Que democracia? O conceito de democracia à luz do

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QUE DEMOCRACIA? O CONCEITO DE DEMOCRACIA À LUZ DO
PROCEDIMENTO DA CRÍTICA EM CRÍTICA DA FILOSOFIA DO DIREITO
DE HEGEL
Bryan Félix da Silva de Moraes1
INTRODUÇÃO
O presente escrito busca comunicar o nosso projeto de pesquisa no sentido de
expor sua hipótese – ainda incipiente – de que o conceito de democracia presente em
Crítica da Filosofia do Direito de Hegel2 de Karl Marx não obedece à fixação de sua
forma, o que indica ser ele baseado em um procedimento filosófico específico
intimamente relacionado com a ideia marxiana de crítica. Para tanto, na primeira parte
desta exposição apresentaremos um esboço do conceito resolutivo de democracia,
mostrando como se trata de um conceito que resiste à fixação de sua forma. Na segunda
trataremos brevemente da noção de crítica marxiana do direito de modo a abordar sua
capacidade de produzir e reconstruir conceitos a fim de dar-lhes novas determinações.
Por fim, na terceira parte trataremos a crítica e a democracia em sua possível relação,
ligando-os de modo que possamos indicar, na democracia, que a volatilidade de sua
forma é promovida por um procedimento específico da crítica utilizado por Marx na
Crítica do Direito, como se quer demonstrar.
O CONCEITO DE DEMOCRACIA NA CRÍTICA DO DIREITO
O conceito de Estado fora uma solução hegeliana em face da contradição
existente entre a prática particularista do arbítrio individual inscrito na ação moral da
sociedade civil-burguesa e o aparato jurídico-político do Estado moderno de modo que
assegurasse a vivência cidadã comunitária e a liberdade individual (HEGEL, Linhas
Fundamentais da Filosofia do Direito ou Direito Natural e Ciência do Estado em
Compêndio, § 260). Para Hegel, esta conciliação entre o dilaceramento ético presente na
liberdade individual e a vivência em um congraçamento comunitário, ocorre quando a
vontade livre (HEGEL, FD, §21) encarnada e determinada nos interesses individuais da
pessoa, se determine a si mesma, segundo a lógica do conceito, a um interesse universal
e reconheçam nele seu fim e seu fundamento, alcançando, assim, sua plena realização: a
1
2
Mestrando em Filosofia pela UNIFESP. E-mail: <[email protected]>.
Que Doravante chamaremos apenas de Crítica do Direito.
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do sujeito de vontade livre transformado em membro do Estado (HEGEL, FD, §258).
Esta relação entre a Ideia de Estado e o regime da particularidade da sociedade civilburguesa regula e mantém viva sua dinâmica própria, elevando o direito particular
subjetivo presente na vontade livre (HEGEL, FD, § 21) à consciência da necessidade de
normas e estruturas administrativas universais, objetivas e soberanamente aplicadas
mediante uma constituição política – organismo do Estado (RAMOS, 2000, p. 232233). E Marx considera que Hegel identificou com sagacidade o problema da cisão
entre o mundo ético e a esfera social burguesa, relação, que a princípio, seria causadora
de uma contradição de tendências históricas autodestrutivas (MARX, 2005 p. 93).
Contudo, Marx julga que Hegel nos oferece um esclarecimento desta
contradição, e não sua solução completa. Para Marx a existência dos estamentos –
corporações reconhecidas e ligadas ao poder do Estado (HEGEL, FD, §§ 300-307),
como formas universais que mediam a particularidade burguesa em sua relação com a
universalidade do mundo ético – antes ilumina tal contradição e mostra o vestígio de
que a solução de Hegel não teria sido capaz de formular um conceito capaz de superar,
de fato, esta cisão essencial que ele próprio busca superar. Esta incapacidade, para
Marx, tem seu segredo em uma determinada maneira de operar o conceito, de lhe
atribuir determinações. Maneira em que o movimento de concreção da vontade livre
como liberdade concreta e universal, ocorre segundo ação de uma essência exterior a
ele, descolada do objeto mesmo em sua certeza sensível (MARX, 2005, p. 79-120).
