ANTONIO NASCIMENTO SOUZA SOBRE A INTERPRETAÇÃO ENGELSIANA DA FILOSOFIA DE MARX: UMA POLÊMICA A ORTODOXIA DO MARXISMO Dissertação de Mestrado Rio de Janeiro 1984 1 ANTONIO N. SOUZA SOBRE A INTERPRETAÇÃO ENGELSIANA DA FILOSOFIA DE MARX: UMA POLÊMICA NA ORTODOXIA DO MARXISMO Tese submetida ao Corpo Docente do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Mestre em Ciências Sociais. Aprovada por: Professor:_____________________________ (Presidente da Banca) Professor: ____________________________ Professor: ____________________________ Rio de Janeiro, RJ – BRASIL. 1984 2 FICHA CATALOGRÁFICA: SOUZA, Antonio N. Sobre a Interpretação Engelsiana da Filosofia de Marx: uma Polêmica na Ortodoxia do Marxismo. Rio de Janeiro, UFRJ, IFCS, 1984. XXVI, 145 f. Tese: Mestre em Ciências Sociais 1.Marx 2. Marxismo 3. Ciência 4. Filosofia I.Universidade Federal do Rio de Janeiro – IFCS II.Título 3 RESUMO A idéia central que anima esta dissertação é: o pensamento de Karl Marx pode ser dimensionado em três grandes regiões epistemológicas: Filosofia (weltanschauung da totalidade), História (ciência geral do movimento), e Economia (ciência social mais completa e mais complexa da moderna sociedade). Outras ideias secundárias também animam esta dissertação: (I) a natureza dialética do pensamento marxiano torna-o qualitativamente mais completo e mais complexo à medida que evolui; (II) é possível estabelecer uma periodização relativamente coerente para cada uma das dimensões e para o pensamento de Marx como um todo, baseando-se na cronologia e área temática de produção; (III) o pensamento de Marx pode ser reinterpretado à luz de novas pesquisas e novo contexto histórico, independentemente das apropriações de tal autor ou escola; (IV) pode-se estudar o pensamento de Karl Marx “dentro do marxismo” (desde Engels, Lênin, etc.) e “fora do marxismo”. 4 ABSTRACT The central idea: Karl Marx’s Work could be dimensioned to form three great epistemological categories: Philosophy (“weltanschauung” of a totality), History (movements’ General Science), and Economy (a more complex and complete social-scientific apprehension of the modern society). Other secondary ideas: (I) the dialectical nature of Marx’s Denkweise allows the later to evolve onto complexities till completeness; (II) it is possible to establish a more or less coherent periodicizing for each of the dimensions and for Marx’s thinking process as a whole; (III) Karl Marx’s Work can be reinterpreted by means of an approach based on newly-planned researches regarding changed historical relationships, apart from appropriations by authors or doctrinal schools whatsoever; (IV) Karl Marx’s writings may be studied from “inside the marxista cadre” (out from Engels, Lenine, etc.) and from “outside the Marxismus. 5 SUMÁRIO INTRODUÇÃO GERAL 1.O Objeto da Dissertação 2.A filosofia de Marx e as Ciências Sociais 3.A Metodologia de Investigação 4.A Confecção da Dissertação 1ª. PARTE: ESCRITOS FILOSÓFICOS DE MARX Cap. I: Elementos da Problemática Cap. II: Esboço Bibliográfico 2ª. PARTE: A DIMENSÃO FILOSOFIA EM MARX Cap. III: As obras de Definição 1.O Ensaio de 1834 e a Carta de 1837 2.A Tese de Doutoramento de 1841 Cap. IV: Obras de Filosofia Crítica 1. Obras de Kreuznach: a) CFDH b) Sobre a Questão Judaica 2. As obras de Paris a) A Introdução de 1844 b) Os Manuscritos de Paris c) A Sagrada Família CONCLUSÃO: 1. A Dimensão Filosofia 2. O Materialismo Dialético 3. Obras de Bruxelas: 1845-47 ABREVIATURAS PARA ALGUMAS OBRAS DE MARX REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 6 INTRODUÇÃO GERAL Toda introdução é, em geral, uma antecipação às ideias e forma do texto que obrigatoriamente se apresenta. Por isso, há quem prefira não lê-la a priori para não se sentir conduzido (a). Outros, ao contrário, consideram que uma leitura apriorística da introdução facilita a compreensão do texto que segue. Quem de uma ou outra forma procede, ao ler textos de natureza científica, deve certamente saber avaliar os significados de uma leitura a priori ou a posteriori de tais escritos. Se em geral toda introdução é uma antecipação, como dissemos, isto não põe por terra o que é fundamental: o que realmente é importante é o texto, onde as ideias, seus desdobramentos e suas demonstrações são apresentados. O que precede, porém, também é importante, pois contribui para clareá-lo, unificá-lo e é parte geral da forma. Assim, quem lê antes ou depois uma introdução, de acordo com uma metodologia de leitura previamente definida, acabaria percebendo (ou não) o que há de fundamental no trabalho como um todo; considerando, é claro, seu nível de coerência ou de pertinência. Em particular, contudo, uma introdução é o espaço que o autor tem para incluir o que faltou no texto: seja relações implícitas, que uma leitura objetiva deixa escapar, seja relações explícitas, especialmente a inserção do texto, o seu sentido, num contexto epistemológico, como também o processo de sua composição. Consideramos aqui importantes os aspectos geral e particular da introdução. A antecipação e a inclusão tendem a caminhar, respectivamente, no sentido da exposição do texto (1); da sua relação com nossa área de concentração (2); do método de investigação (3); e das circunstâncias externas que permitiram a confecção dessa dissertação (4). 