O VÍNCULO AMOROSO ESTABELECIDO PELAS MULHERES COM

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O VÍNCULO AMOROSO ESTABELECIDO PELAS MULHERES COM
BULIMIA NERVOSA: “SEM VOCÊ, MEU AMOR, EU NÃO SOU NINGUÉM”
Fernanda Kimie Tavares Mishima1
Manoel Antônio dos Santos2
INTRODUÇÃO
Os transtornos alimentares (TA) são, atualmente, considerados sérios problemas
de saúde pública, devido aos graves prejuízos que acarretam para a saúde física e
mental. Atingem toda a população, sem distinção de raça, cor, credo ou nível
socioeconômico, e constituem um desafio para profissionais e pesquisadores de todo o
mundo (BECKER, 2004; TOUYZ, THORNTON, RIEGER, GEORGE & BEUMONT,
2003).
A Bulimia Nervosa (BN), um dos transtornos mais prevalentes, caracteriza-se
por episódios recorrentes de excessiva ingestão alimentar, seguida de uma sensação de
perda de controle sobre os impulsos. Pode ser purgativa, quando há ocorrência de
comportamentos purgativos (vômitos, uso de laxantes e diuréticos), ou não purgativa,
quando o indivíduo recorre a mecanismos compensatórios, como jejum e prática de
exercícios físicos excessivos (APA, 2000). Predomina entre mulheres, na proporção de
10 para cada homem, e chega a atingir de 1% a 4,2% da população (HOEK & VAN
HOEK, 2003). No momento, nota-se aumento considerável na prevalência na população
masculina (ANDERSEN & HOLMAN, 1997).
Nesse tipo de TA comumente observa-se comorbidades psiquiátricas associadas,
notadamente transtornos de personalidade, bem como sintomas de impulsividade,
dificuldades no relacionamento íntimo com as pessoas, conflitos sexuais ou, ainda,
comportamentos autodestrutivos, como automutilação (cortar-se, escarificar a própria
pele) e abusar do álcool e de outras drogas (OLIVEIRA & SANTOS, 2006). Vindreau
1
Psicóloga clínica do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP), responsável pelo Serviço de
Triagem e Atendimento Infantil e Familiar do Centro de Pesquisa e Psicologia Aplicada (CPA) da
FFCLRP-USP. Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Psicologia pela Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Mestre em Psicologia
pela mesma universidade (FFCLRP-USP). .
2
Professor Doutor do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FFCLRP-USP). Líder do Núcleo de Ensino e
Pesquisa em Psicologia da Saúde da FFCLRP-USP (CNPq). Bolsista de Produtividade em Pesquisa do
CNPq.
1
(2003), Bryant-Waugh e Lask (1995) enfatizam que as pessoas que desenvolvem esse
transtorno apresentam imagem corporal bastante desvalorizada, com baixa autoestima
associada a sintomas depressivos.
A BN é uma psicopatologia de etiologia multifatorial. Em sua origem encontrase, via de regra, uma combinação de fatores individuais, familiares, ambientais,
socioculturais, fisiológicos, genéticos e psicológicos (MORGAN, VECCHIATTI &
NEGRÃO, 2002). Apesar da média de idade de aparecimento oscilar entre 20 e 30 anos
(FORMAN & DAVIS, 2005), as influências culturais, como a ideia dominante de
magreza como sinal de felicidade, expõem a maior risco as adolescentes com
predisposição para o desenvolvimento de pensamentos exagerados sobre seu próprio
peso (GARNER & GARFINKEL, 1980). Strober, Freeman, Lampert, Diamond e Kaye
(2000) destacam como outros fatores relevantes na determinação do quadro o
temperamento predisponente da pessoa altamente perfeccionista, grau elevado de
exigência e autocrítica acurada. Além disso, o déficit de autoestima, experiências
interpessoais traumáticas, como abuso sexual e chacotas com relação à aparência física,
presença de outros sintomas psiquiátricos e exposição a outros fatores estressantes ao
longo da vida podem ser fatores deflagradores dessa psicopatologia (POLIVY &
HERMAN, 2002).
