1 30º CONGRESSO LATINO-AMERICANO DE PSICANÁLISE REALIDADES E FICÇÕES Setembro 2014 PREVENÇÃO E REPARAÇÃO NA ADOÇÃO PREVENCIÓN Y REPARACIÓN EN ADOPCIÓN Cynthia Ladvocat Mestrado em Psicologia PUC-Rio; Formação em Psicoterapia Analítica de Grupo; Membro Docente e Didata da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro; Membro da European Family Therapy Association; Presidente da Associação de Terapia de Família do RJ de 2002 a 2006; Presidente da Associação Brasileira de Terapia Familiar de 2008 a 2010; Membro do Conselho da ONG Associação Brasileira Terra dos Homens. Autora dos livros: . Mitos e Segredos sobre a Origem da Criança na Família Adotiva - Ed Booklink, Rio de Janeiro, 2002. . Psicologia: Capo de Atuação. Teoria e Prática – Ed. Booklink, Rio de Janeiro, 2010. . O Guia da Adoção, Aspectos Jurídicos, Sociais, Psicológicos e na Terapia Familiar – Ed GEN-Roca, São Paulo, 2014. RESUMO Como contribuição aos psicólogos que atuam na clínica da adoção, a autora apresenta a biografia pré-adotiva, o vínculo adotivo e a abordagem clínica da prevenção e da reparação. Nesse trabalho, o tema é apresentado a partir da experiência clínica da autora com crianças, adolescentes, adultos e seus pais adotivos. O tratamento psicanalítico visa elaborar as dificuldades e impasses, não para retirar as marcas e especificidades da adoção, e sim tratar das repercussões dessas marcas na vida da criança e de seus pais. RESUMO Como contribución a los psicólogos que actuan em la clinica de adopción, la autora apresenta la biografia preadoptiva, el vinculo adoptivo y el enfoque clinico de prevención y de reparación. En este trabajo, el tema es apresentado a partir de la experiência clinica de la autora com niños, jovenes, adultos y suas padres adoptivos. El tratamiento psicoanalítico apunta a la elaboración de las dificultades y dilemas, no para quitar las marcas y características de la adopción, pero en relación con las repercusiones de estas marcas en las vidas de los niños y sus padres. 2 O CAMPO CLÍNICO DA PREVENÇÃO A partir da experiência da autora no tratamento de pacientes adotados, e também nos casos em processo de guarda, antes da sentença da adoção, o trabalho levanta muitas questões inerentes à adoção que podem ser prevenidas precocemente, como os segredos, as crenças e as dificuldades frente à vinculação adotiva. O instituto da adoção denota uma grande mudança graças ao empenho dos profissionais da justiça, dos grupos de apoio à adoção e de toda a rede de profissionais. À parte das adoções informais cada vez mais raras, as adoções legais intermediadas pela justiça protegem os pais e os filhos, legitimando o vínculo adotivo. Mas ainda impera a cultura dos mitos e preconceitos sobre a origem biológica, hereditariedade e qualidade do vínculo adotivo. As especificidades da adoção interferem na relação entre pais e filhos e que devem ser preventivamente tratadas. Portanto, os fatos inerentes à temática devem ser investigados, independentes de estarem ou não conscientemente relacionados com a adoção. O objetivo inicial do trabalho é analisar junto aos pais a biografia da criança desde sua gestação até a adoção, e junto à criança, analisar as identificações, projeções e fantasias sobre as duas imagos parentais, a biológica e a adotiva. Os processos de habilitação das Varas de Infância trabalham para uma adoção bem-sucedida, e por isso uma rigorosa avaliação social e psicológica se faz necessária. A prevenção está no cerne do trabalho e as reuniões esclarecedoras nos grupos de pais trabalham sobre a disponibilidade para a parentalidade adotiva. Os postulantes recebem informações de que podem ou não ser habilitados e que, dependendo do perfil da criança desejada, o tempo de espera pode ser longo. A cultura da adoção incentiva a adoção tardia, inter-racial, de grupo de irmãos e as necessárias. Porém, existe a preferência pela adoção de bebês por uma série de razões, entre elas, a crença de que a criança pequena, com menos de dois anos, não traz marcas de sua vida pregressa, e por não ter registro da sua mãe biológica não desejará encontrá-la no futuro. No caso dos postulantes habilitados, eles são informados da disponibilidade de uma criança e de seu histórico de vida, quando este estiver disponível. A sentença da adoção garante aos pais o direito à parentalidade e à criança o direito à convivência familiar. Segundo a autora, o trabalho preventivo nessa fase é válido, tanto em relação às expectativas da criança, como na possível idealização dos pais, pois é possível que a nova situação jurídica não necessariamente altere a situação emocional da família adotiva. Algumas dificuldades podem ocorrer ainda nesse período inicial da convivência. Pode ocorrer do certificado de habilitação não ser concedido como resultado de uma avaliação não favorável; nesse caso, futuramente os postulantes podem se habilitar novamente. Alguns aceitam a indicação de um trabalho terapêutico para rever as questões que possivelmente inviabilizam nesse momento a habilitação. Na experiência da autora no atendimento desses casos, tanto em grupo como individualmente, os depoimentos colaboram na identificação dos impasses para a parentalidade adotiva. O trabalho preventivo trata das principais questões intrínsecas da adoção, antes que se agravem e inviabilizem a adoção de uma criança. Alguns se sentem mais fortalecidos e motivados para retornar ao processo de habilitação, outros desistem temporariamente desse projeto de vida. A biografia pré-adotiva 3 O conceito de limbo desenvolvido por Kernberg (1985) refere-se ao período entre os braços da mãe biológica e da mãe adotiva, ou seja, a fase intermediária entre o rompimento com a mãe de origem e o encontro com a mãe substituta, portanto devemos considerar esse tempo que antecede a adoção. A biografia pré-adotiva, segundo a autora, refere-se a esse período de limbo, antes da criança ser adotada por uma família. Existe um casal ou pessoa que não pode ou não pretende ter o filho pelas vias biológicas, e uma criança que não pode conviver com sua família e está abrigada em uma instituição. Essas histórias se cruzam e se transformam em uma única família, com diferentes raízes geracionais. O afastamento da mãe é uma das experiências mais dolorosas que possa existir. A sobrevivência de uma criança pequena ao corte repentino com sua mãe biológica desafia as leis da