1. O OBJETO DA DISSERTAÇÃO No Fausto, Goethe compõe contradições sobre o princípio de tudo: o Verbo, o Sentido, a Energia, o Caos ou a Ação? Com personagens da estatura de um doktor Fausto, de um Mefistófeles e de uma Gretchen, o poeta alemão deixa ao leitor a rara oportunidade de ordenar sua causae primae. Nosso “objeto” ganha forma a partir da dúvida goetheana: no princípio, verbalizamos nossas ideias; chegamos ao caos, pois faltava-nos condições de ordená-las; finalmente, saímos das contradições com a ação: deixamos de lado as muitas cogitações e compomos o trabalho que passamos a expor. 7 O objeto desta dissertação é a filosofia de Karl Marx. Há uma dimensão filosofia na obra do autor d’ O Capital? Como desenhá-la, compará-la com interpretações consagradas e, portanto, significá-la? Estas as questões gerais de que trata esta dissertação. Partimos de uma perspectiva generalizada: o pensamento de Marx, objetivado numa vasta obra, pode ser apreendido ao nível de uma interpretação dimensional: considerando-se a cronologia da produção de seus inscritos concomitantemente com as temáticas desenvolvidas, desde os trabalhos escolares às obras últimas de Economia Política, é possível localizar o pensamento de Marx em dimensões de conhecimento. Pode-se mesmo estabelecer uma periodização geral, de acordo com os critérios acima, relativamente coerentes, já que toda periodização é circunstancial e dependente de critérios e objetivos, capaz de melhor significá-las. Assim, poderíamos apreender o pensamento de Marx numa dimensão filosofia, numa dimensão história e numa dimensão economia. Tais dimensões dependem rigorosamente da cronologia de produção e das temáticas desenvolvidas. Por exemplo: O Ensaio de 1834 e A Miséria da Filosofia, de 1847, são os extremos da dimensão filosofia em Marx; as obras que se iniciam com o Manifesto Comunista , desde 1848, deixam claro o assentamento do pensamento marxiano ao nível de uma perspectiva da história; e as obras econômicas, estas, iniciam-se, propriamente, a partir de 1857, na célebre Introdução, com a crítica ao método “científico” da Economia Política. Ao longo do texto tentamos deixar mais ou menos claro o que significa para nós uma “interpretação dimensional do pensamento de Karl Marx”. Por aqui, é mister expor, ainda que sinteticamente, dificuldades e o objetivo de tal apreensão. Há, de um lado, uma dificuldade de natureza metodológica, a principal: como dimensionar um pensamento unanimemente considerado dialético? Esta questão, também pertinente à alínea 3 dessa introdução, é básica. Respondê-la é conditio sine gua non à coerência de nossas ideias. Vejamos. O pensamento de Marx comporta ideias de natureza bastante variada, frutos de um trabalho intelectual, de uma prática em quase 50 anos. Provao as antologias de excertos em Arte, Literatura, Estratégia e Tática, Política, Feminismo, etc., etc. Isto para falar nos aspectos particulares de sua produção – Recentemente, comemorando o centenário da morte de Marx, a Editora Graal publicou uma coletânea de ensaios de intelectuais brasileiros, ao todo são 19 ensaios, que vão desde um “Marx e o Meio Ambiente” até um “Marx e a Democracia”. Na verdade, os grandes pensadores são grandes porque são precisamente ricos em ideias. Alguns, como Aristóteles e Hegel, por exemplo, tenderam a sistematizar – “criar um sistema” – suas 8 ideias em torno de amplos temas: Política, Estética, Fenomenologia, Lógica, etc. Outros, como Marx, não tiveram tal preocupação. Nesses, interpretar o pensamento torna-se mais difícil, pois apesar da coerência e qualidade superior dos escritos ao longo de uma trajetória, não sistematizaram suas obras. Em Marx, por exemplo, a obra inscreve-se em circunstâncias históricas determinadas, específicas e contemporâneas: às vezes, por força de uma prática política, por necessidade material, por um impulso de natureza emotiva e por força de um “gênio” intelectual. Em vida, Marx pouco se deu ao trabalho de explicar ou sistematizar o corpo de sua obra. São exceções algumas cartas e trechos de trabalho onde ele indica tal ou qual sentido de suas ideias; em geral, como na famosa carta a Kugelman em que ele orienta a mulher deste a ler O Capital, trata-se de questões “didáticas”. Coube a Friedrich Engels, que praticamente acompanhou Marx em toda sua produção intelectual de peso, desde 1843 até sua morte, compor o que para ele já era uma “doutrina”. Engels, como grande revolucionário, interpretou a obra de Marx, inclusive sua parte nesta, destacando o traço revolucionário do seu perfil. Para Engels, como ele diz no Ludwig Feuerbach, obra publicada 5 anos após a morte de Marx, as concepções do “materialismo dialético e histórico” levam o nome de marxismo pois coube a Marx a maior e a melhor parte na elaboração. Enfim, de Engels a nossos dias, poder-se-ia dividir a história das interpretações do pensamento de Marx entre os que o veem “dentro do Marxismo” e os que o veem “fora do Marxismo”, já que a definição consagrada deste cabe a Engels. A versão engelsiana é portanto o principal marco teórico de comparação. Além dos aspectos particulares que as ideias de Marx comportam, há, entretanto, elementos de natureza geral, possíveis de serem reunidos numa sistematização. Assim, abstraindo a consagrada interpretação engelsiana do marxismo - desde 1917 “oficializada” com a vitoriosa revolução soviética , consideramos que uma interpretação que acompanhe a trajetória biobibliográfica de Marx, em períodos determinados cronológica e tematicamente, poderia muito contribuir para sistematizar o legado de Marx. Desde já deixamos claro que nossa pretensão não passa de um esforço acadêmico, talvez de caráter didático. Nosso intento pode ser assim resumido: Marx move-se, primeiramente, no contexto da “realidade filosófica alemã”, caminhando de acordo com uma formação escolar e “nacional”, de crítica à filosofia