Na busca de um lugar para o sujeito na instituição Violência

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Na busca de um lugar para o sujeito na instituição
Aline Bergmann de Carvalho
Juliana Marcondes Pedrosa de Souza
Resumo: Ao pensar na questão da violência, lembramos do que lemos diariamente nos
jornais. Porém, há outro tipo de violência que aparece na rotina das instituições, onde impera
a lógica da tutela e vitimização. Trata-se de algo silencioso, nem sempre reconhecido como
tal, pois vem em nome de um cuidado com o outro, visando seu “bem-estar”. Assim, um saber
é imposto ao sujeito, emudecendo-o. Nos hospitais, doentes são vistos como objeto do saber
médico. Nas instituições que lidam com vítimas de abuso, crianças têm suas vidas decididas
por quem responde pela justiça, destituindo os pais de seu poder. A partir disso, perguntamos
o que nós psicólogos, orientados pela psicanálise, podemos fazer nesse lugar de total
dessubjetivação. Se considerarmos que a psicanálise só surgiu a partir da escuta da histérica
em sua singularidade, pode-se inferir que essa teoria tem sua ética pautada no sujeito,
enquanto aquele que deseja. Para isso, ele deve ser escutado. É essa aposta que sustenta nosso
trabalho.
Palavras chaves: sujeito, psicanálise, violência, singularidade.
Ao pensarmos no tema da violência proposto por esse Congresso, algumas questões se
fizeram presentes a partir da nossa prática em instituições médicas e jurídicas, enquanto
psicólogas orientadas pela psicanálise.
Cotidianamente, nos deparamos, em nosso trabalho, com algo que perpassa a lógica
institucional, e é sustentado, principalmente, na tutela e na vitimização do sujeito. Sob o lema
“sabemos o que é melhor para você”, o funcionamento das instituições médicas e jurídicas
parece velar qualquer traço que possa apontar para uma violência. Dizemos isso, na medida
em que, a prática nesses lugares vem em nome de um cuidado para com o outro, tornando a
violência silenciosa e não reconhecida como tal.
No rastro dessa lógica do cuidado, pautada nas “boas intenções” que visa ao “bem-estar”
do outro, vemos sujeitos emudecidos e sem chance de aparecer enquanto sujeitos do desejo.
Portanto, submetido a um saber categorizado e universal que busca o PARA TODOS,
em detrimento do caso a caso, o sujeito tem seu desejo elidido e é fixado na posição de objeto.
Objeto do saber médico e jurídico, o sujeito vê-se esmagado sob o peso de que, sobre ele
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mesmo, nada sabe e nada tem a dizer, apenas o necessário para que o outro tome a decisão. É
o outro que tem a resposta e as soluções para seus problemas.
Diante dessa constatação, acreditamos que podemos contribuir, a partir da psicanálise,
com a produção de novas intervenções no campo de uma clínica que se faz no contexto de
instituições que lidam com crianças vítimas de abuso sexual e sujeitos internados com alguma
doença e se norteiam pela aposta de que o sujeito é capaz lidar, de modo singular, com o malestar que o acomete.
Podemos dizer que essa atuação do psicólogo orientado pela psicanálise, nas diversas
instituições médicas e jurídicas, assume um posicionamento clínico e também político. Este
posicionamento se inscreve, de forma particular, nas equipes da qual faz parte, pois, leva em
consideração a existência do inconsciente e os seus efeitos na vida dos sujeitos
Assim, o trabalho nessas instituições nos convoca para a necessidade de atentarmos para
os inúmeros desafios e limites que nos deparamos no cotidiano da nossa prática. Isso se dá na
medida em que a teoria psicanalítica, que nos orienta, tem sua ética fundada a partir da escuta
do sujeito e na valorização da sua palavra, e é justamente esse sujeito que vem escapar ao
estabelecido institucional. Este, por sua vez, denota se sustentar no constante movimento de
tentativa de enquadramento do sujeito às regras que tecem a malha dos discursos que ali são
dominantes.
