cristiane moura lopes

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Instituto Saúde da Comunidade
Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva
Cristiane Moura Lopes
O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese
Niterói
2012
Cristiane Moura Lopes
O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
Orientador: Prof. Dr. Túlio Batista Franco
Niterói
2012
Cristiane Moura Lopes
O MODO DE PRODUÇÃO DO CUIDADO EM UM CENTRO DE ATENÇÃO
PSICOSSOCIAL: cenário de afetamentos entre os corpos e autopoiese
Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em
Saúde Coletiva da Universidade Federal Fluminense, como
requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em
Saúde Coletiva.
BANCA EXAMINADORA
Dr. Túlio Batista Franco (Orientador)
Universidade Federal Fluminense
Dr. Johnny Menezes Alvarez
Universidade Federal Fluminense
Dr. Ricardo Luiz Narciso Moebus
Universidade Federal de Ouro Preto
Dra. Tatiana Ramminger (Suplente)
Universidade Federal Fluminense
Niterói, 12 de Abril de 2012
Aos usuários dos CAPS, que me afetam e
me emocionam , fazendo-me acreditar que
sempre é possível uma vida nova e um
mundo melhor. À vocês todo o meu
respeito e carinho.
AGRADECIMENTOS
Reverências!
Agradeço à Deus pela vida e pelo universo maravilhoso do qual faço parte.
Muito Obrigada aos meus antepassados, avôs e avós, maternos e paternos, sem eles não
estaria aqui.
Muito Obrigada ao meu papai Joel Matheus Lopes e minha mãezinha Rusy Moura Lopes, sem
eles não saberia o que é o verdadeiro amor.
Muito Obrigada aos meus irmãos: Fabiane, Fernando, Josilene e Denise, sem eles não saberia
o significado do amor sincero.
Muito Obrigada aos cunhados, e ao Miguel, pelo laço sincero que uniu nossas famílias nessa
caminhada terrena.
Muito Obrigada ao amigo, in memorian, Sr. Wilson Sabará, sem ele não saberia o que é o
verdadeiro incentivo e da caridade.
Muito Obrigada aos amigos: Belayne Zanini Marchi, Fernanda Santos Rodrigues Araújo,
Gleydson Pimenta de Faria, Isabella Lacerda Pimenta, Janaína Sara Lawall e Lucélia do Valle
Monteiro, sem eles não saberia o significado da amizade sincera, desinteressada e motivadora.
Muito Obrigada à amiga, Anacely da Silva Rodrigues, pela amizade sincera construída ao
longo do mestrado, pela ajuda psicológica nos momentos difíceis e por me incentivar sempre, me
dando forças e coragem.
Muito Obrigada às amigas de casa: Annabelle, Juliana, Fabiana e Mariluce, pelo incentivo,
apoio e paciência em escutar meus desabafos com parcimônia e atenção.
Muito Obrigada a todos os meus colegas de trabalho da equipe LACE/RJ, pela compreensão.
Muito Obrigada ao meu orientador Túlio Batista Franco, por ter dividido e compartilhado
comigo seus conhecimentos; pelos momentos de estudo, orientações e trocas tão valiosas para esse
trabalho, sobretudo pela confiança; meus sinceros e cordiais agradecimentos.
Muito Obrigada aos colegas de mestrado: Daniel Enao, Gloria Carmona, Suzi Salvador e
Thiago Constâncio, pela companhia e solidariedade nesse período.
Muito Obrigada à todos os professores da Pós, pela contribuição na minha caminhada
acadêmica.
Muito Obrigada aos professores presentes nessa banca: Johnny Alvarez Menezes, Ricardo
Moebus, e Tatiana Ramminger, por terem aceitado dividir e compartilhar seus conhecimentos
comigo nessa etapa de minha vida.
Muito Obrigada à Universidade Federal Fluminense, pelo ensino público e de qualidade.
Muito Obrigada à todos os funcionários do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva,
pelo apoio de sempre.
Muito Obrigada à Coordenação de Aperfeiçoamento de Ensino Superior – CAPES, pela
concessão da bolsa de estudos para a realização desse estudo.
Muito Obrigada à toda a equipe do restaurante universitário, por ter me proporcionado
refeições saudáveis e preparadas com muito carinho.
Muito Obrigada à todos os participantes do grupo LEFTS – pelas trocas consideráveis em
relação à Saúde Mental.
Muito Obrigada à Coordenação de Saúde Mental por ter autorizado essa pesquisa.
Muito Obrigada à Coordenação do CAPS Herbert de Souza, que me recebeu de portas abertas
permitindo assim minha entrada no campo.
Muito Obrigada à todos os funcionários, técnicos, residentes e estagiários do CAPS, por terem
compartilhado suas vivências, anseios, esperanças e por terem se disponibilizado a participarem da
pesquisa; em especial à Cynthia Conceição Schmidt Campanatt, meu respeito e admiração pelo seu
trabalho.
Muito Obrigada à todos os usuários do CAPS, sem vocês nada faria sentido.
RESUMO
Objetivo apresentar o Modo de Produção de Cuidado, enquanto um acontecimento autopoiético, que
está em agenciamento no Centro de Atenção Psicossocial – CAPS – Herbert de Souza, da cidade de
Niterói/RJ, a partir dos encontros entre os corpos na instituição. Entender como opera esse modo de
produção de cuidado é entender as dinâmicas que se estabelecem na Instituição a partir das
configurações que imprimem um determinado modo de trabalho e que refletem por isso, um
determinado tipo de perfil assistencial. Parto da premissa de que para saber se houve mudança no
CAPS, nós temos que analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que
encontraremos as práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se utiliza no
processo de gestão e produção de cuidado. A questão, portanto, é a de compreender o processo que se
efetiva no cotidiano dos encontros entre os corpos - afecções – dentro do CAPS, uma vez que esses
encontros possuem a potência de revelar as distintas lógicas que se configuram a partir das
micropráticas do Trabalho Vivo em Ato. Mediante o objeto de estudo dessa pesquisa, foi eleita a
abordagem qualitativa, a partir da etnografia, pois entendo que será na esfera das experiências do
cotidiano, da rotina da instituição, lugar onde ocorrem as relações face a face, que se podem conhecer
os interesses, os motivos e as práticas que norteiam as ações dos sujeitos envolvidos e que
caracterizam o modo de produção de cuidado. Utilizei também de outra técnica de coleta de dados entrevistas com roteiros semiestruturados, com a qual foram realizadas 12 entrevistas com os
trabalhadores do CAPS. A pesquisa nos revelou que o CAPS possui o desafio de superar as relações
de decomposição, os ‘maus encontros’, (expressões preconizadas por Espinosa), para que de fato
materialize a Reforma Psiquiátrica dentro da instituição, porquanto, ele é um dispositivo
potencialmente potencializador do cuidado quando se torna capaz de promover relações de ‘alegria’,
de ‘composição’, ou seja, quando promove ‘bons encontros’ entre os sujeitos envolvidos.
Palavras-chave: Centro de Atenção Psicossocial. Modo de Produção do Cuidado. Autopoiese.
Afecção. Corporalidade.
ABSTRACT
I aim to present the Production Mode of Care as an autopoietic event, which is brokering the
Psychosocial Care Center - CAPS - Herbert de Souza, the city of Niterói / RJ, from encounters
between bodies in the institution. Understanding how to operate this mode of production of care is to
understand the dynamics that are established at the institution from the settings that print a particular
way of working that reflect why a particular type of care profile. I start from the premise that to see if
there was a change in CAPS, we have to analyze the functioning of the praxis of the worker, because
there will be practices that meet the intent and technological suitcases which the employee is used in
process management and production care. The question therefore is to understand the process that is
effective in everyday encounters between bodies - conditions - within the CAPS, since these
meetings have the power to reveal the different logics that are configured from the micropractices of
Living Work in Act. Through the study object of this research, a qualitative approach was chosen,
from ethnography, because I believe will be in the realm of everyday experience, the routine of the
institution, where relationships occur face to face, which can meet the interests , the motives and
practices that guide the actions of the individuals involved and characterize the mode of production
of care. Also I used another technique of data collection - semistructured interviews with scripts,
which were performed with 12 interviews with workers in CAPS. The survey revealed that CAPS has
the challenge of overcoming the relations of decomposition, the 'bad encounters' (expressions by
Spinoza), to actually materialize the Psychiatric Reform within the institution, because, it is a device
potentially potentiating care when it becomes capable of promoting relations of 'joy' of 'composition',
and when it promotes 'good encounters' between the subjects involved.
Keywords: Psychosocial Care Center. Method of production of care. Autopoiesis. Affection.
Embodiment.
LISTA DE TABELAS
TABELA 01 – Número de Leitos de Hospitais Psiquiátricos no Brasil (2002-Julho2011) ......
23
TABELA 02 - Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos
Serviços Extra-Hospitalares nos anos de 2002-2010.................................................................. 23
TABELA 03 - Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (2002-2011).............................
24
TABELA 04 - Centros de Atenção Psicossocial por tipo e Indicador CAPS/100.000 habitantes
por UF (Brasil – 15 de julho de 2011)........................................................................................
25
LISTA DE QUADROS
QUADRO 01 – Atividades do CAPS ........................................................................................
23
QUADRO 02 – Trabalhadores do CAPS ..................................................................................
23
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO .......................................................................................................
12
2 PERCURSO METODOLÓGICO .........................................................................
13
2.1 Abordagem Qualitativa .......................................................................................
14
2.2 Observação Participante .....................................................................................
15
2.3 Percurso Inicial ....................................................................................................
17
2.4 Entrevistas Semi-estruturadas............................................................................
18
2.5 Os sujeitos da pesquisa...............................................................................,.........
19
2.6 Tratamento dos dados obtidos a partir da observação participante...............
21
2.7 Tratamento dos dados obtidos a partir das entrevistas ...................................
21
2.8 Aspectos éticos da pesquisa .................................................................................
22
2.9 Referencial Teórico ..............................................................................................
22
3 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE REFORMA PSIQUIÁTRICA ...............
24
3.1 Hospital Psiquiátrico: Instituição Total..............................................................
24
3.2 A Reforma Psiquiátrica .......................................................................................
28
3.3 Desinstitucionalização da Assistência Psiquiátrica............................................
30
3.4 Modo Asilar e ModoPsicossocial: uma coabitação difícil..................................
32
3.5 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) ...........................................,.........
33
4 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE CORPORALIDADE ..............................
40
4.1 O corpo na Idade Média ......................................................................................
40
4.2 O caráter biológico da dualidade alma e corpo................................................
42
4.3 Sociologia do corpo ..............................................................................................
43
4.4 Corporeidade humana: fenômeno social e cultural ..........................................
45
4.5 Técnicas corporais e o Processo de Socialização......................................,.........
46
4.6 Corpo Socializado e Corpo Vivido: habitus e embodiment....................,.........
49
5 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE MICROPRÁTICAS DO PROCESSO DE
TRABALHO EM SAÚDE .........................................................................................
54
5.1 O Trabalho Vivo em Ato .....................................................................................
54
5.2 Tecnologias em Saúde .........................................................................................
56
5.3 A subjetividade do trabalhador em saúde .........................................................
58
5.4 O modo de produção do cuidado enquanto um acontecimento autopoiético
59
5.5 Relações de Afecção ...................................................................................,.........
61
6 PERFIL DO CAPS EM QUESTÃO .....................................................................
63
6.1 O funcionamento ..................................................................................................
64
6.2 Atividades desenvolvidas ....................................................................................
65
6.3 Descrição do local .................................................................................................
66
6.4 Perfil dos Trabalhadores ...........................................................................,.........
68
6.5 Processo de Recepção / Chegada do usuário no CAPS............................,.........
70
6.6 As Referências e Projeto Terapêutico Individual (PTI)............................,........
71
7 A PRODUÇÃO DO CUIDADO NO CAPS EM QUESTÃO .............................
74
7.1 Ambiência .............................................................................................................
75
7.2 Estigma ................................................................................................................
77
7.3 Articulação com o Poder Público .......................................................................
77
7.4 Articulação com o SAMU ....................................................................................
78
7.5 Articulação com a Rede de Saúde Mental .........................................................
78
7.6 Engessamento dos Profissionais...........................................................................
79
7.7 Recursos Financeiros ...........................................................................................
81
7.8 Relações Trabalhistas ..........................................................................................
84
7.9 Rotatividade dos Profissionais ............................................................................
85
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS ..................................................................................
98
8.1 O Caso da Usuária Y ............................................................................................
101
REFERÊNCIAS .........................................................................................................
106
APÊNDICE A: Termo de Consentimento Livre e Esclarecido .............................
111
APÊNDICE B: Roteiro para as entrevistas .............................................................
113
12
1INTRODUÇÃO
Pretendo apresentar o Modo de Produção de Cuidado, que está em agenciamento, no
Centro de Atenção Psicossocial – CAPS, da cidade de Niterói/RJ, a partir dos encontros entre
os corpos na instituição. Entender como opera esse modo de produção de cuidado é entender
as dinâmicas que se estabelecem na Instituição a partir das configurações que imprimem um
determinado modo de trabalho e que refletem por isso, um determinado tipo de perfil
assistencial. Essa investigação inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo
enquanto um analisador capaz de revelar o cotidiano das práticas de cuidado instituídas no
cotidiano da instituição a partir dos encontros, das relações de afecção que ocorrem entre os
diversos sujeitos da instituição.
A primeira motivação para o desenvolvimento dessa pesquisa iniciou-se na minha
graduação em Ciências Sociais, no momento em que me deparei com as questões relativas à
Antropologia da saúde e do corpo. Através da perspectiva, principalmente antropológica, aos
poucos fui me aproximando da temática da Saúde Mental; o que levou-me ao bacharelado
com o estudo sobre a História da Loucura, quando evidenciei a transição dos pacientes
portadores de sofrimento mental do confinamento (modelo hospitalocêntrico) à proposta de
acolhimento (modelo psicossocial).
A motivação a seguir, veio com meu interesse em dar continuidade aos estudos na área
da saúde mental, e inspirada por esse desejo me ingressei numa especialização em Ciências
Humanas e Saúde, também na Universidade Federal de Juiz de Fora. Nesse estudo, associei a
temática da corporalidade com o processo de desinstitucionalização da assistência psiquiátrica
no Brasil, com o objetivo de dar sequência a esses estudos. Entretanto, fui tomada por um
desejo de dar continuidade e aprofundar na área da Saúde Mental.
Em consonância, me ingressei no Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da
Universidade Federal Fluminense, para melhor compreender a relação entre Saúde Mental,
corporalidade e sociedade. Nesse momento, eis o meu desafio: questionar o modo de
produção do cuidado em agenciamento nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), face à
sua importância enquanto dispositivo alternativo ao modelo hospitalocêntrico.
A pergunta norteadora dessa dissertação é se de fato houve uma mudança no
atendimento ao paciente psiquiátrico nas novas instituições asseguradas a ele pelo SUS –
Sistema Único de Saúde, ou se ao invés de uma ruptura ao modelo hegemônico centrado na
Instituição Total – sentido atribuído por Goffman (1994) e também centrado no
13
procedimento, tivemos uma reprodução dos mesmos moldes de atendimento nas novas
Instituições; de outro modo, houve ou não mudança no atendimento ao doente psiquiátrico?
Houve de fato uma desconstrução do modelo centrado no procedimento, ou temos a
reconstrução do modelo centrado nas necessidades do usuário?
Parto da premissa de que para saber se houve mudança no CAPS, nós temos que
analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que encontraremos as
práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se utiliza no processo
de gestão e produção de cuidado.
A questão, portanto, é a de compreendermos o processo que se efetiva no cotidiano
dos encontros entre os corpos - afecções – dentro do CAPS (DELEUZE, 2002), uma vez que
esses encontros possuem a potência de revelar as distintas lógicas que se configuram a partir
das micropráticas do Trabalho Vivo em Ato (MERHY, 1997).
Para respondermos a questão norteadora desse trabalho, pretende-se avaliar os
serviços que são prestados no CAPS, contudo, e no intuito de inovar no campo científico,
colocamos como pano de fundo para realizar essa avaliação a corporalidade - enquanto um
analisador capaz de revelar os encontros e as subjetividades que se formam e que definem o
perfil assistencial.
2 PERCURSO METODOLÓGICO
O objeto dessa pesquisa é fazer uma avaliação do modo de produção do cuidado que
está em agenciamento. Agenciamento porque está a serviço da produção, do desejo, da vida,
do novo, na medida em que é capaz de gerar acontecimentos e transformações, ao produzir as
linhas de fuga do desejo, da produção e da liberdade, e por conta disso, potencialmente capaz
de disparar processos de mudança nos serviços que estão sendo prestados.
Desta forma, objetivo entender as características intrínsecas dessa instituição,
principalmente em seus processos relacionais, colocando em ênfase a questão da
corporalidade através das relações de afecção dentro da Instituição. (DELEUZE, 2002)
Para tal, constatei a importância de fazer um estudo no CAPS – um território de
práticas específicas e fluxos circulantes - para acompanhar o modo de produção de cuidado
dessa instituição, buscando, portanto, observar como se formam as subjetividades operantes
no CAPS e que caracterizam o perfil assistencial da Instituição.
14
2.1 Abordagem Qualitativa
Mediante o objeto de estudo dessa pesquisa, foi eleita a abordagem qualitativa, já que
esta proporciona ao pesquisador, uma combinação de técnicas de pesquisa que levam em
consideração os aspectos relacionais e interacionais entre os sujeitos dentro da instituição.
Apesar de existirem uma diversidade em relação às abordagens qualitativas, essas
perspectivas se convergem num propósito comum, numa certa identidade, já que elas buscam
“[...] analisar o significado atribuído pelos sujeitos aos fatos, relações e práticas, isto é a tarefa
de interpretar tanto as interpretações quanto as práticas dos sujeitos”. (DESLANDES &
ASSIS apud CAMPOS et al., 2008, p.72).
Sob essa perspectiva, concordamos com a posição de Silvana Weller no que diz
respeito à pesquisa avaliativa, quando considera, dentre outros pontos que:
“[...] em primeiro lugar, a avaliação não como evento isolado, e sim, como um
processo que integra avaliadores e avaliados, almejando o compromisso e o
aperfeiçoamento dos indivíduos, grupos, programas e instituições. Em segundo
lugar, é importante destacar que a pesquisa avaliativa soma aos elementos
normativos, a necessidade de considerar os elementos de contexto”. (CAMPOS et
al., 2008, p.81)
Sendo assim, é valorizando esse contexto, que se poderá compreender as micropráticas
de trabalho, enquanto espaço situacional, e entender como se desenvolvem as dinâmicas das
relações sociais que desenvolvem dentro da Instituição. Indo nessa direção, entendo que é na
esfera das experiências do cotidiano, da rotina da instituição, lugar onde ocorrem as relações
face a face, que poderemos conhecer os interesses, os motivos e as práticas que norteiam as
ações dos sujeitos envolvidos e que caracterizam o modo de produção de cuidado.
Para Minayo (2010), a observação simples consiste em um processo pelo qual o
pesquisador se coloca como observador de uma situação social, com a finalidade de realizar
uma investigação científica. Logo:
O observador, no caso, fica em relação direta com os seus interlocutores no espaço
social da pesquisa, participando da vida social deles com a finalidade de colher
dados e compreender o contexto da pesquisa. Por isso, o observador faz parte do
contexto sob sua observação e sem dúvida, modifica esse contexto, pois interfere
nele assim como é modificado pessoalmente. (MINAYO, 2010, p.70).
Uma característica fundamental dessa técnica, é que as observações são obtidas em
ambientes naturais, em vez de ambientes artificiais e experimentais e também no momento
em que os fatos ocorrem. Logo, o observador, poderá presenciar os acontecimentos sob a
15
ótica da emoção, do momento, do afeto entre os personagens envolvidos, sem nenhum tipo de
intermediação.
É por conta desse contexto, desse território existencial, no sentido atribuído às
correntes que defendem à cartografia enquanto método ad hoc, que me propus acompanhar os
processos inventivos e de produção de subjetividade, a partir de uma pesquisa avaliativa, o
que em linhas gerais trata de investigar um processo de produção, e não representar um
objeto. (KASTRUP, 2007)
Objetivo, portanto, a partir da abordagem qualitativa, acompanhar os processos que
engendram os sujeitos em seu contexto, buscando principalmente identificar as linhas de
forças, de enunciação e visibilidades constituintes dos dispositivos em questão, e suas
conexões com movimentos de produção de singularidades. Como ressalta Minayo, citando
Lima (2005, p.45), “a avaliação deve revelar os brotos, as flores, os ramos em
desenvolvimento, e não somente os frutos”.
2.2 Observação Participante
Para realizar essa pesquisa adotei a etnografia (por meio do trabalho de campo) que é
uma abordagem qualitativa, já que esta permite ao pesquisador aproximar-se diante da
realidade, do cotidiano da instituição, proporcionando desta forma uma interação com os
protagonistas em seu local de trabalho.
Parafraseando o antropólogo norte-americano, Cliffort Geertz (1978) ressalto a
importância de se realizar um “estudo em CAPS” e não estudos de CAPS; isto porque meu
interesse se centra em compreender os aspectos micropolíticos que se desenvolvem no interior
da Instituição, ao partir de uma “descrição densa” da corporalidade. O importante nesse
sentido não é o simples movimento mecânico dos corpos, mas o significado que estes têm
para o grupo, quais são suas implicações para o contexto social e como eles se correlacionam.
E, sobretudo, de que forma se estabelecem os vínculos entre os usuários-trabalhadores,
usuários-instituição e entre os trabalhadores.
Interessante, perceber o aspecto arbitrário das relações entre os sujeitos que se
estabelecem dentro da instituição, denotando mesmo um cenário de movimentação, de fluxos
e intensidades constantes, principalmente pelo alto grau de liberdade que caracteristicamente
o trabalhador da área da saúde mental tem e pelo processo de captura do trabalho vivo em ato
que ocorre no momento em que o cuidado se dá.
16
O trabalho em saúde mental é fortemente marcado pela liberdade, sim, liberdade
porque é ele mesmo, o sujeito-do-trabalho quem define o modo de organização do
seu processo produtivo, isto é, a produção do cuidado. E sendo livre no ato de
governar seu próprio processo de trabalho, mais uma vez, o trabalhador pode tudo.
Ele pode usar a liberdade para fazer um cuidado-cuidador ou para cuidar de forma
sumária e prescritiva. Mas é com base na liberdade de agir que ele faz, e o faz
conforme sua intencionalidade, sua proposta ética e política para o cuidado em
saúde, as verdades que ele constitui para si mesmo. (FRANCO, 2010, p.01).
Daí a necessidade de conhecer a dimensão subjetiva da produção do cuidado, que
surge na relação dos sujeitos-trabalhadores, destes com outros profissionais, com os usuários
e seus familiares.
A observação participante juntamente com o diário de campo (MALINOWSKI, 1984),
foi utilizada como métodos norteadores da pesquisa, pois estes possibilitam ao pesquisador
mergulhar na dimensão simbólica do cuidado, que se estabelece dentro do CAPS se
configurando entre o instituído e o instituinte, definindo assim, o modo de produção de
cuidado que está em agenciamento.
Só estando dentro do território (entendido como espaço de pertencimento, de laço e
engajamento) é que se pode saber se existe alguma particularidade, alguma singularidade no
modo em que os pacientes se utilizam de seus corpos dentro do CAPS, e de que modo esses
pacientes se relacionam com os profissionais nesse território de práticas e sujeitos singulares.
Estudar como se dão essas relações dentro da Instituição é preciso (lembrando Geertz,
1978), para que se possa observar as redes sociais que se estabelecem entre os indivíduos e
capturar as subjetividades que se formam, na medida em que revela os afetos e as
manifestações desejantes na produção do cuidado que acontecem nesse ambiente natural.
Interessante acrescentar nesse sentido, que duas coisas se fazem distintas e necessárias nessa
busca de contemplar a realidade: boas lentes e bons olhos, ambos necessariamente se
complementam à captura analítica da realidade.
“El ojo del cartógrafo no debe ser solo el ojo fisiológicamente concebido, la retina,
sino también el ojo vibrante de um cuerpo que vibra com las intensidades, que se
abre a sus afecciones y afectaciones, y por eso puede percibirlas como expresiones
del mundo de la producción en el campo de la salud.” (FRANCO; MERHY, 2009,
p.185).
Essa perspectiva tem emprestado um importante papel aos diferentes olhares sobre a
realidade e às suas formas de capturar o que se percebe quando conceitos como “olhos-retina”
e “olhos-vibráteis” têm justificado novos arranjos no reordenamento das representações da
realidade percebida/pesquisada. O primeiro olhar se caracteriza pela potência de permitir um
olhar sobre as estruturas, o que é visível; já o segundo, é vibrátil, atua no invisível, no que
17
vibra em intensidades dentro da dinâmica simbólica, ou seja, que captura os afetos.
(ROLNIK, 2002).
Para a construção de dados para essa pesquisa, foram conjugados esses diferentes
olhares à captura da realidade, bem como os códigos, símbolos e significados das ações dos
personagens/atores no processo relacional e subjetivo presente no processo de produção de
cuidado; mesmo porque o campo da saúde é um campo que se produz a todo o tempo pela
ação do sujeito. Será nesse sentido, que se torna importante observar o trabalho vivo em ato
(MERHY, 2006) - alive work in action; pois o modo de produção dependente desse trabalho
contém uma grande potência instituinte que formam as redes de subjetividade.
2.3 PERCURSO INICIAL
Antes de iniciar a coleta de dados no CAPS, primeiro entrei com o projeto dessa
pesquisa no Comitê de Ética e Pesquisa – CEP - da Universidade Federal Fluminense. Nesse
momento, foi preciso ter a assinatura de autorização da Coordenação da Saúde Mental – já
que é o órgão ao qual o CAPS está diretamente vinculado.
Enquanto esperava uma vaga na agenda da Coordenação de Saúde Mental, entrei em
contato com a coordenação do CAPS, informando-lhe sobre a pesquisa, com o intuito de ir
‘adiantando’ o trabalho de campo. Apesar de se mostrar receptiva desde o início, a
coordenação do CAPS me recomendou entrar em contato primeiramente com a coordenação
de Saúde Mental, que se situa no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba em Niterói- RJ. Somente
com a aprovação desta, eu deveria retornar à instituição para começar de fato a pesquisa.
Como estava de mãos atadas, já que não consegui ‘entrar no campo’, insisti para
conseguir um horário na coordenação. Depois de algum tempo de contato e de idas e vindas
à Coordenação de Saúde Mental de Niterói, consegui agendar um encontro com o
Coordenador da Saúde Mental para explicar a pesquisa. A demora em conseguir um horário
em tal agenda, foi justificada pelo momento de transição pelo qual a coordenação da Saúde
Mental em Niterói passava.
Nesse encontro, conheci o coordenador atual e a nova
coordenadora que logo iria ocupar o cargo. Isso foi importante, porque fiquei resguardada no
caso de termos algum eventual problema em relação à pesquisa, já que ambas as gestões
(atual e a futura) além de ter conhecimento da pesquisa, também autorizaram a mesma. Com
as devidas assinaturas de autorização, retornei ao CEP, para dar seguimento ao processo de
aprovação desse comitê.
18
Depois de ter toda a documentação exigida, o que inclui a assinatura da Coordenação
de Saúde Mental, entreguei o projeto para análise ao comitê. Após aproximadamente dois
meses de análise por esse Comitê, obtive a aprovação e autorização para a pesquisa.
Por fim, volto ao CAPS, e mediante comprovação da autorização do CEP e da
autorização da Coordenação da Sáude Mental, tive a liberação pela coordenação do CAPS
para, enfim, começar a pesquisa.
Minha entrada oficial no CAPS ocorreu com minha participação na reunião de
equipe, (que acontece todas as quartas-feiras de 8h às 12h). Nessa reunião, depois de ser
apresentada para toda a equipe, expliquei quais eram os objetivos e qual a metodologia que
seria adotada para a realização da mesma. A direção do CAPS, bem como outros
funcionários, colocou-se à disposição para colaborações em relação à pesquisa. Também
demonstraram interesse no retorno sobre os resultados da pesquisa, para futuras
contribuições e intervenções ao trabalho da equipe.
2.4 Entrevistas Semi-estruturadas
Para essa pesquisa, utilizei também de outra técnica de coleta de dados - entrevistas
com roteiros semi-estruturados. As entrevistas, entendidas como elos comunicativos entre as
reflexões do sujeito e a sua realidade vivenciada, me permitiu uma interlocução de seu
universo simbólico aos temas abordados.
O número de sujeitos para compor o quadro de entrevistas, não fora determinado a
priori, já que fui deixando que as informações obtidas nos depoimentos, em termos de
profundidade, convergência e divergência, me informasse pistas para determinar e estabelecer
a quantidade de entrevistas necessárias.
O convite para a realização das entrevistas foi sendo feito por mim, durante o período
em que eu estava no CAPS, de março à agosto de 2011. Os convites ocorriam em diversos
momentos, principalmente nos que eu entendia (intuitivamente) como sendo propícios para a
autorização. Isso variava muito, pois em alguns momentos era oportuno falar sobre a
entrevista quando o CAPS estava cheio e em outros quando estava mais tranquilo. Nesses
momentos considerados oportunos, eu efetuava os convites e fazia os agendamentos para a
realização das mesmas. Não houve recusa direta e definitiva, apesar da alegação de alguns por
falta de tempo em determinados dias. Entretanto, isso não se tornou o obstáculo, pois apesar
de não poderem realizar em tais dias, logo me apresentam o melhor dia para que eu pudesse
19
realizar as entrevistas, de modo que todos os que foram convidados se dispuseram a
participar.
À medida, em que fui realizando as entrevistas e o trabalho de campo, fui organizando
os dados obtidos e por meio das análises que estava fazendo paralelamente, percebi que as
categorias analíticas que foram emergindo destes dados tornaram-se suficiente, a princípio,
para encerrar o ciclo de entrevistas, o que totalizou em 12 entrevistas realizadas. O ponto que
direcionou o encerramento da pesquisa, por conta das qualidades das informações até então
obtidas, convencionou-se intitular de “ponto de saturação”, já que é um delimitador dos
momentos da pesquisa.
O fechamento amostral por saturação teórica é operacionalmente definido como a
suspensão de inclusão de novos participantes quando os dados obtidos passam a
apresentar, na avaliação do pesquisador, uma certa redundância ou repetição, não
sendo considerado relevante persistir na coleta de dados. Noutras palavras, as
informações fornecidas pelos novos participantes da pesquisa pouco acrescentariam
ao material já obtido, não mais contribuindo significativamente para o
aperfeiçoamento da reflexão teórica fundamentada nos dados que estão sendo
coletados. Esta conotação/definição já vinha presente no texto que parece ter
inaugurado o uso da expressão saturação teórica (theoretical saturation).
(FONTANELLA; RICAS; TURATO, 2008, p.17).
De alguma forma esse determinou a hora em que eu parei com as entrevistas e com o
trabalho de campo, de todo modo, ele não determinou o fim da pesquisa, de fato, visto que
precisei retornar ao campo outras vezes, para preencher lacunas em relação aos dados,
acontecimentos e circunstâncias que foram pouco exploradas.
2.5 Os Sujeitos da pesquisa
Os sujeitos desta pesquisa foram os profissionais da equipe técnica e que atuam na
assistência direta e indireta aos pacientes psiquiátricos, que trabalham dentro do CAPS.