clássica alemã: no princípio, com outros, movendo-se criticamente sobre o legado de Hegel; ao final, descaracterizando a especulação, a pura especulação filosófica do sistema de Hegel na voz dos seus discípulos e daquele que teria ido além de Hegel, Feuerbach. Esta trajetória inicial tem por temática geral a filosofia, mais precisamente a crítica da filosofia alemã. Movendo-se no sentido de uma 9 superação dialética, incorporando concepções e vivendo-as na vida real, Marx introduz à crítica da filosofia uma perspectiva histórica, realçando a “história dos homens reais” e o papel revolucionário de uma “classe especial”, o proletariado. Esta perspectiva histórica desenvolver-se-á plenamente a partir de 1848, marcando uma ruptura interna com as questões filosóficas que desenvolvera até então; isto é, a ruptura marca apenas o deslocamento de temática ao nível da cronologia bibliográfica, já que não há contradição, ou melhor, antagonismo entre o que Marx produziu em cada dimensão, e sim um aprofundamento e desdobramentos de ideias ao visar o que em dialética se chama síntese. É a teorização da luta de classes a sua resultante, uma sociedade sem classes, que caracteriza a dimensão história no pensamento de Marx, até suas obras clássicas de “comprovação da teoria” com a realidade do movimento revolucionário europeu da época, sobretudo baseando-se nos exemplos dos communards franceses. A ideia de revolução social o absorve nesse período. Como não se pode transformar aquilo que não se conhece - no máximo destrói-se pura e simplesmente; daí a crítica às concepções anarquistas, que desenvolve paralelamente com Engels – e como só se “conhece” através da Ciência, Marx caminha no sentido da construção da teoria econômica da moderna sociedade, no sentido da Crítica à Economia Política, subtítulo d’O Capital, pois, como disse ele, é a Economia Política a Ciência que permite a compreensão da moderna sociedade burguesa. Em termos de cronologia, as obras econômicas de Marx, iniciam-se a partir de 1857, com a produção de um esboço geral – tentamos demonstrar aqui, na dissertação, a propósito, que a obra de 1844, intitulada Manuscritos Econômico-Filosóficos, é precisamente uma crítica filosófica à economia, de um ponto de vista feuerbachiano, não publicada por Marx, e que, na verdade, foi escrita sobre o impacto da leitura do “genial esboço” de Engels, como ele reconhece no Prefácio de 1859. Parece-nos que a questão do dimensionamento do pensamento de Marx, por causa de sua dialeticidade (“La ventana de mi dialética es que digo las cosas poco a poco y, como creen que no puedo más, se apressuran a refutarme; no hacen más que dejar ver su tonteria!” – Marx a Engels em 26.6.1867), deve necessariamente ter sempre presente a relação geral/particular e vice-versa. No texto, voltaremos sempre a esta questão ao relacionarmos os traços característicos da filosofia de Marx com os escritos históricos e econômicos, na sua constituição e em parte do seu desdobramento futuro. Mesmo limitando o objeto desta dissertação à dimensão filosofia, temos sempre presente uma visão geral do pensamento de Marx. Aliás, sem tal perspectiva não poderíamos realizar esta dissertação. Cairíamos num esquematismo arbitrário. Aqui, ao contrário, não desenvolvemos a parte – a dimensão filosofia – senão somente de acordo com o todo – o pensamento de Marx. É uma questão de 10 metodologia, que desenvolveremos melhor na alínea 3 desta introdução. Geral e particular, parte e todo, elemento e conjunto são, por assim dizer, momentos do desenvolvimento da análise científica. Uma outra dificuldade seria a pertinência da perspectiva biobibliográfica, a cronologia e a análise dos textos, da apreensão dimensional. O que objetivamos foi na 1ª parte da dissertação, assentar a base do pensamento de Marx em filosofia, ao nível da localização da trajetória da vida e obra do período, por um lado. Por outro, na 2ª. parte, desenvolvemos o grosso das nossas ideias, propriamente a dimensão filosofia em Marx, de acordo com a natureza bibliográfica de nossa pesquisa; ou seja, analisando textos e comparando interpretações. Desde o início ficou claro que nossa apreensão, por situar-se na epistemologia do marxismo, necessariamente se contrapunha as interpretações consagradas e “oficializadas” sobre o pensamento filosófico de Marx. Vimos também que tais interpretações tinham uma característica geral: se situavam “dentro do marxismo”, desde a definição engelsiana da filosofia de Marx. Tratava-se, portanto, de acordo com os objetivos e limites desta dissertação, de deslocar a interpretação da filosofia de Marx para “fora do marxismo”, numa comparação crítica final do nosso trabalho com a interpretação engelsiana. É desnecessário dizer que, se chegamos a uma conclusão diferente da de Engels, em função de uma perspectiva metodológica diferente, não desmerecemos, nem o poderíamos fazer, o marxismo, do qual Engels sem dúvida merece o título de co-realizador. Nosso objetivo, como dissemos, é meramente acadêmico, no sentido de tentar contribuir para as discussões em torno do pensamento de Marx, cientificamente, sem de forma nenhuma ter pretensão de querer “negar” o marxismo. Ao equacionarmos nossa problemática ao nível da contradição “dentro” e “fora do marxismo”, percebemos que a interpretação engelsiana é, de fato, o principal marco teórico que tem alimentado o pensamento marxista naquele particular. Nesse sentido, tentamos também localizar outras obras, famosas e já clássicas na história do marxismo, que beberam da fonte Friedrich Engels. Por uma questão de exposição, toda essa localização é feita sintética e generalizadamente. A exceção é Althusser, que mereceu um “tratamento especial” pois, ao sistematizar a produção teórica de Marx com as categorias, emprestadas, de “corte epistemológico” e “problemática”, a nosso ver, caiu na própria armadilha que Engels pensara não ter criado: separou Althusser as ideias de Marx de “antes” e “depois” do marxismo; ou melhor, as ideias que podem ser consideradas “marxistas” das que “não são marxistas”. Este, a nosso ver, o erro central da sistematização de Louis Althusser. 