50a53-138-praias sudeste 23/7/07 8:28 PM Page 50 > GEOLOGIA De onde vem a areia das praias Elementos químicos radioativos recontam a história da formação do litoral sudeste FÁBIO COLOMBINI G IOVANA G IRARDI 50a53-138-praias sudeste 23/7/07 8:30 PM Page 51 Quem vê uma montanha de areia em frente a um prédio em construção não imagina que ela esconde segredos de uma época em que as praias começavam a ser formadas por sedimentos arrastados ao sabor da flutuação do nível do mar. É a composição da areia que conta o enredo e o tempo dessa história, como vem descobrindo o físico Roberto Meigikos dos Anjos, da Universidade Federal Fluminense (UFF). Paulistano formado em todos os estágios de graduação na Universidade de São Paulo (USP), Meigikos trocou os laboratórios da capital paulista pela praia fluminense. Em Niterói, seu trabalho começou com a medição da radioatividade natural da areia das praias e avaliação do risco de se usar essa areia na construção civil. Mais recentemente ele e sua equipe passaram a escrever uma espécie de história da formação do litoral brasileiro. PESQUISA FAPESP 138 ■ AGOSTO DE 2007 ■ 51 50a53-138-praias sudeste 23/7/07 8:30 PM Algumas partes da costa norte do Rio apresentam uma concentração de elementos químicos radioativos que podem expor a população a uma dose de radiação natural de três a cinco vezes superior à média mundial, efeito que os pesquisadores costumam chamar de anomalia. O contato ocasional com essa radiação não chega a ser prejudicial para quem freqüenta a praia, mas se essa areia for usada em grande quantidade na construção de uma casa, por exemplo, pode trazer problemas de saúde para seus moradores. É que as pessoas ficam expostas permanentemente à radiação emitida pelos elementos enclausurados nas paredes. Intrigado com o nível de radiação detectado na areia de praias como Guaxindiba, no município de São Francisco de Itabapoana, Meigikos resolveu analisar outros pontos do litoral. Em diversas excursões, muitas vezes usando o seu próprio carro, ele e seus alunos recolheram amostras de areia de 50 praias de um trecho da costa que vai do norte do Espírito Santo ao sul de São Paulo. O alvo então já não eram mais as anomalias propriamente ditas, mas descobrir as origens daqueles sedimentos e os mecanismos que os transportaram até ali. E studando as correlações entre os elementos químicos radioativos tório, urânio e potássio, os pesquisadores conseguem traçar as propriedades mineralógicas da areia da praia, estimar o tipo de formação rochosa que a originou e dizer se esses sedimentos chegaram ali por ação dos ventos, dos rios ou arrastados pelas águas do oceano. Também permite avaliar se os sedimentos que hoje se depositam na orla marítima permaneceram muito tempo em ambientes terrestres ou ficaram submersos em águas profundas ou rasas. É uma informação 52 ■ AGOSTO DE 2007 ■ PESQUISA FAPESP 138 Page 52 relevante, uma vez que, no caso brasileiro, as flutuações do nível do mar foram importantes para moldar as planícies costeiras. Aqui as praias começaram a se formar nos últimos 18 mil anos – durante o período geológico Quaternário – e ainda hoje continuam em transformação. Durante esse período houve uma drástica variação no nível do mar, que ora expôs grandes áreas da plataforma continental, ora as deixou submersas. “Esse sobe-e-desce fez o oceano funcionar como um filtro, reprocessando os sedimentos que originam a areia das praias”, conta Meigikos. De modo geral, a areia contém minerais leves, que se espalham nas águas mais superficiais, e pesados, que se concentram no fundo do oceano. As ondas e as correntes marítimas, porém, se encarregaram de reunir em algumas de nossas praias os minerais mais pesados – e também mais interessantes economicamente –, como ilmenita e rutilo, usados para a produção de pigmentos; o zircônio, que abastece a indústria siderúrgica; e a monazita, empregada na confecção de catalisadores. Esses minerais mais pesados contêm altas concentrações de tório e urânio, ao passo que os mais leves, como o quartzo e o feldspato, apresentam alto nível de potássio. Na praia, todos esses minérios estão misturados. A cor da areia costuma ajudar a identificá-los – as mais escuras, num tom entre o vermelho e o preto, sinalizam maior presença de elementos pesados, enquanto a areia clarinha representa elementos mais leves. Só que dizer Composição química indica origem da areia de Tabatinga e Ubu, no Espírito Santo, Parati, no Rio, e Picinguaba, em São Paulo o que veio de onde não é tão simples assim. É aí que a técnica de radiometria de Meigikos entra em ação porque a identificação dos elementos radioativos ajuda a determinar o tipo de rocha que originou esses sedimentos. D epois de analisar a areia de 50 praias, o grupo da UFF calculou a razão entre as concentrações dos elementos tório e urânio e entre tório e potássio das amostras. A primeira proporção ajuda a estimar os principais meios de transporte e o tempo que os sedimentos passaram debaixo d’água. Isso porque uma parte do urânio sofre oxidação e assume uma forma mais solúvel em contato com o ar – portanto, o sedimento que fica muito tempo exposto à atmosfera apresenta menor concentração de urânio –, ao passo que o tório é bastante estável. Como conseqüência do comportamento distinto desses elementos, se a divisão de tório por urânio resultar em um número alto, é sinal de que o urânio passou muito tempo fora d’água e sofreu um intenso processo de oxidação. Meigikos avalia essa relação por meio de uma escala que vai de 0 a 7. Quando o resultado é maior que 7, significa que o sedimento passou muito tempo fora d’água, ou seja, o urânio se oxidou bastante. Entre 2 e 