Segundo Barros, (2006, p. 127) um exemplo dessa conclusão é encontrado por
Marx quando ele encara o dilaceramento ético da sociedade civil-burguesa como
resultado do regime social da modernidade – o regime da apropriação individual – que
funda entre os homens o sentimento de egoísmo e autoriza a concorrência e a tirania da
progressiva assimilação dos interesses da pessoa individual (prática social burguesa)
contra a atividade ética dirigida ao congraçamento comunitário. Se em Hegel o Estado
é fim e fundamento da sociedade civil-burguesa, em Marx esta relação é reinvertida:
nela o Estado não é um pressuposto essencial, mas tem sua única possibilidade de
existência efetiva como produção da sociedade civil-burguesa que incorpora nele suas
pretensões e se torna “elemento da existência para o Estado”, um âmbito no qual o
Estado mesmo se insere não mais como existência universal na qual habitam as
determinações particulares, mas uma existência política da particularidade hipostasiada
como ser político de uma universalidade objetiva (MARX, 2005, p. 37). Assim e o
fenômeno egoísta da personalidade não é bloqueado no momento da determinação da
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universalidade formal. Para Marx, trata-se de uma construção de ilusões cuja disposição
operativa produziria hipóstases conceituais que aparecem como recuperação efetiva do
mundo ético, mas que, do ponto de vista do uso de uma certeza sensível – privilegiado
aqui pela Crítica do direito – é a transposição empírica e efetiva da particularidade
burguesa para a particularidade na forma estatal do poder, que ilude os homens ao
postular que é o estamento universal no qual prevalece o mundo ético.
Abensour (1998, p.71-100) denomina esse processo como redução e explica
que seu papel é o tencionar do Estado em seu conceito para que ele se torne um
momento da vida moderna. Com isso Marx pretendia levar até as últimas conseqüências
as determinações da liberdade concreta, que para ele eram irrealizáveis em sua verdade
se subordinadas ao conceito especulativamente concebido. Não é por menos que
Abensour interpreta que se trata ali de uma crítica do conceito de Estado democrático de
direito, como uma organização voltada à manutenção jurídico-política da ordem
democrática universal; ordem na qual a forma da vivência político-democrática é já
preestabelecida e institucionalizada nos grilhões do organismo estatal – a forma
universal que precede toda a particularidade e fluidez dos interesses. Aquilo que é
sabido e vivido no âmbito da certeza sensível – experiência na qual toda forma
estabelecida se encontra em risco de desmoronar-se noutras experiências sensíveis, se
porta como a figura mais adequada para entender este tipo de objeto e com ela, Marx
engendra um novo conceito, aquele da democracia que:
parte do homem e faz do Estado o homem objetivado. Do mesmo
modo que a religião não cria o homem, mas o homem cria a religião,
assim também não é a constituição que cria o povo, mas o povo a
constituição. A democracia em certo sentido, está para as outras
formas de Estado como o cristianismo está para as outras religiões
[...].A democracia é, assim, a essência de toda constituição política, o
homem socializado como uma constituição particular, ela se relaciona
com as demais constituições como o gênero com suas espécies [...]O
homem não existe em razão da lei, mas a lei existe em razão do
homem, é a existência humana, enquanto nas outras formas de Estado
o homem é a existência legal. Tal é a diferença fundamental da
democracia (MARX, 2005, p.50).
Ao asseverar que a democracia “parte do homem e faz do Estado o homem
objetivado”, o texto de Marx recupera a tríade conceitual da antropologia sensualista de
Feuerbach. Se a democracia é a essência de toda constituição política, ela jaz em toda
forma, em todo saber sobre o Estado (POGREBINSCHI, 2007, p. 60-62). Segundo a
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Crítica do Direito, toda constituição política, em realidade, pressupõe a existência
sensível de uma multidão de indivíduos que se relacionam de modo imediato entre si,
constituindo-se, assim, como conteúdo realmente habilitado a dar a forma e o caráter de
sua forma política, a ponto de fabricá-la em acordo com seu saber rumo à concreção da
vontade livre como liberdade concreta. Nesse sentido, as formas de Estado seriam
tentativas incompletas de se chegar à efetivação da liberdade concreta e caberia levar a
cabo as reais conseqüências do conceito: que o que prevalece no instância estatal é a
realização universalizante dos interesses particulares e não necessariamente a
transformação destes e interesses universal apenas porque mediado por formas
aparentemente comunitárias. Seria necessário então desvencilhar-se não de uma ou
outra forma de Estado, seja ela uma monarquia constitucional ou uma república, mas
desvencilhar-se da cristalização mesma dessa forma como detentora desta conciliação.