Portanto, considerar a presença da psicanálise em uma instituição onde “nas situações
mais improváveis, ali onde, com freqüência, o consenso profissional renuncia, desloca,
encerra ou rejeita o comportamento desviante, o não-senso, o anormal.” (MATET e
MILLER, 2007, p.3), é sustentar a nossa responsabilidade, no caso a caso, procurando lutar
contra essa atitude homogeneizadora e a favor da elisão do sujeito.
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A psicanálise nas instituições jurídicas
Ao lidar com as crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, constata-se que a
nossa sociedade está despreparada para proteger e acolher as suas demandas. Demanda de
poder falar, de denunciar, de não serem expostas a constrangimentos, de serem
compreendidas como pessoas em condição peculiar de desenvolvimento e assim contarem
com a proteção e apoio familiar e legal necessário para a garantia de seus direitos.
É importante destacar a dificuldade da família e dos operadores do direito em acreditar
nos relatos da criança. Acreditar em sua palavra é uma condição que se coloca indispensável
ao tratamento, abrindo espaço para a possibilidade da criança se posicionar como sujeito
singular nessa situação e tentar reescrever sua história.
O trabalho com a palavra, ou melhor, a fala endereçada a um outro, nesse caso o
psicólogo orientado pela Psicanálise, faz surgir uma via de intervenção em que a contribuição
da psicanálise é possível e efetiva. Nesse contexto, quando se põe em questão o dizer da
criança a respeito dos fatos ocorridos e busca-se apenas qualificá-los como verdade ou
mentira, trabalha-se a favor da revitimização. Assim, essas crianças tornam-se “vítimas tanto
daqueles que a tomaram como objeto sexual, quanto da perversão do Estado que as
confrontou com a missão impossível de dizer o verdadeiro sobre o real” (LAURENT, 2007,
p. 40).
O psicólogo que trabalha nas instituições responsáveis pela denúncia da violência não
pode ser mais um a querer investigar ou examinar os fatos ocorridos, muito menos ser
responsável somente por encaminhar a criança para a rede de proteção. A ele cabe oferecer
uma escuta diferenciada que venha contribuir no processo de construção de um dizer da
criança acerca do que foi vivido por ela. Esse dizer particular ao sujeito é condição para uma
reescrita possível, ou seja, elaboração da experiência.
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Enquanto praticantes da Psicanálise, não podemos sustentar um trabalho em que o
fundamental é só reconhecer crianças como sujeitos de direitos. Precisamos também
considerá-las sujeitos singulares que poderão, a partir do encontro com o psicólogo orientado
pela Psicanálise, retificar sua posição frente ao mundo.
A psicanálise nas instituições médicas
Ao percorrermos um pouco a história da medicina, veremos que esta, a partir do
momento em que fora tomada pelo discurso da ciência moderna no século XVIII, tem o
médico, seu maior representante, tirado da posição de intérprete dos sintomas do paciente,
como era antes, e situado, no lugar de mero técnico da biologia, a serviço da ciência.
(LACAN,1966)
Sob o ideal de objetividade e eficiência, a medicina então vem pôr de lado a
subjetividade do doente e do próprio médico, alienados no saber da ciência. Exclui-se a
subjetividade, creditando a ela o lugar de obstáculo à plena realização da prática médica.
Trata-se de uma intrusa e deve ser eliminada, silenciando, então, a fala do sujeito.
A “escuta” que aí existe visa estritamente à apreensão dos sinais que indiquem sintomas
encontrados num corpo dessubjetivado, que serve apenas para ser manipulado e examinado
com o intuito de obter e confirmar um diagnóstico e, por conseguinte, elaborar uma
terapêutica, que visa somente ao retorno do doente ao homem são que ele era antes da doença.
(CLAVREUL, 1983)
Conclui-se daí, que a linguagem passa a não cumprir mais do que uma função utilitária
que serve para a comunicação em seu caráter informativo, deixando de lado o sentido que
pode estar por detrás dela. (NEPOMIACHI, 2001)
Isso parece tomar um vulto maior no hospital, onde ainda hoje, o discurso hegemônico é
o do médico. As outras disciplinas, convidadas a atuar no ambiente hospitalar, demonstram
vir e serem inscritas ainda dentro desse discurso.
