- Sociedade Brasileira de Sociologia

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XIII CONGRESSO BRASILEIRO DE SOCIOLOGIA
29 de maio a 1 de junho de 2007, UFPE, Recife (PE)
GT – CULTURA, POLÍTICA, MEMÓRIA E SUBJETIVIDADE
A FICÇÃO-CIENTÍFICA E A CONTRA-CULTURA:
PROJETANDO UM FUTURO SEM CONFLITOS
Leila Beatriz Ribeiro (Dra. Ciência da Informação IBICT/UFRJ/ECO) (Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro) [email protected].
Valéria Cristina Lopes Wilke (Doutoranda Ciência da Informação IBICT/UFF)
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) [email protected]
Carmen Irene C. de Oliveira (Doutoranda Ciência da Informação IBICT/UFF)
(Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro) [email protected]
Introdução
A nossa investigação procura estabelecer relações entre o que denominamos
texto fílmico, a informação e a memória, que podem ser entendidas conforme três
caminhos ou possibilidades de enfoque: 1) o texto fílmico como documento, o que por
si só já o torna um problematizador das questões relacionadas à memória. Nesse
caso, ele pode funcionar como o repositário/veículo da memória de um grupo,
comunidade, sociedade etc., por estarem nele inscritas as representações que dão
forma a esta memória social ou coletiva. 2) o texto fílmico como dinamizador de
projetos identitários, situando-se, nesse caso, no âmbito da construção de uma
memória idealizada por e para determinados grupos. 3) o texto fílmico como
dispositivo
que
deflagra
o
processo
de
lembrança
individual,
por
trazer
representações válidas para aquele que o lê. Nessas três possibilidades, a informação
emerge como elemento que forma a substância mesma daquilo que é veiculado,
dinamizado
ou
deflagrado
nos
enfoques
mencionados.
A
partir
da
sua
consubstanciação no texto fílmico é que se dá a possibilidade de construção de
sentidos pretendidos e específicos (já que a produção de sentido ocorre na dialética
escritura-leitura) que funcionam nos: a) documentos/monumentos que nos reportam a
memória de outros; b) projetos identitários planejados e empreendidos por grupos de
interesse; c) processos de rememoração individual (RIBEIRO; WILKE; OLIVEIRA,
2004).
O delineamento da idéia de memória de futuro acompanha a relação dinâmica
entre dois pólos antagônicos – utopia e distopia – que são muito característicos das
narrativas de ficção científica.
Dessa forma, as projeções de sociedades futuras
utópicas e distópicas seguem as conjunções de uma memória que se lança como
projeto e/ou possibilidade de futuro baseada nas expectativas do presente.
Para este trabalho trazemos as análises do texto fílmico Barbarella (1968) e a
percepção de uma sociedade sem conflitos bélicos que tem como referência os
movimentos de contracultura do período da narrativa.
Texto fílmico e memória
A memória tem sido objeto de intensa discussão, pesquisa e teorização nos
últimos anos. Isso não significa que ela não tenha tido sua importância outrora.
Considerando nossa civilização ocidental, remonta aos gregos o pensar a memória.
Desde esse período até os dias atuais, o conceito de memória foi abordado por
filósofos de diferentes escolas. Com Santo Agostinho, o conhecimento de si – a
introspecção –, com o objetivo de abrir-se a Deus e atingir a verdade, era possível
através da profunda exploração do palácio da memória "onde estão tesouros de
inumeráveis imagens trazidas por percepções de todas as espécies." (SANTO
AGOSTINHO, 1973, p. 200). Outros teóricos se ocuparam deste objeto, destacandose, em maior ou menor grau de aprofundamento na questão. Como Montaigne: “uma
excelente memória facilmente se conjuga com o mais débil dos intelectos.”
(MONTAIGNE apud FENTRESS; WICKHAM, 1994, p. 28). O esquecimento é
profundamente enaltecido por Montaigne, que vê nele um dispositivo importante para
o ato criativo.
