormente a 1789 ou eram a favor, ou
contra a bandeira levantada pela burguesia francesa.
2
É uma categoria desenvolvida por Louis Althusser na obra “Ideologia e Aparelhos Ideológicos do
Estado”, cujo objetivo é apresentar os mecanismos criados pelo Estado Capitalista para corporificar sua
legitimidade e reprodução.
seja, a superestrutura descrita por Karl Marx e sistematizada como espaços de formação
subordinativa na perspectiva de Althusser:
[...] Marx concebe a estrutura de qualquer sociedade como instituída
pelos “níveis” ou “instâncias”, articulados por uma determinação
específica: a infraestrutura ou base econômica (“unidade” das forças
produtivas e das relações de produção), e a superestrutura, que
comporta em si mesma dois “níveis” ou “ instâncias”: jurídico-político
(o direito e o Estado) e a ideologia (as diferentes ideologias,
religiosas, moral, jurídica, política, etc.). (ALTHUSSER, 1974, p. 26,
grifos do autor).
Segundo Laraia (1989), a diversidade cultural é fruto das diferentes respostas
matérias e simbólicas encontradas pelos seres humanos para garantir a existência
coletiva. Logo esse seria o grande desafio do governo socialista: criar uma nova lógica
de convivência humana, ou seja, novas respostas para demandas de vivência
cooperativa e não subjugada a interesses privados na sociedade socialista emergente. A
escola é então apresentada como espaço privilegiado de formação, cuja função seria
desenvolver novas e partilhadas racionalidades sociais.
A essência destes objetivos (da escola) e a formação de um homem
que se considere como membro da coletividade internacional
constituída pela classe operária em luta contra o regime agonizante e
por uma vida nova, por um novo regime social em que as classes
sociais não existam mais. (PISTRAK, 2000, p. 31, grifo nosso).
A reconfiguração das estruturas políticas e econômicas, na França e na União
Soviética, e a circulação de novos interesses por parte das distintas classes sociais
funcionam como matéria-prima para produção de novos valores e práticas sociais. A
escola como unidade promotora da socialização individual e coletiva apresenta-se nos
diferentes contextos, como indispensável instrumento para formação de sujeitos
ajustados as inéditas circunstâncias históricas.
Problemática
As múltiplas circunstâncias históricas são o palco das práticas interativas
humanas. Nelas, o trabalho, enquanto produção material e simbólica, tem se
apresentado como matéria-prima que possibilita diferentes configurações,
desenvolvimentos, permanência ou transformações. Todavia, os conhecimentos
formulados em espaços e tempos históricos distintos não se esfacelam com tempo. Eles
são resignificados, em discursos e ações, que movimentam outros ciclos sócio-culturais.
A escola tem, por conseguinte, se apresentado, desde a instituição das sociedades
modernas, como uma das tecnologias sociais mais avançadas para disseminação de
antigos e novos valores sociais e instrumentalização técnica. Todavia, essa não se
caracteriza como de ação homogênea e uniforme. Os interesses políticos e econômicos
são elementos determinantes para constituição do ensino sistematizado nas organizações
sócio-culturais.
Desse modo, como protagonistas de seus tempos, o sociólogo Durkheim e o
pedagogo Pistrak buscaram refletir sobre o potencial das “propostas pedagógicas
escolares” para o desenvolvimento de corpos sociais, por eles considerados mais
evoluídos. Ou seja, buscam, como hoje, no uso da estrutura escolar desenvolver e
aprimorar valores e ações profissionais que corporificassem um tipo ideal de sujeito e
sociedade. Para tanto, silenciam a doutrinação ideologia e apresentam seus pensamentos
como diretrizes que possibilitam um equilíbrio benéfico à coletividade.
Objetivos
Comparar o pensamento pedagógico escolar durkheimiano e o pistrakiano
destacando suas aproximidades e contraposições.
Metodologia
A análise comparativa das principais idéias presentes nos escritos Fundamentos
da escola do trabalho, de Moisey Pistrak, e Da divisão do trabalho social, Educação e
sociologia, Ética e sociologia da moral e Sociologia, de Émile Durkheim,
respectivamente, adotada como procedimento metodológico da pesquisa em curso,
possibilitou identificação das convergências e diferenças entre as formulações teóricas
que corporificam este construto.
