diplomacia no século XXI Diplomacia econômica: desafios em um mundo em transição Marcos Caramuru de Paiva INTRODUÇÃO O economista Ruchir Sharma, autor do interessante Breakout Nations e uma das primeiras vozes a duvidar do futuro dos BRICS, tem sido um crítico da tendência recente dos mercados de fixar-se no futuro distante para fazer apostas de curtíssimo prazo. De pouco adianta avaliar, por exemplo, se daqui a cinquenta anos alguns países africanos poderão ter um desempenho econômico admirável, se eles não oferecem agora oportunidades de investimento. A diplomacia, ao contrário dos mercados, opera o diaadia com olhos sempre voltados para o longo prazo. O raciocínio diante do quadro de Sharma é mais ou menos o seguinte: se alguns países da África vão despontar no futuro, temos que fincar nossa presença neles o quanto antes, para podermos aproveitar as oportunidades que se abrirão. Os diplomatas modernos, é verdade, diferentemente de seus colegas do passado, buscam abrir portas comerciais, atuam na atração de capitais, procuram materializar negócios. Tratam de temas em que o resultado imediato dá a medida da eficiência profissional. Mas a diplomacia é, em tese, uma operação de longo prazo. Tradicionalmente, a função do diplomata envolveu negociar tratados: grandes molduras de longo prazo. A rationale de uma embaixada está no potencial da relação bilateral ao longo do tempo, nos ganhos que se podem derivar do diálogo permanente com o país onde ela está instalada. Marcos Caramuru de Paiva é Diplomata, Sócio e Gestor da KEMU Shanghai Consultoria. 4 RBCE - 117 Uma boa parte do trabalho dos economistas é prever o rumo de indicadores relevantes e avaliar o seu impacto sobre os negócios. Os economistas mensuram riscos e aconselham quem vai tomá-los. Os diplomatas valem-se mais da história. O conceito de risco lhes é pouco familiar. Levam em conta, primordialmente, componentes imutáveis dos países: a sua posição geográfica, suas características culturais e o sentido de direção das suas realidades. As breves observações acima dão, genericamente, a dimensão de como é desafiador relacionar o mundo diplomático e o econômico, como proposto no tema desta edição da RBCE. Ao lado disso, todo exercício de futurologia é, por princípio, perigoso. Vale sempre a máxima tantas vezes repetida de Groucho Marx: “fazer previsões é difícil, particularmente quando se fala sobre o futuro”. Mas não fazê-lo dificulta o planejamento. A grande reviravolta política do final do século XX, com a queda do regime soviético e a reunificação da Alemanha, coincidiu com um período de extraordinária transformação da economia internacional. Essa transformação refletiuse num significativo aumento dos fluxos internacionais de capitais (investimentos diretos e de portfólio), a substituição dos tradicionais empréstimos bancários por novas modalidades de captação, como a via bônus, em que os credores são múltiplos e muitas vezes não identificados, expansão dos tratados de livre comércio, ampliação considerável dos mercados de derivativos, redução das moedas em circulação, com a ousadia europeia de acordar o Euro, em 1993, e pô-lo em circulação no despertar de 1999, uma multiplicação de regras quase informais mas de cumprimento obrigatório fixadas por organismos internacionais variados, como as regras da Basileia, as regras de transparência em matéria de política fiscal, as regras de combate à lavagem de dinheiro, as regras da IOSCO, as regras contábeis uniformes, entre várias outras. Quem apostou, no final dos anos 80, que, com a derrocada do regime soviético os EUA reinariam sozinhos não viu a China. Parece surpreendente hoje que, há trinta anos atrás, quando a China engatinhava na abertura, ninguém tivesse antecipado a força econômica em que ela se transformaria. Quem apostou num cenário de prosperidade garantida, tendo como base as extraordinárias taxas de crescimento da economia internacional na primeira metade dos anos 90 e, outra vez, no primeiro quinquênio do século XXI, teve que rever seus conceitos, primeiro com a crise asiática, depois com a crise nas economias amadurecidas. E quem apostou, na eclosão da crise de 2008, que a força dos emergentes passaria a mover a economia internacional por décadas adiante, está agora num processo de reavaliação de conceitos. CENÁRIOS PARA O SÉCULO XXI Todas essas transformações imprevisíveis e rápidas dão uma ideia de quão difícil é, no momento, desenhar um cenário para o século XXI. Algumas ideias, porém, são inescapáveis. China e Leste Asiático Parece claro que o século XXI será, sobretudo, o século do Leste asiático. A menos que os asiáticos se percam nas controvérsias territoriais e nos rancores do passado, os chineses cometam grandes erros na condução da