É de suma importância destacar que, em relação aos aspectos psicossociais da
BN, a dimensão afetivo-emocional precisa ser considerada, seja como causa,
consequência ou ambas. Desse modo, compreender o psicodinamismo das mulheres
com BN assume fundamental relevância. Por se tratar de transtorno com prevalência
elevada e grande impacto global, a compreensão dos fatores emocionais envolvidos, na
combinação com outros determinantes, como o contexto social e possíveis
predisposições genéticas, permite pensar em formas de prevenção, assim como
estratégias mais eficazes de tratamento.
Ao considerar essas questões, este estudo teve como objetivo investigar
características psicodinâmicas de mulheres diagnosticadas com bulimia nervosa.
MÉTODO
Este estudo exploratório e descritivo desenvolveu-se na perspectiva clínica de
investigação, no contexto das abordagens qualitativas de pesquisa científica. A
estratégia metodológica empregada foi o estudo de caso coletivo.
2
Participaram do estudo quatro mulheres, de nomes fictícios Carla, Lúcia, Ana e
Rosa, com idades de 30, 31 (duas) e 33 anos, com diagnóstico de BN, atendidas em um
serviço especializado no tratamento de TA, inserido em um hospital universitário. Todas
as participantes tinham nível socioeconômico médio, duas eram casadas e com filhos e duas
solteiras.
Para alcançar o objetivo proposto, foram investigadas as características
psicodinâmicas de mulheres com BN por meio de avaliação psicológica em situação
face a face, com uso de entrevista e técnicas projetivas. A entrevista semiestruturada
abrangeu aspectos sobre o funcionamento pessoal, familiar e social das participantes. A
técnica projetiva utilizada foi o Teste de Apercepção Temática (TAT), no referencial de
Morval (1982).
Os dados obtidos foram analisados de acordo com o procedimento da livre
inspeção do material clínico apresentado por Trinca (1984).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Nas entrevistas duas pacientes se queixaram de “nervosismo” e descontrole
emocional, com episódios recorrentes de agressões verbais a familiares ou ao ambiente.
Como defesa usada contra a dificuldade de controle dos impulsos, as pacientes recorrem
ao isolamento social, agravando sentimentos de solidão, tristeza e desamparo.
Todas mencionaram ter episódios de vômitos em situações nas quais se sentem
mais nervosas, ansiosas e pressionadas e, particularmente, quando se sentem tristes. A
frequência dessas manifestações é diária, chegando a mais de 10 episódios. O alimento
é sentido como invasivo, o ato de comer é visto como um tormento, além de ser
repulsivo: “Colocava o dedo na garganta e ficava livre” (Carla). A relação com o
alimento é ambivalente, pois ora é visto como necessário, ora como aversivo e
amedrontador, como nas falas das pacientes: “Eu psicotizo os alimentos, sinto eles
crescerem no meu estômago, virarem pedras, não sinto que eles dissolvem” (Lúcia);
“Quando alguém me oferecia comida, eu me sentia estuprada” (Carla) e “Eu entrei em
pânico quando a nutricionista disse que eu precisava comer” (Ana).
Não houve associação do início dos sintomas a um evento específico, o que
prejudicou identificar possíveis causas do sofrimento. A figura materna foi introjetada
como pouco acolhedora e afetuosa, vista mais como fonte de ameaça do que de proteção
ao ego, como na fala de Ana: “Tinha ódio dela e das pessoas, tinha raiva, vontade de
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matar, porque ela me observava muito e a impressão que dava é que ela percebia meus
defeitos e que não admitia.”
Os relacionamentos interpessoais foram internalizados como ameaçadores e a
relação sexual, tida como experiência frustrante e destituída de prazer. A sexualidade
acaba sendo vivenciada como força perigosa e invasiva.
Por meio do TAT foi possível confirmar aspectos psicodinâmicos percebidos na
entrevista. Há uma atitude ambivalente em relação ao ambiente externo em geral,
inclusive com o alimento, que ora é vivenciado como acolhedor, ora como destruidor.