Em fins do século XIX, na esteira dos trabalhos de Durkheim, Maurice
Halbwachs elabora seus estudos acerca da memória, estabelecendo um marco para
aqueles que, posteriormente, se aventuraram nesta seara. É sobretudo em A Memória
Coletiva que encontramos suas articulações. De início, ele estabelece a relação entre
memória individual e memória coletiva, mostrando que nossas lembranças são
coletivas; recordamos em função do(s) outro(s), mesmo quando se trata de eventos
aos quais presenciamos sozinhos e objetos que vislumbramos sem nenhuma outra
testemunha. Segundo ele, isso ocorre porque nunca estamos sozinhos, pois sempre
“carregamos conosco” uma quantidade de pessoas que não se misturam. A título de
exemplo, ele cita um passeio pela cidade de Londres. Apesar de fazê-lo sozinho, suas
lembranças ao passar por lugares conhecidos, é acionada por narrativas de fatos que
ele leu ou ouviu em outros lugares ou de outras pessoas.
[...] La première fois que j´ai été à Londres, devant St. Paul ou
Mansion House, sur le Strand, aux alentours des Court´s of Law,
bien des impressions me rappelaient les romans de Dickens lus dans
mon enfance: je m´y promenais donc avec Dickens. (HALBWACHS,
1997, p. 53)
Tal consideração traz conseqüências importantes à nossa investigação. É
possível pensar o texto fílmico como substrato a um trabalho de rememoração do
passado ou, também, como um elemento estruturador de identidade/memória?
Halbwachs estabelece que para o processo de lembrança, testemunhas materiais –
pessoas presentes ao evento que o sujeito presenciou – não são necessárias. Este
posicionamento leva à hipótese da existência de uma memória-diálogo. (NAMER,
1987). Esta noção reside: a) na origem social de nossa necessidade de lembrar –
lembrar em função de perguntas/situações que nos são colocadas (por nós mesmos
ou por terceiros); b) na relação de exterioridade entre a lembrança e o objeto lembrado
– daí o trabalho intelectual de reconstruir a memória com a linguagem. A articulação
entre memória individual e memória coletiva é racional; é uma operação de
inteligência. Através dessa faculdade localizamos uma lembrança e a ligamos a uma
imagem e/ou a um lugar ou acontecimento. Finalmente, a memória individual é social
porque: a) o seu trabalho é intelectual – para localizar nossas lembranças fazemos
uso de nossa inteligência presente, aquela que depende de nossa sociedade; b) a
rememoração parte do presente (experiência exterior – social) para o passado
(experiência interna – individual); c) as lembranças são compartilhadas – elas estão
em relação com um conjunto de lembranças comuns ao(s) grupo(s) do qual fazemos,
fizemos ou faremos parte.
Outro tópico de importância nas teorizações de Halbwachs são os quadros
sociais da memória. Após mostrar a relação entre a nossa memória individual e a
social, ele explica que a lembrança que construímos é possível graças a existência
dos quadros. Eles constituem mecanismos que ordenam, induzem e mesmo mudam
nossas lembranças.
Halbwachs apresenta três: linguagem, espaço e tempo.
A
ordenação se dá através dos quadros de espaço e tempo; nós utilizamos para lembrar
a ordem espaço-temporal de nossa sociedade. A indução ocorre quando uma cena ou
algo nos faz lembrar alguma vivência. A mudança é viável, pois quando os quadros
sociais – o ponto de vista compartilhado – mudam, as nossas lembranças também
mudam. Como exemplo, ele nos fala da leitura de um livro na infância e uma releitura
da mesma obra na fase adulta. O livro não mudou e sim o trabalho de memória sobre
o livro.
Dentro dessa concepção, a memória coletiva parece estar mais ligada à idéia
de perpetuação de representações unificadoras e identitárias que caracterizam
determinado grupo, fazendo com que a memória social esteja mais relacionada ao
trabalho manipulativo de grupos hegemônicos em projetos de alcance longo (tempo) e
abrangente (todas as camadas sociais).
A construção é uma tônica nos dois
processos, no entanto, parece estar mais clara e predominante no construto da
memória social.
Nossa opção teórico-metodológica é utilizar o termo memória de forma geral,
especificando somente os processos de sua construção e representações
emergentes. Finalmente, o texto fílmico, pensado aqui como um documento peculiar
do processo de produção cultural que se inicia no século XX, alça o status não
somente de documento informacional, somente, mas de lugar de memória.