política econômica, ou não tenham a coragem de realizar as reformas necessárias, o papel do Leste Asiático será crescentemente importante. A dificuldade maior de tirar conclusões sobre a China é que os instrumentos de análise de que dispomos no Ocidente não funcionam adequadamente para um país com uma taxa de poupança superior a 50% do PIB e uma organização política inédita, que leva a que os temas sejam tratados de forma diferenciada, sem seguir parâmetros conhecidos. Mas mesmo os mais céticos sobre as perspectivas futuras da China têm que admitir que o país ainda tem espaço para crescer a taxas elevadas por pelo menos uma década, que o processo de urbanização prosseguirá RBCE - 117 5 Há um bom entrosamento das cadeias industriais da ASEAN e da China na produção de bens que, a partir da China, são exportados para o resto do mundo trazendo uma boa parte dos 650 milhões de chineses que vivem no campo à economia de consumo, que a organização política tem dado mais sinais de eficiência do que de ineficiência e que os governantes estão sabendo construir uma densa teia de relacionamentos externos, que não se romperá facilmente com o tempo. chinês e 21% das importações vieram de lá. Apesar das disputas territoriais no Pacífico, os investimentos japoneses na China seguem ampliando-se. Os coreanos também. Os três países, China, Japão e Coréia, estão discutindo um acordo de livre comércio que deverá ainda mais estimular investimentos e fortalecer os vínculos comerciais. A China moverá o seu entorno e carregará consigo os países do Leste da Ásia. Vai atrelar crescentemente à sua realidade os grandes (Japão e Coréia), os países bem sucedidos da ASEAN (Cingapura, Malásia, Tailândia, Indonésia) e as economias menores (Laos, Camboja, Vietnam, Mianmar). O mecanismo ASEAN+3 (China, Japão e Coréia) segue funcionando. Os países criaram um colchão de proteção para crises de balanço de pagamentos que afetem as economias mais fracas (o chamado mecanismo de Chiang Mai) e continuarão trabalhando em propostas para ampliar a integração de seus mercados financeiros e a eficiência na alocação regional da poupança. A China está determinada a ampliar os investimentos de infraestrutura na Ásia do Leste. Já fez muito na construção de vias que a liguem aos seus vizinhos diretos. Além disso, há experiências inovadoras em curso no leste asiático. A China e a Malásia, por exemplo, têm construído conjuntamente, tanto em território chinês como malásio, zonas de desenvolvimento industrial para atrair investimentos de um país no outro e criar espaço para investimentos de terceiros países. Resultado: a pequena Malásia, com uma população pouco maior do que a de Xangai, tornou-se o maior parceiro comercial chinês na região. Os países da ASEAN, na verdade, já têm uma proporção elevada (em alguns casos 60% a 80%) do seu fluxo comercial total no comércio bilateral com a China. No período de 2002 a 2012, as trocas entre a China e os membros da Associação ampliaram-se, em média, 60% ao ano, chegando a US$ 400 bilhões. Há um bom entrosamento das cadeias industriais da ASEAN e da China na produção de bens que, a partir da China, são exportados para o resto do mundo. Os vínculos entre a China, o Japão e a Coréia são menos expressivos, mas não são irrelevantes. Em 2012, a Coréia exportou para a China 28.5% de suas exportações totais e importou 15.8% do total. No caso do Japão, 18% das exportações dirigiram-se para o mercado 6 RBCE - 117 Se a China tiver sucesso no esforço de ampliar o consumo interno e levar a cabo reformas, paulatinamente o seu mercado interno será o grande catalizador das vendas regionais. A Ásia do Leste poderá tornar-se uma região introspectiva, com pequeno grau de interação com o exterior. Ver isso acontecer é justificado fator de preocupação de grandes países ocidentais. Estados Unidos Os Estados Unidos continuarão a ser, pelo menos em grande parte do século XXI, a grande força econômica que foram nas últimas cinco décadas. Mesmo que a China possa superá-los no tamanho do produto, não chegará, em futuro previsível, a ter o peso americano. Os chineses sabem disso. Os Estados Unidos não só serão um dos maiores, senão o maior produtor de petróleo e gás do mundo, mas também o único país que tem condições de criar inovações tecnológicas de alcance global e transformar a vida dos negócios e das pessoas, como fizeram com a Internet, as redes sociais e,mais recentemente, as impressoras 3D. O dólar será, ainda por longo período, a moeda de referência e de troca nas transações internacionais. O renminbi está ampliando o seu uso, fruto dos acordos de swap de moedas que a China tem concluído com um grande número de países, inclusive com a União Europeia. Mas a China precisará gerar um grau muito elevado