7, passou muito tempo em ambientes de águas rasas, como rios ou lagoas. Resultado menor que 2 indica que o sedimento passou a maior parte do tempo em águas profundas, onde o nível de oxigenação é menor. A relação entre tório e potássio, por sua vez, permite contar outra parte da história. Quase todos os sedimentos que formam a areia da praia provêm da decomposição e da erosão das rochas ao longo de milhares de anos. O enigma, no entanto, é saber como eles chegaram à ROBERTO MEIGIKOS DOS ANJOS, RICARDO ZORZETTO E JOÃO ALEXANDRINO 50a53-138-praias sudeste 23/7/07 8:31 PM praia. Podem ter sido carregados por ventos e depositados diretamente na praia ou levados por rios até o mar, onde passaram um tempo sendo arrastados de um lado para o outro até se fixarem na praia. Os pesquisadores perceberam que, se a areia contém grande quantidade de potássio, esse sedimento provavelmente veio direto da rocha para a orla. Já se a quantidade de potássio é baixa, passou por várias outras etapas que levaram à decomposição desse elemento químico. Praias com faixa de areia mais estreita, como as da região entre Caraguatatuba, no litoral norte de São Paulo, e Angra dos Reis, no sul do Rio de Janeiro, possuem nível de potássio comparável ao de rochas graníticas. Para Meigikos, é um sinal de que a areia dessa região originou-se principalmente na serra do Mar – cadeia de rochas graníticas muito antigas, formadas há mais de 500 milhões de anos – e foi carregada para a costa pelo vento. Mas há exceções. Em Caraguatatuba e Ubatuba a areia foi arrastada pelos rios e passou muito tempo submersa em águas profundas antes de se depositar nas praias. Em áreas com faixa de areia mais larga, comuns ao norte do Rio e no Espírito Santo, o nível de potássio é consideravelmente mais baixo. A explicação é que a areia dali veio de vastos depósitos de sedimentos que se acumularam entre 65 milhões e 2 milhões de anos atrás a alguns quilômetros do litoral. Rios como o Paraíba do Sul e o Doce transportam esses sedimentos até o oceano, onde permanecem longos períodos antes de chegarem às praias. Mais do que esclarecer pontos da história geológica, a compreensão de como se formaram as praias pode resolver dúvidas sobre como se deu sua ocupação do litoral pelos primeiros brasileiros. Page 53 Compreender a variação dos níveis do mar pode ajudar a entender as condições que propiciaram ou dificultaram a instalação humana do litoral muito antes da chegada dos europeus. Os principais registros arqueológicos da presença de gente na região são os sambaquis, montes de até 30 metros de altura formados por conchas e areia ou terra, construídos ao longo da costa pelos primeiros povos nômades a habitarem o local. Datações feitas nos sambaquis indicam que a região teria sido ocupada há no máximo 6 mil anos, a data mais aceita por arqueólogos e antropólogos. Mas estudos recentes sugerem que os sambaquis podem ter até 8 mil anos. O s críticos desses trabalhos alegam que esse valor é improvável porque em teoria os primeiros humanos a habitarem a costa não teriam chegado tanto tempo atrás. Além disso, alegam que o local onde o sambaqui supostamente mais velho foi encontrado, na praia de Camboinhas, em Niterói, estaria completamente embaixo d’água há 8 mil anos. Algumas datações apontam que a restinga sobre a qual está esse monte de conchas tem apenas 5 mil anos. Outras datações feitas em turfas encontradas no fundo da lagoa apontam que havia água doce por ali muito tempo antes, o que tornaria possível a presença de humanos. O uso da técnica de radiometria de Meigikos pode resolver esse impasse. Em parceria com a arqueóloga Tania Andrade Lima, do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que identificou o sambaqui de Algodão, em Angra dos Reis, o físico espera responder se Camboinhas estava de fato debaixo d’água. “Vamos usar a correlação entre tório e urânio. Se o resultado for entre 2 e 7 ou superior a 7, é pos- sível que houvesse gente vivendo ali no período”, explica. Caso o sedimento estivesse em águas profundas, é impossível que o local tenha sido ocupado por seres humanos. Isso porque se acredita que esses grupos eram formados por pessoas que não saíam para caçar e dependiam basicamente de peixes e frutos do mar. Por essa razão é provável que preferissem se estabelecer próximo a regiões de águas rasas, que facilitavam a coleta do alimento.“Aparentemente esses dois locais identificados como os mais antigos eram excepcionalmente favoráveis à ocupação humana”, conta Tania. Meigikos espera não só auxiliar Tânia a resolver esse impasse de Camboinhas, como também explicar, em pareceria com a arqueóloga Ângela Buarque, da UFRJ, por que algumas regiões da costa fluminense não apresentam nenhum sambaqui. “A região dos Lagos é uma das mais ricas nesses montes de conchas, comuns em Búzios, Cabo Frio, Arraial do Cabo e Saquarema. Mas não existe nenhum sambaqui em Araruama”, diz Meigikos. “Os estudiosos sempre se perguntaram por quê. Meu palpite é que essa região, por alguma condição específica da natureza, ficou muito acima ou abaixo do nível do mar, o que pretendemos responder a partir da análise do teor de tório e urânio das areias de lá.” Em última instância esse estudo pode fortalecer a idéia de que os humanos chegaram às Américas muito antes do que se imagina. A descoberta do fóssil Luzia, em Minas Gerais, pelo grupo do antropólogo da USP Walter Neves já jogou a ocupação do interior do Brasil para 11.500 anos atrás, quase 3 mil anos antes do que se pensava. Se os dados de Camboinhas e Algodão se confirmarem, é provável que o litoral já fosse habitado há mais de 6 mil anos. ■ PESQUISA FAPESP 138 ■ AGOSTO DE 2007 ■ 53