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GEOLOGIA
De onde vem a
areia das praias
Elementos químicos radioativos recontam
a história da formação do litoral sudeste
FÁBIO COLOMBINI
G IOVANA G IRARDI
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Quem vê uma montanha de areia em frente a um prédio
em construção não imagina que ela esconde segredos de
uma época em que as praias começavam a ser formadas
por sedimentos arrastados ao sabor da flutuação do nível do mar. É a composição da areia que conta o enredo e
o tempo dessa história, como vem descobrindo o físico Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Paulistano formado em todos os estágios
de graduação na Universidade de São Paulo (USP), Meigikos trocou os laboratórios da capital paulista pela praia
fluminense. Em Niterói, seu trabalho começou com a medição da radioatividade natural da areia das praias e avaliação do risco de se usar essa areia na construção civil.
Mais recentemente ele e sua equipe passaram a escrever
uma espécie de história da formação do litoral brasileiro.
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Algumas partes da costa norte do Rio
apresentam uma concentração de elementos químicos radioativos que podem
expor a população a uma dose de radiação natural de três a cinco vezes superior à média mundial, efeito que os pesquisadores costumam chamar de anomalia. O contato ocasional com essa radiação não chega a ser prejudicial para
quem freqüenta a praia, mas se essa areia
for usada em grande quantidade na
construção de uma casa, por exemplo,
pode trazer problemas de saúde para
seus moradores. É que as pessoas ficam
expostas permanentemente à radiação
emitida pelos elementos enclausurados
nas paredes. Intrigado com o nível de radiação detectado na areia de praias como Guaxindiba, no município de São
Francisco de Itabapoana, Meigikos resolveu analisar outros pontos do litoral. Em
diversas excursões, muitas vezes usando
o seu próprio carro, ele e seus alunos recolheram amostras de areia de 50 praias
de um trecho da costa que vai do norte
do Espírito Santo ao sul de São Paulo. O
alvo então já não eram mais as anomalias propriamente ditas, mas descobrir as
origens daqueles sedimentos e os mecanismos que os transportaram até ali.
E
studando as correlações entre os elementos químicos radioativos tório,
urânio e potássio, os pesquisadores
conseguem traçar as propriedades mineralógicas da areia da praia, estimar o
tipo de formação rochosa que a originou
e dizer se esses sedimentos chegaram ali
por ação dos ventos, dos rios ou arrastados pelas águas do oceano. Também permite avaliar se os sedimentos que hoje se
depositam na orla marítima permaneceram muito tempo em ambientes terrestres ou ficaram submersos em águas
profundas ou rasas. É uma informação
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relevante, uma vez que, no caso brasileiro, as flutuações do nível do mar foram
importantes para moldar as planícies
costeiras. Aqui as praias começaram a se
formar nos últimos 18 mil anos – durante o período geológico Quaternário – e
ainda hoje continuam em transformação. Durante esse período houve uma
drástica variação no nível do mar, que
ora expôs grandes áreas da plataforma
continental, ora as deixou submersas.
“Esse sobe-e-desce fez o oceano funcionar como um filtro, reprocessando os
sedimentos que originam a areia das
praias”, conta Meigikos.
De modo geral, a areia contém minerais leves, que se espalham nas águas
mais superficiais, e pesados, que se concentram no fundo do oceano. As ondas
e as correntes marítimas, porém, se encarregaram de reunir em algumas de
nossas praias os minerais mais pesados
– e também mais interessantes economicamente –, como ilmenita e rutilo, usados para a produção de pigmentos; o zircônio, que abastece a indústria siderúrgica; e a monazita, empregada na confecção de catalisadores. Esses minerais
mais pesados contêm altas concentrações de tório e urânio, ao passo que os
mais leves, como o quartzo e o feldspato, apresentam alto nível de potássio.
Na praia, todos esses minérios estão
misturados. A cor da areia costuma ajudar a identificá-los – as mais escuras,
num tom entre o vermelho e o preto, sinalizam maior presença de elementos
pesados, enquanto a areia clarinha representa elementos mais leves. Só que dizer
Composição química indica origem
da areia de Tabatinga e Ubu,
no Espírito Santo, Parati, no Rio,
e Picinguaba, em São Paulo
o que veio de onde não é tão simples assim. É aí que a técnica de radiometria de
Meigikos entra em ação porque a identificação dos elementos radioativos ajuda a determinar o tipo de rocha que originou esses sedimentos.
D
epois de analisar a areia de 50 praias,
o grupo da UFF calculou a razão entre as concentrações dos elementos
tório e urânio e entre tório e potássio das
amostras. A primeira proporção ajuda
a estimar os principais meios de transporte e o tempo que os sedimentos passaram debaixo d’água. Isso porque uma
parte do urânio sofre oxidação e assume uma forma mais solúvel em contato
com o ar – portanto, o sedimento que fica muito tempo exposto à atmosfera
apresenta menor concentração de urânio
–, ao passo que o tório é bastante estável.
Como conseqüência do comportamento distinto desses elementos, se a divisão de tório por urânio resultar em um
número alto, é sinal de que o urânio passou muito tempo fora d’água e sofreu
um intenso processo de oxidação. Meigikos avalia essa relação por meio de uma
escala que vai de 0 a 7. Quando o resultado é maior que 7, significa que o sedimento passou muito tempo fora d’água,
ou seja, o urânio se oxidou bastante. Entre 2 e 7, passou muito tempo em ambientes de águas rasas, como rios ou lagoas. Resultado menor que 2 indica que
o sedimento passou a maior parte do
tempo em águas profundas, onde o nível de oxigenação é menor.
