MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO: ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE PUC/São Paulo 2011 MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO: ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS Dissertação apresentada à Banca Examinadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, como exigência parcial para obtenção do título de MESTRE em Educação: História, Política, Sociedade, sob orientação da Profª.Dra. Leda Maria de Oliveira Rodrigues. São Paulo 2011 BANCA EXAMINADORA Profª.Dra. Leda Maria de Oliveira Rodrigues Orientadora/PUC-SP Profª.Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt PUC-SP Prof.Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo UNICAMP São Paulo,_____ de ___________________ de 2011 Àqueles que participaram indiretamente da realização deste trabalho: família e amigos. Àqueles que estudam a educação na esperança de torná-la melhor. AGRADECIMENTOS À Maria Aparecida, à Maria Júlia e ao Francisco Montero, por serem minha constante inspiração. Ao Fernando, pela presença. À professora Leda Maria de Oliveira Rodrigues pela orientação e pela paciência. À professora Circe Maria Fernandes Bittencourt e ao professor Silvio Donizetti de Oliveira Gallo pelas sugestões oportunas e importantes quando da realização do exame de qualificação. À Betinha, secretaria do programa EHPS, que sempre trata à todos com carinho e atenção, por toda ajuda desde o meu primeiro dia no programa. Aos meus colegas do programa pelas reflexões e descontrações partilhadas durante esses dois anos. À todos os professores do programa EHPS pelos diferentes ensinamentos. Digo: o real não está na saída nem na chegada, ele se dispõe para a gente é no meio da travessia Guimarães Rosa Resumo Este trabalho visa estudar as razões alegadas para a implementação da Lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008, a qual alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 1996, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Para tanto, historia-se a sua proposição e tramitação no Congresso até a sanção presidencial, atentando para os conflitos político-ideológicos que permearam essa tramitação. Pretende-se também investigar como a Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, nos nos PCN+ Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada. A metodologia usada neste estudo foi de natureza descritiva-reflexiva. Os autores Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci, Goodson e Chervel balizaram a pesquisa e a análise dos dados coletados. Deles utilizamos os conceitos de currículo oculto, currículo oficial ou real ou prescrito e regulamentado, currículo em ação, ideologia, currículo e disciplina. Dentre os resultados podemos citar as pressões de profissionais da educação e da área em tela; as correntes político-ideológicas envolvidas na reintrodução da Filosofia como disciplina; outro ponto, por mais que essa volta seja uma vitória, a Filosofia no currículo ainda está sujeita a ambiguidades quanto aos resultados de sua reintrodução. Palavras-chaves: Filosofia, disciplina obrigatória, ensino médio Abstract This work aims to study the reasons alleged for the implementation of the Law nº 11,684 of June 2nd, 2008, which modified the article 36 of the Law nº 9394/ 1996, to include Philosophy and Sociology as compulsory subjects in High School. To do that, an historic of its proposal and processing in the Congress until the presidential approval, noting the political and ideological conflicts that have permeated this procedure, is needed. We also intend to study how Philosophy appears in the National Curriculum Guidelines for Secondary Education, in the Complementary Educational Guidelines for the National Curriculum Guidelines for Secondary Education, and in the Curriculum Orientations for Secondary Education . Official documents were the main source of research used. The methodoly used in this study was descreptive and reflective. The authors Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci, Goodson and Chervel guided the research and data analysis. Of them we have used the concepts of hidden curriculum, official curriculum or real curriculum or prescribed and regulated curriculum, curriculum in action, ideology, curriculum and subject. Among the results we can cite the pressures of professionals from the educational area and from philosophers and sociologists; the political and ideological currents involved in the reintroduction of Philosophy as an subject; and the fact that, even though this reintroduction is a victory, Philosophy in the curriculum is still subject to ambiguities regarding the results of its reintroduction. Key-words: Philosophy, compulsory subject, high school LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS ABFC - Associação Brasileira de Filósofos Católicos ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior CCJC – Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania CEB – Câmara de Educação Básica CEC – Comissão de Educação e Cultura CEESP – Conselho Estadual de Educação de São Paulo CNE – Conselho Nacional de Educação CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino CONPEFIL - Conjunto de Pesquisa Filosófica CONVÍVIO - Sociedade Brasileira de Cultura CNDF - Coordenação Nacional dos Departamentos de Filosofia DCNEM – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio DSND - Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento EMC – Educação Moral e Cívica ENEFILS - Encontros Nacionais de Estudantes de Filosofia ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio ESN – Estado de Segurança Nacional EPB – Estudos dos Problemas Brasileiros FNSB – Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura IBF - Instituto Brasileiro de Filosofia LDB – Lei de Diretrizes e Bases MEC – Ministério de Educação e Cultura NR – Norma Regulamentadora OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio OSPB – Organização Social e Política Brasileira PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio PL – Projeto de Lei PSB – Partido Socialista Brasileiro PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira PT – Partido dos Trabalhadores PS-GSE: Primeiro Secretário do Grupo de Supervisão Educacional SARESP – Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência SINSESP – Sindicato das Secretarias do Estado de São Paulo UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas USAID – United States Agency for International Development ÍNDICE Introdução......................................................................................................................... p.11 Os instrumentos de pesquisa e análise...............................................................................p.14 Referêncial Teórico...........................................................................................................p.15 Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar brasileira.............................................................................................................................p23 A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio.....................................................................................p.32 A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996 até a promulgação da Lei nº 11.684/2008...............................................................................p.47 Considerações finais..........................................................................................................p.72 Bibliografia........................................................................................................................p.77 Anexo 1..............................................................................................................................p.84 Anexo 2..............................................................................................................................p.89 Anexo 3..............................................................................................................................p.94 Anexo 4..............................................................................................................................p.96 Anexo 5............................................................................................................................p.102 Anexo 6............................................................................................................................p.114 Anexo 7............................................................................................................................p.115 Anexo 8.............................................................................................................................p116 Anexo 9............................................................................................................................p.131 Anexo 10..........................................................................................................................p.132 Anexo 11..........................................................................................................................p.133 Anexo 12..........................................................................................................................p.158 Anexo 13..........................................................................................................................p.172 11 Introdução Em 2 de junho de 2008, foi promulgada a lei número 11.684, que alterou o artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/1996), para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino médio. Esta Lei referenda o Parecer nº 38/2006, elaborado conjuntamente pelo Conselho Nacional de Educação e pela Câmara de Educação Básica, cuja avaliação rezava pela obrigatoriedade do ensino de Filosofia e Sociologia no currículo do ensino médio em todas as escolas brasileiras. De acordo com Alves (2002), o ensino escolar brasileiro sempre teve sua estrutura e seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente em cada momento da história. As políticas educacionais adotadas sempre estiveram carregadas de intenções e são estas que determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a política educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até quais devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos, o que pode acabar por fragilizar o processo pedagógico, dificultando uma ação criadora e reflexiva. E é justamente isso que podemos observar na atualidade: o sucateamento da educação (baixos salários, grande número de alunos por sala, etc). Segundo Tommasi (2007), no que diz respeito ao sistema educacional brasileiro, dois aspectos merecem destaque: 1) há a prevalência da lógica financeira sobre a lógica social e educacional; 2) a falácia de políticas que se declaram com o objetivo de elevar a qualidade do ensino, enquanto implementam a redução dos gastos públicos para o setor educacional e mantêm-se indiferentes à carreira e ao salário do professorado. Se vivemos numa sociedade neoliberal, que preza os conhecimentos tácitos em detrimento do conhecimento científico; se o preferível no momento é um ensino que tenha aplicações mais práticas e diretas; e levando-se em consideração que uma disciplina escolar não existe sem um objetivo, que ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184), por que se incluiu a Filosofia como disciplina obrigatória? Quais foram os conflitos que resultaram nessa introdução? No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial, mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de intelectual [...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na eloqüência, motor exterior dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente” [...] (GRAMSCI, s.d., p.11) 12 Assim sendo, e assumindo a constatação de que a sociedade compõe-se por diversos blocos de poder com interesses conflitantes, é relevante o estudo dos conflitos que resultaram na Lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996. Além disso, uma certa lacuna de estudos na área (constatada depois de um levantamento inicial)1, nos aponta mais uma vez para a oportunidade de se realizar este trabalho. [...] o estudo do conflito em torno da definição pré-ativa de currículo escrito irá aumentar o nosso entendimento dos interesses e influências atuantes neste nível [...] este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos patenteados na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode estabelecer parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala de aula e da própria escola [...] Entender a criação de um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilustrativos das metas e estruturas prévias que situam a prática contemporânea. (GOODSON, 2001, p.21/22) O presente trabalho tem, então, como principal tema e problema examinar as razões alegadas para a implementação da Lei 11.684/2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996, e reintroduziu a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do Ensino Médio. Decorre dele o seguinte questionamento: a) Como a Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, nos PCN+ Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio? Documentos estes que norteiam a educação nacional. A questão é que o potencial para um estreita relação – no extremo oposto, uma nãorelação – entre teoria e prática ou entre currículo escrito e currículo ativo, depende da natureza da construção pré-ativa dos currículos – quanto à exposição e quanto à teoria – bem como da sua execução interativa em sala de aula (GOODSON, 2001, p.24). O fato de ter vivenciado todo o momento que antecedeu a promulgação da já citada lei, e por pertencer a um grupo que seria diretamente afetado por ela – licenciados em Filosofia (na época estava cursando o último ano da faculdade), me levou a questionar o que teria levado à aprovação da Lei nº 11.684, considerando, claro, que a introdução ou retirada da Filosofia, ou de qualquer outra disciplina, do currículo sempre esteve ligada a conjuntura política em vigência. 1 Após levantamento feito no Banco de Teses da CAPES, constatou-se que não existem trabalhos recentes que abordem a questão dos conflitos por detrás da reintrodução da Filosofia no currículo do Ensino Médio. O trabalho mais recente encontrado data do ano 2000, mas não trabalha especificamente com os conflitos políticosideológicos. 13 Assim sendo, o objetivo geral deste trabalho é levantar e analisar as razões para a volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio. Já os objetivos específicos são: a) Levantar as justificativas que levaram o Congresso a aprovar a Lei 11.684/2008; b) Verificar à quais necessidades a disciplina Filosofia vem atender; c) Verificar como a disciplina é proposta nos Parâmetros, nos PCN+ e nas Orientações; As principais hipóteses que guiarão esta pesquisa serão as seguintes: a) vivemos em um momento histórico neoliberal, com o advento da sociedade do conhecimento, da pedagogia das competências, com o apogeu do individualismo, da competitividade da globalização, da formação continuada, de cada vez mais provisioriedade de conhecimento. Caberia então pensar que a disciplina de Filosofia viria, então, para auxiliar esse pensamento que se caracteriza pela mobilidade; b) assim como aconteceu nos governos de Geisel e Figueiredo, quando a reintrodução da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário fez parte de uma estratégia do ESN (Estado de Segurança Nacional) para renovação de sua legitimidade e para assegurar a continuidade do modelo político-econômico vigente, a volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio em 2008, pode não ter tido razões voltadas para o conteúdo e para a melhor formação dos jovens, mas sim razões corporativas, apenas para responder à demanda/pressão dos professores, e futuros professores, de Filosofia, que viam as poucas aulas existentes serem ministradas por professores formados em outras áreas, como História e Geografia; c) examinar ainda que superficialmente, as possíveis implicações do fato de que talvez não seja apenas coincidência que num governo declaradamente neoliberal, presidido por um sociólogo, deu-se o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino Médio, enquanto que essa introdução foi facilitada num outro governo que, ao menos tendencialmente, questiona e se afasta dos excessos do modelo neoliberal. Vale deixar claro que uma história da Filosofia como disciplina escolar no Brasil ainda está para ser feita. A grande ênfase atual é num estudo histórico da Filosofia como àrea do conhecimento. Este trabalho tenta, portanto, contribuir para que passos na direção de estudos da Filosofia como disciplina sejam dados. 14 Os instrumentos de pesquisa e análise Visando o alcance dos objetivos e dos questionamentos propostos para a realização desta dissertação, documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada. Os documentos oficiais foram utilizados, sobretudo, na realização de uma síntese do percurso da Filosofia na educação brasileira para melhor compreender sua atual situação como uma disciplina curricular. Afinal, as políticas educacionais e, conseqüentemente, os currículos escolares, são constituídos historicamente. Aqui foram usados principalmente os textos das Reformas de Francisco Campos (decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1932) e de Gustavo Capanema (especificamente o Decreto-lei n.4.244 de 9 de abril de 1942); da Lei de Diretrizes e Bases de 1961 (Lei nº 4024); da Lei n. º 5692 de 1971, que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências; e da Lei de Diretrizes e Bases de 1996 (Lei n. º 9.394). Tais documentos foram escolhidos por representarem momentos que consideramos como os mais importantes na história da Filosofia no currículo do ensino médio (antigo secundário) brasileiro. A pesquisa documental também foi feita para tentar clarificar quais foram os conflitos políticos-ideológicos que resultaram na mudança curricular ocorrida em 2008, com a reintrodução da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio. Foram coletados e analisados os projetos de leis e pareceres que marcaram os embates pela volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio, desde a promulgação da LDB de 1996. Podemos citar aqui como os principais, os seguintes documentos: Parecer CNE/CEB Nº15/98; Resolução CNE/CEB nº03/98; Mensagem nº 1073, de 8 de outubro de 2001; Projeto de Lei n.º 1641/2003; Parecer CNE/CEB nº 38/2006; Resolução CNE/CEB nº4/2006; Parecer CEE nº 343/2007 – CEB aprovado em 7/7/2007; Lei nº 11684/2008; Parecer nº 22/2008. Além dos documentos já citados, também foram analisados os textos dos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parte IV: Ciências Humanas e suas tecnologias), dos PCN+ Ensino Médio (Ciências Humanas e suas tecnologia) e das Orientações Curriculares para o Ensino Médio (Volume 3: Ciências Humanas e suas tecnologias). A análise das informações retiradas dos documentos foi guiada pelos conceitos de Currículo Oficial ou Real, Currículo em Ação, elaborados por Gimeno Sacristán; de Currículo Oculto, elaborado por Michael W. Apple; e de ideologia, elaborado por Antonio Gramsci. Foram utilizados também os conceitos de currículo e disciplina, elaborados por Goodson e Chervel. 15 Referencial Teórico Os principais referenciais teóricos, no que tange à análise dos documentos oficiais (Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; Orientações Curriculares para o Ensino Médio), e à análise de como as propostas são contempladas na prática, serão Gimeno Sacristán e Michael W. Apple. Deles, serão utilizados três conceitos: o de currículo oculto, o de currículo oficial ou prescrito e regulamentado, e o de currículo em ação. Currículo oculto, segundo Apple (1999), diz respeito às normas e valores implicitamente e efetivamente transmitidos pelas escolas e que, habitualmente, não são mencionados nos objetivos apresentados pelos professores. Segundo Apple (1999) a hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal, mas também pelo oculto. Currículo oculto é, então, o conjunto de normas sociais, princípios e valores transmitidos tacitamente através do processo de escolarização. O currículo oculto não aparece explicitado nos planos educacionais ou nas propostas curriculares oficiais, mas ocorre sistematicamente produzindo resultados não acadêmicos, embora igualmente significativos. [...] historicamente e actualmente se introduziram no currículo determinadas concepções relativas às normas de cultura e valores legítimos. No entanto, há que salientar que a hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal do conhecimento escolar, mas também pelo ensino oculto (APPLE, 1999, p.137). De acordo com Gimeno Sacristán (1998), o currículo oculto se caracteriza por duas condições: o que não se pretende e o que é obtido por meio da experiência natural, que não foi diretamente planejada pelos professores ou por qualquer outro sujeito. O currículo oficial, segundo esse mesmo autor, diz respeito às propostas curriculares oficiais, ou seja, os conteúdos que devem ser ensinados definidos em documentos oficiais/legais. [...] o currículo real é mediado pelo contexto social, econômico, político e cultural, e, compreender o currículo oficial nos possibilita analisar, com base nas intenções expressas e latentes, presentes nas políticas oficiais, os limites e possibilidades da realidade educativa cotidiana das escolas (PAIVA, 2006:13). Segundo Gimeno Sacristán (1998), “[...] para entender o currículo real é preciso esclarecer os âmbitos práticos em que é elaborado e desenvolvido, pois, do contrário estaríamos falando de um objeto reificado à margem da realidade” (p.129). Ou seja, o currículo oficial mostra facetas das intenções do processo educativo escolar, ou seja, aquilo que as autoridades estão buscando na educação escolar. Isso porque os conhecimentos 16 vinculados nos componentes curriculares estão sempre atrelados ao objetivo da educação. Por trás do currículo sempre há interesses. É importante ressaltar que, para Gimeno Sacristán, para se conhecer o currículo é preciso ir muito além das declarações oficiais, da retórica, dos documentos, ou seja, é preciso se aproximar o máximo possível da realidade. O que se torna evidente é que, pelas propostas do currículo, expressam-se mais os desejos do que as realidades. Sem entender as interações entre ambos os aspectos não podemos compreender o que acontece realmente aos alunos/as e o que aprendem (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.137). Currículo em ação, segundo Gimeno Sacristán (1998), é o currículo reelaborado na prática, é a transformação do currículo oficial no pensamento e no plano dos professores e nas tarefas acadêmicas. O conjunto de tarefas de aprendizagem que os alunos/as realizam, das quais extraem a experiência educativa real, que podem ser analisadas nos cadernos e na interação da aula e que são, em parte, reguladas pelos planos ou programações dos professores/as – é o chamado currículo em ação (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.138). É interessante sublinhar que, para Gimeno Sacristán, currículo não é simplesmente uma prescrição, sua realidade não se mostra somente em suas modelagens documentais; para o autor, currículo é um processo, que se mostra na interação de todos os seus contextos práticos, que vão desde o âmbito de decisões políticas e administrativas que resultam no currículo oficial (documentos curriculares) até sua transformação em currículo em ação. Já no que tange à historicização da proposição e tramitação no Congresso até a sanção presidencial, da Lei nº 11.684/2008, far-se-á uso da Abordagem do Ciclo de Políticas, formulada por Ball e Bowe. Acreditamos que tal Abordagem será muito útil para guiar a análise do trâmite da Lei, pois nos permite organizar os documentos/acontecimentos de forma a refletir a sucessão dos eventos. Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional, enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos macro e micro na análise de políticas educacionais. É importante destacar [...] que este referencial teórico-analítico não é estático, mas dinâmico e flexível [...] (MAINARDES, 2006, p. 49). Segundo Mainardes (2006, p. 48), tal abordagem é bastante útil para a análise de políticas educacionais, principalmente no contexto brasileiro. [...] a abordagem do ciclo de políticas constitui-se num referencial analítico útil para a análise de programas e políticas educacionais e que essa abordagem permite a análise crítica da trajetória de programas e políticas educacionais desde sua formulação inicial até a sua implementação no contexto da prática e seus efeitos [...] Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional, 17 enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos micro e macro na análise de políticas educacionais. (MAINARDES, 2006, p.48). A Abordagem do Ciclo de Políticas tem cinco contextos. O primeiro é o contexto da influência, onde normalmente as políticas públicas são iniciadas. É aqui que o discurso político é contruído. É aqui que os partidos interessados lutam para influenciar a definição e as finalidades sociais da educação, o que significa ser educado. (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.19)2 Nesse contexto atuam as redes sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do governo e do poder legislativo. É neste momento que os conceitos como os de educação, de políticas públicas e de políticas educacionais, adquirem legitimidade e formam o discurso político. O segundo é o da produção de texto, que é o momento em que são articulados os textos políticos (que representam a política); é o momento em que as leis são articuladas. Os textos políticos são o resultado de disputas e acordos, já que os grupos que atuam dentro dos diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações da política. Os textos políticos, portanto, representam a política. Essa representação pode tomar varias formas, sendo a mais comum os textos oficiais e os documentos políticos [...] (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.20).3 O terceiro é o contexto da prática, que é onde a política está sujeita à interpretação e recriação, é onde a política produz efeitos e conseqüências, as quais podem representar mudanças significativas na política original/anterior. O ponto-chave deste contexto, para Ball e Bowe, é o fato de que as políticas não serão simplesmente implementadas, elas estão sujeitas à interpretação, ou seja, estão sujeitas à recriação. O quarto é o contexto dos resultados e efeitos, no qual há a preocupação com questões de justiça, igualdade e liberdade individual (análise dos efeitos e impactos das políticas). O quinto e último é o de estratégia política, que envolve a identificação de um conjunto de atividades políticas e sociais que seriam necessárias para entender as desigualdades criadas ou reproduzidas pelas políticas públicas investigadas. Dado os interesses já citados deste trabalho (investigar os conflitos políticos e os reais 2 3 Tradução nossa. Do original em inglês: “It is here that policy discourses are constructed. It is here that interested parties strugle to influence the definition and social purposes of education, what it means to be educated.” Tradução nossa. Do original em inglês: “Policy texts therefore represent policy. These representations can take various forms: most obviously „official‟ legal texts and policy documents [...]” 