singularidade humana e o conhecimento

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SINGULARIDADE HUMANA E O CONHECIMENTO:
EPISTEMOLOGIA E A FORMAÇÃO DOS EDUCADORES
Prof.ª Dr.ª Elisabete Cardieri
Nuc. Pesq. Psicanálise e Educação – NUPPE/USP
Universidade Mogi das Cruzes
Resumo
O presente trabalho tem como objetivo refletir sobre alguns aspectos que sustentam a prática
educativa destacando, a partir da perspectiva epistemológica, a dimensão singular que
constitui cada sujeito na construção de seu processo de conhecimento. Para além da ênfase às
dimensões de racionalidade, de controle e objetividade que, desde a Idade Moderna,
fundamentam as concepções de conhecimento validadas via saber científico, busca-se nas
próprias contribuições científicas e filosóficas contemporâneas elementos que ultrapassem a
perspectiva normativa e padronizadora de compreensão do conhecimento e da realidade
humana. A partir de pesquisa bibliográfica e do diálogo com algumas áreas da Biologia
(Maturana e Varela), das Neurociências (Damásio, Izquierdo), Teoria da Complexidade
(Morin e seus interlocutores) e outras referências (tais como Schnitman, Jerome Brunner,
Paulo Freire, etc.) é possível apontar concepções que reconhecem e destacam a dimensão de
singularidade que caracteriza cada sujeito humano (como organismo e subjetividade)
marcando suas atuações e vivências. A intrínseca articulação entre singularidade e
coletividade manifesta-se na produção e circulação dos significados e do conhecimento
construídos individual e socialmente, caracterizando-se como condição vital de cada
existência humana, e por isso como elemento inegável a ser reconhecido pelas práticas
educativas.
Palavras-chave: Conhecimento – singularidade – práticas educativas
Introdução
As reflexões relativas ao processo de conhecimento constituem-se como uma das
questões mais intrincadas e fundantes da condição humana. Como realidade tão inerente à
experiência vital, nem sempre foi explicitada conceitualmente na história humana, embora
seja possível apontar algumas referências tanto nas expressões míticas, quanto na filosofia
grega nascente. Para além de um certo realismo que norteou as concepções do conhecimento
na Antiguidade, e da perspectiva metafísica e religiosa que marcou o período Medieval, é na
Idade Moderna que se assume efetivamente a questão epistemológica como reflexão e
exigência fundamentais.
O efeito de tal eleição fez-se e faz-se notar nas concepções e produções do
conhecimento humano, orientando e destacando procedimentos que condicionaram,
sobretudo, a constituição do saber científico, bem como sua prevalência frente aos demais
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saberes. A ênfase às dimensões da racionalidade e do rigor experimental delineou os ideais de
formação humana, determinando concepções e construções teóricas no campo educativo e na
prática pedagógica. Se, por um lado, essa articulação revela coerência entre os ideais
(propostos) e as propostas e práticas formativas; por outro, e por muito tempo, minimizou
aspectos não menos fundantes da experiência vital humana, tais como a afetividade, as
emoções, a subjetividade e a singularidade que nos constitui.
É inegável que muitas contribuições teóricas (de Rousseau a Freud), historicamente,
questionaram essa prevalência racionalista, no entanto, ainda encontramos inúmeras
expressões e atuações no campo científico, filosófico e educativo que resistem a reconhecer e
assumir outras dimensões que marcam a vida humana, em sua diversidade e complexidade.
Particularmente nas reflexões e atuações pedagógicas, não obstante a dimensão relacional
permeada por inúmeros aspectos que ultrapassam a expressão racional, não são poucas as
situações que se ficam reduzidas a um olhar padronizador, categorial, que faz escapar a
diferença e o singular.