A princípio eu tinha definido os critérios de inclusão dos sujeitos da presente pesquisa
pelo período de permanência destes na instituição, incluindo assim, profissionais que tivessem
no mínimo 01 ano; e que concordassem com os termos de consentimento livre e esclarecido –
segundo o modelo que encontra em anexo nesse projeto. Isso se justificava, porque eu
acreditava que o tempo influenciava diretamente nas subjetividades e nos vínculos que se
formavam dentro do CAPS, seja pela questão do contato do profissional com o usuário
(teoricamente) mais aprofundado, pelo projeto terapêutico assistido e à Instituição
propriamente dita.
20
Entretanto, ao iniciar a pesquisa, percebi que o vínculo nem sempre se reporta à uma
questão de tempo cronológico, de contato entre usuário e profissional, mas de outro tempo, o
tempo do afeto, do encontro entre esses corpos. Essa percepção se deve à fala de um
trabalhador que me atravessou, quando eu estava ‘observando’ a reunião de equipe dos
trabalhadores. Essa fala me afetou de tal maneira que relativizei os critérios de inclusão que
tinha considerado até então. Mas essas reflexões só me foram possíveis, porque como aponta
Bonet (2004), eu estava ‘no lugar certo’.
Por isso, pensava que na observação, no trabalho de campo antropológico, joga-se
muito com a sorte para estar no lugar certo no momento certo, pelo menos no
começo, quando ainda não se conhecessem os tempos e costumes desse terreno
particular. (BONET, 2004, p.19).
A fala do trabalhador foi a seguinte:
OP – Foi muito importante esse relatório. Nós vimos coisas a partir do olhar de W,
que não tínhamos percebido antes. Essa sensibilidade que ele teve em mostrar a
partir do seu estranhamento coisas que a gente deixou de ver com o tempo em nosso
trabalho, foi magnífico. Acho que todo mundo tinha que ler o relatório do W.
(Fonte: Diário de Campo).
Os outros trabalhadores não ficaram indiferentes à essa fala, posicionando-se também
em relação a importância do estranhamento dos ‘novos olhares’, dos profissionais recémchegados na instituição, dizendo inclusive que gostariam de ler tal relatório. Pude perceber
nessa reunião, que os outros trabalhadores ficaram um pouco admirados com a declaração do
colega de serviço, como que não conheciam de fato o que nele estava escrito, ou por não
terem feito um relatório ou por não terem lido o dos outros colegas. Aproveito o momento,
para compartilhar um questionamento a respeito desses relatórios que são pedidos aos
profissionais. Que importância eles têm de fato, para o serviço, se ficam guardados na gaveta,
sem serem compartilhados com os demais trabalhadores? Acredito que eles são
potencialmente reveladores, se forem considerados instrumentos que podem otimizar o
cuidado.
Por conta desse atravessamento, incluí também funcionários da equipe que estavam a
menos de um ano na Instituição e que quiseram participar das entrevistas. Isso me mostrou o
quanto somos (pesquisadores) inevitavelmente afetados pelo campo, e que a cartografia vai
delineando os trajetos e os passos que devem ser percorridos no campo. Excluídos das
entrevistas, foram os usuários e também seus respectivos familiares, já que isso implicaria
numa perspectiva destoante do objetivo dessa pesquisa.
21
E06: É, não eu acho, que eu quero mesmo é falar é da tua pesquisa assim, do que eu
falei, de sempre estranhar, sempre perguntar, eu acho isso muito legal. Quando você
falou que tinha, que é um outro agente assim no meio e aí faz todo mundo se
reposicionar ...
Entrevistador: As pessoas ficam meio assim...
E06: E fica, as pessoas se questionam, você vai fazer muita gente se questionar do
que nunca se questionou.
Entrevistador: É, por que o quê acontece? Quando tem uma pessoa, que está, entre
aspas, analisando a pessoa, aí a pessoa se coloca em outra postura.
E06: Pois é, porque a gente, aqui profissionais está analisando a todo o tempo os
pacientes, né, mas não tem ninguém analisando a gente [...] Porque tem supervisão,
tem.
Mas ao mesmo assim, quem supervisiona a supervisão, sabe? (Fonte:
Entrevista).
Há, portanto, um duplo afetamento entre pesquisador-instituição, e instituiçãopesquisador, como já comentado. Afetamento esse que nos permitiu colocar em pauta, o
questionamento e as considerações de trabalhadores que a pouco faziam parte da equipe e que
fazem toda a diferença no serviço.
2.6 Tratamento dos dados obtidos a partir da observação participante
As minhas anotações do diário de campo referentes ao Modo de Produção do Cuidado
no CAPS, foram transcritas para o computador no formato doc. Os nomes dos profissionais,
constantes no diário de campo estão em forma de pseudônimo, o que garantirá a privacidade
dos sujeitos, tal como propõe as normas do Conselho de Ética em pesquisa envolvendo seres
humanos.
Para que o leitor não se confunda, adotei como padrão a sigla OP – na frente das
minhas observações diretas no campo que foram transcritas em meu diário, das falas
referentes às entrevistas – que possuem como identificação a letra E na frente dessas
narrativas.
2.7 Tratamento dos dados obtidos a partir das entrevistas
As entrevistas realizadas com os profissionais do CAPS foram gravadas em aúdio e
posteriormente transcritas na íntegra, por mim, o que totalizou 235 páginas para a análise. O
tempo de duração das entrevistas variaram de dezenove minutos e vinte segundos à cinquenta
e nove minutos e vinte e oito segundos. Numa média de quase 37 minutos cada. Todas as
entrevistas foram realizadas individualmente dentro do CAPS, no horário do expediente e
conduzidas por mim.
22
Após várias leituras dessas gravações, começei a fazer as análises para essa pesquisa,
não a partir de um caminho pronto, de um itinerário a ser seguido, mas a partir da
movimentação das falas que acabou por me mostrar as que eram a meu ver, mais importantes
naqueles contextos.
2.8 Aspectos Éticos da Pesquisa
Os procedimentos de coleta de dados supracitados atenderão às determinações da
Resolução 196 de 10 de outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde que estabelece as
diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos. Esta
Resolução incorpora sob a ótica do indivíduo e das coletividades os quatro referenciais
básicos da bioética: autonomia, não maleficência, beneficência e justiça, entre outros, e visa
assegurar os direitos e deveres que dizem respeito à comunidade científica, aos sujeitos da
pesquisa e ao Estado. (BRASIL, 1996).
Essa pesquisa foi aprovada e registrada no dia 25/02/2011 no Comitê de Ética em
Pesquisa da Faculdade de Medicina/Hospital Universitário Antônio Pedro, sob o número
CAAE: 0024.0.258.258-11.
O anonimato dos entrevistados foi assegurado nessa pesquisa, e para que os mesmos
não pudessem ser identificados nas falas selecionados e transcritas nessa dissertação,
identifiquei o entrevistado pela letra E acompanhada dos números que variam de 1 à 12, já
que eu entrevistei 12 trabalhadores (E01 à E12). Outra medida para manter o sigilo, diz
respeito à ordem da numeração, já que o E1 não significa ser necessariamente o primeiro
trabalhador que eu entrevistei; bem como o E12 não significa que foi o último, portanto, não
há correspondência entre a numeração e a ordem da realização das entrevistas. No caso, de
algum trabalhador ter citado em sua fala o nome de outro, este foi substituído pelas letras X,
W e Z, de forma a não permitir a identificação do mesmo.
2.9 Referencial Teórico
No intuito de abarcar o objetivo geral e os específicos dessa dissertação, me guiei
epistemologicamente por três referências, sendo que para cada uma, um capítulo, são elas:
Reforma Psiquiátrica, corporalidade e sobre as micropráticas do trabalho vivo em ato. A
especificidade desse trabalho, consiste em associar essas referências para sublinhar o modo de
produção do cuidado que está em agenciamento no CAPS.
23
Objetivo geral:
Fazer um estudo avaliativo sobre o modo de produção de cuidado que está em
agenciamento no CAPS – Centro de Atenção Psicossocial, colocando em
ênfase a questão da corporalidade através das relações de afecção dentro da
Instituição.
E, os objetivos específicos dessa pesquisa:
Fazer uma análise do encontro entre os corpos dentro da instituição, para
compreendermos se essa relação estaria aumentando (relação positiva) ou
diminuindo a potência (relação negativa), dos pacientes portadores de
sofrimento mental nesses novos espaços de atendimento.
Compreender como se formam as subjetividades operantes que caracterizam o
perfil assistencial na Instituição, a partir das relações micropolíticas que
ocorrem a partir do trabalho vivo em ato.
Elaborar a cartografia dos corpos dentro do CAPS – território como espaço de
pertencimento, de laço e engajamento de todos -
a partir da análise das
tecnologias de cuidado e das narrativas dos sujeitos envolvidos no processo .
Devido às singularidades das referências teóricas utilizadas nessa pesquisa, para fins
didáticos, elas serão apontadas em capítulos separados. Mas ressalto que no momento da
análise das categorias e sub-categorias desenvolvidas nessa dissertação, que as teorias não se
mostraram separadas; elas se corresponderam e comunicaram entre si, mesmo porque caso
assim não o fosse, não teria sentido utilizarmos tais referenciais no mesmo trabalho.
Em relação à corporalidade aponto algumas interpretações sobre o corpo e sobre a
corporalidade humana como sendo um fenômeno social e cultural, já que inevitavelmente
com a Reforma temos o deslocamento desses corpos às novas redes de atenção na Saúde
Mental. Será nessas novas instituições que esses corpos irão transitar e por isso, não pude
deixar de me questionar: Que corpos são esses? De que corpo se está falando? E por fim,
quais suas implicações no cuidado? Também utilizo as micropráticas do trabalho vivo em ato
– enquanto referência epistemológica - procurando evidenciar como essas micropráticas
afetam os corpos dos trabalhadores e dos usuários, a partir das relações de afecção que
ocorrem dentro do CAPS. Em relação ao Referencial teórico sobre a Reforma Psiquiátrica,
evidencio os diferentes momentos e aparatos institucionais, desde o primeiro Hospital
24
Psiquiátrico existente na história até a implantação e implementação dos Centros de Atenção
Psicossocial – CAPS – lócus dessa pesquisa.
3 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE A REFORMA PSIQUIÁTRICA
3.1 Hospital Psiquiátrico: Instituição Total
Segundo Michel Foucault (1999) o século XVII pode ser caracterizado como o
período da “Grande Internação”; será entre os muros do internamento que pobres,
vagabundos, presidiários e “cabeças alienadas” farão parte da mesma paisagem que outrora
excluíra e segregava os indivíduos, inicialmente demarcados pela lepra e depois pelas doenças
venéreas. Mais precisamente na segunda metade deste século ter-se-á a criação de vastas
casas de internamento, que apesar de não se assemelharem à nenhuma idéia médica,
prescrevem e estabelecem o controle, a justiça e a repressão dos indivíduos.
Nesses espaços em que se mesclavam, todo o tipo de desordem humana - orgânica,
econômica, social, moral e mental – foi que a loucura se ancorou; sem ter um espaço próprio,
ela ocupou o mesmo espaço da lepra, seja pela segregação ou pela exclusão; assim muitos
leprosários que estavam vazios desde a Renascença foram reativados e se transformaram
nessas casas de internamento. Na Idade Média, entretanto, a segregação dos leprosos tinha
apenas um sentido médico; no Classicismo, a invenção do internamento já agregava um
sentido político, social, religioso, econômico e moral.
Na Inglaterra, essas casas se denominavam inicialmente de ‘houses of correction’
depois se tornaram conhecidas como ‘workhouses’ (a primeira em 1575); nos países de língua
alemã têm-se as casas de correição – as chamadas de “Zuchthäusern” (a maioria do século
XVII), e na França o grande expoente foi o Hospital Geral , Paris – fundado em 1656.
A internação é uma criação institucional própria ao século XVII..como medida
econômica e precaução social, ela também tem valor de invenção. Mas na história
do desatino, ela designa um evento decisivo; o momento em que a loucura é
percebida no horizonte social da pobreza, da incapacidade para o trabalho, da
impossibilidade de integrar-se no grupo: o momento em que começa a inserir-se no
texto dos problemas da cidade. (FOUCAULT, 1999, p.78).
Com o espaço moral do internamento, a era clássica encontrara ao mesmo tempo o
lugar da redenção comum aos pecados da carne e da razão, sob a ética da instituição familiar
que traçava o círculo dos perigos do desatino; seu papel era entes de tudo, uma reforma moral.
25
A doença mental, que a medicina vai atribuir-se como objeto, se constituiu pelo sujeito
juridicamente incapaz e do homem reconhecido como perturbador do grupo. Será a partir
dessa lógica, que teremos a estigmatização do sujeito internado, daí - o doente mental - ser
considerado um perigo social até hoje.
No século XVII e XVIII, o pensamento e a prática da medicina não têm a unidade ou
pelo menos a coerência que nela agora conhecemos. Será, pois, através do asilo de Philippe
Pinel na França e dos retiros de Samuel Tuke na Inglaterra que a psiquiatria positiva do século
XIX encontrará os loucos. A passagem da loucura para o âmbito patológico; ou melhor, a
mudança da concepção clássica da loucura para seu enquadramento pela emergência do saber
psiquiátrico não foi imediata e nem simples assim; a própria idéia de loucura – a que os
gregos chamam de “mória” e os italianos de “pazzia” - já se diferenciava da concepção
vigente na Idade Média - visto como uma consciência dos poderes trágicos do mundo.
(ROTERDAM, 1991). Na Idade Clássica, a loucura se encontrava no campo da razão
encarnada em homens concretos, presentes no mundo social.
A partir de então, busca-se então, a apreensão da consciência dessa loucura. Para tal,
todo um aparato foi se constituindo em busca de uma organização supostamente patológica
das doenças mentais, através do projeto de um “jardim das espécies”, classifica-se e agrupa-se
as doenças; foi-se utilizando dos mesmos recursos investigativos da botânica que a psiquiatria
foi criando o quadro nosológico das perturbações conhecidas como “doença dos
nervos”.(FOUCAULT, 1999).
Através da “idéia de nervoso”- século XVIII - se reordenou uma totalização
individualizante do homem. Os “nervos”, observados enquanto expressão da fisicalidade do
indivíduo assumiram de modo crescente uma significação monista (junção do corpo e
espírito), traduziram as “pertubações físico-morais” resultantes de uma combinação entre o
organismo e os modos e efeitos do comportamento dos indivíduos (DUARTE, 1986).
Num movimento contínuo, os loucos, os que têm problemas dos ‘nervos’ vão sendo
progressivamente isolados dos outros sujeitos que ocupavam o mesmo espaço que ele. Da
mesma forma que a mendicância foi se constituindo num problema de ordem econômica e
social, a loucura foi se afirmando como um saber psiquiátrico; entretanto, no primeiro caso o
mendigo se tornou o tutelado do Estado e no segundo, o louco foi confundido com a própria
loucura e ambos deveriam por isso, ter um espaço e um saber próprio: o Hospital Psiquiátrico
e a Psiquiatria, respectivamente.
A psiquiatria encontrou a sua pátria – o espaço do internamento e nele fará todo o
investimento possível para definir seus discursos e suas práticas e com isto reafirmar a
26
pertinência dos internados nesse espaço de confinamento. Passemos, pois, para a situação
desses indivíduos que, desde então, estão sob a égide do internamento.
Para Erving Goffman em “Ensayos sobre la situación social de los enfermos
mentales”, (1994) – o indivíduo na situação, de internamento, passa inevitavelmente por um
processo de “mortificação social” que começa desde o momento em que o mesmo adentra
nestes espaços de internamento, sejam eles o convento, o presídio ou o Hospital Psiquiátrico;
ou seja, todos os indivíduos internados irão passar por esse processo de mortificação social
independente da Instituição Total. Não obstante, apesar de passarem pelo mesmo processo
não significa que vão passá-lo da mesma maneira, ainda mais quando consideramos o
ingresso não voluntário (prisões e hospitais psiquiátricos).
Goffman define uma Instituição Total como “um lugar de residência y trabajo, donde
um gran número de indivíduos em igual situación, asilados de la sociedade por um período
apreciable de tiempo, comparten em su encierro uma rutina diária, administrada
formalmente.” (GOFFMAN, 1994, p.13)
Ao considerar as relações sociais que o indivíduo manterá após ser internado,
diferentemente das que tinha anteriormente, o autor denuncia a vida interna de uma
Instituição Total através de uma perspectiva crítica ao delatar a disputa de poder interna –
entre a própria equipe dirigente e também a relação desta para com o internado.
Algumas características são intrínsecas a essas Instituições: todos os aspectos da vida
se dão num mesmo lugar, pessoas diferentes compartilham da mesma rotina diária, as
atividades diárias já estão programadas etc. O indivíduo nesse esquema, não tem a mínima
participação da programação que irá atingir sua própria vida; embasados num discurso de que
‘eles não sabem o que fazem’, a Instituição se encarrega de regulamentar e controlar a rotina
diária dos internos em seus mínimos detalhes. Resultante desse tipo de controle impera o
distanciamento entre as equipes dirigentes e os internados, como forma de exercer e justificar
o poder sobre o ‘outro’ acabam aprofundando o abismo entre eles; diante da manutenção dos
estereótipos antagônicos se formam dois mundos sociais e culturalmente diferentes. Duas
perspectivas se justapõem: a do mundo dos pacientes – dos internados e a do pessoal da
equipe dirigente.
Ao entrar na Instituição, o doente mental, já começa a sofrer o processo de
“mortificação social”. Desde o primeiro instante, já nos procedimentos de admissão “preparação ou programação”, o interno começa a perder sua identificação pessoal, seja por
ter que se adequar a um padrão estético comum (cortar o cabelo) e até por usar a mesma roupa
(uniforme), por exemplo. As regras nesses primeiros momentos se fazem imperativas e o
27
indivíduo, tão logo não as siga, conhecerá as punições respectivas. Assim, toda uma lógica vai
se constituindo e vai definindo o comportamento do indivíduo, de acordo com os
procedimentos internos dessa Instituição.
Se por um lado, temos a afirmação do poder da Instituição – com todos os seus
imperativos de moralidade e coerção social, por outro, se tem uma desfiguração pessoal do
internado e este no limite, se torna simplesmente ‘mais um’ na Instituição. Por conseguinte,
quanto mais tempo passar, maior vai ser a incidência desse processo – o de mortificação
social - em sua vida e dessa forma, mais difícil será o seu retorno à vida extra-hospitalar.
Numa Instituição Total, os limites pessoais são completamente transpostos, e os
internados só mantêm contato com sua própria consciência – que não é digna de respaldo,
com o seu corpo – literalmente aprisionado, com os seus atos e pensamentos - controlados ao
extremo e por fim, alguns dos poucos pertences que está autorizado a ter; objetivam-se com
isso mostrar ao doente mental sua nova condição - a de ser um recluso.
O indivíduo por duas rupturas passa diante da mortificação. A primeira: por uma
espécie de “looping” o indivíduo reage defensivamente colocando uma distância entre a
mortificação e o seu eu; a segunda, já mais incisiva viola a autonomia do ato do indivíduo, na
medida em que as sanções invadem a vida do internado. Desde que chega à Instituição, o
indivíduo vai perdendo o controle de sua vida e a “economia personal de los proprios actos”
vai sendo progressivamente destruída, o que acaba resultando numa completa dependência
deste interno à outras pessoas para realizar um simples ato.
Como se há sugerido anteriormente, uno de los medios más efectivos de desbaratar
la economia de acción de uma persona es obligarla a pedir permiso o elementos para
las actividades menores que cualquiera puede cumplir por su cuenta en el mundo
exterior, tales como fumar, afeitarse, ir al baño, hablar por telefóno, gastar dinero o
despachar cartas.(GOFFMAN, 1961, p.51).
Em cada Instituição, entretanto, haverá uma resposta para atos não respeitados por
parte dos indivíduos internos, exemplo: no campo de concentração – dano físico ou morte, na
escola de oficiais – humilhação perante os outros e no hospital psiquiátrico – a cela de
isolamento.
Concomitante ao processo de “mortificação social”, o indivíduo, o interno começa a
receber instruções formais e informais “sistema de privilégios”, como medida de assegurar a
eficácia daquele. Será esse sistema, que legitimará a manutenção do processo citado, por
operações contrárias, ele acaba sustentando a lógica perversa do dar e receber. Esse sistema
se baseia em três elementos básicos, a saber: “as normas de la casa”, recompensas e
28
privilégios mínimos – ligados à obediência – e os castigos – evidentemente ligado à quebra de
regras impostas pela Instituição.
No entanto, cada interno utilizará diferentes modos para se adaptar nas distintas etapas
de sua vida no internamento. Para que a Instituição dê conta dessas diferentes adaptações, ela
vai inscrevendo dentro dos muros do internamento um ”juego astuto” objetivando controlar a
tensão existente entre o mundo habitual e o mundo institucional.
Segun los princípios del juego astuto subordina los contactos con los compañeros a
la exigência superior de “eludir complicaciones”; tiende a no ofrecerse como
voluntário para nada; y si acaso aprende a cortar sus vínculos com el mundo
exterior, en la medida necesaria para dar realidad cultural al mundo interior, no lo
hace hasta um punto que pueda conducirlo a la colonizácion. (GOFFMAN, 1961,
p.73).
Sem levar em conta o mundo dos pacientes internados, o Hospital Psiquiátrico,
enquanto modelo de uma Instituição Total acabou tendo suas estruturas abaladas; de modo
contínuo sua importância enquanto espaço de internamento e tratamento aos doentes mentais
acabou sendo questionada. O discurso oficial dessas Instituições – reabilitar o interno – não
dá mais conta desse complexo cenário, neste caso - o da saúde mental, surgem novos atores e
outros cenários que tentam compor a nova cena.
A questão é como encontrar um meio termo nessa equação, que leve em conta o
mundo dos pacientes por um lado e a dos profissionais de outro, sem que com isso se dê
primazia a algum deles.
Este contexto crítico e de crise evidente, de questionamento e avaliação dos
mecanismos institucionalizados no campo da saúde mental permitiu um movimento
denominado de Reforma Psiquiátrica – que colocará o modelo hospitalocêntrico em xequemate.
3.2 A Reforma Psiquiátrica
No contexto da reliberalização do pós-2ª Guerra Mundial (1939-1945), a primeira
psiquiatria (alienista) ressurgiu enquanto uma “Nova Psiquiatria” (novo conjunto de saberes e
práticas terapêuticas); tratava-se de planejar e implementar políticas assistenciais capazes de
afirmar a liberdade e a igualdade social, no interior das sociedades capitalistas devastadas pela
guerra, porém vencedoras. Os fatores que contribuíram para o desenvolvimento de
alternativas ao modelo asilar/hospitalocêntrico – principalmente nas décadas de 40 e 50,
29
foram: o clima de liberalismo e de democracia reinante após a vitória dos aliados contra o
totalitarismo nazi-facista, criação de movimentos pró-direitos civis, associação de parentes e
amigos dos doentes mentais, por exemplo.
O ideário da Nova Psiquiatria se constituiu, fundamentalmente, a partir do priori de
que era primordial reverter a situação de exclusão do doente mental. Imbuído desse ideário
igualitário-libertário, o campo psiquiátrico, na Europa e nos EUA, dava origem a uma série de
novas “experiências”: as comunidades ‘terapêuticas’ e a Antipsiquiatria, na Inglaterra; a
Psiquiatria Comunitária ou Preventiva, nos EUA; e no final da década de 1960, a Psiquiatria
democrática, na Itália. Estas iniciativas eram “Experiências que se opunham à prevalência da
atenção à fisicalidade da doença mental e, principalmente, ao isolamento terapêutico,
reinvindicando a necessidade da desinstitucionalização”. (VENÂNCIO, 1993, p.127).
Essa “Nova Psiquiatria” se opunha à psiquiatria organicista pautada pelos tratamentos
que incidiam somente sobre o aspecto físico e orgânico do indivíduo e também pelo
internamento do indivíduo na instituição asilar.
Em oposição à psiquiatria biológica, sustentada pelo eletrochoque, pela internação
prolongada e pelo suposto uso abusivo dos psicofármacos, o novo ideário privilegia a
dimensão social do doente mental à sua esfera individual, o que não significa dizer que essa
“Nova Psiquiatria” discrimina o uso da medicação.
No Brasil o início do processo de Reforma Psiquiátrica data-se do final da década de
70, resultado da crise no modelo de assistência centrado no hospital psiquiátrico1, por um
lado, e na eclosão, por outro, dos diversos movimentos sociais pelos direitos dos pacientes
psiquiátricos.
A Reforma Psiquiátrica é processo político e social complexo, composto de atores,
instituições e forças de diferentes origens, e que incide em territórios diversos, nos
governos federal, estadual e municipal, nas universidades, no mercado dos serviços
de saúde, nos conselhos profissionais, nas associações de pessoas com transtornos
mentais e de seus familiares, nos movimentos sociais, e nos territórios do imaginário
social e da opinião pública. (BRASIL, 2005, p.06).
A Reforma Psiquiátrica, portanto, deve ser entendido por um conjunto de
transformações, de práticas, saberes, valores culturais e sociais, ou seja, em torno do louco ou
da loucura propriamente dita.
1
O primeiro hospício brasileiro – Imperador D. Pedro II - data de 1852, Rio de Janeiro, já em sua época de
funcionamento, se tornou alvo de várias críticas pelos tratamentos que prestava aos internos , considerados hoje
violentos e desumanos; porém condizentes com o quadro geral da psiquiatria naquele momento.
30
3.3 Desinstitucionalização da Assistência Psiquiátrica
De acordo com o relatório “Reforma Psiquiátrica e Política de Saúde Mental no
Brasil” do Ministério da Saúde, 2005, podemos considerar três momentos históricos que
caracterizam as etapas do processo de Reforma em nosso país: o primeiro de 1978 a 1991 é
evidenciado como o período em que se fizeram presentes as críticas ao modelo
hospitalocêntrico; o segundo, de 1992 à 2000, período em que se começa efetivamente a
implantação da rede extra-hospitalar e o terceiro período, após 2001, marcado pelo respaldo
jurídico. Será em consonância à essas etapas que conduziremos esse trabalho.
A primeira etapa do processo de Reforma no Brasil teve com O Movimento dos
Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM) de 1978 o início efetivo do movimento social em
prol dos direitos dos pacientes psiquiátricos. É sobretudo este Movimento caracteristicamente
plural em sua origem, que através de seus vários atores constituintes como: trabalhadores
integrantes do movimento sanitário, associações de familiares, sindicalistas, membros de
associações de profissionais e pessoas com longo histórico de internações psiquiátricas – que
se tornou possível denunciar e lutar a favor dos direitos humanos dos ‘loucos’.
É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a
protagonizar e a construir a partir deste período a denúncia da violência dos
manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de
assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e
ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos
mentais.(BRASIL, 2005, p.07).
Inspirado pela experiência italiana de desinstitucionalização em psiquiatria e sua
crítica ao manicômio, o MTSM começa a sugerir propostas e ações para a reorientação da
assistência psiquiátrica. Já na década de 80, podemos evidenciar a influência desse
Movimento na Colônia Juliano Moreira – enorme asilo com mais de 2000 internos - por meio
da suspensão dos tratamentos de eletro-choque, abertura dos quartos-fortes e também do
fechamento à novas internações. Neste período, podemos destacar também, a realização do II
Congresso Nacional do MTSM (Bauru, SP), da I Conferência Nacional de Saúde Mental (Rio
de Janeiro) como elementos que contribuíram para a Reforma Psiquiátrica.
Os acontecimentos de extrema importância nesse período e que atentam para a
possibilidade de se construir efetivamente uma rede de cuidados substitutiva ao hospital
psiquiátrico são: o surgimento do primeiro Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) no Brasil,
inaugurado em março de 1986, na cidade de São Paulo, Centro de Atenção Psicossocial
Professor Luiz da Rocha Cerqueira, conhecido como “CAPS da Rua Itapeva”; o início de um
31
processo de intervenção na Casa de Saúde Anchieta (Santos-SP) em 1989, devido à denúncia
de maus-tratos e mortes dos pacientes; a implantação, também em Santos, de Núcleos de
Atenção Psicossocial (NAPS) que funcionam 24 horas, de cooperativas, de residências para
os egressos do hospital e associações. (BRASIL, 2004).
Em 1988 é implantado o SUS (Sistema Único de Saúde), entidade que será de extrema
importância na articulação da Saúde Mental no país nos anos vindouros. Em 1989, o deputado
Paulo Delgado (PT/MG) dá entrada no Congresso Nacional de um Projeto de Lei que propõe
a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais e a extinção dos
manicômios no país. Articulados esses fatores devem ser entendidos como peças
fundamentais e constituintes dessa primeira etapa.
A partir do segundo período do processo (1992-2000) que a Reforma Psiquiátrica,
começa a ganhar contornos mais definidos. Será na década de 90, que as primeiras normas
federais irão regulamentar a implantação de serviços de atenção diária, fundadas nas
experiências dos primeiros CAPS, NAPS e Hospitais-dia, bem como estabelecerá as primeiras
normas para fiscalização e avaliação dos hospitais psiquiátricos.
As experiências iniciais das lutas do Movimento revelam que a Reforma Psiquiátrica,
não sendo apenas uma retórica, era possível e exeqüível.
Será a partir de 2001, com
a aprovação
Lei
Federal
Paulo
Delgado
10.216/2001(PT/MG) – depois de 12 anos tramitando no Congresso Nacional - que o projeto
da Reforma Psiquiátrica no Brasil passará a ter mais visibilidade e uma maior sustentação;
uma vez que “Dispõe sobre a proteção e o direito das pessoas portadoras de transtornos
mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental”. Apesar de não instituir
mecanismos claros para a extinção dos manicômios, esta lei é um marco impulsionador à
Reforma no país e que caracteriza a terceira etapa do processo. A partir deste ano, a saúde
mental experimenta uma importante expansão que se dá através de financiamentos criados
pelo Ministério da Saúde para os serviços abertos e substitutivos ao hospital psiquiátrico em
todo o país, é o caso das Portarias: Nº 1174/GM de 07 de Julho de 2005 e Nº 245/GM de 17
de Fevereiro de 2005.
A partir de então, a Reforma Psiquiátrica se consolida como política oficial do
governo federal. Por meio de mecanismos regulatórios o Estado contribuiu efetivamente para
a desconstrução do modelo asilar.
Mecanismos de avaliação e redução de leitos psiquiátricos, institucionalizados pelo
governo federal como “Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria
(PNASH/Psiquiatria)” – 1º processo avaliativo sistemático, anual, dos hospitais psiquiátricos
32
no Brasil, instituído em 2002 e o “Programa Anual de Reestruturação da Assistência
Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH)” - estratégia de redução progressiva e pactuada de
leitos a partir dos macro-hospitais, instituída em 2004; aliados à expansão de uma rede de
atenção aberta e comunitária, permitiu a redução e substituição significativa de leitos
psiquiátricos e o fechamento de vários hospitais psiquiátricos em péssimas condições de
funcionamento, como por exemplo: Sanatório Espírita Vicente de Paulo de Ribeirão Preto/SP;
Clínica Espírita de Repouso de Goiânia/GO; Sanatório Barbacena Ltda de Barbacena/MG;
Inst. de Neuropsiquiatria e Reabilitação Funcional de Campina Grande /PB e Hospital
Estadual Teixeira Brandão de Carmo/RJ.2
3.4 Modo Asilar e Modo Psicossocial: uma coabitação difícil
Face ao processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, novas práticas e saberes estão se
constituindo no campo da Saúde Mental como alternativos ao modelo hospitalocêntrico/asilar,
até então dominantes. Será utilizando como exemplo esses dois modos básicos de atenção à
Saúde Mental que evidenciaremos a relação proposta nesse trabalho: a de se pensar os corpos
dos 'loucos' associados à nossa cotidianidade.