11 A crítica a Althusser, pela importância e contribuição de sua obra, pareceu-nos procedente, pois sua sistematização “dos Marxs” enquadra-se na interpretação geral de lavra engelsiana. Contrapomos portanto a sistematização althusseriana com os resultados que aqui chegamos por outros meios. Isto é, localizamos nossa problemática “fora do marxismo”, descaracterizando dentro do pensamento de Marx a noção althusseriana de corte epistemológico. Nosso objetivo, repetimos, é de “contribuir” para as discussões em torno do pensamento de Marx. Se há alguma pretensão nesta dissertação, é ela o desejo de sofrer as críticas de quantos a lerem, como um trabalho de cunho acadêmico, talvez didático, que “serviria”, porquanto roteiriza e sistematiza ideias de Marx num período determinado, e que, sobretudo, objetiva o prérequisito para a obtenção do grau de mestre em Ciências Sociais. As ideias e o método de exposição são de minha inteira responsabilidade. 2.A FILOSOFIA DE MARX E AS CIÊNCIAS SOCIAIS A relação do objeto desta dissertação com a área de concentração em Ciências Sociais é o objetivo dessa alínea. Justifica-se ela apenas ao nível de uma introdução. Aqui, seremos breve. Tentaremos responder a duas questões: (I) qual a relação da filosofia de Marx com as Ciências Sociais?; (II) onde localizar em Marx os textos que, tradicionalmente, interessam às Ciências Sociais? Recentemente, * em 5.1.84, um editorialista do Jornal do Brasil, que pretender ser um porta-voz do pensamento burguês-liberal no país, justificava o uso de métodos mais “duros” no combate à violência urbana. Criticava ele a interpretação sociológica, “responsável pela explicação rotineira de que a violência urbana é invariavelmente (grifo nosso) frutos dos descompassos sociais e econômicos, principalmente a fome, a miséria, a desocupação”. Mais à frente, criando contradição arbitrária entre o geral e o particular, entre a violência gerada pelas injustas relações de propriedades e bem-estar com a violência de um isolado crime passional, o editorialista pergunta: “como premiar os pulsos que esganaram a jovem e bela psicóloga com a hipócrita piedade da explicação sociológica?” (grifo nosso). _________ * O que segue é uma interpretação do discurso da grande imprensa, sobre uma questão que nos permitiu relacionar a “interpretação sociológica” com o “marxismo” e com o pensamento de Marx em filosofia. Não nos preocupamos com a chamada “competência da discussão”, ou com o “discurso competente” (M. Chauí), ou ainda com o “discurso inter-pares”. O nosso objetivo é contemporaneizar a relação Filosofia de Marx e Ciências Sociais, tomando como exemplo um editorial que lemos no processo de redação deste texto. 12 Esta opinião do secretário da redação do JB, que assina o artigo, é bem característica da relação que pretendemos desenvolver aqui. É evidente que o articulista, sob o disfarce da indignação popular que o crime causou, brada por métodos mais “duros” não em defesa do “cidadão” em si, mas sim em defesa da propriedade privada em geral, já que o motivo inicial do crime foi de “atentar contra a propriedade”. Contra a justa explicação sociológica, ao equacionar a problemática social e não ações individuais isoladas, o articulista chama de hipócrita exatamente o que seria a mais sofisticada “Ciência Social” da sociedade burguesa que ele tão levianamente defende, a Sociologia. Sabe-se que no ocidente, mais precisamente nos países capitalistas, entende-se por “Ciências Sociais” um conjunto de saberes ou “disciplinas”, com objetos delimitados, fazendo ou não uso de certa “interdisciplinaridade”, de acordo com tal ou qual perspectiva metodológica, que estudam a multifacetada realidade social. Definir “Ciências Sociais” e/ou “Ciências Humanas” é uma velha e exaustiva questão que não cabe aqui*. Sabe-se, porém, que a Sociologia, antes de todas as outras, deveria ocupar um lugar de destaque entre as Ciências Sociais, ainda que vozes mais ou menos isoladas defendam tal lugar para a Antropologia, para a História, para a Psicologia, para a Linguística, etc.etc., com todos, com maior ou menor razão “puxando brasas para a sua sardinha”. Nisso tudo pelo menos uma certeza: as Ciências Sociais as constituem, no ocidente, paralelamente e em oposição às interpretações das teorias sociais revolucionárias do século XIX, sobretudo em oposição ao “marxismo”, que partindo do geral para o particular “descobriria” a explicação da problemática social ao nível da contradição no modo de produção: seja contradição entre posse e não posse dos meios de produção, seja contradição entre capital e trabalho, seja contradição entre meios de produção e relação social de produção, ou seja, a resultante dessas contradições: a luta de classes entre burgueses e proletários na moderna sociedade. As Ciências Sociais, então, reduziriam seus objetos a níveis de relações particulares, “empíricas”, evitando o “marxismo” e fugindo de “teorias do conflito social” e de sua “necessidade” de resolvê-los revolucionariamente. ___________ * Em relação a Marx, caberia aqui uma discussão sobre ciência que envolvesse Durkheim e Weber. Por exemplo: (I) Qual o sentido, em Durkheim e Marx, da categoria “natureza humana”?; (II) Como Weber e Marx veem o capitalismo? Não a encetamos aqui porque isto talvez implicasse em exaustivas argumentações, o que tornaria ainda mais “árida” esta dissertação. Na bibliografia, porém, há obras pertinentes dos “três clássicos das Ciências Sociais” a tal discussão. 