Numa outra perspectiva, podemos também citar que a própria linguagem, muitas
vezes, leva-nos a confrontarmos seus limites na tentativa de expressão e reduzirmos a um
conceito uma vivência ou experiência plural. As próprias construções filosófica e científica
também se encontram circunscritas tanto à linguagem quanto aos procedimentos que as
sustentam em seus processos de elaboração e explicitação do mundo.
Linguagens, conceitos, elaborações, construções teóricas, limites, expressão, relações,
cada um desses aspectos constituem-se apenas parte da própria experiência que fazemos nesse
exato momento em que, de minha parte, elaboro esse texto buscando apresentar concepções,
percepções, mas também sentimentos e vivências que geraram indagações, reflexões e modos
de organizar possíveis explicações. Cada palavra, cada movimento (do corpo para digitação),
cada pensamento são expressões do processo de conhecimento e sustentam-se num complexo
e intricado substrato biofisiológico. E também o exercício de leitura desses sinais (por que não
dizer, “desenhos”), sua decodificação e interpretação também dependem de sofisticados
mecanismos de nosso aparelho neurocerebral. Expressão e leitura sustentam-se em
possibilidades de nosso organismo (comum a toda espécie humana), mas se realizam a partir
das possibilidades e limites específicos de cada organismo, e articulam-se com a história e as
vivências absolutamente singular que cada ser humano experimentou.
Tais aspectos foram nomeados e explicitados a partir de investigações e elaborações
das Ciências Naturias, hoje integradas sempre mais aos avanços da tecnologia, e ampliam
nossas concepções sobre nós mesmos e sobre a complexidade que sustenta as atuações
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humanas. A indagação que surge é: em que medida tais concepções tem contribuído para
explicitar e compreender os processos que se realizam no campo educativo? Quais
aproximações e interlocuções podem ser realizadas que colaborem em nossas atuações como
educadores e formadores de educadores? Quais aspectos podem ser destacados para que
possamos também compreender a sutileza e a riqueza do processo de conhecimento que se
realiza em cada um de nós, como singularidade, a partir das relações com outras
singularidades? Reconhecendo as marcas que a tradição racionalista deixou em nossa
formação, como nos apropriarmos delas para avançarmos e incorporarmos outros aspectos
nem sempre tomados como relevantes? Tais questões conduziram nossa investigação de
doutorado, e neste texto objetivamos retomar algumas concepções dos autores investigados:
no campo da Biologia (especialmente, com Maturana e Varela), com as Neurociências (com
Damásio e Changeux); com a Teoria da Complexidade (Morin e seus interlocutores) e, a
partir dessas contribuições, explicitar e refletir sobre alguns aspectos que fundamentam nosso
processo de conhecimento e nossa prática educativa cotidiana.
Conhecimento e processo educativo: indagações, concepções e contribuições: A dimensão
epistemológica: cotidiano e tradição
O cotidiano escolar é espaço vivo, gerador de tramas coletivas e individuais que
sustentam o fazer pedagógico, suas questões, conquistas e impasses. Dentre tantos
questionamentos suscitados na prática educativa, alguns podem ser delineados a partir de
elementos fundantes, que sempre retornam indagando, provocando, ampliando concepções já
estabelecidas, ou suscitando novas respostas. A dimensão epistemológica e a dimensão
antropológica ou ontológica constituem-se como centrais trazendo a exigência de reflexões
contínuas, atentas, abertas ao próprio cotidiano, mas também às contribuições teóricas e
científicas que possibilitem compreensão mais abrangente e atuação sempre mais adequada ao
objetivo próprio da educação: formação do aprendiz.
A questão do conhecimento pode ser percebida, inicialmente, a partir de dois pontos
complementares, mas distintos: como condição inerente à espécie humana que, em sua
particularidade, é construído articulado a um universo simbólico, de atribuição de sentidos e
como processo sofisticado de comunicação. Por outro lado, caracteriza-se como processo de
explicitação, nomeação e compreensão daquilo que se vive como o próprio processo
cognoscente.