Com isso o Estado se tornaria uma “forma de existência particular do povo”, um
momento da vida popular, um predicado, uma forma passageira produzida por ela em
vista de seu conceito excelente, a liberdade concreta (MARX, 2005, p. 51).
Esta democracia, porém, não existe empiricamente; ela, por ser conceito, ainda
está por ser produzida como tal. Ela manifesta sua existência em diversas formas de
Estado, mas que apenas se mostra como em verdade é quando se alcança a consciência
de que ela é uma produção, um processo, uma realidade em devir cuja efetiva realização
depende não apenas do conceito, mas, também, da possibilidade e tentativa de sua
fabricação prática para além de uma vivência como membro do Estado, que como
vimos, é contraditória. Pogrebinschi (2007, p. 56) aponta que este conceito é “em sua
essência, normativo” e, por isso, não se trata de demonstrar as manifestações empíricas
dela, mas de produzir este conceito de modo que ele seja capaz de, na esfera da
Filosofia, subverter a empresa teórica especulativa do direito de Hegel e estabelecer
com as formas políticas de seu tempo, combatividade teórica e abertura de
possibilidades de sua realização como conceito. Por isso, o conceito de democracia é
“um princípio de ação que não se verifica em uma realidade estática, nem em um
momento concreto e determinado” (POGREBINSCHI, 2007, p. 57), mas que esclarece
uma fissura do devir verdadeiramente democrático quando aponta que este conceito é
uma produção, um vir a ser. Esta condição de indeterminação lhe confere, assim, o
estatuto de constituição política genérica, uma substância cuja forma específica é devir,
produção e processo.
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Ora, mas como seria possível a construção de um conceito de democracia desta
ordem? Quais são os critérios utilizados por Marx para dar a seu conceito um estatuto
desta natureza, em que o conceito, em si mesmo, resiste à predicação formal? Já
sabemos que Marx baseia sua análise a partir deste que poderia ser um “ponto de vista”
da certeza sensível. Mas aqui, chama-nos à atenção, o movimento de caracterização que
Marx faz da especulação hegeliana na construção do conceito de Estado, pois o
argumento parece localizar nesse último uma chave procedimental para a produção do
conceito de democracia. Temos um vestígio dessa chave na afirmação de que a
democracia é “a essência de toda constituição política” e de que ela se relaciona com
as demais constituições, “como o gênero com suas espécies”. Parece que, com isso,
Marx apresenta esse conceito como sendo o produto de outro registro de análise, e,
assim, de outro paradigma de exame e elaboração conceituais que nosso projeto acredita
estar contido no conceito de crítica como procedimento específico. Vamos a ele.
O CONCEITO DE CRÍTICA COMO EXPRESSÃO DE UM PROCEDIMENTO
ESPECÍFICO
E o Leitor/ouvinte já deve ter percebido que, em relação à filosofia de Hegel, há
uma discordância de ordem procedimental de Marx. Para ele este procedimento pelo
qual Hegel trata o conceito de Estado é abstrato e especulativo, explica seu objeto
segundo um saber que não condiz com a realidade mesma (MARX, 2005, p.31). Mas
essa realidade mesma, Marx julga ser aquela que se circunscreve no âmbito da
experiência da certeza sensível, segundo ele, a verdadeira criadora de determinações
efetiva sobre seus objetos. Parece ser ela a senhora dos objetos que são como são porque
são somente para nós em face desta certeza. Neste sentido, aquilo que está para além de
seu saber, é tido como abstrato, impreciso e mesmo falso. Segundo esta certeza, como
poderia o assunto do interesse particular – fenômeno empírico no qual se mostra a
sociedade civil-burguesa – ser transformado, no sentido preciso da palavra, em um
assunto dos interesses universais? Segundo o parâmetro da certeza sensível, haveria que
desvendar a realidade hipostasiada de seu objeto e descobrir a verdadeira relação de
determinação entre as esferas presentes na trama entre Estado-sociedade civil-burguesa.
O que se sabe até aqui é que no Estado apenas se simula a unidade ética. E esta
descoberta, segundo nossos estudos, parece ter sido possível segundo um procedimento
filosófico específico, chamado de crítica.
Ranciére (1979, p. 75) escreve que o uso do termo “crítica” é verificado em
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várias passagens dos textos de Marx; mas que nem sempre se trata do mesmo conceito,
o que nos indica que ele possui especificidades em cada obra estudada. Tomando nota
desta advertência, e em nossos estudos preliminares sobre o conceito, descobrimos que
esta crítica na Crítica do Direito tem raízes noutros textos da tradição jovem hegeliana.