de confiança nos mercados para que sua moeda atinja o status do dólar. Isso levará algumas décadas, ou simplesmente não ocorrerá. É muito provável que a China abra a conta de capital em menos de dez anos, absorva um volume extraordinário de investimentos de portfólio do mundo inteiro e que o mercado financeiro chinês modernizese mais rapidamente do que se prevê. Mas o renminbi não se tornará facilmente uma alternativa ao dólar. Os Estados Unidos parecem ser, hoje, um país onde a formação de consensos políticos é mais difícil do que anteriormente. As divergências entre democratas e republicanos na gestão da crise de 2008 foram desastrosas e o surgimento de movimentos como o Occupy Wall Street é sinal de que há algo novo a fragilizar o sistema político americano. Se essa tendência persistir, irá, inevitavelmente, abalar a confiança na economia e na moeda. Mas é previsível imaginar que a racionalidade prevaleça e que os EUA e o dólar mantenham sua importância relativa na economia internacional. Europa A Europa, que por séculos exerceu a liderança das grandes tendências — afinal, a base intelectual do capitalismo e da democracia veio da Europa. A Europa, nos anos 80 e 90, fixou standards de privatização e gestão de serviços públicos que foram copiados em muitos outros países; foi a formação da União Europeia que fez desencadear a pletora de acordos de livre comércio que se viu no mundo — ocupará uma posição de menor força na definição de novos rumos para a economia internacional. Continuará, é claro, a ter peso no comércio mundial, nos fluxos de capital, na modernização da indústria. E, possivelmente, o acordo de livre comércio Europa-EUA vai estabelecer novos padrões regulatórios para vários segmentos que acabarão sendo seguidos — ou impostos — aos demais países do mundo. Mas o peso relativo da região será menor. Os modelos de comportamento econômico virão dos EUA ou da Ásia. Países com influência regional Haverá um grupo de países com uma trajetória solo, com influência regional e no seu entorno ou com peso relativo próprio. Nesse grupo incluemse a Índia, a Rússia, o Brasil, a África do Sul, a Austrália e talvez alguns africanos, como a Nigéria ou Angola. Tais países serão mais ou menos relevantes na definição dos rumos da economia internacional, na medida em que suas políticas tenham maior ou menor qualidade. Alguns deles exercerão uma liderança regional, como será inevitavelmente o caso do Brasil, mas nenhum deles fixará padrões de conduta a serem internacionalmente copiados. A Índia e a Austrália, assim como a Nova Zelândia, têm dado mostras variadas de que farão o possível para integrarRBCE - 117 7 Outro acordo de impacto global será a Parceria Transpacífica, lançada pelos Estados Unidos, em fase de negociação e com resultado esperado para 2015 se à grande comunidade econômica do leste asiático. Mas, ainda que consigam graus crescentes de aproximação com a região, sempre gozarão de um status diferenciado. A Austrália até poderá ter uma interação maior com a China, se concluir com ela o acordo de livre comércio em negociação. A Nova Zelândia já tem um ALC com a China. A interação entre a Índia e a China é menos provável. O comércio vaise ampliar, mas a Índia dá poucos sinais de que será um país mais aberto, e a estratégia de penetração chinesa envolve investir fora. Não há nenhuma razão para acreditar que o México e o Canadá perderão o vínculo privilegiado com a economia dos Estados Unidos ou para antecipar o surgimento, na América do Sul, de algum país que venha a exercer uma liderança econômica diferente da que hoje se registra na região. Oriente Médio O Oriente Médio terá uma presença garantida na provisão de capitais aos mercados internacionais e as economias individuais dos países apresentarão graus mais elevados de eficiência e bem estar, o que poderá, como já ocorre, gerar oportunidades comerciais para o resto do mundo. Além disso, os países da região terão uma relação privilegiada com outros países muçulmanos fora da região (Malásia e Indonésia, principalmente) e, com eles, 8 RBCE - 117 buscarão desenvolver um enfoque muçulmano para temas econômicos. Os bônus islâmicos, já razoavelmente desenvolvidos, são um exemplo disso. Mas o peso de produtos dessa natureza será reduzido. Acordos de comércio e OMC À parte a visão do mundo baseada na importância individual dos países ou regiões, os acordos de livre comércio terão relevância crescente e poderão ora fortalecer, ora quebrar a dinâmica essencialmente regional de funcionamento das economias. O acordo China-JapãoCoréia está no primeiro grupo. Contribuirá para consolidar um Leste asiático mais entrosado economicamente. O acordo EUAUE pode quebrar a dinâmica introspectiva da economia europeia. Outro acordo