vida, considerando que não existe um bebê, e sim um bebê na relação com sua mãe. Considerando as suas necessidades básicas no seu desenvolvimento saudável, a criança precisa de cuidados amorosos de uma mãe suficientemente boa ou de uma mãe substituta. O fracasso ambiental na fase inicial da vida acarreta problemas de falso self, de personalidade e de relacionamento; frente às carências, sofre com angústias e ansiedades primitivas equivalentes à morte. A criança se torna perceptiva não de uma falha no cuidado materno, mas dos resultados dessa falha (Winnicott, 1997). Para a criança que é privada de um afeto, somente o retorno da pessoa perdida pode ser fonte de conforto (Bowlby, 1983). A mãe é a pessoa mais adequada para cuidar de seu bebê, porém, uma mãe adotiva pode ser capaz de se adaptar e se identificar suficientemente bem ao bebê. O melhor para um bebê que não pode ser criado pela mãe biológica, é ser cuidado por uma figura substituta. Para Anna Freud (1946), qualquer falha ou rompimento do vínculo com a mãe no primeiro ano de vida contribui para problemas emocionais na vida da criança, afetando todas as relações interpessoais posteriores com qualidade objetal que tem sua origem na relação mãefilho. O sentimento de vazio na perda do vínculo materno e a recuperação dos traumas do abandono podem ser preenchidos por uma mãe substituta. O desenvolvimento saudável da criança depende das circunstâncias da história préadotiva, das condições do rompimento com a mãe biológica, do seu percurso migratório, que inclui o período de abrigamento. Como a biografia da criança inicia na sua gestação, o que acontece na vida da mãe biológica deve ser estudado, caso seja possível o acesso a essas informações. Algo aconteceu para que ela desafiasse o mito do amor materno. Entretanto, sua história de vida é dificultada pelo silêncio auto-imposto e provavelmente sofreu do abandono da sua própria mãe. A mãe que não pode cuidar do seu filho ou o abandona provavelmente não tem apoio de sua família, nem acesso aos programas de políticas públicas (Ladvocat, 2009). A mãe biológica muitas vezes encara o abrigo como a solução para as graves dificuldades enfrentadas no seu contexto social por falta de condições emocionais, financeiras e sociais de cuidar da criança. A criança vive um vazio com a falta de visitas de sua família ao abrigo, o que já contribui para a configuração do abandono. Muitos motivos podem levar a mãe biológica a se afastar e diminuir as visitas a criança abrigada, configurando o abandono. É também importante o acolhimento de uma mãe que conscientemente entrega o seu filho para a justiça e consente que ele seja adotado. Nesses casos, após a entrega do filho para a adoção, ela tem seu anonimato preservado (Motta, 2005). A biografia da criança também pode incluir o período de vida em uma instituição. O abrigo torna-se o espaço transitório protetor da criança. Se a mãe não é responsável, se é negligente e não mantém o vínculo com a criança que está abrigada, ela pode perder o poder familiar. A institucionalização prolongada provoca 4 o empobrecimento da subjetividade pela perda da relação individualizada. Entretanto, tem um papel social relevante e acolhe a criança que perdeu provisória ou definitivamente a proteção da família. Para Anna Freud (1946), a vida institucional prejudica todos os aspectos do desenvolvimento que dependem do vinculo maternal afetivo. No abrigo, as relações com os amigos da mesma idade são as figuras centrais e estáveis. Por melhor que seja uma instituição e por mais que atenda suas necessidades, a criança abrigada não vive com sua família. Ela se adapta a essa vida e pode ter dificuldades futuras nos relacionamentos afetivos e pode se transformar em um adulto com sentimentos que refletem suas desilusões (Galli, 2002). É importante que exista uma rede ativa no processo de reintegração familiar. O trabalho com a família de origem é necessário, pois é o melhor para a criança, para sua família e para a sociedade. A partir de uma avaliação favorável para que seja reintegrada, ela deve ser preparada para voltar para casa. Esse momento resgata seu direito a conviver com sua família, mas pode ser difícil já que os funcionários e as outras crianças se transformaram em figuras substitutas de apego. Na contra-indicação da reintegração a família de origem, a adoção é a última fase para se preservar o direito a convivência familiar da criança. A adoção visa atender o direito da criança a uma família, quando não tenha sido possível a manutenção dos vínculos com suas origens. O nome da criança passa a integrar o Cadastro Nacional da Adoção, na espera por uma família, e no caso de ser adotada, ela deve ser informada que da possibilidade de uma nova família. Enquanto ainda não recebe os cuidados maternos, a criança vive um estado de limbo. Assim como, os postulantes que não podem ser pais também vivem um limbo parental; portanto, nesse conceito de limbo, a autora inclui o que aconteceu nesses dois mundos distintos, dos pais que desejam adotar, e da criança que precisa de uma família (Ladvocat, 2002). É necessário elaborar nos pais a adoção por um filho desejado e real pelos aspectos inconscientes que contribuem para o imaginário de um filho idealizado. As expectativas e cobranças são comuns em todas as famílias com filhos em biológicos ou adotivos. Mas existe uma especificidade na família adotiva, pois o filho adotivo é uma constante lembrança da razão dos pais serem adotivos. Algumas crenças dos pais precisam ser redefinidas no trabalho preventivo. O que interfere na relação familiar são os mistérios, não necessariamente que a adoção seja a fonte de problemas, mas a genealogia da adoção é repleta de dados confusos. Para proteger a criança do seu passado, os pais relutam em revelar dados da história ou não sabem que parte da verdade contar. O psicanalista acolhe os pais para que eles possam avaliar seus temores frente às origens. Os pais relacionam a curiosidade da criança a uma traição, como uma ameaça da busca pela família verdadeira. Eles afirmam que a criança não deve ter acesso as suas origens, que a visita ao abrigo é traumática e que o contato com os irmãos biológicos adotados por famílias diferentes deve ser evitado. Entretanto, esconder a origem não apaga a história pré-adotiva. Os pais justificam o segredo como uma maneira de proteger o filho, mas o bloqueio da