A informação como elemento estruturante das representações construídas e
veiculadas imageticamente
Não resta dúvida que a informação tem merecido, desde meados do século
XX, uma focalização maior e diferenciada. As razões deste movimento nos
interessam, aqui, menos do que suas conseqüências. Em virtude desta atenção, a
informação começa a ser problematizada e definida em função de seu uso,
armazenamento,
potencial
comunicativo,
inscrição/preservação,
organização,
recuperação, seleção, produção etc. Cabe ressaltar, então, que há conceitos de
informação que se diferenciam conforme o enfoque adotado. No entanto, eles sempre
oscilarão em torno da idéia de algo que fornece um diferencial em relação a um
status anterior. A informação é algo que ainda não se tem, que se busca, mas para
isso é necessário, sobretudo, identificá-la como tal; ou seja, a informação só é
informação para aquele que sabe fazer uso dela.
Como nos diz Silva (1999), a informação depende do processo que a produz,
daí ser de fundamental importância atermo-nos, também, nos procedimentos que vão
de sua produção à sua materialidade pela representação.
Em nossos estudos anteriores (RIBEIRO; WILKE; OLIVEIRA, 2003), a proposta
de construção de um modelo de análise informacional tomava como base o texto
fílmico. Como texto, a materialidade informacional demandava procedimentos que
dessem conta de seu próprio funcionamento. Os conceitos de informações intrínsecas
e extrínsecas abarcaram a questão dos elementos constituintes do texto (mensagens
materializadas textualmente) e os elementos “externos” agenciados na produção de
sentidos.
Uns e outros eram acionados no momento necessário à produção de
sentidos; para se identificar no texto a informação (intrínseca) demandada, era mister
saber que era ela e não outra. A informação extrínseca age de modo a reduzir as
incertezas.
Na tentativa de ultrapassar as teorizações anteriores, procuraremos, agora,
considerando o estatuto do texto fílmico como documento/monumento, problematizá-lo
em função das informações que podem ser representadas por intermédio dos códigos
pertinentes à sua construção. A informação do texto fílmico é diferenciada em função
somente dos códigos envolvidos na produção desse tipo de texto?
O texto fílmico como artefato humano e construído a partir de um sistema
próprio de significação, deve ser entendido, também, como um documento capaz de
ser apreendido, entendido e interpretado pelo sujeito a partir das informações que o
estruturam internamente e daquelas que o reinserem no contexto de produção. Isso
porque, dada a dimensão de nossas propostas, este documento/monumento
informacional é um traço representativo do espaço-tempo que o produziu.
Memória de futuro e sci-fi
No que diz respeito à ficção científica cinematográfica, fixadas em suas
imagens encontramos o desencanto, a diagnose e a crítica do presente, lançados ao
futuro e materializados, tal como linhas de fuga, em uma Memória do Futuro, que,
como qualquer memória construída coletivamente, documenta e pode ser acionada e
evocada por aqueles que a compreendem.
Desde Thomas More, sob uma utopia se insinuam a crítica social e a aspiração
por uma transformação radical da ordem social vigente. Por isso elas decorrem do
descontentamento com uma determinada ordem, que é vista como desordem. A esta
ordem corresponde um certo tipo de poder contra o qual se insurge a utopia,
desafiando-o ao propor uma nova ordenação que organiza o convívio humano tendo
em vista um outro contexto. Esta “realidade diferente” pode ser reinventada seja à
maneira de More, pelo fim daquilo que origina o mal na terra, ou de Bacon, apostandose na salvação tecnocrática, ou à la Marx e Engels, a partir de considerações
estruturais; e mesmo dentro de cada uma destas perspectivas há inúmeras
possibilidades de realização utópica. Ela também pode ser projetada em um futuro
distante ou ainda situada no mesmo tempo, mas numa outra região, tal como a ilha
Utopia.