A convergência por uma lógica escolar.
Observamos, que tanto o pedagogo como o sociólogo, buscavam a
homogeneidade ideológica na sociedade, tendo a interpelação dos indivíduos em sujeito
como instrumento. Tanto a Escola do Trabalho como a agência de formação para
“cooperação solidária” tinham como condicionante existencial: a adequação dos
indivíduos ao sistema de valores e de técnicas, na perspectiva de atuação ajustada na
sociedade.
Neste contexto, a preocupação com a formação política docente está intrínseca
nos distintos enunciados:
É preciso que cada educador se torne militante social ativo; trata-se de
uma obrigação não só do professor de 1° grau (já convencido desta
necessidade), não só do professor responsável pelo curso de sociologia
na escola de 2º grau (isto é obvio), mas também de qualquer
especialista: matemático, físico, químico ou naturalista. (PISTRAK,
2000, p. 26, grifos do autor).
Não temos, pois, outra coisa a fazer senão intentar trabalhar da melhor
forma, reunindo o maior número de fatos instrutivos que nos seja
possível obter, procurando interpretá-los com tanto método quanto
possamos, a fim de reduzir ao mínimo as possibilidades de erro. É
esse o papel do pedagogista. (DURKHEIM, 1978, p. 68).
As convergências de pensamentos acentuam-se na observância da escola como
uma instituição historicizada, cujo objetivo maior seria atender as demandas formativas
(cognitivas, técnicas e morais) da sociedade em que se configura e justifica o processo
de ensino formal, seja como fim ou meio, no processo de “desenvolvimento social”.
Divergências sobre a função social da escola, as duas lógicas: reprodução ou
transformação.
Na perspectiva, durkheimiana o sistema social deveria possuir uma unidade
funcional (JUNIOR, 2005), isso nos remete a ideologia como instrumento de
homogeneização das mentes. A racionalidade capitalista deveria permear as múltiplas
práticas sociais na perspectiva de gestão do consenso, necessário à permanência e
reprodução das sociedades complexas, como as de configuração capitalista. Para
justificar a idéia de consenso (obtido pela coesão) elabora os conceitos de sociedades
mecânicas e orgânicas.
[...] as estruturas das sociedades orgânicas são constituídas não por
uma repetição de segmentos similares e homogêneos (mecânicos),
mas sim por um sistema de órgãos diferentes, cada um dos quais tem
um papel especial e se forma de partes diferenciadas [...].os indivíduos
estão agrupados não mais segundo suas relações de descendência
(como nas sociedades mecânicas), mas segundo a natureza particular
da atividade social a que se consagram. O meio natural e necessário
não é mais o meio natal, mas o meio profissional (DUKHEIM, 1978,
p. 90-91, grifo nosso, em itálico).
Portanto, a sociedade orgânica apresenta-se como uma estrutura sociocultural
racional, intencional e sistemática. É vista como condição de existência na sociedade
moderna, que por seu estágio de complexidade, requer uma coesão induzida pela
alocação funcional e produtiva dos indivíduos nos diferentes segmentos sociais, ação
que possibilita o equilíbrio necessário e benéfico à coletividade.
O elemento que certamente distancia os postulados de nossos pensadores é a
categoria classe social. Exaltada por Pistrak, como pré-requisito para compreensão da
realidade e desenvolvimento do pensamento crítico, consciente e revolucionário, é
silenciada nos escritos de Durkheim. A divisão da sociedade em classes, o fator material
e simbólico que ocasiona as contradições e conflitos sociais e possibilita a
transformação das práticas sociais, é substituído pelos fundamentos de solidariedade e
cooperação “voluntária ou provocada” nas sociedades mecânicas e orgânicas.
Conhecer as concepções de sujeito adotadas pelos cientistas sociais, aqui
confrontados, em muitos pode contribuir para compreensão de seus postulados sobre a
função do ensino formal. Assim, o indivíduo durkheimiano é visto como um ser
intelectualmente vazio de nascimento, “uma tabula rasa”. Seriam, portanto, as gerações
amadurecidas as promotoras de sua formação cognitiva e moral. O desempenho
cognitivo individual se apresentaria como critério para definição das funções
profissionais e políticas e alocações hierárquicas (classe) dos sujeitos na sociedade.