comunicação através do silêncio cria barreiras para uma relação autêntica. O segredo em si às vezes não é o problema maior, mas a sua descoberta pode se transformar em conflitos manifestos patologicamente em um contexto sob o manto do não dito. O vínculo adotivo Segundo Galli (2002), a espera por uma criança pode ser entendida como uma gravidez adotiva, exigindo uma disponibilidade interna para acolher o filho. É na maternidade adotiva que se consuma o encontro com o filho real, não necessariamente com a chegada da criança. O encontro real demanda uma relação 5 corpórea, somática e um intenso envolvimento mental e emocional. Uma criança deve ser adotada o quanto mais cedo possível para possibilitar a continuidade dos cuidados maternos. Considerando a idade em que uma adoção é deferida, ela já está muito marcada por experiências reais. Assim, os pais adotivos enfrentam dificuldades diferentes daqueles que teriam se estivessem com a criança desde o início. Existe uma maior tendência de filho adotivo ter maiores problemas do que um legítimo por enfrentar enigmas que demandam informações, às vezes inexistentes (Bowlby, 1983). Segundo Levinzon (2004), a adoção marca a filiação a partir de um trauma que envolve o abandono e o drama de quem não pode gerar. O que ocorreu com a criança desde a separação da mãe biológica, o contato com pessoas ou instituições e, finalmente, o acolhimento pela mãe adotiva, são fatores preponderantes. O desenvolvimento psicológico da criança adotada segue por todas as fases das crianças que não foram adotadas, mas sua biografia é marcada por uma singularidade. É importante levantar suas dificuldades estruturais na compreensão do processo de adoção, na história de duas famílias, a que a gerou e a que a adotou. Para ela, essas duas famílias fazem parte do seu imaginário, podendo sofrer com ambivalências com relação às imagos parentais biológicas e as adotivas, ora persecutórias, ora idealizadas. A partir da teoria da tríade adotiva de Kernberg (1985), deve-se analisar a tríade edípica, ou seja, as relações edípicas com a família biológica e com a família adotiva. Para que possa elaborar seus conflitos com esses dois pares de pais, ela preenche as lacunas de sua historia com dados reais ou fantasiados, ou com a mistura de fantasia e realidade. O trabalho terapêutico preventivo colabora para que os pais revelem o que sabem sobre a criança, para que sua história não seja esquecida e reprimida. É importante que criança possa compreender ou encontrar um sentido para questões registradas inconscientemente. Nos casos de adoção, sempre existem segredos, dados confusos ou mesmo inatingíveis. Na época da adoção, alguns pais se interessam pelo histórico de vida, outros preferem nada saber, como se a distância e o desconhecimento da história pudessem evitar o contato com a origem. Os pais, muitas, vezes revelam a adoção nos primeiros anos de vida da criança, mas evitam falar sobre o que aconteceu para o rompimento do vínculo materno. Os pais se dizem disponíveis para responder às perguntas, mas preferem que determinados temas não sejam levantados, ou eles não conhecem a história de fato ou preferem nada revelar. E a criança pode imaginar que o fato de ter sido adotada aborrece a família ou que existe algo ilícito que ela não deve saber. A criança que enfrenta problemas com sua identidade adotiva cresce também com preconceitos. Ela faz diferentes perguntas ao longo de sua vida que devem ser acolhidas para não afetar sua identidade e autoestima. Em geral, a criança adotada não fala abertamente sobre seu status adotivo, o que pode ser uma reação a dificuldade dos pais. Os pais podem ter dúvidas quando e como devem revelar alguns fatos guardados em segredo sobre a história da criança. Falar da origem de um filho adotivo é pensar nos pais biológicos. Eles reagem negativamente se as coisas não andam bem, por isso devem redobrar os cuidados e serem até terapeutas para a criança, no sentido de uma atenção redobrada. Eles temem a revolta, a curiosidade, o sofrimento e a rejeição do filho; precisam elaborar seus medos e encontrar uma maneira de contar o que sabem, do contrário essas informações camufladas podem interferir no relacionamento da família. Os pais com medo das perguntas, tentam provar que são bons pais, exaltam a adoção e negam as diferenças entre parentalidade biológica e a adotiva. Podem culpar a adoção por algum problema, evitam frustrar o filho por não considerá-lo capaz de lidar com um passado de infortúnios. Para o filho adotivo, a separação definitiva das suas origens é um fato de difícil 6 compreensão. Ele percebe que o tema deve ser evitado junto a sua família e percebe um mistério que permeia um saber não autorizado. Pode fantasiar que seu nascimento é resultado de um romance proibido, ou pior, que foi roubado de sua mãe verdadeira. Segundo Dolto (1998), quando os pais escondem a história da criança, eles fantasiam que dessa forma, o filho que nada sabe, pode se tornar um filho biológico. Para Levinzon (2000), o problema maior é trazido pelo mistério que dá margem a mistura entre realidade e fantasia, geradora de fantasmas potenciais. A maior dificuldade sobre as origens da criança é a mistura de fantasia e realidade. Essa história sem registro e vazia de informações precisa ser recontada, fantasiada para que a criança e seus pais possam lidar com o passado da melhor forma possível. Os pais biológicos são de fato desconhecidos, existindo consequentemente emoções de amor e ódio que não podem ser vivenciadas, nem deixadas para trás. Mesmo na adoção bem-sucedida, alguns pontos não podem ser ignorados, nem necessariamente tornam-se graves, mas é importante a atenção às vicissitudes do processo. Os pais podem reagir mal às histórias vividas pela criança antes da adoção e o que sabem, preferem omitir para proteger a criança e a eles próprios do enfrentamento de questões que podem ameaçar o equilíbrio da família. De fato, os pais biológicos são inatingíveis, existindo sempre um mistério com uma mistura de fantasia e realidade. O não dito, as lacunas na história interferem no desenvolvimento da criança. Ela pode sentir-se enganada por a pessoa em quem confia, o que é muito mais traumático do que aquilo que descobriu. De qualquer forma, uma criança adotiva, será sempre uma criança adotiva, mas com uma provisão ambiental segura, há grande chance dos pais