Afinal, o que é entropia? - PUC-Rio

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A Ciência da Mecânica
15/ Ano II
Washington Braga, Professor Associado
Departamento de Engenharia Mecânica - PUC - Rio
Título: Sobre a Entropia
Olá, estamos de volta com mais uma coluna sobre Ciência. Sei que há muito não
escrevo mas o tempo disponível para tais afazeres foi reduzido bastante. Assim, resolvi
retirar um trecho do meu livro de Fenômenos de Transporte, que ainda não saiu, e
distribuí-lo com vocês. Servirá também aos meus já antigos alunos do curso de
Termodinâmica da PUC-Rio aos quais prometi o texto. Espero que vocês aproveitem.
Considerações sobre a entropia
Afinal de contas, o que é a Entropia? Estudamos esta nova propriedade por algum
tempo e agora, antes de continuarmos, convém esclarecer uma questão básica sobre o
significado dela. Vejamos o que já aprendemos, seja neste livro, seja pela nossa
experiência de vida.
Vamos considerar uma xícara de café quente esquecida sobre uma mesa qualquer.
Antes mesmo que a água do café seja posta para ferver, sabemos o que acontecerá com o
café quente. A experiência adquirida em longos períodos e sistematicamente confirmada
na prática nos garante o resultado: o café irá se resfriar devido à transferência de calor
dele para o ar ambiente. Como este está recebendo energia (pois calor é energia em
trânsito como sabemos), é certo que irá se aquecer, o que significa que a energia cinética
das moléculas do ar ambiente aumentará, ainda que de forma imperceptível já que a sua
massa é muito grande. Nesta linha de raciocínio, o café irá certamente se resfriar, pois
energia estará sendo retirada dele.
Mas por que isto é assim? Qual a razão que impede que a energia cinética das
moléculas do ar seja transferida sob a forma de calor para o café que, como resultado
disto, poderia se aquecer ainda mais. Naturalmente, a variação da temperatura do ar
ambiente continuaria sendo imperceptível pelas mesmas razões: muita massa.
Em outras palavras: por que o calor sempre é transferido do corpo em alta
temperatura para o corpo de baixa temperatura? Segundo o Prof. Von Bayer, isto
lembra uma outra questão: por que a maça sempre cai da árvore?1
1
Estas questões desafiaram Einstein e continuam sem resposta ainda hoje. Não sabemos por que é assim.
O engenheiro deve então se perguntar: “se é assim, o que eu faço com isto?”. Como muito bem colocado
por Chomsky, a humanidade enfrenta mistérios e problemas. Nossa função é transformar os mistérios em
problemas pois estes podem ser resolvidos.
Fato é que no século XIX, os filósofos naturais (que chamaríamos hoje de
cientistas) relacionaram brilhantemente a questão do calor com a baixa eficiência dos
motores ou máquinas térmicos: ainda hoje, a máxima eficiência alcançada é algo da
ordem dos 30%! O que significa que a cada 100 litros de gasolina, desperdiçamos 70!
Pior: não há aparentemente nada que possamos fazer.
Mas por que? Por que não é possível um projeto mais
eficiente de motores? Por que isto nunca poderá acontecer?
Tanto sabemos que isto é verdade, ou pelo menos, que até hoje isto tem sido
verdade, que consideramos este argumento como parte integrante da Termodinâmica, sob
a referência da 2ª. Lei ou Princípio. Por muito tempo, questões semelhantes ocupavam a
mente de inúmeros pesquisadores, como Sadi Carnot, R. Clausius, Joule, Mayer e tantos
outros. Um deles, James Maxwell, que criou a teoria do eletromagnetismo, preocupou-se
enormemente com questões semelhantes, chegando mesmo a propor um pequeno
demônio que desempenharia importantíssimo papel no desenvolvimento da ciência como
hoje a conhecemos (mas esta é uma outra questão).
Fato é que Rudolf Clausius, a quem devemos a definição primeira do conceito da
entropia, terminou seu trabalho técnico de 1865 com duas afirmações consideradas
importantíssimas até hoje:
1. A energia do Universo é constante
2. A entropia do Universo tende a um valor máximo
Por entropia, Clausius se referia meramente à razão entre o calor trocado e a
temperatura, Q / T, uma grandeza macroscópica que podia ser determinada a partir de
outras medições nos laboratórios. Mas sem muitas explicações.