Para Pistrak, as crianças e adolescentes, inclusos desde o nascimento no
ambiente sociocultural, apresentam percepções, perspectivas e interesses próprios em
relação à sociedade. Enquanto esse autor delegar responsabilidades e enfatiza a
necessidade da amplitude de formação a partir da vivência das diversas atividades
laborais (manuais e administrativas) no ambiente escolar. Numa visão de ideologização
disciplinar universalista, Durkheim aposta numa educação diretiva3 e especializada,
cujo resultado seria o desenvolvimento intelectual e moral do trabalhador que observe a
sua atividade laboral como contribuição para o equilíbrio social, sendo desnecessária
sua compreensão integral da dinâmica e organização global da sociedade.
Não é pois uma máquina que repete movimentos dos quais ele (o
trabalhador) não percebe a direção, mas ele sabe que elas tendem para
algum lugar, para um objetivo que ele concebe mais ou menos
distintamente. Ele sente que serve para alguma coisa. Para isto, não é
necessário que ele abranja vastas regiões do horizonte social, basta
que ele perceba o suficiente para compreender que suas ações têm um
valor fora delas mesmas (DURKHEIM, 1984, p. 101-102, grifo
nosso).
Noutro prisma, Pistrak almeja o “consenso” para participação ativa dos sujeitos
na aquisição dos instrumentos para elaboração e uso do saber, tendo como elementos
mediadores do querer coletivo: a compreensão histórica da constituição das classes
sociais e conscientização. Para tanto, o pedagogo foca seus interesses políticos no
processo sistemático de formação dos filhos dos trabalhadores das áreas urbanas e
campesinas. O objetivo das ações educativas seria a incorporação coletiva de uma visão
de mundo muito próxima da gramsciniana, interpretada por Mochcovitch (2002, p. 15):
“Uma concepção de mundo unitária, coerente e homogênea é formada de uma maneira
crítica e consciente, num processo teórico-prático que tem como fundamento último a
experiência política de classe”.
Nesta concepção pedagógica, a participação e construção da dinâmica escolar é
elemento determinante para a atuação juvenil futura. Por isso, a insistência no
necessário rodízio das crianças, na realização das atividades, de ordem braçal ou
administrativa, na perspectiva de propiciar uma formação política e positiva em relação
ao trabalho e à profissionalização.
Durkheim, também, apresenta argumentos em torno da importância da
escolarização no contexto de mudanças, entretanto enfatizava as transformações de
ordem tecnológicas e técnico-administrativas exigidas pela sociedade moderna. O
pensador observava a escola francesa, do final do século XIX, como uma instituição
social inapta às novas condições de produção e trabalho da sociedade industrial.
Tanto Durkheim, quanto Pistrak enfocam a importância da estruturação escolar
como mediadora das relações de trabalho. Faz-se mister, no entanto, caracterizar a visão
da categoria trabalho que norteia os postulados dos dois teóricos. Há um estreitamento
nas percepções sociológicas – positivista e marxista- sobre a importância do trabalho
como categoria que permeia as relações humanas. Uma síntese deste entendimento está
no texto de Claus Offe (1986, p. 1), Disorganized Capitalism: contemporary
transformations of work and politics4:
Se considerarmos as respostas fornecidas entre o final do século XVIII
e o final da I Guerra Mundial às questões relativas aos princípios
organizativos da dinâmica das estruturas sociais, certamente
chegaremos à conclusão de que ao trabalho foi atribuída uma posiçãochave na teoria sociológica.
O modelo de uma sociedade burguesa gananciosa, preocupada com o
trabalho, movida por sua racionalidade e abalada pelos conflitos
3
4
Transposição direta de saberes.
Traduzido do inglês por Lucia Hippolito
trabalhistas constitui - não obstante suas diferentes abordagens
metodológicas e conclusões teóricas - o ponto focal das contribuições
teóricas de Marx, Weber e Durkheim.
