Odete Pereira da Silva MENON (Universidade Federal do Parana) ABSI'RACI': In Portuguese, a gente has grammaticalized: it has changed at morphosyntactic level, from a nominal group into a pronoun. Throughout this process, it was no longer able to inflect, neither to receive determinants and it changed its subjects complement gender. At the same time, there were semantic, phonetic-phonological changes. KEY WORDS; a gente; grammaticalization; Brazilian Portuguese; pronominal system. Varios autores fazem referencia a "expressao a gente" (MONTEffiO, 1994:147), mlmero ou de pessoa que ocorre nas atesta~oes em que se demonstra 0 grande leque de possibilidades de concordancia com a "palavra gente" (CUNHA & CINTRA, 1985:614; PEREIRA, 1948:251, entre outros); alguns ate chegam a conferir a essa forma 0 titulo "pronome indefmido" (CUESTA, 1980; SAID ALl, 1971a), quando tratam do seu uso como uma das possibilidades de "indetermina~ao do sujeito". No entanto, no panorama geral das referencias, os autores nao perceberam que nao se trata mais do substantivo gente 0 qual, em locut;ao formada com 0 artigo a, terla sofrido urna serle de transfo~oes. E sobre essas transforma~s que passaremos a discorrer nas se~s que seguem. a silepse de OMENA (1987), tratando das "formas de referencia" da primeira pessoa do pWl no portugues do Brasil (doravante PB), fala em pronominalizac:ao de a genre . N<J'entanto,apesar de considerar a forma urn pronome de 1.a pessoa, a autora nao da maiores detalhes sobre como essa forma terla chegado a ser urn pronome. MENON (1994) fala em expressoes cristalizadas ao se referir a forma a gente ou a outras fonnas nominais utilizadas para expressar urn sujeito indeterminado: a pessoa. 0 cara. 0 sujeito. 0 indivfduo. a turma. No seu entender, essas expres80es teriam se "cristalizado"e assumido urn carater pronominal, visto que Ilio poderiam (principalmente no caso de a genie) mais sofrer expansio ou concordincia ou receber adjetiva~o ou dete~o sob penla do significado -especifico que assurnem tais fonnas ao serem utilizadas para fazer referencia a urn "sujeito indeterminado". 0 que essas autoras chamam de pronominal~ ou cristaliz~ constitui 0 que aboroaremos sob 0 r6tulo de gramaticaliza~iJo. Adotaremos como refer6ncias te6ricas os trabalhos de HOPPER &. TRAUGOTT (doravante H&.T (1993) e de REIGHARD o camarada. (1978». De uma certa forma, os autores que se deb~ sobre 0 tema fazem eco a primeira utniza~Ao do termo, que remonta a MEILLET (1912 : 131, apud H&T, 1993), para quem gramatical~ constitui "l'attribution du caractere grammatical a un mot jadis autonome". Nessa perspectiva, gramatica)j~ seria a transfo~o por que passa uma palavra lexical, autfuloma, para se tornar uma palavra grtunalical, presa ou funcional. Assim, para H&T (1993), urn item lexical poderia chegar a~ a forma mais presa, 0 ajixo, seguindo a cadeia de possibilidades de gramatical~io: H&T (1993) usam 0 termo cline para se referir a essa tend!ncia (que pode ser contrnua ou se deter em determinada etapa da r~ de mobilidade) que assumem deterrninadas palavras da lingua. Assim, Ilio 56 uma palavra lexical pode se transformar em uma palavra gramatical como pode a~ atingir 0 estAgiode molfema (afixo, em sua terminologia). 0 cline pode ser encarado tanto do ponto de vista diacr6nico, correspondendo mais ou menos a n~o sapiriana de deriva, como do ponto de vista sincr6nico. conespondendo olaisou menos a ~Ao de continuum. Para REIGHARD (1978:409), existll'ia uma "hierarquia das categorias", que consistiria na passagem de uma categoria lexical primQria (substantivo, verbo, adjetivo) para urna categoria gramatical secund4ria (auxiliar, determinante, pronome) que, por sua vez. poderia passar a uma categoria terciaria (cUticos, afixos) que, na Ultimaetapa do processo, desapareceria. Ele da como urn dos muitos exemplos. para 0 frances, a evol~o do pronome de terecira pessoa: do demonstrativo latino ille se formou 0 pronome pessoal francas il. De pronome pessoal, il se transformou em afixo do verbo, provavelmente em fun~o da obrigatoriedade do uso do pronome sujeito, em frances. Assim,· numa frase como lui il va, Ilio existe mais, na pronUncia atual do franc~s. a pausa que ainda e marcada na escrita