No futuro imaginário ou no presente diferenciado geograficamente, as criações
utópicas e distópicas se voltam para o presente daqueles que as criam, atuando como
fonte de diagnóstico e como elemento de crítica ou sintoma do desencantamento. Isto
ocorre porque cada uma delas tem por base a inserção ideológica de seu ou de seus
criadores. Por isso, mesmo que uma utopia e/ou distopia sejam apresentadas na
forma ficcional, tal como a novela filosófica de More ou um texto fílmico de ficção
científica, elas, de fato, têm algo de uma não-ficção porque, elaboradas a partir do
posicionamento ideológico de seu criador, têm o poder de diagnosticar e de criticar o
seu contexto social de origem ao apontar para uma outra “realidade” não-existente e
que, talvez, nunca venha a existir.
Um filme sci.fi funciona como uma duplicação do presente, que é projetado
num tempo futuro. Nele temos uma intensificação dos medos e das expectativas
relativas ao contexto de produção do texto fílmico, que nos levam a considerar que
também nas narrativas há modos de subjetivação e realidades possíveis que se
cristalizam ou não, apesar de projetadas e asseguradas numa memória que ecoa
construções utópicas ou distópicas. Nestas são postos para fora o que é ruim, tal
como num expurgo, e ainda o que é benfazejo e esperançoso. Um e outro caso nos
indicam a necessidade de rompermos com o cristalizado em nosso cotidiano. Em
outros termos: as ficções científicas cinematográficas ao duplicarem o presente de
seus contextos de produção, remetendo-nos para “realidades diferentes” e
expurgando o “infernal” ou sonhando com o futuro benfazejo, servem para nos
desalojar de nossas certezas ao apontarem para algo diferente.
O nosso conceito de Memória de Futuro tem como elementos constitutivos
básicos as noções de utopia e distopia. A projeção torna-se, nesse sentido, um
procedimento essencial, cuja natureza determina-se em função de um desejo de futuro
com base em expectativas e visões de mundo do presente. A insatisfação ou
desilusão com a situação determina uma projeção utópica – o que deveria ser, em
outro lugar ou tempo, em oposição ao que é no aqui e agora – ou distópica – não há
condições de realização ou instauração de uma perspectiva ou nova ordem, em
oposição ao que se é, no aqui e agora. Assim, a memória do futuro é redesenhada a
cada narrativa fílmica ficcional e, na presente análise, o ideal de Benjamin sustenta
uma perspectiva de futuro na qual a tecnologia pode ser ou é positivada,
representando um elemento, em potencial, emancipatório.
Em nossa argumentação, o texto fílmico é tomado como bem cultural e bem
econômico, que contém narrativas que condensam elementos de um imaginário
coletivo ocidental e que as põe em circulação em um contexto globalizado. De maneira
específica, no caso da sci-fi, os textos fílmicos apresentam, também, as condições de
uma memória de futuro baseada na representação de ciência, que se vincula à
projeção utópica ou distópica de nossa civilização, sendo, eles mesmos, produtos de
um desenvolvimento tecnológico com uma longa trajetória.
O cenário da contra-cultura
Na segunda metade da década de 1960, o movimento de uma nova cultura
entre os jovens ganhou força e visibilidade. Nos EUA, capitaneada pela oposição à
presença americana no Vietnã e pelas lutas pelos direitos civis, esta cultura se opunha
aos pressupostos básicos da sociedade do “americano médio”, considerada pela
juventude como intervencionista, militarista, tecnocrática, individualista, competitiva e
consumista. Conjugando a postura pacifista ao movimento hippie, esses valores foram
emblematicamente recusados quer por uma forma gregária e alternativa de vida, quer
pelos cabelos longos, pelos trajes artesanais e coloridos, pelo mergulho nas drogas
em busca de estados de consciência diferenciados, quer pelo sexo livre da
padronização social e pelo interesse pela espiritualidade oriental.
Nos EUA, o grande lema foi Peace and love, que atravessou oceanos e
aportou em outros locais, onde também encontrou o mesmo espírito de rebeldia e a
vontade de ser e fazer diferente “dos nossos pais”. Na Europa, esse espírito moveu os
corações e mentes, paradigmaticamente materializando-se no “maio de 1968” francês,
em que os estudantes foram às ruas e à luta em prol de uma outra educação. No
Brasil, a presença da contracultura mesclou, dentre outros, a luta contra a ditadura, o
cinema novo, a tropicália, as novas formas teatrais como as do Grupo Oficina (década
de 1960) e o Grupo Asdrúbal Trouxe o Trombone (1975). Em todo o ocidente, a
vontade proposta pela contracultura era a de questionar os valores tradicionais, de
protestar, de quebrar as estruturas e de ser e fazer diferente. Ser e fazer diferente
sendo pacifista, indo contra o consumismo e o individualismo e se opondo
radicalmente ao projeto capitalista e industrial da sociedade moderna.