A dimensão reflexiva que caracteriza-nos pode sugerir que ambos sempre estiveram
presentes na história humana, mas a Modernidade assume a questão epistemológica como
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prevalente apontando indagações e contribuições que ultrapassam a “mera” vivência ou
experiência cognoscitiva. A ênfase à racionalidade e à experiência controlada, buscando
explicitar os fenômenos naturais e humanos, possibilitou a percepção e o reconhecimento dos
processos inerentes às vivências mais cotidianas, assim como o reconhecimento de seus
limites intrínsecos, gerando orientações e princípios em busca de superá-los. Os fundamentos
básicos para a elaboração de um conhecimento válido vincularam-se a expressão racional,
rigorosa e empiricamente comprovada, como princípios que orientaram os ideais da ciência
nascente.
Ao nos aproximarmos também da história das idéias pedagógicas e das questões
suscitadas no campo educativo constatamos a influência que as novas referências da
Modernidade promoveram para a reflexão educacional. Desde as elaborações de Comênio,
manifestando a preocupação com a “arte de ensinar tudo a todos”, verificamos que as
contribuições quanto aos procedimentos pedagógicos implicam a afirmação, explícita ou
implícita, de uma determinada concepção do processo de conhecimento assim como uma
concepção antropológica específica. A ênfase à racionalidade, determinando as concepções
sobre a realidade e a existência humanas, conduziu tais reflexões e apresentou conteúdos
vinculados à atividade racional e à consciência, com propostas metodológicas adequadas ao
que
se
concebeu
como
procedimento
reflexivo,
processo
de
conhecimento,
e
consequentemente, processo de aprendizagem.
A instauração desses elementos enfatizou a atuação do sujeito racional, investigador e
produtor do conhecimento, que busca compreender os fenômenos, explicitar as regularidades,
e para isso constrói instrumentos e procedimentos adequados para elucidação do universo que
o envolve, o provoca e sustenta. Essa perspectiva e provocação constantes permanecem até
hoje promovendo reflexões e investigações, produzindo novos saberes e instrumentos que,
indubitavelmente, ampliam e aprofundam concepções sobre os fenômenos naturais, sobre a
realidade humana, numa expansão horizontal e vertical dos saberes científicos.
Porém, também fundados no rigor e nos procedimentos racionais, encontramos
historicamente filósofos e teóricos que exerceram a crítica (e a constante autocrítica) só
possíveis à uma racionalidade aberta, como nomeia Morin (2000, p.23). Pascal (1623-1662) já
nos primórdios da Modernidade, Rousseau (1712-1778) diante do entusiasmo iluminista,
Schiller (1759-1805) e a referência à dimensão estética, entre outros, contribuíram para o
destaque de outras perspectivas tão humanas quanto à própria racionalidade. No entanto, em
Freud (1856-1939), a nomeação do inconsciente promoveu o reconhecimento de aspectos tão
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fundantes quanto imperceptíveis a um olhar demasiadamente racionalizante, e marcaram
definitivamente concepções sobre a própria realidade humana.
Não obstante questionamentos e indagações constantes, a ênfase à dimensão racional
seguiu sempre como prevalente, determinando procedimentos de intervenção e atuação
científicas, estabelecendo padrões de validação universais e, muitas vezes, minimizando
perspectivas fundamentais restritas à ordem do particular ou mesmo do singular. No que diz
respeito à realidade humana, fala-se em: o homem, o conhecimento, a sociedade, a criança,
sugerindo-se que possam ser tratados como grandes categorias e nem sempre reconhecendo a
multiplicidade de expressões e vivências que sustentam cada termo em si.