13 Esta digressão absolutamente não esgota, nem aprofunda, os variados aspectos (políticos, ideológicos, filosóficos, científicos) da relação Ciências Sociais/”marxismo”. Serve-nos apenas para mostrar a importância que há nela; a importância que há, em particular, na relação entre a filosofia de Marx – e não, nesse caso, o marxismo – e as Ciências Sociais. O próprio editorial que comentamos acima serve de exemplo: tirando o “invariavelmente”, um termo muito “inteligente” que o articulista introduz para descaracterizar a interpretação sociológica, é correto dizer, com a análise sociológica, que em geral a nossa violência urbana “é fruto dos descompassos sociais e econômicos, principalmente a fome, a miséria, a desocupação”. Ou, de outra forma, traduzindo: a violência urbana é em geral fruto das contradições que o regime de propriedade privada dos meios de produção, de exploração e de distribuição das riquezas gera nas sociedades capitalistas dependentes como o Brasil. Grosso modo, há relação direta entre aquela explicação sociológica e a explicação que Marx desenvolveu nas suas obras, inclusive nas de filosofia. O que o intelectual que trabalha no órgão da imprensa liberal faz, na verdade, não é criticar a “hipócrita piedade da explicação sociológica”, mas a análise da violência urbana ao nível da “teoria dos conflitos”, sabidamente de origem marxiana. Bem, há uma oposição entre os métodos do “marxismo” e das “Ciências Sociais”. Mas há, por outro lado, uma aproximação de alguns resultados teóricos de Marx com a análise das Ciências Sociais. A Sociologia, em particular, incorpora a análise de Marx da realidade social, ainda que não “exija” a transformação radical desta. Se considerarmos correto o que disse sobre a explicação sociológica o editorialista do JB, a nosso ver é justo afirmar que não há naquela explicitação nenhum antagonismo com o que disse Marx em suas obras. A diferença nos parece, é que ao invés de tentar “distanciar-se” das contradições num campo neutro, de pura análise, a perspectiva de Marx era levar a termo tais contradições, revolucionariamente. São inúmeros os exemplos dos usos de ideias de Marx pelas Ciências Sociais. Isto, aliás, é uma praxis que só tende a enriquecer tanto um quanto as outras. Citamos um exemplo, acima. Vimos um aspecto “político” da oposição “marxismo versus Ciências Sociais”. Aproximamos a relação da explicação sociológica com os trabalhos de Marx, sem definir contudo o lugar daquela na filosofia marxiana senão sob o ponto de vista da transformação. O exemplo que utilizamos é, entretanto, bastante esclarecedor: a explicação sociológica, como foi posta acima, ao equacionar o problema da violência urbana, corre o risco de ter o mesmo efeito da análise marxista, ou seja, deixar claro que não é com mais policiais na rua, com a pena de morte, nem com leis de exceções que se combate contradições de base econômica; mas, ao contrário, com a 14 solução destas contradições, seja pela “via democrática”, seja pela “via revolucionária”, como pretende o marxismo militante. É este o sentido que se pode sacar da crítica hipócrita de José Nêumanne Pinto, o secretário da redação do Jornal do Brasil. Como sociólogo, dixi et salvari animan mean. A segunda questão responderemos mais brevemente ainda. Pela importância contemporânea das ideias e pela riqueza metodológica de análise, toda a obra de Marx interessa às Ciências Sociais. Quem não terá discutido, ao longo de sua vida acadêmica, extratos, livros ou obras de Marx e do pensamento marxista? Parece óbvio que, mesmo não concordando com determinadas teorias de Marx, as Ciências Sociais absolutamente não as “ignoram”. Há variações de faculdade para faculdade; de interesse maior ou menor, de acordo com o pesquisador e sua pesquisa. No nosso caso, o estudo, discussões e trabalhos sobre o pensamento de Marx e o marxismo foi sempre uma constante em todo o tempo em que estivemos na universidade. Nossa dissertação, portanto, está profundamente relacionada com nossa formação em Ciências Sociais, tanto na graduação como na pós. No texto, ao dimensionarmos a filosofia marxiana, encontra-se análises de obras familiares a estudantes de Ciências Sociais. A Ideologia Alemã, quem não estudou pelo menos a 1ª parte, a mais importante, o Feuerbach? E os Manuscritos de Paris, que revolucionaram as Ciências Sociais quando publicados? Quem não leu Fromm, Sartre e até mesmo Althusser, e não se sentiu “tocado” pela “descoberta de um humanismo na filosofia de Marx”? A nosso ver, estas e outras obras do período filosófico de Marx, arroladas e discutidas nesta dissertação, são importantes para as Ciências Sociais. Há nelas questões sobre política, religião, arte, humanidade, classes sociais, história, economia, etc., etc., de grande interesse. A localização que fizemos, também, poderia permitir que um leitor menos familiarizado com a trajetória da produção intelectual de Marx tivesse uma visão geral da filosofia marxiana. Daí o caráter didático desta dissertação. Acreditamos que o pouco que foi dito nessa alínea sobre a relação entre o objeto desta dissertação com nossa área de concentração, de forma muito generalizada, ficará mais claro à frente, na leitura do texto. 