18 objetivos por trás da inserção da Filosofia como componente curricular obrigatório no Ensino Médio) far-se-á uso principalmente dos três primeiros contextos da Abordagem do Ciclo de Políticas. Os dois últimos contextos não serão utilizados por acreditar-se ser muito cedo para termos resultados observáveis dessa inserção, que ocorreu no 2º semestre de 2008. Como já foi dito anteriormente, o presente trabalho tem como principal objetivo analisar a presença da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio; mais especificamente, examinar os conflitos político-ideológicos que resultaram na Lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008. Por isso se faz necessário explicar o que será definido como ideologia. Usaremos a definição grasmsciniana de ideologia. Ideologia, segundo Gramsci, é uma concepção de mundo que implicitamente se manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida intelectual e coletiva. É um conjunto de idéias, crenças e valores que constituem a visão de mundo de um determinado grupo social ou povo. Ou seja, a ideologia não é enganosa ou negativa em si, mas constitui qualquer ideário de um grupo social. É importante ressaltar que a definição de Gramsci difere muito da definição de Marx e Engels, para quem a noção de ideologia é uma distorção das contradições sociais reais e, portanto, contribui para a reprodução destas. O conceito de ideologia apresenta, aqui, uma clara conotação negativa. No entanto, para Gramsci, ideologia não é apenas um conjunto de idéias, ela também está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação para ação. Assim, a ideologia é o terreno sobre o qual os Homens se movimentam, ou seja, ela está socialmente generalizada pois seres humanos não podem viver sem um código de conduta, sem orientações. É, portanto, na e pela ideologia que uma classe pode exercer hegemonia sobre outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes massas. Aqui, Gramsci atenta para o papel dos intelectuais na produção da ideologia. Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14). Assim sendo, a dominação ideológica é igual à subordinação intelectual, ou seja, o grupo que tem o domínio da ideologia, tem o domínio sobre a educação e todas as instituições ligadas a ela direta ou indiretamente. O poder das classes dominantes, dentro do modo de produção capitalista, não reside simplesmente no controle dos aparatos repressivos do Estado. 19 Se assim fosse, tal poder seria relativamente fácil de ser combatido (bastaria que fosse atacado por uma força armada equivalente ou superior que trabalhasse para as classes dominadas). Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes dominantes logram exercer, através do controle do sistema educacional, das instituições religiosas e dos meios de comunicação. Usando deste controle, as classes dominantes "educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e conveniente. Acreditamos ser importante, também, definir o que será entendido aqui como disciplina e como currículo. Currículo (do lat. Curriculu): 4. Bras. P. ext. As matérias constantes de um curso. Disciplina (do lat. Disciplina): 6.Qualquer ramo do conhecimento (artístico, científico, histórico, etc); 8. Conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum estabelecimento de ensino; matérias de ensino Essas são as definições dadas pelo Novo Dicionário Aurélio para os termos currículo e disciplina. Currículo então seria o conjunto de disciplinas ministradas em um estabelecimento de ensino, e disciplinas (ou matérias) seriam conjuntos de conhecimentos de uma área específica (matemática, história, biologia etc). Porém, os hoje denominados currículo e disciplina escolar nem sempre tiveram a compreensão que contemporaneamente lhes atribuímos. Segundo Goodson (2001) o termo currículo advém da palavra latina currere, que pode ser traduzida como correr, referindo-se a curso a ser seguido, mais especificamente a ser apresentado. Na atualidade, currículo passa a ser compreendido como um conjunto daquilo que se ensina e daquilo que se aprende, tendo como referência alguma ordem de progressão, podendo ir além do que está escrito oficialmente. Já o termo disciplina, no sentido de conteúdos de ensino, segundo Chervel (1990), só aparece nas primeiras décadas do século XX, pois até o fim do século XIX, seu significado não era mais do que a vigilância dos estabelecimentos em relação às condutas prejudiciais á sua boa ordem e àquela parte da educação dos alunos que contribui para tal ordem. Mas é importante ressaltar que tanto currículo como disciplina são conceitos que vão muito além dessas simples definições. Ambos são construções históricas e sociais, ou seja, a construção de um currículo e, conseqüentemente, a escolha de determinadas disciplinas, estão repletas de conflitos, interesses, objetivos, relações de dominância etc. É por esse motivo que devem ser analisados historicamente, caso contrário, não podem ser compreendidos. De acordo com Goodson (2001), o currículo é formulado numa grande variedade de áreas e níveis, mas o fundamental para esta variedade é a distinção entre o currículo escrito e o currículo interativo (como atividade em sala de aula). Segundo o autor, o que se vê hoje é 20 uma tendência a se analisar cada um separadamente, como se não houvesse nenhum tipo de relação entre o currículo escrito e o interativo, o que acaba conduzindo a dois erros, principalmente: o primeiro, é considerar que o currículo escrito é irrelevante para a prática, que existe “uma dicotomia completa e inevitável entre o currículo adotado, na sua forma escrita, e o currículo ativo, na sua forma vivida e experienciada” (p.52); o segundo é tomar o currículo escrito como fato consumado. [...] é politicamente ingênuo e conceitualmente inadequado afirmar que “o importante é a prática em sala de aula” (da mesma forma que é uma ignorância querer excluir a política da educação) [...][...] o estudo do conflito em torno da definição pré-ativa de currículo escrito irá aumentar o nosso entendimento dos interesses e influências atuantes neste nível [...] este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos patenteados na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode estabelecer parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala de aula e da própria escola [...] Entender a criação de um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilustrativos das metas e estruturas prévias que situam a prática contemporânea. (GOODSON, 2001b, p.20/21/22) Para Goodson é preciso que ambos sejam estudados, mas antes de se partir para a prática, é preciso estudar o currículo escrito, pois entender a criação do currículo nos possibilita mapear as metas e estruturas prévias que podem vir a influenciar a prática. Entender a contrução pré-ativa de um currículo pode estabelecer importantes parâmetros para a compreensão de sua realização interativa dentro da sala de aula. A desconsideração da elaboração histórica e social do currículo nos leva a aceitá-lo como um fato consumado, não permitindo uma renovação e atualização da forma e do conteúdo curriculares. Começar qualquer análise da escolaridade aceitando, sem questionamento, a forma e o conteúdo do currículo, aspectos que suscitaram lutas e que foram estabelecidos num ponto histórico particular, com base em certas prioridades sociais e políticas; isto é, tomar o currículo como um dado, significa renunciar a um vasto conjunto de entendimentos sobre aspectos do controlo e do funcionamento da escola e da sala de aula (GOODSON, 2001, p.57/58). Assim, como foi dito acima, currículo é mais do que uma simples palavra para definir um conjunto de disciplinas: é uma construção histórica, reflete um conflito social. A definição daquilo que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades sociais e políticas que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala de aula. O currículo não é uma realidade abstrata, à margem do sistema socioeconômico, da cultura e do sistema educativo. O currículo é uma práxis, não um objeto estático. É a expressão da função socializadora e cultural da escola. Por isso, as funções que o currículo cumpre são realizadas por meio de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que gera. Tal como dissemos em relação ao currículo, o mesmo se passa com as disciplinas. Estas também são mais do que uma palavra usada para designar um conjunto de 21 conhecimento de determinada área. Nenhuma disciplina é incluída no currículo sem motivo, uma disciplina escolar não existe sem um objetivo (segundo Chervel, este é o tópico principal a partir do qual uma disciplina se constitui), ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184). E, para entender essas finalidades, para entender por que a escola ensina o que ensina, é preciso, também, analisar historicamente as disciplinas escolares. Conforme vimos acima, o ensino escolar, sendo uma construção histórico-social, sempre teve sua estrutura e seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente em cada momento da história. Relembrando, ainda, as políticas educacionais adotadas sempre estiveram carregadas de intenções, já que são definidas por sujeitos, e são estas que determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a política educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até quais devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos. A seleção dos conteúdos depende necessariamente de finalidades específicas. A constituição dos saberes escolares específicos a cada disciplina do currículo é resultado de um complexo processo que envolve conflitos, consentimentos, mediações entre diversos sujeitos e instituições, diante dos papéis que são atribuídos à escola em determinada época e sociedade. Geografia, Matemática, História, Educação Física, entre outras tantas disciplinas escolares, fazem parte dos currículos e constituem saberes, aparentemente, “naturais” que circulam no cotidiano das salas de aula. Mas esta “naturalidade” da presença das disciplinas nas escolas e o “lugar” de cada uma delas no currículo escolar têm sido objeto de questionamentos, tanto na atualidade, como em outros momentos da história da educação escolar (BITTENCOURT, 2003, p.9). Segundo Chervel (1990), existe um consenso de que as disciplinas escolares são conteúdos impostos à escola pela sociedade, conteúdos estes que foram construídos em outro lugar que não na escola. Mas esse consenso nega a autonomia tanto da escola quanto das disciplinas, além de reduzir estas às metodologias. Para Chervel, as disciplinas escolares não são resultado de uma simples transposição didática, não são uma “vulgarização” dos conhecimentos acadêmicos. São construções feitas pela escola, na escola e para a escola, mas ainda assim mantêm relação com os diferentes campos do conhecimento (ciências). A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes elaborados fora dela está na origem da idéia, muito amplamente partilhada no mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o progresso das ciências que se supõe ela deva difundir (CHERVEL, 1990, p.182). 22 Chervel, então, define as disciplinas escolares como entidades epistemológicas autônomas e, em sua argumentação, concebe a escola como uma instituição que obedece a uma lógica particular e específica, com a participação de inúmeros agentes, tanto externos quanto internos, mas que não deixa de ser um local de produção de um conhecimento próprio. Por isso não basta apenas pesquisar a gênese, as finalidades e o funcionamento de uma disciplina por si só, mas é preciso, também, investigar a disciplina como parte integrante da cultura escolar, pois só assim é possível entender as relações estabelecidas com o exterior, com a cultura e com a sociedade. Não podemos esquecer que as disciplinas que compõem o currículo escolar não desempenham um papel neutro. Os conhecimentos vinculados nas disciplinas não são “naturais” e não existem por si só; a liberdade do que se ensina na escola está circundada pelos documentos oficiais que balizam a atuação do(a) professor(a). É importante ressaltar que o processo de criação de uma disciplina não é o mesmo em todos os casos. Cada disciplina tem uma trajetória própria. Segundo Goodson (1990), que também se posiciona contra a idéia de transposição didática, cada disciplina precisa ter seu percurso histórico analisado, para que seja possível entendê-la. Muitas matérias escolares4 não possuem as mesmas estruturas das disciplinas acadêmicas, além de utilizarem diferentes conceitos e metodologias. Goodson também argumenta que algumas matérias escolares nem mesmo possuem uma disciplina correspondente, como é o caso da educação ambiental. Muitas escolas adotaram tal matéria, mas ela não existe como disciplina acadêmica. Segundo Bittencourt (2003), a presença de uma disciplina no currículo não se restringe somente a questões epistemológicas ou didáticas, ela também se articula ao papel político que uma disciplina desempenha ou tende a desempenhar. Muitos são os sujeitos envolvidos na constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros, partidos políticos em geral, professores e alunos, entre outros. Estes sujeitos também delimitam a legitimidade e o poder de uma disciplina. Ainda segundo a autora (2005), é “fundamental conhecer a história das disciplinas para identificar os pressupostos que possibilitam entender os liames e as diferenças entre uma disciplina escolar e as ciências de referência, uma vez que cada disciplina possui uma história” (p.40) 4 Para Ivor Goodson o termo disciplina é entendido como uma forma de conhecimento originária da tradição acadêmica. Para o caso de escolas primárias e secundárias ele utiliza o termo matéria escolar. 23 Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar brasileira O ponto de partida deste breve histórico será a Reforma Francisco Campos (1931) pois foi a partir dela que o ensino secundário5 adquiriu o caráter de curso, com um currículo seriado e freqüência obrigatória. Até essa época, o ensino secundário não tinha organização digna desse nome, pois não passava, na maior parte do território nacional, de cursos preparatórios, de caráter, portanto, exclusivamente propedêutico. Além disso, todas as reformas que antecederam o movimento renovador, quando efetuadas pelo poder central, limitaram-se a quase exclusivamente ao Distrito Federal, que as apresentava como “modelo” aos Estados, sem, contudo, obrigá-los a adotá-las [...] Era a primeira vez que uma reforma atingia profundamente a estrutura do ensino e, o que é importante, era pela primeira vez imposta a todo o território nacional. Era, pois, o início de uma ação mais objetiva do Estado em relação à educação (ROMANELLI, 1984, p.131) As modificações na infra-estrutura econômica do Brasil, resultantes da Revolução de 1930, determinaram novas funções para a escola. A intensificação do capitalismo industrial no Brasil, que a Revolução de 30 acabou por representar, determinou conseqüentemente o aparecimento de novas exigências educacionais. Se antes, na estrutura oligárquica, as necessidades de instrução não eram sentidas, nem pela população, nem pelos poderes constituídos (pelo menos em termos de propósitos reais), a nova situação implantada na década de 30 veio modificar profundamente o quadro das aspirações sociais, em matéria de educação, e, em função disso, a ação do própio Estado. (ROMANELLI, 1984, p.59) A reforma no ensino secundário foi proposta, primeiramente, através do Decreto 19.890, de 18 de abril de 1931, e foi consolidada depois, pelo Decreto 21.241, de 4 de abril de 1932. Na exposição de motivo deste último, Francisco Campos escreveu que a finalidade exclusiva do ensino secundário era a formação do Homem para a atividade nacional, e não apenas a matrícula nos cursos superiores. O ensino secundário deveria inculcar no espírito do sujeito todo um conjunto de hábitos, atitudes e comportamentos. Esse decreto conseguiu dar ao ensino secundário um caráter mais estável. Até então o curso não era seriado, a matrícula era por disciplina e os alunos acabavam fazendo somente as disciplinas que eram pedidas nos exames para o ensino superior. Até o final da década de 1920, “imperava o sistema de „preparatórios‟ e de exames parcelados para ingresso no ensino 5 Era chamado "ensino secundário" o que hoje corresponde ao Ensino Fundamental II (a partir do sexto ano) e ao Ensino Médio. De acordo com o Art.21 do Decreto 21.241 de 1932, o candidato a exame de admissão deveria provar ter a idade de 11 anos ou que a completaria até junho do ano em que requereria a incrição. 24 superior, sendo o curso secundário, quando existente, pouco procurado” (ROMANELLI, 1984, p.135). Por isso a Reforma Francisco Campos teve o mérito de dar ao ensino secundário organicidade, estabelecendo definitivamente o currículo seriado, a freqüência obrigatória, dois ciclos e a exigência de habilitação neles para o ingresso no ensino superior. Com essa reforma o ensino secundário ficou dividido em dois ciclos: um fundamental, de cinco anos; e outro complementar, de dois anos. O primeiro tornou-se obrigatório para o ingresso em qualquer escola superior e o segundo, somente em determinadas escolas. Além disso, o ciclo complementar ficou subdividido em três cursos preparatórios para o ensino superior (cada um com duas séries), um destinado para os alunos que queriam ingressar na Faculdade de Direito, outro para aqueles que queriam ingressar nas Faculdades de Medicina, Odontologia e Farmácia, e outro para aqueles que queriam ingressar nos cursos de Engenharia e Arquitetura. Segundo o Art.4º do Decreto 21.241/1932, constavam como disciplinas obrigatórias para o ciclo complementar: Alemão ou Inglês, Latim, Literatura, Geografia, Geofísica e Cosmografia, História da Civilização, Matemática, Física, Química, História Natural, Biologia Geral, Higiene, Psicologia e Lógica, Sociologia, Noções de Economia e Estatística, História da Filosofia e Desenho. A Reforma Francisco Campos (1932) [...] teve como medidas mais significativas a criação do regime seriado de estudos e a freqüência obrigatória [...] Quanto à nova estrutura do curso secundário, este ficou divido em dois ciclos: um fundamental, de cinco anos [...] e outro complementar, de dois anos [...] A Filosofia passou a compor o currículo do ciclo complementar, como história da filosofia e como lógica (ALVES, 2002, p. 32). A Lógica era ministrada juntamente com a Psicologia nos ciclos complementares que preparavam para os cursos de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e Arquitetura. Para os cursos jurídicos (destinado aos que queria ingressar nos cursos de Direito) exigia-se, também, a História da Filosofia na 2ª série do ciclo complementar. O ensino secundário, segundo os objetivos propostos pela Reforma Campos, devia se voltar para a formação do homem, habilitando-o, por atitudes e comportamentos, a viver por si e a tomar decisões. Os ensinamentos da lógica contribuíam em muito para essa formação, pois auxiliavam no treino e no uso da razão. Na universidade, esse exercício do raciocínio convertia-se num processo de interpretação da experiência, em termos de relações de pensamento. Estava encaminhada, portanto, uma justificativa para a inclusão da referida disciplina no ciclos complementares, propedêuticos ao ensino superior (CARTOLANO, 1985, p.57/58). Em 1942, por iniciativa do então ministro Gustavo Capanema, começam a ser reformados alguns ramos do ensino. Essas reformas, nem todas realizadas sob o Estado Novo, receberam o nome de Leis Orgânicas do Ensino. A Lei Orgânica do Ensino Secundário era o Decreto-lei 4.244, de 9 de abril de 1942. 25 Na exposição de motivo, Gustavo Capanema afirma que o que constituía o caráter do ensino secundário era a função de formar nos alunos uma sólida cultura geral, acentuar e elevar a consciência patriótica e a consciência humanística. Deveria ser um ensino capaz de dar ao aluno a compreensão dos problemas e necessidades, da missão e dos ideais da nação. [...] o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras, isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo. Ele deve ser, por isso, um ensino patriótico por excelência [...] (EXPOSIÇÃO DE MOTIVOS DA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SECUNDÁRIO DE 1º DE ABRIL DE 1942) Segundo Romanelli (1984), é possível, a partir do texto da lei, sintetizar as principais funções do ensino secundário: a) possibilitar uma cultura geral e humanística; b) alimentar uma ideologia política definida em termos de patriotismo e nacionalismo de caráter fascista; c) dar condições para o ingresso no ensino superior; d) formação de lideranças (p.157). De acordo com Cartolano (1985), a Lei Orgânica do Ensino Secundário não mudou muito o cenário do Ensino Secundário. Este continuou dividido em dois ciclos, mas a duração e a nomenclatura destes foi alterada. Segundo os Art.2º, 3º e 4º, o Ensino Secundário seria ministrado em dois ciclos: o primeiro compreendia um só curso com duração de quatro anos, o ginasial; o segundo compreendia dois cursos parelelos, cada qual com a duração de três anos: o clássico e o científico. O curso ginasial tinha como objetivo dar aos adolescentes os elementos fundamentais do Ensino Secundário. Os cursos clássico e científico tinham por objetivo consolidar a educação ministrada no curso ginasial, assim como densenvolvê-la e apronfundá-la. No curso clássico havia uma maior ênfase na formação intelectual, além de um maior conhecimento de filosofia e um acentuado estudo das letras antigas. No curso científico a formação seria marcada por um estudo maior das ciências. [...] sobressaíam, nos dois níveis, uma preocupação excessivamente enciclopédica e ausência de distinção entre os dois cursos: o clássico e o científico. Finalmente o currículo não era diversificado, nem sequer quanto aos níveis, sendo praticamente as mesmas disciplinas em quase todas as séries. Esse ensino não diversificado só tinha, na verdade um objetivo: preparar para o ingresso no ensino superior. Em função disso só podia existir como educação de classe. Continuava, pois, constituindo-se no ramo nobre do ensino, aquele realmente voltado para a formação das “individualidades condutoras” (ROMANELLI, 1984, p. 158). A Filosofia era indicada como disciplina obrigatória na 3ª série do curso clássico, e na 3ª série do científico. Todavia, durante este período, uma gradativa redução do número de aulas atribuídas à 26 Filosofia aconteceu. A filosofia era disciplina comum aos cursos clássico e científico e deveria ser ensinada de acordo com um mesmo programa para ambos os cursos, apenas com maior amplitude no curso clássico. Em 1946, pela Portaria n.º19 de 12 de janeiro, os programas passaram a ser elaborados por comissões designadas pelo ministro da Educação e se caracterizavam por sua respeitável extensão. Já os programas de 1951, publicados pela Portaria n.º 966, de 2 de outubro [...] eram menos extensos, devendo no entanto, ser claros e flexíveis. As aulas de Filosofia foram, a princípio, distribuídas em quatro por semana na 2ª série do clássico e 3º científico e duas aulas semanais no 3º clássico. O então ministro da Educação e Saúde, Raul Leitão da Cunha, em Portaria de 10 de dezembro de 1945, modificou o regime para quatro aulas semanais na 3º série do científico e três aulas nas séries do clássico, apenas distribuindo melhor o tempo destinado ao ensino de Filosofia. Mas as alterações não cessaram aí, e pela Portaria n.º 966 de 2 de outubro de 1951, que reestruturou os programas da disciplina para os cursos clássico e científico, as horas-aula semanais passaram a ser três, em ambas as séries desses cursos. Finalmente, a Portaria n.º 54, de 1954, reduziu o número de aulas semanais, estabelecendo um mínimo de duas horas por semana nas séries do clássico e uma hora, apenas, no científico. Esse quadro é uma mostra do processo de extinção da Filosofia como disciplina obrigatória e, depois, como optativa, do currículo do ensino secundário, em nosso país (CARTOLANO, 1985, p.59). A próxima reforma de ensino que trouxe maiores conseqüências para Filosofia foi a lei n.º 4024 de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que introduziu a descentralização do ensino, permitindo, assim, que as escolas pudessem optar entre vários currículos. De acordo com Romanelli, a lei 4024 de 1961, em essência, nada mudou. Sua única vantagem foi, talvez, “o fato de não ter prescrito um currículo fixo e rígido para todo o território nacional, em cada nível e ramo. Este, a nosso ver, o único progresso da lei: a quebra da rigidez e certo grau de descentralização” (p.181). A estrutura do ensino secundário6 ficou como estava, dividida em dois ciclos, o ginasial e o colegial, o primeiro com quatro anos e o segundo com três. No que diz respeito à grade curricular, quatro opções de currículo passaram a existir no colegial, que compreendiam até cinco disciplinas indicadas como obrigatórias: português, matemática, geografia, história e ciências. “Aos conselhos estaduais, se existissem, cabia escolher, dentre os vários conjuntos possíveis, as disciplinas que iriam complementar o currículo. A Filosofia é indicada aqui para o 2º ciclo” (ALVES, 2002, p.34). Somente no conjunto das disciplinas optativas, a Filosofia aparecia como Lógica, e perdia, assim, o caráter de obrigatoriedade que possuía na Reforma Gustavo Capanema. Segundo Alves, “a questão da presença ou ausência da Filosofia no ensino secundário brasileiro chega às portas do Golpe Militar de 1964, marcada por um processo de 'extinção' 6 Os cursos secundários, assim como os cursos técnicos e de formação de professores para o Ensino Primário e Pré-Primário, compreendiam o Ensino Médio, ensino em prosseguimento ao ministrado na escola primária que destinava-se à formação do adolescente. Vale ressaltar que, aqui, era preciso ter 11 anos de idade ou alcançar essa idade no correr do primeiro ano letivo do curso. 