Antes, porém, iremos definir o que entendemos por esses modos, acatando a seguinte
proposta: “Por oposição ao modo asilar como paradigma das práticas dominantes, proponho
designar modo psicossocial ao paradigma que vai se configurando tendo por base as práticas
da Reforma Psiquiátrica.” (COSTA-ROSA, 2000, p.151).
Algumas considerações acerca do modo asilar: dá ênfase às determinações orgânicas e
por isso aos psicofármacos; pouca ou nenhuma consideração ao sujeito doente; prescrição do
isolamento como meio de tratamento eficaz, dificultando o contato com a família e a
sociedade; tanto os usuários quanto à população estão excluídos de qualquer participação nos
Hospitais Psiquiátricos.
Por
sua
vez,
o
modo
psicossocial,
preconiza:
os
fatores
políticos
e
biopsicosocioculturais como determinantes no processo a saúde-doença; seu tratamento
básico serão as psicoterapias, laboraterapias, socioterapias e um conjunto de dispositivos de
reintegração sociocultural - não bane por isso a medicação, mas também não a exalta; enfatiza
a pertinência do indivíduo a um grupo familiar e social, dentre outros.
O Hospital Psiquiátrico - modelo de uma Instituição Total, no sentido atribuído à
2
Dados extraídos do Relatório de Gestão 2003-2006 do Ministério da Saúde
33
expressão de Goffman - se tornou o dispositivo institucional mais evidente do modo asilar e
por isso o alvo mais atingido e criticado. Em outra direção, paralela e concomitante, novos
dispositivos institucionais sublinharão a perspectiva do modo psicossocial e que irá ao
encontro dos principais avanços conquistados na construção de uma atenção em rede e de
base comunitária em Saúde Mental no SUS, são eles: os CAPS, as Residências Terapêuticas,
os Ambulatórios de Saúde Mental, os Centros de Convivência e Cultura, as Equipes
Matriciais de Referência e os Hospitais-Dias. Neste trabalho, iremos abordar o CAPS:
Centros de Atenção Psicossocial, devido sua incontestável relevância no cenário da Saúde
Mental.
3.5 Os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS)
Os Centros de Atenção Psicossocial – CAPS – são expressões institucionais face a
Reforma Psiquiátrica e que se configuram como um dos novos modos de atenção à Saúde
Mental que estão se expandindo e consolidando, no país; em oposição ao “modo
hospitalocêntrico/asilar” que progressivamente está sendo substituído por estes.
Por meio de tabelas, é possível visualizar os deslocamentos dos indivíduos com
transtornos mentais para essas novas instituições, ressaltando de antemão, a importância de
avaliarmos os serviços que estão sendo prestados nessas redes, pois partimos da premissa que
não basta simplesmente mudarmos os pacientes de uma Instituição a outra para se ter um
novo modelo de assistência em Saúde Mental, mas sobretudo é importante, mudar o modo de
produção de cuidado para que tenhamos uma mudança no perfil assistencial, esse é o nosso
ponto de vista.
Abaixo, apontarei alguns dados do Ministério da Saúde, em especial da Secretaria de
Saúde Mental, que permite vislumbrar o deslocamento dos pacientes com transtornos mentais
dos hospitais psiquiátricos aos CAPS.
Se por um lado, o que se vê é a redução dos leitos psiquiátricos (Tabela 01) e também
dos investimentos financeiros (Tabela 02) destinados aos Hospitais psiquiátricos:
34
Tabela 01 – Número de Leitos de Hospitais Psiquiátricos no Brasil (2002-Julho2011)
Ano
Nº de Leitos de Hospitais Psiquiátricos
2002
51.393
2003
48.303
2004
45.814
2005
42.076
2006
39.567
2007
37.988
2008
36.797
2009
34.601
2010
32.735
2011
32.681
Fonte: Saúde Mental em Dados - Ano VI, n9, Julho de 2011/ Informativo Eletrônico. Brasília: julho de 2010
(acesso em 01/11/2011). Observação: Em 2002-2003, SIH/SUS, Coordenação de Saúde Mental, Álcool e Outras
Drogas/DAPES/SAS/MS e Coordenações Estaduais. A partir de 2004, PRH/CNES e Coordenações Estaduais.
Tabela 02 - Proporção de recursos do SUS destinados aos Hospitais Psiquiátricos e aos
Serviços Extra-Hospitalares nos anos de 2002-2010
Composição de Gastos 100%
Ano
% Gastos Hospitalares
% Gastos Extra-Hospitalares
em Saúde Mental
em Saúde Mental
2002
75,24
24,76
2003
66,71
33,29
2004
61,83
38,17
2005
52,77
47,23
2006
44,08
55,92
2007
36,65
63,35
2008
34,36
65,54
2009
32,29
67,71
2010
29,44
70,56
Fonte: Saúde Mental em Dados - Ano VI, n9, Julho de 2011/ Informativo Eletrônico. Brasília: julho de 2010
(acesso em 01/11/2011).
Por outro, se têm a expansão e consolidação dessas redes de atenção à Saúde Mental
como substitutivas ao modelo hospitalocêntrico (Tabela 03):
35
Tabela 03 - Expansão dos Centros de Atenção Psicossocial (2002-2011*)
Tipo
de
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
CAPS I
145
173
218
283
437
526
618
686
761
780
CAPS II
186
208
236
271
322
346
382
400
418
420
CAPS III
19
24
29
26
38
39
39
46
55
55
CAPSi
32
37
44
56
75
84
101
112
128
132
CAPSad
42
58
78
102
138
160
186
223
258
262
CAPSadIII -
-
-
-
-
-
-
-
-
01
Total
500
605
738
1010
1155
1326
1467
1620
1650
Serviço
424
Fonte: Saúde Mental em Dados 9 - Ano V, n7, Julho de 2011. *Observação: Números de 2011, até Julho.
Disponível em:< http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentalemdados2011.pdf> Acesso em: 15 Jan.
2012
Destaca-se um dado extremamente relevante: em 2006 atingiu-se a marca de 1.010
CAPS cadastrados e em funcionamento no SUS, ano também em que os recursos federais
empregados nas ações extra-hospitalares (correspondendo a um total de 55,92% dos recursos
destinados a Saúde Mental) ultrapassaram o investimento às redes hospitais.
Hoje esses números são ainda mais expressivos, já que até o mês de Julho de 2011,
segundo o relatório do Ministério da Saúde intitulado “Saúde Mental em Dados – 9”, temos
1.650 CAPS implementados no Brasil, o que corresponde a uma cobertura equivalente a 68%
em todo o território (se considerarmos o parâmetro de um CAPS para cada 100 mil
habitantes); evidente expansão se comparado com os 424 CAPS existentes em 2002, o que
significava uma cobertura de 21%.
Outro dado significante, é a implementação por meio da Portaria nº 2.841, de 20 de
Setembro de 2010, do primeiro Centro de Atenção Psicossocial Álcool e outras drogas - 24h –
CAPS ad, no Estado do Rio de Janeiro.
Dados como esses, me permitiu concluir que inexoravelmente há um deslocamento
dos indivíduos com transtornos mentais dos Hospitais Psiquiátricos para os Centros de
Atenção Psicossocial, que precisa ser considerado. Ademais, na tabela 04, temos os
indicadores de cobertura do CAPS para cada 100 mil habitantes. Destaca-se que o Brasil
passou de um indicador de 0,21 em 2002, para um indicador de 0,68 em Julho de 2011, o que
demonstra um grande avanço no que tange à cobertura no país. Os parâmetros para esse
indicador são: Cobertura muito boa (acima de 0,70); Cobertura boa (entre 0,50 e 0,69);
36
Cobertura regular/baixa (entre 0,35 a 0,49); Cobertura baixa (de 0,20 a 0,34) e para Cobertura
insuficiente/crítica (abaixo de 0,20).
A acessibilidade melhorou em todo o país e 11 estados já apresentam uma cobertura
considerada muito boa; 07 apresentam uma cobertura considerada boa. O Amazonas, que por
conta da recente expansão de serviços, ultrapassou o DF no que tange a cobertura assistencial
em saúde mental. Permanece como desafio a expansão de serviços para populações
específicas (CAPSad e CAPSi) e de atenção 24 horas ( CAPS III).
Tabela 04 - Centros de Atenção Psicossocial por tipo e Indicador CAPS/100.000 habitantes
por UF (Brasil – 15 de julho de 2011)
CAPS
CAPS
CAPS
CAPS
CAPS
CAPS
Total
I
II
III
i
AD
AD III
CAPS
Acre
0
1
0
0
1
0
02
0,28
Alagoas
37
06
0
01
02
0
46
0,88
Amazonas
05
04
01
0
0
0
10
0,23
Amapá
0
0
0
01
02
0
03
0,45
Bahia
121
31
03
07
16
0
178
0,85
Ceará
45
29
03
06
17
0
100
0,94
01
02
0
01
02
0
06
0,24
Espírito Santo
07
08
0
01
03
0
19
0,44
Góias
11
14
0
02
04
0
31
0,42
Maranhão
36
13
01
03
06
0
59
0,63
Minas Gerais
81
46
08
12
20
0
167
0,67
09
06
01
01
04
0
21
0,69
Mato Grosso
24
02
0
02
05
0
33
0,69
Pará
24
12
01
02
06
0
45
0,44
Paraíba
38
08
03
07
08
0
64
1,23
Pernambuco
26
18
02
06
12
0
64
0,59
Piauí
27
06
01
01
04
0
39
0,83
Paraná
35
27
02
08
22
0
94
0,74
Rio de Janeiro
34
39
01
16
18
01
109
0,58
Rio Grande do
12
11
01
02
06
0
32
0,84
UF
Distrito
Federal
Mato
Grosso
do Sul
Indicador
37
Norte
Rondônia
11
05
0
0
01
0
17
0,74
Roraima
01
0
0
0
01
0
02
0,33
65
37
0
15
24
0
141
1,01
Santa Catarina
43
13
02
06
11
0
75
0,87
Sergipe
19
04
03
02
04
0
32
1,16
São Paulo
61
76
22
30
62
0
251
0,56
Tocantins
07
02
0
0
01
0
10
0,47
TOTAL
780
420
55
132
262
01
1650
0,68
Rio Grande do
Sul
Fonte: Saúde Mental em Dados 9 - Ano V, n7, Julho de 2011. *Observação: UF – Unidades da Federação. Disponível em: <
http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/mentalemdados2011.pdf> Acesso em: 15 Jan. 2012.
Portanto, sublinho a importância de conhecer qual o modo de produção de cuidado que
está em agenciamento nos CAPS, e para isso, apostamos num estudo avaliativo sobre as
práticas assistenciais.
De acordo com o Relatório 2003-2006 do Ministério da Saúde intitulado “Saúde
Mental no SUS: acesso ao tratamento e mudança do modelo de atenção” (2007), pode-se
entender o CAPS como:
Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) Serviços de saúde municipais, abertos,
comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais
severos e persistentes, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social
destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e
fortalecimento dos laços familiares e comunitários. É função dos CAPS prestar
atendimento clínico em regime de atenção diária, evitando assim as internações em
hospitais psiquiátricos; promover a inserção social das pessoas com transtornos
mentais através de ações intersetoriais; regular a porta de entrada da rede de
assistência em saúde mental na sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde
mental na rede básica. (BRASIL, 2007, p.63).
Segundo o relatório do Ministério da Saúde, intitulado “Saúde Mental no SUS: os
Centros de Atenção Psicossocial” de 2004, o CAPS tem como objetivo:
[...] Dar um atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais
severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de
reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico,
evitando as internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social
dos usuários e de suas famílias.” (BRASIL, 2004, p.12).
38
Os CAPS deverão ter espaço próprio e adequado para atender sua demanda à sua
demanda especifica, e para atingir seu propósito – enquanto espaço alternativo no cenário
psiquiátrico deverão ter os seguintes recursos físicos: consultórios para atividades individuais
(consultas, entrevistas, terapias); salas para atividades grupais; espaço de convivência;
oficinas; refeitório (o CAPS deve ter capacidade para oferecer refeições de acordo com o
tempo de permanência de cada paciente na unidade); sanitários; área externa para oficinas,
recreação e esportes. (BRASIL, 2004, p.14).
Os profissionais que trabalham nos CAPS possuem diversas formações e integram
uma equipe multiprofissional. É um grupo de diferentes técnicos de nível superior e de nível
médio. Os profissionais de nível superior são: enfermeiros, médicos, psicólogos, assistentes
sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos, professores de educação física ou outros
necessários para as atividades oferecidas nos CAPS. Os profissionais de nível médio podem
ser: técnicos e/ou auxiliares de enfermagem, técnicos administrativos, educadores e artesãos.
Os CAPS contam ainda com equipes de limpeza e de cozinha.
Para ser atendido nos CAPS, pode-se: procurar diretamente esse serviço; ser
encaminhado pelo Programa de Saúde da Família ou por qualquer serviço de saúde e a pessoa
pode ir sozinha ou acompanhada, devendo procurar, preferencialmente, o CAPS que atende à
região onde mora. (Se uma pessoa está isolada, sem condições de acesso ao serviço, ela
poderá ser atendida por um profissional da equipe do CAPS em casa, de forma articulada com
as equipes de saúde da família do local, quando um familiar ou vizinho solicitar ao CAPS).
De acordo com a Portaria Nº 336/GM de 19 de Fevereiro de 2002, o Ministro da
Saúde – José Serra, no uso de suas atribuições legais define o Serviço de atenção psicossocial
de acordo com a população do município:
CAPS I – municípios com população entre 20.000 e 70.000 habitantes;
CAPS II – municípios com população entre 70.000 e 200.000 habitantes;
CAPS III – municípios com população acima de 200.000 habitantes.
Outros três serviços com clientelas específicas e por isso inovadores compõem a rede
CAPS, são ele:
CAPS i II – Serviço de atenção psicossocial para atendimentos a crianças e
adolescentes, constituindo-se na referência para uma população de cerca de 200.000
habitantes, ou outro parâmetro populacional a ser definido pelo gestor local,
atendendo a critérios epidemiológicos;
39
CAPS ad II – Serviço de atenção psicossocial para atendimento de pacientes com
transtornos decorrentes do uso e dependência de substâncias psicoativas, com
capacidade operacional para atendimento em municípios com população superior a
70.000.
CAPS ad III (24h) – Segundo o primeiro parágrafo do artigo primeiro da Portaria nº
2.841 de 20/09/2010, esse tipo de CAPS atende a mesma clientela do CAPS ad II,
porém com o funcionamento durante 24 horas por dia, inclusive nos feriados e finais
de semana.
O Art. 6º da Portaria 336/GM estabelece que os atuais Centros de Atenção
Psicossocial e os Núcleos de Atenção Psicossocial deverão ser recadastrados de acordo com
as modalidades CAPS I, II, III, CAPS i II e CAPS ad II. O mesmo procedimento se aplicará
aos novos CAPS que vierem a ser implantados.
Esses CAPS enquanto dispositivos estratégicos para a consolidação da Reforma
Psiquiátrica pode produzir efeitos positivos no tratamento dos usuarios, na medida em que
coloca em ação a chamada “clínica do encontro”, a qual é pautada pelo diálogo, pela escuta
interessada e pela produção de intersubjetividades e nesse sentido, promover relações entre os
sujeitos que se encontram no CAPS, tendo em vista às ações que englobam o acolhimento, os
espaços de interlocução, as estratégias que permitem a autonomia dos usuários e a
integralidade do cuidado (NUNES et al., 2008)
A integralidade da atenção deve ser pautada pelo entendimento de que o sujeito é um
ser de múltiplas necessidades e que por isso, essas necessidades não podem ser consideradas
de forma isolada e descontínua do contexto social. Nesse contexto, a integralidade pode ser
entendida como uma ação compromissada em quebrar barreiras ao romper com o ideal de
hospitalização, medicalização e isolamento característico do modo asilar.
A noção de integralidade da atenção nos serviços de saúde deve ser permeada pelo
entendimento de que cada pessoa é um todo indivisível, único, mas também social e que as
ações, sejam elas: de promoção, proteção ou recuperação da saúde, não podem ser
fragmentadas. Por conseguinte, para que se tenha a integralidade de fato nas ações de saúde
mental aos usuários, se faz como condição necessária, o envolvimento de todos os níveis de
atenção em saúde, aliando nessa perspectiva os serviços da rede básica de saúde, os serviços
especializados, o esporte, a cultura, o trabalho e o lazer. (NASI et al, 2009).
Portanto, o CAPS, foi escolhido como lócus privilegiado para essa dissertação; uma
vez que há uma produção e apropriação de novas instâncias que delimitam políticas, gestões e
40
processos que se organizam em prol de uma nova rede de cuidado na Saúde Mental nesses
centros de atendimento. Efetivamente, o processo de cuidado desenvolvido por essas
instituições implica necessariamente no envolvimento e comprometimento de diferentes
atores incluindo os médicos, enfermeiros, assistentes sociais, recepcionistas, equipe técnica e
dos serviços gerais vinculados aos diferentes sistemas que compõem a relação desses
profissionais com os usuários e seus familiares.
Assim, após a evidência da importância do CAPS - lócus escolhido para a pesquisa dentro do cenário da Saúde Mental, passarei para as conceitualizações acerca da
corporalidade, já que como dito anteriormente, com a Reforma Psiquiátrica, nós temos um
deslocamento dos corpos dos pacientes para essas novas redes de atendimento. Sublinho
ainda, que esse deslocamento não passa despercebido, ele afirma ainda mais a loucura, que
agora não está mais aprisionada nos muros do internamento, está entre nós e pode ser vista a
qualquer momento e em qualquer esquina; pois, agora a ‘casa verde’ não está mais fechada,
ela abriu suas portas. (ASSIS, 1979).
4 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE CORPORALIDADE
4.1 O Corpo na Idade Média
Historicamente, pode-se observar uma estreita relação do conceito desenvolvido
acerca do corpo com a concepção de mundo que os homens se utilizam para explicarem o seu
universo; a diferença entre o conceito de corpo desenvolvido na Idade Média para a Idade
Contemporânea revela justamente que noções, conceitos e/ou categorias não podem ser
analisados abstendo-se das concepções que os homens têm do seu universo. Neste capítulo,
iremos abordar as concepções medievais acerca do mundo, para que a partir daí possamos
compreender a categoria ‘corpo’ nesse contexto.
A cosmovisão medieval postulava uma integração do homem – microcosmos, com o
universo - macrocosmos, ambos se fundiam de tal maneira que não se diferenciavam.
Assim, o pequeno expressa o grande. A parte contém o todo. O indivíduo exprime a
sociedade. A mão revela o destino. O rosto estampa o caráter. Esses princípios
valem para tudo; o mínimo está no máximo; mas também pode ser contingente do
máximo. (RODRIGUES, 2001, p.41).
41
Na Idade Média, o cosmos constituía, portanto, uma unidade orgânica; mundo que se
desdobrava como um enorme sistema de símbolos. A simbologia entrelaçava o mundo natural
e sobrenatural, encobrindo quaisquer explicações causais e genéticas a partir de uma lógica
estritamente simbólica e analógica.
A cosmovisão da Idade Média3 era inteiramente teocêntrica, em que só o milagre
mudava a ordem das coisas naturais. Nesse mundo, em que não há delimitação do ser e da
coisa, de outro modo, em que não se tem uma distinção do real e do imaginário, o celestial e o
terreno se mesclavam tanto que já não se podia mais delimitar um ou outro; nada era
verdadeiramente espírito e nada era verdadeiramente matéria, ou seja, corpo e alma se
entrelaçavam completamente.
O simbolismo corporal tinha lugar crucial nos padrões medievais em que a
inseparabilidade do corpo e da alma se traduzia de modo vivo na sensibilidade dos homens
em dar sentido á própria dor, ou seja, o sofrer tinha uma conotação positiva; pois através da
dor era possível justificar a tortura como uma ação sobre o espírito, por meio daquilo que
chamaríamos de corpo: todos os sofrimentos impingidos ao corpo eram sofrimentos
estabelecidos sobre a alma e vice-versa. Dentro dessa lógica simbólica, o espírito não se
separava da matéria, bem como o corpo da alma; consequentemente à essa visão um cadáver
jamais era um mero cadáver, eis um ponto que merece ser destacado. Estamos diante de um
paradoxo: ora como explicar uma sociedade que legitima a tortura e considera um sacrilégio a
dissecação do corpo humano? A chave para a questão acima se pode ser justificado pelo fato
de que: “abrir o corpo era também bulir no espírito.” (RODRIGUES, 2001, p.58).
Com o aparecimento do dualismo cartesiano foi possível a superação do tabu medieval
– abertura do corpo humano – possível graças à separação entre corpo e alma; que se iniciou a
partir de um projeto de superar a dor; agora considerada como um problema da máquina
corporal; “[...] foi necessário desencantar o corpo, despojando-o de sua condição de
microcosmos.” (RODRIGUES, 2001, p.59).
Mais do que isso, a partir dessa disjunção expressa na dicotomia cartesiana corpo
versus alma, o corpo ressignificado, se tornou apenas sobra de uma alma.
Agora o corpo
individual não se dilui mais no corpo social, nem no cósmico ou no universo; ele se encontra
numa nova fase em que suas próprias contradições terão que ser explicadas sob novos
ângulos. O deslocamento do sentido do corpo como algo difuso no meio social,
3
O universo medieval caracteriza-se por sua continuidade, sua coesão singular e seu simbolismo religioso entre
o mundo cósmico e o natural, o homem ocupa o posto intermediário desses mundos. (História da Filosofia
Cristã. Petrópolis, Vozes, 1982).
42
indiferenciado foi perdendo espaço para sua individualização e diferenciação paralelamente a
outras concepções (foi o que aconteceu com a categoria ‘morte’) que de maneira análoga, foi
evidenciando o caráter biológico da dualidade alma e do corpo.
4.2 O caráter biológico da dualidade alma e corpo
A partir do século XVI, com a separação do corpo e da alma, o homem passa a ser
considerado como uma das espécies biológicas em que seus processos fisiológicos passam a
ser submetidos a questionamentos de cunho científico. Acontece que essa perspectiva nos
remete a um problema: a mesma ciência que insere o homem na natureza é ao mesmo tempo,
a que o dota de capacidade de transformá-la, ou seja, ele pode mudar o mundo. Entretanto,
mudar o mundo à vontade é próprio de um Deus; não de um homem, de um mortal – é
precisamente nesse ponto que a questão da morte natural se torna uma equação importante. O
fato é: apesar de o homem poder controlar e até mesmo transformar a natureza, não o dota de
potencialidades suficientes para contornar a morte; ele pode mudar tudo, menos sua condição
enquanto um ser mortal. Então qual foi a estratégia utilizada pelo homem para resolver esse
impasse?
Já que a morte se tornou um fenômeno independente de sua vontade, ou seja,
inevitável, só restou ao homem definir (pelo menos, a morte que lhe seria mais digna). Em
poucas palavras, o homem desloca sua impotência diante da morte para o ideal de se ter a
‘morte natural’, “que pressupõe a capacidade humana de intervenção sobre as leis da natureza
e o desenvolvimento do ambicioso projeto de supremacia sobre elas.” (RODRIGUES,1983,
p.156). Sob a alcunha desse projeto o homem pretende eliminar a morte violenta, a morte
precoce, a morte causal, enfim pretende ter uma morte com idade avançada e com menos
sofrimento possível.
Ao mesmo tempo, a noção de morte “natural” é coerente com o espírito das
classes que então emergem: ela é um protesto contra a brevidade da vida,
porque, se a morte não deriva mais do arbítrio das forças do além, mas de
causas a que os homens estão submetidos enquanto partes da natureza, ela
deriva, então, de causas que os homens podem, senão abolir, ao menos
controlar. (RODRIGUES, 1983, p.156).
A naturalização da morte, pelas razões acima, suscita outras considerações; nesse
momento (século XVII e XVIII) a morte se divide em duas: de um lado, a morte ‘natural’,
pois tudo inevitavelmente irá terminar para este homem mortal; de outro lado, a morte ‘não-
43
natural’, inaceitável – que se pode atribuir a uma causa externa não natural (isto é: não
controlável). Desta forma, a morte natural se transforma rapidamente em uma aspiração do
homem moderno ocidental, que cultiva todos os meios para alcançá-la, principalmente através
da medicalização (seja para adiar o sofrimento ou para retardar a morte).
A partir dessa morte considerada como ‘natural’, o médico, inspirado na oposição
corpo/alma, desenvolve o seu novo conceito de doença, bem como novas formas para tratá-la;
a doença adquire o caráter de elemento exterior, ou seja, ela se transforma numa entidade
distante do homem, capaz de comportar um tratamento específico, descolado de outros
aspectos da integridade humana. A morte medieval foi deposta diante da medicina, e os
desígnios de Deus foram paulatinamente sendo substituídos pelas doenças mortais,
catalogadas e oficializadas pelo saber médico. A morte antiga diante da nova medicina,
começa a deixar de existir: “os médicos terão já substituído na cabeceira dos moribundos os
homens da Igreja e já estará largamente anunciada a morte quase integralmente laica do
século XX.” (RODRIGUES, 1983,p.158).
Cabe-nos, aqui, evidenciar justamente esse corpo, que não mais atende aos desígnios
celestes da Idade Média, mas tão somente aos propósitos da medicina que os utilizará para
constituir o seu saber, isso se faz necessário, porque irei mostrar adiante, que esses propósitos
de estendem dessa época até os momentos atuais, principalmente pelo conhecimento
psiquiátrico - determinante para o direcionamento de práticas voltadas para o cuidado em
saúde mental.
4.3 Sociologia do Corpo
De acordo com Le Breton (2002) podemos datar que no século XIX, se teve os
primeiros estudos sobre o corpo nas Ciências Sociais, em seu livro La Sociología del Cuerpo
considera que as reflexões sobre a corporeidade humana podem ser descritas em três
momentos históricos, quais sejam: uma “sociologia implícita do corpo”, “sociologia
detalhista” e no último momento uma “sociologia do corpo”. Segundo ele, desde os primeiros
estudos pode-se constatar uma tendência comum, todos de alguma forma voltam-se para o
corpo não só pelos fatores biológicos, mas o consideram como uma forma moldada pela
interação social.
A Sociologia considerada implícita pode ser exemplificada sob o ponto de vista de Le
Breton, através dos estudos de Villermé, Marx e Engels. Apesar do corpo não ter sido um
tema a parte naqueles estudos, ele foi abordado na medida em que a corporeidade se relaciona
44
aos indicadores vinculados à saúde pública e às condições de vida dos trabalhadores. Nesse
contexto, o mais importante era revelar a condição miserável das classes trabalhadoras no
contexto da Revolução Industrial, numa tentativa de aliviar o corpo dos trabalhadores que se
exauriam depois das horas de trabalho exaustivo, em suas jornadas diárias. A comprovação
implícita do caráter social da corporeidade desemboca, em uma chamada à realização de
reformas, ou de maneira mais geral, ao compromisso revolucionário.
Estudos como de Robert Hertz (1980) e Marcel Mauss (2003), são exemplos de
abordagens preconizam outras dimensões na abordagem do corpo, ou seja, não se limitam à
dimensão biológica do corpo.
Para colocar em pauta alguns dos princípios dessa corrente, hoje considerada
completamente limitada; considera-se que:
as diferenças sociais e culturais são provenientes do aspecto biológico, ou melhor,
dizendo, de um imaginário biológico, e assim naturalizam-se as diferentes condições
justificando através das observações científicas, como: peso do cérebro, ângulo
facial, fisionomia[...].” (LE BRETON, 2002, p.17).
Para essa corrente a ordem do mundo obedece a uma lógica biológica, por isso se
pesa, se mede, se corta, se classifica e se vai transformando os resultados em indícios de
degeneração, de inferioridade, e de criminalidade, por exemplo. Diante, desse aspecto
biologizante da vida, só restava ao homem se conformar, pois “o homem não pode fazer nada
contra essa ‘Natureza’ que o envolve” (LE BRETON, 2002, p.18). Aqui, as qualidades do
homem, são entregues e deduzidas à esquemas físico-corporais, ou seja, o seu próprio corpo
correspondia diretamente ao seu comportamento; sua aparência, portanto, um mero reflexo
desse esquema.
A Sociologia do corpo como foi descrita para o autor Le Breton, é o estudo da
“corporeidade humana como fenômeno social e cultural, matéria simbólica, objeto de
representações e de imaginários.” (LE BRETON, 2002, p.14).
A corporeidade tomada nesse sentido expressa a singularidade desse novo olhar nos
estudos sobre o corpo, uma vez que considera antes de tudo, uma incidência social sobre o
corpo. Sendo assim, o corpo – moldado pelo contexto social e cultural do ator – poderá, então,
ser entendido como uma manifestação objetiva do elo entre o indivíduo e a sociedade. Por não
estar isolado numa esfera pura e simplesmente biológica, o corpo abarca uma dimensão muito
maior, fato esse que revela que sua natureza não é indiscutível; precisa ser analisada
cuidadosamente para que não caiamos num erro, como disse Le Breton: “É um absurdo omitir
o homem que encarna o corpo”. (LE BRETON, 2002, p.25).
45
Ultrapassando os limites biológicos, já não se considera o homem como um produto
de seu corpo; ao contrário, ele agora é visto como o que produz as qualidades de seu corpo em
sua interação com outros homens. Essa Sociologia detalhista, como a chamou Le Breton,
marca avanços significativos nos estudos que abordaram a temática do corpo.
4.4 Corporeidade humana: fenômeno social e cultural
O texto de 1936, “As técnicas do Corpo”, pode ser considerado uma referência nos
estudos que abordam a temática do corpo e por isso, merece algumas considerações; seu
autor, Marcel Mauss, chama a atenção para o fato de que as técnicas corporais são específicas,
ou seja, são contextuais; assim muda-se o contexto e aquelas mudarão. Sendo a principal
expressão dos indivíduos, as técnicas do corpo - “as maneiras pelas quais os homens, de
sociedade a sociedade, de uma forma tradicional, sabem servir-se de seu corpo” – podem ser
vistas como elo entre o indivíduo e a sociedade. (MAUSS, 2003, p.401).
Mais do que um simples arranjo de movimentos físico-psiquícos, as técnicas corporais
são os reflexos sociais; na medida em que cada sociedade possui seus hábitos próprios terá,
por conseguinte, suas próprias técnicas corporais para os expressarem. Sob essa ótica, a
técnica é antes de tudo uma força educadora, mesmo porque para cada técnica há uma
aprendizagem, como disse Mauss ao citar o exemplo de se reconhecer a diferença da marcha
inglesa para a marcha francesa. O mesmo mecanismo que acionamos para ver essa distinção –
das marchas - é o mesmo que nos faz reconhecer a diferença de um doente para um doente
mental.
O que está subjacente à essa questão, é o que Cliffort Geertz chamou de redes sociais
– que compartilhamos socialmente. A questão se deve ao fato de que se eu compartilhar, eu
reconheço. É por isso que se eu não compartilhar os códigos e símbolos que são
disponibilizados socialmente não saberei a princípio nem reconhecer o que seja uma marcha,
bem como a diferença de indivíduos se movimentando; quanto mais saber o que seja uma
marcha francesa e uma inglesa. Sem os códigos sociais, nenhuma distinção seria possível.
Esse é o ponto; estudar uma técnica é também estudar os elementos que a formaram, ou
melhor, é conhecer o contexto em que elas se cristalizaram.
Para abordar a questão do que chama de idiossincrasia social, Mauss se utiliza da
palavra habitus, pois em sua opinião é infinitamente melhor para exprimir a hexis, o
adquirido, diga-se literalmente adquirido desde a infância – ‘Imitação Prestigiosa’. Esse
aprendizado varia não simplesmente como os indivíduos e suas imitações, variam “sobretudo
46
como as sociedades, as educações, as conveniências e as modas, os prestígios.” (MAUSS,
2003, p.404).