O nosso material empírico insere-se nesse contexto e, no caso específico do
filme que vamos analisar, trata-se de uma adaptação dos quadrinhos para as telas.
Barbarella: uma sociedade sem conflitos ou uma sociedade sem experiências
criadoras?
Em 1968, o filme Barbarella foi lançado tendo como referência a personagemtítulo dos quadrinhos criados por Jean Claude Forest e publicados pela primeira vez
em 1962. Saindo das páginas da HQ, a heroína intergaláctica foi corporificada por
Jane Fonda, personificação que, na época, causou frisson devido, especialmente, à
carga de erotismo e sensualidade da atriz, que fizeram com que ela despontasse
como um sex-simbol.
Dirigido por Roger Vadim, em sua única incursão no gênero sci-fi, o filme como
a agente Barbarella salvou o universo da guerra, em um futuro muito distante. A época
da narrativa é o século 41; o lugar, o planeta Lythiun do sistema Tau Seti, e mais
especificamente, a cidade SoGo (referência explícita às cidades bíblicas Sodoma e
Gomorra). A agente Barbarella foi designada para encontrar o cientista Duran Duran,
inventor da arma mais letal do universo, o raio mortal positrônico, que poderia conduzir
o universo à guerra e à destruição. Os conflitos bélicos não mais faziam parte da
realidade desse universo e as armas eram objetos museais. Em sua luta pelo bem,
Barbarella contou com a ajuda do anjo cego Pygar e se defrontou com os Guardas
Negros, crianças sádicas, bonecos canibais, o assédio da rainha de SoGo e as
tentativas de Duran Duran de destruí-la.
O primeiro destaque, no contexto de produção, relaciona-se ao fato de o filme
poder se constituir numa declaração de amor ao sexo e ao prazer: Barbarella exala
sexualidade e sensualidade; desconhece qualquer teor de perversão e negatividade
que poderiam estar associados à vida efetivamente sexual. Nesta produção, a
sexualidade e a busca do prazer da heroína são experimentadas de uma maneira
ingênua, entendendo-se ingenuidade como ausência de culpa e do puritanismo que
encara a sexualidade com o rubor nas faces. Já na abertura do filme, à medida que os
créditos são apresentados, ocorre talvez o mais original strip-tease da história do
cinema: num cenário futurista da espaçonave da heroína, que tem uma pitada de
boate psicodélica, na gravidade zero, uma figura paira no ar; aos poucos ela vai
despindo seu traje espacial e desvelando pernas, braços, tronco; o ápice do striptease é alcançado com o close-up do capacete da personagem do qual, lentamente,
surge o rosto de Barbarella/Jane Fonda.
O estilista, Jacques Fonteray, criou os figurinos, que junto com o cenário são
uma nota à parte: são ‘”uturistas” bem ao gosto dos anos 1960 e por isto abusam do
acrílico, dos decotes e mini-saias, da pouca roupa, das peles e veludo, das bolhas e
manchas psicodélicas. A parte externa da espaçonave de Barbarella é rosa-choque e
se “parece mais um objeto de decoração, sem qualquer compromisso com a
aerodinâmica.” (PEIXOTO; OLALQUIAGA, 1995, p. 80)
O texto fílmico se encaixa perfeitamente na década de 1960, em que
assistimos:
a) à revolução sexual que enfrentou as barreiras puritanas morais que
cercavam a sexualidade;
b) à revolução feminina: Barbarella é a femme – e não a femme fatale – de
sexualidade pujante, que trabalha como agente e é designada para enfrentar os vilões,
vencê-los e salvar o universo;
c) ao movimento contrário à guerra do Vietnã: a heroína foi enviada para
enfrentar Duran Duran e destruir o raio positrônico para evitar a derrocada a que toda
guerra conduz e para manter a paz intergaláctica.