Na maior parte das discussões de Termodinâmica, os efeitos das interações de
calor e de trabalho sobre os sistemas termodinâmicos são analisados observando-se
apenas suas características macroscópicas. Entretanto, conceitos macroscópicos estão já
disponíveis, como por exemplo, o da pressão, resultado das interações microscópicas das
moléculas colidindo contra as paredes do recipiente (por sinal, um modelo proposto por
Daniel Bernoulli). Temperatura, por sua vez, se definida na escala absoluta Kelvin, está
simplesmente associada à energia cinética (ou à velocidade) média das moléculas: uma
maior agitação será detectada por temperaturas mais elevadas. Quando todo o
movimento aleatório das moléculas cessar, teremos chegado ao zero absoluto, uma
situação na qual a energia cinética associada é nula. Se o conceito estatístico da
temperatura tivesse sido descoberto (ou entendido) antes das escalas de temperatura,
talvez a previsão do tempo dissesse respeito à eventuais variações da energia cinética
média das moléculas e não à uma variação de temperaturas.
Em suma, podemos associar calor (e trabalho) aos conceitos macroscópicos,
envolvendo milhões de moléculas agindo simultaneamente, enquanto temperatura é um
conceito microscópico, um propriedade associada a uma molécula média. Esta
diferenciação será de grande ajuda adiante. De um modo geral, à cada propriedade
macroscópica podemos associar uma interpretação microscópica. Uma das maiores
vantagens de olharmos as coisas “de perto”, isto é, ao nível molecular é que esta visão
nos permitiu entender o significado de pressão, temperatura e até da energia. Portanto,
esta é a pista que precisamos para podermos melhorar nosso entendimento sobre a
entropia: a visão microscópica.
A base da contribuição que devemos à Maxwell é a sua insistência em tratar a
Física somente a partir do laboratório: seus devaneios mentais só encontravam eco em
sua mente privilegiada a partir das suas experimentações. Entretanto, as limitações
inevitáveis impediram, em determinado momento, seu avanço nas questões
termodinâmicas. Ele precisava de novas ferramentas e o modelo da molécula de
Bernoulli, apesar do gigantesco sucesso em inúmeros campos, era uma abstração quase
que insuportável a ele que temia a perda do contato com a realidade. Moléculas, até
aquele ponto, eram só abstrações, até por que elas eram pequenas demais para poderem
ser vistas, numerosas demais para serem contadas e rápidas demais para serem
acompanhadas. Um caos (não por acaso, a palavra grega para gases).
Maxwell, na falta de certezas que ele pudesse confiar, resolveu considerar as
incertezas e lançou mão de conceitos estatísticos. Mesmo que ele não tenha sido bem
sucedido nesta investida, as bases do seu pensamento foram tão radicais e notáveis que
encontram-se na própria argumentação da mecânica quântica, apresentada tantos anos
depois. Na verdade, graças à sua investida na Estatística que podemos hoje recuperar
dignamente nossa confiança da propriedade entropia.
Vamos por partes. Primeiro, um pouco de estatística para refrescar nossos espíritos.
Considere que tenhamos N moedas e que consigamos jogá-las simultaneamente.
Nosso objetivo é determinar a distribuição de caras e coroas. A experiência indica que se
N = 1 e se o número de jogadas for elevado, teremos 50% de chances de termos cara e
outros 50% de termos coroas. Podemos dizer que temos dois estados termodinâmicos
possíveis: o estado determinado pelo padrão cara e o estado determinado pelo padrão
coroa. Vamos jogar agora 2 moedas: podemos ter as seguintes situações:
Situação:
Moeda 1
Moeda 2
1
Cara
Cara
2
Cara
Coroa
3
Coroa
Coroa
4
Coroa
Cara
Entretanto, como as moedas são absolutamente idênticas, as situações 2 e 4 na
prática se confundem, fazendo com que tenhamos apenas 3 estados de fato. Podemos
concluir ainda que se jogarmos as duas moedas um número muito grande de vezes, a
probabilidade da ocorrência de cada estado é facilmente calculada: 25% (1 chance em 4
possibilidades) de chances de ocorrência de duas caras ou de duas coroas e 50% (2
chances em 4 possibilidades) de chance de ocorrência de uma cara e uma coroa, sendo
assim, a situação mais provável.
No estudo da 2ª. Lei da Termodinâmica, vimos o princípio do aumento da
entropia que indicou que a entropia de um estado de equilíbrio é máxima. Embora
Clausius nunca tenha aceito o conceito de probabilidade proposto por Maxwell, veremos
aqui a beleza da contribuição de Boltzmann, que uniu os dois conceitos ao definir
entropia pela expressão:
s = k ln w 2
Nesta equação, “s” é obviamente a entropia, k é a constante de Boltzmann, cujo
valor3 não é importante aqui (trataremos assim da razão s / k ) e w indica o número de
arranjos diferentes que podem ocorrer sem que percebamos as variações. Prof.
Zemansky denominou isto de probabilidade termodinâmica de um dado estado.