A criança como o adulto, imita atos bem sucedidos que ela viu ser efetuado por
pessoas nas quais confia e que têm autoridade sobre ela. O ato se impõe de fora, do
alto, mesmo um ato exclusivamente biológico, relativo ao corpo – Imitação
Prestigiosa (MAUSS, 2003, p.405).
É precisamente nessa noção de prestígio da pessoa que faz o ato ordenado,
autorizado, provado, em relação ao indivíduo imitador, que se verifica todo o elemento
social. O livro de Elsdon Best (1925) sobre a maneira de andar da mulher maori (Nova
Zelândia) é lembrado por Mauss para evidenciar que: “Era uma maneira adquirida, e não uma
maneira natural de andar. Em suma, talvez não exista “maneira natural” no adulto.”
(MAUSS, 2003, p.405). Este ao relativizar a maneira natural nos permitiu concluir, que não
existe maneira natural, pois toda maneira natural é a priori uma maneira social.
Ao fazer uma “enumeração biográfica das técnicas do corpo”, Mauss enfatiza o
processo do aprendizado das técnicas como uma etapa importante da vida e que será
definitiva em todas as outras na vida dos indivíduos. Dessa forma, o grande momento da
educação do corpo, é de fato, o da iniciação, iniciação das técnicas corporais, uma vez que
serão por essas técnicas que iremos apreender o elemento social da cultura que no qual
estamos inseridos.
O processo de iniciação ao aprendizado dessas técnicas, não precisa coincidir
necessariamente com a infância, mas é precisamente no momento em que as técnicas são
repassadas ao indivíduo que este processo se inicia. Nesse sentido, acrescento que podemos
entender as técnicas corporais como espelhos de regras e normas a serem cumpridas pelos
indivíduos. Outros dois processos podem ser compreendidos a partir desse enfoque: o
processo de socialização (através da transmissão e da adequação às técnicas do corpo) e o
processo de mortificação social (através da imposição ao cumprimento de normas específicas
que destroem a autonomia do indivíduo) – que acontece a todo indivíduo que passa algum
tempo dentro de uma Instituição Total.
4.5 Técnicas corporais e o Processo de Socialização
Por que estabelecemos a relação entre socialização, técnicas do corpo com o processo
de mortificação social? A priori, por defender a hipótese de que é através do corpo, ou mais
precisamente, das técnicas corporais que tanto a socialização quanto a mortificação
47
acontecem. E também, porque ambos são processos que acontecem por imposição social, de
fora para dentro, do alto para baixo, enfim, que são exteriores e coercitivos aos indivíduos;
para usar termos durkheimianos, e que agem diretamente nos corpos.
De acordo com o verbete sociológico do Dicionário Sociológico de Allan G. Johnson,
o processo de Socialização consta como sendo “o processo através do qual indivíduos são
preparados para participar de sistemas sociais.” (JOHNSON, 1997). A questão é que apesar
de sermos preparados para participamos de sistemas sociais, não significa que temos
consciência disso; o que em outras palavras pode ser entendido como: apenas aceitamos os
sistemas como se esses fossem naturais, que simplesmente é o que parece ser. Esse é o elo
com as técnicas corporais que gostaria de fazer nesse momento.
Nossos movimentos, nossos gestos, nossos ‘atos técnicos’ nos parecem sem
significados e por isso, se tornaram pura e simplesmente naturais; os naturalizamos e ponto
final. Esquecemos, entretanto, que neles estão incluídos uma gama de símbolos, sistemas de
idéias e significados sociais que estão imersos nos corpos dos indivíduos, tenham eles
consciência disso ou não.
Acontece que o processo de socialização (ou endoculturação) por que passam as
pessoas, desde o momento em que nascem até a hora em que morrem, é que os propicia,
através da educação, essa naturalização inconsciente de seu próprio corpo, ou melhor, de suas
técnicas corporais. Ora, se o homem aprende essas técnicas corporais, será com ela mesmo
que ele orientará seu universo simbólico, social, cultural e econômico. Sob essa ótica, a
socialização irá ao encontro dos papéis sociais que o indivíduo vai adquirindo ao longo da sua
vida; portanto, em cada momento um papel social a cumprir e uma técnica corporal específica
que assegure esse papel.
Erving Goffman, em seu livro Internados (1994), estudou justamente o
comportamento dos indivíduos numa Instituição Total – expressão cunhada por ele – para
mostrar um cenário em que nele acontece uma espécie de ressocialização dos indivíduos que
ali são inseridos. Num espaço como este, o indivíduo passa por um processo do que ele
chamou de “mortificação social”, uma vez que nesse espaço, o indivíduo vai perdendo toda a
sua singularidade, particularidade e se tornando um indivíduo impotente diante de todo o
controle e rigor da equipe dirigente.
Não se trata de um aspecto, estático e determinante, se mudarmos o contexto, esse
mesmo indivíduo terá outro papel, e outras técnicas corporais a utilizar; exatamente é o que
ocorre quando o indivíduo está numa Instituição Total e também quando, por exemplo, está
fora dela.
48
Coisas aparentemente naturais para nós são históricas, interessante é perceber que são
históricas porque são sociais, nesse sentido qualquer simples adaptação a um objetivo físico,
mecânico e químico deve ser pensado não somente por esferas de caráter mecanicista; devese considerar a adaptação de acordo com o seu contexto social, uma vez que ela: “[...] é
efetuada numa série de atos montados, e montados no indivíduo não simplesmente por ele
próprio mas por toda sua educação, por toda a sociedade da qual faz parte, conforme o lugar
que nela ocupa”. (MAUSS, 2003a, p.408).
Esses ‘atos montados’ devem ser entendidos como: ato técnico, ato físico, ou mesmo
ato mágico-religioso que o indivíduo realiza em sua vida cotidiana, seja em função do
trabalho, do estudo, do lazer, ou de qualquer momento que não possua especificidade alguma;
de outro modo, são simplesmente atos que os indivíduos, aliás, todos os indivíduos realizam
em sua vida, independente dos seus diversos fins que venham a ter. Todos esses atos, esses
modos de agir, são técnicas do corpo; nesse sentido, técnica é considerada como o sinônimo
de um ato tradicional eficaz.(MAUSS, 2003a, p.407)
Essas técnicas corporais são variáveis, elas se dividem e variam seja em virtude do
gênero ou da faixa etária do indivíduo, por exemplo. A questão, não é tanto pela diferença
com que uma pessoa faz determinado gesto e não outro, mas sim conhecer as tradições que
impõem isso; conhecer essas tradições é o mesmo que dizer conhecer o contexto em que elas
aconteceram.
Para Mauss, o corpo é o primeiro e o mais natural objeto técnico do homem, e será
através desse corpo que todas as técnicas serão, por um lado ensinadas e por outro aprendidas.
A forma como são transmitidas e absorvidas estão intrinsecamente ligadas ao contexto
específico em que às mesmas aconteceram. Portanto, a educação das técnicas é mister nesse
processo, ela consiste em “fazer adaptar o corpo a seu uso”, em adestrar o homem e assim,
impor a este mesmo homem um conjunto de atitudes que serão permitidas ou não.
Independente da técnica corporal, estamos “diante de montagens físio-psicosociológicas de série de atos”. Essas séries são montadas “pela autoridade social e para
ela”. Contudo, em suas considerações finais acerca das técnicas do corpo, Mauss, atenta para
o fato de que não se poderá ter uma visão clara dessas montagens, desses atos senão fazendo
intervir uma tríplice consideração: é o tríplice ponto de vista, o do Homem Total, que é
necessário: biológico, sociológico e psicológico (MAUSS, 2003a, p.405). Fica evidente,
portanto, que a relação do indivíduo e de sua sociedade é que permeia todo esse aparato de
invenções e intervenções no comportamento dos homens.
49
Outro texto, também de Mauss é significativo nessa questão - “Efeito Físico no
indivíduo da idéia de morte sugerida pela coletividade”. Ao abordar casos de morte na
Austrália – Nova Zelândia, o autor deixa explícito que fatos como o sugestionamento coletivo
da “idéia de morte” revela a ligação direta entre o físico, o psicológico e o moral, isto é, o
social. (MAUSS, 2003b).
Considerando somente os casos em que o sujeito que morre não se crê ou não se sabe
doente, Mauss conclui que a consciência desses indivíduos é invadida por sentimentos de
origem coletiva, e que, portanto não revelam nenhum distúrbio físico; desta forma, deslocado
todo o sentido da morte ou doença à questão corporal.
A questão central do texto é o equilíbrio ou ruptura do indivíduo em relação ao grupo
que está inserido. Para nós, o que importa sobre os casos de morte (por sugestionamento
coletivo) é que eles evidenciam uma conexão entre o fator orgânico e social de modo que não
podemos separar um do outro quando queremos compreender a relação do indivíduo com o
grupo que está inserido. “... só a consideração do psico-orgânico não é suficiente; a
consideração do social é necessária” (MAUSS, 2003b, p.364).
Outro autor, também contribui para mostrar os limites do enfoque puramente
fisicalista. Robert Hertz abordou a questão da proeminência da mão direita nas sociedades
humanas, comprovou que os canhotos eram estatisticamente menos numerosos que os destros.
Para cada 100, 2 eram canhotos. As razões fisiológicas são secundárias quando se observa o
obstáculo cultural formado pelas representações sempre negativas associadas à mão esquerda
e positivas à mão direita. A oposição não é somente física, mas também moral: a esquerda
implica deformação, e a direita o certo. Apesar de não ter dirigido sua argumentação a teoria
darwiniana, ele comprova os limites do enfoque biológico.
Compartilhando com Mauss, Le Breton e Hertz, nós concluímos que o fisiológico está
subordinado à simbologia social; esse é o ponto que nos interessa. Não basta simplesmente
conhecer e compreender o quadro clínico de um usuário do CAPS, precisamos entender
também qual o significado dessa condição no contexto sócio-cultural em que ele está inserido.
4.6 Corpo Socializado e Corpo Vivido : Habitus e Embodiment
Convergindo com a problemática que foi delineada, até então – a de se pensar o corpo
(sobretudo como um fenômeno sócio-cultural), cabe explicitarmos nossas escolhas
epistemológicas que fluíram rumo a articulação de duas vertentes importantes na interpretação
50
do corpo: a noção de embodiment – corpo experenciado e a noção de habitus – corpo
socializado.
A compreensão da relação entre o indivíduo e sua cultura, poderá ser pensada através
da abordagem do tema do corpo como meio de construção da pessoa ou na abordagem da
experiência vivida do corpo, na sua experiência cotidiana, ou para expressá-lo de outro modo,
no corpo experimentado.
O projeto de se pensar a “experiência” a partir de uma reflexão sobre o corpo teve em
Maurice Merleau-Ponty seu grande expoente; sua obra Fenomenologia da Percepção (1945)
se tornou um marco nas discussões sobre embodiment nas Ciências Sociais. Sua abordagem
não se dá a partir de um corpo constituído, mas de um “corpo vivido”, experenciado – de serno-mundo – que habita o mundo, ou seja, que estabelece relações. “O corpo é o veículo do ser
no mundo, e ter um corpo é, para um ser vivo, juntar-se a um meio definido, confundir-se com certos
projetos e empenhar-se continuamente neles.” (MERLEAU-PONTY, 1999, p.122).
O corpo é o fundamento de nossa experiência no mundo, dimensão mesma de nosso
ser, lócus de onde emanam e onde são armazenadas nossas experiências, portanto, não é
simplesmente matéria inerte ante o espetáculo da cultura, é "corpo vivido".
A análise do que poderíamos chamar de "experiências" do corpo dá-nos a
possibilidade de uma compreensão do relacionamento do indivíduo com o seu corpo,
alavancando-nos para uma reflexão maior: a que se refere ao processo de encorporação, que
transforma em invisível toda ação simbólica que perpassa o sujeito.
Thomas Csordas, no texto Palavras dos seres sagrados: um estudo de caso em
fenomenologia cultural (1994) trabalha com a perspectiva de uma Antropologia da imediatez,
pois toma o mundo no sentido do concreto, do vivido. Este autor considera que existem
determinados fenômenos que não podem ser explicados pelo paradigma da representação,
uma vez que existe uma dimensão da vida social que é vivida através do corpo e que não
passa pela representação; é o caso quando o indivíduo está em transe e fala línguas. Para
Csordas, não se trata de uma representação (pois não passa pela consciência), o importante é a
fala imediata - porque ela significa alguma coisa para o grupo.
Em favor de um entendimento experencial do estar-no-mundo, Csordas defende que o
social e o cultural vão estar em nós de uma forma pré-objetiva, pois nossa forma de estar no
mundo é corporal e cultural. O ponto central de seu trabalho é a existência corpórea e o fato
51
de que o social que carregamos em nosso corpo é anterior a qualquer objetivação. Este
argumento é demonstrado em particular no caso de Dan4:
Seguindo esta linha, nosso argumento no caso de Dan sugere que pode fazer sentido
considerar a verbosidade não como um traço da personalidade fundamentado na
alteração neuroatômica mas como uma estratégia adaptativa que emerge
espontaneamente de uma síntese corpórea pré-objetiva. (CSORDAS, 1994, p.14).
Sua perspectiva, no entanto, é contrária à perspectiva de Merleau-Ponty, pois que
Csordas considera que a teoria daquele está condenada por "tratar o social como um objeto ao
invés reconhecer que nossos corpos carrregam o social por todos os lados inseparavelmente
conosco antes de qualquer objetivação." (CSORDAS, 1994, p.14).
É notório salientar, sob a ótica de Csordas, a existência de uma dimensão da vida em
sociedade que é vivida através do corpo, que não passa pela consciência. Em consonância a
isto que afirmamos que o corpo é nossa forma de estar no mundo.
O fundamento de tudo isto se faz na medida em que o corpo não é simplesmente um
invólucro fisicalista - o que não significa dar cabo à esta dimensão - mas evidenciar seu
sentido cultural intrínseco à experiência corporificada no nível existencial do estar-no-mundo.
Essa questão, também foi discutida por Miriam Cristina Rabelo e Paulo César Alves,
mais precisamente no capítulo “Corpo, experiência e cultura" extraído do livro "Tecnologias
do Corpo: uma antropologia das medicinas no Brasil (2004); segundo os autores uma onda de
estudos sobre o corpo está se intensificando como resultado da intensa exposição e exploração
que a nossa sociedade mantém em relação ao corpo, além de conduzir necessariamente à um
"repensar das relações entre natureza e cultura que poderíamos, grosso modo, como marcado
por uma tentativa de explorar mediações."(RABELO; ALVES, 2004, p.175).
Imiscuída no corpo, a subjetividade já não pode mais ser entendida como espaço
bem demarcado de existência pessoal... No corpo, encontramos uma dimensão de
existencial social anônima, pré-pessoal, que nos remete para a esfera do hábito
arraigado, da ação irrefletida, de aspirações não articuladas e disposições
sedimentadas e dificilmente acessíveis à reflexão. (RABELO e ALVES, 2004,
p.175).
Na mesma direção, Pierre Bourdieu expõe sua teoria sobre o corpo ao falar de um
senso corporificado do jogo social que opera sem passar pela consciência do indivíduo. Desta
forma, as experiências adquiridas no jogo social se transformam em esquemas corporais que
4
Caso de Dan: caso de um jovem paciente com câncer no cérebro, que teve sua capacidade lingüística afetada
após uma cirurgia.
52
expressam a modalidade singular do ser no mundo enquanto membro de uma tradição, de
uma cultura, de uma classe. O corpo, nesse contexto "corpo socializado", é a síntese das
situações vividas pelo sujeito; é assim que Bourdieu concebe o habitus - corpo socializado.
Está certo que não são as condições objetivas que causam as práticas, ou vice-versa; entre
uma e outras temos o habitus, o mediador que faz com que práticas e idéias de dado sujeito
pareçam sensatas e razoáveis. Ele - habitus - é o princípio gerador das práticas e, em sua
relação com o repertório total de práticas sociais, o princípio unificador (BOURDIEU, 1987).
O conceito de habitus faz a ligação entre estrutura e agente, coordenando as ações
sociais: ele, traduz os conceitos abstratos de classe e os transforma em atitudes, em ações
concretas. Existe uma rede objetiva de regras que pré-dispõem os indivíduos nas suas
escolhas, decisões e práticas, inclusive, no que tange às interações sociais entre os homens.
Não obstante, o habitus não é imutável e mudando o campo - o lugar onde aquelas interações
acontecem, o habitus mudará.
Forma particularmente ejemplar del sentido práctico como ajuste anticipado a las
exigencias de un campo, lo que el lenguage deportivo lhama el "sentido do juego"...
da una idea suficientemente exacta del encuentro cuasi-milagroso entre el habitus y
un campo, entre la historia incorporada y la historia objetivada, que hace posible la
antecipación cuasi-perfecta del porvenir inscrito en todas las conficguraciones
concretas del juego." (BOURDIEU, 1991, p.113)
Löic Wacquant em "Seguindo Pierre Bourdieu no campo" aborda duas questões: o
conceito de campo, que como outrora salientado, corresponde ao espaço de lutas, ou melhor,
onde se dão os conflitos nas interações sociais; e o conceito de habitus, ressaltando que ambos
são relacionais. Wacquant mostra que Bourdieu rompe com o estruturalismo quando desloca
justamente o problema da estrutura para a estratégia, ou seja, a partir do pressuposto de que
cada um de nós faz uso do mundo do corpo pelo habitus encorporado, deixa explícito que
habitus e corpo são inseparáveis.
[...] além de ter permitido iniciar o corte decisivo com o paradigma estruturalista,
deslocando o seu foco analítico "da estrutura para a estratégia", da álgebra mental
mecânica das regras culturais para a fuída ginástica simbólica dos corpos
socializados.(WACQUANT, 2006, p.14).
A proposta sociológica especificamente sobre o corpo em Bourdieu é um referencial
importante nessa pesquisa, primeiro porque permite-nos pensar a produção do corpo com base
na história incorporada pelas disposições e segundo, porque nos possibilita entender a
corporificação da história, ou seja, a internalização desta nos corpos dos indivíduos.
53
O corpo é nesse sentido, mais do que um meio para se chegar ao conhecimento das
práticas que estão imersas no cotidiano dos sujeitos, é a própria vivencia do sujeito no mundo.
Dentro do CAPS, esse corpo, é mais que um corpo, é um sujeito que historicamente carrega
dentro de si os dispositivos da Reforma Psiquiátrica. Quando olhamos e vemos esses corpos
na instituição, estamos diante da manifestação da introjeção desses dispositivos que marcam o
modo como esses pacientes vivenciam a Reforma, de fato, no seu cotidiano.
Em consonância com Bourdieu, afirmamos que a linguagem corporal é também uma
marcadora de distinção social entre os indivíduos, que se estende desde a forma de
apresentação – incluindo o consumo de vestuário, artigos de beleza, higiene e de cuidados até a própria manipulação desse corpo; que se traduzem em maneiras de distinguir-se dentro
de um mesmo universo social.
O corpo é a mais irrecusável objetivação do gosto de classe, que se manifesta de
diversas maneiras. Em primeiro lugar, no que tem de mais natural em aparência, isto
é, nas dimensões (volume, estatura, peso) e nas formas (redondas ou quadradas,
rígidas e flexíveis, retas ou curvas, etc...) de sua conformação visível, mas que
expressa de mil maneiras toda uma relação com o corpo, isto é, toda uma maneira de
tratar o corpo, de cuidá-lo, de nutri-lo, de mantê-lo, que é reveladora das disposições
mais profundas do habitus". (BOURDIEU, 1988, p.188).
No trabalho de campo, essa linguagem corporal se fez de forma nítida para mim, na
medida em que eu não precisei ver exame clínico nenhum para conseguir identificar e
distinguir quem eram os usuários e que eram os profissionais que ali estavam trabalhando.
Isso me foi possível, devido às disposições sociais incorporadas nos pacientes, porque como
Bourdieu bem aponta, existe um habitus específico, que define e caracteriza os indivíduos e
que se dispõe para nós de forma imediata.
Para entender esse habitus, é preciso entender onde ele se dá, onde ele é construído,
nesse sentido, Bourdieu nos propõe uma filosofia da ação (que ele chama de disposicional),
cujo eixo central é a relação entre as estruturas objetivas e as estruturas incorporadas
(baseados pelos conceitos de habitus e campo. O conceito de campo, mostra-se fundamental,
já que é entendido como espaço onde se trava uma luta concorrencial entre os agentes em
torno de interesses específicos (capitais específicos):
É isso que acredito expressar quando descrevo o espaço social como um campo, isto
é, ao mesmo tempo, como um campo de forças, cuja necessidade se impõe aos
agentes que nele se encontram envolvidos, e como um campo de lutas, no interior do
qual os agentes se enfrentam, com meios e fins diferenciados conforme sua posição
na estrutura do campo de forças, contribuindo assim para a conservação ou a
transformação de sua estrutura. (BOURDIEU, 2005, p.50).
54
Sendo assim, o CAPS pode ser entendido enquanto um novo espaço social e político,
já que é referenciado pelos interesses dos agentes que o integram e que vão direcionar as
práticas de saúde que estão em agenciamento e que definem este ou aquele perfil assistencial.
Entender o corpo nesse espaço social, é entender as práticas que moldam o cuidado no CAPS,
pois enquanto um ‘campo’ determina certas condições sociais e históricas específicas,
moldando o indivíduo, inscrevendo-lhes valores, significados e também regras de conduta
dentro da instituição.
Sem esses conceitos, nosso estudo certamente perderia o sentido, já que nossa
proposta inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo enquanto um analisador
capaz de revelar as práticas de cuidado instituídas no cotidiano da instituição a partir dos
encontros, das relações de afecção que ocorrem entre os diversos sujeitos da instituição;
relações essas que passam, perpassam e atravessam os corpos dos usuários e dos
trabalhadores.
Se por um lado temos os aspectos macros (econômicos, sociais, políticos) que definem
em grande medida a organização dos serviços; por outro, temos os processos que ocorrem
micropoliticamente, onde efetivamente ocorre a produção de cuidado a saúde e que marcam o
perfil assistencial da instituição. No próximo capítulo, irei evidenciar justamente de que modo
esses processos micropolíticos ocorrem dentro da instituição e que afetam os encontros entre
os corpos no CAPS, sob a luz de dois conceitos: ‘Trabalho Vivo em Ato’ e ‘Teoria da
Afecção’.
5 REFERENCIAL TEÓRICO SOBRE AS PRÁTICAS DO PROCESSO DE
TRABALHO EM SAÚDE
5.1 O Trabalho Vivo em Ato
Parte-se do pressuposto de que o trabalho, como qualquer outra atividade humana é
um ato produtivo, que potencialmente pode modificar e produzir algo novo na natureza, mas
também em nós mesmos. Como o trabalho é orientado social e coletivamente, ele está
implicitamente ligado à ação intencional do trabalhador, influenciando assim nos meios e
modos de se trabalhar e realizar determinada ação.
Nessa efetivação do trabalho propriamente dito, pode-se dizer que na saúde, o
trabalhador utiliza de determinadas ferramentas ou valises tecnológicas para realizar o seu
trabalho, uma vez que:
55
Estas valises representam caixas de ferramentas tecnológicas, enquanto saberes e
seus desdobramentos materiais e não-materiais , que fazem sentido de acordo com
os lugares que ocupam naquele encontro e conforme as finalidades que o mesmo
almeja. (Merhy, 2000, p.02).
Segundo Merhy (2000) existem três tipos de valises que podem ser utilizadas pelo
trabalhador em saúde: uma vinculada a sua mão e na qual cabe, por exemplo, algum
equipamento (como um estetoscópio) e que se expressa pela tecnologia dura; outra que está
na sua cabeça na qual os saberes encontram-se estruturados (como a clínica e a
epidemiologia) e que se expressam por tecnologias leve-duras; e por fim, uma outra, que está
presente no espaço relacional que se dá entre trabalhador-usuário, e que se expressa por meio
das tecnologias leves. Por conta da variação que pode surgir em função da utilização pelo
trabalhador de um dos três tipos de valises, nenhum trabalho será igual à outro trabalho,
principalmente quando olhamos para tais valises sob a ótica da micropolítica
e da
singularidade implicada nos processos de trabalho.
Vale que o cuidado de fato se produz a partir da ação dos sujeitos (entendidos
individual ou coletivamente), por meio dos encontros estabelecidos entre trabalhadores e
usuários, que são nesse sentido, os destinatários finais de toda a lógica produtiva em seus
espaços micropolíticos de atuação.
Na saúde, em particular esses processos se realizam por meio do “trabalho vivo em
ato”, pois é um trabalho que acontece no momento em que a produção do cuidado está se
dando. Sua variação decorre da forma em que essa interação está se construindo no espaço
relacional entre trabalhador-usuário, ou seja, vai depender da maneira em que os
instrumentos, as normas e as tecnologias estiverem sendo usadas pelo trabalhador em ato.
Os distintos modelos de atenção variam nesta situação relacional. Mas sem dúvida, a
valise que, por suas características tecnológicas próprias permite reconhecer, na
produção dos atos de saúde, uma situação de permanente disputa em aberto de jogos
de captura, impossibilitando que as finalidades e mesmo os seus objetos, sejam de
uma única ordem, é a valise do espaço relacional trabalhador–usuário. Os processos
produtivos em saúde, que ocorrem neste espaço, só se realizam em ato e nas
interseções do médico e do usuário. É este encontro que dá, em última instância, a
singularidade do processo de trabalho do médico enquanto produtor de cuidado.
(MERHY, 2000, p.03)
Entende-se então que a produção da saúde está diretamente vinculada ao trabalho
humano, configurado em Trabalho Vivo em ato, já que esse acontece no exato momento da
sua atividade criativa, como nos é demonstrado na tese 07 do Livro Salud: cartografia Del
trabajo vivo por Emerson Merhy:
56
TESIS 7 – El trabajo en salud está centrado permanentemente, en el trabajo vivo em
acto, un poco a semejanza con el trabajo en educación. Además, actúa distintamente
de otros procesos productivos en los cuales el trabajo vivo en acto puede y debe ser
encuadrado y capturado globalmente por el trabajo muerto y por el modelo de
producción. (MERHY, 2006, p.19).
Se caracteristicamente o trabalho em saúde é “trabalho vivo em ato”, ele também é
marcado por disputas de capturas por diversas lógicas sociais, que procuram direcionar a
produção das ações de saúde conforme os interesses dos protagonistas envolvidos no
processo. Dessa forma, sempre haverá nesse espaço de disputa, forças que operam em ato e
que definem as tecnologias em saúde que serão utilizadas pelo trabalhador no momento que
nesse processo produtivo acontece. Passemos então às especificidades dessas tecnologias.
5.2 Tecnologias em Saúde
Tecnologias em Saúde não são entendidas aqui apenas por equipamentos e máquinas,
mas sobretudo pelos saberes que são constituídos na produção de cuidado decorrente da
organização das ações humanas nos processos produtivos, inclusive em sua dimensão
subjetiva. Conforme as considerações anteriores, é particularmente por esse sentido que o
trabalho em saúde, ‘vivo em ato’ não pode ser compreendido apenas pela lógica do trabalho
morto (expressado nos equipamentos e nos saberes tecnológicos), pois seu objeto se configura
em processos de intervenção no ato, que operam a partir de tecnologias relacionais, ou seja,
de encontros de subjetividades.
Segundo classificação proposta por Emerson Merhy (1997, 2006), as tecnologias que
envolvem o trabalho em saúde se dividem em: tecnologias leves, leves-duras e duras; contudo
esclarece-se que em todo processo de saúde se tem a presença dessas três tecnologias. O que
irá sublinhar qual é o modo de produção de cuidado que se estabelece na Instituição é o tipo
de tecnologia que está predominando. Modelos alternativos ao procedimento-centrado,
invertem a correlação da tecnologia ao preconizar o uso central das tecnologias leves em
contraposição ao modelo tradicional que utiliza preponderantemente das tecnologias leve-dura
e dura, deixando assim àquela tecnologia como subsidiária, ou seja, secundária ao trabalho em
saúde, pois considera o aspecto relacional como um simples fator.
[...] las tecnologías envueltas en el trabajo em salud, pueden ser clasificadas
como: blandas(como el caso de las tecnologias de relaciones del tipo de
producción de vínculo, autonomización, acogimiento, géstion como una
forma de gobernar procesos de trabajo), blandas-duras (como el caso de
saberes bien estructurados que operan em los procesos de trabajo en salud...)
57
y duras (como el caso de equipamientos tecnológicos del tipo máquinas,
normas, estructuras organizacionales.” (MERHY; 2006, p.19).
A questão que concerne à essa perspectiva é então a de saber qual modelo de
tecnologia está operando o trabalho vivo em ato, que se expressa como processo de produção
de relações intercessoras. Compreender esses modelos tecnológicos e assistenciais que se
desenvolvem nos permite captar a dinâmica do modelo de cuidado que a instituição promove.
TESIS 14 – La efectividad de la tecnología blanda del trabajo vivo en acto en La
salud, se expresa como proceso de producción de relaciones intersectoras, en uma de
sus dimensiones claves, que es su encuentro con el usuario final, que en última
instancia, “representa” necesidades de salud como su intencionalidad, que puede,
por tanto, con su interés particular, “publicizar” las distintas intencionalidades de los
varios agentes que envuelve el trabajo en salud.
TESIS 15 – Es en este encuentro del trabajo vivo en acto con el usuario final, que se
expresan algunos componentes vitales de la tecnología blanda del trabajo en salud:
las tecnologías articuladas a la producción de los procesos intersectores, las de lãs
relaciones que se configuran, por ejemplo, por medio de las prácticas del
acogimiento (o recibimiento?), vínculo, autonomización, entre otras.( (MERHY,
2006, p.20).
As configurações que podem aparecer por conta dessas tecnologias marcam um
espaço em que a intencionalidade do trabalhador no trabalho vivo tem um papel central, pois
tem uma impactação no modo produtivo do cuidado. Esse tipo de consideração tem sentido
para nós, pois nos baseamos na premissa de que: para saber se houve mudança no CAPS, nós
temos que analisar o funcionamento da práxis do trabalhador; porque será aí que
encontraremos as práticas, a intencionalidade e as valises tecnológicas que o trabalhador se
utiliza no processo de gestão e produção de cuidado. De outro modo, analisar essa práxis
significa analisar o modo de produção de cuidado que está em agenciamento.
O mesmo autor sublinha que as relações entre os sujeitos e o agir cotidiano no cenário
em que se dá a produção do cuidado, configura então, o que se pode chamar de “micropolítica
do trabalho vivo em ato”. De acordo com esse ponto de vista, o espaço onde se produz saúde,
deve ser entendido também como um espaço social, no qual se realizam os desejos e onde
ocorrem os processos de intersubjetividade, que estruturam a ação do sujeito trabalhadorusuário.
O processo de captura do trabalho vivo, das práticas adotadas no plano da
micropolítica, nos permite mergulhar nas ações dos diversos sujeitos envolvidos no processo
de cuidado. Face à isso, relacionamos suas ações com o tipo de cuidado estabelecido; pois o
trabalho é uma atividade de criação na medida em que o cuidado em saúde não é algo natural,
mas uma produção humana; decorre que pode-se ter nesse sentido vários tipos de cuidado: um
58
cuidado do tipo cuidador, um cuidado não-cuidador, um cuidado sumário, um cuidado
baseado no procedimento.
Concluí-se então que ao analisar o trabalho desenvolvido no CAPS, terei analisado
também o tipo de cuidado que está sendo produzido nesse espaço social, pois o trabalho vivo
(como apontado anteriormente) tem uma potência instituinte que está diretamente imbricada
na ação do sujeito em acionar justamente essa potência, seja em termos de saberes, de
instrumentos, relações e do trabalho em si utilizado.