No entanto, pode-se apontar que as investigações científicas desenvolvidas a partir do
século passado, associadas à expansão tecnológica, têm promovido dentro da própria ciência,
e a partir de seus procedimentos, o reconhecimento e a explicitação de novas possibilidades
de compreensão, assim como dos limites inevitáveis de toda produção humana. As várias
modalidades de trabalho multi, inter e transdisciplinar expressam a percepção e exigência de
um espaço dialógico entre áreas e saberes específicos que permitam a formulação de
concepções mais amplas e aprofundadas.
Essa mesma perspectiva tem sido solicitada também para a explicitação de fenômenos
fundantes da prática educativa. Para além da constituição de campos específicos como
Filosofia, Psicologia, História da Educação, Didática, entre outros, que mantinham a
fragmentação do fenômeno em olhares distintos, a exigência em nossos dias leva-nos ao
estabelecimento de campos ou temáticas que articulem as contribuições específicas apontando
novas percepções de uma realidade fundamentalmente complexa.
Um dos aspectos ou temáticas que possibilitam tal articulação é o próprio
conhecimento. Primeiramente porque, como já enunciamos acima, é condição fundante de
tudo o que realizamos a todo momento, mas também porque nem sempre reconhecemos a
riqueza e complexidade que o sustenta, e por fim, porque é em si o sentido e o fundamento de
toda prática educativa formal ou informal. E, talvez seja viável indagar: sendo o processo de
conhecimento um dos elementos mais essenciais do processo educacional, será que tem sido
devidamente investigado e aprofundado por educadores e pesquisadores em educação? Em
que medida investigações recentes em outras áreas do conhecimento, tais como a Biologia,
Antropologia e a própria Física, que explicitam processos sutis do organismo humano em suas
relações com o meio, tem sido apropriadas ou assumidas em diálogo pela reflexão
educacional e pedagógica?
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Conhecimento e o diálogo interdisciplinar
Vários autores têm estabelecido articulações e reflexões numa perspectiva
interdisciplinar sobre o conhecimento: Edgar Morin (1996a; 1996b; 2000); Schnitman (1996);
Hugo Assmann (1998), entre outros. Tais contribuições fundamentam-se em pesquisas e
diálogo com áreas específicas do conhecimento tais como a Biologia, a Física, as
Neurociências, investigações em inteligência artificial que, a partir de seus procedimentos e
aprofundamento, permitem explicitar processos muitas vezes imperceptíveis. Vamos
apresentar brevemente algumas dessas interlocuções.
As reflexões desenvolvidas pelos biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela,
particularmente em Árvore do Conhecimento (1995), possibilitam-nos compreender o caráter
fundante do processo de conhecimento que ocorre nas formas mais elementares da vida, desde
ser unicelular ao pluri ou multicelular. Eles trazem as concepções de organização e estrutura
para delinear os aspectos que constituem cada ser: apontam que sempre há uma organização
específica, com elementos particulares e necessários que o caracterizam e o definem dentro de
uma determinada classe ou espécie. A partir dessa organização particular, a estrutura implica
o estabelecimento das relações de cada ser com o ambiente externo, que possibilitem a
articulação com o que é necessário para a manutenção da vida e, ao mesmo tempo, garantindo
que se preservem as propriedades fundamentais da organização.
A organização é invariante e é comum a todos os membros de uma classe particular
de unidades compostas, mas a estrutura é sempre individual. Cada unidade
particular tem uma estrutura que realiza a organização, que compreende esses
componentes particulares e as relações concretas, particulares, que fazem dela uma
unidade em particular.
(...)
Em sistemas dinâmicos, como os sistemas vivos, a estrutura está variando
continuamente. Vocês estão variando de estrutura agora. Quando eu me movo, eu
mudo minha estrutura, porque a estrutura é tanto seus componentes quanto as
relações entre eles. Felizmente, eu posso mudar de estrutura sem perder minha
organização. Enquanto eu puder fazer isso, enquanto isso acontecer comigo, estou
vivo. (MATURANA, 1987, p. 59)
Esse dinamismo diz respeito tanto ao funcionamento de cada célula quanto ao
organismo vivo, seja tratando-se do ser unicelular, ou do organismo com bilhões de células
que nesse momento exercem suas funções e relações enquanto escrevemos e lemos,
enxergamos e ouvimos etc.