27 gradativa do currículo que se manifestou na forma de redução de sua carga horária” (2002, p.34). As reformas políticas empreendidas pelos governos militares devem ser analisadas num contexto em que predominava a ideologia da DSND (Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento). Para assegurar as melhores condições para a implementação e manutenção do modelo ecônomico de internacionalização do mercado interno, em substituição ao modelo nacional-desenvolvimentista” vigente até então, várias reformas foram elaboradas, sobretudo no campo educacional. É assim que, sob a assessoria dos técnicos da USAID, o MEC empreendeu as reformas educacionais “necessárias” para que se garantisse um desenvolvimento econômico sem entraves. Os técnicos dessa Agências norte-americana propuseram uma reformulação curricular dos diversos níveis de ensino escolar no Brasil, que deveriam se modernizar (ALVES, 2002, p.37) Essa modernização, segundo Cartolano (1985, p.71) implicava, dentre outra coisas, uma valorização das áreas técnológicas, em detrimento da formação geral e da gradativa perda de status das humanidades e ciências sociais. Visando formar quadros, ou melhor, mão-de-obra barata para preencher as categorias ocupacionais das empresas em expansão, especialmente as multinacionais que aqui se instalaram, reorganizaram-se os currículos escolares segundo o modelo tecnicista, sobretudo os do nível secundário, com vistas a formar indivíduos executantes de idéias apropriadas do exterior, em vez de formar pesquisadores e pessoas criativas a partir da realidade nacional. Nesse cenário, a Filosofia passou a ter cada vez menos importância, seja por não servir aos objetivos tecnicistas em andamento, ou porque não se coadunava também com os objetivos ideológicos, condensados na DSND (Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento) (ALVES, 2002, p.37). Criaram-se então, situações para justificar a ausência da Filosofia no currículo escolar, como por exemplo, a inclusão de outras disciplinas que, supostamente, tinham o conteúdo correspondente ao da Filosofia. Eram essas disciplinas: Educação Moral e Cívica (EMC), Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB). Mas isso não significava que tais disciplinas comportassem os conteúdos filosóficos, muito pelo contrário, mas era essa a idéia veiculada como justificativa para não incluir a Filosofia no currículo. A educação moral e cívica, por exemplo, veiculava valores fundados na moral católica e no civismo, destacando o aprimoramento do caráter, a dedicação à família e, principalmente o culto da obediência à lei. “A Filosofia era normalmente associada a essa disciplina, em nível de equivalência, de modo que se uma fosse contemplada no currículo não havia a necessidade de incluir a outra, para não sobrecarregar o currículo com disciplinas equivalentes” (ALVES, 2002, p.39). Porém, foi a Lei n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino 28 de 1º e 2º graus)7 que definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do nível secundário, até o fim do regime militar. A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus (antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75). Segundo seu Art. 1º, o ensino, tanto de 1º como de 2º grau, tinham como objetivo geral “proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para o exercício consciente da cidadania”. Tendo em vista, então, a qualificação para o trabalho, a Lei n.º 5692/71, previa em seu Art. 4º a organização dos currículos, tanto do ensino primário como o secundário, atribuindo-lhes um “núcleo comum”, obrigatório em âmbito nacional, e uma “parte diversificada”, que deveria atender às necessidades de cada escola e/ou região. As disciplinas que passaram a constituir o núcleo comum, fixadas pelo Conselho Federal de Educação foram “Comunicação e Expressão (língua portuguesa e língua estrangeira moderna), Estudos Sociais (história, geografia e organização social e política do Brasil) e Ciências (matemática e ciências físicas e biológicas)” (CARTOLANO, 1985, p.76). Além desse núcleo comum, outras disciplinas foram fixadas como obrigatórias pelo Conselho Federal. Conforme o Art. 7º da Lei n.º 5692/71, eram elas: Educação Moral e Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde; o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituiu-se disciplina dos horários normais dos estabelecimentos de ensino de 1º e 2º graus. Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino. Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a inclusão da Filosofia no currículo. [...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4). É nesse período que é criada a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF), 7 Com a Lei 5692, de 1971 o colegial passou a se denominar 2º grau, que deveria ter três ou quatro séries anuais. O ginásio incorporou-se ao ensino de 1º grau, que deveria ter a duração de 8 anos letivos. 29 em 1975, como resposta à retirada da Filosofia do currículo do ensino secundário (Lei n. º 5692/71). A SEAF nasceu devido à necessidade de se criar uma alternativa para a discussão de idéias, compartilhar estudos, etc., atividades inviabilizadas nos cursos e departamentos de Filosofia das universidades por causa da grande vigilância imposta pelo regime militar. A SEAF fazia parte de um movimento de protesto contra a exclusão da Filosofia, movimento que reivindicava a volta da disciplina ao currículo escolar. Esse movimento contou também com outras importantes referências nacionais, tais como a CONVÍVIO (Sociedade Brasileira de Cultura); o CONPEFIL (Conjunto de Pesquisa Filosófica); a ABFC (Associação Brasileira de Filósofos Católicos); o IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia), a CNDF (Coordenação Nacional dos Departamentos de Filosofia); além da marcante presença dos estudantes de Filosofia, que além de participarem das atividades das entidades já citadas, passaram a organizar seus próprios encontros, os ENEFILS (Encontros Nacionais de Estudantes de Filosofia). Outro acontecimento marcante desse movimento de protesto foi a criação da ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), em 1983. A ANPOF não demonstrava grandes interesses pelas questões que inspiravam a SEAF, inclusive no que dizia respeito à reintrodução da Filosofia no 2º grau, no entanto, passou a ser oficialmente reconhecida como representante da área de filosofia junto “aos órgão públicos federais de fomento para ensino, pesquisa e extensão, começando a receber verbas da CAPES e do CNPq ...” (ALVES, 2002, p. 51). A Filosofia voltou ao currículo no Rio de Janeiro, como “noções de Filosofia”, pelo parecer CEE/RJ n. 49, de 21 de janeiro de 1980. A Filosofia retornou ao ambiente escolar, mas como uma disciplina optativa, controlada/vigiada e muitas vezes ministrada por professores formados em outras áreas do conhecimento. A forma como foi reintroduzida, portanto, não correspondeu, em muitos aspectos, àquilo que pretendiam as várias entidades representativas do movimento. Já que até o momento a Filosofia não havia encontrado nenhum respaldo nos órgãos oficiais, responsáveis pela política educacional do governo, por que, então, a sua inclusão no currículo do secundário passava a ser interessante aos olhos do governo, vale dizer do ESN? Para responder tal questão, é preciso contextualizar o momento. Era o período do desgaste do “milagre econômico”, que teve como efeito, dentre outras coisas, a queda do nível de vida das camadas médias, contribuindo, assim, para aumentar o clima de oposição ao regime militar. Com uma oposição quase generalizada, vinda de vários setores da sociedade, 30 inclusive de setores da elite, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ABI (Associação Brasileira de Imprensa), CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), universidades etc., o governo começou a não poder mais assegurar a „ordem‟ por meio da repressão indiscriminada e violenta, sendo obrigado a buscar outras formas de legitimação. (ALVES, 2002, P. 49). Teve início, então, o processo de “redemocratização” da sociedade, marcado por uma política de abertura lenta, gradual e segura dos Governos Geisel e Figueiredo, o que significou uma estratégia muito bem articulada de recomposição da hegemonia do ESN, que conseguiu renovar sua legitimidade perante a elite oposicionista e, ao mesmo tempo, assegurar a continuidade do modelo político e econômico vigente. Assim, tudo indica que a reintrodução da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário, nesse momento, fez parte da estratégia do ESN para a recomposição da sua hegemonia, reafirmando o discurso oficial de democratização da sociedade. Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei nº 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma “presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas. Presença inócua porque o discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma presença efetiva dessa disciplina nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade da Filosofia está presente na lei, mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não nos é possível afirmar com precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio, se como uma disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada de forma transversal em outras disciplinas. Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento. Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a tomar (SEVERINO, 2002, p. 65). Segundo Alves (2002), a Lei número 9.394/96 é o cumprimento de um programa cujo principal objetivo é a centralidade da educação. Tal programa começou a ser implementado no Brasil de forma mais incisiva e sistemática no governo de Fernando Collor de Melo, e que foi sustentado com maior competência pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em seus dois mandatos. Não é coincidência que, depois de oito anos, a lei tenha sido aprovada nesse período. Ela finalmente estava de acordo com os “interesses privatistas e com o ideário neoliberal” (ALVES, 2002, p. 64). A Lei, nos moldes almejados pela iniciativa privada e pelo MEC, foi sancionada sem vetos pelo então presidente da República Fernando Henrique Cardoso. 31 Ainda segundo Alves (2002), essa Lei é um marco simbólico de uma „guinada‟ neoconvervadora em educação no Brasil, na década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que se caracteriza pelo combate intransigente aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade da classe trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos econômicos, defendendo o postulado de que “o mercado é a lei social soberana” ( 2002, p. 63). Como diz Saviani: Seria possível considerar esse tipo de orientação e, portanto, essa concepção de LDB, como uma concepção neoliberal? Levando-se em conta o significado correntemente atribuído ao conceito neoliberal, a saber: valorização dos mecanismos de mercado, apelo à iniciativa privada e às organizações não governamentais em detrimento do lugar e do papel do Estado e das iniciativas do setor público, com a conseqüente redução das ações e dos investimentos públicos, a resposta será positiva (2003, p. 200). Por aproximadamente três anos, tramitou na Câmara e no Senado Federal, um projeto de lei complementar que substituiria o artigo 36 da LDB, definindo a obrigatoriedade das disciplinas de filosofia e sociologia nos currículos do Ensino Médio. Após a aprovação do projeto nessas duas instâncias do Poder Legislativo Federal, ele foi vetado, em outubro de 2001, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso. Os argumentos que sustentaram o veto foram basicamente dois [...] a) a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia implicaria incremento orçamentário impossível de ser arcado pelos estados e municípios; b) não haveria suficientes professores formados para fazer frente às novas exigências da obrigatoriedade da disciplina (FÁVERO, CEPPAS, GONTIJO, GALLO, KOHAN, 2003, p. 260). Mas em 2 de junho de 2008, a lei número 11.684 alterou o artigo 36 da lei número 9.394/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino médio. Como se pode ver, a Filosofia tem uma certa presença na educação brasileira, por isso, é relevante estudar sua situação como componente obrigatório do currículo do Ensino Médio para que se possa compreender por que, nos dias atuais, ela voltou a ser algo relevante para a formação dos jovens. 32 A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio. A atual LDB reforça a necessidade de se proporcionar uma formação básica comum para todos os educandos em território nacional. Tem-se, então, a necessidade de se estabelecer diretrizes básicas que norteiem os currículos. É neste contexto em que surgem os documentos oficiais que estabelecem orientações e parâmetros para a organização curricular no país. São estes documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); os PCN+ (Orientações Educacionais Complementares aos PCN); e as Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (OCNEM), datados respectivamente de 2000, 2002 e 2006. É importante frisar que a existência desses documentos não significa que exista um sistema nacional de ensino no Brasil. Os PCN, os PCN+ e as OCNEM são apenas modelos, sugestões, que podem ou não ser seguidos. Esses documentos são parâmetros, e não ditames. Esses três documentos constituem uma reiteração das diretrizes e finalidades do Ensino Médio expressas na LDB. Dessa forma, as concepções de formação e de cidadão expressas na LDB figuram como uma espécie de pano de fundo desses documentos: será com vistas nessas concepções que os documentos farão suas propostas. Assim sendo, analisar como se dá a presença da Filosofia nesses três documentos ajudaria ainda mais a entende-la como disciplina escolar, além de ajudar a ver a evolução da importância dada à sua presença no currículo do Ensino Médio. Se considerarmos como “princípios gerais do Ensino Médio” os definidos na Lei de Diretrizes e Bases, o espírito da proposta de ensino desenvolvida na parte dos PCNEM dedicada à Filosofia, é bem coerente com a concepção assumida nos textos que compõem as Bases Legais. A coerência entre os textos dos PCN da Filosofia e a lei, repousa em concepções de ensino e de Filosofia que se aproximam em muitos pontos, particularmente nos conceitos de razão, crítica, interdisciplinaridade, contextualização e competência, sobretudo se levarmos em conta o Parecer CEB/CNE nº 15/98 que compõe as Diretrizes. No entanto, essa coerência repousa sobre uma ambigüidade fundamental (não um conflito explícito) entre os textos da lei - LDB e as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 03/98) - e a parte dos 3 documentos dedicada à Filosofia. Enquanto a LDB e as DCNEM (em seu texto original), ao mesmo tempo em que valorizam os conhecimentos de Filosofia como necessários ao 33 exercício da cidadania, não asseguram a oferta destes no Ensino Médio, os Parâmetros, os PCN+ e as OCNEM defendem sua obrigatoriedade, embora discordem entre si quanto à forma como tal obrigatoriedade deva ocorrer. Os Parâmetros defendem a transversalidade, os PCN+ defendem um currículo elaborado em torno de eixos temáticos (começam a dar elementos para a exigência de um espaço próprio para os conteúdos de Filosofia, mas ainda não falam em um conteúdo obrigatório) e as OCNEM defendem que a Filosofia deva ser disciplina obrigatória e indicam um currículo baseado nos seus conteúdos construídos historicamente (algo como uma história da Filosofia). É neste quesito (defesa da obrigatoriedade) que se encontra a principal diferença entre os três documentos. Os PCNEM, embora defendam a importância e a obrigatoriedade da Filosofia , afirmam que ela deve ser tratada com interdisciplinaridade (estando assim, de acordo com as DCNEM), pois assim o “papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer posição em que estivermos, ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes perspectivas teóricas e pedagógicas que compõem o universo escolar” (PCNEM/Filosofia, p.46). De acordo com o texto dos PCNEM/Filosofia, ela possui uma natureza transdisciplinar8, o que poderia colaborar decisivamente no trabalho de articulação entre os diferentes sistemas teóricos. Segundo o texto, essa transdisciplinaridade da Filosofia poderia, por exemplo, levar o estudante a compreender de forma reflexiva, conteúdos das Ciências Naturais, das Ciências Humanas e das Artes. Vale frisar que há nos PCNEM uma grande defesa de um currículo interdisciplinar, ou seja, não mais organizado em disciplinas. De acordo com o texto: [...] nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de fundo cultural fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino de disciplinas isoladas, para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a falência e a insuficiência de nossos modelos educacionais, do ponto de vista de seus mais altos objetivos, os quais exigem a formação de competências gerais e básicas nos planos cognitivo, instrumental, moral, político e estético. A reforma curricular que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa distorção (PCN/Filosofia, p.56). A interdisciplinaridade viria, então, ajudar na busca por uma contextualização do conhecimento escolar, evitando sua compartimentalização. Assim, os PCNEM/Filosofia não indicam conteúdos de Filosofia, apenas apontam competências e habilidades que devem ser desenvolvidas. 8 Transversalidade e interdisciplinaridade são modos de se trabalhar o conhecimento buscando a reintegração de aspectos que ficaram isolados uns dos outros pelo tratamento disciplinar. 34 Tal atitude parece ser um tanto quanto falha, uma vez que não é possível exercitar a “reflexão sobre” sem estar ciente de fenômenos, conceitos e conteúdos próprios de uma determinada área. Segundo Gallo (2002), só se pode tranversalizar a partir de uma singularidade. Sem a singularidade da Filosofia estar presenta na escola, através de um professor bem formado, apto a promover a atividade filosófica com os jovens estudantes, não haverá possibilidade de um aporte de fato filosófico (GALLO, 2002, p.287) Não se pode ignorar que, como área do conhecimento, a Filosofia possui conteúdo cultural, métodos e mecanismos próprios. Ela não é apenas reflexão sobre as outras áreas do conhecimento. Fica claro, então, que nos PCNEM/Filosofia, não há uma defesa de um espaço próprio para os conhecimentos de Filosofia. Nesse pontos, os PCN+/Filosofia “avançam” um passo em relação aos PCN/Filosofia, pois embora não defendam explicitamente que a Filosofia deva ter um espaço próprio, eles defendem o uso de conteúdos programáticos no desenvolvimento de competências e habilidades. O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos progrmáticos, e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais inéditas e complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes acumulados se não se transformassem em condições para serem aplicadas no trabalho, no convívio da família, no lazer, nas mais diversas situações que exijam reconfigurações do conhecimento (PCN+/Filosofia, p.49) Nos PCN+/Filosofia também há uma argumentação a favor da utilização da interdisciplinaridade na organização curricular nacional. Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica,tentando dar conta da avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas inúmeras disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma aprendizagem fragmentada da realidade (PCN+/Filosofia, p.49) E também defendem que a Filosofia possui uma natureza transdisciplinar e, portanto, teria uma vocação para “a visão de conjunto, para a percepção da totalidade” (p.49). Mas, como dissemos anteriormente, ao contrário dos PCNEM/Filosofia, que defendem a Filosofia apenas como uma reflexão, os PCN+/Filosofia afirmam que é através da articulação de conceitos e conteúdos próprios da Filosofia que as competências e habilidades serão desenvolvidas. Em outras palavras, começam a dar elementos para a exigência de um espaço próprio para os conteúdos de Filosofia. Os PCNN+/Filosofia sugerem um currículo baseado em eixos temáticos derivados “dos conceitos estruturadores e das competências sugeridas para a àrea em geral e para cada disciplina” (p.52). Por exemplo, uma dos eixos temáticos 35 sugeridos é o “Relações de poder e democracia”, dentro desse eixo há o tema “Democracia grega” e dentro deste temos os subtemas “A ágora e a assembléia: igualdade nas leis e no direito à palavra” e “Democracia direta: formas contemporâneas possíveis de participação da sociedade civil”. A idéia por detrás desse currículo seria introduzir discussões acerca do mundo moderno através de temas filosóficos. Já nas OCNEM/Filosofia, de 2006, encontramos uma explícita defesa de um espaço próprio e obrigatória para a Filosofia. A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio [...] O tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi o, pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são possíveis se forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos (OCNEM/Filosofia, p.15) De acordo com o texto do documento, rediscutir os parâmetros para a Filosofia traria “novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes curriculares do Ensino Médio” (p.16). Segundo as OCNEM/Filosofia, os PCNEM/Filosofia contêm muitas ambigüidades, e a maioria delas são resultado de uma indefinição: a de apontar a necessidade da Filosofia sem, no entanto, oferecer-lhe as adequadas condições curriculares. A origatoriedade da disciplina seria algo essencial para qualquer debate interdisciplinar, pois sem estar presente (com um espaço próprio) a Filosofia nada teria a dizer, pois não seria considerada como um conjunto particular de conteúdos e técnicas. Ela acabaria se tornando “uma vulgarização perigosa de boas intenções que só podem conduzir a péssimos resultados” (p.17) As Orientações indicam um currículo baseado numa abordagem história dos conteúdos de Filosofia. O texto argumenta que o aspecto peculiar da Filosofia, que a diferencia das outras áreas do saber, é a relação singular que ela mantém com sua história, “sempre retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e sentido” (p.27). De acordo com o documento, pedir aos alunos que pensem e reflitam sobre os problemas modernos do ser-humano sem oferecer-lhes a base teórica seria a mesma coisa que pedir-lhes que descubram por si mesmos qual a é a fórmula da gravitação sem estudar Física. Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educando (OCNEM/Filosofia, p.27) Logo no primeiro parágrafo da Introdução das OCNEM/Filosofia podemos ler: A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é condição para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível 36 de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando (p.15) É evidente que, não podendo tornar obrigatório o que a LDB apenas faculta 9, os documentos tomam a defesa da área e recomendam a presença obrigatória de um profissional de filosofia no Ensino Médio. É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo dispensar a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica dos diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe frisar que o conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que, portanto, não pode ser adequadamente tratado por leigos. (PCN/Filosofia, p. 56) Levando em conta a legislação educacional em vigor, em especial a LDB/96, que, ao definir o perfil de saída do egresso do Ensino Médio, prescreve que este deve apresentar, dentre outras coisas, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, três questões são discutidas nos textos dos PCNEM/Filosofia e das OCNEM/Filosofia: “(a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo?” (PCNEM/ Filosofia, p.46). A discussão sobre a questão (a)”que conhecimentos são necessários?” foi deixada para o final, pois, segundo os autores ela está inserida no contexto do debate sobre “as competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por isso iniciam abordando, primeiramente a questão (b)”que Filosofia?” (ALVES, 2002, p.97). Por isso, nos Parâmetros e nas Orientações, a primeira questão contemplada é a necessidade e a importância do professor de Filosofia realizar, não só em sua prática junto aos alunos mas também na sua construção de identidade como docente de Filosofia, uma reflexão acerca do problema “O que é Filosofia?”. Nos Parâmetros lemos: Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) “que Filosofia?” decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. (PCN/Filosofia, p.48). A mesma tese é apresentada nas Orientações Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta “que filosofia?” sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que considere justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiológica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina (OCN/Filosofia, p.24). Sinaliza-se, então, a necessidade do professor construir sua identidade enquanto um agente que atua dentro de um conjunto sistematizado de conhecimentos. Assim sendo, a 9 Todos os documentos aqui trabalhados foram escritos antes da mudança no Art.36 da LDB. 37 definição filosófica adotada pelo professor está atrelada à construção da própria identidade do professor como sujeito e não apenas como professor de Filosofia. Ou seja, a posição do professor diante da questão “que Filosofia” não significa somente definir sua concepção filosófica, trata-se de um posicionamento político diante de seu trabalho. Isto implica a opção por um determinado modo de filosofar que o(a) professor(a) considera justificado. Definir o conceito de Filosofia é, então, o passo fundante do processo de se ensinar Filosofia; significa dizer, desde o início, com qual autor, com qual referencial teórico irá trabalhar; é, enfim, assumir “uma postura filosófica em torno dos problemas filosóficos emergidos no processo de ensino” (Danelon, 2010, p.109). No entanto, ao mesmo tempo em que defendem que o professor deve ter definido seu próprio conceito de Filosofia (o que implica escolher determinada corrente filosófica) a ser assumido em sua prática pedagógica, tanto os PCNEM como os PCN+, como as OCNEM, baseando-se na Resolução CNE/CEB nº 03/98, ao definirem quais valores devem ser trabalhados para uma formação cidadã, acabam por delimitar a ação pedagógica. Isso porque não são todas as correntes filosóficas que abordam tais valores. Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente apresentados na Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98: I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. (PCNEM/Filosofia, p. 48) É importante relembrar, nesta altura, a afirmação de Goodson (2001) de que não existe uma total dicotomia entre o currículo escrito e o currículo interativo. O currículo escrito não é irrelevante para a prática pedagógica (por mais que o (a) professor (a) tenha sua autonomia uma vez que a porta da sala de aula se feche), esta não está completamente livre das definições pré-ativas. Embora seja possível para a prática subverter ou transcender tais definições, a definição do que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades sociais e políticas que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala de aula. Nem o currículo escrito, nem o currículo interativo são fatos consumados: ambos são uma práxis. Um bom exemplo da influência das definições pré-ativas na prática pedagógica é o vestibular, que é “construído” baseado na LDB e nas DCNEM. Isso porque, mesmo que o(a) professor(a) tenha sua autonomia dentro da sala de aula, ele(a) ainda tem que “passar” para seus(as) alunos(as) os conhecimentos exigidos pelo vestibular. Afinal, uma das finalidades da 38 educação básica é fornecer ao educando “meios para progredir no trabalho e e em estudos posteriores” (LDB, Art 22º). Num segundo momento a questão (c) é discutida. A cidadania é tomada em três dimensões distintas: estética, ética e política. [...]A perspectiva estética, ou da sensibilidade, volta-se para questões de “natureza interna” e “se traduz na fluência da expressão subjetiva e na livre aceitação da diferença (Brasil, SEMTEC, 199b, p.97): ela é expressão da capacidade de abertura para o outro, o diferente, a novidade etc. No aspecto ético ou identidade autônoma, “a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de respeito universal e liberdade na tomada de posição” (idem, ibidem) [...] do ponto de vista político, ou da participação democrática, deve-se garantir o acesso de todos aos bens culturais e naturais existentes; o respeito às opiniões e aos estilos de vida de cada cidadão e o engajamento concreto na construção de uma sociedade democrática (ALVES, 2002, p.98) A discussão acerca da questão “(a) que conhecimentos são necessários?” é desenvolvida no item “Competências e Habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia”. Os Parâmetros, assim como as Orientações, na parte específica sobre “Conhecimentos de Filosofia”, apóiam-se, de início, no artigo 35 da LDB, que define as finalidades do Ensino Médio e insistem na contribuição decisiva da Filosofia para o alcance das seguintes finalidades: Art. 35º. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. Nos PCN+ encontramos a mesma referência ao artigo 35 da LDB. Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos quais poderemos partir [...] o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico (inciso III) e a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV); [...] (PCN+/Filosofia, p.41) Em seguida, complementam sua afirmação com o texto do Art. 36º, reforçando o domínio de conhecimentos necessários à cidadania. Com isso, os documentos acolhem como meritório o que parece ser um aspecto problemático: o de restringir o interesse essencial da Filosofia, que deve ser ministrada no Ensino Médio, a questões, aparentemente, de Filosofia 39 Política, sendo convocada, talvez, em lugar da Educação Moral e Cívica ou da Organização Social e Política Brasileira, com o objetivo de desempenhar um papel politicamente correto. À medida que o texto continua, os conhecimentos de Filosofia se traduzem em competências e habilidades. Parece-nos que, tanto os PCNEM/Filosofia quanto os PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia (embora estes dois últimos defendam um espaço próprio para a Filosofia), não defendem conteúdos de Filosofia que possam, em tese, contribuir para a formação dos jovens, mas sim atitudes e competências ditas filosóficas, como a competência da leitura – que não é qualquer leitura, mas uma que envolva a capacidade de análise, de interpretação, de reconstrução racional e de crítica. O texto dos documentos destaca principalmente I)competências comunicativas e II)competências cívicas. A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas [...] (OCNEM/Filosofia, p.30) Poderíamos, até mesmo, fazer um paralelo com as aulas de retórica ministradas pelos Sofistas na Grécia Antiga. A retórica era a arte de persuadir, independentemente das razões adotadas. A grande crítica feita aos Sofistas, principalmente por Platão, era a de que os Sofistas apenas formavam grande oradores, com uma capacidade de argumentar a favor de qualquer ideal, não formavam sujeitos que dominassem os conhecimentos filosóficos. No diálogo Sofista, Platão demonstra que a sofística tinha como objetivo o desenvolvimento do poder de argumentação, da habilidade retórica. Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida que se traduzem em competências, não coincidem, necessariamente, com conteúdos, digamos, de ética e de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida, é a contribuição mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o desenvolvimento geral de competências comunicativas [...] (OCNEM/Filosofia, p.30) Todos os três documentos defendem o desenvolvimento de habilidades e competências. A grande diferença entre eles consiste no dato de que os PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia afirmam que tais habilidades e competências devem ser desenvolvidas através de conceitos/conteúdos próprios da Filosofia. No entanto, é preciso ter claro que tais conceitos e conteúdos assumem um papel secundário. Eles não são o objetivo final da 40 disciplina, eles são o meio para desenvolver habilidades e competências ditas filosóficas. Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências gerais. Ou seja, mais do que ensinar, deve “fazer aprender”, uma vez que não se pode prever as modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais diversos campos da cultura. O importante, no entando, não consiste em menosprezar os conteúdos programáticos, e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais inéditas e complexas situações reais (PCN+/Filosofia, p 46). A pergunta que se faz é: “qual a contribuição específica da Filosofia em relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação?” (OCNEM/Filosofia, p.26). A solução proposta destaca o papel da Filosofia no desenvolvimento das competências da fala, da leitura e da escrita. Nos três documentos são listadas, dentre outras, as competências e habilidades de ler textos filosóficos de modo significativo; ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo; debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face de argumentos mais consistentes. Nas OCNEM/Filosofia lemos: A resposta a essa questão destaca o papel peculiar da fi losofi a no desenvolvimento da competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de um modo bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofi a e à sua tradição histórica. Cabe, então, especifi camente à Filosofi a a capacidade de análise, de reconstrução racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos fi losófi cos quanto textos não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania. (p.26) Em outras palavras: quando o(a) aluno(a) exercita bem a fala (expressão oral de sua reflexão filosófica), a escrita (produção material de sua reflexão filosófica) e a leitura (subsídio para a reflexão filosófica), ele(a) desenvolve competências que contribuem para o exercício geral da cidadania. Isso é coerente, já que a cidadania é um exercício e a Filosofia pode contribuir com tal exercício na medida em que ajuda no desenvolvimento das já citadas competências. Porém, encontramos aqui um “problema”. Se mais acima localizamos algumas contradições entre textos dos PCNEM/Filosofia, dos PCN+/Filosofia e das OCNEM/Filosofia e o texto da LDB/96, encontramos aqui mais uma. Observemos que o Art. 36º da LDB/96 não faz referência a competências necessárias ao exercício da cidania, mas sim a conhecimentos de Filosofia necessários ao exercício da cidadania; ou seja, quais conceitos, idéias, sistemas da filosofia podem contribuir para o exercício da cidadania. 41 Nesse ponto a LDB é extremamente diretiva naquilo que propõe como finalidade da Filosofia. O Art. 36 demanda uma resposta à pergunta “quais conhecimentos/conteúdos podem ser ministrados visando colaborar com os jovens para o exercício da cidadania. Essa era, de fato, a demanda feita pela LDB à Filosofia. De acordo com Falleiros (2005), o enfoque em competências e habilidades é proposto objetivando a adaptação dos alunos(as) – novos adultos – às instáveis condições sociais e profissionais. Apesar da importância dada ao conhecimento, à tecnologia e à ciência, não são estes que ganham prioridade nas propostas. Ainda segundo Falleiros (2005), um risoc que se corre ao adotar a pedagogia das competências é que o conhecimento sistematizado para atingir as competências e habilidades desejadas seja desvinculado da história, seja “desideoligizado”, desxontextualizado e acrítico. Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia apresentam uma proposta de especificidade das Filosofia. Ambos os documentos remetem aos mesmos argumentos na demarcação da especificidade da Filosofia. O específico da Filosofia é a reflexão. No PCNEM/Filosofia lemos À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também verdade que essa dispersão discreta de um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da academia, mas que certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a ensaiar um retorno à praça públicas, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em sua natureza reflexiva. (p.47) Ou seja, é específico da Filosofia a reflexão como atividade, sem ela não há Filosofia. A reflexão, segundo o PCNEM/Filosofia abrange duas dimensões distintas, mas que se confundem: a reconstrução e a crítica. [...] a reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que pode(m) ser entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s) epistemologia(s) e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar teoreticamente um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras; a crítica, quando a reflexão se volta para os modelos de percepção e ação compulsivamente restritos, pelos quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e, por um esforço de análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter propriamente ilusório.(PCNEM/Filosofia, p.47). Nas OCNEM/Filosofia o argumento também versa sobre a reflexão Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do filosofar, não importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos 42 localizar o que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi lósofos sopesar os conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugarescomuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reflexão (OCNEM/Filosofia, p.22). Mais adiante o documento afirma: .Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania (OCNEM/Filosofia, p.26). Nos PCN+/Filosofia a reflexão também é tida como eixo orientador da Filosofia: [...] optamos por assumir determinada orientação – uma entre muitas possíveis, voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais como uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. (PCN+/Filosofia, p. 44). No entanto, segundo Gallo (2002), a Filosofia é a criação de conceitos, essa é a sua ferramenta básica de trabalho. A Filosofia é, então, necessariamente, ação; é produção, é um ato essencialmente criativo. Assim, sendo, enquanto atividade, a Filosofia não é contemplação nem diálogo nem reflexão, muito menos discussão. Além de não garantir a singularidade da Filosofia, a sua limitação ao ato de refletir a despontencializa como empreendimento criativo: se o filósofo limita-se a refletir, ele nada cria (Gallo, 2002, p.280). Além disso, a reflexão é, de fato, uma atividade específica do ser-humano, que é capaz de refletir sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo. Isto posto, a definição da especificade da Filosofia nos permite remeter a outras interrogações, a saber, qual é a natureza da reflexão filosófica que a diferencia de outras formas de reflexão? Seria a capacidade argumentativa? A rigorosidade na elaboração das definições e dos conceitos? O enfrentamento na natureza da reflexão filosófica que poderia demarcar a diferença da reflexão do filósofo e do sociólogo ou do psicólogo, por exemplo, não encontra moradia nesses documentos oficiais, de forma que fica estabelecido um hiato conceitual acerca do que é, especificamente, a reflexão filosófica (Danelon, 2010, p.116). A definição da atividade reflexiva como especificidade da Filosofia demarca um campo conceitual. Os três documentos introduzem o tema da cidadania no campo conceitual da especificidade da Filosofia. No entanto, não argumentam o porquê da cidadania pertencer à especificidade da Filosofia. Os documentos trazem à tona o tema da cidadania para responder aos dois documentos normativos da Educação Brasileira: a LDB/96 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no Parecer CNE/CEB n.º 15/98). 43 Ambos apresentam a cidadania como finalidade da educação básica e, conseqüentemente, como guia para a organização curricular do Ensino Médio. Nessas questões ((a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo?) vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes entre os professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não quanto ao “norte educativo”, centrado na formação da cidadania. (PCN+/Filosofia, p. 43). Os 3 documentos trabalhados aqui foram escritos quando ainda rezava na LDB/96 a antiga redação do Art.36, no entanto, a revogação desse artigo não interfere no fato de que a Filosofia, agora com configuração de conteúdo obrigatório, responde à LDB/96 e às DCNEM que, conforme vimos, determinam o exercício da cidadania como finalidade do Ensino Médio. Fica evidente que a Filosofia não está livre e/ou imune às perspectivas que acabam por direcioná-la. Conforme vimos anteriormente, segundo Goodson (2001) o currículo não existe à margem do sistema socioeconômico, da cultura etc. Por isso a seleção dos conteúdos depende necessariamente de finalidades específicas previstas para a educação. “Tomar o currículo como um dado significa renunciar a um vasto conjunto de entendimentos sobre aspectos do controlo e do funcionamento da escola e da sala de aula” (Goodson, 2001, p.57/58). A presença de uma disciplina no currículo se articula ao papel político que esta desempenha ou tende a desempenhar. É importante ressaltar que a escola não é um espaço neutro. Ela é antes de tudo, uma instituição de controle social e de formação de subjetividades, um dispositivo que normaliza e simultaneamente totaliza enquanto engloba, ou procura englobar, os que assistem a ela, naquilo que uma instância exterior determina como normal e sanciona como correto. Como tal, a escola produz e reproduz saberes e valores afirmados socialmente (Kohan; Waksman, 1998, p. 85). Os autores Pedro Gontijo e Erasmo B. Valadão, no texto “Ensino de Filosofia no Ensino Médio nas escolas públicas do Distrito Federal” (2004) a partir de entrevistas com professores (as) de Filosofia do Distrito Federal, estabeleceram 3 sentidos que eles(as) atribuem ao ensino de Filosofia no Ensino Médio: 1 – O ensino de filosofia como um espaço onde se fornecem aos alunos instrumentos e/ou métodos do aprender a “pensar”, estudar e escrever. Como uma ajuda aos alunos para terem um argumento logicamente organizado e fundamentado que os auxilie em qualquer área do conhecimento, ou mesmo em como organizarem um trabalho acadêmico [...] 2 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinação política e ideológica, partindo-se do pressuposto de que os alunos são alienados politicamente e a filosofia teria o papel de libertá-los dessa alienação [...] 3 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinamento moral. Parece que seria papel da filosofia ajudar os alunos a “encontrarem o caminho”, 44 levá-los a perceber como devem se portar moralmente. Parte-se de alguma concepção, por exemplo de cidadania ou de civilidade, como modelo e justifica-se sua primazia sobre outras concepções. [...] (p.297) Particularmente o 3º sentido, que é o que mais nos interessa aqui, reflete, segundo os autores, o entendimento dado à Filosofia pela Secretaria de Educação do Distrito Federal. De acordo com os autores, ao estipular valores como “responsabilidade pelo bem comum” e “reconhecer direitos humanos e lutar por eles”, a Secretaria da Educação manifesta o que deseja com a Filosofia na escola. A partir destes eixos fica uma impressão de que o que a Secretaria de Educação deseja com a filosofia no ensino médio seja, de certo modo, pouco filosófico e mais um processo de doutrinamento ético. Quando enfatiza tanto o reconhecer, o valorizar e optar os aspectos acima citados, parece haver toda uma visão de mundo, de sociedade e de ser humano que coloca o papel da filosofia como aquela que possibilitará chegar ao que é o bem e o que é o certo. Expressados por certa visão de bem comum, de direitos humanos, de indivíduo autônomo, de desenvolvimento e de reflexão ética, pouco sobra espaço para uma crítica a estas concepções. Afirmamos que muito mais interessante é se a filosofia possibilitar aos alunos um espaço para refletirem e problematizarem sobre estes conceitos. (GONTIJO; VALADÃO, 2004, p.297). Os autores demonstram enorme preocupação com a vinculação da Filosofia ao aparato político através de documentos normativos, pois estes apontam um real direcionamento político e ideológico. Para além do Distrito Federal, a LDB e as DCNEM também definem valores e princípios que nortearão a educação nacional. As DCNEM, inspiradas na LDB, definem os valores norteadores da educação nacional: Art. 2º. A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores apresentados na Lei 9.394, a saber: I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. Vale relembrar que a LDB/96 é o marco simbólico de uma “guinada” neoconservadora na educação brasileira, na década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que, segundo Alves (2002, p.63) “se caracteriza pelo combate intransigente aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade da classe trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos econômicos, defendendo o postulado de que o mercado é a lei social soberana [...]”. A discussão, votação e promulgação da atual LDB se deu num momento específico da história político-econômica do Brasil, marcado por uma tendência apresentada como inovadora e capaz de trazer a modernidade ao país. Assim, no contexto da globalização de todos os setores da vida social, as elites responsáveis pela gestão político-administrativa do país rearticulam suas alianças com parceiros estrangeiros, investindo na inserção do Brasil na ordem mundial desenhada pelo modelo 45 neoliberal. De acordo com esse modelo, o processo fundamental da história humana deve ser conduzido pelas forças da própria sociedade civil e não mais pela administração via aparelho do Estado. Entende-se que o motor da vida social é o mercado e não a administração política. As leis gerais são aquelas da economia do mercado e não as da economia política. E o mercado se regula por forças concorrenciais, nascidas dos interesses dos indivíduos e grupos, que se vetorizam no interior da própria sociedade civil; de onde a proposta do Estado mínimo e os elogios à fecundidade da livre iniciativa, à privatização generalizada etc. (SEVERINO, 2002, p.61) Ainda segundo Alves (2002), a LDB/96 é o cumprimeto de um programa que começou a ser implementado no Brasil no governo de Fernando Collor, e que foi sustentado mais sistematicamente no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LDB/96 foi aprovada e promulgada nesse período por estar de acordo com interesses privatistas e com a ideologia neoliberal. Segundo Marrach (1996), a modernização em curso pretende transformar o Estado em Estado-mínimo, desenvolver a economia, fazer a reforma educacional e aumentar o poder da iniciativa privada, por meio do consenso ideológico. Existe, então, uma real possibilidade de direcionamento político e ideológico da Filosofia. Além dos valores explicitados que devem ser trabalhados para uma formação cidadã, apresentados tanto no Art.2º da LDB/96 como no Art.2º das DCNEM (Resolução CNE/CEB nº3/98), outras normas e valores podem permear as disposições legais, implicitamente. É aquilo que Apple definiu como currículo oculto. Segundo Apple (1999), o currículo oculto é constituído por normas e valores que não são mencionados nos objetivos formalizados. Segundo o autor, a hegemonia de um conjunto ideológico não é produzida e reproduzida somente pelo corpus formal do currículo. Por detrás dos ideais explicitados na lei, existe uma certa concepção de ser-humano, de homem, de mulher, de trabalho, de ética etc. O ensino escolar não se reduz ao que os programa oficiais dizem que querem transmitir. [...] a Filosofia institucionalizada torna-se uma disciplina da grade curricular, inserida, portanto, nesta tessitura ideológica e nos discursos hegemônicos que se ramificam na vida social; está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo e de sociedade, bem como um ideal de ser humano a ser formado (Danelon, 2010, p121). A lei pressupões valores que definem um modelo de ser-humano, de cidadão a ser formado pela educação. Fazemos referência, aqui, ao Art.27 da LDB, que define as diretrizes da educação básica. Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática[...] III - orientação para o trabalho [...] 46 Há aqui, explicitamente, um modelo de ética, de cidadão, de moral. Já está definido nesses documentos o cenário em que a Filosofia se inclui, bem como sua finalidade. Vale lembrar que a legislação estadual não pode sobrepor-se à federal. O que ocorre, portanto, é a organização da educação, seja em nível federal ou municipal, a partir de valores e princípios apresentados na LDB/96 e nas DCNEM. Como a Filosofia agora faz parte do aparato escolar, ela não está descolada desses documentos normativos. Os documentos oficiais postulam um direcionamento à Filosofia. Isso porque os documentos não são neutros e/ou desiteressados, mas sim carregados com os interesses dos diversos sujeitos envolvidos na sua formulação. Não estamos aqui negando a autonomia e a liberdade que o(a) professor(a) tem em sua sala de aula a partir do momento em que a porta da sala de aula se fechada. Mas não podemos esquecer que os alunos serão avaliados (SARESP, ENEM, vestibulares etc). Tais avaliações serão organizadas de acordo com os objetivos determinados na lei para o Ensino Médio, serão organizadas para verficiar se os egressos atingiram aquilo que era esperado deles. Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia são inspiradores dos projetos pedagógicos e, conseqüentemente, da avaliação destes. Acreditar que a Filosofia, uma vez, institucionalizada no aparato legal/burocrático do sistema de ensino, conserva, mesmo assim, total independência e autonomia é uma olhar demasiado superficial que toma a Filosofia como o mais importante dos saberes e que se justifica por si mesma, além de denotar um romantismo roussiniano (sic) que toma a tarefa de preceptor em Filosofia independente e desligada do meio social, muito mais próxima, à luz de Rousseau, da natureza (Danelon, 2010, p.121). A Filosofia institucionalizada, então, torna-se uma disciplina inserida em um determinado contexto ideológico e está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo e de sociedade. Não queremos afirmar que a Filosofia deva ser neutra, mesmo porque a neutralidade é impossível dado que todo discurso vincula valores, idéias e ideologias. Porém, demandar para a Filosofia a tarefa de propagar discursos hegemônicos é abstrair dela a diversidade de idéias e conceitos, bem como de interpretações e visões de mundo que encontramos na história da Filosofia (Danelon, 2010, p.121). 47 A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996 até a promulgação da Lei nº 11.684/2008 O desenrolar histórico da presença/ausência da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio, nunca foi linear ou harmônico. Por se tratar de um nível de ensino que passou por muitas reformas (ou crises de identidade), ora voltando-se para a formação profissional, ora para a formação geral do indivíduo, a história da presença/ausência da Filosofia no Ensino Médio foi marcada por muitos conflitos, lutas, resistências. A Filosofia esteve ausente do currículo do Ensino Médio desde a promulgação da Lei n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus), que definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do nível secundário, até o fim do regime militar. A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus (antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75). Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino. Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a inclusão da Filosofia no currículo. [...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4). Até 1971, o Ensino Médio estava basicamente centrado na formação humanística, voltada para a preparação da elite brasileira para ocupar as profissões consideradas dignas/nobres: medicina, direito e engenharia; para as atividades intelectuais e artísticas. A preparação para o trabalho, ou ensino profissionalizante, era somente oferecido aos jovens das classes mais baixas. Essa “modalidade” de ensino, até então, era uma forma de controle da pobreza. O Ensino Médio (aquele voltado para as elites) tinha uma caráter clássico e científico, isso porque havia uma grande valorização do passado (dos clássicos) andando de mãos dadas 48 com as ciências, que eram necessárias para o estudo da sociedade moderna. Visava-se, então, formar o ser-humano integral (idéia de cultura geral). Mas em 1971, com a lei nº5692, rompeu-se com esse eixo de ensino, baseado na idéia de cultura geral. O Ensino Médio passou a se caracterizar pela formação profissional, pelo ensino tecnicista e profissionalizante, demonstrando a ênfase à educação como investimento para o desenvolvimento e como habilitação para o trabalho. O ensino profissionalizante já não era “exclusividade” das classes menos abastadas. Nos governos militares, rompe-se com o eixo do ensino baseado nas disciplinas tradicionais das ciências humanas e ciências naturais. O currículo do 1º e do 2º grau regionaliza10 os conhecimentos agrupando-os em áreas de aplicabilidade tecnológica imediata. Assim, disciplinas como a Filosofia e a Sociologia foram deixadas de lado. Segundo Callegari (2008, p.23) “o cerco foi tal, que essas matérias foram desaparecendo, tanto das escolas públicas quanto das particulares”. Já nos anos 90, auge do neoliberalismo, a Filosofia voltou a ficar na mira de medidas restritivas. Afetados pela idéia de uma educação meramente utilitária e tecnicista, os currículos foram adaptados para assegurar apenas o que era considerado como mais necessário. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da situação atual, a qual passa a ser vista como inevitável. A qualificação profissional passa a apresentada como grande fórmula para se ingressar no mercado de trabalho e, assim, a pobreza e a riqueza deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão de capacitação profissional e intelectual do indivíduo. Mesmo em São Paulo, o maior estado brasileiro em termos econômicos, houve uma brutal reorganização curricular do ensino médio que acarretou a supressão de milhões de aulas de história, geografia, artes e, como não poderia deixar de ser, o desaparecimento de milhares de aulas remanescentes de sociologia e filosofia [...] Porém, para lástima daqueles burocratas da educação, nem bem dez anos foram necessários para que se constatasse que algo não deu certo. Dados e análises do Sistema de Avaliação da Educação Básica produzido pelo MEC/INEP, passaram revelar uma realidade implacável: de 1995 para cá, a qualidade da educação dos jovens brasileiros (e dos paulistas também) não parou de cair [...] Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que faz os conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de ensino e aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira. O descompromisso das elites dominantes que ao longo da nossa história tomaram decisões sobre a prioridade a ser dada à educação chega às raias da irresponsabilidade para com o futuro da nação (CALLEGARI, 2008, p.24). Mas, no dia 9 de junho de 2008, o então presidente da República em exercício, José Alencar, sancionou o projeto de lei que tornou obrigatórias as disciplinas de sociologia e 10 Regionalizar os conhecimentos significa agrupá-los em função de sua aplicabilidade 49 filosofia nas três séries do ensino médio em todas as escolas do país. O ato presidencial não apenas coroou mais de trinta anos de lutas de várias entidades, como também colocou um ponto final nas disputas legislativas que vinham desde o veto de Fernando Henrique Cardoso ao projeto de lei nº 3.178/1997.11 Passemos agora à análise de alguns instrumentos legais que refletem as vicissitudes da presença/ausência do ensino da Filosofia nos currículos oficiais pelo Brasil. Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei n. º 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma “presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas. Art. 36 § 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: [...] III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.. Presença inócua porque o discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma presença efetiva dessa disciplina nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade da Filosofia está presente na lei, mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não nos é possível afirmar com precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio, se como uma disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada de forma transversal em outras disciplinas. Pelas determinações da nova LDB, o ensino de Filosofia em nenhum aspecto é proíbido, mas apesar da indicação de sua possibilidade, também não é obrigatório. Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento. Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a tomar (SEVERINO, 2002, p. 65). Percebe-se que a Filosofia é contemplada referencialmente apenas como conhecimento a ser dominado e demonstrado ao final do curso do ensino médio. De algum modo indica-se a necessidade de que a Filosofia faça parte do currículo; ao contrário do modo como, nos cinco parágrafos do Artigo 26 da LDB de 1996, se expõe a obrigatoriedade do estudo da língua portuguesa e da matemática; do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil; da arte; da educação física; da história; e de uma língua extrangeira. 11 No dia 8 de outubro de 2001, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, vetou o projeto de lei do deputado padre Roque Zimmerman, que propunha a obrigatoriedade do ensino da sociologia e filosofia no ensino médio 50 No entanto, poucos meses depois da nova LDB, o então deputado federal Padre Roque Zimmermann12 (PT-PR), apresentou o Projeto de Lei n.º 3.178, de 28/05/1997 (que no Senado ganhou o número de PLC 9/00). O referido projeto propunha a alteração do Artigo 36 da Lei n.º 9394/96, para que a Filosofia e a Sociologia se tornassem disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Num primeiro momento de apreciação nas Comissões Temáticas, o PL13 obteve parecer favorável na Comissão de Educação, Cultura e Desporto (CECD), encarregada da análise do mérito e da avaliação e apreciação inicial do projeto. A Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), encarregada da apreciação da juridicidade, constitucionalidade e técnica legislativa, também aprova o Projeto de Lei de Zimmermann. O poder terminativo das referidas Comissões dispensou seu trâmite pelo Plenário da Câmara dos Deputados, sendo que, imediatamente após as apreciações das duas Comissões, o PL foi encaminhando ao Senado Federal, em 13 de abril de 2000. Os trâmites pelo Senado Federal seguiram as ritualísticas legislativas de praxe, com ambas as comissões, de Educação e de Justiça, através dos Senadores José Fogaça (Justiça) e Álvaro Dias (Educação) apresentando pareceres favoráveis à aprovação da obrigatoriedade da inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia nos currículos do ensino médio. O governo de Fernando Henrique Cardoso reage à proposta legislativa com um Parecer elaborado pela Conselheira Guiomar Namo de Mello (PSDB), do CNE. No dia 1º de junho é aprovado no CNE o Parecer CNE/CEB nº 15/9814 (da referida conselheira), que trata minuciosamente das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, as quais foram instituídas pela Resolução CNE/CEB nº 03/98, aprovada no dia 26 de junho De acordo com o Artigo 1 da Resolução CNE/CEB nº 03/98, as diretrizes [...] estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante de diversos sistemas de ensino, em atendimento ao que manda a lei, tendo em vista vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática social, consolidando a preparação para o exercício da cidadania e propiciando preparação básica para o trabalho. No Artigo 10, incisos I, II e III, se explicita a organização e estruturação do currículo não mais em disciplinas, mas sim em àreas do conhecimento. São definidas três grandes áreas de conhecimento para esse nível de ensino: Linguagens, códigos e suas Tecnologias; Ciências 12 Depois de passar por dois mandatos de deputado federal (1995-2002) pelo PT e de ser candidato ao governo do estado pelo mesmo partido, em 2002, Padre Roque foi secretário do Trabalho e Ação Social no segundo governo de Roberto Requião. Pertence à setores da esquerda da Igreja Católica, ligado à movimentos sociais. 13 Projeto de Lei 14 CNE: Conselho Nacional de Educação / CEB: Câmara da Educação Básica 51 da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias. No parágrafo 1o do Artigo 10, diz-se que: “A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinariedade e a contextualização”. No parágrafo 2o do mesmo Artigo, afirma-se que: As novas propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: a)Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios; b)Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Embora os documentos não excluam explícitamente o ensino disciplinar, vê-se uma preferência pela presença transversal no currículo, a qual garantiria, em tese, o cumprimento do previsto na LDB/96 quanto à necessidade de domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia. De acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo, Gallo; Kohan (2003), são três os principais argumentos usados para defender o ensino transversal da Filosofia: O primeiro diz respeito à precariedade da formação de professores de Filosofia para o Ensino Médio em âmbito nacional. Embora existam cursos de licenciatura em Filosofia na grande maioria dos estados, ainda há, de fato, muito o que aprimorar na busca de uma formação qualificada dos professores, mesmo nos estados com melhores índices ecnômicos e educacionais. Permanece, entretanto, a controvérsia em torno da pertinência da adoção do ensino disciplinar. Quem a defende considera que a medida pode ser indutora de processos de melhoria da formação docente; quem a critica, enfatiza a suposta irresponsabilidade que significaria, de imediato, colocar em sala de aula um grande número de professores aparentemente despreparados para a função. Outro argumento, fortemente vinculado ao primeiro, diz respeito aos problemas que a obrigatoriedade da disciplina em nível nacional poderia trazer aos estados e seus sistemas de ensino, em especial em termos de investimentos. Por fim, há os que se posicionam contrariamente à inserção da disciplina por criticarem o modelo disciplinar de escola. Estes defendem que a inserção de mais uma disciplina escolar é uma medida infeliz, particularmente no caso da Filosofia. A partir desse ponto de vista, se a Filosofia deve ser um exercício de pensamento crítico, ou lúdico, ou que vise à autonomia etc., transformá-la em “matéria escolar” seria sujeitá-la aos rituais e tratamentos pedagógicos que os estudantes costumam identificar, precisamente, com o oposto da crítica, do prazer, da autonomia etc. (p.259/260). Podemos perceber, então, uma clara dubiedade entre as afirmações da LDB e as das referidas Diretrizes, pois ao mesmo tempo em que a primeira afirma que existem conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, as Diretrizes atribuem às duas disciplinas um caráter de transversalidade e de interdisciplinaridade. Vale lembrar que o artigo 36, § 1º, inciso III, da Lei 9394/96 – LDB afirma: § 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre: III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. 52 Em contraposição, o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no Parecer CNE/CEB n.º 15/98, afirma: § 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Fica claro que os conteúdos da Resolução CNE/CEB nº 03/98, de forma praticamente explícita, negam a obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio, com base em uma interpretação ainda mais neoliberal da própria LDB. A ideologia neoliberal que, segundo Marrach (1996), atrela a educação escolar à preparação para o trabalho, pois assegura que o mundo empresarial deseja uma força de trabalho qualificada, e fala numa profissionalização situada no interior de uma formação geral, permeia intensamente esses documentos, na medida em que estes abordam a escola no âmbito do mercado e das técnicas de gerenciamento. O Parecer CNE/CEB nº 15/98 afirma, diversas vezes, que a principal função do Ensino Médio é a preparação para o trabalho, e que é este que dá significado às aprendizagens da escola média. É interessante ressaltar aqui que um dos papéis atribuídos pela retórica neoliberal à educação é a de atrelar a educação à preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às necessidades da livre iniciativa O trabalho é o contexto mais importante da experiência curricular no ensino médio [...] na medida em que o ensino médio é parte integrante da educação básica e que o trabalho é o princípio organizador do currículo, muda inteiramente a noção tradiconal de educação geral acadêmica ou, melhor dito, academicista. O trabalho já não é mais limitado ao ensino profissionalizante. Muito ao contrário, a lei reconhece que, nas sociedades contemporâneas, todos, independentemente de sua origem ou destino socioprofissional, devem ser educados na perpectiva do trabalho enquanto uma das principais atividades humanas [...] (Parecer CNE/CEB nº 15/98, p. 43) Como vimos anteriormente, Gimeno Sacristán (1998) afirma que é a partir da análise do currículo oficial que podemos perceber as intenções do processo educativo escolar. É justamente isso que percebemos aqui: de acordo com os documentos citados acima, o grande objetivo da educação básica é a qualificação profissional, apresentada como grande fórmula para se ingressar no mercado de trabalho, ou retornar a ele. No entanto, essa fórmula não passa de um mito. Primeiro, porque não existem vagas suficientes para empregar todos aqueles que se formam no Ensino Médio; o que se acaba produzindo, então, é um “exército” de possíveis empregados. Segundo, porque enquanto os trabalhadores acreditarem que podem solucionar seus problemas socio-econômicos apenas mediante uma melhor qualificação profissional, não se tentará romper com a hegemonia neoliberal/capitalista. A probreza e a 53 riqueza deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão de capacitação profissional e intelectual do indivíduo. Todo aquele que está pobre ou desempregado está nessa situação devido à sua incapacidade (incompetência) para disputar uma “vaga” no mercado de trabalho, que em tese é acessível a todos os indivíduos capacitados e competentes. Não há lugar na atual sociedade para os despreparados (a maioria do povo, diga-se de passagem) ou para os preguiçosos (ALVES, 2002, p.65). Dessa forma, tem-se de maneira extremamente eficiente a perpetuação do aparelho ideológico neoliberal. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da situação atual, a qual passa a ser vista como inevitável. Segundo Gramsci, o poder das classes dominantes é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que estas logram exercer, através do controle sobre a escola, e sobre outras instituições também. As classes dominantes "educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e conveniente. Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce “historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14). Para Gramsci não existe separação entre cultura e política, assim como não existe separação entre economia e política. Cultura é, para Gramsci, um dos instrumentos da práxis sócio-política. Isto nos remete a pensar que a hegemonia, enquanto uma direção moral e intelectual, não é construída somente na estrutura econômico-política da sociedade, mas também no campo das idéias e da cultura, na capacidade de uma determinada classe conseguir criar um consenso nas formas de pensar. Várias mobilizações da comunidade acadêmica e educacional fizeram com que o projeto de reintrodução das disciplinas de Filosofia e de Sociologia fosse aprovado tanto na Câmara dos Deputados como no Senado Federal. E em setembro de 2001, após ser aprovado na Câmara por unanimidade, o Projeto de Lei do Padre Roque é aprovado no plenário por 40 votos a favor e 20 contra e vai à sanção presidencial. O coroamento dessa luta nacional foi encabeçado pela Federação Nacional dos Sociólogos, que articulou com os cursos de ciências sociais, com as entidades estaduais e com os profissionais e professores pela aprovação desse projeto. No dia 08/10/2001, o sociólogo e então Presidente da República, Fernando Henrique 54 Cardoso, veta na íntegra o Projeto. A partir da leitura da Mensagem nº 1.073, de 8 de outubro de 2001, de Fernando Henrique Cardoso, enviada ao Presidente do Senado Federal, é possível perceber que praticamente todos os argumentos que se opõem à criação de um espaço disciplinar obrigatório para a Filosofia não são de ordem pedagógica, epistemológica ou de políticas educacionais. Tais argumentos são basicamente de natureza estritamente burocrática e giram em torno do fato de que o resultado imediato será a necessidade de abrir concurso, contratar professores para a escola pública, o que irá gerar despesas, caracterizando-se assim como uma questão econômica. As razões do veto foram procedimentais e centradas na idéia de que não haveria professores para assumir estas aulas e de que isso significaria uma despesa vultosa. O mérito pedagógico e político sequer foi tomado em conta pela burocracia governamental daquele momento. Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de professores de tais disciplinas, com o agravante de que, segundo informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público (Mensagem nº 1.073, de 8 de outubro de 2001). O que percebemos no argumento de Fernando Henrique é, mais uma vez, a manifestação de uma grande presença da ideologia neoliberal, que converte os problemas sociais, econômicos, políticos e culturais da educação em problemas administrativos, técnicos e de reengenharia. O único argumento de ordem pedagógica usado para justificar o veto foi dado pelo então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que defendia que a volta das duas disciplinas seria uma volta ao passado, pois a proposta representava um retrocesso no perfil curricular do Ensino Médio, que a partir da LDB/96 (que apresenta uma flexibilidade quanto ao formato disciplinar de currículo) passou a valorizar a interdisciplinaridade no lugar do ensino de disciplinas estanques. Aprovar mais duas disciplinas seria ir na contramão da LDB. No entanto, tal argumento é completamente falho, uma vez que o PL não afirma a obrigatoriedade da organização curricular por disciplinas; as escolas que estruturassem seus currículos por áreas de conhecimento, por exemplo, não seriam obrigadas a incluir disciplinas, mas sim colocar a Filosofia e a Sociologia entre as áreas. Podemos retomar aqui as observações de Tommasi (2007) apresentadas no início deste 55 texto: no que diz respeito ao sistema educacional brasileiro, há a prevalência da lógica financeira sobre a lógica social e educacional, e há a falácia de políticas que se declaram com a finalidade de elevar a qualidade do ensino, quando na realidade o que fazem é implementar a redução de gastos públicos para o setor educacional. É justamente o que vemos na argumento de Fernando Henrique: uma visão apenas gerencial da educação, ou seja, para reduzir os custos com educação, ao invés de se estabelecer disciplinas obrigatórias com professores especializados, o preferível foi que os “conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania” fossem ministrados através da transversalidade, por professores de outras disciplinas É preciso ter claro aqui que o posicionamento de Fernando Henrique Cardoso quanto à importância das disciplinas nada tem a ver com a sua formação como sociólogo pois, apesar de sua trajetória política ter sido “na oposição ao regime militar, em seu horizonte intelectual e político não estava presente a ruptura efetiva com a ordem burguesa” (LIMA, 2007, p.93) Segundo Carvalho (2001), quanto mais ignorante for a nossa juventude, melhor será para as elites que dominam o país. Fazer com que a juventude reflita sobre temas como ética, política, moral, costumes, o porquê de existirem pobres e ricos, modos de produção etc, é algo que pode colocar em risco o status quo. Essas reflexões devem ficar restritas a uma minoria de iluminados. E ainda: “Ao povo, como sempre, nega-se a possibilidade do acesso ao conhecimento”. A FNSB (Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil) orienta, então, aos estados que a luta deve se voltar para as assembléias legislativas estaduais com a aprovação de Projetos de Leis que obriguem o ensino da Filosofia e Sociologia em cada estado, ampliando-se ainda a luta com as comissões das grandes universidades, especialmente as públicas, para que adotem ambas as disciplinas, bem como mantenham contatos com as secretarias estaduais de educação, para introduzir as disciplinas pela via administrativa. Desde a posse do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, a FNSB fez várias gestões para ou derrubar o veto, ou implantar ambas as disciplinas por via administrativa, pelo MEC ou mudando o parecer do CNE. Mas percebendo que o processo administrativo não seria tão rápido, em agosto de 2003 o Deputado Federal Dr. Ribamar Alves, do PSB do Maranhão, reapresentou o Projeto de Lei do Padre Roque, com algumas modificações – Projeto de Lei nº 1.641 – que passou a ter o apoio do SINSESP (Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo) e da FNSB. Na Justificação do PL, o Deputado atenta para o fato de que a Filosofia não deve ser tratada com interdisciplinaridade, pois é uma área do conhecimento assim como o são as 56 outras disciplinas, ou seja, possui um conteúdo próprio, possui técnicas a serem dominadas, possui uma terminologia específica, etc. Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que não sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o texto da LDB insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela [...] A Filosofia nos currículos do Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito, dissolvendo-a em modadilades temáticas de outras disciplinas. (PROJETO DE LEI Nº 1.641, DE 2003, p.3, 4). Além disso, de acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo; Gallo; Kohan (2003), em uma escola que ainda é fortemente baseada na organização por disciplinas, relegar a Filosofia à tranversalidade acabaria não apenas diluindo sua especificidade em meio aos estudos que realmente constam no currículo, como também aprofundaria a situação de precariedade que se imputa aos professores de Filosofia no país, na medida em que poderia vir a reforçar a dispensa de contratação de profissionais especializados. Segundo Gallo (1997), aplicar a proposta da tranversalidade na educação implicaria o “desaparecimento” da escola tal como a conhecemos hoje. Seria preciso o surgimento de um novo paradigma que rompesse radicalmente com o sistema de disciplinas. A transversalidade do conhecimento implica possibilidade de escolas e de currículos em muito diferentes daquelas que hoje conhecemos novos espaços de construção e circulação de saberes onde a hierarquização já não será a estrutura básica, e onde situações até então insuspeitas poderão emergir (p.131) Ainda de acordo com Gallo (2002), vivemos numa realidade em que o currículo disciplinar apresenta cada vez mais provas de seu desgaste e da necessidade de sua transformação/reforma. Como nossos currículos seguem sendo absolutamente disciplinares e como, infelizmente, ainda levaremos um bom tempo para lograr diminuir a influência disciplinar e, quem sabe, “dês-disciplinar” os currículos, vejo como muito remota a hipótese de uma escola, seja ela pública ou privada, contratar um professor de Filosofia para “transversalisar” seu currículo, sem que haja uma disciplina de Filosofia disciplinarmente alocada neste currículo, uma vez que nosso modelo de contratação de docentes, na quase totalidade das escolas, é um modelo “aulista”, isto é, contrata-se pelas aulas que o professor terá na escola (Gallo, 2002, p.287). Vale lembrar que as disciplinas escolares não são mera repetição de um conteúdo produzido fora da escola. A Filosofia dos filósofos certamente estará presente no trabalho com a disciplina nas escolas, mas esta não será uma simples transposição didática. Como disse Chervel (1990) e Gimeno Sacristán (1998) as disciplinas escolares são como entidades epistemológicas autônomas; a cultura selecionada e organizada dentro de um currículo não é a cultura em si mesma, mas sim uma versão “escolarizada”. A ciência que está contida nos programas escolares não é a ciência em abstrato, como a literatura que se ensina-aprende nas escolas, tampouco é “a literatura”, mas 57 versões e pacotes especialmente planejados para a escola (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.128). Além disso, o mencionado Deputado também chama a atenção para a importância da Filosofia para a formação de um cidadão crítico, responsável e preparado para o debate reflexivo. Ora, a Filosofia tem no atual contexto político de fortalecimento das instituições democráticas do país um dos papéis mais relevantes neste projeto, qual seja, o de contribuir para uma formação e fundamentação da opinião pública brasileira, não deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê à deriva com o cerco do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em ouro, ou melhor, mercado, tudo o que toca [...]Assim, contribuirá para uma opinião pública responsável e crítica, convidando para o debatle reflexivo, introduzindo valores que se assentam sobre aquela tradição grega [...] que em suma, é de vocação política (PROJETO DE LEI Nº 1.641, DE 2003, p.4). Através da leitura desse pequeno trecho fica evidente a confirmação da assertiva de Chervel acerca dos objetivos de uma disciplina, os quais são o principal tópico a partir do qual uma disciplina se constitui. No entanto, épreciso ter claro que as finalidades de uma disciplina escolar visam não somente o ambiente escolar, mas também a sociedade em que este se situa. Em agosto de 2003, o Projeto foi encaminhado para Comissão De Educação e Cultura (CEC), onde não foram apresentadas emendas ao PL. Em novembro, o Deputado César Bandeira escreveu um Parecer pela aprovação do Projeto, afirmando que este “beneficiará a formação integral do estudante” e que o encaminhamento pela aprovação “objetiva acelerar o processo de inclusão das disciplinas no currículo escolar, e a de inclusão dos estudantes na sociedade com: senso crítico, capacidade de analisar situações, sentimento ético, lógica e identidade social”. O parecer foi aprovado por unanimidade pela Comissão. Em seguida, em dezembro de 2003, o PL foi encaminhado para a Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Em junho de 2004, o Deputado Alexandre Cardoso (PSB-RJ), apresentou um parecer votando pela constitucionalidade, juricidade e boa técnica legislativa do Projeto de Lei nº 1.641/2003 com duas emendas: que ao final da nova redação do Art.36 da LDB dada pelo Art 1º do Projeto, fosse acrescentada a rubrica NR, e que o Art 4º do Projeto fosse suprimido15. O parecer foi, também, aprovado por unanimidade pela CCJC. No entanto, em julho de 2004, o Deputado Carlos Abicalil (do PT de Mato Grosso) apresentou à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o Recurso n.º 139, de 2004, contra a 15 “Art.4º Revogam-se as disposições em contrário” 58 apreciação conclusiva nas Comissões sobre o Projeto de Lei n.