A regulação biotecnológica do sofrimento e de estados de bem

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A regulação biotecnológica do sofrimento e de estados de bem-estar: o papel do tratamento
farmacológico na percepção dos psiquiatras
Autoras: Eliane Maria Monteiro da Fonte (Universidade Federal de Pernambuco, Brasil)
Shirley Alves dos Santos (Universidade de Pernambuco, Brasil)
Resumo
A psiquiatria vem passando por uma verdadeira revolução, impulsionada por, pelo menos, quatro fatores: o
surgimento dos psicofármacos, nos anos de 1950; a mudança nos paradigmas dos diagnósticos psiquiátricos,
realizada em 1980 com a implantação do DSM III; o desenvolvimento das neurociências; e a superação do
asilo como espaço privilegiado de prática psiquiátrica. Considerando o esgarçamento paulatino da fronteira
entre tratamento e aperfeiçoamento, este trabalho investiga a construção da ideia de uma psiquiatria voltada
não apenas para o tratamento de transtornos, mas também para o alívio do sofrimento intrínseco à vida
cotidiana, bem como para a produção, por meio da regulação biotecnológica (uso de psicofármacos), de estados
de bem-estar e felicidade. A análise tem como base empírica os resultados de uma pesquisa exploratória, cuja
técnica utilizada para a coleta dos dados foi a aplicação de entrevistas semiestruturadas a uma amostra não
probabilística de psiquiatras que atuam na cidade de Recife.
Palavras–chave: Felicidade; Sofrimento Psíquico, Psiquiatria; Psicofármacos
Introdução
“A ideia de alterar estados da consciência por meio da manipulação química cerebral pode soar
moderna, mas, o sonho vem de longe”, conforme é afirmado no ensaio “A pílula da felicidade instantânea”,
contido no livro de autoria de Gianneti (2002: 143-153), intitulado “Felicidade: diálogos sobre o bem-estar na
civilização”. De acordo com o texto, a farmacopeia psiquiátrica remonta ao ambiente ancestral, desde quando
se fantasia e se experimenta em torno de facilitadores químicos e soluções mágicas para vencer o desafio de
afastar o sofrimento e ser feliz. Os avanços recentes no campo da bioquímica, da neurociência e da denominada
“neurotecnologia”, pressagiam a chegada do dia em que os sonhos do passado poderão se tornar realidade. A
tecnologia farmacêutica de drogas lícitas e ilícitas seria o braço psiquiátrico do projeto iluminista da conquista
da felicidade por meio da crescente dominação da natureza pelo homem. A finalidade das drogas “ofensivas”
(life style, no jargão farmacêutico) que vem empolgando os mercados, não é fazer com que o paciente volte à
normalidade ou se sinta menos mal (como ocorria com os remédios “defensivos” voltados para as deficiências
ou anomalias), mas sim levar o usuário a ficar “mais do que bem”, isto é, ir além de sua condição normal.
Considerando o esgarçamento paulatino da fronteira entre tratamento e aperfeiçoamento, este trabalho
investiga a construção da ideia de uma psiquiatria voltada não apenas para o tratamento de transtornos, mas
também para o alívio do sofrimento intrínseco à vida cotidiana, bem como para a produção, por meio da
regulação biotecnológica (uso de psicofármacos), de estados de bem-estar e felicidade. Através de um estudo
empírico, busca-se investigar qual o significado atribuído por psiquiatras à terapia com psicofármacos e fazer
uma reflexão sobre o uso dos psicofármacos como artefato auxiliar para o alcance da felicidade de seus
pacientes. Também foi feita uma comparação da visão que esses profissionais possuem, e em função da
organização de saúde nas quais estão inseridos, a fim de entender como o processo de trabalho
institucionalizado nos serviços de saúde orienta a percepção sobre a ideia de felicidade associada ou não ao
uso de psicofármacos.
Esta comunicação está estruturada da seguinte maneira: na primeira seção é realizada uma breve revisão
da literatura e discussão conceitual sobre sofrimento, bem estar subjetivo e felicidade, psiquiatria e
psicofármacos; na segunda seção é descrita a metodologia do estudo e apresentada uma caracterização dos
psiquiatras entrevistados e de suas trajetórias profissionais; a seguir, na terceira seção, são discutidos os
resultados da análise das entrevistas com os psiquiatras; e, por fim, a título de conclusão, é apresentada uma
síntese dos principais resultados do estudo.
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1. O imperativo da felicidade e a revolução psiquiátrica
O conceito de felicidade é tão indeterminado que, embora todo mundo queira alcançar a felicidade,
nunca se consegue dizer de forma definitiva e coerente o que é que realmente se deseja e quer. Há um século,
Freud reconheceu que a felicidade é algo essencialmente subjetivo, mas, a felicidade pode ser estudada com
bons frutos desde várias perspectivas culturais e históricas diferentes. Talvez a felicidade seja, tenha sido e será
sempre o objetivo final da humanidade, em todas as épocas e lugares. No ocidente a felicidade funcionou como
uma ideia que, por razões específicas, exerceu uma influência poderosa sobre a imaginação dos povos. E as
representações do termo e do conceito se desenvolveram ao longo do tempo, as mudanças foram radicais e a
“felicidade” de ontem carrega somente uma vaga semelhança com a felicidade de hoje, mas, ainda assim,
existem conexões. (MCMAHON, 2006).
Foi no mundo antigo da Grécia clássica que teve origem o conceito de felicidade, na Atenas democrática
que Sócrates começou a analisar em detalhe aquilo que causaria a “insônia e os trabalhosos esforços” de todos
os filósofos subsequentes, a questão das condições necessárias à felicidade. Ele compartilhava da crença de
que os seres humanos, através da conduta racional, podem exercer o controle sobre suas vidas, contudo, sua
maior conquista foi aplicar esse mesmo espírito à busca da felicidade. Ao fazê-lo criou um desejo que fascinaria
as mentes clássicas por séculos, e que persegue os seres humanos até então. Todavia, para os gregos a felicidade
não é hedonismo, é a caracterização de uma vida inteira, e só pode ser determinada com a morte. Considerarse feliz antes disso é prematuro, e provavelmente uma ilusão, já que o mundo é cruel e imprevisível, comandado
por forças que estão além de nosso controle. Um capricho dos deuses, o dom de boa fortuna, a determinação
do destino: a felicidade na aurora da história ocidental era principalmente uma questão de sorte (MCMAHON,
2006).