A assimilação de um postulado ou categoria se reveste de possibilidades
conceituais e interpretativas, de acordo com as intencionalidades formativas da
circunstância histórica. Neste viés, a transição do Marx hegeliano ao Marx marxista se
deu justamente quando ele aprofundou seus estudos sobre os diversos tipos de
sociedades. Percebeu, nos diferentes modos-de-produção, um ponto em comum: as
relações sociais realizavam-se por meio do trabalho. A partir daí, ele formulou o
seguinte conceito:
Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza,
um processo em que o homem, por sua própria ação, media, regula e
controla seu metabolismo com a natureza. [...] ao atuar por meio desse
movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modificá-la, ele
modifica, ao mesmo tempo, sua própria natureza. Ele desenvolve as
potências nela adormecidas e sujeita o jogo de suas forças a seu
próprio domínio (MARX, 1988, p. 142).
Discípulo de Marx (1988), Pistrak acredita ser a categoria trabalho o locus
onde, não só a natureza, mas também homem se modifica. Essa transformação ocorre
por meio do processo teleológico5, no qual o homem, a partir da realidade concreta,
fomenta meios para transpor as barreiras naturais ao seu favor. Primeiro nas idéias,
depois na ação – trabalho. Esse procedimento amplia as necessidades, desejos e
sensibilidades humanas.
Observamos que existe, segundo perspectiva pistrakiana, uma relação direta
entre a utilização do trabalho e a ampliação das potencialidades do homem. O cientista
social faz uma critica à escola anterior aos tempos de 1917, pois essa não compreendia
de fato o que é trabalho, subutilizava-o, apresentando-o de maneira desorganizada, sem
projeto claro, nem concepção teórica. “O que importava era o programa de estudos; o
trabalho se subordinava e se adaptava a ele” (PISTRAK, 2000, p. 47).
Numa leitura atualizada Manacorda discorre:
[...] quanto à teoria pedagógica, o socialismo assumiu criticamente
todas as instâncias da burguesia progressista, censurando-a por não têlas aplicado conseqüentemente; acrescentou-lhes de próprio uma
concepção nova da relação instrução-trabalho (o grande tema da
pedagogia moderna), que vai além do somatório de uma instrução
tradicional mais uma capacidade profissional e tende a propor a
formação de um homem onilateral6. (1992, p. 313).
A separação instituída na configuração produtiva da sociedade capitalista é bem
perceptível nos escritos de Durkheim, a divisão do trabalho aparece de forma natural e
necessária à manutenção da estratificação social, visando o equilíbrio e coesão do todo.
O trabalho se expressa como uma atividade coercitiva, e a propriedade privada como
conseqüência do desenvolvimento dos meios de produção.
5
É a relação ideação/objetivação, na qual o indivíduo formula saídas para os obstáculos dados pela
natureza, como a construção de uma canoa para atravessar um rio. A necessidade de chegar à outra
margem do rio faz o indivíduo formular possibilidades de solução do problema.
6
A educação onilateral é educação envolve o intelectual, o emocional e o social.
Quando a utilidade coletiva dos fenômenos produtivos fica claramente
demonstrada, quando recebem a consagração do tempo, eles parecem
se tornar obrigatórios para consciência e se transformam em
prescrições jurídicas e morais (DURKHEIM, 2003, p. 23).
Em esferas contrapostas, os teóricos sociais tratam a escolarização como
ferramentas de estruturação e/ou mediação política que possibilita à inserção das
crianças e dos jovens na sociedade. Nesse sentido, para o sociólogo, a psicologia seria
um instrumento teórico-metodológico de grande valia na prescrição e avaliação práticas
pedagógicas.
Ora, é à psicologia infantil que toca a solução destes problemas. Se ela
é incompetente para fixar os fins – por isso que o fim da educação
varia com os estados sociais – não resta a menor dúvida que
desempenha papel de grande importância na constituição dos meios,
isto é, do método. Mesmo quando algum processo não se possa aplicar
do mesmo modo a crianças diversas, será ainda à psicologia que
devemos recorrer: ela nos auxiliará a reconhecer os diversos tipos de
inteligência e caráter. (DURKHEIM, 1978, p. 87, grifos do autor)
Noutro segmento, o pedagogo russo reafirma a necessidade das práticas
escolares voltarem-se para as atividades experienciais em consonância com o universo
do trabalho, distanciando-se das teorias que se voltam para constituição do ser social
pelo viés da subjetividade e do individualismo.