É de Ludwig Feuerbach, em sua Crítica da Filosofia de Hegel (1839) que este conceito
aparece mais claramente. Nela, Feuerbach defende que a filosofia hegeliana, ao buscar
estabelecer um sistema filosófico não-dogmático e sem pressupostos – tal como
prenunciado em a Fenomenologia do Espírito –, canonizou-se como dogma embora
parecesse não-dogmático. Ao privilegiar em sua ciência a universalidade formal na
determinação ôntica do objeto empírico, tomava o universo das formações ideais como
seu pressuposto capital. Utilizava-se de um procedimento que engendrara na produção
de seus conceitos um poder de determinação extrínseco à realidade vivida pelo gênero
humano. Defendia que, com este desvelamento, promoveria o real encontro do gênero
humano consigo mesmo realmente, e não em um movimento especulativo, como teria
feito Hegel (SARTÓRIO, 2001, p.12-17.).
Marx herda, assim, uma atividade filosófica diferenciada capaz de instaurar um
dispositivo específico de julgamento que possibilitou à empresa feuerbachiana exceder
os limites ordinários da filosofia especulativa. Munidos destes dados parece então que
temos uma definição ainda que elementar do conceito de crítica. Ele é um conceito que
tem por tarefa a execução do julgamento, cuja ação específica parte de um ponto de
vista teórico sui generis – o da antropologia sensualista – que se determina
negativamente em relação a ele, nos indicando que depende, sobretudo, do objeto
específico submetido ao exame e ao julgamento, e das finalidades buscadas pelas
pretensões do sujeito que se detém ao exame (ASSOUN e RAULET, 1981, p.28-31). E
as primeiras aparições deste conceito na Crítica do Direito de Marx se dão logo e sua
Introdução:
No caso da Alemanha, a Crítica da Religião chegou, no essencial ao
seu fim; e a crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica. A
existência profana do erro está comprometida, depois que sua oratio
pro aris et focis [oração para altar e fogão] celestial foi refutada. O
homem, que na realidade fantástica do céu, onde procurara um ser
sobre-humano, encontrou apenas o seu próprio reflexo, já não será
tentado a encontrar a aparência de si mesmo – apenas o não-humano
– onde procura a sua autêntica realidade (MARX, 2005, p. 145).
Como vemos, Marx inicia esta passagem fazendo um balanço da história da
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crítica como crítica da religião na Alemanha e a sua importância e alcance para a crítica
alemã em geral. A filosofia de Feuerbach, para Marx, ao descobrir que a filosofia
hegeliana dispunha de uma suprassunção especulativa, acabou por revelar o fundamento
espiritualista da filosofia de Hegel, mostrando como ela dispunha de um procedimento
enganador de aspecto religioso e incorreto quanto ao modo como concebia seus objetos,
pois determinava suas investigações a partir de um pressuposto abstrato e que
constituía, por esta razão, um erro de procedimento, segundo a matriz feuerbachiana que
aqui apresentamos. O desvelamento da ilusão provocada pela especulação é auxiliado
pelo uso do conceito de crítica; neste conceito, as formações espirituais, objetos da
contemplação humana, são produtos exteriorizados do homem e que, de fato, trata-se do
reflexo e da aparência dos atributos do gênero humano que foram desencarnados pelo
procedimento especulativo. É um conceito que trabalha com um pressuposto de que
O homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade. Este Estado e
esta sociedade produzem a religião, uma consciência invertida do
mundo, porque eles são um mundo invertido. A religião é a teoria
geral deste mundo, o seu resumo enciclopédico, a sua lógica em forma
popular, o seu point d’honneur espiritualista, o seu entusiasmo, a sua
sanção moral, o seu complemento solene, a sua base geral de
consolação e de justificação. É a realização fantástica da essência
humana, porque a essência humana não possui verdadeira realidade.
Por conseguinte, a luta contra a religião é, indiretamente, a luta contra
aquele mundo cujo aroma espiritual é a religião (MARX, 2005,
p.145).