A felicidade na tradição judaico-cristã originou-se numa metáfora da narrativa do Êxodo, no qual um
povo se formou ao caminho para sua libertação coletiva, seguindo Moisés e a lei do Senhor, deixando para trás
o cativeiro do Egito e tendo como horizonte a felicidade da terra prometida, como também concebida em
termos materiais. Então, a libertação coletiva do povo escolhido por Deus era o presságio de uma inovação
fundamental na concepção da felicidade humana. Segundo Mcmahon (2006) quando o povo judaico foi
expulso da Terra Prometida, vozes proféticas começaram a prover a chegada de um novo líder, Jesus de Nazaré,
para revelar uma nova verdade, um novo reino. E sua “Boa-Nova” era a promessa da redenção através do
sofrimento e, pelo sofrimento, a passagem para uma felicidade eterna, que foi central para o desenvolvimento
da fé. Santo Agostinho diz que o cristianismo tornou-se o caminho para a felicidade e o meio para explicar a
futilidade de todas as buscas terrenas. Já São Tomás de Aquino coloca que a felicidade verdadeira é impossível
em vida e é só no céu que a alma conhecerá o êxtase de seu descanso final, mas podendo encontrar a felicidade
imperfeita na terra, enquanto seguimos na direção da felicidade perfeita do paraíso.
O iluminismo alterou fundamentalmente essas concepções, apresentando a felicidade como algo a que
todo ser humano poderia aspirar nesta vida; não sendo um presente de Deus, nem um golpe do destino, ou uma
recompensa por um comportamento excepcional, mas sim um direito humano natural atingível, em tese, por
qualquer homem, mulher ou criança. Na verdade, quando os seres humanos eram infelizes, argumentavam os
pensadores do Iluminismo, alguma coisa devia estar errada ou com suas crenças, ou com sua forma de governo,
ou com suas condições de vida, ou com seus costumes (MCMAHON, 2006).
O direito à felicidade passou a poder se inscrever na cena contemporânea ao lado de outros direitos,
como o direito à saúde, por exemplo. Se a felicidade se transformou num imperativo efetivamente
irrepreensível, isso se deve indubitavelmente à democratização do espaço social. A Revolução Francesa foi
efetivamente o ponto de chegada e a realização plena deste projeto, na medida em que afirmou em ato que a
ordem social poderia ser refundada e erguida sobre novos alicerces, de maneira a promover o dito ideário da
felicidade. O povo passou assim a fundar a soberania política, podendo então delinear os destinos da nação. A
igualdade do direito dos cidadãos, associada ao exercício pleno da liberdade por estes e da fraternidade entre
estes, delineava o campo formal para a busca da felicidade para todos os cidadãos (BIRMAN, 2010). Desde
então, o projeto de construção da felicidade começou a se caracterizar pelo culto do indivíduo, que passou a
ser considerado como valor, em si e para si. Além disso, o liberalismo nos registros políticos e econômicos,
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que se disseminou no século XIX, foi a contrapartida do individualismo triunfante e do projeto de felicidade
que este condensava. Birmam (2010) afirma que cada indivíduo passou a se lançar na busca desesperada pela
sobrevivência, nascendo a ideia de autonomia como valor central nesta concepção de felicidade, bem como o
cultivo da qualidade de vida e da autoestima, delineando o fundamento moral do projeto de produção da
felicidade na contemporaneidade.
A felicidade, que era uma aspiração, tornou-se seu dever. Aparentemente hedonista, esta sociedade
acaba impondo aos sujeitos um esforço incessante para se manter à altura de expectativas de performances
física, mental e social que não conseguem atender. O discurso da ciência, e o da biologia, em especial, aparece
como fonte possível de orientação. Além do consumo e posse de objetos e insígnias de conquistas objetivas,
surge uma noção da boa vida que se mede pela fruição de um bem estar superlativo, um sentir-se “mais do que
bem”, fruto da competência na gestão da vida e no uso dos dispositivos de controle e eliminação do sofrimento
e otimização das potencialidades vitais (BEZERRA JR., 2010). Com este conceito de felicidade, que prevalece
na contemporaneidade, o indivíduo torna-se um gestor de si e a felicidade um dever que está atrelado aos
valores modernos, como exemplo, obter uma boa performance física e mental, ter um padrão de consumo que
supra as suas “necessidades”, entre outros. O desfecho desse fenômeno acaba gerando um novo tipo de
infelicidade, que é a possível culpa e a dor que podemos sentir por não conseguirmos ser felizes nesta cultura
que dita tais normas da felicidade. E, uma vez, que o sofrimento já não é reconhecido socialmente como algo
positivo, a busca pela analgesia no campo da psiquiatria pode ser interpretado como forma de lidar com o
sofrimento psíquico, caracterizando o que tem sido denominado como a “patologização do sofrimento” e,
possivelmente, com a consequente “banalização dos psicofármacos”.