Os relacionamentos interpessoais são superficiais e sem afeto, por receio de
envolvimento mais profundo, que gera ansiedade. Com isso, aumenta-se o sentimento
de solidão.
O prejuízo nos relacionamentos pode advir da dificuldade em lidar com as
próprias pulsões. As pacientes não são capazes de pensar em maneiras de satisfazer seus
desejos, sentindo-se frustradas ou buscando soluções mágicas e impulsivas para
contornar a insatisfação. O prejuízo no controle dos impulsos acaba por agravar as
frustrações nas relações interpessoais, fazendo com que se sintam incompreendidas e
não merecedoras de afeto. Desse modo, as mulheres se desvalorizam e mostram-se
frágeis, merecedoras de punição.
Nesse sentido, o mundo externo parece não oferecer apoio, segurança afetiva e
continência, apesar de ser considerado atraente, o que origina ambivalência em relação
ao outro, ou seja, elas têm o desejo de obter o apoio dos demais, mas, ao mesmo tempo,
têm necessidade de mostrar que não necessitam de ninguém. As figuras parentais
também são vistas com ambivalência, amedrontam e não são capazes de prover
adequadamente as necessidades afetivas, mas são buscadas para contato. Tal
ambivalência em relação ao ambiente e às figuras parentais gera confusão e sentimento
de inadequação, com exacerbação do vazio e desvalorização de si. Para se defenderem
do sentimento de futilidade, fazem uso de defesas maníacas, desprezando a presença do
outro para se proteger das vivências de desamparo e exclusão e diminuir a intensa
necessidade de dependência afetiva.
A sensação de perda iminente do controle sobre os impulsos é uma vivência
constante das mulheres avaliadas. Assim, é provável que recorram aos sintomas
(compulsão
alimentar
seguida
de
manobras
purgativas)
como
mecanismo
compensatório, na tentativa de refazer o frágil equilíbrio psicossomático.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS
Neste estudo, destaca-se a introjeção do ambiente como pouco confiável e
ambivalente, especialmente no que se refere à figura materna, que ora é vista como
fonte de segurança, ora de ameaça, sem se mostrar suficientemente provedora das
necessidades afetivas das participantes. Por ser a base da identificação ao próprio sexo,
é possível perceber que a internalização distorcida da imago materna compromete a
autoimagem, principalmente quanto à estruturação da identidade feminina. O contato
com a imago materna gera apreensão, angústia, insegurança e temor de desintegração do
ego, apesar da evidente necessidade de se aproximarem e se identificarem com tal
figura.
Em decorrência dos prejuízos acarretados pela frustração sentida em relação ao
recebimento de cuidados maternos, as participantes buscam a figura masculina na
esperança de que ela proveja suas necessidades, desempenhando, assim, uma função de
objeto anaclítico, ou seja, de apoio, e não sexual. Como tal figura fracassa em sua
função, as mulheres passam a percebê-la como punitiva e ameaçadora. Com isso, a
figura masculina, inclusive a paterna, passa a ser vista com ambivalência, pois tanto é
fonte de força e cuidado como presença ameaçadora e punitiva.
A introjeção ambivalente das figuras parentais impede o reconhecimento de
modelos sólidos para identificação, tendo em vista que os aspectos bons dos objetos não
predominam sobre os maus. Tal aspecto prejudica o acolhimento dos próprios impulsos
agressivos, fazendo com que fiquem vulneráveis à angústia na elaboração da imagem de
si, com baixa autoestima, desvalorização pessoal e intenso sentimento de inferioridade.
A dificuldade de integração entre os impulsos destrutivos e amorosos acaba por gerar
prejuízo na integração entre o psíquico e o somático (DEBRAY, 1995). A dificuldade
de integração do equilíbrio psicossomático se amplia para a diferenciação entre o
mundo interno e o externo, que compromete a capacidade em reconhecer as
necessidades do outro como diferentes das suas. Dessa forma, exigem do outro uma
postura de provedor de seus desejos e necessidades, sem tolerância à frustração. Por não
satisfazer as elevadas exigências, o ambiente passa a ser ameaçador e frustrador.