Esse mundo moderno, de aroma espiritual, que para Marx tem como
componente principal a relação entre o Estado e a sociedade, apresenta-se como uma
“consciência invertida do mundo”, fruto de um erro de ordem procedimental. Por esse
apontamento, Marx não só infere que a crítica de Feuerbach criou o dispositivo que
possibilitou o encontro do homem com a consciência de si, como também defende que
este procedimento é de utilidade ímpar na construção de uma crítica de um novo objeto:
a relação moderna entre o Estado e a sociedade civil-burguesa. Libertos da ilusão
religiosa e em posse da consciência-de-si liberada pela crítica, o critério que regula a
apreensão da realidade humana torna-se o próprio homem em sua individualidade
sensível, figura do saber na qual a consciência-de-si acredita que é o plano de reflexão
mais adequado para fornecer a verdade destes objetos. Assim, se o mundo da verdade
especulativa se desvaneceu mediante o procedimento crítico, resta então o
estabelecimento da verdade deste mundo, ou seja, o estabelecimento da verdade da
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sociedade e do Estado, despindo-os de sua relação especulativa a fim de que o homem
“gire em torno de si mesmo e, assim, em volta do seu verdadeiro sol”: a consciência-desi (MARX, 2005, p. 146). Por esta razão, as críticas da religião e da teologia se
convertem, respectivamente, em crítica do direito e da política. Trata-se da negação
crítica da relação moderna entre a sociedade civil-burguesa (bürgerliche gesellschaft) e
de abandono das formas anteriores de jurisprudência na política alemã. E é isso que
conduz Assoun e Raulet (1981, p. 37-40.) a caracterizarem o conceito de crítica como
um procedimento, um “instrumento teórico” de caráter operativo e desenvolvido para
um determinado fim específico sobre seu objeto. Esta caracterização, quando comparada
à conceituação que Marx esboça, pode ser concebida em duas distinções técnicas:
crítica interna ou imanente e crítica externa ou transcendente.
A crítica interna ou imanente tem como característica nuclear reformular o
conceito hegeliano do direito, utilizando-se inclusive da própria dialética hegeliana,
reconstruindo sua expressão teórica a fim de desenvolver, agora de modo correto, o
caminho conceitual para a plena realização da vontade livre, como liberdade concreta
(ASSOUN e RAULET, 1981, p. 39). A crítica externa ou transcendente, porém, parte
de que a “crítica da filosofia especulativa do direito não se orienta em si mesma”, mas
em elementos externos à especulação hegeliana, como, por exemplo, a antropologia
sensualista de Feuerbach, e as tarefas que só podem ser resolvidas por um único meio: a
atividade prática (MARX, 2005, p. 151) em seu movimento histórico e teórico atual e
suas tendências mais avançadas. Essa adição de elementos externos ao exame da
empresa conceitual de Hegel é feita pela crítica externa com vistas a real verificação
prática da possibilidade de realização do projeto moderno – ajustando os meios, teóricos
ou práticos. Isso se verifica, por exemplo, em carta enviada a Arnold Ruge em Setembro
de 1843 na qual a crítica aparece em mais um esboço:
A razão sempre existiu, só que nem sempre na forma racional. O
crítico pode, portanto, tomar como ponto de partida qualquer forma da
consciência teórica e prática e desenvolver, a partir das próprias
formas da realidade existente, a verdadeira realidade como seu deverser e seu fim último. Agora, no que se refere à verdadeira vida,
justamente o Estado político, em todas as suas formas modernas,
inclusive onde ele não está imbuído conscientemente das exigências
socialistas, implica as exigências da razão. Mas ele não fica nisso. Ele
presume em toda parte que a razão é realidade. Mas igualmente em
toda parte, ele incorre na contradição entre sua destinação ideal e seus
pressupostos reais [...]. Poderíamos, portanto, sintetizar numa palavra
a tendência da nossa Folha: autoentendimento (filosofia crítica) da
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época sobre suas lutas e desejos. Trata-se de um trabalho pelo mundo
e por nós. Só pode ser obra de forças unificadas. Trata-se de
penitência, e nada mais. Para que a humanidade consiga o perdão dos
seus pecados, ela só precisa declarar que eles são o que são (MARX,
2010 p. 71-73 (nota)).
Lemos aqui que a crítica aponta para uma tentativa de realização desse projeto
de identificação do real e do racional que já havia sido abordada anteriormente pelo
próprio Hegel em sua filosofia do direito e que Marx sintetiza como “a verdadeira
realidade como seu dever ser”. Isso mostra como a crítica é então um exercício
construído com vistas à supressão da “fome de positividade”, ou seja, da produção
racional da realidade objetiva (ASSOUN e RAULET, 1980, p. 35 e ss.), porque percebe
a insuficiência de seu objeto – neste caso o aspecto especulativo da filosofia do Estado
de Hegel.