2. METODOLOGIA DE INVESTIGAÇÃO* Vimos adiando desde a alínea 1 o aprofundamento de uma única questão, básica à metodologia de investigação desta dissertação: como dimensionar um pensamento considerado dialético? Propomos-nos aqui a, pelo menos, tentar equacioná-la, já que é no texto que segue essa 15 introdução geral que poder-se-á perceber a pertinência (ou não) de uma interpretação dimensional do pensamento de Karl Marx, tomando por base a dimensão filosofia. Marx, como é sabido, ficou-nos devendo um tratado sobre a dialética, que prometera. São poucos, e em geral insuficientes, os momentos em que ele interrompe seu trabalho para explicar o seu método. A Introdução de 1857, por exemplo, onde, com esforço e leituras prévias, pode-se entender razoavelmente a dialética marxiana com relação à ciência econômica, ficou na gaveta, sem desenvolvimento posterior. No Prefácio da obra Contribuição à Crítica da Economia Política, de 1859, ele justifica a exclusão da Introdução em função de uma “metodologia de exposição”, pois seria uma “antecipação”, que poderia confundir o leitor com resultados ainda por provar, desafiando a segui-lo, a “ascender do particular para o geral”. Quer dizer: ao nível da metodologia de exposição, ascende do particular para o geral; diz as coisas “pouco a pouco”, como ele diz em carta a Engels, citada acima, na página IV. Marx, como também é sabido, distingue o método de exposição do método de investigação. Esta distinção é uma característica de sua dialética. No posfácio à segunda edição d’O Capital ele diz: “Claro está que el método de exposición debe distinguirse formalmente del método de investigación. La investigación ha de tender a assimilarse en detalle la matéria investigada, a analizar sus diversas formas de desarrollo y a descubrir sus nexos internos. Sólo después de coronada esta labor, puede el investigador proceder a exponer adecuadamente el movimiento real. Y se sabe hacerlo y consigue reflejar idealmente em la exposición la vida de la matéria, cabe siempre la posibilidad de que se tenga la impresión de estar ante uma construcción a priori.” No parágrafo seguinte ele distingue seu método dialético do de Hegel, especialmente no nível da weltanschauung. Em síntese, o método da exposição seria a forma adequada de apresentar o “objeto de estudo”. O método de investigação, a forma de “assimilar a matéria em detalhes, analisar as diversas formas de desenvolvimento e a descobrir seus nexos internos”. Esta precede àquela e ambas são dependentes do “objeto de estudo” ou “matéria investigada”. Por exemplo, n’O Capital, Marx analisa a “sociedade burguesa” e conclui por uma exposição que inicia pela forma mais geral e mais simples dessa sociedade: a mercadoria; a produção de mercadoria, a característica mais geral e mais simples de se entender na e a sociedade burguesa. Tocamos aí num dos aspectos fundamentais da dialética marxiana: a relação entre o geral e o particular e entre o simples e o complexo. O geral é __________ * Não compomos aqui um minucioso roteiro “técnico-metodológico” da dissertação. Esta questão, sem embargo, pode ser apreendida em diversas passagens (por ex.: pp. V e VI da Introdução Geral; alínea 1 da Conclusão; etc.) do nosso discurso. Nesta alínea, ao contrário, equacionamos a metodologia de investigação ao nível da problemática que é a dialética marxiana. Isto se explica, a nosso ver, por ser o pensamento de Marx (include vida e obra) um pensamento dialético. 16 sempre o pressuposto: parte-se sempre dele como pressuposição, como abstração. Nele encontram-se os particulares ou até mesmo um particular que, dialeticamente torna-se geral, que constituem uma relação concreta, real. No mesmo exemplo que demos acima, vemos que a produção de mercadoria é uma característica geral do “modo de produção capitalista”, portanto um ponto de partida para a análise, um pressuposto ou uma abstração. Ao analisá-la, chega-se a relações concretas, aos particulares desse modo de produção, constituindo-se uma teoria, a teoria do valor. Da mesma forma, dialeticamente, parte-se do mais simples ao mais complexo: da relação mais simples dos valores de uso e troca à questão da mais-valia. Talvez o traço mais característico da dialética marxiana, sua síntese, esteja no engajamento direto da teoria com a prática: Marx tende sempre a evidenciar o movimento ao nível das contradições da sociedade; denunciaas, como no “fetichismo da mercadoria”, e praticamente antecipa sua solução ao nível da História – a superação da sociedade burguesa pelo socialismo proletário. Este talvez o traço mais difícil, porquanto revolucionário, da dialética marxiana. É mister contudo dizer que: o método dialético de Marx em O Capital e/ou desde a Introdução de 1857 pretende ser rigorosamente científico, uma preocupação que ele não teve, pelo menos explicitamente, com suas obras anteriores. Permitimo-nos esse comentário sucinto da dialética marxiana por dois motivos: (I) como dissemos, Marx não escreveu o tratado sobre dialética que prometera; (II) a dialética marxiana, tal como podemos apreendê-la nas suas obras, é importante ao equacionamento da questão que formulamos. Continuamos, portanto. A nosso ver, não se pode confundir o método dialético de Marx em períodos distintos da sua obra. Ou seja: não há um método dialético em geral para toda a obra de Marx. O que comentamos acima é sobretudo pertinente à obra econômica de Marx, onde ele desenvolve explicitamente uma perspectiva científica, criticando a Economia Política, seu métodos e suas