5.3 A Subjetividade do trabalhador em Saúde
Existe uma produção subjetiva do cuidado em saúde que não pode ser desconsiderada
quando se pretende analisar os serviços de saúde, isso se deve ao fato de que dentro de uma
mesma equipe de trabalhadores pode-se ter atuações singulares na produção do cuidado, já
que trabalhador na hora em que está operando o cuidado, atua de uma forma diferente, mesmo
que tenham que seguir a mesma diretriz normativa da instituição. Isso nos mostra o quanto as
práticas de cuidado são mediadas pela singularidade de cada um atuando na construção de um
socius, de um microcosmo em que cada um está inserido e de onde opera micropoliticamente.
A produção subjetiva do cuidado nesse contexto está sempre em movimento, na
medida em que está constantemente se constrói e reconstrói os territórios existenciais, a partir
dos fluxos de intensidades contínuas entre os sujeitos que atuam na construção da realidade
social.
En el caso específico de La salud, las conexiones entre los diversos procesos de
trabajo que se realizan entre trabajadores-trabajadores y trabajadores-usuarios
pueden formar un campo energético, invisible, que funciona em flujos circulantes
que envuelven al cuidado em acto y configuran "líneas de vida" o "líneas de
muerte", según si el encuentro trabajador-usuario produce acogimiento, vínculo,
autonomía, satisfacción, o un modo de actuar que se manifieste de forma acotada,
burocrática, produciendo heteronomía, insatisfacción. Dependiendo de La situación
existente habrá un aumento o reducción de la potencia de actuar.(FRANCO;
MERHY, 2011, p.04).
Compreender essa dimensão subjetiva do cuidado se torna fundamental para
entendermos de que forma os fluxos circulantes que evolvem o cuidado estão se produzindo.
O aspecto relacional impulsionado pelo trabalho vivo em ato, constitui-se como um
campo rico e que deve ser explorado nas investigações acerca da produção de cuidado que se
tem na Instituição.
59
Esse processo relacional é impulsionado pela liberdade imanente ao Trabalho Vivo
em ato, e vai operando relações em fluxos de alta intensidade no interior do processo
de trabalho. Esses fluxos fazem com que haja conexão entre os muitos
trabalhadores, pessoas e coisas, que se colocam no plano do processo de produção
do cuidado e são partes constitutivas dele. (FRANCO et al, 2009, p.27)
Portanto, o perfil assistencial de uma instituição não é determinado pelo espaço físico
onde se realiza o cuidado (ele pode interferir, mas não determina), e sim pelo espaço social,
pelo território no qual o trabalhador se engaja como sujeito ético-político, o qual o acompanha
onde ele estiver operando seu processo de trabalho. Será então, a partir do entendimento das
subjetividades operantes que poderemos ter por conseguinte o entendimento do modo de
produção do cuidado em agenciamento no CAPS, isto porque o entendemos o modo de
produção como um acontecimento autopoiético.(MERHY, 2006).
Essa correlação será
evidenciada logo a seguir.
5.4 O Modo de Produção de Cuidado – como um acontecimento Autopoiético.
Como apontado anteriormente, partimos da premissa de que nos processos relacionais
entre sujeitos, sejam eles individuais e/ou coletivos há uma micropolítica operando nos
encontros desses sujeitos e que vão revelar no ‘trabalho vivo em ato’ qual o modo de
produção do cuidado que está em agenciamento no CAPS. Trabalhando com o conceito de
autopoiese desenvolvido por Maturana e Varela (MATURANA e VARELA, 1995) e
compartilhando com a perspectiva de Merhy, acreditamos também que esse modo de
produção de cuidado deve ser entendido enquanto um acontecimento autopoiético. (Merhy,
2006).
Para compreender partes desta cartografia lanço mão da noção de autopoiese, que
me ajuda a compreender um pouco mais os vários processos constitutivos das ações
nos encontros, como no caso da relação entre aquele que cuida e aquele que é
cuidado. Dimensão típica do campo da saúde. (MERHY, 2006, p.76).
A noção de autopoiese – termo cunhado na década de 70, pelos biólogos chilenos,
Humberto Maturana e Francisco Varella, quando descreveram o movimento de uma ameba.
Esse conceito surgiu da combinação do prefixo grego auto –si mesmo e do radical poiesis –
criação, produção, que tem como caráter inovador a proposta de se pensar nos seres vivos
como estando em constante processo de si, e incessante engendramento de sua própria
estrutura. (KASTRUP, 1995).
60
Para Maturama, falar de autopoiese, não significa falar necessariamente de autoreferência, mas sim, é falar dos processos, os quais, quando se dão e se constituem, vão
formando o ser vivo como uma unidade, “[...] os seres humanos se caracterizam por
literalmente, produzirem-se continuamente a si mesmos – o que indicamos ao chamarmos a
organização que os define de organização autopoiética”. (MATURANA e VARELA, 1995,
p.84).
A partir da concepção de autopoiese, utilizada para definir os seres vivos como
sistemas que produzem continuamente a si mesmos, porque conseguem recompor
continuamente os seus elementos para sua sobrevivência, concluímos então que esses
sistemas são produtos e produtores ao mesmo tempo. Lógica essa que será fundamental para o
nosso ponto de vista em relação aos serviços de saúde. Porque o entendemos também como
sistemas complexos que se recompõem o tempo todo face a diversos campos que vão se
constituindo dentro da esfera do que podemos chamar de cuidado.
Será por conta desse constante processo de si e desse incessante engendramento que
acreditamos ser possível pensar no modo de produção de cuidado enquanto um corpo
autopoiético; que faz e se re-faz, que se territorializa e se desterritorializa, o tempo todo, tal
como o cuidado que está sendo constantemente agenciado na instituição, a partir de novas
formas de configurações entre o instituído e o instituinte, ou seja, entre o plano molar e o
plano molecular e entre os diversos sujeitos.
Esse acontecimento autopoiético, que está em constante agenciamento no CAPS, visto
sob a ótica da subjetividade - deve ser entendido então enquanto um processo, que vai se
constituindo na relação do sujeito, do objeto e do meio na qual se inscreve, a partir do qual as
relações de afetamento também vão se constituindo e vão imprimindo um determinado modo
de cuidado na instituição.
Tal como a autopoiese - o movimento da vida produzindo a vida, entendemos o modo
de produção de cuidado, ou seja, entendemos o movimento autopoiético, como o movimento
do cuidado que também produz o próprio cuidado; assim acreditamos que entender como esse
cuidado está sendo produzido é - para nós - compreender a movimentação desse corpo
autopoiético no CAPS. Compreender essa movimentação, é essencial para entendermos os
diversos mecanismos que são acionados no momento em que o processo de cuidado está se
dando, primeiro porque, segundo Merhy, todo serviço de saúde está vinculado a processos
produtivos de atos cuidadores, e segundo, por não podermos separar estes atos dos processos
de trabalho, das relações que se desenvolvem micropoliticamente a partir dos encontros entre
os sujeitos que estão na instituição.
61
Como todo serviço de saúde está vinculado a processos produtivos de atos
cuidadores, creio que o melhor modo de tentar entender tanto sobre um
estabelecimento de saúde, quanto o cuidado, é debruçando- se sobre os seus
processos de trabalho e as ações que revelam os jogos de intenções que os mesmos
contém, suas redes agenciais protagonistas e as modelagens tecnológicas que as
realizam, para se poder desvendar a maneira pela qual estão implicados, enquanto
uma organização e uma matriz institucional. Isto é, como se constituem enquanto
“lugares” de relações, de micropolíticas de encontros e de jogos de poder entre
“sujeitos” concretos. (MERHY, 2004, p.07).
O cuidado enquanto um acontecimento autopoiético, se define a partir dos encontros
micropolíticos entre quem cuida e quem é cuidado. Entender o modo de produção de cuidado
- esse acontecimento autopoiético é entender como os sujeitos se afetam e estão sendo
afetados na instituição, é o que Espinosa designou de cartografia de um corpo, já que estamos
correlacionando tanto a capacidade de aumentar, quanto a capacidade de diminuir a potência
do sujeito com esse acontecimento autopoiético que se produz e re-produz na instituição; eis
pois nosso objetivo com essa pesquisa.
5.5 Relação de afecção
A relação de afecção entre os trabalhadores e usuários do CAPS, ou seja, a afecção
entre os corpos desses sujeitos, para melhor enfatizar o ponto de vista aqui discutido, será
mister para compreendermos os afetos que são produzidos a partir dessas interações que
ocorrem inevitavelmente dentro dos CAPS e que vão imprimindo uma certa identidade
subjetiva e um modo singular de produzir o cuidado.
Nessa concepção o indivíduo se traduz num grau de potência, esse grau de potência
por sua vez reflete o poder de ser afetado e essa relação de poder-ser-afetado é
necessariamente preenchido por afecções. Estudar essas afecções (affectio) é compreender
não somente os corpos dentro da instituição, mas entender o tipo de tratamento que é
desenvolvido pelos trabalhadores em seu cotidiano; “De fato, estas afecções são imagens ou
marcas corporais; e as suas idéias englobam ao mesmo tempo a natureza do corpo afetado e a do corpo
exterior afetante”. (DELEUZE, 2002, p.55).
O aspecto relacional torna-se claro segundo essa visão filosófica que preenche
justamente as lacunas do invisível do que não pode ser dito, somente expressado ou
corporificado no nível das dimensões simbólicas dos sujeitos. Não obstante, é preciso
delimitar o campo das afecções (affectio) com o campo dos afetos (affectus), pois apesar de
operarem no mesmo espaço possui significados distintos:
62
A affectio remete a um estado do corpo afetado e implica a presença do corpo
afetante, ao passo que o affectus remete à transição de um estado a outro, tendo em
conta a variação correlativa dos corpos afetantes [...] Por afetos, entendo as afecções
do corpo pelas quais a potência de agir desse mesmo corpo é aumentada ou
diminuída, favorecida ou impedida[...] (DELEUZE, 2002, p.56).
Nossa investigação inscreve-se numa leitura que consiste em pensar o corpo enquanto
um analisador capaz de revelar as práticas de cuidado instituídas no cotidiano da instituição a
partir dos encontros - das relações de afecção - que ocorrem entre os diversos sujeitos da
instituição. É á idéia do afetamento entre os sujeitos.
[...] É nos encontros que se expressam e se reproduzem diferentes graus de abertura,
diferentes graus de intensidade, turbulências acontecem, geram-se outros repertórios
existenciais que se solidificam. Pequenos eventos podem reverberar em outros jeitos
de funcionar, viver e apresentar-se frente ao outro (Liberman, 2010, p. 120).
Esses diferentes graus de abertura, podem dar margem à encontros que promovem
alegria a partir da relação do que Espinosa chama de relação de composição e decomposição;
“A ordem das causas é então uma ordem de composição e de decomposição e de
decomposição de relações que afeta infinitamente toda a natureza.”(DELEUZE, 2002).
A relação de composição pode ser vista como um processo de adição, ou seja, que se
dá a partir do encontro entre um corpo que convém com o nosso corpo, na medida em que
otimizaria a potência do ser e por isso, pode ser entendido como uma relação de alegria, de
expansão. Ao contrário, porém, essa abertura, pode dar margem à maus encontros, que
promovem assim uma diminuição da potência do sujeito, ou seja, promoveria uma relação de
decomposição, de tristeza.
Na saúde esse processo se torna muito claro, pois sempre o trabalhador está afetando e
sendo afetado pelo usuário, conhecer essas afecções entre os corpos significa, sob nosso ponto
de vista, nos permite conhecer o modo de produção de cuidado (acontecimento autopoiético)
que está em agenciamento no CAPS.
Ao considerar os devires, os fluxos e as forças da existência, esse encontro de
sujeitos não acontece apenas em função do adoecimento, mas integrando um
cotidiano existencial onde os mesmos estão em mútua implicação. Movidos por
éticas singulares, esses sujeitos padecem à medida que forças exteriores lhes são
impostas e reduzem a sua potência de vida por meio de dispositivos que objetificam
em ‘bem ou ‘mal’ os acontecimentos e seus desdobramentos em suas vidas,
conformando uma ordem normalizadora da vida. (VIEIRA, SILVEIRA, FRANCO,
2011, p.17).
Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições
e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com
ele se compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa alma e com ela se
63
compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma ideia ameaçam a
nossa própria coerência. (DELEUZE, 2002, p.25).
Partilhando dessa consideração, acreditamos na importância de darmos atenção ao
CAPS enquanto um território existencial, marcado e delineado pelos encontros entre os
corpos a partir das relações de afecção. Que tipo de relação está se constituindo no CAPs?
Relações de composição ou de decomposição? Será na busca de entender essas relações que
iremos fazer o trabalho de campo no Centro de Atenção Psicossocial, para compreendermos
que tipo de acontecimento autopoiético está sendo agenciado na instituição.
Depois desses suportes teóricos, entro de fato no CAPS, “O trabalho de campo é essa
mistura de observação participante e participação observante, já que entramos e saímos de
cena” (BONET, 2004).
Apesar de já estar no campo desde Março, fui sentir de fato que tinha entrado em
campo, em cena, quando no Livro das Oficinas, vi registrado minha participação na
oficina de beleza, da seguinte forma: “Ainda nesta ocasião tivemos a presença da
pesquisadora Cristiane, que como observadora participante sentou-se conosco”.
(Fonte: Livro das Oficinas,19/05/2011).
Assim ao entrar em cena, ao entrar nesse mundo desconhecido procuro descortinar os
símbolos e significados presentes nos encontros entre os usuários e trabalhadores, por meio da
apresentação da sua rotina de serviços, da sua lógica interna de funcionamento e de seus
regulamentos próprios e que implicam diretamente no modo de produção do cuidado em
agenciamento na instituição.
6 PERFIL DO CAPS EM QUESTÃO
Para essa pesquisa, elegeu-se o CAPS Herbert de Souza, localizado no município de
Niterói, modalidade CAPS II. A escolha se deve ao fato de que este CAPS já havia
amadurecido seu projeto assistencial pelo seu tempo de funcionamento. A princípio,
funcionava como Hospital-Dia do ano de 1989 até 1992, depois se tornou NAPS – Núcleo de
atenção Psicossocial (nesse momento os atendimentos se davam no Hospital Psiquiátrico de
Jurujuba). Em setembro de 1998 teve suas instalações transferidas para a atual localização,
uma casa de dois andares no Centro de Niterói. Esses dados foram muito difíceis de serem
levantados, já que nem a coordenação do CAPS e nem a Coordenação de Saúde Mental,
souberam de pronto me dar essas informações.
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A coordenação atual do CAPS, me informou que não possuía esses dados, e que na
ocasião em que passou a coordenar esse serviço (em Janeiro de 2005) procurou se informar e
levantar informações a partir de registros, tanto no CAPS, como na Coordenação de Saúde
Mental, mas nada encontrou. Por conta disso, foi criada uma data simbólica para a
comemoração do CAPS fora do Hospital, que passou a ter como data representativa o dia 10
de Outubro. Entrei, então em contato com a Coordenação de Saúde Mental, que também não
tinha conhecimento sobre as datas referentes ao CAPS. Os dados só foram conseguidos,
porque a coordenação por sua vez, entrou em contato com o médico que coordenou o serviço
quando esse tinha sua atuação no Hospital Psiquiátrico de Jurujuba. Depois de muitos
contatos e telefonemas, a secretaria desse médico me passou as datas informadas.
O CAPS está registrado no Cadastro Nacional de Estabelecimentos de Saúde – CNES
- está registrado sob o número 2293269, no qual possui as seguintes especificações: esfera e
gestão municipal, administração indireta/fundação pública.
O CAPS está localizado no município de Niterói. Esse município possui uma
geografia privilegiada, uma área com uma unidade territorial de 133.916 quilômetros
quadrados, localizada entre a Baía da Guanabara (oeste), o Oceano Atlântico (sul), Maricá
(leste) e São Gonçalo (norte). Niterói juntamente com outros 16 municípios faz parte da
Região Metropolitana do Rio de Janeiro.
De acordo com os dados do IBGE de 2009, conta com 350 estabelecimentos de saúde,
destacando-se 85 estabelecimentos de saúde, 05 estabelecimento de saúde público estadual,
61 estabelecimentos de saúde públicos municipais, 19 estabelecimentos de saúde privado e
1.114 leitos para internação em estabelecimentos públicos de Saúde. (IBGE, 2010)
Niterói possui 04 Centros de Atenção Psicossocial, sendo dois CAPS II, um CAPS ad
e um CAPSi, que se organizam segundo uma lógica territorial, conforme o território adstrito.
Nesses serviços preconiza-se que as ações desenvolvidas nessas instituições sigam os
princípios da Reforma Psiquiátrica, de acordo com as diretrizes do Sistema Único de Saúde, a
partir de uma perspectiva de desconstrução da lógica manicomial.
6.1 O funcionamento do CAPS
O CAPS funciona das 08h às 17h de segunda à sexta-feira. No serviço estão
cadastrados 62 pacientes do sexo feminino e 144 pacientes do sexo masculino, sendo que
destes 35 necessitam de Acompanhante Domiciliar (AD). Em média, diariamente 80
pacientes frequentam o CAPS, esse controle é realizado por um livro de assinaturas que fica
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disponível na portaria do CAPS, no qual o paciente deverá assiná-lo assim que entra na
instituição, entretanto, em vários momentos, presenciei pacientes que chegam ao serviço e
que não assinaram o livro.
Para o desejejum dos pacientes são ofertadas em média: 40 refeições, 60 para o
almoço e 40 para o lanche da tarde. Esse número não é fixo, podendo ser variado segundo o
número de pacientes que estão na Instituição. Todos os dias, verifica-se no livro de frequencia
o número de pacientes presentes para fazer o pedido junto à empresa terceirizada que fornece
a alimentação para todos os CAPS de Niterói. No lanche da manhã e da tarde é oferecido pão
com manteiga e café com leite, em relação ao almoço há uma variação no cardápio ofertado.
O lanche da manhã é servido de 8h às 9h, o da tarde, acontece geralmente por volta
das 15h. Agora em relação ao almoço, não se tem uma hora certa, já que o alimento não é
preparado no CAPS. As refeições são trazidas do Hospital Psiquiátrico de Jururuba, e por
conta disso, os horários não são determinados. Teve dias em que as refeições chegaram às
11h, e já teve outros que chegou às 13h, 13:30h e até 14h. Esses atrasos são problemas que
inteferem diretamente na vida dos pacientes, e precisam por isso, serem questionados e
colocados na pauta de discussão das demandas internas do CAPS. Registro que nas
entrevistas, em nenhum momento esse problema foi citado pelos trabalhadores.
6.2 Atividades desenvolvidas no CAPS
As atividades desenvolvidas no serviço foram especificadas no quadro abaixo.
QUADRO I – ATIVIDADES DO CAPS
Nome da atividade
Dias de funcionamento
Horário
Oficina de Música
Segunda-feira
14h às 15:30h
Oficina de Culinária
Terça-feira
10h às 11:30h
Oficina de Esporte
Sexta-feira
10h às 11h
Oficina de Beleza 1
Terça-feira
13:30h às 15h
Oficina de Beleza 2
Quarta-feira
14:30h às 16h
Oficina de Saúde
Sexta-feira
14h às 15h
Oficina de Jornal
Terça-feira
1oh às 11h
Oficina de Informática
Sexta-feira
15h às 16h
Oficina de Letras
Segunda-feira
10:30h às 11h
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Oficina de Jardinagem
Quinta-feira
9:30h às 10h
Grupos Jovem
Quinta-feira
11h às 11:30h
Ponto de Encontro
Quinta-feira
14h de 15 em 15 dias
Programa de Geração de Renda
Todos os dias
Todo o dia
Fonte: Setor administrativo do CAPS. Dados disponibilizados em Outubro de 2011.
As atividades ofertadas são variadas, sendo que os pacientes são indicados a participar
de determinada oficina ou grupo, de acordo com o Projeto Terapêutico Individual ou com a
indicação das referências, isso vai depender muito do quadro clínico e também do interesse do
paciente, já que teoricamente ele não tem obrigação de participar.
6.3 Descrição do local
O CAPS em questão, tem suas instalações numa casa que possui três pavimentos. O
CAPS possui um muro na entrada e dois portões, um de garagem e outro para a entrada das
pessoas. Sempre tem um funcionário no portão para controlar o acesso à entrada no CAPS.
O primeiro pavimento está no nível da rua, sendo o local em que há uma circulação
maior de pessoas, pois além de ser o local de acesso é também o lugar onde os pacientes
ficam a maior parte do tempo. Nele temos uma área aberta na qual se encontram cinco bancos
de três lugares cada, logo na entrada; e na lateral à direita, se tem as cadeiras com mesas
debaixo de uma lona azul, que são utilizadas pelos pacientes para se alimentarem e também
quando estão participando de alguma oficina, ou simplesmente para sentar. Por conta dessa
lona, esse lugar é ainda mais quente. No final dessa área, têm a cozinha, local onde é
preparado o café com leite, e distribuído as refeições. Essas refeições não são preparadas no
CAPS, pois já vem pronta do Hospital Psiquiátrico de Jurujuba.
Na parte interior, tem uma varanda com uma mesa e uma cadeira, onde fica o usuáriobolsista do Programa de Geração de Renda para atender o telefone. Entrando por essa
varanda, temos a sala de convivência. O lugar onde os pacientes ficam maior parte do tempo.
Essa sala é pintada de azul, e tem do lado direito três cadeiras e dois sofás grandes. Do lado
esquerdo, há dois sofás grandes, um pequeno e um individual.
À esquerda dessa sala, tem a cantina. Espaço utilizado para a venda de doces, balas,
biscoito, cafezinho e refrigerante. Nessa cantina trabalham os usuários-bolsistas do Programa
de Geração de Renda. Nela há uma pia, um balão, uma geladeira e um armário. A renda das
vendas é convertida em materiais para as oficinas. Atrás da cantina, há o banheiro feminino.
67
Em frente à cantina, tem a sala dos técnicos. Nessa sala ficam os arquivos com todos
os prontuários dos funcionários, bem como os livros referentes às oficinas, e dos recados, no
qual os funcionários fazem suas considerações acerca de algum problema em relação à
alguma coisa ou algum paciente. Tem também um quadro branco, em que os funcionários
deixam escritos com um pincel, os recados mais urgentes. Também tem outro quadro, com a
relação do horário e atividades exercidas pelos funcionários. Quando entrei na instituição,
esse quadro com os horários de trabalho e suas respectivas atividades não estava atualizado.
Depois de uma semana, esse quadro foi atualizado. No centro da sala, há uma mesa redonda,
com cadeiras. No canto há um armário, onde os funcionários colocam as bolsas e um
bebedouro. Essa sala (sala dos técnicos), a sala da administração e da enfermagem, são as
únicas que possuem ar-condicionado na instituição.
Ainda nesse pavimento, há a sala de dispensação de medicamentos, que possui uma
mesa, cadeiras e um armário. Os medicamentos ficam separados em potinhos, com os
remédios e os nomes dos pacientes e ficam dentro do armário. Em frente essa sala, tem o
banheiro masculino, e uma área que possui dois bancos.
O segundo pavimento possui dois acessos que são independentes entre si, o primeiro
se dá pela escada que fica entre a cantina e a sala dos técnicos. Assim que a pessoa sobre a
escada tem um pequeno espaço onde fica o bebedouro e o banheiro dos funcionários. Muitos
pacientes esperam nesse espaço para serem atendidos. Esse andar possui um consultório
utilizado para atendimentos dos pacientes. Nesse consultório tem a saída para uma varanda
externa. Mais duas salas compões o andar, essas são usadas para atendimento, oficinas e
reuniões. Há também mais duas salinhas, uma onde as auxiliares administrativas trabalham e
outra, com os arquivos e demais documentos do CAPS. É a partir dessa salinha que se chega
ao terceiro pavimento. Esse só possui uma área coberta, que serve como depósito para
materiais, como tinta, por exemplo.
O outro acesso para o segundo pavimento é do lado de fora da casa e a escada para
acessá-lo fica ao lado da cozinha. Subindo as escadas, temos à direita, a sala do bazar e a
esquerda o banheiro dos terceirizados.
No início da pesquisa, as paredes estavam sujas, e uma pintura nos ambientes se fazia
mais que necessária, mas como salientado nas entrevistas, a questão da limitação dos recursos
financeiros não permitia que esse problema fosse superado. No final do ano, esse problema
foi solucionado com a pintura interna dos ambientes. Isso foi possível graças a colaboração
dos familiares, que ajudaram na compra dos materiais necessários para a pintura. Essa questão
68
acerca da aparência do CAPS será melhor discutida no tópico sobre ambiência, já que se trata
de aspectos importantes para além de uma estética.
6.4 Perfil dos trabalhadores do CAPS
Em Outubro de 2011, mês em que esse quadro foi elaborado, o CAPS, tinha uma
equipe multidisciplinar, composta por: 04 estagiários de Psicologia; 25 Funcionários/RPA de
diversas áreas; 02 Funcionárias/servidoras (01 médica e outra Psicóloga); 04 residentes e 04
funcionários terceirizados; o que totalizava em 39 trabalhadores.
Quadro II – Trabalhadores do CAPS.
Função
Formação
Data de entrada e saída no CAPS
Estagiário
Psicólogo
03/2011
Estagiário
Psicólogo
03/2011
Estagiário
Psicóloga
03/2011
Estagiário
Psicólogo
03/2011
Funcionário/RPA
Acompanhante Domiciliar
04/2002
Funcionário/RPA
Acompanhante Domiciliar
09/2010 à 10/2011
Funcionário/RPA
Acompanhante Domiciliar
02/2011
Funcionário/RPA
Acompanhante Domiciliar
10/2011
Funcionário/RPA
Assistente Social
01/2011
Funcionário/RPA
Auxiliar Administrativo
04/2011
Funcionário/RPA
Auxiliar Administrativo
02/2011
Funcionário/RPA
Comunicação
09/2010
Funcionário/RPA
Enfermeira
06/2007
Funcionário/RPA
Médico Psiquiatra
07/2008
Funcionário/RPA
Médica Psiquiatra
10/2011
Funcionário/RPA
Psicóloga
11/2010
Funcionário/RPA
Psicóloga
09/2009
Funcionário/RPA
Psicóloga
04/2007 à 09/2011
Funcionário/RPA
Psicóloga
01/2008 à 10/2011
Funcionária/RPA
Psicóloga
(Estagiária até 08/2011)
08/2010
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Funcionário/RPA
Psicólogo
09/2011
Funcionário/RPA
Psicólogo
02/2012
Funcionário/RPA
Serviços de Manutenção
04/2011
Funcionário/RPA
Terapeuta Ocupacional
10/2011
Funcionário/RPA
Oficineira
10/2011
Funcionário/RPA
Técnica de Enfermagem
01/2005
Funcionário/RPA
Técnico de Enfermagem
06/2004
Funcionário/RPA
Técnico de Enfermagem
(Oficineiro)
11/2010 à 08/2011
Terapeuta Ocupacional
04/2005 à 10/2011
Funcionário/Servidora
Assistente Social
07/2008
Funcionário/Servidora
Psicóloga (coordenação)
01/2005
Residente
Enfermeiro
03/2011
Residente
Psicóloga
03/2011
Residente
Médica Psiquiatra
03/2011
Residente
Médica Psiquiatra
03/2011
Terceirizados
Serviços Gerais
03/2011
Terceirizados
Serviços Gerais
03/2011
Terceirizados
Porteiro
07/2009
Terceirizados
Porteiro
02/2005
Funcionário/RPA
Fonte: Setor administrativo do CAPS. Dados disponibilizados em Outubro de 2011.
A sigla RPA significa “Recibo de Pagamento a Autônomo” e se refere aos
funcionários que trabalham a partir de contrato sem vínculo empregatício. Como demonstrado
no quadro, dos 27 funcionários, 25 se encontram nessa situação, o que correponde a 92,6%,
número bastante alto, e que tem repercussões no cotidiano da instituição, fato esse
diretamente relacionado à saída dos profissionais. Enquanto realizava essa pesquisa, 05
funcionários saíram do serviço e outro já se encontra na iminência de sair, pois como é
residente, ao cabo de seu estágio deve se retirar do serviço para terminar sua formação em
outra instituição.
70
6.5 Processo de Recepção / Chegada do usuário no CAPS
Os pacientes chegam ao CAPS por indicação de outros serviços da rede de saúde,
indicação da família, de médicos particulares ou de demanda espontânea, sendo recebidos por
uma equipe técnica que faz uma avaliação acerca do caso, para definirem se será um paciente
que irá fazer parte do CAPS ou se terá que ir para outro lugar, ou seja, se é justificável sua
posterior permanência na Instituição. No caso do paciente não ficar no CAPS, ele sai do
serviço com um encaminhamento na mão e quando possível, com o contato do lugar para
onde deverá ir.
Todo paciente está sujeito à um processo que é denominado no serviço de “Recepção”,
que pode demorar dois, três, quatro ou mais encontros e pode ser feita por qualquer
trabalhador da equipe técnica. Encontramos nas falas das entrevistas, uma pergunta
norteadora no que tange à Recepção e que é feita pelos profissionais que estão nesse processo:
E01: Faz parte de quem está na dupla ou individual ou trio, de quem tá envolvido na
recepção de se perguntar: por que o CAPS?(Fonte: Entrevista).
A lógica da territorialidade é um fator que está atrelado à possibilidade ou não do
paciente fazer parte do CAPS, já que a rede de Saúde Mental de Niterói é dividida em
territórios, no qual os pacientes só podem ser atendidos se fizerem parte de tal localidade;
caso contrário, ele não poderá ser atendido pelo serviço em questão. O CAPS tem como
territórios adscritos: Centro, São Domingos, Morro do Estado, Ilha da Conceição, São
Lourenço, Santa Bárbara, Ponta d’Areia, Bairro de Fátima, Ingá, Caramujo, Fonseca (até a rua
22 de Novembro), Vila Pereira Carneiro.
Essa lógica da territorialidade além de ser uma questão de área geográfica, se vincula à
demanda e qualidade dos serviços, como apontado na fala abaixo:
E09: [...] a gente também não consegue dar conta é, porque , de, de a gente aqui é
uma equipe restrita, então assim a gente tem um espaço restrito, e a lógica da rede é
territorial, não pode estar ampliando muito esse, esse, atendimento. E mesmo
morando em Niterói, tem que pertencer a nossa área, que na verdade é uma área
enorme, maior parte de Niterói [...]. (Fonte: Entrevista).
A partir dessa definição, caso o paciente seja aceito no CAPS, começa o investimento
em seu tratamento, primeiro a definir suas referências e paralelamente seu projeto terapêutico
individual.
71
6.6 As Referências e Projeto Terapêutico Individual (PTI)
A partir da investigação iniciada na recepção e uma vez determinado que o paciente é
um paciente para o CAPS e não para um Ambulatório, por exemplo, abre-se um prontuário
para o paciente e começa-se a delinear quem serão as referências médica e não-médica (outras
especialidades) desse paciente dentro do CAPS. A exigência do acompanhamento médico,
sendo do CAPS ou não, se justifica pela possível intervenção medicamentosa.
E04: A referência que é o médico ou o psicólogo, não precisa necessariamente ser
um psicólogo, pode ser uma assistente social, ou um enfermeiro, mas tem que ter um
médico para ver a medicação. Alguns casos têm médicos particular, médico fora
[...]. (Fonte: Entrevista)
Pode haver mais de duas referências, é o que acontece quando nessa dupla, se tem o
acompanhamento de um estagiário, que embora possa ser também uma referência, ele não
poderá sê-lo sozinho com o médico.