A relação entre tório e potássio, por
sua vez, permite contar outra parte da
história. Quase todos os sedimentos que
formam a areia da praia provêm da decomposição e da erosão das rochas ao
longo de milhares de anos. O enigma, no
entanto, é saber como eles chegaram à
ROBERTO MEIGIKOS DOS ANJOS, RICARDO ZORZETTO E JOÃO ALEXANDRINO
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praia. Podem ter sido carregados por
ventos e depositados diretamente na praia
ou levados por rios até o mar, onde passaram um tempo sendo arrastados de
um lado para o outro até se fixarem na
praia. Os pesquisadores perceberam que,
se a areia contém grande quantidade de
potássio, esse sedimento provavelmente
veio direto da rocha para a orla. Já se a
quantidade de potássio é baixa, passou
por várias outras etapas que levaram à
decomposição desse elemento químico.
Praias com faixa de areia mais estreita, como as da região entre Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, e Angra dos Reis, no sul do Rio de Janeiro,
possuem nível de potássio comparável
ao de rochas graníticas. Para Meigikos, é
um sinal de que a areia dessa região originou-se principalmente na serra do Mar
– cadeia de rochas graníticas muito antigas, formadas há mais de 500 milhões
de anos – e foi carregada para a costa pelo vento. Mas há exceções. Em Caraguatatuba e Ubatuba a areia foi arrastada pelos rios e passou muito tempo submersa em águas profundas antes de se depositar nas praias.
Em áreas com faixa de areia mais larga, comuns ao norte do Rio e no Espírito Santo, o nível de potássio é consideravelmente mais baixo. A explicação é
que a areia dali veio de vastos depósitos de sedimentos que se acumularam
entre 65 milhões e 2 milhões de anos
atrás a alguns quilômetros do litoral. Rios
como o Paraíba do Sul e o Doce transportam esses sedimentos até o oceano,
onde permanecem longos períodos antes de chegarem às praias.
Mais do que esclarecer pontos da história geológica, a compreensão de como
se formaram as praias pode resolver dúvidas sobre como se deu sua ocupação
do litoral pelos primeiros brasileiros.
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Compreender a variação dos níveis do
mar pode ajudar a entender as condições
que propiciaram ou dificultaram a instalação humana do litoral muito antes
da chegada dos europeus.
Os principais registros arqueológicos
da presença de gente na região são os
sambaquis, montes de até 30 metros de
altura formados por conchas e areia ou
terra, construídos ao longo da costa pelos primeiros povos nômades a habitarem o local. Datações feitas nos sambaquis indicam que a região teria sido ocupada há no máximo 6 mil anos, a data
mais aceita por arqueólogos e antropólogos. Mas estudos recentes sugerem que
os sambaquis podem ter até 8 mil anos.
O
s críticos desses trabalhos alegam que
esse valor é improvável porque em
teoria os primeiros humanos a habitarem a costa não teriam chegado tanto tempo atrás. Além disso, alegam que
o local onde o sambaqui supostamente
mais velho foi encontrado, na praia de
Camboinhas, em Niterói, estaria completamente embaixo d’água há 8 mil
anos. Algumas datações apontam que a
restinga sobre a qual está esse monte de
conchas tem apenas 5 mil anos. Outras
datações feitas em turfas encontradas no
fundo da lagoa apontam que havia água
doce por ali muito tempo antes, o que
tornaria possível a presença de humanos.
O uso da técnica de radiometria de Meigikos pode resolver esse impasse.
Em parceria com a arqueóloga Tania
Andrade Lima, do Museu Nacional da
Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), que identificou o sambaqui de
Algodão, em Angra dos Reis, o físico espera responder se Camboinhas estava de
fato debaixo d’água. “Vamos usar a correlação entre tório e urânio. Se o resultado for entre 2 e 7 ou superior a 7, é pos-
sível que houvesse gente vivendo ali no
período”, explica. Caso o sedimento estivesse em águas profundas, é impossível
que o local tenha sido ocupado por seres
humanos. Isso porque se acredita que esses grupos eram formados por pessoas
que não saíam para caçar e dependiam
basicamente de peixes e frutos do mar.
Por essa razão é provável que preferissem se estabelecer próximo a regiões de
águas rasas, que facilitavam a coleta do
alimento.“Aparentemente esses dois locais identificados como os mais antigos
eram excepcionalmente favoráveis à ocupação humana”, conta Tania.
Meigikos espera não só auxiliar Tânia a resolver esse impasse de Camboinhas, como também explicar, em pareceria com a arqueóloga Ângela Buarque,
da UFRJ, por que algumas regiões da
costa fluminense não apresentam nenhum sambaqui. “A região dos Lagos é
uma das mais ricas nesses montes de
conchas, comuns em Búzios, Cabo Frio,
Arraial do Cabo e Saquarema. Mas não
existe nenhum sambaqui em Araruama”,
diz Meigikos. “Os estudiosos sempre se
perguntaram por quê. Meu palpite é que
essa região, por alguma condição específica da natureza, ficou muito acima ou
abaixo do nível do mar, o que pretendemos responder a partir da análise do
teor de tório e urânio das areias de lá.”
Em última instância esse estudo
pode fortalecer a idéia de que os humanos chegaram às Américas muito antes
do que se imagina. A descoberta do fóssil Luzia, em Minas Gerais, pelo grupo
do antropólogo da USP Walter Neves
já jogou a ocupação do interior do Brasil para 11.500 anos atrás, quase 3 mil
anos antes do que se pensava. Se os dados de Camboinhas e Algodão se confirmarem, é provável que o litoral já fosse
habitado há mais de 6 mil anos.
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