Escolher e Viver Tratamento e qualidade de vida dos pacientes renais crônicos André François Ricardo Brendler Cachoeira do Sul, RS De volta à fila B Ele busca na meditação e na ioga a serenidade para conviver com sua condição. Demonstra também ser persistente e batalhador. Divorciado, vive em-disposto, terno e gravata. Assim o médico Ricardo Brendler, 48 com a filha de 5 anos. Vê o transplante como uma forma de mudar sua vida e anos, recebe a ImageMagica na sala de diálise da Santa Casa de Porto prepara-se para voltar em breve à fila. Alegre. Esse cirurgião e especialista em pneumologia veio de Cachoei­ ra do Sul, a 200 quilômetros da capital, não para um congresso da sua espe- Toda pessoa que tem doador vivo não espera cialidade, como faz supor o traje. Veio como paciente para uma consulta de de medicina, buscou informar-se sobre sua condição. Em 1991, aos 29 anos, R fazia residência quando perdeu totalmente a função renal. Optou então pela sos vasculares para a hemodiálise. rotina. Ricardo tem problema renal desde os 2 anos, motivado por uma amidalite, e desde então convive com a doença. Quando estava cursando a faculdade diálise peritoneal e tornou-se um dos primeiros pacientes no Rio Grande do Sul a seguir esse tratamento. Foi, segundo ele, uma alternativa satisfatória, até que, após dois anos e quatro meses na fila, conseguiu um rim para transplante. O órgão resistiu em osana Mussoi Bruno é médica assistente da equipe de Nefrologia e Transplante Renal da Santa Casa de Porto Alegre, onde Ricardo é atendido. Ela trabalha com diálise peritoneal desde 1988, quando esse método era utilizado principalmente em pacientes que não tinham mais acesSegundo ela, a diálise peritoneal é um método cada vez mais usado no mundo todo, e a opção por esse tratamento dependeria de vários fatores. “Mas, independentemente do tratamento, a perda da função renal acontecerá de qualquer jeito a longo prazo”, explica. seu organismo durante dez anos e proporcionou a Ricardo muita liberdade e Por isso, ela chama atenção para a importância do transplante e de se uma vida praticamente normal. Ele viajava, fazia paraquedismo e surfava. Mas ampliarem as estruturas para captação de órgãos de doadores mortos – sobre- em 2003, após uma complicação, perdeu novamente a função renal. Ficou um tudo no que diz respeito às equipes de saúde, que devem estar preparadas para curto período em hemodiálise e em seguida recomeçou a diálise peritoneal. informar sobre o processo e realizá-lo. Segundo ele, essa opção de tratamento permite mobilidade e é relati- Mussoi avalia, no entanto, que “o transplante no Brasil é muito estimula- vamente simples de seguir. “É como se fosse tomar um medicamento durante do. A legislação é maravilhosa, os médicos querem fazer, as equipes cirúrgicas cerca de meia hora”, explica. Ricardo não tem problemas com os cuidados re- e as equipes clínicas são bem remuneradas. O transplante é a melhor coisa que queridos pelo tratamento. Sabe bem como realizar a esterilização do material e existe em nefrologia no Brasil. Só não tem mais transplantes porque não tem evitar uma infecção na hora de trocar as bolsas. A peritonite, infecção causada mais doadores. Toda pessoa que tem doador vivo não espera. (...) Quem espera pelo cateter posicionado no peritônio, é relativamente comum em pacientes é quem não tem doador”. que realizam a diálise peritoneal. Nesses seis anos de tratamento, ele não teve nenhum problema. “A diálise me dá liberdade. Eu trabalho, viajo para outras cidades. Posso fazer a troca em qualquer canto.” Ricardo enfatiza a necessidade de que o paciente reconheça a condição de renal crônico. “Primeiro você tem que entrar em um processo de aceitação, depois de transcendência. Precisa ver a coisa toda como um processo, entender que vai ser renal crônico a vida toda.” 26 27 Bruna Santos de Sousa Fo r t a l e z a , C E Quarto cor-de-rosa O s pais de Bruna de Sousa, 17 anos, temem pela vida da garota. O pai e um dos irmãos estão fazendo testes de compatibilidade para lhe doar um rim. Enquanto espera, a família se esforça para que ela siga o tratamento com diálise peritoneal nas melhores condições. Bruna recebeu o diagnóstico de doença renal em 2003, e há oito meses começou a diálise peritoneal. A enfermeira Socorro Rolim, da