de impacto global será a Parceria Transpacífica, lançada pelos Estados Unidos, em fase de negociação e com resultado esperado para 2015. Concebida pra contestar o peso da China no Pacífico, a Parceria deve entrar preliminarmente em vigência em 2015. É prematuro avaliar o seu impacto. Possivelmente, estimulará o comércio e investimentos entre países maiores na área do Pacífico (EUA, Japão) e países menores da América Latina, Ásia e Oceania. É pouco provável, contudo, que a Parceria chegue a abalar o peso da China para os países do Pacífico no seu entorno, sendo que não está descartado que a própria China possa aderir em algum momento. Imaginar que o Pacífico possa ter um movimento comercial expressivo sem o envolvimento da China é um wishful thinking. A possibilidade de um breakthrough na recuperação do enfoque multilateral dos temas comerciais parece remota no momento. Nenhum país tem dado sinais de entusiasmo por tal recuperação. O fato de o mundo ter vivido sucessivas crises financeiras fez com que os Governos relutassem em perder os resquícios de liberdade que guardam nas políticas comerciais. Além disso, a OMC funcionou como grande catalizadora de entendimentos comerciais globais enquanto suas decisões eram capitaneadas por um pequeno número de atores influentes — três, na verdade: EUA, UE e Japão. A China não tinha o peso comercial que tem hoje e nem mesmo era membro da Organização; os emergentes participavam das decisões globais mais com uma estratégia de defesa de sua autonomia para aumentar tarifas e recorrer a barreiras comerciais do que com uma estratégia de integração aos fluxos comerciais internacionais. Crises financeiras Tudo leva a crer que a realidade financeira internacional nas próximas décadas repetirá o padrão dos últimos 20 anos: crises sucessivas. Como as crises que o mundo vivenciou desde a segunda metade dos anos 90 não geraram grandes transformações na regulação dos mercados nem no comportamento estrutural das instituições financeiras, o mais provável é que o mundo viva ciclos de prosperidade-criseprosperidade, com períodos de ampliação e de estrangulamento da liquidez e surpresas sucessivas no cenário dos fluxos de capital. Os países em crise não serão necessariamente os mesmos, haverá crises de maior e de menor duração, mas que tenderão a ter um impacto global, ou seja, o fenômeno do contágio veio para ficar. Um tema difícil é avaliar qual será o impacto das crises quando a China tiver uma economia aberta e mais integrada ao mundo financeiro internacional. Ou seja, admitindose que a China praticará graus crescentes de abertura para investimentos estrangeiros, ela funcionará como um amortecedor do impacto das crises ou, ao contrário, acabará sendo também dragada pelo impacto de problemas externos? Dada a dimensão da economia chinesa e a sua elevada taxa de poupança, a primeira hipótese parece mais plausível. É possível mesmo que os graus de abertura que venham a ser praticados ao longo de uma década ou mais não sejam suficientes para que a China efetivamente se integre de forma abrangente aos fluxos internacionais. Hoje, as instituições financeiras estrangeiras só podem investir em ações e títulos de renda fixa chineses quando lhes são alocadas quotas dentro de um programa chamado QFII (Qualified Foreign Institutional Investors). Brasil É impossível conceber a diplomacia econômica desvinculada dos rumos da economia interna. Isso ocorreu no passado, quando o grau de integração que tínhamos à economia internacional era reduzido e os diplomatas acreditavam que a visão essencialmente política dos temas pudesse influenciar a realidade econômica. Nos anos 80, enquanto a economia brasileira vivia um estado elevado de desordem, os diplomatas brasileiros lideravam os debates de temas como um código de conduta restritivo à operação de empresas multinacionais, um sistema de preferência tarifária entre países em desenvolvimento cujo objetivo era levar as economias em desenvolvimento a depender menos de economias amadurecidas ou, ainda, o aumento expressivo do fluxo de assistência ao desenvolvimento, independentemente das políticas em curso nos países receptores. Hoje, não há mais espaço para esse tipo de postura. Nem existe mais a convicção de que algum país possa ter força política relevante no debate econômico internacional sem manter a casa em ordem, sem gerir a sua economia interna RBCE - 117 9 O Itamaraty, frequentemente, defende operações de financiamento a projetos de empresas brasileiras no exterior que não encontram apoio no Tesouro com padrões de racionalidade internacionalmente aceitáveis. Em outras palavras, se mantivermos a solidez fiscal, uma política monetária sólida voltada para o controle da inflação, contas externas equilibradas