pela virgula: lui. il va. Em ambas as perspectivas, a par da muclanca de categoria do item lexical. ao lado de ~a modifi~o (estreitamento) de significado, ocorreria tambem uma modifi~io no myel fonetico: 0 item lexical sofreria uma red~o fonetica, como no caso do pronome de tereeira pessoa do frances ou da forma~o do futuro nas linguas rominicas ou como em let us > let's, em ingl~s. A seguir, veremos como essas questOCsse aplicam a a genie, na seu processo de gramaticaliza~o. Apesar de admitirem que a gramaticaliza~ao possa ocorrer em mveis mais elevados que 0 do item lexical, tanto H&T quanto REIGHARD usam 0 mvel item lexical como ponto de partida para explicar 0 processo. No entanto, na analise diacronica que es~amos aqui, a propOsito de a gente, em portugues temos que estudar 0 fenomeno no mvel acima dos vocabulos, na estrutura dos constituintes: 0 da locu~iio (ou sintagma) nominal. Como ja mencionado, tem havido uma certa confuslio no tratamento dispensado a forma a gente, que muitas vezes e enfocada no mesmo mvel que 0 substantivo gente, que continua a existir em portugues, com muitos significados. Essa atitude mostra que a especializa~ao de significado sofrida por a genre ainda nlio foi hem compreendida, ou percebida, -pelos autores. No latim, gens, gentis possuia varios significados, como nos mostra GAFFIOT (1934:708): "r~, estirpe, linhagem, famfiia; ra~a de povo, povo (em ordem decrescente: gente, na~o, cidade); 0 povo de uma cidade; pais, regiao, lugar; pI. gentes "barbaros"; genero: a ra~a humana, 0 genero humano". Em portugues, 0 substantivo genre, do acusativo gentem, foi empregado a principio com as ace~Oes herdadas do latim, como em (01,05,06,09). Como substantivo, admitia fleno em mimero e podia constituir loc~ao nominal com a adjun~ao de artigos (mesmo indefmido, como em (09», conforme os exemplos de LOPES (1965)1: (02,03,07,08) e outros determinantes, conforme exemplos (05 e 06), alem de poder receber determina~o por meio de or~s relativas, como (04) . (01) a gente dos lombardos [...] usou de toda sa crueza e de toda sa malda-de contra os cristlios (Didl. Silo Greg., apud M. e SILVA (1989:495) (02) [D. Pedro] Foi muito manteedor de suas leis e grande executor das semtencas julgadas, e trabalhavasse quanto podia de as jentes nom seerem gastadas, per azo de demandas, e perlongados preitos (p.08) (04) as gentes que dormiam, sahiam aas janellas, veer que festa era aquella ou porque se fazia (LOPES, p.62) (05) e eram as gentes destes senhores todos ataa cimquo mil de cavallo, e muita gente de pee. A~ima veemdo elRei como perdia as gentes per esta guisa (LOPES, p.83) 1 A Caltade estudos diacr6nicos extensivos, escolheu-se esse autor par estar ele a cavaleiro entre 0 portugues medieval e as primeiras gramaticas dovernaculo, instrumentos do processo de estandardiza~io da lfngua. 624 (06) e que lam~asse de seu reino seus irmaios e as gentes que eram com eUes [ ... J e disse que as gentes todas l~aria fora (LOPES, p.110) (07) ouverom as gentes por mui gram mal huum muito davorre~r escambo (p.141) (08) E diziam as gentes, que taaes dez annos numca ouve em Prutugal como estes que reinava elRei Dam Pedro (p.202) A concordancia do predicativo respeitava ainda 0 genero gramatical do substantivo feminino genre, como em (02,05,06). No entanto, ja se flagra exemplo de concordincia "desviante" ou "ideo16gica", como (09): (09) ... com 1uI'agenre de Hespanha chmnodos Indigetes (Duarte Nunes de Leio, Origens, cap. 2, apud AMARAL (1920:58» No plural, parece que 0 sentido de as genres corresponde ao usa atual de as pessoas, como em (02,03,06,07,08), ou como em (10) e (11), exemplos dos secwos XIV e xm . respectivamente: (10) E as genres braadavam a Deus por chUvia. (Didl.S.Greg. apud M. e SILVA, 1989:497) (11) en nossa terra, se Deus me perdon,1 a todo escudeiro que pede doni as mais genres lhe chamam segler. (Pero da Ponte e Monso Eanes de Coton, apud SPINA, sId: 58) t/Qs Usado, por conseguinte, no singular e no plural, designava um conjunto de seres humanos, identificados entre si por tr~s comuns ou compartilhando caracteristicas e, por isso mesmo, tornados "comuns"; daf, provavelmente, sua acewio generica, coletiva, ou ate "indeterminada". como parece ja ser 