O que acontece com a probabilidade de ocorrência se N, o número de moedas, for
grande? Utilizando análise combinatória, obtemos que o número de caras, NC, deverá
acontecer em um número infinito de jogadas de acordo com a seguinte lei:
N!
w=
( N − NC )!( NC )!
Se NC = 0, isto é, se tivermos apenas coroas, teremos apenas uma chance disto
acontecer.
N!
=N
( N − 1)!(1) !
chances disto acontecer
Se NC = 1, teremos:
N!
N ( N − 1)
=
( N − 2)!( 2 ) !
2
Se NC = 2, teremos:
chances
.......
N!
( N − 5)!( 5 ) !
e assim sucessivamente.
Se NC = 5, teremos:
Apenas para facilitar, veja na próxima figura, a distribuição resultantes para 150
moedas. Alguns pontos importantes:
2
Observe que de acordo com esta definição, a probabilidade de tirarmos N caras (ou coroas, que é
equivalente) corresponde à situação de entropia nula. Não se preocupe com o logaritmo, é só um belo e
muito inteligente artifício. Outras situações físicas como a escala que caracteriza os terremotos (escala
Ritcher) ou a sonora, que é medida em decibéis, utilizam a mesma medida. Esta função é especialmente
interessante quando se opera com grandes números. Como ficará claro adiante, os valores que as
probabilidades podem assumir são muito grandes, devido ao grande número de moléculas.
3
Para quem quiser: k = 1,38 × 10
−23
J/K
•
•
•
A distribuição é sempre simétrica em torno de um valor;
A forma desta distribuição é gaussiana;
Existe uma barreira natural de um lado, pois não é possível termos menos de 0
caras mas o número de caras de máxima ocorrência pode sempre ir aumentando
pois o número de moedas pode sempre aumentar.
Número de Caras
0,070
0,060
0,050
0,040
0,030
0,020
0,010
0,000
0
15
30
45
60
75
90
105
120
135
150
Como podemos notar, há nitidamente um resultado mais provável: isto é, se
jogarmos um número muito grande de moedas, o resultado mais provável é claramente
determinado. Neste caso simples, de N moedas sendo jogadas, ele é o esperado: 50%
das moedas em um determinado estado termodinâmico (caras) e os outros 50% em outro
estado termodinâmico (coroas). Mas a probabilidade de ocorrência deste estado é de
menos de 7% aproximadamente se N=150. Certamente, poderemos ter uma situação na
qual 3 moedas aparecem como caras e as outras 147 como coroas. Entretanto, a
probabilidade que isto ocorra é muito pequena4, não é mesmo?
Podemos abordar esta questão de um outro ponto de vista: de quantas maneiras o
interior de um sistema (no caso, o conjunto de moedas) pode ser arranjado sem que um
observador externo perceba qualquer alteração? O notável aqui é que a Termodinâmica
não se preocupa com o que acontece com cada indivíduo, se preocupando apenas com o
comportamento médio de uma imensidão deles. Se o observador não perceber
alterações, como na situação das moedas, o estado é exatamente o mesmo.
20
Considere um sistema contendo 10 moléculas que podem existir em uma
infinidade de estados, sujeitos às restrições do número de moléculas e da energia. O
sistema irá evoluir até o estado de mais alta probabilidade, estado este que dizemos ser de
equilíbrio. Simplificando o tamanho do problema, considere 150 moedas todas
inicialmente viradas para a face “caras”. Este é certamente um estado muito bem
ordenado, muito especial, exatamente como os lenços e meias dentro de uma gaveta.
4
Faça as contas, para se certificar!
Com o uso, isto é, interagindo com os lenços e meias, isto é, jogando as moedas
simultanemente, um estado de alta desordem surge, tanto no arranjo de moedas quanto na
gaveta de roupas.
Enquanto o sistema caminha na direção de um estado de equilíbrio, ele o faz através
de estados de desordem crescente. Há uma tendência que faz com que todos os processos
naturais caminhem neste sentido: ferro enferruja5, máquinas quebram, montanhas se
degastam e pessoas ficam cada vez mais ineficientes. Esta tendência dos sistemas
caminharem rumo a um estado de mais alta desordem é similar ao que vimos com o
aumento da entropia e da probabilidade termodinâmica: todos se referem aos mesmos
aspectos da natureza:
A situação de equilíbrio, isto é, de máxima probabilidade de ocorrência, é um estado
de máxima entropia.
5
Mas deve ser observado que há um limite em algumas ações: por exemplo, a própria ferrugem funciona
como uma barreira protetora contra a ferrugem! Da mesma forma, quanto mais elevada for a temperatura
da chama, menos completa será a combustão (por isto, trabalhamos com excesso de ar). Em resumo,
processos naturais promovem a degradação mas a natureza promove o surgimento de processos que
diminuem isto. Este é o princípio conhecido como de LeChatelier e Braun. Não é notável?
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