Maturana e Varela sustentam que tais aspectos são inerentes a todo ser vivo, que é
caracterizado como um sistema autopoiético:
1694
Nossa proposta é que os seres vivos se caracterizam por, literalmente, produziremse continuamente a si mesmos – o que indicamos ao chamarmos a organização que
os define de organização autopoiética. [...] A característica mais marcante de um
sistema autopoiético é que ele se levanta por seus próprios condões, e se constitui
como distinto do meio circundante mediante sua própria dinâmica, de modo que
ambas as coisas são inseparáveis. (MATURANA e VARELLA, 1999, p.87, grifos
dos autores)
Os autores também apontam que, a partir da organização e da estrutura determinada
nas relações com o ambiente, todo sistema vivo só é capaz de exercer interações e possíveis
mudanças dentro de limites e possibilidades que lhe são intrínsecas: “[...] de acordo com sua
condição de sistemas determinados estruturalmente, todas as mudanças de estado que
acontecem com eles estão especificados pelas suas estruturas individuais e não por algum
agente perturbador interno ou externo.” (MATURANA, 1998, p.16).
Essas pontuações podem nos provocar a reflexão sobre algumas relações especificas
ao universo humano como os processos de educação e de aprendizagem. Há aspectos que são
constitutivos da espécie humana, mas também esses são determinados estruturalmente pela
dimensão de experiência particular de cada organismo, de cada sujeito singular.
Edgar Morin (1996a) também estabelece diálogo com alguns fundamentos da
Biologia, reconhece e retoma as relações fundantes entre o ser vivo e o meio (tão necessárias
quanto hostis), e caracteriza o ser vivo como ser auto-eco-organizador.
[...] sendo singular e autônoma, a auto-organização viva integra em si ordem e a
organização do seu meio, a “eco-organização”, e constitui na realidade uma autoeco-organização. A existência das máquinas vivas parece, pois, muito mais precária
e frágil que a das máquinas artificiais uma vez que depende da sua relação ecológica
e que a auto-organização depende da eco-organização (MORIN, 1996a, p. 45).
Ao refletirem sobre as atuações dos seres vivos, tanto Maturana quanto Morin
destacam a complexidade fundante dos organismos constituídos pelos sistemas sensorial,
motor e cerebral. Particularmente, Morin (1996a, p.55) reflete sobre dinâmica que marcou a
evolução dos seres em busca da energia que garantisse a sobrevivência e afirma “Foi nessas
condições que um anel auto-ecogerador, indo do sensorium ao motorium, ou seja, dos
neurônios sensoriais aos neurônios motores, gerou o cerebrum.” E aponta mais adiante:
Embora dependente do sensorium e do motorium, o cerebrum comanda-os:
transforma em conhecimento individual as indicações sensoriais, e fornece as suas
instruções ao motorium em função deste conhecimento. O auto-ecodesenvolvimento
do anel sensorium/cerebrum/motorium, tão admirável nas aves e nos mamíferos, é
ao mesmo tempo o desenvolvimento da estratégia, da inteligência, do conhecimento.
1695
Sustentados que somos por um sistema nervoso complexo, integrado e integrando
bilhões de células, cada qual cumprindo sua função, mais uma vez vale recordar, realizar essa
“simples” atividade neste instante implica uma articulação sofisticada que constitui o nosso
aparelho neurocerebral:
Como na sua origem, o aparelho neurocerebral está no centro de uma dialética
exterior/interior. Foi o desenvolvimento desta dialética que fez que o aparelho
neurocerebral seja, ao mesmo tempo, tão intimamente subjetivo e tão objetivamente
aberto para o mundo. O cérebro é o mais interior e o mais exterior de todos os
órgãos: é uma coisa porque é a outra. (MORIN, 1996 a, p.57)
Retomamos alguns aspectos para destacar-se a sutileza da vida, desde seus aspectos
mais elementares (como a organização da célula) até a trama imensa que constitui organismos
mais complexos. O fundamento é o mesmo: há uma identidade (organização, segundo
Maturana) que se mantém na filogenia e na própria ontogenia mantendo o organismo como
existente. Entretanto, a manutenção da vida implica o estabelecimento de relações com o meio
externo, com outras identidades.