e políticas sociais eficientes, teremos mais chances de exercer alguma influência nos debates sobre a economia internacional. Caso contrário, as chances se reduzirão ou se tornarão nulas. A formação de consensos internos sobre os temas econômicos externos nunca foi simples no Brasil. Temos Ministérios vocacionados para defender interesses setoriais (o Ministério da Agricultura, o MDIC) que não necessariamente coincidem nos temas comerciais. Ao contrário: frequentemente divergem sobre os rumos a seguir. Ao mesmo tempo, temos Ministérios sem um viés definido (a Fazenda, o Itamaraty), mas cujas análises contêm ênfases próprias. O Itamaraty, frequentemente, defende operações de financiamento a projetos de empresas brasileiras no exterior que não encontram apoio no Tesouro, cujo dever de ofício é defender o rigor fiscal. No campo comercial, a criação da CAMEX, no Governo FHC, foi um bom passo para ampliar a construção de consensos. Mas o consenso frequentemente é o mínimo denominador. Ele inibe naturalmente políticas mais agressivas e audaciosas. Isso ajuda a explicar por 10 RBCE - 117 que razão as mudanças de Governo no Brasil não refletiram mudanças das posições sobre uma série de temas. Nossa política comercial sempre deu ênfase ao multilateralismo e desdenhou acordos bilaterais de livre comércio, mesmo quando esses acordos passaram a ganhar força no mundo. É mais fácil fixar um teto tarifário a ser praticado pelo Brasil no contexto da OMC do que construir consensos internos em torno da ideia de zerar tarifas no contexto de um acordo de livre comércio. Sempre defendemos o aprofundamento do Mercosul, mesmo quando os rumos da União Aduaneira não ofereciam qualquer perspectiva para tal aprofundamento. Não faltaram autoridades a declarar que a solução para os problemas do Mercosul é mais Mercosul, ainda quando todos reconhecessem que a sobrevivência do bloco estava vinculada a uma estrutura tarifária cheia de exceções e voltada para atender às expectativas de cada um dos integrantes, não do grupo. Nossas posições no debate financeiro multilateral sempre foram traçadas exclusivamente pelo Ministério da Fazenda. Tiveram uma mudança de ênfase na passagem do Governo FHC para as Administrações do PT — antes disso, o problema da dívida inviabilizava qualquer posição substantiva brasileira — mas o fato é que o mundo tem vivido crises sucessivas desde que estabilizamos a economia e as posições que assumimos estão diretamente vinculadas às circunstâncias de crise. Além disso, o Brasil tem reduzidas condições de opinar, com credenciais e conhecimento de causa, sobre temas como a regulação dos mercados mais avançados de capitais. Uma parte importante da função diplomática sempre foi abrir espaço para exportações e fomentar a atração de investimentos. Mas o Brasil sempre teve baixa eficiência na gestão desses dois tópicos. De um lado, porque a atração de investimentos tornou-se um tema eminentemente estadual. As tentativas federais de políticas nessa matéria foram sempre um tanto frustradas. Tem havido mais pró-atividade, recentemente, na divulgação dos investimentos de infraestrutura e das oportunidades na exploração de petróleo, mas o desempenho brasileiro ao longo do tempo tem sido pouco efetivo e algo desorganizado. Na parte comercial, tem-se tentado fazer mais, mas o fato é que o setor público tem mesmo limites na assistência que pode oferecer ao mundo empresarial. A DIPLOMACIA NO CENÁRIO ATUAL Em diversos países o processo de adaptação da diplomacia às mudanças que ocorreram nas últimas décadas foi mais lento do que se poderia esperar. Na verdade, não foi só o mundo que mudou. Mudaram as práticas de interlocução internacional: (i) criaram-se mecanismos quase informais como o G20, cujo propósito é a concertação de políticas e não a tomada de decisões; (ii) a diplomacia presidencial ganhou destaque, o que transformou os diplomatas em grandes assessores, quando antes os Presidentes sentavam-se em reuniões internacionais para fazer o que os diplomatas queriam ou apenas ler o que escreviam; (iii) multiplicou-se o volume de informações disponíveis sobre as mais diferentes realidades e, sobretudo, aumentou a velocidade de circulação das informações, em particular das informações econômicas; (iv) em vários setores, Ministros e funcionários governamentais passaram a encontrar-se regularmente, a telefonar-se com frequência, comunicarse por e-mail e, assim, trocar opiniões, forjar posições comuns sobre diferentes temas ou acertar entendimentos bilaterais. A intermediação diplomática tornou-se menos necessária. Na lógica da modernidade, não seria de todo absurdo dizer que a diplomacia deveria downsize. Não surpreenderia que algum país inovador em práticas do setor público decidisse