º 1.641 de 2003. Ocorre que os secretários estaduais de educação de vários estados estavam preocupados com a “compulsoriedade” do PL, que mencionava em seu Art. 3º que a Lei deveria entrar em vigor na data de sua publicação, e afirmavam que seria necessário criar um período de transição para que a Lei entrasse em vigor gradativamente. O principal motivo para essa preocupação era o fato de que, talvez, não se tivesse número suficiente de professores para assumir os cargos imediatamente. De acordo com o regimento da Câmara, um PL, quando é terminativo, pode seguir direto ao Senado sem passar pelo plenário da Câmara, depois de aprovado em duas Comissões (no caso a CEC e a CCJC). O recurso foi, então, assinado por 51 deputados (número suficiente de assinaturas), incluindo o autor do PL, deferido e impediu que o Projeto de Lei, aprovado pela Câmara, seguisse direto ao Senado, para que o Projeto fosse discutido em plenário. O SINSESP, presidido pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Martins, ao perceber que o processo pela via legislativa estava emperrado, decide oferecer ao MEC uma proposta detalhada para que, pela via administrativa , a Resolução CNE/CEB nº 03/98, fosse alterada. Tal proposta foi inicialmente elaborada pelo diretor da entidade, Prof. Dr. Amaury César Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), e enviada ao MEC. O Departamento de Políticas do Ensino Médio do MEC solicitou aos professores Amaury César Morais e João Carlos Salles Pires da Silva que redigissem uma proposta de Parecer que estabelecesse a obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia. . Foram realizadas três reuniões nacionais para a elaboração do texto final, sempre envolvendo entidades nacionais como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), a CNTE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e a CONTEE (Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino). Em agosto de 2005, os professores Morais e Pires da Silva se reuniram em Brasília para fazer uma última leitura do texto que seria encaminhado ao CNE como contribuição do MEC. Mas somente em novembro de 2005 é que o MEC, finalmente, envia a proposta ao CNE, para apreciação. Registra-se o apoio tanto do Ministro da Educação, Fernando Haddad, bem como do Secretário Nacional de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas. O Ministro da Educação Fernando Haddad recebeu em audiência, no dia 19 de outubro de 2005, o sociólogo Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho16, que no ato representava o 16 Foi professor de Sociologia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) entre 1985 e 2006, e vicepresidente do SINSESP entre 2004 e 2007 59 Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, juntamente com diversas lideranças de entidades de ensino, o deputado Dr. Ribamar Alves (PSB/MA) – autor do PL - para tratar da viabilização da implantação destas disciplinas, numa linha de agenda positiva por consenso entre lideres ou por via administrativa. As principais reivindicações foram de (1) Apoio total do MEC à aprovação do PL do Dr. Ribamar Alves e (2) Modificação, pelo CNE, do antigo e antidemocrático parecer de Guiomar Namo de Mello, que impedia as disciplinas de Sociologia e Filosofia de serem lecionadas de forma obrigatória. À guisa de relembrar, retomamos aqui a fala de Bittencourt (2003) de que são muitos os sujeitos envolvidos na constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros, partidos políticos em geral, professores e alunos, entre outros. No dia 9 de novembro foi realizada outra reunião com o Ministro Fernando Haddad, com a presença do Prof. Lejeune Mato Grosso X. de Carvalho (Unimep) e do Prof. Amaury Moraes (Usp) e outras significativas lideranças de entidades de trabalhadores em educação. Nesta reunião foi discutida de forma exaustiva, por quatro longas horas (das 14h ás 18h) o texto da proposta de Parecer, que deveria ser formalizado e encaminhado para aprovação do Conselho Nacional de Educação É, então, protocolado no CNE o Ofício nº 9647/GAB/SEB/MEC 17, de 15 de novembro, pelo qual o então Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação, Francisco das Chagas Fernandes, encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as “Diretrizes Curriculares das Disciplinas Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”, elaborado pela Secretaria com a participação de representantes de diversas entidades. O documento apresentava uma série de considerações favoráveis à inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do Ensino Médio. O documento foi dividido em três títulos: 1. Filosofia; 2. Sociologia e 3. Filosofia e Sociologia no Currículo do Ensino Médio, nos quais foram apresentadas razões que justificavam a inclusão de cada uma das disciplinas como obrigatória, contrapondo-se às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98). Ao final da argumentação, de acordo com o Parecer nº 38/2006, foi proposta a alteração da Resolução CEB/CNE nº 3/98, Art. 10, § 2º, com supressão da alínea b e inclusão do § 3º com a seguinte redação: “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento de componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”. O próximo passo foi a convocação de uma audiência pública pelo então presidente da 17 GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura. 60 Câmara de Educação Básica do CNE, César Callegari18, para apresentar oficialmente o documento. Uma grande mobilização, liderada pelo sociólogo e professor Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho, na época vice-presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, divulgou todos os passos desse processo pela internet. Em 1º de fevereiro de 2006 o CNE retomou o debate sobre o assunto, através de sua Câmara de Ensino Básico (CEB), então sob a presidência do Conselheiro César Callegari, e realizou audiência pública para a qual foram convidadas várias entidades ligadas à luta, tais como o SINSESP, a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo), a UBES, a CONTEE e a CNTE, além de sociólogos, professores de Filosofia e de Sociologia, estudantes e outros profissionais, para discutir o tema “Alteração das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares obrigatórios de Filosofia e Sociologia”. Callegari foi escolhido, juntamente com o Conselheiro Adeum Hilário Sauer, também sociólogo, e com o Conselheiro Murílio de Avellar Hingel, ex-Ministro da Educação do governo Itamar Franco, relator do Parecer sobre a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia nas diretrizes nacionais do ensino médio como matérias obrigatórias. Mesmo dentro do CNE a batalha não foi fácil. Em abril de 2006, extinguiram-se os mandatos de vários conselheiros. A correlação de forças era desfavorável para os que lutavam pela volta das duas disciplinas. Em maio, tomaram posse pelo menos seis novos conselheiros, de um total de 12. A realidade se alterou pelas novas presenças dentre os conselheiros, especialmente Isabel Noronha, que representava a APEOESP, e pela primeira vez um professor de rede pública e sindicalistas tinham assento num Conselho de Estado. O SINSESP e todas as entidades do comando nacional de luta compareceram à posse dos novos conselheiros da CEB/CNE, entregaram um manifesto de apoio à luta e conversaram com o Ministro da Educação Fernando Haddad, pedindo-lhe mais uma audiência, incluindo parlamentares que apoiavam a luta das referidas entidades pela inclusão da Filosofia e Sociologia no ensino médio. Em 07 de junho de 2006, cerca de 300 professores e estudantes compareceram à reunião do CNE, já sob a presidência da conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro, exReitora da Universidade Católica de Goiás. Mas como o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 (de autoria dos conselheiros Cesar Callegari, Adeum Hilário Sauer e Murílio de Avellar Hingel) 18 Sociólogo, Cesar Callegari lutou durante anos para que as disciplinas de Filosofia e Sociologia voltassem a fazer parte do currículo das escolas do País. Ao tomar posse como membro do CNE intensificou seus esforços, redigindo o Parecer CNE/CEB nº. 38/2006 e a Resolução 4/2006. 61 havia sido apresentado apenas na véspera da reunião, os conselheiros pediram que a decisão fosse adiada para a reunião de julho, sinalizando, entretanto, que o Parecer seria aprovado. Nesse mesmo dia o Ministro da Educação Fernando Haddad e o Secretário Nacional de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas, receberam mais de 20 lideranças do movimento no MEC e declaram de forma enfática que o governo apoiaria as mudanças no CNE. Apenas um mês depois, em 7 de julho de 2006, O CNE aprovou, às 12h30, por unanimidade, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 03/98, tornando obrigatório o ensino das disciplinas de Sociologia e Filosofia em todas as escolas do Ensino Médio, dando aos sistemas estaduais de ensino um prazo máximo de um ano para que os Sistemas de Ensino providenciassem sua implantação. A proposta foi encaminhada ao Ministro da Educação Fernando Haddad, para que fosse homologado. Os três relatores (Callegari, Hingel e Sauer), no Parecer CNE/CEB nº 38/2006 reiteram a “importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas”(p.2). 19 E afirmam que tal importância é reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, mas também por pesquisadores e educadores, inclusive não filósofos e/ou não sociólogos. Outro argumento apresentado pelos relatores é o de que uma adoção crescente do ensino de Filosofia e Sociologia pela maioria das escolas das redes públicas e estaduais acabou por criar uma situação desigual no acesso aos conhecimentos proporcionados por essas disciplinas. Isso porque, como vimos, pelas determinações da LDB/96 – antes da alteração do Art.36º - o ensino de Filosofia não é proíbido, mas também não é obrigatório. A decisão de introduzir ou não a Filosofia no currículo cabia unicamente às escolas. Nos Estados que ainda não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio há toda uma população jovem posta à margem do acesso aos seus conhecimentos. Essa desigualdade ocorre, igualmente, na rede particular de ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por uma parte das escolas, muitas outras não o fizeram. Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho, propiciadora de uma equalização, visando à igualdade de direitos de acesso a esses conhecimentos no Ensino Médio do país (Parecer CNE/CEB nº 38/2006). A nova LDB afirma em seu artigo 36, § 1º, inciso III, que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação sejam organizados de tal forma que, ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania e, de acordo com os três relatores, a principal questão que se levanta ao se analisar essa afirmação é: como garantir a eficácia 19 É importante destacar que é a primeira vez em que a palavra “protagonista” aparece referindo-se ao alunado. 62 dessa diretriz? Segundo Callegari, Hingel e Sauer, as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCNEM) deram a interpretação que ajudou a responder a essa questão, pois considerou, em seu Art.10º, na composição e no tratamento a ser dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação Física e à Arte, estas sim, contempladas como componentes obrigatórios do currículo da Educação Básica no Artigo 26 da LDB, e também no 2º parágrafo do Art. 10º das DCNEM. Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber [...] § 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios; b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania. (Resolução CNE/CEB nº3/98) Ou seja, se a escola opta por uma estruturação curricular por disciplinas, Educação Física e Arte devem ser incluídas e tratadas como tais. Conseqüentemente, a Filosofia e a Sociologia não podem deixar de ter o mesmo tratamento que essas disciplinas. 20 Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo [...] com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal, sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outro forma, do mesmo modo deverá dar tratamento a todos os componentes obrigatórios. Portanto [...] os conhecimentos de Filosofia e Sociologia, da mesma forma que os componentes Arte e Educação Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na forma de disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplina (Parecer CNE/CEB nº 38/2006). Portanto, as escolas, tanto aquelas que organizam seus currículos em disciplinas, quanto aquelas que, usando da autonomia que lhes garante a Lei, têm seu currículo organizado de outra forma que não por disciplinas, do mesmo modo deverão dar tratamento a todos os componentes obrigatórios. Cabe ressaltar que as argumentações apresentadas nesse Parecer são em sua grande maioria argumentações lógicas em torno da LDB, e não uma batalha de persuasão do por que e para que ensinar Filosofia e Sociologia nesse nível de Ensino. 20 As escolas têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua proposta curricular, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, o que é garantido pela Constituição Federal e reiterado pela nova LDB. Em outras palavras: elas podem organizar seus currículos por disciplinas ou não. Além disso, no que diz respeito ao formato de disciplina, no texto da nova LDB não há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja ele da base nacional comum ou da parte diversificada., ou seja, as escolas podem escolher entre adotar um currículo organizado em disciplinas ou transversalizado. 63 Os relatores finalizam afirmando que [...] não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização. Já são passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas, experiências foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados [...] Já é tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade educacional e com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa final da Educação Básica, se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da Nação (Parecer CNE/CEB nº 38/2006, p.9). Homologado pelo Ministro da Educação, em 11 de agosto de 2006, o Parecer CNE/CEB nº 38, a Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, Clélia Brandão Alvarenga Craveiro baixou a Resolução CNE/CEB nº 4 de 16 de agosto de 2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e resolve: Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte redação: § 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º, com a seguinte redação: § 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia. § 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo. (Resolução CNE/CEB nº 4 de 16 de agosto de 2006). Assim sendo, a Filosofia deve estar presente em todas as escolas, independentemente da organização curricular adotada. A Resolução deu o prazo de um ano para que os Conselhos Estaduais de Educação se regulamentassem, estabelecendo a carga horária e as séries em que as duas novas disciplinas seriam oferecidas – se apenas em um, dois ou nos três anos do Ensino Médio. Como o prazo terminaria em agosto de 2007, as aulas começariam a ser ministradas a partir de 2008. Em julho de 2007 foi realizado em São Paulo, no Centro de Convenções do Anhembi, o 1º Encontro Nacional sobre Filosofia e Sociologia. O Encontro foi uma iniciativa da APEOESP em parceria com o SINSESP e das entidades ligadas à educação, como a CNTE. O Encontro teve como principal motivação a inclusão das duas ciências como conteúdos obrigatórios nas escolas brasileiras de Ensino Médio. 64 Em sua fala, o professor Emmanuel Appel21 defendeu que tanto a Filosofia como a Sociologia possuem um ponto de vista crítico que é fundamental para a juventude, por ser um instrumento para sua emancipação, capaz de tornar os (as) jovens donos (as) de sua própria autonomia intelectual. Appel não nega que outras disciplinas também sejam críticas, mas afirma que a Filosofia e a Sociologia têm uma tradição crítica muito maior. No entanto, o que pareceu um alento, logo se viu assolado pela resistência de vários sistemas estaduais, que evocavam a LDB para não cumprir a Resolução do CNE. O CEESP (Conselho Estadual de Educação de São Paulo) considerou nulas as argumentações apresentadas no Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e na Resolução CNE/CEB nº 4/2006. O CEESP pronunciou-se pela não obrigatoriedade da introdução da Filosofia e da Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio. De acordo com a Indicação CEE nº 62/2006, aprovada em 20 de setembro de 2006, existem dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução (c.f. – Art. 36 §1º inciso III da Lei nº 9394/96 – LDB), na medida em que interfere na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de ensino. No Parecer CEE nº 343/2007 – CEB aprovado em 7 de julho de 2007, o principal argumento apresentado é o de que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006, emanada do CNE, ao dizer que a Filosofia e a Sociologia devem ser incorporadas ao currículo de todos os sistemas de ensino, feriu a autonomia desses mesmos sistemas, assegurada pela Constituição e pela LDB, para a definição de suas próprias grades curriculares. Evocando o Art. 8º e o Art. 9º da LDB22, os relatores (Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro Salles Aguiar) argumentam: Se a União tem o papel coordenador e, de certo modo, uniformizador, é certo, por outro lado, que não é da sua competência definir, propriamente, os currículos de cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos mínimos [...] à União compete estabelecer competências e diretrizes que “...nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos...”. A União, pois ditará os nortes [...] mas quem haverá de fixar, efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus conteúdos mínimos, serão os próprios sistemas de ensino [...] (Parecer CEE nº 343/2007, p.3). Mas ao mesmo tempo em que afirmam que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006 fere a 21 Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Fórum Sul-Brasileiro de Filosofia e Ensino. 22 “Art.8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. §1ºCaberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. §2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei. Art.9º A União incubir-se-á de: IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum;” 65 autonomia dos sistemas de ensino no que diz respeito à organização curricular, utilizam como argumentação o Art. 26º da LDB, que define uma série de componentes curriculares obrigatórios. Ao que parece, a utilização desse Artigo seria uma maneira contraditória e falaciosa de argumentar contra uma suposta imposição aos sistema de ensino: o referido artigo limita, ainda que de maneira generalizada, (são utilizados termos genéricos como “mundo físico e natural” e “realidade social e política, especialmente do Brasil”) o conteúdo a ser ministrado nas escolas. Além disso, o fato de ter-se definido uma determinada disciplina como obrigatória não nos parece ser suficiente para ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que a definição da obrigatoriedade não é, por extensão, uma definição dos conteúdos e métodos a serem utilizados. A autonomia das escolas garantida pela LDB/96 se refere ao tratamento curricular, e não à escolha das disciplinas que devem construir a base nacional. O paragráfo 2º do Art. 8º afirma: “Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei”. Além disso, como dissemos anteriormente, o Art. 26º da LDB define uma série de componentes curriculares obrigatórios. Assim sendo, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e a Resolução CNE/CEB nº 4/2006 não parecem ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que apenas determinam a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, independente da organização curricular adotada pela escola. Segundo Goodson (2001b), o currículo não é um fato consumado. O autor afirma que o currículo é uma práxis e não um objeto estático. A definição pré-ativa do currículo pode estabelecer parâmetros para a ação interativa, mas isso não significa que a prática não possa subverter ou transcender tais parâmetros. É importante ressaltar aqui que a organização da educação nacional é fragmentada, ou “descentralizada”, já que cada esfera do governo (União, estados e municípios e o Distrito Federal) deve organizar seu respectivo sistema de ensino, em regime de colaboração (Art.8º/LDB). Assim sendo, segundo Pino (2002), “a lei não assume a organização da educação em sistema nacional”(p.37). De acordo com os Art. 16º, 17º e 18º da nova LDB, a educação escolar brasileira está organizada em três esferas administrativas: União, estados e Distrito Federal, e municípios. E cada um deles abriga um sistema de ensino, sendo: [...] a União, o sistema federal de ensino, com as instituições de ensino médio técnico e de nível superior (públicas e privadas); os estados e Distrito Federal, abrigam o sistema estadual de ensino, com instituições de todos os níveis (públicas e privadas); os municípios, o sistema municipal de ensino, com instituições de educação infantil, incluindo as creches, e de ensino fundamental (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2008, p.240) 66 Assim sendo, se existe uma separação entre sistemas federal, estadual e municipal de ensino, não se pode dizer que existe um sistema nacional de educação. Em tese, um sistema nacional deveria garantir um mínimo igual nacional. Outro ponto que nos leva a afirmar a inexistência de um sistema nacional de ensino é a autonomia dada às escolas no quesito de organização curricular. Em outras palavras, as escolas não são obrigadas a adotar a organização por disciplinas. Como afirma o Art. 23º da LDB: Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. Na conclusão do Parecer, os relatores afirmam que no artigo 36, § 1º, inciso III da nova LDB não se vislumbra qualquer imposição de que os conhecimentos de Filosofia e Sociologia sejam oferecidos em disciplinas específicas; o que se quer, na verdade, é tornar esses conhecimentos parte de um “aprendizado notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, o domínio de princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de linguagem” Vemos aqui, mais uma vez, a idéia de transversalidade. Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização grega, ou, ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é perfeitamente possível o estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de aula de História Geral, ou mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final do Ensino Médio, o aluno tenha adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos necessários ao exercicío da cidadania, pouco importante se tal aquisição deu-se por meio de aulas específicas ou como parte do conteúdo de uma disciplina afim (Parecer CEE nº 343/2007, p.11). O detalhe que os relatores desse Parecer parecem esquecer e que é muito bem apresentado pelo Parecer CNE/CEB nº 38/2006 é o de que, nas escolas que têm a sua organização curricular estruturada em disciplinas, há um grande problema quanto à capacidade de efetivação do que está prescrito no Art. 36 da LDB, “pois se os professores estão comprometidos com o desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente terão condições de dar tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários conhecimentos de Filosofia e Sociologia, ou mesmo outros [...] (Parecer CNE/CEB nº 38/2006, p.7). Além desses argumentos, foi também apresentado pelo então presidente do CEESP, 67 Pedro Salomão José Kassab 23 (1930-2009), o argumento de que não haveria número suficiente de professores para lecionar as duas disciplinas. Para Lejeune Matro Grosso, em entrevista à UOL24, não faltariam professores de Sociologia. “Estimamos que, em 3 anos, seja necessário contratar 10 mil professores em cada uma das disciplinas. No Brasil já existem 40 mil formados na área. E, por ano, se formam de 1500 a 2000 sociólogos”, afirma. Na reportagem da UOL acima aludida, também foi entrevistado o professor Emmanuel Appel e, segundo ele, também há Filósofos em número suficiente para lecionar. “Temos 190 cursos de Filosofia no país, e a disciplina foi suprimida do Ensino Médio em agosto de 1971. Durante 35 anos esses cursos formaram um considerável número de pessoas”, afirma. Mas apesar das manifestações do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, a Filosofia, em 2008, foi parte integrante da rede estadual de ensino em duas séries do Ensino Médio, com uma carga horária de duas horas por semana. Graças às resistências à Resolução do CNE, o PL do deputado Ribamar Alves ganhou mais força. Em agosto de 2007, apenas um mês depois da aprovação do Parecer CEE nº343/2007, o deputado Carlos Abicalil, do PT do Mato Grosso, apresentou à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o Requerimento nº 1445, solicitando a retirada de tramitação do Recurso nº 139 de 2004, que recorria contra a apreciação conclusiva do Projeto de Lei nº 1641 de 2003. No entanto, tal requerimento foi indeferido por não conter número suficiente de signatários. Mas em outubro, o deputado apresenta um novo requerimento à Mesa, o Requerimento nº 1779, que também solicitava a retirada de tramitação do recurso nº 139/2004. Este requerimento, com o número suficiente de assinaturas, foi deferido. Em 21 de novembro de 2007 a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados aprovou o ofício SGM-P25 1985/2007, encaminhando o PL à CCJC para a elaboração da Redação Final. Menos de um mês depois a CCJC designou o relator da Redação Final, o Deputado Fernando Coruja (PPS – SC). Em 13 de dezembro de 2007 o Deputado apresentou à CCJC a Redação Final da Lei, e no dia 18 do mesmo mês, a Redação Final foi aprovada por unanimidade na Câmara dos Deputados. Finalmente, em janeiro de 2008, a Mesa da Câmara dos Deputados encaminhou a Redação Final da lei ao Senado Federal através do Ofício nº 774/07/PS-GSE26, onde obteve, 23 Foi presidente da Associação Médica Brasileira (1969-1981). Comandou a Associação Médica Mundial (1976 e 1977). Exercia o cargo de diretor-geral do Liceu Pasteur desde 1957. Foi presidente do CEESP em 2006 e 2007. 24 Reportagem de Juliana Doretto, “Escolas de São Paulo não precisam implantar Filosofia e Sociologia”, de 21/08/2007. 25 SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência 26 PS-GSE: Primeiro Secretário-Grupo de Supervisão Educacional 68 também, aprovação unânime. Em maio de 2008 a Câmara dos Deputados recebeu o Ofício nº 669/08 do Senado Federal, que comunicava a aprovação da matéria e o envio à sanção presidencial. Em 2 de junho de 2008, o PL é transformado na Lei Ordinária n.º 11.684/2008, e foi publicada no Diário Oficial da União de 3 de junho. Uma semana depois da publicação no DOU, a Câmara dos Deputados recebeu do Senado Federal o Ofício n.º 808/08, que encaminhava o autógrafo sancionado do Vice Presidente José Alencar. Assim, após 37 anos de luta, foi sancionada, em 2 de junho de 2008, pelo presidente da República em exercício, José Alencar, a lei que torna obrigatório o ensino das disciplinas de sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio, públicas e privadas de todo o Brasil. A solenidade contou com a presença de mais de 300 pessoas, entre representantes de entidades estudantis, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira de Estudantes Secundaristas (UBES), sindicatos de professores e associações profissionais de sociólogos e filósofos. A CONTEE foi representada pela Secretária de Comunicação Social da entidade, a socióloga Maria Clotilde Lemos Petta. Vale afirmar que, apesar da preocupação com a “compulsoriedade” do PL, que levou ao Requerimento n.