No fim do século XIX, quando a dor estava emancipada de todo referencial metafísico, ocorreu uma
grande virada da medicina ocidental rumo à analgesia, que se insere dentro de uma reavaliação ideológica da
dor e do sofrimento, a qual se reflete na cultura e em todas as instituições contemporâneas. A dor adquiriu
lugar central na angústia do nosso tempo, o progresso na nossa civilização torna-se sinônimo de redução de
sofrimento, mediante a tentativa de eliminação ou sedação de dores e sintomas e controle dos riscos e doenças
crônicas (TESSER, 2006). Os avanços dos psicofármacos que se seguem à síntese e uso inovador da
clorpromazina não tardam. Ainda na década de 1950, são sintetizados os seguintes psicofármacos:
meprobamato (ansiolítico), reserprina (usado em quadros maníacos), do neuroléptico haloperidol e do
ansiolítico diazepam. As décadas de 1960 e 1970 viram surgir o valproato e carbamazepina, para o tratamento
do transtorno do humor bipolar, a clomipramina, para o tratamento do transtorno obsessivo-compulsivo. Na
década de 1980, surgem a fluoxetina, antidepressivo, e a clozapine, para o tratamento da esquizofrenia. Ao
todo, contamos hoje com uma centena de fármacos que tratam desde a esquizofrenia, depressão, transtorno
bipolar, até a síndrome do pânico. E um acontecimento importante já pode ser associado a esses avanços; sem
eles, o que se convencionou chamar de Reforma Psiquiátrica dificilmente teria sido viabilizada (FERREIRA,
2009).
Os medicamentos que surgem a partir da década de 1990, todavia, são muito mais eficientes e
específicos, apresentando menor número de efeitos colaterais, além de gravidade reduzida, quando esses efeitos
ocorrem. O psiquiatra já não tem que escolher um entre dois grandes males e esse é um passo importante para
que pacientes neuróticos possam também ser tratados com antidepressivos, ansiolíticos, etc., dando-se uma
enorme passo na desestigmatização do medicamento psicoativo e a ampliação de seu consumo (WHO, 2004).
A própria prática psiquiátrica se adequou às oportunidades abertas por medicamentos mais eficazes. O
fortalecimento de uma vertente mais biológica na psiquiatria americana, que estivera sob a influência da
psicanálise por décadas (LAKOFF, 2005; AGUIAR, 2004), só foi possível a partir da constatação dessa
eficácia.
Neste cenário, o papel exercido pela psiquiatria passou por verdadeira revolução, impulsionado por
pelo menos quatro fatores: o surgimento dos psicofármacos, nos anos de 1950; a mudança nos paradigmas na
organização dos diagnósticos psiquiátricos, realizada em 1980 com a implantação do DSM III (Diagnostic and
Statistical Manual of Mental Disorders); o desenvolvimento das neurociências; e a superação do asilo como
lócus privilegiado de prática psiquiátrica. É com este novo perfil que o psiquiatra participa, a seu modo, dos
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processos de elaboração e agenciamento das novas formas de busca da felicidade (BEZERRA JR., 2010). Três
movimentos presentes na psiquiatria nas últimas décadas ajudam a compreender a maneira como ela participa
do cenário atual, que são: 1) expansão dos diagnósticos; 2) o progressivo rebaixamento do limiar de
diferenciação entre normalidade e patologia, fazendo com um número cada vez maior de indivíduos se torne
elegível para o diagnóstico de algum transtorno conhecido; 3) o borramento paulatino da fronteira entre
tratamento e aperfeiçoamento, que vem consolidando a ideia de uma psiquiatria voltada não apenas para o
tratamento de transtornos, mas também para o alívio do sofrimento inerente à vida cotidiana e aos limites
naturais da vida, bem como para a produção, por meio da regulação biotecnológica, de estados de bem-estar e
felicidade (BEZERRA JR., 2010). O anseio da felicidade, que já não conta mais tanto as referências oferecidas
pela ética sacrificial das religiões ou pelos ideais de ação política na vida pública, vê surgir, num horizonte que
se expande sem cessar, a intervenção e a regulação biotecnológicas como promessas cada vez mais atraentes.
2. Metodologia de pesquisa
Do ponto de vista metodológico, este trabalho se constituiu de uma pesquisa qualitativa e exploratória,
cuja técnica utilizada para a coleta dos dados foi a aplicação de entrevistas semiestruturadas a uma amostra
não probabilística de seis psiquiatras, localizados na cidade de Recife. As entrevistas buscaram fornecer
elementos sobre o conteúdo de temáticas que serão aqui analisadas, tais como, as percepções e concepções dos
psiquiatras sobre felicidade, sofrimento e as bases do tratamento com o uso de psicofármacos. Para a realização
das entrevistas foi utilizado um roteiro semiestruturado e gravadores de áudio. Houve a necessidade de
transcrição das falas dos entrevistados para proceder a análise de conteúdo temática dos dados, tal como
proposta por Bardin (1998).
Para a seleção da amostra foi utilizada a técnica metodológica “Bola de Neve”, que utiliza uma cadeia
de referências, uma espécie de rede social. Essa técnica é uma forma de amostra utilizada em pesquisas sociais
onde os participantes iniciais indicam novos participantes, que por sua vez indicam outros novos participantes
e assim sucessivamente, até que seja alcançado o objetivo proposto (WHA, 1994). Desta maneira, o primeiro
psiquiatra que conseguimos entrevistar nos indicou seis outros psiquiatras que fizemos contanto e conseguimos
entrevistar três deles, que nos indicaram mais seis e conseguimos entrevistar dois deles, chegando a um total
de seis entrevistas realizadas e analisadas para a concretização desta pesquisa. Todos os entrevistados executam
suas atividades profissionais e residem na cidade de Recife. A seguir será apresentada uma caracterização dos
psiquiatras entrevistado com uma breve descrição de suas trajetórias profissionais:
Psiquiatra 1 – Com idade aproximada de 50 anos, do sexo masculino, médico psiquiatra, mestre e
doutor em Sociologia, hoje professor universitário. Decidiu fazer medicina para corresponder a um desejo da
sua avó. Sempre teve interesse nas disciplinas de psicologia, biologia e filosofia, então o tema da loucura era
um tema que o interessava, por isso foi fazer medicina já com a ideia de fazer psiquiatria, e desde o primeiro
ano já dava plantão em psiquiatria. Não considera ter uma vocação, mas sempre foi regido pelas circunstâncias,
e desde o ano 2000 que não tem pacientes e não atua numa prática clínica, por isso considera-se um psiquiatra
convertido à academia.