0 caso de (12), conforme nota ROBL (com.pessoal): (12) Pelo Souto do Crescentel u-a pastor vi andarl muit'alongada da gentelal~o voz a cantar (CBN 967, CV 554, ROBL, com. pessoal) Porem, num dado momento do portugues, ainda nio estudado em profundidade ou extensio, dentre as varias constru¢es possiveis especializou-se 0 usa da loc~o formada pelo artigo a mais 0 substantivo genre, para designar os seres de maneira coletiva, generica: especializou-se 0 sentido, mas 010 se perdeu 0 significado primeiro. Passa, entio a ser uma das formas de expressar 0 "sujeito indeterminado". Desse usa, possivelmente derivou 0 emprego de a genre por nOs e por eu. Visto que o{s) falante(s) pode(m) se incluir na indete~o, a forma adquiriu os tra~os senWlticos de La pessoa do plural e, depois, do singular. No processo de transforma~ao semantica, 0 significante se tomou fixo, do ponto de vista sintitico: a gente, pronome indefmido, nao pode mais ser decomposto, nao admite mais flexao de nl1mero e a concordancia se neutralizou. Temos, entiio, a seguinte cadeia de transfo~ao: (13) LN£ > ..LNE [...gente...] > un a gente > PIon,Indet > Pron Pess.1 (P>S) [a gente] a gente a gente em que LNP corresponde aetapa em que gente poderia constituir locuCAonominal expandida, a direita e a esquerda; LNE corresponde a formacio da locucao nominal especial, com a adjuncao do artigo a, mas ainda com a possibilidade de uso no singular ou no plural; LNI corresponde ao momento em que a LNE perdeu a capacidade de ser usada no plural e se especializou. Sendo forma ftxa e passando a ser empregada como meio de indeterminar 0 sujeito, se transformou em pronome indefinido. Como tal, passou a ter a concordancia do predicativo no genero naomarcado, identico a forma masculina, como em (14), dado de urn informante do NURC/SP, do sexo feminino: (14)2 ntiio pra se orientar eu tenho a impressao pra se orientar a gente teria que ser orientado antes (DID/41152/558/FI) Do ponto de vista fonol6gico, quando a locUCio se fixou em LNI, 0 seu comportamento, em relacio aos padroes acentuais do portugues, passou a ser idCntico ao do itens lexicais: isoladamente, nao recebe mais intensidade 2 ("), caracteristica de locu~io; passa a ter intensidade I ('), de vocabulo (cf. 15a): (15) a. LN [a."Ze-.tI] > N(ome) >[a,'Ze-.tI] > (15) b. P(ronome) > [a.'Ie-.tI] > [a.'e-.tI] > [a.e-.'tI] > Quanto a composi~io fonetica, talvez devido a frequencia de uso que passa a ter como pronome pessoal (PI), a gente sofre novas modificacoes, inclusive com reducao da massa fonetica (cf. 15b): ha urna mudanca de [Z] para [h, semelhante a que ocorre com 0 Isl em trava de silaba, como em [meZmY] > [me 1mY], caracteristica de alguns dialetos do PB; em seguida essa aspirada [h desaparece, resultando na pron6ncia [a. 'e - .tI]. Depois, ocorre urn deslocamento do acento para a silaba seguinte [a.e-.'tI], pron6ncia encontrada ate no NURC/SP, conforme nota MENON (1994) e, por Ultimo, uma crase decorrente cia assimi1a~o regressiva reduz ainda mais tamanho do pronome. 0 Finalmente, ja como PI, a genre se comporta como qualquer outro pronome do ·premcatlvo-passa a ser ferta de acordo com 0 sexo do referente extralingiiistico: nOs estamos cansados(as)/ a genre estd cansado(a). Esta, portanto, perfeitamente integrado no paradigma dos pronomes pessoais, sobretudo no PD. pessoat: a conootdaficia e, sofreu modijic(lfoes a nivel morfo-sinrdtico, transformando-se de locu~iJonominJJlem pronome. Durante esse processo, perdeu a capacidode de se jlexionar, de receber determinantes e mudou a concordlincia em genero com ° predicativo. Paralelamenre, oco"eram altera~oes semmmcas e jonetico-jonolOgicas. RESUMO: Em portugues, a genre se gramaticalizou, isto PALAVRAS-CHAVE: a gente; gramaticalizacao; pronominal portugues do Brasil; sistema CUESTA, P.V. & LUZ, M.A.M. (1980). Gramdtica do UngUQ Portuguesa. Sio Paulo: Martins Fontes. CUNHA. C. & CINTRA, L. (198S). Nova Gram4tica do Portuguis Conlempor6neo. 3 ed. 16 imp. Rio: Nova Fronteira. HOPPER, P.I. & TRAUGOTI, Press. E.C. (1993). GrammaticalizPtion. Cambridge: Cambridge University MA'ITOS E Sn.VA, R.V. (1989). Estrutllras Trecentistas. Lisboa: INCM MENON, O.P.S. (1994). 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