conclusões. Já nas suas obras com temáticas históricas, do que chamamos aqui de “dimensão história” do pensamento de Marx, a análise processa-se sobre uma teoria geral: a teoria da luta de classes. É certo que Marx não abandona essa teoria nas suas obras de economia; é certo também que a teoria marxiana não se reduz a uma teoria geral da luta de classes: como grande pensador, rico em ideias, Marx não compôs uma, mas diversas teorias ou teorizações. A questão, em relação às dimensões história e economia, é que há interpenetração conceitual nos aportes teóricos das conclusões de Marx. Pela coerência do desenvolvimento do seu pensamento, as obras econômicas são efetivamente as mais complexas, na medida em que as ideias anteriormente desenvolvidas são aprofundadas 17 em novas “matérias”. É mais ou menos como dissemos no resumo das páginas III e IV: Marx move-se da filosofia à história e dessa à economia, sem contradições de base e, absolutamente, sem antagonismos. Esta é uma ideia geral que alimenta esta dissertação, que, a nosso ver, permite o dimensionamento do pensamento de Karl Marx. Nas obras iniciais de Marx, nas que aqui reunimos com a definição geral de “obras filosóficas”, a questão metodológica não está de forma alguma plenamente desenvolvida. Marx, como tentamos demonstrar no texto, move-se dentro de um contexto histórico em que a formação escolar, a realidade filosófica alemã e o jornalismo crítico praticamente determinam os rumos do seu pensamento. Destaca-se, porém, o traço do homem sobre sua história: há nas obras de Marx do período certa criatividade, uma ousadia criativa, que se aprofunda exatamente pela crítica, às vezes irônica, outras mordaz, e ainda contundente. É por isso que reputamos como fundamental a esta dissertação o esboço biobibliográfico feito na 1ª parte. O período filosófico é de solidificação das ideias, sobretudo nos seus anos iniciais. Trata-se, para Marx, de aprender e de se definir. É curioso, nesse período, o interregno literatura na sua obra. Há também uma intermediação antes de sua superação da filosofia clássica alemã: é quando Marx “flerta” como Hegel e os seus discípulos, criticamente, até Feuerbach, “a malha intermediária que separa o pensamento de Hegel do de Marx”, como disse Engels. Por fim, no que chamamos aqui de “Obras de Bruxelas”, já sob o impacto do engajamento político que Engels lhe apontara, bem como a colaboração intelectual do mesmo, Marx finalmente “conclui” sua obra de filosofia crítica sobre a escola hegeliana e sobre Proudhon, ridicularizando neste tanto sua “economia política” como sua má apreensão do método dialético. A Miséria da Filosofia, aliás, é uma outra importante obra para se entender a dialética marxiana, ainda que indiretamente. Mais importante do que um método dialético geral, as obras de filosofia de Marx apontam uma série de questões, ao nível da história e da economia, que estão rigorosamente de acordo com o que ele desenvolveria mais tarde. É mesmo a introdução da História – no sentido do movimento social – e da economia – no sentido da ciência social mais importante à compreensão da sociedade burguesa – que permite, a nosso ver, a superação de Marx sobre a especulação filosófica alemã. É este um aspecto dialético do seu pensamento: o particular, a dimensão filosofia, contém elementos do geral, do seu pensamento como um todo. Nossa investigação do pensamento filosófico de Marx, portanto, tem como pressuposição uma visão geral da sua obra. Percebemos então que as ideias filosóficas de Marx, dimensionadas cronológica e tematicamente, são partes do seu pensamento como um todo, encontram-se em outros 18 lugares de sua obra. Trata-se de uma filosofia crítica, bem entendida. Isto é, de um weltanschauung que privilegia a prática sobre a especulação; de uma visão de mundo que busca assentar-se no movimento da história e na Ciência; de uma clara tomada de posição em favor da transformação social tendo por meio a ação revolucionária de uma “classe especial”, como ele diz em 1843, o proletariado, na sociedade burguesa moderna. É por isso que às vezes faz-se relação entre o que Marx formulou nos anos iniciais de sua formação com fórmulas de um período maduro, sem perda de coerência, pelo menos no conteúdo. Por exemplo: a filosofia de Marx pode ser estendida a outras obras que não as do período 1834-1847. Há aí, porém, um risco de se confundir o particular com o geral e vice-versa, sobretudo ao nível da forma, caso não se esteja seguro da trajetória de Marx e dos significados contextuais de sua bibliografia – um objetivo desta dissertação é precisamente construir passo a passo a trajetória de Marx, em filosofia, para evitar o confusionismo de relações arbitrárias de textos compostos em distintas fases do pensamento marxiano. Um exemplo pode tornar mais clara esta ideia. Na mesma coletânea da Graal já citada, o filósofo brasileiro J. A. Gianotti compôs um ensaio intitulado “Marx e a Filosofia”. Busca ele a relação de Marx com a filosofia na sua obra máxima, O Capital. Redu-la, entretanto, à relação com a teoria econômica, à análise de fenômenos sociais, que o autor d’O Capital desenvolveu sob o ponto de vista rigorosamente objetivo da Ciência, ainda que logicamente o que se conclui lá tenha um caráter às vezes ético, engager, de posição, de partido, como preferia Lênin, pois Marx negava que a própria Ciência era absolutamente neutra. Tudo bem. O ensaio de Gianotti é bom, erudito, etc. De fato há n’O Capital uma “filosofia”, ainda que para nós esta não possa ser reduzida, por uma questão da dialética marxiana, à teoria econômica. A