adotivos conseguirem superar essas dificuldades (Winnicott, 1997). Kernberg (1978) salienta que as questões da adoção se não forem tratadas, podem se tornar em pontos cegos ou comportamentos sintomáticos. Os sentimentos de perda, raiva, rivalidade e apego, em geral são revelados no material clínico de todas as crianças. Entretanto, na criança adotiva, as fantasias sobre o seu romance familiar se apresentam com uma especificidade relativa às vicissitudes reais da sua história de vida, podendo ocorrer o split entre os pais idealizados e os desvalorizados. Para Freud (1909), a criança modifica os vínculos com os pais de acordo com o seu romance familiar, ele não abordou nem desenvolveu exatamente o tema da adoção na sua obra. A adoção faz parte do romance familiar da criança no seu desenvolvimento psicológico como uma filiação de menor valor. Nesse caso o filho, ao fantasiar que não era filho biológico de seus pais, e sim adotivo, imagina ser ilegítimo e com menos direitos na família. No romance familiar a criança fantasia que não recebe o amor dos pais ou até que é adotada. A substituição por pais melhores revela características dos pais de origem e se baseia na saudade dos pais do passado, da infância com os pais e mães idealizados. Portanto Freud apresenta uma questão extremamente importante e conceitua, nessa época, a adoção como uma fantasia de ilegitimidade. Anna Freud, anos depois, também não publicou nenhum artigo sobre adoção, mas contribuiu com seu trabalho junto à criança sem lar e institucionalizada. Winnicott (1997) e Kernberg (1985), e mais recentemente Galli (2002), contribuíram de forma significativa para os estudos sobre o romance familiar, não como a fantasia da criança em ser adotada, mas no fato da criança ser realmente adotada e por isso fantasiar o romance familiar dos dois pares de pais, dos adotivos e dos biológicos. O manejo clínico da prevenção 7 O manejo clínico da prevenção implica um conhecimento das questões apresentadas pelos pais e as dificuldades das crianças em relação ao tema da adoção e suas vicissitudes. A autora remarca que o psicanalista deve estar consciente sobre as questões práticas, objetivas e conscientes desse início de trabalho, bem como as subjetivas e inconscientes como ferramentas terapêuticas. Segundo Galli (2002), a competência profissional demanda junto aos pais a abordagem de aspectos disfuncionais que interferem na elaboração da legitimação e parentalidade adotiva e junto à criança, a compreensão de uma narrativa possível sobre a sua migração da família biológica para a família adotiva. A trama do seu romance familiar se move no duplo pertencimento de uma parentalidade com duas funções indispensáveis: o vínculo biológico e vínculo adotivo. Portanto, a criança precisa tratar a história nas duas famílias, do contrário poderá se fixar no nascimento real, na sua origem biológica, comprometendo seu desenvolvimento. O tema da maternidade e da adoção também afeta os profissionais que trabalham nesse campo. Um mesmo caso clínico de adoção pode provocar diversas reações em diferentes profissionais. Segundo McGoldrick (2003), o preconceito é um fenômeno complexo, com intensidade que varia de acordo com o contexto de valores. O treinamento multicultural para uma reflexão sobre as ilusões monoculturais e suposições teóricas é um recurso útil pelas ressonâncias que afetam a pessoa do psicanalista. Dentro do possível, a família completa os vazios de sua biografia e transforma seus mitos em uma nova história compartilhada. O foco principal é transformar o mito de que quanto mais o filho adotivo estiver distante das suas origens, menor é a interferência dos laços biológicos e maior a sua integração na família adotiva; e substituir pela idéia de que quanto mais o filho adotivo tiver acesso às origens, menor é a interferência dos laços biológicos e maior a sua integração na família adotiva (Ladvocat, 2009). Segundo Kernberg (1985) o psicanalista, no levantamento das questões da adoção, pode sentir dificuldades correlatas às dos pais com pontos nodais da história, sentindo-se desconfortável com o desconforto dos pais. Deve investigar as motivações, expectativas e dúvidas sobre a adoção, frente ao sofrimento da criança, as reações contratransferenciais podem resultar em uma identificação com as suas próprias experiências de abandono. A mãe infértil luta pelo seu direito a gravidez e suas fantasias podem interferir na relação com a terapeuta fértil. A mãe adotiva pode revelar pactos inconscientes, tais como: a luta entre a mãe fértil e pecadora e a mãe adotiva, infértil e boa. Se revolta com todas as mães verdadeiras, com a mãe biológica da criança, com a própria mãe, que é fértil, como se estivesse sendo punida com a infertilidade por seus desejos competitivos com a mãe. Nessa interlocução, a terapeuta deve analisar os sentimentos de identificação com a criança e cuidar para não supervalorizar os pais adotivos, não desvalorizar a mãe biológica e, inclusive, não desejar ser a mãe-terapeuta-ideal. A criança enfrenta uma tarefa única no seu desenvolvimento em ter que assimilar seu status, o qual será sempre marcado pela adoção. Para prevenir dificuldades e problemas na adoção, um dos primeiros passos é trabalhar ludicamente com o tempo do verbo adotar. A autora chama a atenção para as expressões: “eu sou adotado” ou “o meu filho é adotado”. Entretanto a expressão: “eu fui adotado”, com o tempo do verbo no passado, significa que algo aconteceu na história dessa criança. Assim como quando um pai diz que adotou uma criança, hoje tem um filho. Portanto, essa redefinição já trata dos preconceitos sobre a filiação biológica e a adotiva. De acordo com McGoldrick (2003), as famílias adotivas são como famílias recasadas, ou seja, no envolvimento implícito entre a família biológica e a família 8 adotiva. Não importa se a origem é conhecida ou não, pois é possível triangular a memória ou a idéia de pessoas. Nas entrevistas com os pais, as perguntas diretas sobre a história da adoção, mesmo que pareçam intrusas, são necessárias para o entendimento do processo. Revelar na terapia os motivos que levaram os pais a buscar a parentalidade adotiva é um momento difícil por reviver os lutos da infertilidade, da imagem do filho perdido e do filho não concebido (Kernberg, 1985). O processo preventivo analisa junto aos pais as informações sobre a história e