É essa trama, com maior ou menor quantidade de componentes, com maior ou menor
complexidade e articulação interna, que sustenta tudo o que é vivo. Manter-se vivo implica,
segundo Morin, um processo de auto-eco-organização, e ocorre considerando-se a própria
unidade e sua inserção num meio que promove, necessariamente, as interações entre unidades
auto-organizadas (ser-meio).
Assim, cada unidade, cada ser vivo é fruto de uma história de relações e adaptações
que possibilitaram a permanência da espécie, e traz em si próprio, em sua organização (como
elementos inatos) aspectos que vieram favorecendo a manutenção da existência de seus
antepassados. No entanto, manter-se vivo, a cada momento, deve ser “inventado” sempre a
partir do que se é e do que se tem, da própria organização e estrutura. A condição de maior ou
menor complexidade do organismo possibilita variações de respostas, de “invenções de
respostas”, mas o fundamento sempre é o que cada organismo (filogeneticamente
determinado) e a sua singular história (ontogenia) de interações possibilitar.
É essa dinâmica interacional que constitui o que hoje vivemos, como organismos (em
meio a tantos outros), inventando processos e caminhos tão amplos e tão limitados, tão ricos
com a amplitude de nosso sistema nervoso e tão restritos às suas possibilidades, procurando, a
cada instante, manter a própria vida e por isso construindo conhecimento.
Tais aspectos oferecem-nos a possibilidade de reconhecermos a dimensão complexa
de nossa existência como seres constituídos por bilhões de células, sendo que algumas
aprimoram ainda mais nossa vivência a partir de um sistema nervoso sofisticado que nos
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habilita a atuações diferenciadas diante do meio e com o meio. As noções de autopoiese e
auto-eco-organização ressaltam ainda mais a dimensão da trama singular que sustenta cada
organismo. E, então, podemos nos perguntar: trama singular do organismo auto-produzindo
sua existência, inventando formas de manter-se vivo? Será que em nossas atuações cotidianas
em sala de aula, conseguimos, ao menos vez ou outra, reconhecer esse esforço em cada
organismo que se nos apresenta com um nome, na categoria de “educando”? E, cada um de
nós, será que reconhecemos em nossos gestos, atuações, disposições e indisposições,
processos de uma organização que vem há anos inventando saídas para continuar vivendo? E
será que conseguimos ao menos intuir a complexidade que marca cada relação entre
organismos? Em que medida, a percepção desses aspectos pode contribuir para o
reconhecimento e o respeito às diferenças que nos caracterizam? Aliás, com licença ao tom
coloquial, a diversidade “está na cara”, mas também na impressão digital, na íris, na
tonalidade da voz, no DNA e, muitas vezes, cedemos à tentação da homogeneização, da
classificação, da categorização e aí paramos.
Para além das contribuições advindas do diálogo com a Biologia, encontramos em
algumas pesquisas desenvolvidas no âmbito das Neurociências outros elementos que ratificam
essa dimensão absolutamente singular que caracteriza cada um de nós, não obstante,
constituirmo-nos a partir de um organismo comum à nossa espécie humana. Antonio
Damásio, em seus livros O erro de Descartes (1996) e O mistério da consciência (2000),
explicita alguns processos sofisticados que sustentam o processamento neurocerebral
articulando bilhões de neurônios, em trilhões de sinapses, através da captação sensorial,
formação de imagens, organização do pensamento, a constituição da noção de si mesmo (self)
que orienta nossas atuações. Dentre as diversas contribuições, trazemos inicialmente breve
reflexão sobre o funcionamento mental:
O fato de um dado organismo possuir uma mente significa que ele forma
representações neurais que se podem tornar imagens manipuláveis num processo
chamado pensamento, o qual acaba por influenciar o comportamento em virtude do
auxílio que confere em termos de previsão do futuro, de planejamento desse de
acordo com essa previsão e da escolha da próxima ação.