Psiquiatra 2 – Com idade aproximada de 60 anos, do sexo masculino, médico psiquiatra, mestre e
doutor em Psicologia, atende em hospital e no seu consultório particular, também é professor universitário.
Decidiu fazer medicina por alegar que, na sua época, tinham poucas escolhas e porque simpatizava com a
disciplina das ciências biológicas, não se considera um apaixonado pela profissão médica, mas o que chamou
a sua maior atenção foram as questões ligadas aos transtornos mentais, e por isso se encantou pela psiquiatria.
Psiquiatra 3 – Com idade aproximada de 32 anos, do sexo masculino, médico psiquiatra, atende em
hospital e no seu consultório particular. Escolheu ser médico com intuito de ajudar o próximo, e na medicina
escolheu a psiquiatria porque sempre teve a curiosidade de compreender os diversos comportamentos do ser
humano, e por isso considera-se um psiquiatra feliz.
Psiquiatra 4 – Com idade aproximada de 40 anos, do sexo masculino, médico psiquiatra, mestre e
doutorando em Psiquiatria, atende em hospital e no seu consultório particular, e coordena a residência médica.
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Sua decisão de ser médico deu-se pela motivação de ter outros médicos na família, e já entrou na medicina
pensando em fazer psiquiatria.
Psiquiatra 5 – Com idade aproximada de 27 anos, do sexo masculino, médico psiquiatra, atende em
hospital. Foi um dilema escolher qual a especialidade e só faria depois de concluir a medicina. Acredita que
fez a escolha da psiquiatria por questões que envolviam seus familiares e por identificação profissional, que
descobriu ainda na faculdade, com os transtornos psicológicos, psicanálise, questões sociais, o comportamento
humano e o pensamento humano.
Psiquiatra 6 – Com idade aproximada de 40 anos, do sexo feminino, médica psiquiatra e psicanalista,
atende em hospital e no consultório particular. Sempre gostou das disciplinas de ciências e biologia, por isso
nunca houve dúvida que queria atuar na área da saúde e em medicina. Escolheu psiquiatria porque foi a
disciplina que mais gostou na faculdade.
3. Os resultados da análise das entrevistas
Os psiquiatras relatam que o sofrimento no exercício da sua profissão é algo essencialmente recorrente,
por isso, falam o significado que tem para cada um e como lidam com ele no cotidiano. O psiquiatra 1 explica
que a sua reação quando encontra-se diante de uma pessoa que sofre é fazê-la não sofrer. Ele atribuiu que essa
é uma atitude típica de um psiquiatra, ser intolerante a dor como em toda a medicina, desta maneira, vai sempre
tentar combater, eliminar, minimizar a dor, logo o sofrimento. Para isso, vai utilizar todo o repertório de
técnicas, seja psicoterápica ou medicamentosa. Ressalta que, dependendo da linha teórica do profissional, será
sempre empreendida uma atitude de combate a dor ou uma atitude de aprendizado à intolerância com a dor.
Especialmente no caso do psiquiatra 1, que considera-se um homem tipicamente contemporâneo e
questiona-se até que ponto sabe trabalhar a sua própria angústia, a sua própria dor. Neste sentido, este
profissional fez a seguinte reflexão:
- “Geralmente pensar na felicidade hoje em dia é pensar numa situação de sofrimento porque a gente
pensa em felicidade quando está numa situação de sofrimento. Como sair do sofrimento? Esse é um
reflexo contemporâneo que para pensar a felicidade teria que sair do sofrimento e não utilizar o
sofrimento para buscar a felicidade, como ocorre, por exemplo, na tradição cristã”.
O psiquiatra 2, antes de qualquer coisa, reconhece que no exercício da sua profissão é muito difícil
lidar com o sofrimento dos outros e que o cotidiano da clínica psiquiátrica é muito duro, porque é lidar com
um sofrimento avassalador que é o sofrimento da doença mental. E afirma que um psiquiatra ou psicanalista
que lida com esse sofrimento vai ter que suportar e procurar utilizar um instrumento fundamental no exercício
da sua profissão que é a sensibilidade, para conseguir ser um bom profissional. Para complementar a reflexão
colocada acima, o psiquiatra 3 explana que o profissional precisa sofrer pelo paciente, mas não com o paciente,
que significa compreender o sofrimento do outro, mas não entrar no sofrimento do outro, porém procurar
entender esse sofrimento. Afirma ainda que é necessário procurar separar e não levar esses sofrimentos para a
vida pessoal, o que, embora seja difícil, acredita que é possível. E o melhor de entender esse sofrimento e
procurar intervir é quando se consegue alguma melhora através do tratamento, “isso é revigorante e nos move
e nos faz querer continuar atuando na profissão”.
O psiquiatra 4 explica que quando escolheu ser psiquiatra, escolheu lidar com o sofrimento dos outros.
E, nesta medida, acredita que existe certo gosto para poder conseguir ser tolerante a dor e ser inundado de
pessoas sofrendo o dia todo. Esse gosto é o que se entende de empatia na medicina, que é exatamente o que o
psiquiatra 3 já colocou, significa compreender o sofrimento do outro, que o paciente possa perceber que existe
um profissional que está interessado no seu sofrimento. O psiquiatra 5 reitera o que foi citado e alega que, para
conseguir lidar com o sofrimento no exercício da sua profissão, é necessário fazer análise para ter aonde
descarregar as suas próprias angústias, que são geradas ao longo da sua atuação.
A psiquiatra 6 reforça a necessidade do profissional fazer a sua análise pessoal ou a terapia de uma
outra escuta para adquirir cada vez mais a capacidade de não se misturar com o sofrimento dos pacientes, senão
jamais conseguirá ajuda-lo. Porém, o profissional deve ter a sensibilidade de perceber, identificar, ter a
capacidade de se colocar no lugar do outro, mas não se misturar com o sofrimento do outro. Entretanto, acredita
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que o sofrimento do paciente muitas vezes até ajuda (o psiquiatra ou o analista) a lidar com os seus próprios
sofrimentos, mas para isso é necessário fazer um trabalho interno e ser um bom conhecedor da técnica para
evitar possíveis confusões.
