Regras para ofertas hostis Graziella Valenti. Valor Econômico. 24/03/2010 Conhecido pela histórica concentração de capital nas mãos dos donos das empresas, o Brasil terá, em breve, regras para as ofertas hostis de aquisição de controle. Essas operações são típicas de mercados com alto índice de dispersão das ações, como Estados Unidos e Inglaterra. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM) deve: colocar regras detalhadas para os casos de disputa por uma mesma empresa, impedir interferências durante o leilão, estabelecer quais informações os ofertantes deverão fornecer ao mercado e pedir que a administração de uma companhia alvo de oferta se posicione sobre aceitar ou rejeitar a proposta, como é praxe nos demais mercados. Além disso, a expectativa é que o regulador determine claramente se uma companhia ou grupo interessado pode fazer aquisições privadas de ações (negócios entre os investidores que não transitam pela bolsa) ou mesmo no mercado após ter lançado uma oferta. A minuta da norma que será levada à audiência pública já está praticamente pronta. O texto recebeu aprovação do colegiado da autarquia em 2 de março, mas ainda não veio a público. A superintendência de desenvolvimento de mercado está terminando de ajustar as sugestões. Consultada, porém, a CVM não quis comentar o assunto. Limitou-se a informar que a minuta está "prestes a sair". A proposta da autarquia altera a Instrução nº 361, de 2002, que trata das diversas modalidades de oferta pública: por aumento de participação, por venda de controle, voluntária, para aquisição de controle e concorrente. Contudo, as mudanças devem se concentrar nas três últimas formas de oferta. Será uma reforma da norma, não sua substituição por completo. A decisão da CVM de revisar o regulamento tem forte relação com a compra da empresa de telefonia GVT pelo grupo francês Vivendi, que derrotou a espanhola Telefônica de maneira surpreendente utilizando-se de compras privadas de ações e derivativos. Inusitada por aqui, a operação, que envolveu R$ 7,5 bilhões, está sendo investigada pela autarquia. Foram as brechas na regra, evidenciadas na compra da GVT, que motivaram a autarquia a já pensar no assunto, a despeito da pouca experiência do país nesse tema. Na época da disputa, o presidente do grupo Vivendi, Jean Bernard-Levy, ciente do ineditismo da operação no Brasil, procurou saber até onde poderia ir para surpreender a rival e levar o negócio sem ferir a lei. Antes da GVT, a Sadia tentou comprar a Perdigão, em 2006, mas a tentativa sequer evoluiu, pois houve uma veemente recusa pela maioria dos acionistas da companhia-alvo. Além disso, recentemente, os administradores da IdeiasNet se uniram à Centennial Asset Management, de Eike Batista, e à gestora carioca Mercatto para comprar boa parte do capital da empresa, que estava disperso na bolsa. E pronto: esse é praticamente todo nosso histórico. No fim dezembro, Maria Helena Santana, presidente da CVM, já havia afirmado ao Valor que achava importante regular questões como transparência de informações, conduta dos ofertantes e da empresaalvo, situações de oferta concorrente e posicionamento da administração. Criada em 2002, a regra atual prevê ofertas públicas de aquisição de controle - que podem ser hostis ou não. Considera-se hostil quando não há negociação prévia e cordial com a administração da empresaalvo. Porém, há oito anos, essa era uma realidade muito distante no país, pois sequer o Novo Mercado havia deslanchado. Para Carlos Augusto Junqueira, do escritório Souza, Cescon, Barrieu & Flesch Advogados, a norma reformada deveria impedir a existência de uma interferência compradora no momento do leilão da oferta. A regra atual permite que um segundo e até um terceiro interessado cheguem num leilão do ofertante original pagando mais pelas ações e levem o controle da companhia. Esse interessado pode ficar obscuro até o momento do leilão. Além disso, não está claro se essa interferência pode ser por apenas parte da quantidade de papéis-alvo ou pela totalidade. Segundo Junqueira, a norma vigente acaba fazendo com que apenas o preço seja o fator de decisão sobre o novo controlador de uma empresa. "É uma decisão muito séria para ser feita só por preço." Além disso, a norma torna automática a vitória do maior preço ainda que não seja a melhor proposta para a companhia e para a própria economia. Isso porque o investidor que aceitar o preço inicial automaticamente aceita o valor maior que surgir durante o leilão, por conta do próprio sistema do leilão. Ele não tem nenhum poder de decisão. "Nos Estados Unidos, por exemplo, uma oferta concorrente precisa ser lançada antes, com edital e proposta", explica Junqueira. Com isso, o acionista consegue estudar o assunto. Outro debate que a CVM deve enfrentar, ao sugerir que a administração se posicione sobre a proposta, é se os conselhos de administração no Brasil estão prontos ou não para essa situação. Nos Estados Unidos e também na Europa, é comum que o conselho de administração opine sobre a oferta, recomendando a adesão ou não aos