as perguntas sem respostas, e analisa com a criança a curiosidade sobre sua história de vida, para que os mistérios da adoção possam ser redefinidos em uma nova história compartilhada, imaginada e fantasiada. O CAMPO CLÍNICO DA REPARAÇÃO Nesse capítulo o tema da reparação é apresentado a partir da experiência clínica da autora com crianças, adolescentes, adultos e seus pais adotivos. Foi desenvolvido anteriormente o estudo sobre os mitos e segredos sobre a origem da criança adotiva, com a análise de 5 casos clínicos com problemáticas diferenciadas, a saber: a adoção intrafamiliar, a adoção de irmãos, a devolução da criança ao abrigo e a história de um adulto que convive com o segredo até a revelação da adoção no processo de terapia (Ladvocat, 2002). Existem questões sobre a adoção, que no caso de não terem sido prevenidas e reparadas precocemente, podem afetar o desenvolvimento da criança e a vida de seus pais. Para enfocar a questão da reparação, é importante contextualizar a adoção intermediada pela justiça, respaldada por uma cultura sem segredos e que incentiva a adoção de crianças maiores. Hoje, os pais são informados sobre o histórico de vida, caso existam registros dos seus antecedentes, as crianças, desde cedo, sabem que são adotadas. Porém, podem ocorrer conflitos manifestos por sintomas não graves ou por quadros mais complexos. Podem estar relacionados com a sua história de vida, com dados reais ou fantasiados sobre o abandono da mãe biológica, o período de abrigamento, o vínculo com figuras substitutas e sobre a relação com a nova família. O processo de reparação trabalha com as dificuldades da criança, com os problemas dos pais no relacionamento com o filho, ou nos casos extremos, com postulantes que pensam em desistir da adoção da criança cujo processo de guarda eles já possuem. As falhas na gestação biológica A infertilidade interrompe o sonho de ter um filho com as características hereditárias e impede o ciclo natural de renovação das gerações. Inicia-se a difícil fase do luto pelo filho desejado e dos investimentos narcísicos do casal. Cada um dos membros vive essa perda de acordo com sua subjetividade. A infertilidade gera fantasias persecutórias na mulher com o vazio gerado na sua barriga, e no homem com a castração real que ameaça a sua potência. A infertilidade pode ser atribuída a um dos membros e o parceiro infértil se sente responsável, com raiva do seu corpo e teme ser abandonado; o parceiro fértil sofre de conflitos em romper ou não um casamento pelo desejo de um filho e pode excluir inconscientemente o outro nos seus planos. O casal se frustra frente às tentativas fracassadas de superar os obstáculos. A opção pela reprodução assistida privilegia a gestação de um filho com características genéticas. Segundo Galli (2002), os casais que buscam a reprodução assistida revelam uma infertilidade que demanda a cura do corpo, mas a infertilidade deixa profundas cicatrizes também no psiquismo. A elaboração do luto por um filho não nascido é uma ferida que se abre a cada ida à clínica de reprodução. Apesar das 9 diversas tentativas sem resultado positivo, pode ainda persistir secretamente o desejo pela fecundação. O insucesso desse recurso resulta na perda da possibilidade da gestação. A necessidade de um filho da realidade pode levar o homem e a mulher à busca da fecundidade simbólica e partem em direção da parentalidade adotiva. As motivações devem ser analisadas para que o processo se desenvolva bem, principalmente se a criança estiver no lugar de um filho biológico perdido (Hamad, 2002). Se o luto pela gestação não está suficientemente elaborado, podem surgir sentimentos conflituosos e ambivalentes sobre uma criança de origem incerta, de genética desconhecida que traz as marcas da ilegitimidade. Nesse caso, o filho adotivo passa a representar o resultado de um processo frustrante (Schaffer, 1994). Quando a mente não consegue enfrentar o sofrimento pelo filho perdido, as marcas do insucesso e as repercussões negativas podem interferir na relação com o filho que será adotado (Galli, 2002). Segundo Dolto (1998), toda gestação é um trabalho que diz respeito à vida imaginária. No caso de um filho biológico, essa identificação se dá como continuação dos pais. Na adoção é mais difícil, já que o filho idealizado não é reflexo das semelhanças genéticas, e também pode ocorrer uma rejeição a uma criança gerada em outro ventre. A adoção pode ser considerada, para os pais, a oportunidade para a paternidade e, para a criança, um segundo nascimento. Apesar de que para Winnicott (1994) é mais difícil ser pai adotivo, em geral a adoção transcorre bem; é uma história humana comum, na qual os pais devem estar familiarizados com as perturbações e contratempos em suas infinitas variações. As falhas na adoção A autora trata de adultos adotados antes da década de 1970, quando as adoções eram na maioria informais e repletas de tabus. Portanto, não é raro encontrar adultos que souberam ou descobriram que foram adotados muito tardiamente. Esses adultos têm mais dificuldade sobre a adoção e suas origens. E, considerando a cultura da época, provavelmente, seus pais pouco sabem sobre as origens. Nesses casos, o trabalho terapêutico visa tratar esse indivíduo adulto frente a segredos e falta de informações decorrentes de tantos anos sem acesso à sua história de vida. No caso das crianças adotivas, o status adotivo faz parte da sua história, cuja biografia inicia na gestação biológica, evolui para o rompimento do vínculo materno e resulta na construção de novos laços com a família adotiva. O trabalho de reparação visa levantar e tratar questões difíceis, mesmo que não estejam diretamente relacionados com a adoção. As tentativas dos pais em apagar a historia contribuem para muitos conflitos. Para Kernberg (1978) se a criança não tiver tido informações sobre sua história de acordo com sua curiosidade, ela pode fantasiar sobre sua história e até imaginar ter sido roubada, ou mesmo buscar suas origens para esclarecer sobre os motivos de ter sido abandonada. Seus sintomas podem ser expressos por bloqueios na sua criatividade, autoestima baixa, distúrbios do comportamento, dificuldades de aprendizagem, tendência anti-social, delinquência, mentiras, roubo, fuga de casa, agressividade, gravidez precoce, dentre outros. Para Winnicott (1994), quando a criança não consegue suportar o