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Percebe-se que a psicologia, por exemplo, tem sua entrada na instituição hospitalar
pautada em uma necessidade médica de manter a ordem e ‘purificar’ o doente daquilo que
impede o médico de exercer sua função de forma adequada. (CAZETO, 1997) O convite a
intervir junto ao doente aparece quando este está chorando, ou recusa-se a tomar o
medicamento, mostra-se agressivo, pede alta, ou ‘deprime’.
O modo como se responderá a essa demanda médica aponta para a ética que dirige a
nossa prática. Atuar segundo o ideal de bem estar e promoção da saúde, coloca em risco a
posição do sujeito do desejo, uma vez que, esse ideal, como dito antes, sempre trabalha
guiado por um parâmetro universal: ‘o que é bom para mim, é bom para você’.
Vemos, assim, doentes submetidos ao saber que lhes é exterior, sendo este, o único que
aponta para a verdade, sempre absoluta. Perde-se, portanto, a verdade do próprio sujeito,
sempre singular.
Já a psicanálise, construída justamente, ao reconhecer a subjetividade implicada na
doença do sujeito e nas suas escolhas, não admite essa mesma lógica médica.
É inegável como a histeria ocupa um lugar estratégico na subversão do espaço da
medicina e na elaboração da teoria psicanalítica. O funcionamento da histérica representou
uma evidente ruptura na racionalidade médica, pois, apesar de seus sintomas, não se submetia
ao modo de pensar da medicina somática, cuja pretensão residia no fato de poder relacionar os
diversos sintomas com lesões anatômicas específicas.
A partir da escuta de suas histéricas, Freud vem construir a teoria psicanalítica, pautada
na valorização do saber que o sujeito tem sobre si. Seu ato inovador foi acreditar no que as
histéricas diziam, sublinhando o poder que as palavras tinham na determinação dos sintomas e
no saber que traria a cura e estaria do lado do doente.
Assim, ao abandonar a sugestão hipnótica no decorrer de sua obra, Freud vem valorizar
a escuta do sujeito, promovendo a técnica da associação livre como regra fundamental da
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psicanálise. Nela, o sujeito deve falar livremente o que lhe vem à cabeça, evitando qualquer
censura ou escolha do que falar ou não.
A linguagem, portanto, passa a ter um lugar princeps, onde se reconhece que o corpo
considerado pela psicanálise, é por ela afetado. O analista, então, em sua posição silenciosa,
visa a promover a proliferação da fala do sujeito, que através de suas palavras, vem mostrar
um saber sobre o que lhe passa.
Faz-se a passagem de uma posição de compreensão para uma de interpretação, onde o
saber está do lado do paciente. O analista, na verdade, ao sustentar a transferência, se coloca
no lugar do sujeito suposto saber1, o que difere, e muito, do sujeito que sabe, ocupado pela
figura do médico.
Em seu texto “Linhas de progresso para uma psicologia científica” de 1919, Freud já
corrobora o lugar que constitui o psicanalista como o que não sabe sobre o sujeito. O saber, ao
contrário, está do lado do paciente. Ao comentar sobre uma fala de J.J. Putnam, dos EUA, na
qual este defendia que a psicanálise deveria ser imposta ao paciente visando ao seu
enobrecimento, Freud vem dizer que essa atitude “é apenas usar de violência, ainda que se
revista dos motivos mais honrosos.” (p. 208)
É aí que localizamos o nosso olhar sobre práticas que têm vez nas instituições como da
ordem de uma violência, encoberta por boas intenções, mas responsável por inúmeros
equívocos.