A dificuldade em discriminar a realidade interna da externa remete a prejuízos
na experiência da transicionalidade (WINNICOTT, 1993), consequentemente, nos
processos de simbolização e na percepção do outro como diferente de si. Dito de outra
maneira, o prejuízo na provisão ambiental, com a presença de holding insuficiente,
5
dificulta o desenvolvimento emocional e a expansão do gesto espontâneo e criativo do
self verdadeiro (WINNICOTT, 1975; SAFRA, 2005).
O prejuízo na diferenciação eu-outro faz com que as mulheres tenham
dificuldade em entrar em contato com os próprios desejos, particularmente os de cunho
afetivo e sexual, predominando inibições na vivência da sexualidade e na capacidade de
compartilhar sentimentos. Assim, tentam controlar os afetos e emoções, fazendo uso
maciço de inibição. Concomitantemente às tentativas de inibir os aspectos negativos,
como agressividade, tem-se sinais de elevada exigência, tanto interna quanto externa,
com intensa necessidade de serem perfeitas, não fracassarem e não cometerem erros.
Junto com essa alta exigência, agem de maneira impulsiva no ambiente, chegando,
muitas vezes, a perder o controle, fazendo uso de defesas mais primitivas, como actingout.
Por meio da atuação direta no ambiente, as participantes buscam soluções
impulsivas para seus conflitos. Nessa atuação, temem perder o apreço do outro, por isso
desprezam sua presença e insistem em se mostrar autossuficientes, desmerecendo o
afeto e a compaixão que o outro por ventura possa demonstrar por elas. Tais atitudes
evidenciam o uso de defesas maníacas e imaturas, com falta de recursos secundários
para planejarem e concluírem suas ações. Ao fazer uso de tais defesas, sentem-se
inseguras, frágeis e com sentimento de futilidade diante do mundo, trazendo evidências
de funcionamento do tipo falso self (WINNICOTT, 2000). Tal funcionamento gera
sentimento de desvalorização e baixa autoestima, fazendo com que as mulheres
permaneçam em um círculo vicioso, acometidas novamente por sentimentos de
abandono, impotência e rejeição. Esses sentimentos, por sua vez, acentuam ainda mais o
vazio interno e incrementam vivências de exclusão, isolamento e solidão.
A fim de atenuar tais sentimentos dolorosos, elas buscam uma relação com o
meio externo mediada por algo concreto, o alimento, estabelecendo um relacionamento
de ter e fazer, ao invés de sentir e agir por meio da espontaneidade e criatividade. Esse
tipo de relação advém dos prejuízos na distinção entre o concreto e o abstrato, a
possibilidade de vivenciar a transicionalidade e a simbolização, o que faz com que a
introjeção não se separe de sua base concreta no ato de devorar. A relação com o
alimento reflete o modo como se relacionaram com a figura materna, ou seja, com a
maneira com que o vínculo primário com a mãe foi estabelecido, a introjeção peculiar
que fizeram da figura materna e sua instalação na realidade psíquica.
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Nesse sentido, após a ingestão excessiva de alimentos, elas recorrem a
comportamentos purgativos para expelir aquilo que foi ingerido, demonstrando intensa
ansiedade e ambivalência em relação ao alimento, que aparece equacionado à figura
materna. Contudo, ao destruir o que vem do outro, a fonte de nutrientes físicos e
emocionais, desvalorizam o que lhes é próprio, empobrecendo o mundo interno e a
capacidade imaginativa. O alimento é percebido não como provisão ambiental que pode
abrandar as aflições, mas, concretamente, como “coisa” que intensifica as vivências de
angústia. Aquilo que vem do outro (alimento) é recebido com suspeita, por não ser
vivenciado como suficientemente bom e confiável, de modo que passa a ser tenazmente
combatido e repelido ao entrar em contato com o self.
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