reduzir drasticamente o seu número de embaixadas e diplomatas no exterior. Na prática, contudo, parece estar ocorrendo o oposto. Por várias razões, entre elas algumas de simples compreensão: há um bom número de países novos (os que passaram a ter personalidade jurídica própria com o desmantelamento da União Soviética, por exemplo) que estão encantados com a ideia de ter uma presença no cenário externo. Eles abrem embaixadas e esperam reciprocidade. Há países que estão aprendendo a se internacionalizar (os do Oriente Médio, por exemplo, com suas linhas aéreas e os seus fundos de investimento), os africanos estão mais vinculados à economia internacional, atraindo investimentos em mineração e agricultura e, assim, justificando embaixadas. Ao lado disso, com o aumento do turismo e de viajantes de toda parte para toda parte, as demandas consulares ampliaram-se, o que passou a dar mais trabalho às Chancelarias, justificar a abertura de representações no exterior e fez crescer o viés da atividade diplomática como prestadora de serviço aos cidadãos. Ao mesmo tempo, a multiplicação das redes sociais em diferentes línguas e com diferentes perfis levou os diplomatas a desbravar uma nova área em que normalmente operavam pouco: a da comunicação. O grande ativo da diplomacia está nos recursos humanos. E o problema está em formar recursos com uma visão prospectiva e uma perspectiva contemporânea, compatível com os desafios que a organização mundial e a temática dos novos debates apresentam aos diplomatas. RBCE - 117 11 Nossos vínculos com o mundo oriental e com a China, em particular, obviamente se ampliarão Diplomacia no Brasil: algumas sugestões O mais óbvio dos desafios no mundo atual é a compreensão do mundo asiático. Diversos países não se prepararam para a emergência dos asiáticos. O Brasil foi um deles e a corrida contra o tempo perdido não tem atalhos. Formar profissionais especializados na realidade chinesa, por exemplo, com domínio da língua, compreensão da cultura e das diversas particularidades da realidade não é esforço de resultados rápidos. É excessivo, contudo, acreditar que o peso de nossa prioridade diplomática penderá decisivamente para o Oriente. Nossos vínculos com o mundo oriental e com a China, em particular, obviamente se ampliarão. Estão aí o consórcio para a exploração do campo de Libra, o banco dos BRICS, as vendas de commodities para mostrar que as relações terão um nível crescente de complexidade. Mas a densidade do envolvimento econômicocomercial brasileiro com a China e com o Leste asiático, em geral, terá limites dados pela própria economia brasileira. O mercado é grande demais para a estrutura de produção da expressiva maioria de nossas empresas. Alcançá-lo com itens que não sejam “commodities”, onde o Brasil acumulou um grau de eficiência elevado, requer uma musculatura que não temos no momento e cujo desenvolvimento envolve investimento pesado, uma 12 RBCE - 117 noção avançada de branding, conhecimento das práticas locais. A China é um país altamente segmentado, onde a cultura local tem peso forte. Chegar aos seus consumidores — pessoas ou empresas — de forma significativa é um esforço considerável. Além disso, a China ainda está em processo acelerado de mudanças. A nova fronteira chinesa neste momento é o Oeste, onde muitas empresas estrangeiras já estão instaladas e um número grande delas está planejando a abertura de novas unidades de representação ou de produção. Acompanhar tais mudanças requer um esforço no qual muitas empresas brasileiras preferem não apostar. Não é simples definir o instrumental necessário para que a diplomacia possa enfrentar os desafios econômicos futuros. Na realidade, talvez até seja mais lógico falar não apenas numa diplomacia preparada, mas num setor público eficiente no seu conjunto, mais hábil a lidar com os temas externos. Mas eis algumas sugestões: 1. A diplomacia precisa dispor de um grupo de profissionais com conhecimento aprofundado do setor privado brasileiro. Os diplomatas, em geral, são generalistas. Mesmo os que operam na área de promoção comercial veem seu papel como o de abrir portas: organizar seminários, encontros empresariais. Estão corretos. Mas num país como o Brasil, onde a maioria das empresas foca a sua atenção exclusivamente no mercado interno, é preciso não só abrir portas, mas empurrar o empresário para cruzá-las. O MDIC e a Camex têm programas regulares de educação do empresário para exportar. Os traders, tradicionalmente, fizeram a intermediação comercial. Já foram bem mais ativos no passado; seu papel ainda tem relevância. Mas basta olhar os indicadores básicos de nosso desempenho exportador e de internacionalização das empresas para entender que estamos aquém de onde deveríamos estar. Há explicações econômicas para isso, e atribuir o resultado do desempenho pouco ativo das empresas no setor externo à ineficiências da diplomacia seria absurdo. De um modo geral, contudo, parece claro que a diplomacia precisa revisitar as estratégias de sua atuação na promoção comercial, penetrar mais na teia do setor privado, ajudálo a compreender o exterior e ser mais eficiente na internacionalização de vendas e investimentos das empresas brasileiras. 