[...] São processos que permitem que modificações microestruturais invisíveis nos
circuitos de neurônios (em corpos celulares, dendritos e axônios, e sinapses) se
tornem uma representação neural, a qual por sua vez se transforma em imagem que
cada um de nós experiencia como sendo sua. (DAMÁSIO, 1996, p. 116)
Essas imagens que formam a mente e, consequentemente, nosso pensamento e
tomadas de decisões, são de dois tipos: imagens perceptivas e imagens evocadas. As
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perceptivas formam-se da própria relação com o que nos é exterior, através de processos
sensoriais e de uma rica trama, promove as representações neurais. As imagens evocadas são
aquelas que recuperamos quando recordamos situações vivenciadas no passado. Entretanto,
não estão apenas vinculadas ao passado como mera reprodução ou repetição, mas podem ser
associações novas a partir do que já vivenciamos e que caracteriza nossa capacidade e
potencial para estabelecermos planos para o futuro.
Essas diversas imagens – perceptivas, evocadas a partir do passado real e evocadas a
partir de planos para o futuro – são construções do cérebro. Tudo o que se pode
saber ao certo é que são reais para nós próprios e que há outros seres que constroem
imagens do mesmo tipo. Partilhamos com outros seres humanos e até com alguns
animais, as imagens em que se apóia nosso conceito de mundo; existe uma
consistência notável nas construções que diferentes indivíduos elaboram relativas
aos aspectos essenciais do ambiente. [...] Não sabemos, e é improvável que alguma
vez venhamos a saber, o que é a realidade “absoluta”. (DAMÁSIO, 1996, p.124)
Ao indagar “como conseguimos criar essas maravilhosas construções”, Damásio
propõe que elas parecem estar articuladas numa “maquinaria neural complexa de percepção,
memória e raciocínio.” Essa dinâmica que sustenta imagens perceptivas e evocadas deve estar
relacionada essencialmente com a base neural que constitui o eu, ou self, e, segundo o autor,
“trata-se de um estado neurobiológico perpetuamente recriado”.
Outro aspecto relevante é a reflexão sobre as imagens que evocamos por recordação,
ou seja, por um processo que requer memória. Damásio lembra primeiramente que “as
imagens não são armazenadas sob a forma de fotografias fac-símile de coisas,
acontecimentos, palavras ou frases”, e que inclusive, se assim fosse, haveria problemas em
razão da quantidade de relações e situações vivenciadas durante a existência. Ele propõe que
consideremos a dimensão de que sempre realizamos uma interpretação, e nessa perspectiva a
memória é essencialmente reconstrutiva:
Todos possuímos provas concretas de que sempre que recordamos um dado objeto,
um rosto ou uma cena, não obtemos uma reprodução exata, mas antes uma
interpretação, uma nova versão reconstruída do original. Mais ainda, à medida que
a idade e experiência se modificam, as versões da mesma coisa evoluem. Nada disso
é compatível com a idéia de uma representação fac-símile rígida, como foi
observado pelo psicólogo britânico Barlett há várias décadas, quando pela primeira
vez propôs que a memória é essencialmente reconstrutiva. (DAMÁSIO, 1996, p.
128, grifo do autor).
Essas concepções e descrições, a nosso ver, provocam o campo educativo e a reflexão
pedagógica, pois destacam aspectos fundantes aos quais nem sempre estamos atentos, não
obstante, as situações cotidianas e as experiências relacionais sinalizarem de múltiplas formas.