Quando observamos a história do cinema, percebemos, nitidamente, a
presença do desenvolvimento da história do feminino nas narrativas cinematográficas.
Por causa do filme em questão, nos ateremos à temática da sexualidade feminina. Na
década de 1960, ela passou a ser focalizada explicitamente e este fato é devido a toda
efervescência cultural da época, que afrouxou os cordões dos rígidos códigos
puritanos. Como afirma Kaplan,
[...] Os movimento de liberação feminina encorajaram as mulheres a
tomar posse de sua sexualidade, homo ou hetero. A exibição
ostensiva da sexualidade feminina tem sido uma ameaça para o
patriarcado e tem exigido um nível muito maior de objetividade
acerca das causas subjacentes de a mulher ter sido relegada à
ausência, ao silêncio, à marginalidade. Os mecanismos (quer dizer,
vitimização, fetichização, assassinato em nome da virtude) que nas
décadas passadas funcionavam para ocultar os medos patriarcais
não funcionam mais nessa era pós-60: a mulher sexual não pode ser
taxada de ‘má’, uma vez que adquiriu o direito de ser ‘boa’ e sexual.
A necessidade de se usar o falo como principal arma para dominar a
mulher, não importando quem ela seja ou se fez ou não algo errado,
não pode ser mais escamoteada. (KAPLAN, 1995, p. 23)
No filme acham-se representadas três tipologias de vivência do contato sexual:
1. a da Terra contemporânea da heroína: o contato sexual se dá mediante o uso
de pílulas e somente pelo toque das mãos dos parceiros, sendo que o uso do
restante do corpo estava restrito aos ‘selvagens’.
2. a do caçador que inicia Barbarella na forma “antiga e selvagem” dos
relacionamentos sexuais. O próprio personagem do caçador é representado
conforme as chaves fornecidas pelo imaginário, pois o ‘selvagem’ é o macho
peludo e viril que tem as funções de salvar a mocinha e de iniciá-la nas delícias
do sexo, conduzindo-a ao orgasmo;
3. a do contato sexual perpassado pela culpa e negatividade, que é uma das
fontes de alimentação do Mathmos1, e que pode ser usado como tortura e
punição da fêmea pelo macho amedrontado e pervertido pelo poder. Duran
Duran usa uma máquina musical para torturar e matar a heroína de
extenuação por causa do êxtase sexual. Na câmara de tortura há restos de
corpos de mulheres. Barbarella vence a máquina e a tortura porque vive o sexo
numa outra sintonia, em que não há culpa, medo, perversão ou negatividade.
Por isto ela pode se deliciar e extenuar-se com os múltiplos orgasmos, pois
vive o prazer sem o peso da cultura que o sataniza e suprime o prazer da
mulher para torná-la inofensiva ao patriarcado.
O segundo destaque reside no olhar ácido e crítico que o texto fílmico lança
sobre o mundo pré-68: um mundo hipócrita, perverso e pervertido e que precisa ser
destruído. Na narrativa, os elementos que em geral são tidos como expressões de
amorosidade, de bondade e de pureza são apresentados de modo inverso: em sua
aparência fenomênica expressam o amor, o bem e o puro, mas sua natureza íntima
mostra o que de fato consistem em ser. As crianças são psicopatas assassinas. Elas
utilizam bonecos canibais para torturarem e assassinarem suas vítimas; Barbarella é
salva pelo caçador, que aprisiona as crianças. Pequenos pássaros são soltos num
viveiro onde está Barbarella para matá-la a bicadas, transformando aquele espaço
numa cela de execução. A música e o instrumento musical são convertidos em
máquina de tortura sexual com que Duran Duran destrói mulheres. O poder em SoGo
é o que utiliza o que há de pior nas pessoas como forma de energia que mantém o
sistema ou é a ânsia de poder presente em Duran Duran, que se vê claramente como
um ditador que não mede conseqüências para obter o que deseja. É este mundo que
Barbarella desconhece e está encarregada de vencer.