Os pacientes que são atendidos nos consultórios ou nos hospitais pelos Psiquiatras apresentam um perfil
com variações de muitas e diferentes maneiras, por isso os entrevistados consideram que existe certa
complexidade para traçar o perfil dos mesmos, devido às diferenças de faixa etária, necessidades individuais,
referências culturais e sociais. Porém, eles alegam que atualmente tem crescido muito a demanda de pessoas
sofrendo com ansiedade, depressão, além de desintoxicação de álcool e drogas, situação que está
particularmente ligado aos jovens. Outro problema frequentemente apresentado pelos pacientes é a frustração,
sobretudo financeira, quando não conseguem atender aos padrões de consumo almejados. Também existem as
queixas clássicas de dificuldade de relacionamentos, de sofrimentos que trazem da infância relacionados à falta
de amor dos pais.
O Psiquiatra 3 cita que a maior demanda que recebe são de pacientes com dificuldades momentâneas,
relacionadas a perda de um parente próximo, término de um namoro ou casamento, conflitos familiares e jovens
envolvidos com drogas. Porém, os pacientes com transtorno mental são minoria nos consultórios. Afirma que
a maior dificuldade dos seus pacientes é de lidar com os problemas sociais, familiares, e relações pessoais, no
trabalho e no campo afetivo. Por isso, acredita que chega, em média, uma porcentagem de 80% dos pacientes
que atende nos consultórios com esse tipo de sofrimento.
O perfil dos usuários também varia de acordo com a instituição, pois, como o Psiquiatra 4 assinala, no
hospital é mais comum atender pacientes com transtornos mentais, como por exemplo a esquizofrenia,
pacientes mais gravemente adoecidos com transtornos psicóticos que privam os sujeitos da razão e,
eventualmente, é necessário internar. Mas, no consultório é comum atender pacientes com depressão e
ansiedade.
A partir das falas dos entrevistados, pode-se depreender que a maioria dos pacientes dos psiquiatras
entrevistados apresentam dificuldades momentâneas, chegando a ultrapassar àqueles que apresentam
transtornos mentais de média e alta complexidade. Os psiquiatras colocaram a preocupação que existe, no
exercício da profissão, em combater, eliminar e minimizar a dor, logo o sofrimento. Como já sabemos o
conceito de felicidade é um pouco indeterminado, sobretudo na atualidade pela sua fluidez e variada
compreensão do que seria para cada pessoa. Percebemos que todos os entrevistados sentiram dificuldades de
definir felicidade, seja porque ache precária sua própria definição ou porque entenda que não exista uma
definição. No entanto, todos colocaram sua percepção e compreensão sobre a felicidade a partir das suas
experiências ou mesmo visão de mundo que adquiriram ao longo do tempo.
O Psiquiatra 1, juntamente com os psiquiatras 3 e 6, concordam que a felicidade pode ser um estado
de bem-estar subjetivo duradouro. O psiquiatra 1 adverte que o problema é quando a felicidade é tida como
uma norma, estado ideal, que implica numa realização de si mesmo com a vida pessoal afetiva e profissional,
e diversas questões relativas a essa adequação é difícil e sempre tensa entre valores e vida pessoal, e ainda
afirma que:
- No mundo de hoje há uma desconexão entre virtude, ou seja, campo de valores e a vida pessoal, uma
pessoa pode ser absurdamente corrupta, imbecil, autoritária e ser feliz... Tive prazer? Já que estamos
falando do mundo contemporâneo e a questão do prazer é uma questão importante, no sentido
psicanalítico. Gozei a vida? Momentos de alegria não define felicidade. (Psiquiatra 1).
O Psiquiatra 3 atribui felicidade a ter as coisas mais simples, quem valoriza o amor e a amizade acima
dos valores materiais tende a ser mais feliz, por isso, considera que quem consegue equilibrar os aspectos da
vida material com a vida pessoal conseguirá ser feliz. A Psiquiatra 6 acredita que para ser feliz é preciso estar
bem dentro da própria pele e só assim será possível ser feliz, por isso o desconforto interno muitas vezes causa
um sentimento de infelicidade. Já, os Psiquiatras 2, 4 e 5 discordam de que felicidade seja um estado de bem
estar e alegam que:
- Felicidade... são sensações, são sentimentos são ângulos patéticos, emoções e está presente na vida de
todas as pessoas, assim como a tristeza, a angústia, e a ansiedade. Ser feliz não é um estado, porque não
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existe um estado de ser feliz. Ser feliz é apresentar, ter, usufruir momentos de felicidade, misturados com
as outras coisas da vida... com os momentos de tristeza, angústia e ansiedade (Psiquiatra 4).
- Felicidade é mais aquela coisa da sensação da felicidade, você tem alguns momentos... É simplicidade,
mas é também complexidade, é tudo... É uma sensação que sobrevoa tudo isso... (Psiquiatra 2).
Porém, todos os entrevistados confluem na compreensão de que a felicidade e o sofrimento caminham
juntos e, diante disto, obter a capacidade de transitar por esses sentimentos e realidades é importante. O
Psiquiatra 5, reflete de maneira mais evidente no seu conceito de felicidade os valores modernos vivenciados
na contemporaneidade, atribuindo que para ser feliz é necessário ter o autoconhecimento, que as escolhas de
cada indivíduo influenciam diretamente na possibilidade de ser feliz ou não, além da responsabilidade que cada
pessoa deve exercer diante as suas escolhas, remetendo a construção da autonomia que deve ser exercida e
valorizada.