clínica que Bruna frequenta, insistiu para que ela tivesse um quarto em condições adequadas, limpo e organizado. “Eu falei com o pai dela e ele disse: ‘Dou um jeito, fico devendo, mas o quarto dela eu faço’. Ele construiu o quarto e está aí para ela fazer a diálise”, conta Joana, sua mãe, enquanto mostra o cômodo, o mais bem cuidado da casa, com paredes pintadas de cor-de-rosa e piso azulejado. A irmã Tamires, de 18 anos, se ofereceu para fazer o treinamento e hoje é quem cuida de Bruna. Toda noite, arruma o quarto e realiza os procedimentos para que a irmã possa usar a máquina cicladora da diálise em segurança. Quando está tudo pronto, chama Bruna. “Nos primeiros dias, foi difícil, mas depois foi legal. Eu me sinto orgulhosa por ajudar minha irmã”, diz Tamires, que, além das tarefas em casa, acompanha a irmã nas consultas. Yara, uma prima de 14 anos, também fez o treinamento para auxiliar Bruna caso Tamires esteja ausente. Bruna ainda brinca, mas já namora e adora dançar forró. Estudiosa, está na sétima série, e suas matérias preferidas são ciências, geografia e história. A menina conta um segredo: escreve poesia e mantém um diário. Na porta do quarto há vários papéis colados; em um deles, há um texto cujo tema são as lágrimas. Autora: Bruna Santos de Souza. 70 71 Guilhermina Ribeiro dos Santos S ã o Pa u l o, S P — Pa r i n t i n s , A M Rumo à casa de Guilhermina A vida em uma caixa D A é colocada em uma balsa que sobe o rio Amazonas em direção a Manaus. Mais varanda e correm para abrir a casa para os carregadores. Sem esse material, ela cinco dias de viagem, e as caixas chegam à capital do Amazonas. Ali, depois de teria que viajar três vezes por semana até Manaus para frequentar uma clínica de inspecionadas e liberadas, passam para a transportadora local. hemodiálise. O percurso de vinte horas em um barco provavelmente obrigaria e São Paulo, o carregamento com o material para diálise peritoneal sai da empresa fabricante, em um caminhão da transportadora, rumo a uma longa jornada, cumprida em várias etapas. Até Belém, são cerca de seis dias de estrada. Na capital do Pará, a carga Na sede dessa empresa, a carga é “roteirizada”, ou seja, devidamente des- picape chega ao seu destino: a moradia da dona de casa aposentada Guilhermina. Assim que avistam o carro da entrega, Guilhermina e o marido, José Ribamar, levantam-se das cadeiras de balanço nas quais estão sentados na Guilhermina a mudar de cidade. tinada aos pacientes da região. Em Manaus, as caixas partem rumo a Parintins, Já na sala, ela conta com lágrimas nos olhos que a doença renal, adquirida uma ilha de 100 mil habitantes famosa pela Festa do Boi, que todos os anos atrai em associação com hipertensão e diabetes, custou a ser percebida. Ela se sentiu milhares de turistas no mês de junho, e onde vive a destinatária: Guilhermina mal em março de 2008 e foi levada para um hospital de Manaus. Enquanto este- dos Santos. ve inconsciente, os médicos decidiram pela diálise peritoneal em função de sua Em muitas mãos e braços, as caixas embarcam no Novo Aliança, um enor- idade e local de moradia. A família concordou, e quando Guilhermina acordou me barco de metal de três andares que transporta pessoas e carga. São 20 horas já havia passado pela cirurgia de colocação do cateter. Só quando uma de suas de viagem antes de serem descarregadas e colocadas em uma picape, que as leva- filhas explicou o que estava acontecendo é que ela começou a assimilar a situa- rá até a casa da paciente. Esse foi o destino dessas 50 caixas. Outras delas chegam ção. a viajar por quase um mês para atingir pacientes ainda mais distantes. Enquanto conta esse episódio, ela chora e diz que ficou “muito triste, muito mal”. O marido a consola, e ela relata que, por ter perdido uma cunhada na hemodiálise, tinha pavor desse procedimento. “Ela morreu na clínica. Eu não queria aceitar de jeito nenhum isso.” Somente depois que o desespero passou é que ela entendeu que faria outro tratamento; e que poderia fazê-lo em casa, sem precisar ficar conectada a uma máquina no hospital. Essa mãe de oito filhos, todos adultos, vai mensalmente a Manaus, acompanhada do marido, para uma consulta de rotina com o médico Rolando Valenzuela. Dois dos filhos fizeram o treinamento e agora cuidam de