A crítica busca exprimir um modo de julgamento guiado por um
procedimento específico que se estrutura a partir de uma posição sui generis que se
regula com vistas a um determinado fim teórico e prático, portando-se como dispositivo
instrumental que funciona como um método transformativo de seu objeto a fim de
corrigi-lo racionalmente em sua manifestação filosófica (como crítica conceitual) e
histórica (como crítica prática).
A CRÍTICA E A PRODUÇÃO DO CONCEITO DE DEMOCRACIA
Eis aqui um excerto que pode auxiliar a compreender a possível relação entre os
conceitos em questão. Nele Marx condensa sua crítica ao procedimento especulativo de
Hegel, mostrando a razão de sua insuficiência:
O conteúdo concreto, a determinação real, aparece como formal; a
forma inteiramente abstrata de determinação aparece como conteúdo
concreto. A essência das determinações do Estado não consiste em
que possam ser consideradas como determinações do Estado, mas sim
como determinações lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata. O
verdadeiro interesse não é a filosofia do direito, mas a lógica. O
trabalho filosófico não consiste em que o pensamento se concretize
nas determinações políticas, mas em que as determinações políticas
existentes se volatilizem no pensamento abstrato. O momento
filosófico não é a lógica da coisa, mas a coisa da lógica. A lógica não
serve à demonstração do Estado, mas o Estado à demonstração da
lógica (MARX, 2005, p. 38).
A descoberta de que “o conteúdo concreto, a determinação real, aparece como
formal” e de que a “forma inteiramente abstrata de determinação aparece como
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conteúdo concreto”, autoriza o texto de Marx a fazer a crítica das determinações “
lógico-metafísicas em sua forma mais abstrata”; estas que permitiram a Hegel fazer “do
homem o Estado subjetivado” (MARX, 2005, p.50). Esta solução hegeliana foi uma
“enunciação racional da realidade empírica”, uma introjeção ideal mistificada, um
elemento formal exterior que regula toda e qualquer relação de determinação na
filosofia hegeliana do direito e que deve ser submetido à jurisprudência desta nova
crítica, que nega seu objeto e o reformula com novas determinações. A democracia,
segundo nossa hipótese, é um caso-produto deste outro proceder filosófico.
Por isso, a democracia que, como vimos, se relaciona com o Estado como
gênero de sua espécie, é concebida segundo outra fonte de determinação dos conceitos
(aquela da crítica) que alicerça a possibilidade de sua existência na tentativa aberta de
construção de uma comunidade real cujas mediações formais são volatilizadas pelo
estado de seu conteúdo que predica a forma democrática e que não separa os interesses
particulares e os universais em esferas diferentes para falsamente identificá-los segundo
o modelo da especulação, mas os mantêm juntos na sua realidade comunitária imediata
face à consciência da verdade de sua condição. Com isso, o procedimento crítico
reafirma a insolubilidade do problema da contradição entre os interesses particulares da
pessoa individual e os interesses universais contidos na ideia do congraçamento
comunitário, reabrindo a situação de luta política e social que havia sido apaziguada
pelo conceito hegeliano de Estado. Isso não significa, entretanto, que Marx volta à
estaca zero do problema. Com o procedimento oferecido pelo conceito da crítica, o
autor rearranja os caminhos e as configurações de seu exame em vista desta realização
do projeto crítico. Este libertar-se tem sua expressão no conceito da democracia e tem
sua verificação mais próxima apenas na tentativa livre e na possibilidade de sua
fabricação, que não se fixa em formas de Estado, mas nos predicados determinados e redeterminados continuamente. Ela é criticamente elaborada e, por isso, corresponde a
certo procedimento contido no conceito marxiano de crítica cujo núcleo tem como
elemento basilar o posicionamento filosófico sui generis que elabora seus próprios
princípios normativos para produzir conceitos distintos de seu objeto, como se queria
demonstrar.
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Anais do Seminário dos Estudantes da Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar
ISSN (Digital): 2358-7334
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colaboração de Karl-Heinz Efken e apresentação de Henrique Vaz, 2ª edição. Editora
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ISSN (CD-ROM): 2177-0417
IX Edição (2013)
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