O Psiquiatra 2 fala sobre a importância de encontrar um sentido na vida, que segundo Viktor Frakl1,
quando você encontra um sentido, isso lhe faz bem, mesmo no sofrimento e identifica que esse sofrimento tem
a ver com a sua vida. Existe ainda o sentido dos seus atos cotidianos e o sentido último, que é o sentido da
vida, que só vou descobrir perto de morrer, porque enquanto estamos vivos não sabemos o que pode acontecer.
Isso converge com o conceito de felicidade pensada pelos gregos que também foi colocada e defendida pelo
Psiquiatra 1:
- Os gregos colocavam que a felicidade implica a totalidade da tua vida. Você só pode ser feliz a partir
do momento que você tem uma ideia geral ou total sobre sua vida, e só vai ter no leito de morte quando
poderá olhar para trás e, enfim, fizer uma avaliação e dizer, fui feliz ou infeliz (Psiquiatra 1).
Interessante ainda é observar as colocações que foram feitas pelo Psiquiatra 2 sobre felicidade, que de
certa maneira, não foram colocadas por os outros psiquiatras:
- A felicidade é uma coisa de ordem especial, não tem nada a ver com riqueza, ou com sucesso
profissional, quebra esses parâmetros, porque existem pessoas ricas e infelizes, pessoas que tem um
êxito profissional e são infelizes, enfim, são coisas de ordem mágica... A nossa vida nunca será plena, a
fenomenologia vai dizer que há um mistério em nós, no mundo, no universo, no cosmo que ciência
humana nunca vai resolver, portanto nós não teremos posse plena de tudo. Isso faz com que demos um
sentido a tudo que fazemos (Psiquiatra 2).
Sobre a infelicidade, relacionada aos valores modernos nos dias de hoje foi feita a seguinte afirmativa:
- No sentido moderno, eu acho que a pessoa consegue se realizar. Essa adequação entre o que você tem
e o que você quer ser na vida, essa tensão entre ter e ser, é uma tensão que cria infelicidade, e é muito
difícil até do ponto de vista vocacional, você conseguir realizar o que Freud chamaria de seu ideal, o
ego, o que você gostaria de ser e ter sido, é muito fácil que nessa concepção que estou colocando você
seja infeliz... Mas eu creio que uma boa parte das pessoas não é infeliz, nem feliz. Elas são uma espécie
de meio termo, onde essa questão não é problematizada, a não ser em momentos de crise pessoal ou
geral, mas geralmente tem sentimento e vai vivendo momentos de alegria e momentos de tristeza. No
mundo de hoje a gente relaciona normalidade com felicidade... Então, foi infeliz, sofre, é anormal ou
tem um problema patológico (Psiquiatra 1).
Um fenômeno que está acontecendo na atualidade em nossa sociedade, e que todos os psiquiatras
entrevistados concordaram, é a negação da dor e, consequentemente, a busca da felicidade. Eles reconhecem
que as pessoas hoje tem mais dificuldade de lidar com a dor e por isso não conseguem aprender com o
sofrimento. Nas situações de angústia ou ansiedade tendem a reduzir essas situações a uma dor psíquica e, para
eliminar essa dor psíquica, recorrem aos psicofármacos, a medicação. Eles admitem que no passado isso não
acontecia, pois as pessoas tinham outro comportamento, como relata o Psiquiatra 2:
- Eu tenho quase 60 anos, já pude viver muita coisa, então na minha infância e início da adolescência
era o contrário do que é hoje, as pessoas não buscavam tanto a felicidade como se busca hoje. A ideia
era que, para alcançarmos algo, temos que buscar o sacrifício, então o socialmente valorizado era
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Viktor Emil Frankl foi um médico psiquiatra austríaco, fundador da escola da Logoterapia, que explora o sentido existencial do
indivíduo e a dimensão espiritual da existência.
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aquele que se sacrificava. Claro, o sacrifício tinha como objetivo final alcançar algo bom ou a felicidade,
se você quiser dizer, mas era uma vida de sacrifício e alguns momentos de felicidade ao final. Hoje, mais
ou menos, a mensagem que a sociedade dá é meio oposta: é feio sofrer, você tem que ser feliz... Antes
você tinha medo de ser feliz antes da hora, hoje as pessoas querem descaradamente ser feliz sem nenhum
sacrifício, então há uma inversão (Psiquiatra 2).
A seguir, será apresentado o que os psiquiatras pensam em relação às transformações recentes que
ocorreram no exercício de sua profissão, particularmente no que diz respeito ao tratamento do sofrimento e o
uso de psicofármacos. Os Psiquiatras 2, 4 e 6 esclarecem que não se deve tratar o sofrimento e sim a doença
ou transtorno mental. Agora, se por consequência esse transtorno ou doença mental causam algum tipo de
sofrimento, certamente a terapêutica servirá para o alívio desse sofrimento, como transparece na fala da
Psiquiatra 6, que também é psicanalista:
- Veja, eu não trato sofrimento, trato transtorno mental, sofrimento, a gente cuida. O transtorno mental
pode até causar sofrimento, mas a gente não trata sofrimento. O sofrimento tem uma abordagem
completamente diferente, não acho que o sofrimento é para ser tratado, é para ser cuidado. Agora, se o
transtorno mental traz sofrimento, a gente vai tratar o transtorno mental e não o sofrimento, o sofrimento
pode ser uma consequência do transtorno mental (Psiquiatra 6).
Os três psiquiatras mencionados enfatizam que o tratamento do transtorno ou doença mental, que pode
também aliviar algum sofrimento, não proporcionará felicidade, então não acreditam na felicidade química.
Reconhecem a importância dos psicofármacos quando bem indicados e utilizados, acreditando inclusive que
medicalização, a depender do caso, não é o elemento mais importante desse tratamento e que geralmente deve
vir acompanhado de uma psicoterapia. Mas, isso não garante a felicidade das pessoas, como é explicado abaixo:
- Não há ninguém, a não ser um psicólogo norte-americano que está começando esse trabalho sobre a
felicidade, que possa, a partir da psicologia, da psicoterapia, da psiquiatria, ou partir dos
psicofármacos, prometer a felicidade. Agora, claro, o próprio processo, quando você ajuda uma pessoa
a sair de um processo depressivo, ou pela psicoterapia ou pela psicofarmacologia, ou pela interação
dos dois, você está, de certa forma, ajudando a ampliar as possibilidades para buscar a felicidade,
porque antes nem isso ela conseguia enxergar no horizonte dela, mas quem oferece isso está mentindo
(Psiquiatra 2).
