2014-03, A permissão do mal por parte de Deus

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A permissão do mal por parte de Deus
Pe. Pedro Magalhães Guimarães Ferreira SJ – 25/03/2014
Creio que a noção de permissão do mal por parte de Deus é subtil e tem sido sujeita a
interpretações equivocadas:
- Uma que me ocorre é falar em vontade permissiva e vontade de beneplácito de Deus. (Ouvi isto
muitas vezes quando era criança e creio que muitas pessoas ainda falem assim.) Mas isto é falso:
Deus não tem duas vontades, Ele é a sua Vontade, que é o seu Amor, pois que o Amor é
expressão da vontade.
- Outra é dizer que Deus dá o existir simpliciter, mas não o “existir assim”, isto é, no caso, com a
privação do bem. (Ouvi isto durante o triênio de Filosofia!!!). Mas o ser, ou parte dele, que não
receba a sua existência de Deus, simplesmente não existe. Portanto, esta também é falsa.
Quando se considera a vontade de Deus e o fato de que o mal existe, temos as quatro
possibilidades:
(A palavra “mal” aqui é tomada na sua singularidade, ou seja, trata-se de um mal individual,
concreto.)
Deus quer que o mal aconteça (ou: que o mal seja feito);
(1)
Deus não quer que o mal aconteça;
(2)
Deus quer que o mal não aconteça;
(3)
Deus não quer que o mal não aconteça;
(4)
Mas se (1) ocorresse, Deus seria mau;
Se (2) ocorresse, Deus não seria onipotente;
Se (3) ocorresse, Deus também não seria onipotente;
(4) é a definição de permissão do mal por parte de Deus proposta por McCabe (Herbert McCabe.
God and Evil: In the Theology of St Thomas Aquinas (Kindle Locations 1152-1153)). São
Tomás apresenta definição diferente, mas facilmente redutível a ela: S. Th. I, q. 19, a. 9, ad 3 .).
Que Deus “permita” o mal é doutrina comum entre os que creem em Deus. Mas em que consiste
esta permissão? É (4) segundo McCabe e São Tomás. Não me consta outra definição. Mas não
digo que não exista; se existe é muito pouco divulgada. Como as 4 opções acima são as únicas
possíveis, concluir-se-ia que (4) é a definição correta de “permitir”? Há que proceder com rigor.
Não provei que a expressão seja verdadeira, que é o que quero fazer agora. (Imagino que para
São Tomás e McCabe a expressão fosse obviamente verdadeira, pois eles não a provaram.)
Repito a expressão, que se refere a um mal concreto, individual:
Deus não quer que o mal não aconteça (ou: que o mal não seja feito).
(4)
Mas Deus comunica a existência continuamente a todos os seres, inclusive aos seres com
privação de bem. (Assim, por exemplo, Deus comunica a existência a um olho cego.)
Lembrando (Sto. Agostinho) que o mal é uma privação de bem, (4) pode ser reescrito como:
Deus não quer que o ser com a privação do bem não exista.
(4’)
A prova é feita por contra-posição, isto é, negando (4’):
Deus quer que o ser com a privação do bem não exista.
Não-(4’)
Mas isto pode ser afirmado para todo mal concreto e se Deus quisesse isso, o mal não existiria.
Portanto não-(4’) é falsa e, consequentemente, (4’) é verdadeira.
Não se pode excluir a priori, qualquer outra definição de permissão do mal por parte de Deus.
Mas ficou provado que, qualquer que ela seja, tem que ser redutível a (4), e (4) tem que ser
redutível a ela.
Considerações ulteriores:
Como argumenta McCabe, se o mal não acontecer, o bem, do qual o mal é uma privação,
acontece. Portanto (lembrando de novo que se trata do mal individual), (4) pode ser reescrito
como:
Deus não quer que o bem, do qual o mal é uma privação, aconteça.
(4’’)
Ou ainda:
Deus não quer que um certo bem aconteça.
(4’’’)
E McCabe comenta que não desejar que um bem seja feito não é de forma alguma um mal: são
inúmeros os casos em que os pais, por exemplo, desejam que o filho não consiga uma coisa boa,
porque sabem que no futuro haverá uma consequência má para ele. Efetivamente, sabemos pela
fé que Deus permite o mal para daí se alcançar um bem maior. Ou seja, Deus não quer que um
certo bem aconteça para daí se alcançar o bem maior desejado por Ele. (Poderia haver neste caso,
quem sabe, uma incompatibilidade entre os dois bens, possibilidade aventada por Leibniz com a
sua hipótese de que Deus criou o melhor dos mundos. Mas, como dito, esta hipótese não
é de forma alguma necessária para “justificar”a ação de Deus, o Transcendente).
As expressões acima, que são definições alternativas a (4) e (4’), lançam, creio, uma luz
adicional sobre o que seja Deus permitir o mal. Parece-me que, com elas, por exemplo,
entendemos melhor o “ne nos inducas in tentationem”, traduzido erroneamente por “não nos
deixeis cair em tentação”.
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