2. A diplomacia deveria melhorar a sua interlocução no debate econômico interno. A informação econômica que a diplomacia tem condições de produzir poderia ser veiculada mais livremente. É verdade que hoje há muita produção de informação de qualidade sobre a economia externa e o desempenho individual dos países. Os bancos privados, por exemplo, produzem uma quantidade extraordinária de relatórios, inclusive sobre economias que antes não eram acompanhadas regularmente por eles, como as asiáticas. Os think tanks, os órgãos de pesquisa e reflexão econômica também produzem muita informação econômica. A diplomacia poderia oferecer mais livremente as suas informações, trazer à tona os elementos de análise ao seu alcance, que são muitos. Há um constrangimento natural para isso, é verdade. Não cabe a um órgão oficial brasileiro fazer publicamente avaliações de outros países. Mas há muita informação que não gera problemas. 3. Os serviços que as representações diplomáticas são capazes de prover aos segmentos produtivos da economia no exterior poderiam ser remunerados. Muitos países atualmente — França e Estados Unidos, por exemplo — cobram regularmente por tais serviços. A cobrança e a competição com provedores privados dos mesmos serviços podem ser saudáveis indutores de eficiência e qualidade. A alternativa seria a diplomacia retirar-se do auxílio direto a empresários, federações, às múltiplas associações de entidades privadas que existem no país. Mas isso seria retirar a diplomacia de uma atividade onde ela pode ter valor adicionado, o que poderia ser um equívoco. 4. Conhecer o marco regulatório de diferentes setores, as restrições regulatórias ao comércio e investimentos será crescentemente relevante para a diplomacia. Com isso, será inevitável incorporar ao serviço diplomático profissionais especializados (economistas, profissionais de comunicação e outros) que, se não necessariamente exercerão o trabalho diplomático strictu sensu, poderão prover inputs ao exercício da atividade diplomática. Em outras palavras, um bom número de embaixadas terá que dispor de profissionais com conhecimento aprofundado dos meandros regulatórios de setores como agricultura e pecuária, ciência e tecnologia, educação. Pouco a pouco, as embaixadas brasileiras já estão abrigando os adidos oriundos de outros Ministérios. Isso é um bom sinal. 5. Há que investir mais em imagem, outreach, sobretudo no cenário asiático, onde o Brasil é pouco conhecido e há a percepção de que não somos capazes de alcançar padrões de produção elevados. Branding e trabalho de imagem de países, produtos e setores será essencial no futuro. Na China, há branding para tudo: o algodão americano, o peixe do Ártico, o salmão norueguês, e assim por diante. Os canais de TV abundam em publicidade e slogans para promover países e suas regiões, atrair RBCE - 117 13 A nova fronteira — Ásia — será nosso maior desafio. Porém, ainda é cedo para alocarmos um bom volume de nossos recursos humanos no continente asiático investimentos, valorizar os produtos, influenciar o consumidor e as autoridades. 6. Será mais e mais importante, no futuro, investir na obtenção de informações, na formação de bases de dados, em software especializado para cruzar dados e informações que possam enriquecer observação econômica e instruir a formulação de estratégias. 7. O sistema de comunicações terá que ter maior horizontalidade, ou seja, representações diplomáticas numa mesma área geográfica terão que trabalhar em contato mais direto, interagir mais frequentemente. Uma alternativa pode ser reduzir embaixadas e formar hubs em algumas regiões, concentrando diplomatas para atuar em diversos países. A forma tradicional de comunicação da diplomacia — textos — terá que ser agilizada com o uso mais regular de teleconferências e encontros a distância. A Chancelaria brasileira vale-se muito pouco de meios mais modernos de comunicação. À parte as orientações de ordem essencialmente prática, a diplomacia, como qualquer outra atividade conta com recursos limitados. A eficiência na alocação dos recursos humanos dará a medida dos resultados que podem ser alcançados. As prioridades brasileiras não se alterarão radicalmente nas 14 RBCE - 117 próximas décadas. Os países do nosso entorno (o Mercosul, a América