Entretanto, os Psiquiatras 1, 3 e 5 estão de acordo que uma das maiores transformações recentes no
tratamento do sofrimento psíquico é a medicalização, que está atrelada a patologização do sofrimento e
banalização dos psicofármacos acarretadas pela intolerância à dor psíquica, à angústia e à ansiedade, onde o
indivíduo sente-se impulsionado a corresponder aos valores da modernidade e por isso acreditam numa
psiquiatria que pode gerar felicidade, como está evidenciado abaixo:
- A transformação recente é a medicalização, que é baseada numa crença de que boa parte do sofrimento
tem uma localização biológica que está no cérebro, de que você modulando, controlando a química do
cérebro, você pode trazer prazer, pode retirar e eliminar ansiedade, angústia principalmente, e com isso
você pode fazer uma experiência da psiquiatria da felicidade. É uma espécie de psiquiatria parecida
com a psicologia positiva, no sentido que não deixa de ser uma psicologia da felicidade (Psiquiatra 1).
Os psiquiatras elucidam ainda que com a utilização dos psicofármacos a pessoa pode melhorar seu
desempenho profissional ou mesmo pessoal, que há um desdobramento na realização das suas atividades e que,
de acordo com o que já vimos, essa é uma das questões fundamentais para a felicidade. Para que uma pessoa
sinta-se satisfeita precisa de um corpo saudável, com um desempenho satisfatório e com uma boa performance.
Além de que, com a biotecnologia no campo da saúde, o papel das medicações se tornou uma base nessa
procura da felicidade diante das situações de estresse, de ansiedade, de angústia em relação a vida, por isso
lembraram que, nos dias de hoje, o indivíduo não procura mais uma virtude, uma causa, procura um
especialista, procura ajuda de uma medicação. A medicação serve como uma mediação entre a pessoa e o
mundo.
Outro aspecto importante em relação ao tratamento e a localização da medicação é o papel que tem as
diferentes instituições onde é realizado o exercício das atividades desses profissionais. A primeira questão
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colocada foi a diferença que existe entre as instituições públicas e as privadas. Os entrevistados entendem que
nas instituições públicas, espaço que atende principalmente as classes populares, o tempo da consulta é
pequeno, ou talvez insuficiente para conseguir se fazer um diagnóstico mais qualificado. Este é um espaço em
que, normalmente, o trabalho é realizado com uma equipe de profissionais e que pode acontecer, em alguns
casos, que o psiquiatra encontre-se impossibilitado a fazer qualquer tratamento além da medicação, como uma
psicoterapia por exemplo, porque a instituição restringe essa atribuição apenas para os psicólogos, restando ao
psiquiatra apenas diagnosticar e medicar.Todos os psiquiatras entrevistados colocam que a instituição privada,
na qual geralmente o atendimento é realizado para a classe média da sociedade, possibilita um atendimento
mais completo, porque têm recursos, o tempo necessário para a escuta que favorece um bom desenvolvimento
no processo de decisão referente ao diagnóstico e ao tratamento, que é feito em parceria com o paciente. Porém,
os psiquiatras que fazem atendimento nesses dois espaços garantem que a abordagem que é feita em termos da
atuação do profissional aos pacientes é igual, mesmo com as limitações apresentadas na instituição pública.
Um dado interessante deste trabalho foi verificar que nenhum dos psiquiatras entrevistados afirma fazer
uso de psicofármacos para si. De certa maneira, demonstraram nas suas respostas que acreditam que os
psicofármacos devem ser usados em casos de necessidade e não para resolver qualquer problema do cotidiano,
como bem enfatiza a Psiquiatra 6, conforme exposto a seguir:
- (...) a gente não pode banalizar o uso da medicação, como se fosse panaceia para todos os casos. Como
eu disse antes, ela (a medicação) não traz felicidade, ela trata e aí você só deve usar mediante a
necessidade (Psiquiatra 6).
Porém, dois aspectos foram muito discutidos pelos psiquiatras em relação ao uso de psicofármacos por
seus pacientes: a automedicação e a dependência química. Eles colocaram que a automedicação, infelizmente,
é uma prática muito comum, e que alguns profissionais prescrevem sem, de fato, conversar com os pacientes
(geralmente médicos de outras especialidades sem ser da psiquiatria) e acabam tratando um sintoma e não de
fato o que o paciente tem. Eles compreendem que isso é muito ruim porque acaba sendo feito um tratamento
superficial. Mas, também reconhecem que, cada vez, mais essa medicalização acontece por uma demanda do
paciente que não tolera o sofrimento e quer medicalizar tudo. Muitas vezes os pacientes acabam chegando aos
consultórios até dizendo qual a medicação que quer tomar porque em outra situação já tomou e se sentiu bem.
No entanto, a medicação tem um papel que pode ser mais importante, ou menos importante, no
tratamento do transtorno ou doença mental que, de modo geral, eles reconhecem:
- O papel da medicação é parte do tratamento, não é o tratamento todo, mas é uma parte às vezes mais
ou menos importante no tratamento... Uma pessoa que está em sofrimento e talvez em um quadro
depressivo leve, ela não vai ser o fundamental no tratamento. A medicação vai ser um auxílio, mas não
vai ser responsável pela maior parte do tratamento. Numa pessoa com surto psicótico esquizofrênico,
com sintomas de agressividade, com perda do juízo da realidade, com risco de agressividade para a mãe
ou para avó que more em casa com ele, aquela medicação vai ser uma parte importante do tratamento,
embora mesmo assim, não vai ser o tratamento completo, sempre deve ser feito tratamento psicoterápico,
tratamento terapêutico ocupacional, reinserção familiar (Psiquiatra 4).