Assim, ao pensar na possibilidade de uma escuta analítica extra-muros do consultório e
seu setting, com pacientes que, a princípio não estão ali para serem “escutados” por um
profissional “psi”, mas tratados de sua moléstia física por um médico, expõe um desafio
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O sujeito suposto saber diz respeito a uma suposição do analisando de que o analista é aquele que sabe tudo ou
que detém todas as respostas para quaisquer questões. Essa suposição vem sustentar a transferência através da
qual, uma análise será possível. Porém, o analista não deve identificar-se a essa posição de saber, o que seria um
equívoco, visto que “a posição do analista não é a de saber, nem tampouco a de compreender o paciente, pois se
há algo que ele deve saber é que a comunicação é baseada no mal-entendido” (QUINET, 1998, p.31)
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constante. Este, por sua vez, se coloca ancorado na crença e na aposta de que, ao se oferecer
uma escuta, uma demanda pode daí advir e um trabalho ocorrer.
Consideramos, portanto, que a função da psicanálise no hospital seria a de mostrar, junto
ao saber médico, que há um limite na sua intervenção e que esse limite diz respeito à
dimensão do Inconsciente. Esse está presente em cada sujeito, estando ele adoentado ou não.
E é diante desse fato que nos colocamos a postos: através da escuta do que ali naquela doença,
naquele momento, emerge, no decorrer da fala do sujeito e do vínculo estabelecido pela
transferência, que nós, psicólogos orientados pela psicanálise, ouvimos esse sujeito através do
seu desejo.
Num lugar onde há tanta miséria concreta, o psicanalista encontra o seu lugar, na escuta
de sujeitos, que por um acidente em sua vida, apresentam um acidente em seu discurso. Com
o objetivo de sanar uma doença física, alguns acabam por se engajar no discurso analítico,
onde isso só foi possível, justamente por estarem vivendo essa situação de angústia diante da
doença. Esta pode situar o sujeito diante da constatação de sua própria finitude.
A morte se encontra em nossas vidas e não pode ser representada. Enquanto o sujeito
puder falar, escutá-lo é testemunhar que a vida persiste, pois ao falar, a história do sujeito se
desenvolve para além do corpo biológico, considerado pela medicina. E é nesse momento de
confrontação com a possibilidade da morte, que muitos aproveitam para se questionarem e
repensarem sua história de vida. Algo que funcionava muito bem até agora, falhou, apontando
para um furo no discurso. Há algo ali por trás que revela aquilo da esfera do não querer saber.
Assim, não é nossa pretensão, devolver-lhe a harmonia, o bem-estar, mas possibilitarlhe adquirir recursos para lidar com sua angústia, advinda do real. Deste modo, damos a
chance do sujeito, em sua singularidade, aparecer nas entrelinhas de sua fala, e apontar para o
que diz do seu desejo.
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Conclusão
Segundo Altoé (2005) o que é particular à prática do psicólogo de orientação
psicanalítica nas instituições são suas intervenções fruto do método criado por Freud que
privilegia a expressão de cada sujeito, a sua palavra e sua história e que o convoca a assumir a
responsabilidade de seus atos e escolhas.
Assim, qualquer posição universalista embasada puramente na garantia de direitos e de
uma melhora medicamentosa terá como conseqüência a anulação do sujeito, impedindo-o de
construir uma solução para o seu conflito e de se implicar com seu tratamento.
O que orienta a prática da psicanálise nessas instituições é a escuta que o psicólogo faz
de cada sujeito convocando-o a ser protagonista de sua história.
Como nos afirma Besset (2004) falar a um outro, principalmente, quando esse outro não
se autoriza em saber, previamente, sobre aquele que fala, é um convite para refletir e a
possibilidade de uma mudança subjetiva.
Enquanto apostarmos na existência do inconsciente, do desejo em cada sujeito,
sustentaremos um trabalho atravessado pela psicanálise fora dos limites do consultório. E é
sob essa perspectiva que nossa presença nas instituições de saúde e jurídicas vem se
desenvolvendo, rompendo com uma vertente assistencialista, avaliando, constantemente, a
possibilidade de fundamentar nossa prática no discurso psicanalítico, e participando,
simultaneamente, das especificidades da vida institucional, sem no entanto, nos reduzirmos a
elas.
Referências.
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Instituição. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, p. 72-86, 2005.
BESSET, V.L. (1997). Quem sou eu? A questão do sujeito na clínica psicanalítica. In:
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QUINET, A. As 4 + 1 Condições de análise. 7ªed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.
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