Latina) serão o nosso foco máximo de atenção, assim como a relação com os Estados Unidos e a Europa será chave. É nessas áreas onde estará o maior contingente de nossos diplomatas. O universalismo nos acompanhará, ou seja, teremos vínculos econômicos de maior ou menor dimensão com países nas mais diversas regiões do globo, mas sempre faltará gente para alocar em toda parte. A nova fronteira — Ásia — será nosso maior desafio. Porém, ainda é cedo para alocarmos um bom volume de nossos recursos humanos no continente asiático. Primeiro, porque a relação com a Ásia está em construção. Já ganhou um grau elevado de relevância com o fato de a China ter se tornado o nosso primeiro parceiro comercial e dela se originar o maior fluxo de investimentos diretos na economia brasileira. Mas a densidade financeira é pequena, o comércio tem padrões baixos de envolvimento de empresas, o diálogo político ainda é relativamente distante. À parte o dilema de onde concentrar recursos escassos, será necessário estabelecer uma relação mais direta entre a alocação de recursos e resultados. Como dito anteriormente, é inevitável concentrar recursos humanos e energias no nosso entorno, particularmente no Mercosul. Mas, à medida que o Mercosul avance pouco, volte frequentemente aos mesmos temas (as exceções à TEC, a ausência de tarifa zero nas trocas internas entre os membros da União aduaneira), perdemos tempo que poderia ser investido em oportunidades que se apresentam em outros contextos. A tendência brasileira sempre foi conviver com a ineficiência de resultados como se isso não tivesse impacto sobre a capacidade de explorar oportunidades que se abrem no cenário externo. É um equívoco. Se tivéssemos empregado todo esforço que empregamos para bombardear a Alca em ações concretas de penetração em novos mercados, talvez tivéssemos obtido bons ganhos para nossas exportações. Com a velocidade que os temas avançarão no mundo nas próximas décadas, novas oportunidades se abrirão. As perdas derivadas de uma alocação ineficiente de recursos poderão ser maiores. A noção de eficiência não está usualmente implícita na atividade diplomática. Mas é um tanto inevitável incorporá-la de alguma maneira, se imaginarmos que os desafios e oportunidades que se apresentarão nos próximos vinte ou trinta anos serão consideravelmente maiores do que os atuais. Outra consideração: o Brasil sempre tendeu a ter uma atitude de cooperação sem exigências com vizinhos e países menores. Sempre buscamos ampliar empréstimos a vários desses países onde nossas empresas construtoras encontram mercado para seus serviços, sem nunca discutir com eles a qualidade de suas políticas econômicas, os elementos que, em última análise, garantem que os empréstimos serão pagos. As reduzidas tentativas de introduzir o tema da disciplina macroeconômica no Mercosul nunca tiveram verdadeiro peso. Talvez tenhamos agido assim porque nunca tivemos segurança de que as políticas macro ajustadas vieram para ficar na nossa própria realidade. Como vendê-las aos nossos parceiros? A diplomacia sempre procurou desvincular-se das políticas econômicas em curso no país. Não poderá ser assim para sempre. Se aumentarmos a densidade de nosso relacionamento econômico-comercial com países menores, será inevitável passar a discutir com eles questões vinculadas à gestão econômica e esperar deles alguma garantia de solidez em suas políticas internas. a alocação dos seus recursos humanos, abrir-se a profissionais especializados, modernizar-se tecnologicamente e transformar constantemente os métodos de atuação. A diplomacia será, em larga medida, refém das políticas internas, da qualidade dos governos, da seriedade dos projetos nacionais. Se a realidade interna faltar, por mais que o trabalho diplomático busque ser competente, não realizará muito. Em suma, é menos o método e mais a substância o que contará de fato. A diplomacia não pode ser outra coisa senão a projeção do país. Para se viabilizar no futuro, o Brasil terá que rever o pacto político — o atual parece estar se esgotando mais rapidamente do que se imaginava —, manter o equilíbrio econômico, aumentar o grau de abertura à realidade externa e contar com um setor privado que esteja disposto a avançar no cenário externo. Se tudo isso ocorrer de uma forma razoável, será bem mais fácil conduzir a atividade diplomática. ■ REFLEXÕES FINAIS O mundo do futuro será mais competitivo, a realidade se transformará com frequência, a economia internacional viverá altos e baixos sucessivos e nela se operarão transformações abruptas e rápidas. A diplomacia econômica terá que se adaptar a isso, renovar-se com velocidade — o que é sempre difícil no setor público —, rever prioridades com frequência, revisar regularmente RBCE - 117 15