questão é que Gianotti tende a estabelecer a relação de Marx com a filosofia não ao nível da weltanschauung marxiana, como nos parece mais correto, mas ao nível de uma análise de discurso teórico, próximo ao que modernamente se conhece por “filosofia da linguagem”. Por isso, ao concluir basicamente suas ideias na p. 163, ele apenas critica o traço dinâmico da teoria de Marx, ossificada pela ação paralisante da ortodoxia do marxismo: “Escrever sobre as relações de Marx com a Filosofia implica tãosó perquirir suas descobertas com o intuito de desarticular a trama de suas perguntas e preparar o terreno para perguntas futuras. Não há maior perigo do que transformar a teoria numa pedagogia da luta de classes.” Com este exemplo terminamos os comentários introdutórios sobre a metodologia de investigação observada aqui. O dimensionamento de um pensamento dialético, como o de Marx, é possível a partir do conhecimento da sua obra como um todo, pelo menos um todo sistematizado cronológica 19 e tematicamente, por um lado. Por outro, talvez mais importante, é preciso partir do conhecimento da dialética marxiana, dos seus aspectos principais, apreendidos na própria obra de Marx, para não confundir o geral com o particular, o simples com o complexo, nem fazer inferências sobre textos descontextualizados. É esse o sentido desta dissertação. De resto, esta é uma pesquisa de natureza bibliográfica. Tivemos à mão, ao longo de muitos anos, textos diversos da bibliografia marxista, diversas biografias de Marx, muitos textos pró e contra o marxismo e, o que é mais importante, o contato direto com as obras completas de Marx, em português, francês e espanhol. Lendo, relendo e comparando traduções, em quase uma década de contatos com a bibliografia especializada, cremos que pelo menos em parte superamos os obstáculos de uma não leitura dos originais. Como dissemos, esta dissertação é parte de um projeto maior que desenvolveremos num futuro próximo. É responsabilidade e limite nossos, também, a composição técnica do texto: (I) optamos por notações que nos pareceram pertinentes à sustentação do texto, à medida em que (re) escrevíamos e as referências surgiam; (II) incluímos uma bibliografia básica, ao final, toda ela envolvida diretamente com a construção desta dissertação*. Enfim, parafraseando Marx: Investigamos nosso objeto de forma conscienciosa, buscando aplicar o que aprendemos nesses anos de estudos, na Universidade e fora dela, com os professores, colegas, amigos e companheiros diversos; resta contudo a dúvida: apesar de tudo, não é possível que a construção do texto seja a priori? Só a crítica dirá. 3. A CONFECÇÃO DA DISSERTAÇÃO Forma e conteúdos finais desta dissertação de mestrado são de minha inteira responsabilidade. Não poderia, ainda que desejasse, me furtar do significado de assinar o texto. Infelizmente, um trabalho dessa natureza tem que ter um autor, quando na verdade o que em última instância o permitiu foi uma série de circunstâncias externas ao indivíduo em si. Por exemplo, sem uma passagem pela Universidade, com suas influências gerais, não poderíamos estruturar o texto ou dissertação, tal como se exige para um ________________ * Sobre a bibliografia, esclarecemos: (I) as obras de Marx foram citadas em ordem cronológica de produção, com exceção das três últimas, de correspondência Marx/Engels e de textos escolhidos; (II) todos os autores citados estão em ordem alfabética; (III) nossa bibliografia é mínima. 20 Trabalho dessa natureza; da mesma forma, a não reunião de uma série de condições materiais objetivas, como o tempo para estudar, para ler e para adquirir meios de informação, impossibilitaria a conclusão do trabalho. Há, por outro lado, relações científico-filosóficas – que quase sempre implicam relações ideológico-político – que permeiam, interferem e às vezes determinam o trabalho acadêmico. O autor, o que assina, então, situa-se ao nível dessas relações, dessas redes que emalham-no, determinando sua captura ou sua negação, nesse caso, a fuga. O seu produto, confundindo ou não com ele, autor, está necessariamente relacionado com sua história, com a história de sua inserção no ambiente social. Por isso, também os significados reduzidos às instâncias do ideológico-político desta dissertação são de minha inteira responsabilidade. Desejaria aqui, ao contrário, falar de relações sociais mais próximas à confecção desta dissertação. Isto é, prestar o meu reconhecimento às pessoas que me ajudaram neste trabalho. Este o objetivo desta última alínea. Diretamente, não fora a paciência, generosidade e inteligência da minha orientadora, sobretudo sistematizando o melhor das nossas discussões, não teria condições de estruturar o texto. Eximindo-a de responsabilidade quanto às conclusões, contudo, devo a ela grande parte dos aportes necessários à ordenação das minhas ideias. Minha orientadora, a professora Stella Amorim, é o que eu chamaria aqui de co-artífice deste modesto esforço. Também não poderia deixar de agradecer aqui ao professor Francisco (Chico) Ferraz, ao historiador Adamastor Camará e ao professor Michel Misse. Eles, pacientemente, leram o texto, no seu “estado bruto”, e muito me ajudaram com suas críticas, sempre pertinentes, que então fizeram. Finalmente, sem o trabalho de revisão de Ednei Moutinho, meu amigo, este texto não poderia ser apresentado. A todos, aos que aqui me desculpo por citá-los, e aos que indiretamente estiveram envolvidos com esta dissertação, meus mais sinceros agradecimentos. Dedico esta dissertação de Mestrado a: HOZANA, minha mãe. Roberto, in memoriam. Marx, id. 21