Guilhermina, com a colaboração dos outros. Adilson, um dos filhos, diz que vê a mãe bem melhor com o tratamento. José Ribamar vai além e aconselha a diálise peritoneal. “É um bom remédio, e a gente fica com uma vida tranquila. Ter um cateter pendurado na barriga não importa. Ela também não aceitava isso, mas agora leva uma vida normal. Só não está melhor porque tem diabetes e hipertensão; mas se fosse só o problema dos rins, ela estaria ótima, poderia até andar de bicicleta. Esse cateter não impede nada.” 90 91 Diacízio Alves de Oliveira S a l v a d o r, B A 100% compatíveis Diacízio também adora equitação, e possui carteira de velejador. Depois D do transplante, “se tudo der certo”, pretende “comprar um barco para velejar um neto, e ainda arranja tempo para nadar, praticar equitação e velejar. Com Manoel Alves de Oliveira, 36 anos, será o doador. Dos 11 irmãos que tem, Dia- tantas atividades, fica difícil perceber que ele tem doença renal e sobrevive cízio conta ter maior afinidade com Manoel desde pequeno. Ele brinca que graças à diálise peritoneal. isso deve ter se refletido na genética também: “Foi feita a avaliação toda, e ele iacízio de Oliveira, 53 anos, administra há 12 a AcriTraços, uma mi- na Baía de Todos os Santos”. croempresa que fabrica peças de acrílico. Faz de tudo ali, da produ- O transplante era para ter acontecido antes, mas não foi possível por ção ao atendimento. É casado com a médica Maria, tem dois filhos e complicações. Agora, ele aguarda a data ser marcada para breve. Seu irmão Ele mostra, orgulhoso, a empresa onde trabalha, enquanto conta que é 100% compatível. Nós somos 100% compatíveis”. talvez tenha que vendê-la. A possibilidade de um transplante está muito próxima, e ele não sabe como manterá a empresa durante a recuperação. O transplante é a grande expectativa de Diacízio, que há um ano e meio, desde que descobriu a doença, utiliza a diálise peritoneal. Ele se diz satisfeito com o tratamento, sua primeira e única opção antes do transplante. Quando conversou com seu médico, Luiz Pereira, foi informado sobre os métodos de diálise. “Ele colocou para mim o seguinte: a hemodiálise eu teria que fazer no hospital três vezes por semana. Já a diálise peritoneal pode ser feita em casa, enquanto você dorme; e você fica com o dia livre para trabalhar.” O médico prescreveu para Diacízio uma combinação dos dois métodos de diálise peritoneal – manual e automática – para que ele se adaptasse melhor ao tratamento. Ele se conecta na máquina à noite, desconecta-se pela manhã e faz uma troca manual ao meio-dia. “No começo a gente fica meio assustado, fica com medo mesmo. Daí eu me acostumei, normal. Faço minhas tarefas, e nem lembro que estou com o cateter aqui.” Sua rotina quase não mudou depois que começou a fazer a diálise peritoneal. Ele conta que às vezes nem se sente doente, a não ser pelo fato de ter perdido um pouco da força física que tinha antes. “Final de semana, geralmente eu trabalho no sábado, e no domingo dou uma pequena caminhada e faço minha natação semanal no mar. Normalmente são 500 metros. Eu nado do Forte de São Diogo para o Forte de Santa Maria; vou e volto nadando.” Seu médico não fez restrição à natação, desde que a praia esteja própria para banho. Mas, para praticá-la, Diacízio também toma certos cuidados. Prende bem o cateter na barriga, para que ele não se solte, e, por conta própria, descobriu um adesivo impermeabilizante. 126 127 Fotografia Assessoria técnica e científica André François Nêmeton Centro de Estudos e Pesquisas em Psicologia e Saúde Coordenação de projeto Paula Blandy Conselho Altair Lima Desenvolvimento institucional Ana Silvia Forgiarini Christianne Martins Fábio Tozzi José Osmar Medina Pestana Coordenação editorial Miguel Riella Alícia Peres Nair Benedicto Ricardo Werner Sebastianni Edição de texto Rubens Fernandes Jr. Maria Alzira Brum Lemos Revisão Reportagem Carmem Cacciacarro Paula Poleto Tuca Borba Projeto gráfico e design Realização Matiz Design ImageMagica Marcelo B. Almeida Patrocínio Tratamento final de imagens Baxter Estúdio 321 Marina Neder Impressão Ipsis Gráfica Impressão das cópias de trabalho Espaço Visual Digitalização e Tiragem: 3.000 exemplares Impressão de Imagem Pesquisa e prospecção de campo Gabriela Prado 202 203 Índice André François..................................................................................................... 