Ultrapassando o reconhecimento inegável das nossas diferenças individuais, marcadas pelo
1698
organismo e por nossa experiência, nossa história, nossas escolhas e associações, há outros
aspectos que confirmam ainda mais nossa existência como absolutamente singular. Em outros
textos, Damásio (2000) e Von Foerster (in SCHNITMAN, 1996) destacam que a própria
percepção visual (como captação de imagens) traz marcas singulares. E o que pensarmos das
associações conscientes (e inconscientes) que emergem como imagens internas a partir das
percepções visuais, auditivas, olfativas, táteis etc.? Cada uma dessas dimensões sustenta e
fundamenta o processo de conhecimento que cada sujeito constrói e reconstrói
constantemente. E cada sujeito realiza esse processo como expressão auto-eco-organizadora,
no contato com o ambiente e com os outros sujeitos.
Singularidade e o processo educativo: algumas questões
É essa dinâmica complexa que também vivenciamos em cada sala de aula, a partir do
encontro de sujeitos singulares com suas histórias, suas percepções e concepções, suas
lembranças e seus planos futuros, e tantos aspectos explicitados na convivência ou
simplesmente insondáveis. Mas, particularmente, no que diz respeito a alguns procedimentos
comuns tais como a organização de uma aula, a realização de uma atividade, os espaços de
partilha e discussão, e também os momentos de avaliação, em que medida levamos em
consideração a riqueza que pode ser suscitada do encontro de sujeitos singulares? E mais uma
vez: em que medida, nós, educadores, reconhecemos em nós mesmos as características,
percepções e concepções, frutos de nossas escolhas (algumas conscientes, outras não), de
nossa história, de nosso percurso e percalços? Quais são os espaços possíveis em momentos
de avaliação para a expressão dessa construção inegavelmente singular?
Questões e inconclusões
A reflexão sobre a dimensão de singularidade, iniciada no Doutorado, encontrou
algumas conquistas e promoveu ainda outras questões provocadas também pelas situações
cotidianas. Como conquistas, o reconhecimento da riqueza e da urgência sempre maior do
diálogo inter e transdisciplinar que assuma a discussão e ampliação de temáticas fundantes do
universo humano, como propõe Morin, em A Religação dos Saberes (2001). Que esse diálogo
realize-se no próprio contexto escolar e acadêmico que, frequentemente, comporta
profissionais com formações distintas, e possa ser o espaço de expressão das percepções e
concepções constituídas singular e coletivamente como organização de saberes.
Dentre tantas questões que ainda permanecem, uma é recorrente e vincula-se à prática
docente cotidiana: quais procedimentos, durante a formação de professores, podem contribuir
1699
para ampliar a compreensão sobre a singularidade humana e sobre a complexidade da tarefa
que assumimos? As indagações permanecem... pro-vocando... pro-movendo.
REFERÊNCIAS
DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e o cérebro humano. São Paulo:
Cia. das Letras, 1996.
DAMÁSIO, Antonio. O mistério da consciência: do corpo e das emoções ao conhecimento
de si. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
MATURANA, Humberto e VARELA, Francisco. A árvore do conhecimento. Campinas:
Editorial Psy II, 1995.
MATURANA, Humberto. A ontologia da realidade. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1997
________. Da biologia à Psicologia. 3. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998.
MORIN, Edgar. O Método3: O conhecimento do conhecimento. 2.a ed. Portugal:
Publicações Europa-América, 1996a.
________. O problema epistemológico da complexidade. Portugal: Europa-América, 1996b
________. Os setes saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez; Brasília:
UNESCO, 2000.
SCHNITMAN, Dora F. (Org.) Novos paradigmas, cultura e subjetividade. Porto Alegre:
Artes Médicas, 1996.
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