Em relação à dependência do paciente, os entrevistados entendem que é possível acontecer,
principalmente em relação a alguns tipos de psicofármacos. Entretanto, a Psiquiatra 6 faz algumas
ponderações, que são importantes serem levadas em consideração devido a compreensão do que seria essa
dependência. Ele aponta que a grande questão não seria a dependência em si, mas como o indivíduo se relaciona
com ela.
- O problema não é a dependência, mas como a gente se relaciona com ela... Vai ficar dependente se
não tratar de uma forma adequada, tanto na psicanálise, como também, com o psicofármacos. Tem
alguns psicofármacos que geram dependência e são exatamente esses que são os mais prescritos por
não psiquiatras. Todo mundo consegue, inclusive, comprar a medicação sem prescrição médica. No
transtorno mental, a pessoa não diz assim: “se levante, ande e dê uma volta e vá tomar um sorvete, você
não vai consegui andar”. Isso é um problema, uma doença, ela tem que ser tratada... Então, isso não é
uma questão de dependência do ponto de vista mais restrito da palavra, é uma questão de necessidade.
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A gente tem que fazer essa diferença, ver o que é medicação que causa dependência, medicação que é
necessária, tratamento que causa dependência e tratamento que é necessário, é diferente (Psiquiatra 6).
Como pudemos observar a partir do exposto, as concepções de felicidade que os psiquiatras trazem tem
uma variação, no entanto, se aproximam nos seguintes aspectos: a felicidade pode ser um estado de bem estar
subjetivo duradouro, que implica a totalidade de uma vida ou momentos de alegria, sensações e sentimentos
momentâneos, misturados com as outras coisas da vida, como o sofrimento e a tristeza. A felicidade é
simplicidade e também complexidade, é saber valorizar o amor e a amizade acima dos valores materiais; é
estar bem consigo mesmo, é uma coisa de ordem especial que não tem nada a ver com riqueza ou sucesso
profissional. Já a concepção da infelicidade foi citada pela ausência da felicidade, e pode ou não, gerar
sofrimento psíquico. Os psiquiatras reconhecem a negação da dor na nossa sociedade atual e por isso a busca
das pessoas pela analgesia ou eliminação do sofrimento. Entretanto, admitem que na experiência humana a
felicidade e o sofrimento caminham juntos.
Conclusões
O objetivo deste trabalho foi investigar se está sendo gestada a construção de uma psiquiatria voltada
não apenas para o tratamento de transtornos, mas também para o alívio do sofrimento intrínseco à vida
cotidiana, bem como para a produção, por meio da regulação biotecnológica (uso de psicofármacos), de estados
de bem-estar e felicidade. Com este propósito, aqui foram analisados os discurso de profissionais da psiquiatria
buscando-se perceber o lugar dos medicamentos psicoativos no tratamento do sofrimento psíquico, assim
como, identificar seu uso como artefato auxiliar para o alcance da felicidade dos seus respectivos pacientes.
De acordo com as informações coletadas, seja através da revisão bibliográfica ou no trabalho de campo
de pesquisa, pode-se verificar que, nos dias de hoje, a busca da felicidade vem se intensificando e se tornando
cada vez mais uma meta dos indivíduos, moldados pelos valores modernos. De fato, a definição da felicidade
é considerada, na atualidade, um tanto precária ou talvez imbuída de muita fluidez dificultando conceituar,
compreender ou mais difícil ainda chegar a um consenso. Mas, se não conseguimos definir o que de fato seria
a felicidade, e este não foi nosso propósito, pudemos apreender a ideia de que, se antes a felicidade era uma
aspiração, hoje passou a ser um dever, e que dependendo da sua localização pode também se tornar um direito.
Aqui também, podemos nos questionar: será que cabe inferirmos que a banalização dos psicofármacos
corresponde a “banalização da felicidade”? Afinal, conforme exposto, na busca para ser feliz qualquer
alternativa é válida, inclusive “medicar-se”.
Segundo Franco (2009), sofremos porque não conseguimos ser felizes de acordo com o que se propaga
ser a verdadeira felicidade. Sabendo que na contemporaneidade a ideia de felicidade é marcada por noções
hedonistas, as quais consideram que o desconforto e o sofrimento devem ser banidos em nome de uma
felicidade a ser alcançada a qualquer preço, cabe analisar o lugar que o sofrimento tem ao pensar na analgesia
que os psicofármacos oferecem. O sofrimento cuja narrativa se apoia na dor, por sua vez, tem grande tendência
de ser negada e rejeitada pelos indivíduos na contemporaneidade. A sociedade contemporânea é intolerante à
dor e ao sofrimento, especialmente, porque tem pressa para resolver seus problemas de ordem cotidiana,
trazendo para o proscênio o psicofármaco como um ator que media a relação entre a pessoa e o mundo.
Foi importante perceber nas falas dos psiquiatras a reflexão que fizeram sobre a felicidade e o
sofrimento, quando estas podem nos conduzir para a conclusão de que felicidade e sofrimento caminham
juntos, sempre fizeram e farão parte da vida humana, não há como separar um do outro. A percepção dos
psiquiatras entrevistados em relação ao uso dos psicofármacos é bem cautelosa. Alguns acreditam que esse uso
pode proporcionar felicidade para as pessoas e outros acham que não, o uso dos psicofármacos apenas trata o
transtorno ou doença mental, podendo somente aliviar um possível sofrimento, possibilitando a pessoa a buscar
a felicidade. Mas, se a busca da felicidade já não conta mais com as referências oferecidas pela ética do
sacrifício das religiões ou pelos ideais de ação política na vida pública, se percebe o nascimento de um
horizonte que se expande sem cessar, a intervenção e a regulação biotecnológicas do bem estar psíquicos como
promessas cada vez mais atraentes, carregados de desafios éticos, políticos e clínicos.
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