04 Doença renal crônica e tratamentos................................................................... 10 Uma coisa que acontece com qualquer pessoa.................................................. 16 Eu vejo a parte social do paciente....................................................................... 17 De volta à fila........................................................................................................ 26 Toda pessoa que tem doador vivo não espera.................................................... 27 Faço tudo sozinha................................................................................................ 32 Um novo olhar..................................................................................................... 38 Trabalhar e conviver............................................................................................ 39 Melhor para todos............................................................................................... 46 Uma cuidadora dedicada.................................................................................... 46 Uma boa equipe de enfermagem é fundamental.............................................. 47 Para mim, eu não tenho nada............................................................................. 56 Escolher é essencial............................................................................................. 56 Viver para navegar............................................................................................... 65 Quarto cor-de-rosa............................................................................................... 71 Diálise e poesia..................................................................................................... 77 Em casa, cruzando fronteiras.............................................................................. 83 Rumo à casa de Guilhermina.............................................................................. 90 A vida em uma caixa............................................................................................ 91 Tripla jornada..................................................................................................... 106 A dona das motocicletas.................................................................................... 117 Rotina retomada................................................................................................ 122 100% compatíveis.............................................................................................. 126 Paciência, persistência e amor.......................................................................... 140 De pai para filha................................................................................................. 141 Banho de piscina e planos para a família......................................................... 161 As opções do portador de insuficiência renal crônica.................................... 166 Agradecimentos................................................................................................. 168 Traduções / Translations................................................................................... 173 204 205 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) François, André Escolher e Viver: Tratamento e Qualidade de Vida dos Pacientes Renais Crônicos = The curve and the path: access to health care in Brazil / André François; [tradução para o inglês da Editora]. -São Paulo: ImageMagica, 2009. Pa t r o c í n i o : Edição bilíngue: português/inglês ISBN 978-85-61921-01-9 1. Cuidados médicos - Brasil 2. Fotografias 3. Serviços de saúde - Brasil 4. Sistemas de saúde - Brasil I. Título. II. Título: The curve and the path: access to health care in Brazil. 08-09396 CDD-778.9 Realização: Índices para catálogo sistemático: 1. Brasil : Saúde : Documentário fotográfico 778.9 2. Saúde no Brasil : Documentário fotográfico 778.9 ISBN 978-85-61921-01-9 COPYRIGHT © ANDRÉ FRANÇOIS 2009 Os direitos desta edição pertencem a André François, São Paulo, SP Tel [55 11] 25779902 FAX [55 11] 25789036 [email protected] www.imagemagica.org 206 207