conhecimento da adoção, seu problema não é apenas a ilegitimidade e sim a soma de todas as suas dificuldades. Como a relação adotiva se funda a partir da perda do vínculo biológico e o luto dos pais pelo filho biológico, quando a adoção fracassa, essa dupla falha se amplifica para o mundo interno dos adultos envolvidos. O atendimento da criança e dos pais no período de adaptação é sempre necessário, pois adoção é irrevogável, mas a 10 guarda é revogável. Portanto, desencontros podem ocorrer durante esse convívio inicial entre os postulantes e a criança. Se a adoção possibilita a reparação dos aspectos internos mais deficitários, as falhas na adoção podem levar a uma fragilidade da estrutura da personalidade (Galli, 2002). Pelo passado de abandono, a criança deve receber suporte emocional para que seu medo de ser rejeitada não encontre expressão no seu comportamento. A gravidade dos sintomas da criança não justifica a sua devolução à justiça. Entretanto, os pais podem não entender como uma criança expressa sua insegurança reagindo com agressividade ou através de outro problema. A reação da criança pode revelar sentimentos ambivalentes de amor e raiva, de afetividade e hostilidade, de proximidade e distanciamento e de desejo de ficar e ir embora. Mas em geral, os problemas maiores dizem respeito às dificuldades dos próprios pais, que frente a um comportamento disfuncional, podem se sentir impotentes, sofrer com suas ambivalências e projetar sobre a criança objetos idealizados e persecutórios. No caso de rejeitarem a criança ou se sentirem rejeitados, esses sentimentos, muitas vezes não são conscientes, mas sim reflexo da insatisfação narcísica inconsciente sobre um filho real e filho desejado. Os pais sentem-se inseguros em instaurar uma relação parental e concluem que a adoção daquele filho é um erro. O atendimento psicanalítico tem como objetivo a reversão desse desejo de devolução e do corte do vínculo adotivo. O psicanalista foca nas expectativas e exigências dos postulantes e avalia as limitações da família. A desistência da adoção é entendida pelos postulantes como a única solução possível para o impasse. Em geral, os postulantes se concentram apenas no ato da devolução em si, buscando os meios legais para isso e em como e quando entregar a criança de uma maneira menos traumática. Considerando as limitações da família e do próprio processo terapêutico, em casos onde existem graves dificuldades dos postulantes com uma criança, o psicanalista deve considerar os resultados favoráveis ou desfavoráveis, ou seja, a reintegração ao abrigo ou a integração na família adotiva com os pais que detém sua guarda. Se a família é mais flexível ela pode manter sua vinculação adotiva, mas se a família se encontra rígida novos argumentos sempre levam às mesmas queixas e à decisão já tomada antes do atendimento, ou seja, na desistência da adoção e no retorno da criança à justiça. A autora ressalta a dificuldade do profissional frente ao fracasso do trabalho terapêutico sobre a reversão da devolução, entretanto deve acatar a decisão da família considerando as suas limitações. E, a partir desse fato, o importante é o acolher a criança frente a sua tristeza, a despedida da família e tentar esclarecer sobre o seu retorno ao abrigo. A família volta para sua casa com a sensação de culpa ou alívio de algo entendido como irreversível. O fracasso adotivo deixa suas marcas no casal, na família, na criança, no terapeuta e em toda a rede de proteção. O rompimento do vínculo adotivo revela a triste realidade do abandono da criança, que sofre novamente com a rejeição. Ela passa a se sentir desvalorizada, pode fantasiar se seriam essas as razões de ter sido rejeitada pela mãe biológica. A criança terá de se adaptar novamente à vida institucional, ao vazio de relações objetais significativas e o sofrimento psíquico faz parte da sua realidade interna, com questões na sua mente como antes da adoção, como a angústia, a fragmentação, a descontinuidade e a perda. Ela se ressente perante as outras crianças da instituição, sente-se envergonhada e busca estratégias de sobrevivência. Ela passa a viver subjetivamente com as duas duplas de pais que a abandonaram. A criança dirige desejos destrutivos contra os pais biológicos e sentimentos ambivalentes contra os pais adotivos, e a emoção da criança é equivalente à da criança abusada. Assim como no abuso, o adulto usa o filho como 11 um objeto sem forças vitais, que pode ser devolvido como um objeto-adotivo (Galli, 2002). A situação jurídica permite a indicação de nova família postulante. A criança precisa de seguir com um acompanhamento para elaborar esses traumas e prevenir uma reação negativa frente à possibilidade de uma nova adoção. Infelizmente, ela passa a carregar na sua biografia o estigma de ser inadotável, de ser um problema, o que pode assustar os novos postulantes, comprometendo as demais tentativas de adoção. Segundo a experiência da autora, com a tentativa de postulantes estrangeiros à adoção internacional, algumas crianças relutam e não estão preparadas para aceitar a adoção. Podem ser analisadas algumas razões, a saber: o abrigamento prolongado, a relação afetiva com funcionários do abrigo, a amizade com as demais crianças, o vínculo com irmãos que por alguma razão não podem ser adotados e insegurança com uma mudança de idioma e de país. Nesses casos, o fracasso adotivo deve ser redefinido pela escuta do desejo da criança que não quer deixar seu abrigo e viajar com a família. As pesquisas sobre os motivos da devolução podem ajudar na avaliação de futuros casos. Apesar dos traumas, a reparação é possível, mas somente pelo verdadeiro acolhimento de uma nova família. A autora remarca que, felizmente, a devolução é uma exceção da prática e que o atendimento clínico em muito contribui para a reversão da decisão dos pais; aos profissionais resta a continuidade do trabalho com crianças e pais adotivos, que traz certamente muito mais gratificação do que frustração. Portanto, pode ser possível prevenir, tratar e reparar afetivamente as dificuldades enfrentadas no processo de adoção. Segundo Winnicott (1994) “a criança tem uma tendência natural a recuperar-se da perda e do sentimento de culpa que ela tem, mesmo quando, verdadeiramente, não contribuiu para o trágico acontecimento em que vive”. O manejo clínico da reparação A partir de algum problema, logo