O terceiro destaque relaciona-se a perspectiva de um futuro sem conflitos. O
futuro representado apresenta-se ingênuo ao extremo, não somente com relação ao
sexo livre. Os pólos bondade-perversão parecem orquestrar uma situação na qual a
1
Mathmos: uma forma de energia localizada no subterrâneo da SoGo e que é criada pela
maldade presente nos pensamentos e nas ações dos habitantes daquela cidade. A irrupção do
Mathmos destrói SoGo. Barbarella e Pygar
abolição dos conflitos – bélicos ou não – gerou uma incapacidade de lidar com
situações de adversidade.
A necessidade de negociação entre partes conflitantes, o aprendizado oriundo
de situações antagônicas, enfim, o atrito pode nos ensinar mais do que uma situação
de paz perpétua? Ou não podemos conceber um futuro onde ela exista?
A ingenuidade de Barbarella é um dos traços característicos de seu
persongem-tipo, o que significa que ela desempenha uma função. Reflexo dessa
sociedade utópica, na qual o amor e sexo livre superaram tudo, inclusive a guerra, a
protagonista sintetiza os efeitos de um longo aprendizado sem a adversidade. Tal
característica marca a sociedade, não somente Barbarella; marca um desejo que se
realizado pode trazer conseqüências não calculadas. As perguntas que ela faz acerca
de sua missão e sua postura frente aos eventos e pessoas que vai encontrando na
sua trajetória são indicadores de um espírito desarmado. No entanto, se a
desconfiança extrema pode levar à situações tensas constantes (um exemplo clássico
foi o período denominado Guerra Fria) a crença irresoluta destrói o germe da
indagação e da mente crítica. A dúvida oriunda do embate e da reflexão, que percebe
como inadequada ou incompleta determinada situação ou questão, deixa de existir em
um contexto no qual a bipolaridade, minimamente, torna-se passado.
Considerações Finais
Em geral, a ficção científica sugere a prospecção, um possível vir-a-ser, uma
visão do futuro. Aqui questionamos esta relação íntima entre o gênero sci.fi e a visão
do futuro, pois uma obra sci.fi somente pode ser pensada e criada a partir de um
contexto de produção estritamente científica e amplamente social. Assim, são
lançadas ao futuro as críticas configuradas e as expectativas do presente em relação a
si mesmo. E neste lançamento, cristalizam-se novos modos de existir, novas
memórias que podem atuar sobre aqueles que fruem as obras sci.fi.
Segundo Halbachws, os quadros de memória consistem em instrumentos de
ordenação, que agem sobre nossas lembranças, induzindo-as e modificando-as.
Barbarella – a personagem da História em Quadrinhos e do texto fílmico – é um dos
anúncios de uma memória que, projetando no futuro a imagem da mulher que pode
ser, simultaneamente, “boa” e sexual, bonita e trabalhadora, contribuiu para a
cristalização da referência à sexualidade feminina liberada das amarras do puritanismo
e da mulher que age no mundo como indivíduo não tutelado por um parceiro. Neste
sentido, ela é a expressão de um determinado quadro social da memória da condição
feminina, que cristalizou e projetou a imagem da mulher liberada sexualmente,
trabalhadora e da qual a “salvação” da Terra também depende.
Barbarella é um texto fílmico que vai ainda de encontro à satanização da
mulher representada na maioria dos filmes de sci-fi. Num momento em que o futuro
ainda é possível de ser projeto (a década de 60), a figura do feminino encarnada na
pureza é capaz de derrotar a máquina do prazer pelo prazer e ao apresentar uma
sociabilidade sem conflitos (a Terra da época de Barbarella), nos questiona sobre o
valor do conflito para a percepção da realidade e para a resolução de problemas.
Referências
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DELEUZE, Gilles. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 1988.
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FENTRESS, J.; WICKHAM, C. Memória social. Lisboa: Editorial Teorema, 1994.
HALBWACHS, Maurice. La mémoire collective. Paris: Albin Michel, 1997. Édition
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KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro:
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LINS, Consuelo da Luz. Blade Runner e Brazil, the film: um corte no cinema de
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SILVA, Armando Malheiro da et all. Arquivística – Teoria e Prática de uma Ciência da
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Download