Não vemos por que a escola deva tomar a psicologia atual da criança e
suas preocupações eventuais como base e ponto de partida de seu
trabalho; esta psicologia e estas eventuais preocupações são
simplesmente produtos de muitas influências desorganizadas e
freqüentemente contraditórias entre si. Pensamos que a escola deve
assumir o controle da maior parte dessas influências, organizando-as
num sentido determinado e fazendo seu trabalho numa base que ela
passou a dominar. (PISTRAK, 2000, p. 39-40)
A marca ideológica está impregnada nos dois enunciados aqui analisados,
todavia, os diferentes fundamentos que regem as idéias dos autores, apresentam suas
aproximações e principalmente seus distanciamentos. Certamente suas concepções de
sociedade, de sujeito, de trabalho e de desenvolvimento social são os alicerces que
corporificam os distintos ideais de sistema educativo-produtivo.
Considerações Finais
Como resultado provisório de uma investigação incipiente, poderemos ratificar o
ideário de formação escolar como instrumentalização para atuação no âmbito público
das práticas sociais.
Em contextos distintos e com práticas pedagógicas7 opostas, pensadores sociais
projetaram e traçaram a formatação da escola ideal na perspectiva de contribuir com o
desenvolvimento do sujeito ajustado às demandas formativas (cognitivas, técnicas e
7
Entendemos práticas pedagógicas na perspectiva adotada por João Francisco de Souza (2006): seleção
institucional dos conhecimentos trabalhados espaço escolar.
morais) de suas circunstâncias históricas. Seus enunciados atualizam-se na afirmação de
Kuenzer (2002) quando descreve a pedagogia do trabalho como elemento instrutivo
coletivo, expansivo às múltiplas práticas sociais, na perspectiva de garantir a
manutenção e a legitimação consensual do sistema capitalista ou, mesmo, sua superação
pela sublevação dos subordinados.
Esta forma de ver a questão coloca a pedagogia do trabalho,
manifestação superestrutural de determinada forma e organização da
produção, como uma categoria que pode ser importante tanto para a
conservação das relações de produção capitalistas quanto para a sua
superação, inscrevendo-se desta forma no quadro da hegemonia.
(KUENZER, 2002, p. 14). [...]. É nesse quadro (capitalista) que a
pedagogia do trabalho desempenha papel fundamental, na medida em
que novas formas de organização do trabalho implicam nova
concepção de trabalho, que, a partir das condições concretas do
desenvolvimento, tem que ser elaborada e veiculada; ou seja, o
fenômeno educativo faz a mediação entre a mudança estrutural e sua
manifestação no campo político ideológico (IDEM, IBIBEM, p. 55,
grifo nosso).
A formação do homem/indivíduo, em ser social, é na sua totalidade o resultado
das suas experiências com o meio. O gênero humano é radicalmente histórico e social e
suas transformações são fruto essencial de sua relação com o trabalho.
Essa simultânea articulação e diferença do mundo dos homens com a
natureza tem por fundamento o trabalho. Por meio do trabalho, os
homens não apenas constroem materialmente a sociedade, mas
também lançam as bases para que se construam como indivíduos. A
partir do trabalho, o ser humano se faz diferente da natureza, se faz
um autêntico ser social, com leis de desenvolvimento histórico
completamente distintas das leis que regem os processos naturais.
(LESSA; TONET, 2008, p.17)
Acreditamos que existem outras possibilidades e objetivos para atividade
produtiva além de servir de instrumento de exploração e alienação, num tipo específico,
mas não único de sistema produtivo. O treinamento para alocação individual,
perpetuação e regularidade das práticas funcionais, que garantem a homogeneidade
moral da sociedade, defendido por Durkheim (1978, 1984), embora ainda esteja
encravado nos nossos processos de ensino-aprendizagem, deve ser revisto e reorientado,
visando uma formação sistemática e intencional que eleve o potencial humano de
convivência coletiva cooperativa e participativa.
Contrapomos-nos veementemente ao pensamento de que “nem todos foram
feitos para refletir” nem acreditamos que “será preciso que haja sempre homens de
sensibilidades e homens de ação (DURKHEIM, 1978, p. 34). Por isso observamos o
desenvolvimento do fenômeno social, como a possibilidade histórica de formação para
práxis e transformação como propõem os escritos pistrakianos.
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