após a sentença de adoção, os pais adotivos devem manter ou buscar ajuda de uma terapia, tanto individual para a criança, como em consultas conjuntas para os pais e familiares. A criança pode não se considerar amada e apresentar dificuldades que dizem respeito as suas origens ou à adoção, rejeitando os pais biológicos ou os pais adotivos. Pode sentir raiva da mãe biológica, que a abandonou, ou raiva da mãe adotiva que poderá abandoná-la. O objetivo inicial é ajudar a criança a se permitir receber o amor que tanto precisa, sem o receio de ser novamente abandonada. Nas primeiras entrevistas, que podem ocorrer com ou sem a criança, o psicanalista levanta a história da gestação e nascimento, as condições da adoção, a adaptação na família, e quando e como a criança tomou conhecimento da adoção. Os problemas apresentados, mesmo que em um diagnóstico preliminar não tenham relação com a adoção, devem ser contextualizados. O tratamento representa para a criança um espaço terapêutico íntegro, estável e flexível para a expressão dos afetos para a elaboração dos traumas na sua história de vida (Ladvocat, 1996). O analista interpreta as ambivalências da criança na desvalorização ou idealização dos dois pares de pais em momentos diferentes; além das feridas narcísicas inerentes a sua condição adotiva. De fato, existe na vida da criança um histórico de falhas precoces com o rompimento do vínculo biológico, por decisão da própria mãe, por decisão da justiça ou por alguma fatalidade. Esse percurso migratório inclui muitas lacunas na história com o afastamento do sistema biológico, o período pré-adoção, o acolhimento temporário caso tenha ocorrido e a adaptação a uma nova família. A estrutura da família adotiva possui uma representação que inclui as duas 12 imagos parentais. Na falta de informações os dados biográficos, mesmo se escassos, são simbolicamente registrados. O conceito da tríade adotiva, que inclui a criança, sua família de origem e a adotiva, está sempre no foco do trabalho terapêutico nas suas triangulações. A biografia pré-adotiva aborda tanto o que se refere à vida da criança antes da adoção, quanto à vida dos pais na espera por essa criança. Existe uma ligação genética e histórica entre o biológico e o adotivo. Na história da família adotiva os fatos tratados incluem inclusive as informações sobre as gerações anteriores. Os pais adotivos são presentes na vida da criança e as triangulações são nítidas. Na história da família biológica os fatos tratados incluem as informações objetivas e também as fantasiadas. Portanto, não há como se pensar em reparação sem enfocar a tríade adotiva, um trabalho que inclui as fantasias da família adotiva sobre a família biológica (Ladvocat, 2010). As questões edípicas afetam os sentimentos de rejeição e idealização das imagos parentais. A representação simbólica dos pais biológicos contém projeções de impulsos proibidos a esses pais, sendo possível triangular somente na fantasia, por estarem ausentes na realidade. A partir do estudo da tríade adotiva, a busca das origens leva à construção de um lugar para a ausência de pais biológicos, como uma maneira de aproximar a fantasia da realidade (Kernberg, 1978). A temática da adoção concentra os danos precoces e as suas sequelas que interferem no desenvolvimento saudável. No tratamento, a criança adotiva revive a sua história real e fantasiada, as suas histórias construídas versam sobre o abandono, o segredo e a rejeição como temas recorrentes. A abordagem da reparação no setting visa uma elaboração do seu romance familiar a partir de projeções nos dois pares de pais. Existe uma tendência na supervalorização dos pais biológicos ou a desvalorização dos adotivos. Portanto, a partir da tríade adotiva, os pais têm a oportunidade de cuidar dos filhos para que eles possam vivenciar a filiação afetiva (Ladvocat, 2008). Segundo Galli (2002), a criança precisa elaborar sua história, do contrário pode sofrer as consequências de uma cisão, tendo de se vincular ou ao nascimento biológico ou ao adotivo. O resgate da história das origens pode ser considerado como uma verdade narrável e deve encontrar um lugar para os genitores, respeitando os eventos reais antes da adoção. Deste modo, serão superados os fantasmas, os quais encontram na forma do invisível seu caráter persecutório e inexplicável. O trabalho com a criança não visa apagar a história pré-adotiva, nem de remover os episódios que possam reativar situações dolorosas do passado, mas ela precisa compreender sua história de acordo com condições aceitáveis. A reparação afetiva e o sentimento de pertinência são compensatórios frente a um percurso comprometido. Os seus impasses, defesas e resistências na medida em que forem elaborados possibilitam a ela atingir uma estabilidade até a vida adulta. Os pais rejeitam os sinais das diferenças entre o filho idealizado e o filho real. Por um lado existe a imagem do filho perdido, do filho não concebido e a imagem do filho encontrado, do filho adotivo (Hamad, 2002). As fantasias sobre a adoção mudam de acordo com as condições ambientais, tanto na fase em que se encontram os pais, como na idade do filho. A cada ciclo, e seguindo o desenvolvimento psicológico da criança, a temática precisa ser revista. Junto aos pais, a adoção é um tema que sempre fará parte das suas vidas, bem como da criança, do adolescente e também do adulto. É importante que tanto o trabalho reparador aconteça antes da criança chegar à puberdade, já que é um período de conflitos, que pode interferir nas questões adotivas se não tiverem sido suficientemente tratadas anteriormente. Na adolescência, segundo Schettini (1999), as questões sobre a origem genética podem gerar dificuldades quanto ao status de adotado. Além dos problemas dessa fase, o adolescente desafia e provoca a sexualidade infértil dos pais: na mãe 13 sobre sua dificuldade em engravidar e, no pai, a impotência e virilidade. Ele pode se sentir inseguro na sua capacidade de procriação ou mesmo rejeitar a idéia de ter filhos. Frente a muitas outras dúvidas, pode se fixar no seu passado, transferindo para os pais adotivos uma raiva inconscientemente dirigida aos pais biológicos. Diversas questões afetam o adolescente, perguntas de difíceis respostas, mas que precisam ser contextualizadas aos dados objetivos. A busca das origens faz parte da curiosidade natural e é a cena temida