acionistas. Recentemente, o conselho da portuguesa Cimpor, por exemplo, sugeriu que os acionistas rejeitassem a proposta da siderúrgica brasileira CSN. Há quem acredite que o Brasil ainda não tem conselhos suficientemente independentes para lidar com essa situação. Isso porque mesmo as empresas que não contam com um controlador majoritário têm sócios relevantes que indicam seus membros da administração, o que pode comprometer a isenção da análise. "Nos Estados Unidos, há centenas de empresas em que o maior acionista não tem nem 5%", destaca Junqueira. Nelson Eizirik, jurista especializado em direito societário, acredita que seria importante o posicionamento do conselho para nortear os acionistas. Ele lembra, contudo, que a decisão soberana é do investidor. A administração apenas auxilia. Por aqui, só agora começa a crescer o número de companhias em que o principal acionista ou grupo tem menos de 51% das ações. Hoje, existem 40 empresas com essa estrutura. Parte significativa delas conta com investimento de fundos de participações, de pensão ou do Banco Nacional de desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) - que podem sair da aplicação a qualquer momento, deixando uma fatia ainda maior dispersa entre os investidores. O próprio Novo Mercado, ambiente em que são admitidas apenas empresas com ações ordinárias (votantes), estimula essa expansão. Hoje, pouco mais de cem empresas são negociadas nesse segmento cerca de 20% do total de companhias listadas. André Soares de Camargo, professor do Insper, acredita que a CVM também precisa atentar para a responsabilidade dos ofertantes, para evitar situações artificiais de competição que beneficiem os envolvidos e não agreguem ou até prejudiquem o mercado. "Hoje não há punição prevista." Para Eizirik, a revisão da 361 também seria uma boa oportunidade para o regulador deixar explícito o entendimento sobre a necessidade de oferta ao mercado em casos de alienação de controle minoritário. Ele acredita que após o caso da TIM no Brasil, envolvendo a entrada da Telefónica na Telco (principal acionista da matriz Telecom Italia), talvez haja um posicionamento mais claro a respeito. Em 2009, o colegiado da CVM entendeu que a compra indireta de fatia na Telco não disparava oferta na TIM por não se tratar de controle. Caso GVT expôs diversas brechas nas normas atuais A Vivendi atuou na fronteira das regras brasileiras para levar a GVT, na briga pela Telefônica. A operação deixou diversas lições. O negócio é alvo de investigação da CVM, que tenta avaliar se houve manipulação do mercado no episódio. O grupo francês acabou nunca lançando um edital de sua oferta e pôde manter o suspense até o fim sobre seu real interesse na disputa, por conta das regras atuais. A empresa havia negociado previamente com os sócios fundadores, detentores de 30% do capital, sobre o lançamento de uma oferta. Mas como foi interrompida pela publicação do edital da oferta hostil da Telefónica, acabou não divulgando o seu. Trabalhava com seus assessores financeiros e legais na tentativa de criar um documento que dificultasse a participação de um outro interessado quando o grupo espanhol deu sua tacada. Durante dois meses, os investidores da GVT especularam com uma disputa sobre a qual não existia certeza. Após a chegada da Telefônica na disputa, a Vivendi não mais disse se continuaria ou não na briga. Sabia que mesmo sem publicar o edital, poderia interferir de surpresa no leilão da Telefônica como prevê a regra atual. Nesse intervalo, a Telefônica lançou sua proposta e elevou seu próprio preço, sem nenhuma manifestação oficial de sua concorrente. A Vivendi limitou-se a dizer que fez uma diligência satisfatória e que seu conselho de administração aprovou a realização de uma oferta pela GVT. Nada mais. Mas o grupo francês não esperou o leilão da Telefônica. Negociou privadamente com acionistas da GVT a compra de diversas fatias do capital e adquiriu papéis em bolsa até alcançar 53,5% das ações. Contudo, praticamente só a GVT, a Vivendi e a Telefônica tinham ciência sobre a possibilidade das compras privadas. A operadora tinha pílula de veneno em seu estatuto - dispositivo que funciona como bloqueio contra compra de grandes participações. Foi necessário convocar assembleia para dispensar a pílula tanto para Vivendi como para Telefônica. Essa assembleia poderia ter decidido que só aceitaria as compras em bolsa, mas não o fez e não esclareceu que essa porta ficou aberta. Além disso, uma parcela do total comprado pela Vivendi - equivalente a 19,6% dos papéis votantes da GVT - eram opções de compra de ações. São os detalhes dessa parte da operação que a CVM investiga. Tais opções eram detidas na forma de derivativos comprados de um fundo estrangeiro para eventos societários, o Tyrus Capital, criado pouco antes da transação e concentrado em GVT. Só que a Vivendi não anunciou, num primeiro momento, que as opções eram sobre derivativos. Também não comunicou se o fundo tinha toda a posição para entregar de imediato. Caso não tivesse, o leilão da Telefônica pode ter sido abortado antecipadamente.