Não existe relação entre recepção e referência, ou seja, o paciente nem será terá por
referência o profissional que fez sua recepção. Poderá ser ou não, depende de cada caso e
cada situação, que pode sofrer variações, segundo vários fatores que são definidos em reunião
de equipe.
Será nessas reuniões semanais que se tem a discussão dos casos, a supervisão clínica e
institucional. Por conta disso, toda a equipe técnica obrigatoriamente deve participar, sendo
que toda falta deverá ser devidamente justificada.
Nas reuniões de equipe, que acontecem todas as quartas-feiras (08h às 12h) e que são
orientadas pela direção do CAPS, ficará acordado quem serão as referências para determinado
caso, que podem variar, devido à: a disponibilidade do profissional (que já pode ter muitos
pacientes referenciados e por conta disso não ser a pessoa mais apropriada), à indicação e ou
determinação da coordenação ou até mesmo do interesse e vontade do profissional.
E01: E aí é, essas coisas são definidas, muitas vezes, [...] na recepção [...] alguém
que diz, agora estou mais disponível, me interessei mais pelo caso.[...] me interessei
mais pelo caso.
E09: [...] qualquer um dos técnicos, se elege para acolher o caso...
E06: Vai do desejo de cada um. Como disse a psicanálise, é o desejo que, que na
reunião de equipe é passado, e a gente pergunta, ah quem? Tem uma recepção,
paciente tal, tal, tal, quem vê...
Entrevistador: Aí define quem vai ficar?
E06: É.
72
E07: [...] ah eu quero atender fulano e outros não, outros a gente pode escolher.
(Fonte: Entrevista)
Nas reuniões também é decidido se o paciente irá ou não precisar de um AD
(Acompanhante Domiciliar), dependendo do Projeto Terapêutico Individual – PTI indicado ao
paciente. Em alguns momentos, a mudança do Projeto Terapêutico Individual do paciente, já
é suficiente para resolver os problemas que envolvem o tratamento do paciente, outros, só
mesmo mudando a referência.
E04: Se tem algum problema, verifica se é um problema de referência, se é uma
estratégia mudar de referência, ou então, se é uma estratégia mudar o Projeto
Terapêutico [...].
E08: Porque o Projeto Terapêutico você tem que estar avaliando para ver se é isso
mesmo, se continua, para? Se teve uma melhora ou não? (Fonte: Entrevista).
Carvalho e Cunha (2006) sugere a substituição do uso do termo ‘individual’, pela
palavra ‘singular’, baseando na premissa de que para as práticas em saúde – em especial na
atenção primária – é extremamente importante levar em consideração não somente o
indivíduo, mas todo o contexto social que envolve a sua vida. Ademais os projetos
terapêuticos podem ser familiares, coletivos e até territoriais, o que acabaria a reduzir o uso da
palavra ‘individual’.
Esse projeto terapêutico será realizado pelos técnicos de referência, que irão dizer se o
tratamento será intensivo ou semi-intensivo e quais as atividades que o paciente deverá
participar.
E09: Quem são as referências, porque tem sempre o médico psiquiatra e um técnico
de referência. Defini-se se vai precisar introduzir um AD no caso, né, um
Acompanhante Domiciliar, dependendo do Projeto Terapêutico que foi tratado,
tratado para esse paciente. (Fonte: Entrevista).
De um modo geral, as referências são entendidas como um elo entre o paciente e o
serviço, o que não significa dizer que a partir desse elo, venhamos a ter a construção de um
vínculo entre o usuário e o profissional. Esse é um paradoxo, que iremos abordar
posteriormente.
E01: A gente costuma dizer que os pacientes, a gente não pode dizer que o paciente
é nosso. O paciente é sempre do serviço, que estamos aqui transitoriamente [...] e o
laço dele é com o serviço, precisa ser com o serviço. (Fonte: Entrevista).
73
De acordo com a fala desse trabalhador, o vínculo se constitui a partir de um elo do
usuário com o serviço, o que constitui numa visão precária do ponto de vista do cuidado. Na
realidade, o vínculo deve ser entendido por outra lógica, pela lógica do afeto, das relações de
afecção que perpassa os indivíduos a partir dos encontros micropolíticos que ocorrem na
instituição. Do ponto de vista do cuidado, a instituição deve ofertar recursos tecnológicos
capazes de assegurar, sobretudo, o vínculo entre trabalhador e usuário, o que pressupõe o
princípio da integralidade da assistência.
E03: [...] porque cada paciente tem sua referência na qual tudo o que for [...]
vinculado à ele essa referência vai estar ligado e aí a gente quando tiver um
problema para passar para, daquele paciente a gente vai levar para a referência, no
caso. (Fonte: Entrevista).
Como cada paciente possui uma referência, estas possuem um papel central no serviço
principalmente no que diz respeito às necessidades dos usuários e à construção ou não do
vínculo entre trabalhador e usuário.
E09: cachorro que tem um monte de dono, morre de fome, né? [...] Porque assim, a
vantagem de você ter um técnico de referência, é a garantia de que aquele paciente
não vai ficar esquecido, então assim, a gente tem, tem pacientes, que aqui a gente
tem atendimento é intensivo, semi-intensivo e não-intensivo, né.
E10: O ponto positivo que eu vejo é não perder o fio da meada dos casos, é aquela
velha historia que cachorro com vários donos não é de ninguém morre de fome, né?
(Fonte: Entrevista).
Como dito nessas falas, existe na instituição uma supervalorização acerca da
referência que precisa ser considerada. Como iremos mostrar na sequência, existe uma
variação em torno do que seja a referência dentro da instituição; para o entrevistado E03 ela
possui um caráter mais instrumental, enquanto para o entrevistado 05, é apontada como
potencialmente importante para a efetivação do cuidado no CAPS.
E03: [...] se o paciente sumir do CAPs a referência deve entrar em contato para ver o
que está acontecendo [...] Aí aquela referência tem que entrar em contato, ligar, vê o
telefone lá, ver o que está acontecendo.
E10: [...] aquele vínculo precisa ser preservado, porque alguém tem que estar
naquele lugar para que ele possa se endereçar aquela questão maníaca dele, entende,
não precisa ser uma pessoa daquele lugar, sabe. Mas aí é no caso a caso, agora, se a
referência é uma referência que não cuida, que não se deu, porque não cuida, porque
não quer cuidar, aí é outra conversa. Eu não vejo isso aqui. (Fonte: Entrevista).
Ao mesmo tempo, a referência é tida como um norte para o paciente e para os demais
integrantes da equipe.
74
E05: A Referência é um norte, um norte para o paciente, um norte para equipe.[...]
Então a Referência é isso, é a referência, é o ponto de referência, ela é o norte
daquele paciente. É alguém que está mais próximo, fazendo contato mais próximo
com a família, né, que está mais atento com as ações daquele paciente, né. (Fonte:
Entrevista).
Essas funções podem ser entendidas como investimentos pessoais. Pessoal, no sentido
subjetivo do termo, no qual as relações entre trabalhador-usuário se definem a partir de desejo
de cada profissional em estabelecer um encontro no qual há uma produção de afecto (no
sentido de Espinoza), podendo produzir nos que se encontram, “paixões alegres ou tristes”, o
que terá um efeito sobre o usuário, no sentido de favorecer ou não seu projeto terapêutico de
autonomização. Caberá à ele, por si, promover um cuidado-cuidador ou um cuidado-sumário,
no momento em que este se deparar com o paciente.
7
A PRODUÇÃO DO CUIDADO NO CAPS EM QUESTÃO
Nunca se viu um cuerpo: se vem hombres y mujeres. No se vem cuerpos. (Le
Breton)
Como dito na introdução, para entender o modo de produção do cuidado no CAPS, irei
enfocar a relação corpo e cuidado, a partir da Teoria da Afecção, ou seja, a partir dos
afetamentos que ocorrem dentro da instituição. Chamei-os de ‘afetamentos transversais’,
porque esses afetamentos atravessam os corpos dos pacientes, ao mesmo tempo, que
atravessam também o corpo dos trabalhadores. Potencialmente esses afetamentos podem se
dar de forma positiva, e também de forma negativa.
Mas, quando encontramos um corpo exterior que não convém ao nosso (isto é, cuja
relação não se compõe com a nossa), tudo ocorre como se a potência, operando uma
subtração, uma fixação: dizemos nesse caso que a nossa potência de agir é
diminuída ou impedida, e que as paixões correspondentes são de tristeza. Mas, ao
contrário, quando encontramos um corpo que convém com a nossa, diríamos que sua
potência se adiciona à nossa: as paixões que nos afetam são de alegria, nossa
potência de agir é ampliada ou favorecida. (DELEUZE, 2002, p.33).
Enquanto subtração (relação de decomposição) o encontro dos corpos estaria
promovendo uma diminuição da potência do sujeito, ou seja, promoveria uma relação de
tristeza, ao passo que, ao contrário, a adição (relação de composição) se daria no encontro
entre um corpo que convém com o nosso corpo, na medida em que otimizaria a potência do
ser e por isso, é uma relação de alegria, de expansão. Que tipo de relação está se constituindo
no CAPs? Relações de composição ou de decomposição?
75
Para responder essa questão, num primeiro momento irei apontar os problemas citados
pelos trabalhadores e que devem ser mudados no CAPS, uma vez que diminuem a potência
dos usuários, por isso aqui, segundo nossa concepção teórica, são considerados geradores de
relações de decomposição. São eles:
7.1 Ambiência
O conceito de ambiência, segundo o Ministério da Saúde, se fundamenta em três
espaços, que apesar de serem apontados separadamente, são indissociáveis. (BRASIL, 2010).
1)
O espaço que visa à confortabilidade focada na privacidade e individualidade
dos sujeitos envolvidos, valorizando elementos do ambiente que interagem com as
pessoas – cor, cheiro, som, iluminação, morfologia, sinestesia, arte, tratamento das
áreas externas – e garantindo conforto aos trabalhadores e usuários.
A fala abaixo descreve bem essa situação no CAPS, no que tange à falta de
confortabilidade, na questão da individualidade e privacidade dos usuários.
E01:[...] muitas vezes a gente atende o paciente no banco, em pé ou no corredor e
alguma coisa pode se perder ali, porque a gente é interrompido, porque tem outras
pessoas passando, que alguém chama e não entende qual é a sutileza daquela
conversa e que é um atendimento e que poderia ser privado. (Fonte: Entrevista).
2)
O espaço que possibilita a produção de subjetividades – encontro de sujeitos –
por meio da ação e reflexão sobre os processos de trabalho.
3)
O espaço usado como ferramenta facilitadora do processo de trabalho,
favorecendo a otimização de recursos, o atendimento humanizado, acolhedor e
resolutivo.
A questão da privacidade e individualidade é realmente muito delicada nesse CAPS e
que precisa ser revista. Em vários momentos presenciei atendimentos sumários, rápidos e sem
a devida atenção, por estarem acontecendo no meio de um corredor, por exemplo. As
interrupções eram constantes, seja por outros pacientes que se aproximavam do profissional
para pedir ou falar alguma coisa; seja por outros profissionais que se dirigiam ao técnico, ou
até mesmo, para simplesmente pedir licença – já que estavam no meio de uma passagem de
acesso importante no estabelecimento.
Interessante pensar a partir do conceito de ambiência, que a instituição dever ser
entendida por duas dimensões: a do espaço físico e a do espaço social, profissional e de
76
relações interpessoais e nesse sentido, além de preconizar por um espaço físico adequado,
sublinha também a necessidade de ser sobretudo um espaço social, ou seja, acolhedor,
resolutivo e humano.
Para uma atenção psicossocial, sob esse referencial, considera-se que tanto os fatores
de aspectos materiais que se relacionam com a aparência e valorização do ambiente da
Instituição, como cor, conforto, privacidade; quanto os aspectos não-materiais (o sentir-se
acolhido e seguro, a oferta de espaços de expressão de subjetividades) são essenciais para um
bom atendimento do serviço. (KANTORSKI et all. 2011).
E06: Pois é, um lugar já largado porque as pessoas vão se cuidar?(Fonte:
Entrevista).
A ambiência então está diretamente ligada ao cuidado em agenciamento e deve ser
entendida como uma ferramenta potente para um atendimento mais acolhedor, equânime e
humanizado, pois além de operar a partir da revitalização dos espaços. No processo de
mudança e organização de novos arranjos espaciais na instituição, a ambiência não pode ser
entendida como uma categoria isolada do processo do trabalho, mas sim como uma
facilitadora de uma possível mudança no modo de produção do cuidado, na medida em que,
permite a construção de novas subjetividades.
E01: A gente precisa de estrutura. É estrutura física [...] As coisas acontecem
essencialmente por isso, mas a gente precisaria de uma estrutura física para, mais
digna de um trabalho. O quê a gente sente muita falta é disponibilidade do espaço
físico mesmo, até para as oficinas acontecerem melhor [...] porque a gente vive
assim, a segunda palavra em Saúde Mental é improviso. A gente funciona no
improviso assim, e aí se a gente tem um espaço mais adequado, as salas de
atendimento, pudesse ter lugares mais adequados.
E05: É, deixa eu ver, de repente é mudar de local assim, para um espaço maior [...]
se fosse um lugar maior, se tivesse mais, seria bem melhor para eles.
E07: Aqui nesse CAPS eu acho que a estrutura física deveria mudar assim... Então
assim, eu acho assim que deveria ser uma casa plana, a sempre pediu assim uma
casa que não tivesse dois andares que tivesse uma área externa maior, para a gente
poder fazer algumas atividades com os pacientes. Porque aqui fica tudo muito
tumultuado assim, e aí a gente fica, né, nossa intenção, é que tivesse um espaço
físico maior.
E09: Primeiro lugar o espaço físico que é inadequado. Mas, enfim, isso é uma
precariedade. (Fonte: Entrevista).
O espaço físico vem sendo denotado como um problema que o CAPS enfrenta. Ele
não possui área própria para as atividades de recreação, como uma área de lazer, ou espaços
apropriados para a realização das oficinas terapêuticas. As oficinas de beleza que acontecem
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nas terças-feiras são realizadas num corredor lateral onde fica as cadeiras para os pacientes se
alimentarem. Por não ter uma cobertura apropriada, está coberta por uma lona azul, que
esquenta demais o local e causa problemas para os frequentadores da oficina quando chove.
Outra coisa citada é o fato do CAPS estar situado numa casa de três pavimentos, ao
invés de estar numa casa ou num lugar plano. Alguns pacientes possuem dificuldades na
locomoção, seja por problemas clínicos ou até mesmo por efeito colateral pelo uso
prolongado das medicações que eles utilizam.
No que tange aos problemas relacionados com a estrutura física, os profissionais me
disseram que muitas vezes já repassaram o pedido de transferência do CAPS para instalações
mais apropriadas, mas que até então, não tiverem nenhum respaldo pelos órgãos competentes
a respeito dessa situação.
7.2 Estigma
Foi apontado também pelos trabalhadores, que usuário do CAPS sobre estigma por
parte de outros profissionais de saúde por ser um usuário do CAPS.
E04: É difícil, tem uma certa resistência, tem um certo medo, né, sobre o paciente
psiquiátrico, que ele não pode ficar sozinho, não pode ir desacompanhado, ele não
tem como responder a clínica dele. (Fonte: Entrevista).
Essa estigmatização velada promove um distanciamento e faz com o que o elo entre o
CAPS e o restante da rede não se desenvolva efetivamente. Na prática, isso resulta em
grandes dificuldades seja para a marcação de uma consulta ou de um exame para o paciente,
sob a alegação de que o paciente não pode ficar sozinho, ou que não pode responder pela sua
clínica.
7.3 Articulação com o Poder Público
Entrevistador: E o CAPS está tentando de alguma forma conseguir um outro espaço
ou nem entra na discussão do CAPS?
E07: Está. Não! Entra, a gente já fez o pedido para a Prefeitura, os familiares daqui
também já, né, se mobilizaram para isso, mas infelizmente a gente fica um pouco à
mercê do poder público.
E08: Assim para melhorar o CAPS, é questão Prefeitura, Fundação e a Saúde
Mental que deixa muito a desejar.
E11: Se eu fosse olhar por aí, né, vou ter que botar um monte de faltas, de falhas, né,
é, na atualidade muitos, falhas partindo da, do poder governamental, sabe? É, eu
78
acho que a gente vive um momento em que o poder governamental, ele sustenta na
área social, se sustenta muito mais numa encenação, numa teatralidade, muito mais
em marketing, não é? (Fonte: Entrevista).
As reclamações em torno dos problemas oriundos da falta de sintonia e articulação
com os órgãos competentes referentes a Saúde Mental de Niterói, vão desde aos problemas de
recursos financeiros, físicos e até os trabalhistas. A Reforma nesse contexto, não se dá
somente pela implementação dos CAPS, é preciso estar além de um imaginário antimanicomial, precisa ser expressa por atitudes do poder público que assegurem uma estrutura
mínima nos CAPS.
7.4 Articulação com o SAMU
E03: Tem muita assim para melhorar. Algumas coisas, por exemplo, o trabalho da
SAMU, por exemplo, que né, porque a gente às vezes depende muito da SAMU,
quando um paciente está num quadro é, é, de convulsão ou outro tipo qualquer [...]a
gente liga para a SAMU, tem vezes que a SAMU, a gente até entende que a SAMU,
às vezes, é pouco, poucas ambulâncias para, um leque, né, e às vezes a gente vê que
realmente eles demoram e a gente não sabe porque e os pacientes às vezes fica aqui
[...] às vezes, eles não vêem [...] (Fonte: Entrevista).
A falta de articulação como o SAMU – Serviço de Atendimento Móvel de Urgência –
é um problema que o CAPS enfrenta. Já teve várias vezes, que mesmo ligando e pedindo uma
ambulância nos casos de emergência, ainda assim não foram atendidos pelo SAMU. Já teve
situações em que os funcionários tiveram que levar em carros próprios os pacientes nos
momentos de crise, porque o SAMU, não fez o pronto-atendimento, ou quando o faz, faz
depois de muito tempo.
7.5 Articulação com a Rede de Saúde
E02: [...] é precário também depender de um serviço, da própria rede às vezes é até
meio complicado. Até mesmo agora que a gente começou agora com um serviço
com um rapaz que foi contratado é de fazer exames de sangue, a gente antes não
tinha isso, entendeu? [...] às vezes encaminhava o paciente, mas o paciente não
conseguia porque o outro serviço lá não conseguia atender porque era psiquiátrico.
(Fonte: Entrevista).
Nessa fala, temos uma questão que apesar de ser discutida adiante, merece ser
apontada: esse rapaz contratado – fazia uma importante ponte entre o CAPS e o restante da
rede, que foi interrompida pela sua saída da Instituição. Isso é um problema e um exemplo de
que várias ações necessárias ao CAPS são interrompidas no serviço devido ao desligamento
79
dos profissionais, ou seja, projetos que se encontram em processo embrionário, antes de se
constituírem como ações efetivas no serviço são rompidos por conta desses afastamentos.
Todos perdem com isso, o CAPS, os trabalhadores, os usuários.
E04: Uma coisa que a gente está tentando ver é a parte da saúde física dos nossos
pacientes que é muito precária. E isso é um processo que ainda está engatinhando, a
gente tem diabetes, hipertensão, câncer, essas coisas todas, a gente ainda não
consegue ainda meio que engajar eles na rede. (Fonte: Entrevista).
Existe uma falta de articulação do CAPS com a rede de saúde de Niterói, problema
que precisa ser solucionado, principalmente quando vemos na instituição pacientes que
possuem outros problemas clínicos e que poderiam a partir de tratamentos específicos terem
seus problemas solucionados se, esse elo não fosse tão fluido, como o é na prática.
7.6 Engessamento dos profissionais
E06: Também dos profissionais, isso de, que já está cristalizado, sabe.
Entrevistador: Ah, entendi. Que já está muito tempo na rede e aí...
E06: E que é assim, aquele paciente é assim, ah é assim mesmo. Não! (Fonte:
Entrevista).
O engessamento dos profissionais é entendido aqui como um fator de subtração, ou
seja, um fator que diminui a potência do sujeito. Esse engessamento se dá pela falta de
abertura à novas perspectivas, visões e novos olhares, para o cotidiano, pessoas e situações
dentro do CAPS.
E07: Eu acho assim, para o paciente, às vezes eu acho que a gente fica, é, eu acho
que a gente fica um pouco engessado no trabalho, sabe, às vezes a gente fica, está
tão acostumado, aquilo que a gente fez numa época deu certo?E aí a gente fica tão
com aquilo que, ah não, deu certo, então vamos continuar com aquilo, que a gente
esquece que aquele cara pode estar muito mais do que a gente pensa, entendeu? E aí,
eu acho que isso é muito negativo assim. Eu acho que às vezes, chega alguém de
fora... E é, mas assim, eu digo assim, às vezes chega alguém de fora e fala “por que
você não faz isso com fulano? (Fonte: Entrevista).
É como se todas as relações se naturalizassem de tal maneira que as pessoas não
enxergassem mais as coisas, as pessoas e as situações e não percebem as necessidades mais
básicas de uma pessoa, como é o caso de uma toalha.
E06: Tem, mas é, é, é, são essas coisas cristalizadas que, por isso que eu falei dos
novos, que estão chegando, porque estranha ver um banheiro sujo, estranha. Dizer
que não tem toalha, é estranho, e para quem está já é...
Entrevistador: Já normalizou.
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E06: “É assim mesmo”.
Entrevistador: Naturaliza.
E06: Não é assim mesmo! A gente toma banho mas a gente tem toalha...
Entrevistador: É.
E06: A gente toma banho mas o banheiro está limpo. Então não é normal. [...] Mas
por exemplo, não tem toalha. E essa questão surgiu agora “Ah, não tem toalha”!
Entrevistador: É, como é que ele vai tomar banho?
E06: Então é uma questão que a gente está providenciando agora, assim sabe.
E07: Bom qualquer paciente pode tomar banho, né, tem chuveiro lá atrás, é, o único
problema é que a gente não tem toalha, às vezes o paciente se enxuga com o pano de
chão ou às vezes ficam molhados o dia inteiro. (Fonte: Entrevista).
Sobre esse incidente uma funcionária desabafou:
OP - Isso é um absurdo! Para quer ter chuveiro, se o paciente não tem como se
secar? Já teve vezes que o paciente se secou com pano de chão porque não temos
dinheiro para comprar toalhas. Em alguns casos ficam molhados porque não se tem
como secar. (Fonte: Diário de Campo).
Em relação a esse problema, outra profissional, também se manifesta, dizendo na
entrevista:
E06: [...] são essas coisas cristalizadas que, por isso que eu falei dos novos, que
estão chegando, porque estranha ver um banheiro sujo, estranha. Dizer que não tem
toalha, é estranho. (Fonte: Entrevista).
Já presenciei uma situação desumana ocasionada pela falta de toalha no CAPS. Um
usuário defecou na roupa e precisou por conta disso tomar um banho para se restabelecer.
Enquanto o usuário estava tomando banho tudo estava sob controle; o problema apareceu de
fato, quando o banho acabou, pois não tinha toalha no CAPS para o usuário se enxugar.
Para resolver de pronto a situação, o estagiário sobe ao segundo andar, onde eu me
encontrava, para procurar no armário de roupas doadas, algo que ele pudesse dar para o
usuário se enxugar e usar. Enquanto o estagiário revirava as roupas com rapidez, falava em
tom de revolta e indignação:
OP: Mas isso é um absurdo! Não vai servir nele, não vai servir nele. Aqui tem mais
roupa de mulher, como é que eu vou fazer? Ele está todo molhado no banheiro lá em
baixo. Como é que pode não ter toalha no CAPS?(Fonte: Diário de campo).
Também me fiz a mesma pergunta: como pode coisas desse tipo permear o serviço do
CAPS? Como conceber, sem se revoltar, que um usuário, se enxugue com pano de chão ou
fique molhado na instituição, porque o serviço não tem verbas suficientes para comprá-las?
Será nesse sentido, que a perspectiva de um ‘olhar novo’ se torna importante no serviço,
81
porque esse olhar vai de encontro à contextos problemáticos, que estão naturalizadas há muito
tempo, ao permitir um questionamento diante dessas situações. Esses olhares funcionam
como molas propulsoras, que colocam como diz o ditado, ‘a roda para girar’.
Maturana e Varela ressaltam a importância da relativização de olhares:
Só quando, em nosso ser social, chegarmos a duvidar de nossa profundamente
arraigada convicção de que nossas inabaláveis e "eternas" certezas são verdades
absolutas (verdades inobjetáveis sobre as quais já não se reflete), aí então
começaremos a nos desvencilhar dos poderosíssimos laços que a armadilha da
"verdade objetiva e real" tece. Desumana armadilha esta, pois nos leva a negar
outros seres humanos como legítimos possuidores de "verdades" tão válidas como as
nossas. (MATURANA; VARELA, 1995, p.25).
Na saúde, o compartilhamento de perspectivas, é de suma importância para a
construção do conhecimento. Do conhecimento do caso, das dificuldades, dos impasses e das
necessidades de cada paciente. Essa construção de conhecimento compartilhada, relativizada
pelo questionamento das verdades absolutas, produz uma nova subjetividade para todos os
envolvidos no processo; sejam eles os trabalhadores ou usuários.
Foi a partir dessa relativização, que foi possível, começar as providências para se ter
toalhas no CAPS. Pode-se dizer então, que sendo assim, esses atravessamentos de olhares e
perspectivas aumentam a potência do usuário quando são valorizados pelo serviços.
7.7 Recursos Financeiros
São inúmeros os relatos que evidenciam o problema de falta de recursos financeiros no
CAPS, são eles:
E03: Porque como aqui a gente não tem verba, entendeu, seria de muita importância
que aqui fosse visto com outros olhos.
E05: Porque é difícil assim a gente manter a oficina mais pela verba mesmo, né, que
é difícil, a gente faz tudo, pede doação, faz uma coisa, faz outra, e assim funciona,
mas com dificuldade, isso deveria ser bem mais fácil, né, porque isso ajuda muito a
eles, né, muita coisa.
E08: Digo até, desde um material para a oficina que não tem uma verba, e tem que
correr atrás, né, que a gente não tem uma ajuda. Não tem o recurso, a gente tem que
inventar.
E09: A gente tem dificuldade de, de conseguir os insumos às vezes, mais simples,
mais básicos e tal [...]. (Fonte: Entrevista).
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A falta de estrutura e de recursos financeiros influencia diretamente na vida dos
usuários, afetando-os negativamente.
Mediante a falta de estrutura e de recursos financeiros, mecanismos vão sendo
ativados internamente para tentar dar conta desses problemas, que apesar de serem paliativos,
vão sendo construídos para fazer frente à esses problemas, é que pode-se chamar de ‘linhas de
fuga’, a partir de novas práticas institucionais.
[...] práticas na perspectiva de desterritorializar os saberes e fazeres instituídos e
possibilitar a vigência de linhas de fuga, de movimentos nômades rumo a um plano
conceitual ainda desconhecido, em busca de novas perspectivas para a clínica em
seu devir. A desterritorialização, como conceito deleuziano, compreende
movimentos que nos projetam para um hibridismo conceitual fruto de uma
mobilidade e do desenraizamento da realidade em que nos situamos para o plano do
devir. (VIEIRA; SILVEIRA; FRANCO; 2011, p.11).
É o caso da pintura do segundo pavimento do CAPS, que só foi possível, pela
movimentação de arrecadação de dinheiro e materiais providenciados pelos profissionais que
se mobilizaram a partir das vendas das roupas doadas, juntamente com a ajuda dos familiares
dos usuários.
A título de exemplificação da situação em relevo, transcrevo a reportagem “Saúde
Mental sobrevive de doações” de Luiz Gustavo Schmitt, intitulada de “Pais e funcionários
ajudam a manter centros municipais de assistência”:
“Um cartaz afixado à entrada do Centro de Atenção Psicossocial Infantil (Capsi)[...],
no Ingá, informa: “Recebemos contribuições em dinheiro para a festa da unidade e
para um fundo de obras”. No Centro de Atenção Psicossocial (Caps), no Centro, um
aviso colado na parede pede: “Deposite aqui sua doação”. Funcionários das
unidades, municipais, e pais de pacientes contam que coletam dinheiro e promovem
eventos para ajudar a driblar a escassez de recursos que assola o serviço. O objetivo
é arrecadar verba para serviços básicos, como transporte para visitas domiciliares a
pacientes, manutenção predial e compra de material para oficinas de artes. - O
serviço é mantido graças ao esforço pessoal dos funcionários e das famílias dos
assistidos — informa a diretora da Associação dos Usuários e Amigos da Saúde
Mental [...]. No CAPS, pais de pacientes dividiram os custos da pintura do segundo
andar. Agora, eles querem angariar verba para colocar um toldo na área externa da
unidade. No Capsi, funcionários e familiares pretendem consertar o toldo do pátio,
que está rasgado, e pintar as paredes descascadas do imóvel. [...] médico do Caps,
diz que a falta de infraestrutura tem prejudicado o atendimento. Ele conta que
enfrenta dificuldades para transferir pacientes para internação em unidades
hospitalares municipais. Compro papel com o meu dinheiro para imprimir
prontuários médicos. A impressora e o computador são meus, porque os daqui não
funcionam. Agora, é comum que os pacientes da saúde mental sejam recusados
numa emergência? O Hospital de Jurujuba está superlotado. Também não é possível
marcar consultas com oftalmologistas e ortopedistas, por exemplo. O problema é
que não há vagas. Procurada, a Secretaria municipal de Saúde não se pronunciou
sobre o assunto. (Disponível Online: <http://oglobo.globo.com/niteroi/saude-mentalsobrevive-de-doacoes-3273507> Acesso em: 25 Jan. de 2012).
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Segundo a reportagem acima, esse problema não é específico do CAPS em questão,
sendo também compartilhado por outros CAPS, o que evidencia um problema mais estrutural
e abrangente, envolvendo assim a gestão da Saúde Mental no município de Niterói como um
todo.
E03: seria de muita importância que aqui fosse visto com outros olhos, né, que o
trabalho que é feito aqui dentro, só quem está aqui dentro mesmo é que consegue ter
uma noção de como é o trabalho e como é difícil, e o que a gente tem que fazer para
conseguir alguma coisa. (Fonte: Entrevista).
Apesar dos arranjos inventados pela equipe para dar conta dos problemas, Koda
(2003), ressalva que o trabalho em Saúde Mental perde seu poder de questionamento da
sociedade, quando os profissionais tomam para si o trabalho árduo de dar conta das várias
dimensões da existência do sujeito e daquilo que o Estado preteriu e que deveria dar
cumprimento no desenvolvimento de suas políticas. Se por um lado os arranjos, mostram a
eficácia no cotidiano da instituição, por outro, evidenciam a ausência do poder público nessas
mesmas questões.
Isso fica evidente quando colocamos sob relevo, a potência existente no trabalhador de
acionar e operar mecanismos de mudanças na instituição. (Ver falas abaixo).
E08: Então hoje em dia, a gente luta, inventa, faz muitas coisas para dar conta.
E09: ...é, a gente não tem ajuda da, da prefeitura, tanto é que a gente está tendo aí
várias iniciativas para fora, porque a gente cansou de esperar por isso então a gente
com o nosso desejo para a coisa, para não deixar a peteca cair, a gente um pouco
está aqui se mobilizando para conseguir coisas de uma outra maneira, pela via da
doação, pela via de, de sei lá, de projeto, de mandar o projeto para lá e para cá, e vê
o que é aprovado para ver se a gente é aprovado e dar uma levantada porque a gente
sabe que o nosso trabalho tem muita qualidade mas a gente sabe que, mas a gente
precisa de uma estrutura mínima, umas coisas assim para trabalhar [...] (Fonte:
Entrevista).