dos pais, que devem elaborar seus medos para que o filho não parta concretamente e sem apoio. A elaboração simbólica no processo terapêutico pode ajudar um jovem a não precisar encontrar de fato sua família de origem. Na verdade, essa busca encontra sentido na vida adulta, na revisão da vida, na constituição da sua própria família e na possibilidade de gerar filhos. A integração da biografia da criança, mesmo com uma mistura entre fantasia e realidade, contribui para que as pesquisas sobre as origens até possam ser bemsucedidas. Na experiência da autora com jovens que fizeram contato com a mãe biológica, o encontro não gerou traumas nem afetou a vinculação adotiva. E os receios dos pais perderam sua força pelo fato dos filhos não terem optado a voltar para a família de origem. O importante é que o jovem encontre e resgate um mundo interno fortalecido para que possa projetar e construir seu futuro. O processo de reparação nos casos de adoção é um trabalho que demanda atenção a temas complexos e muitas vezes de difícil abordagem. Os conteúdos reprimidos e inconscientes podem ser ativados no psiquismo da criança, que expressa suas carências e revive terapeuticamente o vazio, o abandono e seu estado de limbo. Ela precisa ser compreendida empaticamente pelo analista nos momentos em que rejeita o tratamento, ataca o setting, projeta e transfere sentimentos bons e maus. O fenômeno da transferência e o impacto das ressonâncias afetam a abordagem técnica no trabalho clínico. O romance familiar ativado na transferência pode levar o terapeuta a gratificar suas necessidades narcísicas. Segundo Levinzon (2000), a relação transferencial é intensa na relação terapêutica, com o contexto de abandono e perda. A criança e o adolescente depositam a esperança de serem compreendidos terapeuticamente, gerando angústia e um intenso ciúme na família. O segredo em gostar do analista e não deixar que os pais percebam é vivido como um amor proibido, fato que não é compreendido pelos pais, gerando resistências ao tratamento. A criança mesmo sendo amada pela mãe adotiva pode desenvolver uma relação de dependência, idealizar a terapeuta como a projeção de uma mãe ideal e desejar ser adotada pela terapeuta. Os pais mais inseguros podem desqualificar ou idealizar o trabalho, questões que merecem um cuidado na abordagem técnica. São questões difíceis na relação terapêutica por apelarem a sentimentos maternais e paternais do terapeuta, por isso, especialmente nos casos de adoção, se faz necessária a reflexão constante do lugar que o profissional ocupa, tanto para a criança, como para os pais adotivos. É importante o rigor na abordagem técnica das sessões, quando o psicanalista deve identificar os seus sentimentos frente às histórias que são projetadas no setting e na sua própria pessoa. Algumas questões objetivas e subjetivas ativam no psicanalista as suas próprias teorias, crenças e seus preconceitos, além dos riscos contratransferenciais que afetam a eficiência no trabalho. Para o trabalho clínico preventivo e reparador, a autora considera importante a pesquisa e o estudo permanente nas suas especificidades jurídicas, sociais, psicológicas e familiares, nos diversos contextos. A prática cada vez mais especializada do campo da adoção demanda, além da abordagem da transferência de 14 situações difíceis, prática supervisionada e, principalmente, da análise pessoal. Conclusão O tratamento psicanalítico, a psicoterapia individual e a terapia familiar propiciam resultados eficazes para a elaboração de questões e mitos que podem ser tratadas e elaboradas junto às crianças e seus pais com dificuldades frente à adoção. Segundo Hamad (2002), o tema da adoção está sempre em foco em todos os momentos da vida da família. Toda criança precisa ser desejada, esperada, acolhida, tratada e vinculada a uma família. O objetivo do trabalho de prevenção e da reparação é transformar essa família com filhos adotivos em uma família que adotou no passado (Ladvocat, 2009). O psicanalista deve acolher empaticamente as limitações dos pais, para que eles se tornem verdadeiros pais adotivos, e tratar as dificuldades dos filhos, para que se tornem verdadeiros filhos adotivos. Os casos clínicos de pacientes adotados publicados ou apresentados em eventos científicos visam uma escuta mais apurada. A adoção deve ser contextualizada na biografia pré-adotiva, tanto no que se refere à vida da criança antes da adoção, quanto à vida dos pais na espera por um filho. De qualquer forma, a autora é muito otimista frente à adoção. Um novo ambiente acolhedor e suficientemente bom, como o lar adotivo, assim como o setting terapêutico podem servir de holding para a reparação e integração do self. O trabalho bem-sucedido, de acordo com Kernberg (1978), desbloqueia fixações, para que a identidade da criança possa amadurecer, mesmo sem pais biológicos conhecidos, mas com verdadeiros pais adotivos. Consequentemente, essas crianças, que, por uma fatalidade, foram afastadas da sua família de origem, podem recuperar suas esperanças e serem verdadeiramente adotadas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BOWLBY, J. Attaccamento e perdita: la perdita della Madre. Torino: Bollati Boringhieri, 1983. DOLTO, F. O destino das crianças. São Paulo: Martins Fontes, 1998. FREUD, A.; BURLINGHAM, D. Niños sin hogar. Ediciones Iman: Buenos Aires, 1946. FREUD, S. Romances familiares. Edição Standard Brasileira . Vol. IX. Rio de Janeiro: Imago, 1909. GALLI, J.; VIERO, F. Fallimenti adottivo: prevenzione e riparazione. Roma: Armando Editore, 2002. HAMAD, N. A criança adotiva e suas famílias. Rio de Janeiro: Companhia de Freud, 2002. KERNBERG, P. Algumas reações contratransferenciais no tratamento de crianças e pais adotivos. Revista Brasileira de Psicanálise. v.12. p. 439, 1978. KERNBERG, P. Child analysis with a severely disturbed adopted child. International Journal of Psychotherapy. v. II, 1985. 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Leitura recomendada LADVOCAT, C. Sexualidade na infertilidade. Boletim Científico da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro. v. XVII, n 1, 1997. LADVOCAT, C. Famílias com filhos adotivos. IN: OSÓRIO, L. C. VALLE, M.E.P. Manual de terapia familiar. Porto Alegre: ARTMED, 2009. LADVOCAT, C. A adoção no setting psicanalítico: a rainha que não poderia reinar. Revista Psicanalítica v. XI, nu. 1; 2010.