Por isso, se torna importante um processo de desterritorialização dos trabalhadores e
usuários do SUS para que se tenha tais mudanças no serviço, como nos aponta:
Mudar o modo de produção do cuidado pressupõe, no nosso entendimento, além de
mudança do processo de trabalho, um processo de desterritorialização dos
trabalhadores e usuários do SUS. Tendo por referência que os trabalhadores operam
a partir de territórios existenciais, isto é, o território não é físico, mas se encontra
dentro dele, organizado pela sua subjetividade [...] (FRANCO et al. 2009, p.34).
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Nesse sentido, para que se tenha uma ‘mudança em caráter estrutural e duradoura’ no
serviço ofertado no CAPS, é preciso que se tenha a produção de uma nova subjetividade do
trabalhador, que seja capaz de romper com os modelos estruturados até então.
7.8 Relações Trabalhistas
As reclamações nesse sentido evidenciam uma falta de sintonia com a rede de Saúde
Mental de Niterói e também com os princípios da Reforma Psiquiátrica (na medida em que
não está valorizando a mão-de-obra que irá de fato executar a reforma dentro dos serviços)
Os trabalhadores denunciam a precarização do trabalho em saúde mental, marcada
pela falta de regulação e vínculo empregatício e também pela falta de atenção quanto aos seus
direitos trabalhistas por parte do poder público desde o local às instâncias federais.
E09: As relações de trabalho são outra precariedade, assim, a gente percebe que na
rede de Saúde Mental de Niterói, é a gente tem a sensação, eu tenho a sensação
muito clara assim, cada dia mais de que a rede de Saúde Mental de Niterói se
sustenta a partir do desejo das pessoas [...] então assim, porque, é, condições de
trabalho muito ruins, é salários muito ruins, sem vínculo nenhum, uma precarização
gera [...].
E12: A gente trabalha com, com recursos muito escassos, e isso é reflete para os
pacientes né, quando a gente perde profissionais muito qualificados porque não
recebem salário digno, então isso faz muita diferença no serviço [...]. (Fonte:
Entrevista).
O processo da Reforma Psiquiátrica no Brasil, como cita Amarante, passou por
quatro dimensões: a epistemológica – campo teórico-conceitual; a técnico-assistencial – a
partir do questionamento do isolamento do paciente; a jurídica-política - redefine as relações
sociais e civis em termos de cidadania e direitos humanos e por fim, a dimensão cultural –
transformar o lugar social da loucura. (AMARANTE, 2009).
Apesar dessas dimensões, considero ser preciso adicionar mais uma dimensão – a
valorização dos profissionais em Saúde Mental. A questão: como cuidar bem de quem não é
bem cuidado? Ora se o profissional não é valorizado, não possui os direitos mínimos de um
trabalhador, não tem respaldo nenhum pelo poder governamental, como exigir dele um
atendimento condizente com os ideais da Reforma?
85
7.9 Rotatividade dos profissionais
A grande rotatividade de profissionais dentro da instituição, na maioria dos casos, está
ligada à questão econômica e aos problemas oriundos do vínculo trabalhista; mas também
podem ocorrer pelo simples término de um estágio. É o que acontece com os residentes que
depois de um ano na instituição, precisam sair da mesma para completar sua formação
acadêmica em outra instituição. Independente do motivo da saída do profissional, essa é uma
questão que precisa ser discutida, devido ao impacto provocado dentro da instituição.
A alta rotatividade dos trabalhadores em um serviço de saúde mental é um sério
problema que implica diretamente no bom funcionamento da instituição, pois com o
desligamento do profissional tem-se um rompimento entre as relações sociais que foram
construídas entre usuários e membros da equipe, mesmo porque o estabelecimento destas
relações de vínculo, confiança e proximidade, que se firmam no cotidiano dentro do CAPS,
não necessariamente ocorre de maneira rápida e fácil com os usuários do serviço, é preciso
um tempo para que essas relações sejam construídas.
O comprometimento da relação social de proximidade estabelecida entre o paciente e
o profissional fica evidente na fala de um profissional, o qual demonstra que não a adaptação
de uma nova referência não é tão simples como se pensa:
Entrevistador: Aí vai ter que arrumar uma outra Referência para ele?
E04: Uma outra referência para ele. E aí justamente o que acontece, ele pode sair do
serviço também, ele pode dar uma desestabilizada.(Fonte: Entrevista).
Nesse CAPS, esse problema pode ser evidenciado de perto, pois enquanto estávamos
realizando o trabalho de campo, em 2011, cinco profissionais se desligaram do serviço.
Dos cinco que saíram, 03 profissionais eram referências institucionais para os
pacientes (duas eram Psicólogas e uma Terapeuta Ocupacional), um era Acompanhante
Domiciliar e outro trabalhava como oficineiro.
OP – Não tem como eu continuar. Aqui está meu coração, mas lá está o meu ganha
pão. (Fonte: Diário de campo).
Na fala acima, fica claro que o profissional apesar da questão afetiva, de se sentir
afetada pelo serviço, não teve condições de continuar no trabalho (mesmo gostando) devido
às condições econômicas (ganha pão). Essa questão não retrata um panorama isolado, mas
que se repete sempre no cotidiano da instituição.
86
Tal questão tem que ser repensada pelos gestores da saúde mental, ao priorizarem a
realização de concursos públicos para os trabalhadores da área da saúde, permitindo-lhes
obter certa estabilidade e condições mínimas para realizar o trabalho, no lugar de contratações
temporárias e vínculos frágeis do ponto de vista trabalhista.
A princípio a Reforma esteve voltada para a implantação e implementação dos CAPS,
entretanto, agora se faz mais que necessário que os órgãos públicos levem a Reforma para
dentro do estabelecimento. Se de um lado, espera-se que essa proposta anti-manicomial,
segue aos trabalhadores, tratando com mais respeito e dignidade as questões trabalhistas dos
profissionais que se dedicam á assistência da saúde mental; por outro, espera-se que esses
mesmos trabalhadores vivenciem a Reforma em seus cotidianos de trabalho.
Essas saídas dos trabalhadores afetam, no sentido espinosiano, diretamente o cotidiano
da instituição, e em consequência a vida dos usuários e dos outros trabalhadores que
permanecem na instituição. Irei apontar a seguir esses afetamentos.
O tempo todo, os trabalhadores estão se afetando mutuamente, afetamento esse que
reflete diretamente nas práticas que se constituem dentro do CAPS.
E12: Então o paciente que está aqui mesmo que não é minha referência, ele é meu
paciente enquanto eu estiver aqui, porque eu sou responsável pelo plantão,
entendeu? E, é isso, quando o paciente passa por um discurso, todos estão a par do
caso e tal, eu posso tratá-lo, tratar do paciente, como eu já fiz algumas vezes e outros
profissionais fazem de intervir em momentos de crise, né, mesmo não sendo meu
paciente, não sendo minha referência, mesmo sendo o paciente não minha referência
[...] você está vendo que o paciente não está bem, você intervém, você liga para a
família, você liga para a referência para você saber mais do caso, para você estar
intervindo. (Fonte: Entrevista).
Tanto a mudança como a saída de algum profissional, principalmente se este for uma
referência para o usuário, produzem uma tensão no CAPS. Iremos ver a seguir de que forma
essas mudanças e saídas afetam o cotidiano da instituição.
1) Em alguns casos troca-se a referência, como resposta à algum trabalho ‘mal-sucedido’,
ou seja, produziu um ‘mau encontro’:
E01: Às vezes o técnico entende que ele já investiu tudo o que ele já apostou
naquele paciente, que ele já tentou várias coisas e que o trabalho já está um pouco
desgastado por ele ou pelo paciente, [...] pela clínica e muitas pessoas [...] cambiam
de paciente. Agora vou assistir, vou te passar o paciente, o caso [...].
Se esse vínculo ele não existe entre referência e, por falta de investimento da
referência, é uma situação. Se esse vínculo que ele tem com a referência dele é um
vínculo frágil, mas não é por falta de investimento, é por alguma questão da psicose,
alguma coisa que se deu na transferência ali, que dificultou o vínculo e aí é o
momento que vão entrar outras pessoas, que não são referências dele que vai se
87
referenciar de alguma outra forma, né, e a gente vai decidir se a gente vai preservar
o lugar daquela referência ou se vai mudar.[...]E aí, às vezes acontece, tem que
trocar o técnico de referência, porque alguma coisa que acontece ali impossibilita
daquela pessoa trabalhar com o paciente. É muito no caso a caso, não dá para você
fechar e dizer. (Fonte: Entrevista).
Interessante pensar, que nesse sentido, o serviço tem uma postura ativa e de
dominação, deixando o paciente, por outro lado, como um sujeito passivo e sem autonomia
para implicar diretamente nesse processo de escolha de mudança de referência, restando-lhe
ser receptivo à essa imposição, mais uma vez.
A mudança de referência de um paciente por outro profissional, há de ser obrigatória,
face à saída do profissional do CAPS ou à decisão da equipe pela mudança, pois o paciente
não pode ficar sem esse acompanhamento.
A reunião de equipe é importante ferramenta para resolver os impasses que surgem no
serviço, na medida em que são feitas revisões periódica dos casos, seja para falar do paciente,
da adesão ou não do paciente ao tratamento ou sobre o andamento do caso de uma forma
geral.
O termo referência não é aleatório, tal como a própria palavra diz, ele será a
referência, ou seja, a figura que deverá se direcionar ao paciente, à família e a comunidade,
quando necessário. Nesse sentido, tanto quanto desejável, espera-se que a referência conheça
o caso do paciente, e que esteja mais atento ao caso em que é referência do que os outros que
não o são. Assim, para obter maiores informações sobre qualquer coisa vinculada àquele
paciente, o outro profissional da instituição deverá se reportar a referência, porque
teoricamente está mais a par do caso, ou até mesmo porque o paciente por algum motivo se
abriu com esse outro profissional, compartilhando suas angústias, desejos e anseios em
alguma ocasião cotidiana.
E03: Funciona por causa disso, porque assim a referência é uma pessoa tipo assim,
você, quando tem alguma coisa para falar daquele paciente, por exemplo, eu que sou
[...] sou acompanhante e eu estou na rua com o paciente, e o paciente às vezes me
fala alguma coisa, né, uma determinada coisa que não falaria para ninguém mas
falou para mim, se abriu de alguma forma, eu vou chegar diretamente à essa
referência[...]. (Fonte: Entrevista).
Por conta disso, para separarmos essa relação referência e usuário, definimos por
‘referência institucionalizada ou formal’ – a que é oficialmente a responsável por um
acompanhamento mais próximo do caso do paciente e de ‘referência não-institucionalizada ou
informal’, para aqueles profissionais que mesmo não sendo a referência oficial, criam
vínculos com os pacientes.
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A relação paciente-referência nem sempre se dá na numa mesma sintonia. Nem
sempre a referência institucionalizada pelo serviço é de fato a referência aos olhos do
paciente. Apesar do paciente não poder tomar essa decisão de forma direta, mostrando sua
autonomia enquanto sujeito constituinte de desejo, ele à faz de forma sutil, ao eleger a sua
própria referência. Isso mostra como o modo de produção de cuidado se territorializa e se
desterritorializa, mostrando que há um engendramento invisível, mas que denotam na prática
toda uma lógica de cuidado e que afeta diretamente no serviço.
E07:Alguns pacientes escolhem as pessoas que eles vão falar, e nem é sempre são as
referências assim, né, de fato, o técnico, às vezes pode ser um AD, que aí o cara vai
ser atendido junto com o AD, que aí com o AD ele vai conseguir falar das
maluquices. Que ele não falaria para outra pessoa. A referência tem que saber dizer
assim do caso, e dá uma certa direção, mas não necessariamente o cara vai falar da
maluquice dele total para a referência, entendeu? (Fonte: Entrevista).
Apesar de possuir aspectos favoráveis, a referência, possui também aspectos
contraditórios e que foram apontados pelos entrevistados como inevitáveis, já que para evitálos teria que se mudar o arranjo no que tange à organização do serviço ofertado no CAPS.
Esse é, pois, o paradoxo que envolve a referência, e que não pode passar despercebido pelos
profissionais que de alguma forma, afetam ou são afetados por esses usuários, quando:
Saída do profissional
E12 [...] então essa referência que os pacientes fazem a determinadas pessoas é
muito importante. Eu acho que sustenta muitos pacientes. Tanto que a saída é uma
coisa que acontece sempre assim, a saída dos profissionais acarreta uma, a piora de
alguns pacientes, então os pacientes são acompanhados quatro, cinco anos pelo
profissional, aí o profissional sai, o paciente perde uma referência, perde alguém que
dá lugar ele na Instituição.
Entrevistador: E a referência pode sair também do serviço, né?
E04: Isso.
Entrevistador: Aí vai ter que arrumar uma outra Referência para ele?
E04: Uma outra referência para ele. E aí justamente o que acontece, ele pode sair do
serviço também, ele pode dar uma desestabilizada. (Fonte: Entrevista).
O paciente está restrito à referência
E01: Muitas vezes o paciente cola na referência, é paciente, do fulano, da fulana, e
aí se perde a dimensão plural do CAPS, porque é isso, nós estamos ai disponível
para a convivência que é o dispositivo chave do CAPS, que é a gente apostar na
convivência.
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Falta de vínculo entre referência e paciente
E03: Isso, não depende às vezes o paciente ele faz o vínculo com o acompanhante e,
mas não faz o vínculo com a referência. Entendeu? Então assim, às vezes isso
dificulta o trabalho, porque nós como acompanhantes, a gente, não pode tomar
nenhuma decisão daquele paciente, que a gente está se metendo na vida daquele
paciente. Então assim, a gente está acompanhando, está dando suporte de alguma
forma, está dando orientação, está dando, mas assim é, tudo o que for definido é
definido ... é pela referência e pelo médico. (Fonte: Entrevista).
Falta de vínculo entre o serviço e o paciente.
E04: Muitas vezes o paciente, ele acaba fazendo vínculo com a Referência e não
necessariamente com a Instituição. O que a gente tenta é que isso não aconteça, mas
na psicose [...] Então assim, o mais difícil, é quando o paciente está muito mais
vinculado à referência do que ao serviço, a gente tenta o tempo todo que ele esteja
vinculado ao serviço.
E12: Eu acho que não, eu acho que o único problema que pode acontecer é
justamente esse, quando é o paciente fica, a referência o paciente não fica referido
aos outros entendeu? O paciente fica muito colado na referência... E aí o resto da
equipe não sabe do caso. Isso não é uma coisa que acontece aqui no CAPS,
geralmente os casos são discutidos em reunião de equipe, e a equipe toda fica a par
dos casos, e vê qual o melhor jeito de se fazer um vínculo com o paciente. (Fonte:
Entrevista).
Esse ponto merece destaque, e precisa ser re-considerado pela instituição, já que com a
saída dos trabalhadores, o usuário é o primeiro a ser afetado, pois ele fica sem sua referência.
Se a articulação com o Poder Público, com o SAMU, com a Rede de Saúde Mental,
com as questões trabalhistas e por conseguinte, os problemas originados pela grande
rotatividade dos profissionais, são problemas – exógenos - que afetam negativamente o modo
de produção do cuidado no CAPS e que precisam ser vistos pelos sujeitos (coletivos e
individuais). Entretanto, existem fatores endógenos no CAPS, que precisam ser revistos por
esses mesmos sujeitos, pois como aqueles, também causam relações de tristeza a partir dos
encontros entre os corpos dos usuários com os trabalhadores. Se os fatores exógenos, são
apontados com mais facilidade pelos trabalhadores, os endógenos (que se relacionam
diretamente com a práxis do trabalhador) já não o são, pois eles refletem as práticas que esses
mesmos profissionais vão agenciando em seu cotidiano; se tornando por isso, muitas vezes,
invisíveis e até mesmo imperceptíveis. Irei a partir de agora, evidenciar justamente esses
fatores.
Logo que comecei a fazer a pesquisa, uma das coisas que mais me impressionaram foi
ver que alguns usuários pareciam que estavam simplesmente compondo o CAPS, como
qualquer outro objeto que lá se encontrava: um banco, uma cadeira, e tantos outros objetos
90
que configuram outros cenários só por configurar um cenário. A primeira impressão que tive
é que os pacientes, naquelas situações estavam sem nenhuma, ou por vezes, possuíam uma
mínima funcionalidade dentro do serviço, era como se eles já fizessem - de uma forma tão
naturalmente - parte do cenário social que chegavam a passar despercebidos por outros
usuários e pelos trabalhadores também.
Isso se tornava muito evidente, quando vi que alguns pacientes simplesmente
passavam o dia todo dentro CAPS sem fazerem nada; uns simplesmente sentados sem realizar
nenhuma atividade, e outros deitados e até dormindo, sem se comunicarem com nenhum
outro usuário e nenhum trabalhador, esperando em alguns casos tão somente a hora das
refeições ou a hora de irem embora. Inevitavelmente tão logo me lembrei de outra paisagem
social parecida com essa - um Hospital Psiquiátrico no qual fiz minha especialização em
Saúde Mental.
Essa lembrança imediata me tomou de pronto, e logo me questionei: o quê tem nesse
CAPS, que me fez retornar tão imediatamente à algumas situações com que me deparei no
meu trabalho de campo no Hospital Psiquiátrico de outrora?
Na tentativa de fazer frente à esse meu questionamento, logo percebi que se tratava de
um ‘ruído’, de uma tensão que existia nesse serviço e que eu precisava mergulhar melhor na
questão, principalmente por impactarem os processos sociais da produção do cuidado.
Qual a vantagem de atuar sobre esses ruídos e processos? Na medida em que, nas
práticas de saúde, individual e coletiva, o que buscamos é a produção da
responsabilização clínica e sanitária e da intervenção resolutiva, tendo em vista as
pessoas, como caminho para defender a vida, reconhecemos que, sem acolher e
vincular, não há produção desta responsabilização e nem otimização tecnológica das
resolutividades que efetivamente impactam os processos sociais de produção da
saúde e da doença. (FRANCO et al., 2009, p.346).
Saber que ruído era esse, que barulho era esse que soava para mim e me incomodava,
era tentar compreender ao mesmo tempo, de que forma o cotidiano do usuário do Hospital
Psiquiátrico se tornou diferente do cotidiano do usuário do CAPS. Isso se tornou muito
importante, porque se em nada mudou, onde foi parar a Reforma Psiquiátrica e o atendimento
psicossocial nesses estabelecimentos? Percebi então, que eu não poderia me abster dessa
questão de modo algum, quando estivesse fazendo meu trabalho de campo. E foi assim, com
essas considerações que comecei a pesquisa, propriamente dita.
A partir de então, o Hospital Psiquiátrico, se tornou por tabela uma referência para
meu entendimento da produção do cuidado no CAPS, já que as redes extra-hospitalares
preconizam justamente um distanciamento com as práticas de cunho manicomial. Me
91
questionei então: em que medida há uma diferenciação no perfil assistencial no CAPS em
relação ao Hospital Psiquiátrico?
Para resolver essa questão, busquei novamente os estudos de Goffman, sobre as
características desse tipo de instituição social e encontrei algumas convergências nas práticas
dos hospitais que se repetem no CAPS estudado. Essas convergências, entretanto, não
permitem por isso, que enquadremos o CAPS como uma Instituição Total, esse não é o
propósito; mas apenas sublinhar elementos semelhantes em ambas instituições. São elas:
Apesar de não ser nos mínimos detalhes, a instituição regulamenta e controla as
atividades dos usuários, sem levar em conta suas questões particulares e seus desejos.
(caso usuária Z)
Existem dois universos sociais antagônicos: o dos profissionais que elaboram o
Projeto terapêutico Individual, e o dos usuários que o seguem sem nenhuma
participação nesse processo.
Há certa desfiguração pessoal do internado, quando ele se torna invisível na Instituição
sendo apenas mais um a compor o cenário da instituição. (caso da Usuária Y e Usuário
X).
Pude constatar essas convergências no cotidiano da Instituição, por exemplo, quando
uma usuária veio até a mim e me disse que estava triste porque a tiraram do trabalho que
realizava no CAPS, e que ela gostava muito. O diálogo com a usuária Z foi o seguinte:
Usuária Y: Eu só venho na terça-feira, venho e volto sozinha, mas às vezes fico
perdida, me perco.
Eu: E quem te guia?
Usuária Y: Deus!
Eu: E por que você vem só na terça?
Usuária Y: Porque me tiraram da louça. Eu adoro lavar louça. Mas eles me tiraram e
agora eu só venho uma vez aqui.
Eu: E quem está lá agora?
Usuária Y: Outras pessoas, mas outras foram mandadas embora também. E é por
isso, que eu só venho na terça-feira.
Eu: E por que tiraram você de lavar louça?
Usuária Y: Porque eu já tenho dinheiro e não posso ter o negócio de lavar a louça.
Essa fala trouxe para a questão, que nesse caso não houve na instituição nenhum tipo
de valorização em relação ao sentimento da paciente, nenhuma consulta à ela em relação a sua
vontade ou não de ficar no trabalho, ou seja, ela não teve voz, não foi escutada pela equipe,
que a retirou da atividade sem que esse processo fosse feito.
92
Pode-se dizer com esse exemplo, que o CAPS não representou de fato ser um espaço
acolhedor. Isso porque, segundo Silva Junior e Mascarenhas, os conceitos de acolhimento,
vínculo-responsabilização e qualidade da atenção à saúde, estão interligados, diretamente á
capacidade da instituição em dar ouvido aos desejos dos pacientes.
Acolhimento incluiria as noções de acesso, referência, capacidade de escuta e
percepção das demandas e seus contextos biopsicossociais, a discriminação de riscos
e a coordenação de um trabalho de equipes multiprofissionais, numa perspectiva
interdisciplinar, e um dispositivo de gestão para ordenamento dos serviços
oferecidos. (SILVA JUNIOR, et al., 2008, p.02).
Pude perceber também nas falas que o acolhimento é concebido como simplesmente
um local que está ali para receber os usuários, e não como um local potencialmente
importante para a efetivação de um processo de cuidado que valorize a capacidade de escuta e
a percepção das demandas específicas de cada paciente.
E02 [...]é um lugar onde eles é passam, alguns né, a maior parte do tempo, [...] no
caso a maioria são moradores de rua, então o CAPS meio que acolhe esse pessoal
também. [...] no caso a maioria são moradores de rua, então o CAPS meio que
acolhe esse pessoal também.
E10: Eu posso dizer desse CAPS aqui, pela lógica de trabalho que a gente tem aqui,
uma coisa que não dá para perder de vista, aqui nesse CAPS, é o acolhimento. Sabe,
a forma como a gente acolhe os pacientes, a forma como a gente acolhe a família, a
forma como a gente acolhe a comunidade, sabe, como a gente acolhe a produção
científica, os estagiários, sabe, isso não pode se perder aqui no CAPS. Esse clima
quase que familiar, com todas as aspas nessa palavra.E10
Entrevistador: Entendi.
E10: Mas esse clima quase que familiar que a gente constrói aqui e que possibilita
tanta coisa, tanta troca, possibilita tanta coisa com os pacientes. (Fonte: Entrevista).
Uma questão deve ser sublinhada: o CAPS não é um serviço direcionado ao
acolhimento à moradores de rua (conforme apontado na entrevista - E02), este não é o seu
objetivo. Ele é um equipamento direcionado a pacientes com transtornos mentais severos e
persistentes e sua função é de prestar atendimento clínico em regime de atenção diária,
promovendo a inserção social das pessoas com transtornos mentais através de ações
intersetoriais, regulando assim a porta de entrada da rede de assistência em saúde mental na
sua área de atuação e dar suporte à atenção à saúde mental na rede básica. (BRASIL, 2007)
De fato, incluir a dimensão do acolhimento nos serviços, é essencial para que se tenha
a integralidade como uma bandeira política capaz de materializar, no cotidiano da instituição,
práticas que venham a potencializar a vida dos usuários. Será nesse sentido, que o cuidado
deve ser uma ação integral, voltado para a compreensão do sujeito a partir de relações nas
quais o sujeito é compreendido em sua totalidade.
93
Outro momento que me chamou muito a atenção e que vai ao encontro dessas
convergências, foi a constatação da existência de pacientes que ficam marginalizados no
serviço, devido a falta de uma interação social, seja com outros usuários e principalmente com
os profissionais do CAPS. Situação essa, que configuram assim em ‘linhas de morte’, já que
não promovem o acolhimento, o vínculo, a autonomia e a satisfação do usuário.
En el caso específico de la salud, las conexiones entre los diversos processos de
trabajo que se realizan entre trabajadores-trabajadores y trabajadores-usuarios
pueden formar un campo energético, invisible, que funciona em flujos circulantes
que envuelven al cuidado em acto y configuran "líneas de vida" o "líneas de
muerte", según si el encuentro trabajador-usuario produce acogimiento, vínculo,
autonomía, satisfacción, o un modo de actuar que se manifieste de forma acotada,
burocrática, produciendo heteronomía, insatisfacción. Dependiendo de la situación
existente habrá un aumento o reducciónde la potencia de actuar. (FRANCO;
MERHY, 2011, p.12).
A título de exemplificação, irei apontar aqui o comportamento de um usuário que
evidencia de que modo essa ‘linha de morte’ é produzida no CAPS, reduzindo assim a
potência desse usuário. Não se trata aqui de um episódio ou situação que ocorreu de maneira
esporádica, mas sim um episódio constante no CAPS. Este usuário (caso usuário X), costuma
passar toda a tarde simplesmente deitado no CAPS, imóvel, estático, ou seja, sem fazer nada.
Ele ficou sem interagir, não porque estava sem ninguém por perto, pois em vários momentos,
presenciei trabalhadores ao seu lado, na sua frente, sem que nenhum contato à ele fosse
dirigido, nem para lhe perguntar se ele estava bem, se precisava de algo ou até mesmo se
queria participar de alguma atividade.
Em certa ocasião, perguntei a um trabalhador porque isso acontecia, e ele me
respondeu:
Trabalhador: Ele é assim mesmo. Cada paciente tem seu momento, e outra ele fica
assim por causa da sua loucura mesmo. (Fonte: Diário de campo).
Esse é um posicionamento complicado por que permite um viés, na medida em que,
reifica a própria condição do paciente psiquiátrico, de tal modo que tudo e qualquer
comportamento possa a ser justificado devido a sua condição de ‘louco’. Ademais, acaba por
encobrir determinadas atitudes dos profissionais, que se utilizam desse tipo de argumento para
justificarem determinadas práticas.
Essa situação em especial, me chamou muito minha atenção, porque se de um lado eu
via esse paciente deitado o dia todo, por outro, sempre ouvia discursos que apontavam a
grande importância das oficinas para os usuários. Por que esse paciente, então não foi
convidado para participar da oficina que estava acontecendo naquelas tardes em que ele ficava
94
simplesmente deitado? Ao colocar essa questão para alguns trabalhadores, a resposta quase
que imediata era a de que o convite para as oficinas depende muito do Projeto Terapêutico
Individual (PTI) de cada paciente e que, portanto, uns teriam indicação e outros não.
Entrevistador: E como que é feito o convite para quem vai participar?
E06: É aberto. Na hora da oficina eu divulgo, eu falo para todo mundo que vai
começar, falo eu costumava até a falar meninas, e aí eu me peguei nisso e não, e
meninos.
Entrevistador: Que está ali, homens para convidar também. E aí a gente acaba
caindo nisso, chamando os pacientes que já ...
Entrevistador: Frequentam...
E06: Frequentam toda a semana, aí semana passada um paciente veio “você nunca
me chamou para a oficina de beleza”. Eu falei aquilo é o máximo, é verdade, eu
nunca te chamei.
Entrevistador: É, às vezes não participa por causa disso né?
E06: É.
Entrevistador: E você acha que tipo de atitude poderia ser tomada para aumentar o
número de pacientes, já que é tão importante assim?
E06: Não sei, não sei se deveria aumentar, sabe, por aumentar só. Se for só um
interesse nosso, eu acho que não. Tem que ser um interesse deles mesmo, da fazer.
Por exemplo, na oficina de jardinagem tem paciente que falta, pacientes que só
dorme mas que acorda para aquilo, sabe. (Fonte: Entrevista).
Novamente surge outra contradição: se no discurso há uma forte evidência de
valorização das oficinas, na prática já não a temos. Vejamos as falas:
E01: As oficinas. As oficinas terapêuticas são indispensáveis. A oficina de música
porque é arte integradora [...] ela tem efeitos sobre pacientes que a gente não atinge
de outra maneira, a gente não atinge pela fala, a gente não atinge é, pelo trabalho
protegido, por uma coisa mais corporal, porque o toque para a psicose é uma coisa
muito delicada pro paciente, não é todo paciente que aceita ser tocado e a música
tem essa coisa de, é mais diluída na cultura [...].
E05: Eu acho as oficinas muito importante para eles, né, muita coisa, né.
E09: Olha, é, a gente tem sucesso, eu acho que em algumas oficinas [...].
E12: [...] é muito importante
multidisciplinaridade [...].
as
oficinas,
é
muito
importante
é
a
E09: [...] assim, por exemplo, a oficina de beleza, que inclusive eu acho que super
tem a ver com essa coisa, essa proposta que você está trazendo, é, ela não só é
sucesso, como ela foi uma das primeiras a ser, assim instituídas, se perpetua até hoje
e para além disso, foi aberto mais um dia para a oficina de beleza. Então ela agora
funciona não só na quarta, não só quarta como na terça-feira também. Um outro,
com uma proposta um pouquinho diferente, do cuidado um pouco mais com as
mulheres, eu acho que a oficina de beleza é um, é um, eu acho que é um instrumento
potente também de, que eu acho que super deu certo. (Fonte: Entrevista).
As narrativas acima ressaltam as oficinas como importantes para a construção do
cuidado dentro do CAPS, como pode-se verificar a partir das adjetivações: indispensável,
importante, integradora e como um instrumento potente na instituição. Não procuro
95
questionar a eficácia das oficinas enquanto projetos terapêuticos, e nem relativizar as
adjetivações apontadas pelos trabalhos, mas evidenciar uma lacuna entre o que é dito e o
acontece de fato na prática.
Primeira constatação: o número de participantes por oficina é extremamente baixo. De
que modo verifiquei esse dado? Fazendo uma pesquisa no livro das oficinas. Nesse livro, que
fica na sala dos técnicos, os trabalhadores devem – obrigatoriamente – anotar: a data em que a
mesma ocorreu, os nomes dos usuários participantes, e responsáveis pela oficina e também os
acontecimentos que transcorreram nelas.
Como no CAPS existem muitas oficinas, escolhi a oficina de beleza para fazer essa
investigação. Essa escolha se deve ao fato de que nas entrevistas, ela ter sido apontada como
uma das oficinas mais importantes do CAPS, principalmente por resgatar o cuidado com a
imagem, com a aparência e com o corpo.
E07: Eu acho que cuidar do corpo é essencial para mim assim, sabe, eu acho que é
isso, cuidar é eu acho que é isso, a gente precisa é estar ali, é, sei lá, para mim essa
coisa do cuidado tem tudo a ver com o cuidar do seu corpo, cuidar da sua aparência,
né, da, das minhas experiências é isso.
E02: Assim a melhora é visível né, um bem-estar que eles sentem, essa coisa de se
tornar uma pessoa, entendeu?
Eu: Aham.
E02: Para a sociedade, entendeu? Essa coisa é até bom para eles, essa parte, essa
visão que eles tem, depois que ele passa a ter essa rotina com o cuidado, eles vão
percebendo que esse cuidado é fundamental para que a pessoa possa, entendeu,
circular pela cidade sem ser discriminado. (Fonte: Entrevista).
Pesquisei, então, no Livro de Oficinas os registros referentes às oficinas de beleza.
Isso deu bastante trabalho, porque os registros de todas as oficinas estão no mesmo livro,
todos juntos. Esses registros são anotados um após o outro, assim, o trabalhador de uma
determinada oficina faz o seu registro e logo depois, vem outro trabalhador responsável por
outra oficina e faz também as suas anotações até que se esgotem as folhas do livro passando
para um novo.
Comecei pelo primeiro registro que se tem nesses livros sobre a primeira Oficina de
Beleza, que é datado de 08/04/2009 até a centésima oficina datada de 25/05/2011, número que
me permitiu ter uma idéia do que acontecia nas oficinas.
Destas 100 oficinas consultadas, foram registradas o cancelamento de 10 oficinas, por
motivos diversos: por causa de seminário, do carnaval, da copa do mundo, de preparativos da
festa junina, para reformulação do projeto da oficina, de reunião da coordenação, à um
compromisso particular da técnica responsável pela oficina, falta de água no CAPS e também
96
porque a técnica disse que os pacientes estavam muito agitados, não tendo nesse dia ninguém
para auxiliá-la.
A média de usuários participantes das oficinas, que estão registrados é de 8,86
usuários por oficina, um número baixo de participantes, principalmente se levarmos em conta
que o número médio de usuários que frequentam o CAPS por dia é de 80 pacientes.
A menor participação registrada foi de 02 usuários (data de 01/06/2010), justificada
pela técnica responsável da seguinte maneira: “Avalio que a chuva tenha contribuído para o
esvaziamento da oficina, pois poucos pacientes circulavam ao lado de fora da casa”. A maior
participação registrada foi a de 21 usuários (a técnica esqueceu de anotar a data dessa oficina
no Livro, mas pela ordem dos registros, a mesma aconteceu entre os dias 04/05/2011 e
19/05/2011. Esse número de participantes, não ficou despercebido para a técnica, que
registrou no livro “Todos tiveram grande participação. Tivemos hoje um número grande de
usuários, foi muito bom, fizemos um bom trabalho”.(Fonte: Livro das Oficinas).
Como dito anteriormente, os responsáveis pela oficina devem anotar os
acontecimentos referentes às oficinas; o que me levou a pressupor que os nomes dos
participantes sejam imprescindíveis nesses registros já que esses irão nortear as referências e
consequentemente o projeto terapêutico individual. Entretanto, em duas oficinas (datada de
25/01/2011 e 01/02/2011), a técnica anotou somente os nomes de alguns pacientes que
participaram e depois, acrescentou “entre outros”. Como as referências irão conseguir, por
meio de registros como esses, acompanhar a participação dos usuários que frequentam as
oficinas? Por conseguinte, o livro de registros dentro desse contexto, perde o seu potencial.
Ademais a nominação no livro de “entre outros”, pode ser entendida de forma
negativa, na medida em que o usuário não poderá ser identificado, ou seja, será só “mais um
na multidão”. Expressões como essas, que constam no livro de registros demonstram que se
faz necessário que os trabalhadores reconsiderem o objetivo proposto pelo livro, caso
contrário, essas anotações perderiam o sentido, e seriam assim, um trabalho desnecessário
para a equipe.
Outro registro se tornou também interessante, no que tange às considerações acerca
das oficinas de beleza na data de 27/07/2010 não houve oficina no CAPS por conta de uma
reformulação da oficina. Na semana subsequente à essa reformulação do projeto, foi
registrado no livro o seguinte:
Hoje começamos a fazer a oficina em um formato diferente, auxiliamos as pacientes
a passarem a maquiagem nelas mesmas e a lixarem suas unhas. Notamos uma certa
resistência a esse novo formato, como se elas preferissem quando fazemos essas
97
coisas nelas, por elas. Porém mantive minha posição dizendo que se o objetivo da
oficina é as ajudarem a ter cuidado com seus próprios corpos, elas deveriam
aprender a fazer essas atividades, pois não estarei com elas o tempo todo.[...]
(Fonte:Livro de Oficinas).
Veja que essa reformulação se deu no mês de Julho de 2010 e foi a única vez que
encontrei considerações em torno de se pensar e avaliar o propósito das oficinas; depois dessa
data, não foi registrado nada a esse respeito no Livro das Oficinas. Não vi também, nenhum
estudo ou pesquisa por parte da Instituição acerca de uma avaliação mais efetiva das oficinas,
ou seja, nada encontrei que pudesse confirmar que esta ou aquela oficina conseguiu atingir
este ou aquele objetivo; ou mesmo o contrário, que isto ou aquilo não teve repercussão
positiva no cotidiano do usuário e que por isso deveria acabar. Simplesmente as oficinas
acontecem.
Faz-se necessário uma reflexão por parte da equipe, em torno dessas questões,
principalmente quando entendemos as oficinas, enquanto projetos terapêuticos fundamentais
nos arranjos constitutivos do CAPS, são potencialmente produtoras de subjetividades, por
isso, podem afetar positivamente os sujeitos, quando para além de uma atividade se apropria,
de esferas como cuidados pessoais, valorização da higiene e de atividades físicas.
E01: A gente pode se apropriar desse corpo também, né, no cuidado. Eu acho que,
por exemplo, quando a gente topa fazer uma oficina de esporte na praia, a gente está
falando de corpo, a gente está falando tanto desse encontro no social quanto esse
encontro é social, mas a gente está trabalhando coisas que não é a terapêutica da fala
apenas. A gente está fazendo um, está lembrando que ali existe um sujeito que ele
mais que a doença falada dele, né, que a gente entende que é uma terapêutica forte e
potente mais que o corpo dele também precisa se exercer né.
E02: Eu acho muito tipo assim que, mexe muito com a identidade do paciente né,
assim essa coisa visível, dele se tornar como se fosse um cidadão, se sentir um
cidadão, é eu acho que o modo como se veste, a higiene, a própria higiene, diz um
pouco sobre isso, sobre o que ele é e tal [...] O corpo com o cuidado, eu acho que,
possa se dizer que esse cuidado passa por esse negócio da higiene mesmo da
orientação que eles tem sobre o cuidado muitas vezes se perde. Ou então esse
cuidado com o corpo, ele realmente ele some.
E06: Porque é isso né, a doença mental. Mas não tem como não afetar e aí na oficina
de beleza a gente vê muito isso né, quanto que uma coisa prejudica a outra da
doença mental, da psique de seu corpo, de largar o seu corpo, deixar de qualquer
jeito e aí eu tento resgatar lá. (Fonte: Entrevista).
A melhora da aparência antes de ser uma simples questão estética, ela imprime esse
social corporificado que todo indivíduo traz consigo, e nesse sentido, promove nesse mesmo
social uma nova marca, uma nova impressão, e assim, transforma as relações que são
marcadas pelo estigma social.
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Perceber esse corpo que circula dentro do CAPS, que circula na sociedade, sob a
perspectiva de um cuidado otimizador da potência individual, deve ser condição essencial
para os trabalhadores, gestores, familiares e sociedade que com ele lidam em suas rotinas
diárias. É preciso compreender esse corpo, mais que um simples corpo, mas como um sujeito
desejante.
E04: Quando é um cuidado que anda junto com a produção desse corpo. Não o
cuidado que subestima, não o cuidado que segrega, não o cuidado que disciplina
esse corpo, mas o cuidado que anda junto com a produção desse corpo.
E10: Mas eu acho que a maneira como pode potencializar é considerar que aquele
corpo ali é mais que um corpo. É um sujeito. Entende? (Fonte: Entrevista).
Entender o corpo do paciente a partir de sua produção no social permite ao trabalhador
entender as peculiaridades desse usuário, não o subestimando, segregando ou disciplinando
esse corpo, mas dando-lhes condição de desenvolver sua autonomia enquanto sujeito
desejante. Entendemos com esse estudo que a produção do cuidado a partir do olhar do
trabalhador, afeta essa mesma produção quando vista sob a ótica da corporalidade, pois
inevitavelmente o cuidado passa por esse corpo, refletindo nos encontros desses corpos dentro
e fora do CAPS.
Quando dizemos que o CAPS é um espaço produtor de subjetividades, dizemos que
produz não só as subjetividades dos usuários, mas também dos trabalhadores, familiares e
também da sociedade em geral.
A importância dos olhares novos, de uma perspectiva mais fluida dos funcionários
recém-chegados, e que diferentemente dos profissionais que estão há mais tempo no serviço,
pode ser potencialmente favorável, às modificações e ações no CAPS que venham a otimizar
os serviços, na valorização de um cenário mais apropriado para cuidar desse corpo. Corpo
esse que é mais do que um meio para se chegar ao conhecimento das práticas [do CAPS], é a
própria vivencia do usuário nesse espaço social (BOURDIEU, 1987); mesmo porque é esse
mesmo corpo que permite nos revelar o social que carregamos nele (CSORDAS, 1994).
8 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Como vimos no capítulo sobre Reforma,
Sabe-se que por muito tempo o transtorno psiquiátrico esteve diretamente associado
ao isolamento, ao afastamento e à exclusão social. Entre os muros do internamento,
nenhuma lógica operou em favor do indivíduo contribuindo para a sua reinserção na
sociedade. (LOPES, 2009, p.12).
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Como princípio fundamental preconizou-se a prestação de uma assistência fornecida
pelo Estado que procurasse garantir um contato do indivíduo doente com a sociedade.
E02: O CAPS faz parte de um processo de desinstitucionalização de saída dos
pacientes do Hospital, né, que tinham muitos pacientes, que ficavam isolados
mesmo, fora do convívio social. (Fonte: Entrevista).
O Centro de Atenção Psicossocial, nesse sentido, é um dispositivo importantíssimo na
materialização desse princípio, pois a partir do deslocamento do usuário de sua casa até a
Instituição, ele tem esse contato – desvalorizado e completamente ignorado nas épocas de
internamento prolongado, que o permite a reconstruir suas redes de relações sociais e seu
‘estar-no-mundo’.
Ou seja, “não se trata de discutir apenas a questão da psiquiatria, das técnicas de
atendimento ao paciente psicótico fora do registro de internação. É necessário supor que o
paciente sairá desse território excludente para ocupar o espaço de liberdade da polis.”
(PEDRO apud LOPES, 2009, p.12). Pela sua dinâmica, o CAPS fundamentalmente trabalha
nesse sentido, pois sua lógica estrutural de funcionamento, caminha em função de um cuidado
extra-muros necessariamente, na medida em que o deslocamento dos usuários ao CAPS
cotidianamente se torna imprescindível.
E12: O CAPS é uma forma de, uma outra forma de tratamento de, trazer os
pacientes na comunidade né, de trazê-los para participar do social. (Fonte:
Entrevista).
O CAPS então, se torna um elo articulador entre o usuário e a sociedade, ao promover
os encontros entre os corpos, na sociedade, articulação essa antes impedida pelo internamento
dos usuários nas Instituições Totais, que ficam restritos apenas ao contato e interações sociais
impostas por essas instituições. (Goffman, 1994).
E04: Eu acho que esses corpos estão menos aprisionados, né, tem um campo maior
de atuação e um campo maior de atravessamento também. Eles podem estar em
contato com a música, com a arte, com o cinema, com o familiar, vão ter que pegar
o ônibus para ir para casa, para ir na escola,não é só aqui no CAPS, mas que esse
social se abre, né. (Fonte: Entrevista).
Na fala temos uma correlação entre a circulação dos pacientes na rua, no meio social
com a produção de afetamentos e de atravessamentos. Dentro do CAPS, esse afetamento não
é diferente.
100
E04: Porque assim, o corpo está sempre atravessado nas práticas do CAPS, né, está
sempre atravessado numa oficina de beleza, numa oficina de teatro, né, numa oficina
de escrita [...] (Fonte: Entrevista).
Logo, a Reforma Psiquiátrica nesse sentido proporcionou aos pacientes um campo
maior de atuação, de afetamento. Antes, estando isolado nos grandes manicômios, o paciente
se via tolhido desses afetamentos que vão construindo as identidades dos sujeitos ao longo de
suas vidas. Apesar do estigma existente em relação aos ‘loucos’, a presença deles no social,
está forçando um pouco a sociedade a lidar com isso. Porque antes da Reforma, nos tempos
manicomiais, não se lidava com isso, já que de um lado tínhamos os Hospitais e de outro a
sociedade, como se fossem coisas que não se cruzassem.
Mediante a Reforma e com ela, a implantação e implementação dos CAPS – novas
subjetividades vão se articulando na vida dos pacientes psiquiátricos, a partir desse corpo que
não está mais aprisionado, mas que está percorrendo, interagindo e afetando outros corpos em
novos cenários sociais.
E04: Por exemplo, eles passam a ser reconhecidos, tem a padaria, aí já tem o dono
da padaria que já fornece o pãozinho para aquele, para o outro não fornece, né, então
eles mobilizam o social, então eles também transformam a maneira como as pessoas
vivenciam a loucura. [...] Agora é que ele está na sociedade e a sociedade está sendo
atravessada por ele, também está atravessando ele. Então as pessoas tem que lidar.
(Fonte: Entrevista).
Ao mesmo tempo é um corpo que interage, que atravessa, que provoca uma marca
nesse social, porque quando um psicótico entra num ônibus, por exemplo, ele provoca uma
marca e uma transformação naquele social, da mesma forma que esse social o marca e o
transforma.
Seu corpo, expressão evidente de sua existência e de sua doença - sua forma de
estar-no-mundo, não está mais preso entre os muros do internamento, está diante de
todos, está exposto, está aí, nas ruas, entre e no meio de nós. Não se trata mais de
um doente mental, mas de um doente mental entre nós [...] Ao deslocarem dos
Hospitais Psiquiátricos para os CAPs, esses corpos não passam despercebidos nesse
novo trajeto que estão realizando, são imbuídos e enrustidos de uma série de
símbolos e significados que exaltam positivamente a loucura. Ela não será
esquecida, será ainda mais lembrada; será vista, percebida, observada e criticada por
todos nós que a encontraremos em qualquer dia e em qualquer esquina [...] (LOPES,
2009, p.13).
Na medida em que o usuário tem que frequentar o CAPS, ele inevitavelmente vai
preenchendo e colorindo os espaços sociais que antes eram vazios, por conta desse
deslocamento que ele tem que fazer até à Instituição, e será por isso mesmo, que os seus
corpos não passarão despercebidos. Sendo assim, podemos entender que essa possibilidade de
101
convívio social, autorizada indiretamente pelo CAPS, promove a autonomia e a cidadania
desse usuário, de modo que de ante-mão já podemos reconhecer e valorizar a importância de
tal instituição no cenário social. Se a Reforma já atua ‘por fora’ da instituição, será ‘dentro’
do CAPS que ela de fato irá se traduzir.
Como princípio fundamental preconizou-se a prestação de uma assistência fornecida
pelo Estado que procurasse garantir um contato do indivíduo doente com a sociedade.
Entretanto, o que está subjacente, é a proposta de se reformular os espaços para a ‘diferença’
da qual a chamada doença mental era a expressão. Não se trata de discutir apenas a questão da
psiquiatria, das técnicas de atendimento ao paciente psicótico fora do registro de internação. È
necessário supor que o paciente sairá desse território excludente para ocupar o espaço de
liberdade da polis. Será que de fato, no cotidiano do CAPS, os usuários saíram desse território
excludente? A título de proposição irei ilustrar abaixo o caso da Usuária Y.
8.1 O caso da Usuária Y
A usuária Y, segundo consta em seu prontuário deu entrada no serviço no dia 31 de
Setembro de 2001, ou seja, já fazem mais de 10 anos que a paciente frequenta a instituição,
tempo suficientemente grande para que alguma intervenção fosse realizada em seu caso. Ela
tem 69 anos, e seu diagnóstico aponta para um caso de ‘Esquizofrenia residual’. No seu
prontuário, na parte de ‘história clínica’ consta que a mesma foi indicada a fazer uma cirurgia
de perineoplastia, mas que até agora não foi realizada. Se formos olhar simplesmente para
esses dados, eles não irão nos revelar nada que seja tão diferente em relação a tantos outros
casos e a tantos usuários que constituem o CAPS.
Mas então o que o caso da usuária traz para essa pesquisa?
Essa mesma usuária, Y, chegava ao CAPS com a roupa seca, mas depois de certo
tempo dentro da instituição ficava com a roupa molhada de urina durante todo o tempo que
ela permanecia na instituição até na hora em que a mesma ia embora.
Como pode isso acontecer no CAPS? Será que ninguém a via mais? Como foi que ela
se tornou tão invisível para toda a equipe mesmo depois de tanto tempo na instituição,
conseguia passar por ela, sem nada fazer para converter esse quadro.
Se dentro do CAPS, a usuária Y era invisível, já na rua, ela não se tornava tão invisível
assim, pois pude por acaso, depois do meu trabalho de campo, vê-la indo embora para pegar o
ônibus para sua casa, e percebi o quanto a urina em sua roupa chamava a atenção causando a
admiração pelas pessoas ao redor, seja pelo odor ou pela aparência de molhado.
102
Certa vez, perguntei a uma trabalhadora sobre a usuária que me disse:
Trabalhadora: “Coitada! Ela está com o forro do vestido levantado. Mas como eu
vou fazer? Ela está toda mixada!
Eu: Ela tem incontinência urinária?
Trabalhadora: É.
Eu: E não tem nada para fazer para resolver esse problema? Um remédio, ou sei lá
alguma coisa?
Trabalhadora? Não, porque aí depende de cirurgia e doente mental é complicado.
Precisa de hospital, de marcar, da família, de uma série de coisas. (Fonte: Diário de
Campo).
Dias depois, em outro momento, ouvi outro funcionário mencionar alguma coisa em
relação a usuária Y. Esse fato não era recorrente, sendo esta a segunda e última vez que ouvi
algum funcionário se referir ao caso da usuária Y. Na ocasião, depois de sair do banheiro, ela
estava com a calcinha na altura do joelho e com o vestido molhado, mais uma vez, de urina,
por conta de sua incontinência urinária.
OP – Gente, a K, está com a calcinha no joelho. Eu não vou botar a mão não! Tenho
que chamar alguém para arrumar ela. (Fonte: Diário de Campo).
Se em tantos outros momentos, mesmo molhada de urina a usuária Y, não se tornou
perceptível aos trabalhadores e para a equipe em geral, porque nesse dia ela se fez ver? O que
tinha em seu corpo nesse dia, que se tornou um instrumento capaz de afetar a trabalhadora do
CAPS, fazendo-a com que essa a percebesse?
Para responder essa questão, me apropriei da concepção de impuro e desordem,
preconizada por Mary Douglas. Pude perceber que a calcinha no joelho da usuária Y,
significou na cena mais que uma peça feminina, foi o símbolo de impureza, da desordem, um
instrumento capaz de romper com a estrutura adormecida até então.
Tal como a conhecemos, a impureza é essencialmente desordem. A impureza
absoluta só existe aos olhos do observador. Se nos esquivamos dela, não é por causa
de um medo cobarde nem de um receio ou de um terror sagrado que sintamos. As
idéias que temos da doença também não dão conta da variedade das nossas reacções
de purificação ou de evitamento da impureza. A impureza é uma ofensa contra a
ordem. Eliminando-a, não fazemos um gesto negativo; pelo contrário, esforçamonos positivamente por organizar o nosso meio. (DOUGLAS, 1976, p.67)
Enquanto a usuária Y transitava despercebida, de um lado para outro na instituição
sem se fazer notar, não poderia tirar a ordem determinada do lugar. Ela não mexia no
imaginário dos trabalhadores, que em face a ela tinham que tomar uma atitude, realizar uma
ação, ou seja, tinham que colocar aquela situação em ordem. Entendida como símbolo, a
103
calcinha foi capaz de afetar a trabalhadora, modificando toda a ordem de invisibilidade em
que a mesma se encontrava.
A reflexão sobre a impureza implica uma relação sobre a relação entre a ordem e a
desordem, o ser e o não-ser, a forma e a ausência dela, a vida e a morte. Onde quer
que as idéias de impureza estejam fortemente estruturadas, a sua análise revela que
põem em jogo estes profundos temas. (DOUGLAS, 1976, p.06).
Tendo em vista essas considerações, me apropriei da reabilitação psicossocial como
um mecanismo que visa tão somente construir a ordem, o ser, a forma e a vida. Me perguntei:
pode-se dizer que o CAPS promove de fato uma reabilitação psicossocial? É possível separar
o problema psiquiátrico de outro problema clínico qualquer?
O caso da usuária Y, nos revela que não, que não basta desospitalizar para reabilitar.
Esse caso revela que o cuidado direcionado à ela, é permeado por relações de decomposição,
como que resquícios da era manicomial, que precisam ser considerados. O acontecimento
trouxe a visibilidade, entretanto, não provocou o cuidado, ou seja, refletiu uma hegemonia do
não-cuidado.
E04: Por exemplo, eles passam a ser reconhecidos, tem a padaria, aí já tem o dono
da padaria que já fornece o pãozinho para aquele, para o outro não fornece, né, então
eles mobilizam o social, então eles também transformam a maneira como as pessoas
vivenciam a loucura. [...] Agora é que ele está na sociedade e a sociedade está sendo
atravessada por ele, também está atravessando ele. Então as pessoas tem que lidar.
(Fonte: Entrevista).
Ao mesmo tempo é um corpo que interage, que atravessa, que provoca uma marca
nesse social, porque quando um psicótico entra num ônibus ele provoca uma marca e uma
transformação naquele social, da mesma forma que esse social o marca e o transforma, ou
seja, as intensidades se correlacionam proporcionalmente.
Nesse sentido, o modo de produção do cuidado em agenciamento no CAPS a partir
dos afetos e desejos fundamentados pelos encontros entre os corpos na instituição, produz
vida em alguns, como no caso em que se estabelece vínculos afetivos e por isto mesmo,
efetivos, ou quando se mobilizam para conseguir certo artefato (toalhas) para o conforto do
usuário; mas têm produzido morte também, uma vez que os fluxos circulantes entre as
relações produzidas no CAPS, têm sido a expressão também de não cuidado, geração de
tristezas e redução da energia vital nos usuários, e também nos trabalhadores. Este espaço é
entendido como um espaço subjetivo e social. O caso da usuária Y, é similar ao caso JR,
104
apresentado por Franco (2011), para evidenciar justamente o bloqueio desse fluxo de afetos
que produzem morte pelo corpo.
São efeitos provocados por um pensamento dominante na clínica que surgiu no séc.
XVIII, que se sustenta no entendimento de que o corpo é únicamente a sua
expressão anátomo-fisiológica. Quem vê o corpo reduzido à geografia dos órgãos é
incapaz de perceber a complexidade deste mesmo corpo em produzir a si mesmo,
como vida ou morte, e ao mesmo tempo, produzir o mundo social, também como
expressão do viver ou morrer. (FRANCO; GALAVOTE, 2010, p.14).
Se o caso da usuária Y, nos mostra a expressão do que Espinosa chamou de um ‘mau
encontro’, ou seja, um caso que revela a produção de “paixões tristes” uma vez que sua
capacidade de agir no mundo foi reduzida; o caso do usuário X, já nos mostra a impotência
desse usuário em se constituir de fato como um sujeito desejante.
Ambos os casos, podem ser entendidos pela ideia de morte, pois o desejo entendido
como força propulsora na produção de seus mundos, foi anulado na sua condição de ser
potencialmente construtor, já que os dois corpos, tanto o da usuária X, quanto o do usuário Y,
foram desconectados do mundo, pelo princípio da (in)visibilidade dentro do Centro de
Atenção Psicossocial.
Foi em meio às dificuldades dos profissionais nos momentos de tensão, e das
comensalidades dos usuários, que pude concluir que o Centro de Atenção Psicossocial, que
pretende ser alternativo ao modelo hospitalocêntrico, é caracteristicamente um espaço social
que pode ser potencializador do cuidado. Diferentemente do Hospital psiquiátrico, que
enquanto uma Instituição Total não possui essa potencialidade em se fazer um equipamento
produtor de autonomia a partir do cuidado, na produção de vida e de sentidos, dos que o
frequentam.
Se alguns elementos, precisam ser modificados na instituição, primeiro porque estão
indo na contra-mão de um atendimento psicossocial de fato, outros, precisam do mesmo
modo de serem continuamente produzidos e otimizados, é o caso da proposta de ser uma
instituição com equipe multidisciplinar, por exemplo. Como potencialmente instituinte – o
trabalho vivo em ato realizado dentro do CAPS – possui a potencialidade de questionar e
redirecionar os modos de operar os modelos que estão em agenciamentos. A dimensão
processual e transformadora do trabalho vivo em ato na saúde é atribuída à característica
desse trabalho que essencialmente se define na ação. E como tal pode permitir novas
configurações e re-arranjos a partir das linhas de fuga no já instituído, ou seja, no plano
molar.
105
Afirmo que o CAPS é potencialmente um espaço social potencializador do cuidado,
porque frente às adversidades sejam elas originadas por fatores exógenos ou endógenos , ele
continua produzindo alguns encontros tristes entre os corpos, na medida em que gera relações
de decomposição, quando não proporciona a construção de uma subjetividade que seja capaz
de promover de fato a autonomia dos sujeitos. Sua potencialidade será de fato experienciada,
por esses usuários que ‘estão-no-mundo’ (MERLEAU PONTY, 1999), quando os fatores que
promovem relações de composição forem maiores que os fatores que promovem relações de
decomposição.
Nesse sentido, ‘as linhas de fuga’, os processos inventivos e criativos desenvolvidos
pelos trabalhadores no momento de tensão, evidenciam justamente essa potência latente do
CAPS enquanto um dispositivo capaz de assegurar um atendimento que venha favorecer o
exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias.
Entender o modo de produção de cuidado do CAPS como um acontecimento
autopoiético, é o que nos permite vislumbrar uma possível modificação nesses cenários, pois
enquanto movimento, o cuidado pode produzir a vida, quando ressignifica os encontros entre
os corpos. Se o CAPS tem um lado que interdita os fluxos dos usuários, é também
potencialmente um espaço potencializar do cuidado, o lugar que motiva a circulação e
valorização desses fluxos; pois pode preencher as lacunas da morte, pela possibilidade da
produção da vida.
O meu desejo com essa pesquisa, portanto, foi o de promover uma reflexão acerca do
cuidado produzido no CAPS, que deve ser entendido primeiramente como um lugar
potencialmente potencializador, visto que nenhum modo de produção de cuidado está
acabado. “O senhor mire, veja: o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando.
Afinam ou desafinam, verdade maior.” (GUIMARÃES ROSA, 1986: 23). Confesso, que é
por acreditar nessa verdade maior, que essa dissertação foi idealizada.
106
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111
APÊNDICE A
TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
Dados de Identificação
Título do Projeto: “O Modo De Produção Do Cuidado Como Corpo Autopoiético:
Cartografias Corporais em um Centro de Atenção Psicossocial-CAPS”
Pesquisador Responsável: Cristiane Moura Lopes
Instituição a que pertence o Pesquisador Responsável: Universidade Federal Fluminense UFF
Telefones para contato: _________________
Nome do voluntário: _________________________________________________________
Idade: ____________anos
R.G.: _______________________
Responsável legal (quando for o caso): __________________________________________
R.G. Responsável legal: ________________________________
O Sr. (ª) está sendo convidado a participar do projeto de pesquisa O Modo De
Produção Do Cuidado Como Corpo Autopoiético: Cartografias Corporais em um
Centro de Atenção Psicossocial - CAPS”; de responsabilidade da pesquisadora Cristiane
Moura Lopes.
Objetivamos fazer um estudo avaliativo sobre o modo de produção de cuidado (corpo
autopoiético) que está em agenciamento no Centro de Atenção Psicossocial (CAPs),
colocando em ênfase a questão da corporalidade através das relações de afecção (encontro)
dentro da Instituição. Pretendemos compreender as relações que se formam entre os
profissionais e os pacientes portadores de sofrimento mental e a partir destas, buscamos
entender o cuidado que se desenvolve na Instituição.
Para alcançarmos os objetivos propostos nessa pesquisa, escolhemos a Observação
participante – método de pesquisa que se refere à observação direta das ações, práticas,
discursos e narrativas que ocorrem, entre os trabalhadores e usuários, dentro do CAPs. Para
registrar tais observações, utilizaremos de um diário de campo (caderno para o registro escrito
dessas observações). Outra metodologia eleita é a construção dos Mapas Analíticos –
realização de entrevistas semi-estruturadas (temas relacionados ao cotidiano de trabalho)
juntamente com outros profissionais dentro do CAPs. Esse encontro será gravado para
posterior transcrição, já que seria muito difícil memorizar suas respostas. Os procedimentos
de coleta de dados supracitados, atenderão às determinações da Resolução 196 de 10 de
outubro de 1996, do Conselho Nacional de Saúde que estabelece as diretrizes e normas
regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos.
112
O produto desta pesquisa, além de resultar em uma dissertação de mestrado, terá sua
publicação em periódicos científicos e apresentações em congressos e eventos no campo da
Saúde Mental. Esperamos assim que essa pesquisa, além de contribuir para o referencial
teórico desse campo científico, possa se destinar à construção de um saber que seja
compartilhado com os profissionais da área da Saúde Mental e com a sociedade, de uma
forma geral, e nesse sentido, acreditamos que esse saber possa de forma direta, beneficiar a
vida cotidiana dos profissionais, dos familiares e principalmente dos pacientes que possuem o
transtorno mental .
É importante esclarecer que os riscos de participação são mínimos, sendo os principais
as questões quanto a confidencialidade e a privacidade de todos os relatos descritos, deixando
claro que nenhum participante será identificado seja na elaboração escrita e/ou em quaisquer
publicação. Para tal, manteremos os nomes dos profissionais sob sigilo substituindo-os por
pseudônimos. Nenhum dos sujeitos convidados tem a obrigatoriedade de participação,
podendo inclusive este consentimento ser retirado a qualquer tempo, sem prejuízos à
continuidade da pesquisa. Diante das informações acima, declaro conhecer que serei
entrevistado (a), que minha participação é voluntária e é garantida a minha privacidade e
anonimato.
Eu, ___________________________________________________________________,
R.G nº ____________________ declaro ter sido informado e concordo em participar, como
voluntário, do projeto de pesquisa acima descrito.
Niterói, ____ de ______________ de 2011
______________________________________________________________________
Nome e Assinatura do Entrevistado
______________________________________________________________________
Testemunha
______________________________________________________________________
Nome e Assinatura do Responsável pela pesquisa
Cristiane Moura Lopes / Discente do Programa de Pós-Graduação em Saúde Coletiva – UFF
113
APÊNDICE B
1) Numa abordagem preliminar, o que você entende por CAPS?
2) O que você acha que deve ser mantido no CAPS?
3) O que você acha que deve ser mudado no CAPS?
4) O que você pensa sobre o Projeto Terapêutico Individual (PTI)?
5) Como o PTI é elaborado? Quem o elabora?
6) Vocês trabalham com referência?
7) Qual o ponto positivo da referência?
8) Qual o ponto negativo da referência?
9) Existe práticas de grupo nesse CAPS?
10) Qual a função das oficinas?
11) O que vem à sua cabeça quando se fala em crise psiquiátrica?
12) Aqui tem leito psiquiátrico?
13) Em relação aos profissionais, você costuma ouvir alguma queixa?
14) Que relação você vê entre corpo e saúde?
15) Que relação você vê entre corpo e doença?
16) Qual efeito positivo da medicação no corpo do paciente?
17) Qual efeito negativo da medicação no corpo do paciente?
18) Como você o deslocamento dos corpos dos pacientes depois da Reforma Psiquiátrica?
19) Você acha que a sociedade está preparada para esse deslocamento?
20) Que relação você entre corpo e cuidado?
21) De que forma o cuidado pode potencializar o corpo?
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