º 139/2004, a Lei sancionada contém em seu Art.3º a afirmação de que a Lei deveria entrar em vigor na data de sua publicação. A nova legislação deu força de lei ao Parecer nº 38/2006, do Conselho Nacional de Educação (CNE), que tornava obrigatória a inclusão de Filosofia e Sociologia no ensino médio sem estabelecer, no entanto, em que série deveriam ser implantadas. Com a aprovação da Lei nº 11.684, as resistências às mudanças nas Diretrizes Curriculares Nacionais, propostas pelo Parecer nº 38/2006, passaram para o plano secundário ou deixaram de existir, e em seu lugar, questionamentos a respeito de sua aplicação começaram a surgir. Em 13 de junho de 2008 foi protocolado no CNE o Oficio nº 1897/GAB/SEB/MEC27, através do qual a professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e Silva, Secretária da Educação Básica do Ministério da Educação encaminhou para análise e posicionamento, questões acerca de prazos e planos para a implantação da Lei. 1. Considerando a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção presidencial da Lei n° 11.684, de 2 de junho de 2008, incluindo Sociologia e Filosofia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio e com vistas a analisar os questionamentos encaminhados a esta Secretaria sobre o referido assunto, consultamos a esse Conselho sobre o seguinte: • até o presente momento, seguindo determinação do CNE, os estados vinham oferecendo as disciplinas de acordo com distribuição e programação própria das escolas/sistemas de ensino na sua organização curricular. Considerando que a 27 GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura 69 supracitada Lei passa a vigorar na data de sua publicação, haverá um prazo para a sua implantação e conseqüente inclusão das duas disciplinas nas três séries do currículo escolar?; e • é possível estabelecer plano de implantação gradativa das referidas disciplinas ao longo dos próximos anos para cada uma das séries do ensino médio permitindo que os sistemas de ensino organizem quadro de professores que atenda a nova demanda estabelecida com a sanção da citada lei? (Oficio nº 1897/GAB/SEB/MEC in Parecer CNE/CEB nº22/2008) Em resposta ao citado Ofício o CNE aprovou, em outubro, o Parecer n.º22/2008, cujo relator foi, mais uma vez, Cesar Callegari. Antes de responder às perguntas propriamente ditas, o relator faz uma breve apresentação sobre o entendimento de “série” e de “disciplina”, termos empregados no inciso IV do art. 36, caput, da LDB, introduzido pela Lei nº 11.684/2008. De acordo com o Parecer, a LDB utiliza os termos série, etapa e fase para designar cada um dos anos da duração mínima obrigatória para o Ensino Fundamental e Ensino Médio sem rigor conceitual. Porém, o Art. 23 da citada lei torna claro que a estruturação por seqüência de séries não é obrigatória, pois admite diversas formas de organização. Não há dúvida, de todo modo, que o legislador, mesmo utilizando o termo específico “série” no novo inciso IV do art. 36, da LDB, incluiu a Filosofia e a Sociologia ao longo de todos os anos do Ensino Médio, quaisquer que sejam a denominação e a forma de organização adotada, seja com formato disciplinar, seja com construção flexível e inovadora, diversa da tradicional. Desse entendimento resulta que os sistemas de ensino de todos os entes federativos devem fixar normas complementares e medidas concretas para a oferta desses componentes curriculares em todos os anos de duração do Ensino Médio. Devem, ainda, zelar para que haja sua efetivação, coibindo atendimento meramente formal ou esparso e diluído, garantindo aulas suficientes para o desenvolvimento adequado de estudos e atividades desses componentes, com a designação específica de professores qualificados para tanto. (Parecer CNE/CEB nº22/2008) Já sobre o termo “disciplina”, mais uma vez o Relator atenta para o fato de que não há na LDB relação direta entre a obrigatoriedade e o formato do componente curricular (fato que já havia sido tratado no Parecer CNE/CEB nº 38/2006). Além disso, o texto da LDB também indica que [...] quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja da Base Nacional Comum, seja da Parte Diversificada. As escolas têm garantida a autonomia quanto à sua concepção pedagógica e para a formulação de sua correspondente proposta curricular, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho. (Parecer CNE/CEB nº22/2008) Assim sendo, as considerações apresentadas no Parecer nº 38/2006 continuam válidas, a única diferença é que com a sanção da Lei nº 11.684/2008 fica clara e definida a obrigatoriedade de serem incluídos os componentes curriculares Filosofia e Sociologia em todos os anos do Ensino Médio, dando-lhes o mesmo tratamento dos demais componentes 70 obrigatórios, que podem ou não assumir o formato de “disciplinas”. Sobre as questões acerca dos prazos e planos para a implantação da Lei, o Relator afirma que sua aplicação deve ser imediata (um facilitador seria o fato de que muitos sistemas de ensino e escolas haviam implantado uma ou ambas disciplinas em seus currículos por decisão originária própria, ou as implantaram em decorrência das alterações na Resolução CNE/CEB nº 3/98) mas que é preciso levar em consideração que a Lei nº 11.684/2008 foi promulgada em meio ao ano letivo da quase totalidade das escolas. Por isso, segundo Callegari, é razoável e legítima a proposição para que a aplicação da nova Lei atenda “normas complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos sistemas de ensino, até 31 de dezembro de 2008, para que sua implantação possa ser gradual”. Assim, os sistemas de ensino deveriam tomar as devidas providências para que fosse possível: 1) iniciar em 2009 a inclusão obrigatória da Filosofia e da Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do primeiro ano do curso; 2) prosseguir essa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os cursos com 4 anos de duração. Para concluir o Parecer, Callegari apresenta seu voto, no sentido de responder à consulta da professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e Silva, indicando que: 1. os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a forma de organização curricular adotada; 2. para a Educação Básica e, portanto para o Ensino Médio, não é obrigatória a estruturação do curso por seqüência de séries, pois a LDB admite diversas formas de organização, além da seriada tradicional, sendo que o obrigatório é o número mínimo de anos; 3. as escolas têm autonomia quanto à concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente proposta curricular, desde que garantam sua completude e coerência, devendo dar o mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são obrigatórios, seja esse tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, com tratamento interdisciplinar e contextualizado; 4. a aplicação do inciso IV do art. 36, da LDB, que inclui a Filosofia e a Sociologia como obrigatórias em todas os anos do Ensino Médio atenderá normas complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos Sistemas de Ensino até 31 de dezembro de 2008; 5. a implantação obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em todas as escolas, públicas e privadas, obedecerá aos seguintes prazos: a. início em 2009, com a inclusão em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio; b. prosseguimento dessa inclusão, ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4 anos; 6. os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos referidos componentes, garantindo-se aulas suficientes em cada ano e professores qualificados para o seu adequado desenvolvimento, além de outras condições, como, notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas [...] (Parecer CNE/CEB nº22/2008) Assim, em 15 de maio de 2009, foi aprovada a Resolução nº1, que dispõe sobre a 71 implementação da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir da edição da Lei nº11.684/2008. A Resolução afirma que os conteúdos de Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a organização curricular adotada, em todas as escolas públicas e privadas do país, e estabelece os prazos de implementação. A inclusão obrigatória deveria ter início em 2009 em pelo menos um dos anos do Ensino Médio. A inclusão deveria ser feita ano a ano, até 2011, para os cursos estruturados em 3 anos, e até 2012, para os cursos estruturados em 4 anos. 72 Considerações finais À guisa de conclusão e apenas para rememorar o que foi dito faremos aqui uma breve recapitulação. Primeiro fizemos uma breve síntese do percurso da Filosofa como disciplina escolar na educação brasileira. Vimos que o desenrolar histórico da Filosofia no currículo escolar nunca foi linear ou harmônico. Por ser um nível de ensino que passou por inúmeras reformas, a presença/ausência da Filosofia em seu currículo foi marcada por muitos conflitos. Mas podemos dizer, talvez, que esses conflitos sejam “normais”, pois, de acordo com Goodson (2001) tanto o currículo como a disciplina são construções históricas e sociais, ou seja, sua construção está repleta de objetivos, conflitos, interesses etc. Em seguida, nos propusemos a realizar uma reflexão crítica sobre como a Filosofia está presente nos documentos oficiais, sendo estes os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/Filosofia, os PNC+ para Ensino Médio/Filosofia e as Orientações Curriculares para o Ensino Médio/Filosofia. Aqui pudemos constatar algumas contradições entre os textos desses documentos e os textos da LDB/96 e das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98), como por exemplo, o fato de que enquanto estas últimas, ao mesmo tempo em que valorizam conhecimentos de Filosofia e Sociologia não asseguram a oferta destes como componentes obrigatórios, os PCNEM/Filosofia, os PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia não oferecem a estes conhecimentos outro tratamento que não o de caráter obrigatório, embora divirjam quanto ao “formato” desta obrigatoriedade. No entanto, apesar das contradições encontradas, se considerarmos os princípios gerais do Ensino Médio, definidos na LDB/96 e reforçados nas DCNEM, o espírito da proposta de ensino desenvolvida nesses 3 documentos, é bem coerente com a concepção delineada nos textos que compõem as bases legais da educação brasileira. Além disso, a análise desses 3 documentos também nos permitiu ver a evolução da importância dada à presença da Filosofia no currículo do Ensino Médio, uma vez que no primeiro documento (PCN, de 1999) dá-se a defesa da transversalidade da Filosofia enquanto que no último (OCNEM, de 2006) dá-se uma defesa de um espaço próprio e obrigatório para a Filosofia. Como vimos, a reformulação do Ensino Médio que se deu na década de 1990 (idéia de uma educação meramente utilitária e tecnicista) resultou numa constante queda na qualidade 73 da educação dos jovens brasileiros. “Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que faz os conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de ensino e aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira” (Callegari, 2008, p.24), mas a volta das duas disciplinas parece ser uma tentativa de mudar esse quadro, uma tentativa de oferecer uma completa, ampla e sólida formação básica. Mesmo não existindo um sistema nacional de ensino – de acordo com a LDB/96 existem três sistemas: o federal, o estadual e do Distrito Federal, e o municipal - as escolas não podem fugir daquilo que a LDB determina como conteúdo obrigatório. O Art. 26º da LDB define uma série de componentes curriculares obrigatórios. Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. § 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. § 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010) § 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) [...] § 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia. § 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição. § 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008) Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). Independentemente da organização curricular que adotem (transversalidade ou por disciplinas) o conteúdo de Filosofia deve estar presente. Como vimos no decorrer do trabalho, a autonomia das escolas garantida pela LDB/96 não se refere à escolha das disciplinas que devem construir a base nacional. A autonomia garantida às escolas é pedagógica e financeira, como afirma o Art.15º da LDB/96: Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público. 74 No último capítulo mapeamos a tramitação do Projeto de Lei nº1641 de 2003, do Deputado Dr, Ribamar Alves (PSB do Maranhão), que propunha a alteração do Art.36 da LDB/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Essa tramitação foi também repleta de conflitos entre aqueles que defendiam que a única forma da Filosofia fazer realmente parte da formação dos alunos era dar-lhe o caráter de conteúdo obrigatório (ou seja, com um espaço próprio para ser trabalhado, com a presença de um profissional da área); e aqueles que defendiam que a transversalidade seria suficiente para ensinar aos alunos os conhecimentos necessários. Houve imensa pressão por parte de associações, professores, alunos, filósofos e sociólogos para que o referido PL fosse aprovado. O principal argumento usado era o de que a escola carece de uma dimensão crítica e analítica, e que os conteúdos de Filosofia e Sociologia seriam capazes de fornecer tal dimensão. A Filosofia seria capaz de desenvolver nos educandos a capacidade de reflexão e análise crítica, habilidades necessárias a uma participação significativa na sociedade. Na Justificação do PL, o Deputado Dr. Ribamar Alves afirma que a Filosofia contribuiria “para uma opinião pública responsável e crítica, convidando para o debate reflexivo [...] (p.4) Outro aspecto que também pudemos constatar através desse mapeamento foi o fato de que os sociólogos mostraram-se muito mais articulados politicamente do que os filósofos, que acabram optando por uma via mais acadêmica. O que aconteceu, então, foi que a discussão acerca do significado e do sentido da Filosofia no Ensino Médio acabou ficando restrita ao meio acadêmico. Os filósofos não conseguiram levar a discussão para outros meios, para outros círculos. Não fossem os sociólogos levarem a discussão para a esfera política, talvez a lei não tivesse sido aprovada. A Filosofia e a Sociologia não têm tradição no currículo escolar - como é o caso da matemática e do português, por exemplo – por isso a pressão na esfera política foi extremamente crucial para se ter definida a obrigatoriedade. A institucionalização da Filosofia como obrigatória foi uma grande vitória, porém, é preciso ter claro que a introdução de um artigo na lei que torne a Filosofia uma disciplina obrigatória não é garantia de que os egressos do Ensino Médio serão capazes de, através de um pensamento rigoroso, realizar um exame minucioso das suas condições reais de existência, como uma forma radical de exercerem a crítica do senso comum. Como dissemos anteriormente, tornar uma disciplina obrigatória não significa determinar os conteúdos e métodos que serão utilizados. Assim, reafirmando que não temos um sistema nacional de ensino, fica a cabo de cada escola/região determinar quais serão esses conteúdos e métodos. 75 Ou seja, numa escola que discute/produz/implemente um não tem projeto clareza dos seus político-pedagógico objetivos, que comprometido não com transformações, provavelmente terá na Filosofia apenas mais uma disciplina inútil a enfastiar seus alunos. Além disso, a Filosofia institucionalizada está sujeita a dispositivos e discursos legais que exercem um tipo de controle social, na medida em que a escola, sendo uma instância que prepara para a vida e para a inserção dos sujeitos no mundo, se sustenta vinculando verdades úteis para a sociedade, verdades úteis para que os egressos sejam inseridos neste mundo já organizado. Segundo a Filosofia de Nietzsche, a verdade não é universal e irrefutável, mas sim um produto de convenção. A verdade é [...] uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em resumo, um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente erguidas, transpostas, enfeitadas e que depois de um longo uso, parecem a um povo firmes, canoniais, e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós esquecemos que são, metáforas que foram usadas e que perderam a sua força, moedas que perderam seu cunho, seu valor (Nietzsche, 1984, p.84). Ou seja, verdade é apenas uma interpretação tornada tradição. A escola então vincula um conhecimento já solidificado pelo tempo, útil para a manutenção da sociedade. O Estado jamais se importa com a verdade, salvo com aquela que lhe é útil – mais exatamente ele se ocupa em geral com tudo o que lhe é útil [...] Aliança do Estado com a Filosofia não tem, portanto, sentido, senão quando a Filosofia pode prometer ser incondicionalmente útil ao Estado (Nietzsche, 2003, p.217) Por isso há a necessidade de se perguntar: qual conhecimento será veiculado em Filosofia? O conhecimento de enfoque pragmático em detrimento do “saber acumulado”? Se é difícil pensar a Filosofia, em razão de sua complexidade, pensá-la no cenário educacional é um desafio ainda maior, pois temos todas as dificuldades inerentes à educação no atual contexto neoliberal, no qual a escola é constituída como uma alavanca a serviço do mercado de trabalho e dos vestibulares. Esse modelo de escola, parece-nos, está muito mais interessado em transmitir saberes e conhecimentos pouco especializados, seguindo as imposições desse modelo de sociedade que só considera que algo deve ser ensinado se tiver alguma finalidade prática, imediata e vísivel. O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e riqueza. Julga o útil pelos resultados vísiveis das coisas e das ações, identificando utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”.(CHAUÍ, 1995, p.18). Os documentos oficiais enfatizam a formação para um tipo de cidadania e uma preparação básica para o trabalho, “sem nenhum destaque ao aprofundamento dos estudos 76 acadêmicos nas diferentes áreas do conhecimento” (Falleiros, 2005, p.223). Na orientação vemos que há uma categoria de magnitude indiscutível, absoluta, e que seria o mercado. Este seria o responsável por orientar e delimitar a sociabilidade humana desejável. Desse modo a formação humana e/ou cidadã deve, necessariamente, subordinar-se aos ditames das necessidades do mercado. Pode-se apreender que aqui há claramente uma subordinação do humano/social a um determinado tipo de organização produtiva que, entretanto, resta indiscutida porque indiscutível. Nesse contexto, a função da Filosofia no currículo escolar poderia apenas ser a de elemento concorrente para o atingimento da satisfação das necessidades do mercado. Esse predomínio do mercado, que também é conhecido por sociedade neoliberal, acaba, portanto, por determinar mesmo de formas indiretas a função do ensino da Filosofia. Não seria, portanto, descabido, traçar um paralelo entre a trajetória da Filosofia enquanto disciplina escolar num governo assumidamente neoliberal e noutro, presidido por um ex-metalúrgico, que, ao menos tendencialmente, questiona e se afasta desse modelo globalmente consagrado. Talvez não seja apenas coincidência que no primeiro governo deu-se o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino Médio, enquanto que essa introdução foi facilitada no segundo. O conhecimento vinculado nas disciplinas curriculares desempenha, então, o papel de formar pessoas, instituir conceitos, valores, ideologias e visões de mundo. Segundo Goodson (2001, p.10) “[...] o currículo é construído para ter efeito sobre pessoas. As instituições escolares processam mais do que conhecimento, processam pessoas”. 77 Bibliografia ALVES, Dalton José. A filosofia no ensino médio: ambigüidades e contradições na LDB. Campinas: Autores Associados, 2002. 153p. APPLE, Michael W. Ideologia e Currículo. Tradução por João Menelau Paraskeva. Porto: Porto Editora, 1999. 255p. Coleção Currículo, Políticas e Práticas. BITTENCOURT, Circe Maria Fernandes. Disciplinas escolares: história e pesquisa. In: OLIVEIRA, Marcus Aurelio Taborda de; RANZI, Serlei Maria Fischer (org). 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Vide Lei nº 12.061, de 2009 TÍTULO II Dos Princípios e Fins da Educação Nacional Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho. TÍTULO IV Da Organização da Educação Nacional Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei. Art. 9º A União incumbir-se-á de: (Regulamento) I - elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; II - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal de ensino e o dos Territórios; III - prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva; 1 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho. 85 IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum; V - coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação; VI - assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino; VII - baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação; VIII - assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior, com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino; IX - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino. § 1º Na estrutura educacional, haverá um Conselho Nacional de Educação, com funções normativas e de supervisão e atividade permanente, criado por lei. § 2° Para o cumprimento do disposto nos incisos V a IX, a União terá acesso a todos os dados e informações necessários de todos os estabelecimentos e órgãos educacionais. § 3º As atribuições constantes do inciso IX poderão ser delegadas aos Estados e ao Distrito Federal, desde que mantenham instituições de educação superior. Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público. Art. 16. O sistema federal de ensino compreende: I - as instituições de ensino mantidas pela União; II - as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada; III - os órgãos federais de educação. Art. 17. Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal compreendem: I - as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e pelo Distrito Federal; II - as instituições de educação superior mantidas pelo Poder Público municipal; III - as instituições de ensino fundamental e médio criadas e mantidas pela iniciativa privada; IV - os órgãos de educação estaduais e do Distrito Federal, respectivamente. Parágrafo único. No Distrito Federal, as instituições de educação infantil, criadas e 86 mantidas pela iniciativa privada, integram seu sistema de ensino. Art. 18. Os sistemas municipais de ensino compreendem: I - as instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo Poder Público municipal; II - as instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada; III – os órgãos municipais de educação. TÍTULO V Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino CAPÍTULO II DA EDUCAÇÃO BÁSICA Seção I Das Disposições Gerais Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para progredir no trabalho e em estudos posteriores. Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar. § 1º A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares gerais. § 2º O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o número de horas letivas previsto nesta Lei. Art. 25. Será objetivo permanente das autoridades responsáveis alcançar relação adequada entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as condições materiais do estabelecimento. Parágrafo único. Cabe ao respectivo sistema de ensino, à vista das condições disponíveis e das características regionais e locais, estabelecer parâmetro para atendimento do disposto neste artigo. Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da 87 economia e da clientela. § 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. § 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010) § 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) § 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia. § 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição. § 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008) Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008). Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes diretrizes: I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; 88 II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento; III - orientação para o trabalho; IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais. Seção IV Do Ensino Médio Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três anos, terá como finalidades: I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos; II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico; IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina. Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição. IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. (Incluído pela Lei nº 11.684, de 2008) § 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; 89 ANEXO 2 RESOLUÇÃO CEB Nº 3, DE 26 DE JUNHO DE 19982 Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para oEnsino Médio. O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, de conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea ―c‖, da Lei 9.131, de 25 de novembro de 1995, nos artigos 26, 35 e 36 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em vista o Parecer CEB/CNE 15/98, homologado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto em 25 de junho de 1998, e que a esta se integra, RESOLVE: Art. 1º As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio – DCNEM, estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante dos diversos sistemas de ensino, em atendimento ao que manda a lei, tendo em vista vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática social, consolidando a preparação para o exercício da cidadania e propiciando preparação básica para o trabalho. Art. 2º A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores apresentados na Lei 9.394, a saber: I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. Art. 4º As propostas pedagógicas das escolas e os currículos constantes dessas propostas incluirão competências básicas, conteúdos e formas de tratamento dos conteúdos, previstas pelas finalidades do ensino médio estabelecidas pela lei: I - desenvolvimento da capacidade de aprender e continuar aprendendo, da autonomia intelectual e do pensamento crítico, de modo a ser capaz de prosseguir os estudos e de adaptar-se com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento; 2 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho. 90 II - constituição de significados socialmente construídos e reconhecidos como verdadeiros sobre o mundo físico e natural, sobre a realidade social e política; III - compreensão do significado das ciências, das letras e das artes e do processo de transformação da sociedade e da cultura, em especial as do Brasil, de modo a possuir as competências e habilidades necessárias ao exercício da cidadania e do trabalho; IV - domínio dos princípios e fundamentos científico-tecnológicos que presidem a produção moderna de bens, serviços e conhecimentos, tanto em seus produtos como em seus processos, de modo a ser capaz de relacionar a teoria com a prática e o desenvolvimento da flexibilidade para novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores; V - competência no uso da língua portuguesa, das línguas estrangeiras e outras linguagens contemporâneas como instrumentos de comunicação e como processos de constituição de conhecimento e de exercício de cidadania. Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber: I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e habilidades que permitam ao educando: a) Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão, comunicação e informação. b) Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas manifestações específicas. c) Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção. d) Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade. e) Conhecer e usar língua(s) estrangeira(s) moderna(s) como instrumento de acesso a informações e a outras culturas e grupos sociais. f) Entender os princípios das tecnologias da comunicação e da informação, associá-las aos conhecimentos científicos, às linguagens que lhes dão suporte e aos problemas que se propõem solucionar. g) Entender a natureza das tecnologias da informação como integração de diferentes meios de comunicação, linguagens e códigos, bem como a função integradora que elas exercem na sua relação com as demais tecnologias. 91 h) Entender o impacto das tecnologias da comunicação e da informação na sua vida, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social. i) Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida. II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, objetivando a constituição de habilidades e competências que permitam ao educando: a) Compreender as ciências como construções humanas, entendendo como elas se desenvolvem por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas, relacionando o desenvolvimento científico com a transformação da sociedade. b) Entender e aplicar métodos e procedimentos próprios das ciências naturais. c) Identificar variáveis relevantes e selecionar os procedimentos necessários para a produção, análise e interpretação de resultados de processos ou experimentos científicos e tecnológicos. d) Compreender o caráter aleatório e não determinístico dos fenômenos naturais e sociais e utilizar instrumentos adequados para medidas, determinação de amostras e cálculo de probabilidades. e) Identificar, analisar e aplicar conhecimentos sobre valores de variáveis, representados em gráficos, diagramas ou expressões algébricas, realizando previsão de tendências, extrapolações e interpolações e interpretações. f) Analisar qualitativamente dados quantitativos representados gráfica ou algebricamente relacionados a contextos sócio-econômicos, científicos ou cotidianos g) Apropriar-se dos conhecimentos da física, da química e da biologia e aplicar esses conhecimentos para explicar o funcionamento do mundo natural, planejar, executar e avaliar ações de intervenção na realidade natural. h) Identificar, representar e utilizar o conhecimento geométrico para o aperfeiçoamento da leitura, da compreensão e da ação sobre a realidade. i) Entender a relação entre o desenvolvimento das ciências naturais e o desenvolvimento tecnológico e associar as diferentes tecnologias aos problemas que se propuseram e propõem solucionar. j) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências naturais na sua vida pessoal, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social. l) Aplicar as tecnologias associadas às ciências naturais na escola, no trabalho e em outros contextos relevantes para sua vida. 92 m) Compreender conceitos, procedimentos e estratégias matemáticas e aplicá-las a situações diversas no contexto das ciências, da tecnologia e das atividades cotidianas. III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e habilidades que permitam ao educando: a) Compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que constituem a identidade própria e dos outros. b) Compreender a sociedade, sua gênese e transformação e os múltiplos fatores que nelas intervêm, como produtos da ação humana; a si mesmo como agente social; e os processos sociais como orientadores da dinâmica dos diferentes grupos de indivíduos. c) Compreender o desenvolvimento da sociedade como processo de ocupação de espaços físicos e as relações da vida humana com a paisagem, em seus desdobramentos político-sociais, culturais, econômicos e humanos. d) Compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos e atores sociais, aos princípios que regulam a convivência em sociedade, aos direitos e deveres da cidadania, à justiça e à distribuição dos benefícios econômicos. e) Traduzir os conhecimentos sobre a pessoa, a sociedade, a economia, as práticas sociais e culturais em condutas de indagação, análise, problematização e protagonismo diante de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal, social, política, econômica e cultural. f) Entender os princípios das tecnologias associadas ao conhecimento do indivíduo, da sociedade e da cultura, entre as quais as de planejamento, organização, gestão, trabalho de equipe, e associá-las aos problemas que se propõem resolver. g) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências humanas sobre sua vida pessoal, os processos de produção, o desenvolvimento do conhecimento e a vida social. h) Entender a importância das tecnologias contemporâneas de comunicação e informação para o planejamento, gestão, organização, fortalecimento do trabalho de equipe. i) Aplicar as tecnologias das ciências humanas e sociais na escola, no trabalho e outros contextos relevantes para sua vida. § 1º A base nacional comum dos currículos do ensino médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a contextualização. § 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: 93 a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios; b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania. ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET Presidente da Câmara de Educação Básica 94 ANEXO 3 Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos MENSAGEM Nº 1.073, DE 8 DE OUTUBRO DE 2001. Senhor Presidente do Senado Federal, Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo 1 o do artigo 66 da constituição Federal, decidi vetar integralmente, por contrariedade ao interesse público, o Projeto de Lei no 9, de 2000 (no 3.178/97 na Câmara dos Deputados), que "Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional". Ouvido, o Ministério da Educação assim se manifestou: Razões do veto: "A Constituição Federal em seu art. 210, caput, preceitua: "Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais." Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil, lecionam que na fixação do conteúdo mínimo para o ensino fundamental devem ser levadas em conta as diferenças regionais de desenvolvimento socioeconômico, que devem estar presentes em benefício da própria unidade federada em que encontra instituído o estabelecimento de ensino. O conteúdo mínimo tem como finalidade manter a unidade dos currículos em todo o País e ao mesmo tempo manter uma parte diversificada, capaz de atender às peculiaridades e características de cada região, aos planos das escolas e às diferenças individuais existentes e necessárias dos educandos. Sabiamente, a LDB (Lei n o 9.394/96), em atenção às peculiaridades e características de cada região, em seu art. 9o, inciso IV, atribuiu à União a incumbência de "estabelecer, em 95 colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum". Acrescente-se que o art. 211 da Constituição Federal, em seu § 3 o, preceitua que os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio. Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público. Muito embora o art. 210 da Constituição Federal se refira à fixação de conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum, entendo que os princípios inerentes de tal diploma sejam observados para a fixação dos currículos e conteúdos mínimos para o ensino médio, a cargo da União, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, conforme preceitua o art. 9 o, inciso IV, da Lei no 9.394/96. Por derradeiro, tecnicamente, a proposta contida no projeto, se viável, deveria ser inserida no art. 26 da Lei no 9.394/96, o qual em seu § 1o estabelece que os currículos do ensino fundamental e médio devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática." Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional. Brasília, 8 de outubro de 2001. 96 ANEXO 4 PROJETO DE LEI N° _____, DE 2003 (Do Sr. Dr. Ribamar Alves) Altera dispositivos do art. 36 da Lei n° 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional. O congresso Nacional decreta: Art. 1º É acrescentado o seguinte inciso IV ao artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de 1996: ―Art. 36.............................................. IV – Serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do Ensino Médio.‖ Art. 2º É suprimido o inciso III do § 1º do art. 36 da Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1996. Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua Publicação. Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário. JUSTIFICAÇÃO Herdamos do mundo grego não apenas semântica estrutural da língua, mas o processo de inserção do homem na existência mediante a atividade do pensar. Com efeito, um dos ideais gregos que alicerçam tal consideração é a idéia de que é tarefa primordial do ser humano o desenvolvimento intelectual de sua personalidade. Por isso, a filosofia, a idéia grega do amor ao saber pelo saber , pressupõe o necessário exercício do pensar como fundamento do conhecer. O desdobrar deste ideal nos direciona, essencialmente, a dois problemas básicos a educação e a política. É impossível, para os gregos, desvincular educação e política só é possível na Estado e através dele. Assim situando-nos na realidade histórica do Brasil contemporâneo, sem jamais perder de vista a precipua influência dos ideais gregos relativos à educação, cultura e política faz-se urgente uma reflexão sobre a atual situação da Filosofia no referido contexto., mais especificamente à problemática de sua inclusão, ou re-inclusão, nas escolas brasileiras e seus 97 currículos do Ensino Médio. A re-inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio pode nos parecer redundante, mas extemporânea, reafirmar a necessidade da filosofia nos currículos de Ensino Médio, mesmo em pleno regime democrático é sobretudo uma conseqüência de anos de luta, o que nos remonta a sua subtração ainda durante o regime militar. Algo que nos faz historiar a respeito de fatos ocorridos no limiar dos anos oitenta, quando a então Ministra do Governo Figueiredo professora Ester Ferraz, após receber uma comissão de professores, chegou a recomendar às secretarias de educação e conselhos estaduais de educação, que a Filosofia fosse acrescentada como disciplina nos currículo do então segundo grau, hoje Ensino Médio. É obvio que esta atitude não foi fortuita, mas como dissemos, fruto de uma longa luta, iniciada uma década anterior, com direito a encontros nacionais e fundação de entidades representativas. Contudo, o que importa destacar é a simetria entre as atitudes, (ou ausência dela) que intercalam os dois tempos históricos, o ontem e o hoje. O que se revela no mínimo curioso, posto que uma Ministra do regime autoritário faz uma recomendação que caberia ao regime democrático executar com grande aptidão. É preeminente o discurso que a educação brasileira vem tomando nos últimos anos, especialmente, após a aprovação da lei 9394/96 (LDB). Há toda uma fala que provoca referendar o tema da educação como a mais avançada que tivemos na historia brasileira ―uma revolução silenciosa‖. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio- DCNEM impelem o caminho que prima pelos ―princípios estéticos, políticos e éticos que inspiram a LDB e, por conseqüência, devem inspirar o currículo‖, posto que estes conceitos fundamentaram o novo ensino médio brasileiro. Elas informam no seu bojo um espirito democrático que busca fundamentar um novo Ensino Médio e, segundo, este documento do Ministério da Educação, que só ratifica substancialmente a importância e necessidade da Filosofia, quando infere que s fundamentos do Ensino Médio se assentam sob os conceitos da estética, política e ética. Ora, apenas o fato de se chamar a discussão para os fundamentos, seria motivo de sobra para que a filosofia atravessasse todo esse ciclo educacional como disciplina. Para sermos mais específicos, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s em seus Parecer CEB 15/98, irrompem com esta mesma posição numa louvável citação do filósofo francês Gilles Gaston Grander; “(...) A filosofia sempre teve conexões intimas e duradouras com os resultados das ciências e das artes e, no esforço de pensar seus fundamentos muitas vezes foi além delas, abrindo campos para 98 novos saberes e novas experiências” (GRANDER; apud. BRASIL, MEC. 1998, p.329). O referido parecer das diretrizes decide, além da orientação acima, considerar como fundamentos do ensino médio conceitos que estão intimamente ligados à Filosofia, conceitos que estão na sua gênese. O que o parecer supra mencionado chama de estética da sensibilidade, política da igualdade de ética da identidade não é senão aquilo que nutre a bagagem conceptual da Filosofia, suas categorias de discurso mais originais ao longo dos seus vinte e cinco séculos. Falar então da Filosofia como disciplina no currículo do Ensino Médio passa a ser nada mais que uma condição sine qua non, principalmente, se tomada na conceito disciplina, tal como o próprio Ministério da Educação compreende. “(...) A expressão “disciplina escolar” refere-se a uma seleção de conhecimentos que são ordenados e organizados para serem apresentados ao aluno. Recorrendo, como apoio a essa apresentação um conjunto de procedimentos didáticos e metodológicos e de avaliação. (...) a disciplina escolar é ainda mais ampla pois incha programas ou formas ordenamento, sequenciação, os métodos para o seu ensino e a avaliação da aprendizagem. A disciplina escolar supõe ainda uma teoria da aprendizagem adequada à idade a quem vai ser ensinada (...) (Brasil. MEC., 1998. p.88) Esse conceito utilizado pelos PCN´s só ratifica a presença só ratifica a presença da filosofia como disciplina no Ensino Médio, uma vez que considera relevante as questões especifico de determinada área como balizamento, método de investigação e recuso à teoria. No mesmo sentido é a afirmação do professor Celso Favaretto. “A filosofia deve ser considerada no ensino médio como uma disciplina, ao nível dos demais. Como “disciplina”, ao nível das demais. Como “disciplina”, é um conjunto específico de conhecimentos, com características próprias, sobre ensino, formação, valores, etc. (...) Como “disciplinas” ainda, ela mescla conteúdo cultural a partir de seus materiais, mecanismos e métodos, como qualquer outra. Está vinculada às necessidades de formação e saber inscritos culturalmente e solicitados socialmente. 99 A mesma orientação é dada para o ensino da filosofia mais adiante nos PEN‘s, que avança duplamente ao qualificar a Filosofia como um conhecimento ao mesmo tempo é específico e articulador, que pelo diálogo com os demais campos epstemológicos, colabora com uma compreensão da realidade complexa e dinâmica. “(...) possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais curriculares (...) É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo dispensar a presença de um profissional na área, (...) para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica dos diversos textos em que o conhecimento de filosofia é um saber altamente especializado e que portanto, não se pode ser adequadamente tratado por leigos (...) “, (BRASIL. MEC., 1998. P.342) Como ―transdisciplinar‖ a Filosofia não significa outo-dissolução entre as demais, uma vez que transdisciplinaridade não é uma condição exclusiva da Filosofia, mas de todo e qualquer conhecimento que queira transpor as barreiras instituídas pelo positivismo que abateu-se sobre a produção do conhecimento, sobretudo, na educação. ―A transdisciplinaridade, como prefixo ―trans‖ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferenças e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do mundo, presente, para qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento‖ (NICOLESCU, 1999). A Filosofia sim tem o papel de articuladora, uma vez que a transdisciplinaridade é o que impõe sua condição como disciplina e, não sua naturalidade. O filosofo de Kõnigsberg pensava a Universidade como um sujeito-critico de suas próprias práticos, que pudesse implementar a partir dessa instância crítica, indagações, sem regras, das condições de possibilidades dos discursos e das próprias regras que ali circulavam (RINESI, 2001, p 90-91). Para Kant, a Filosofia, o ―tribunal da razão‖, é o fórum mais legitimo onde se institui e se julga qualquer regra. Se a Filosofia, tem essa responsabilidade na Universidade, porque não no Ensino Médio? Na verdade a fala dos PCN´s ao colocar a Filosofia como articuladora revela senão esse caráter, posto que a Filosofia é uma modalidade do conhecimento que põe a questão sobre si mesma, noutros termo, põe a questão da consciência critica da própria consciência filosófica. Sua características transdisciplinar tem ai sua justificativa contumaz. 100 Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que não sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o texto da LDB insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela. Nesse sentido, quanto a Filosofia ao currículo da Ensino Médio, cabe ainda ressaltar a fala professor Franklin Leopoldo e Silva (apud: Pe, Roque, 1997) “Existe, portanto, um lado pelo qual o filosofia ocupa na estrutura curricular posição análogo a qualquer outra disciplina: há o que aprender., há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas, há, sobretudo, uma terminologia especifica a ser devidamente assimilada. Não devemos nos iludir com o adágio “não se aprende filosofia”, algo que pode levar a um comodismo ou a uma descaracterização da disciplina. O que a filosofia tem de diferente das outras disciplinas é que o ato de ensina-la se confunde com a transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da Filosofia somente logrará algum existe na medida em qual estilo for efetivamente transmitido. No entanto, isto ocorre de forma concomilante à assimilação dos conteúdos específicos, da carga de informação que pode ser transmitida de variadas formas. O estilo reflexivo não pode ser ensinada formal e diretamente, mas pode ser suficientemente ilustrado quando o professor e os alunos refazem o percurso da interrogação filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual a Filosofia constrói suas questões e suas respostas. Ora, é desta maneira especifico que a Filosofia realiza o trabalho de articulação cultural...Pensar e repensar a cultura não se confunde com compatibilidade de métodos e sistematização de resultados: é uma atividade autônoma de índole critica. Não devemos, portanto entender que a Filosofia estará no currículo do Ensino Média em função das outras disciplinas, quase num papel de assessora metodológica. No entanto, seria grave infidelidade ao espírito filosófico entender que a Filosofia virá se agregar ao currículo apenas para torna-se mais uma parte é um todo desconexo, ou pelo menos como profundos problemas de integração e conexão. Nesse sentido, não representa prestação dizer que a Filosofia não é 101 apenas mais uma disciplina: ao dize-lo, estaremos apenas reafirmando a natureza do estudo filosófica. Tem uma função de articulação do indivíduo enquanto personagem social, se entendemos que o autêntico processo de socialização requer a consciência e o reconhecimento da identidade social e uma compreensão critica da relação homem-mundo.” Na realidade contemporânea, na atualidade, tanto ou mais que em outras épocas históricas, sociais e políticas, a Filosofia deve estar presente para propiciar a análise e compreensão de problemas, envolvendo questões emergentes da diversidade dos contextos. Vivemos numa época do encontro das culturas, do fim do mito do discurso único e onde as legitimações ideológicas estão sendo desautorizadas. Vivemos num cenário que proporciona choques e tensionamentos que incidem rapidamente sobre fatos sociais, políticos, históricos, econômicos e que clamam por uma compreensão que somente a Filosofia pode proporcionar à altura. A filosofia nos currículos da Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito, dissolvendo-a em modalidades temáticas de outras disciplinas. Ora, a Filosofia tem no atual contexto político do fortalecimento das instituições democráticas do país um dos papéis mais relevantes neste projeto, qual seja, o de contribuir para uma formação e fundamentação da opinião pública brasileira, não deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê à deriva com o cerco do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em ouro, ou melhor, mercado, tudo o que toca. Ela oporá, por aporias. Assim, contribuirá para uma opinião pública responsável e crítica, convidando para o debate reflexivo, introduzindo valores que se assentam sobre aquela tradição grega que falávamos inicio q que em suma, é de vocação política. Para nós, é o que pode construir instituições democráticas e consolidar a democracia verdadeiramente num país como o Brasil. Sala das Sessões, em ____/____/____ Deputado Dr. Ribamar Alves PSB/MA 102 ANEXO 5 PARECER HOMOLOGADO(*) (*) Despacho do Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 14/8/2006 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO INTERESSADO: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica UF: DF ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio. RELATORES: Cesar Callegari, Murílio de Avellar Hingel e Adeum Hilário Sauer PROCESSO nº: 23001.000179/2005-11 PARECER CNE/CEB Nº: COLEGIADO: APROVADO EM: 38/2006 CEB 7/7/2006 I – RELATÓRIO Histórico Em 24/11/2005, foi protocolado no Conselho Nacional de Educação o Oficio nº 9647/GAB/SEB/MEC, de 15 de novembro de 2005, pelo qual o Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as “Diretrizes Curriculares das disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”, elaborado pela Secretaria com a participação de representantes de várias entidades. O documento juntado contém uma série de considerações favoráveis à inclusão obrigatória de disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio. Nesse documento, em sua ―Parte I – Do contexto legal‖, entre outras considerações, é lembrado o artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96 – LDB: “§ 1o. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre: III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.‖ Em contraposição, é lembrado o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, fundamentada no Parecer CNE/CEB nº 15/98: “§ 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.” É referido, ainda, o Parecer CNE/CEB nº 22/2003, no qual, ao tratar de ―questionamento sobre currículos da Educação Básica, das escolas públicas e particulares‖, e recorrendo à LDB e à Resolução CNE/CEB nº 3/98, este Colegiado ponderou que ―não há, 103 dentro da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como disciplinas.‖ Entretanto, com apoio no disposto na LDB, os proponentes desenvolvem argumentação que conclui que Filosofia e Sociologia devem passar a ser entendidas como disciplinas obrigatórias. A ―Parte II - Do contexto pedagógico‖, do documento anexado, está dividida em três títulos: ―1 – Filosofia‘ ‗2 – Sociologia‘ ‗3 - Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio‖. Nos dois primeiros, entre várias considerações, são apresentadas razões que justificam a inclusão de cada uma como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio, contrapondo-se, em especial, às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98). No terceiro título, também entre outras considerações, são confrontadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM com os Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – PCNEM, salientando que estes, diferentemente das primeiras, apresentam opção por estruturação disciplinar, ―apenas fazendo certa concessão à imposição que as DCNEM determinaram de se buscar a interdisciplinaridade‖. Indagam, ainda, quanto ao tratamento preconizado pelas DCNEM: ―como garantir que os ‗conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‘ sejam tratados efetivamente pelas demais disciplinas escolares, ou seja, como dizem as DCNEM, com ‗tratamento interdisciplinar e contextualizado‖? Ao final da argumentação, acabam por propor que seja alterada a Resolução CNE/CEB nº 3/98, no seu artigo 10º, § 2º, com a supressão da alínea b e inclusão do § 3º com a seguinte redação: “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento de componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”. Antes de passar à análise da proposta, registra-se que, em 1º de fevereiro de 2006, a Câmara de Educação Básica promoveu reunião, para a qual foram convidadas mais de 30 entidades e pessoas, para discussão do tema ―Alteração das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares obrigatórios deFilosofia e Sociologia‖, com base na proposta da Secretaria de Educação Básica do MEC.Participaram dessa audiência 20 pessoas, entre sociólogos, professores de Filosofia e de Sociologia, representantes de entidades, estudantes e outros profissionais. Foram apresentados e 104 discutidos os vários aspectos concernentes à reivindicação da inclusão obrigatória de disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio, mediante alteração na Resolução CNE/CEB nº 3/98. A mesma preocupação com o ensino da Filosofia e da Sociologia está presente em outras instâncias, inclusive no Legislativo, em que se registram iniciativas parlamentares visando a sua inclusão no currículo do Ensino Médio: Projeto de Lei da Câmara dos Deputados n° 1.641, de 2003, e Projeto de Lei do Senado n° 4, de 2004. Análise do Mérito Preliminarmente, reitera-se a importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas. Essa relevância é reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, como por pesquisadores e educadores em geral, inclusive não filósofos ou não sociólogos. O legislador, por seu lado, reconheceu essa importância ao destacar nominalmente os conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, dando-lhes valor essencial e não acidental, com caráter de finalidade do processo educacional do Ensino Médio. (artigo 36, § 1 o, inciso III, da Lei nº 9.394/96). Não é demais destacar que, na ótica da LDB, os conhecimentos de Filosofia e Sociologia são justificados como ―necessários ao exercício da cidadania” (artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96). Com os demais componentes da Educação Básica, devem contribuir para uma das finalidades do Ensino Médio, que é a de ―aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico‖ (art. 35, inciso II, da LDB). E devem, ainda, mais especialmente, seguir a diretriz de ―difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática‖ (art. 27, inciso I, da LDB). Outro ponto a considerar é a realidade, expressa na adoção crescente do ensino de Filosofia e de Sociologia pela maioria das redes de escolas públicas estaduais. Segundo informação do MEC, em 17 estados da Federação, a Filosofia e a Sociologia foram incluídas no currículo, sendo optativas em 2 deles. Muitas escolas particulares, em todo o país, por seu lado, também, decidiram livremente a sua inclusão. Essa inclusão crescente não foi determinada por lei federal ou por norma nacional, mas, sim, pelos próprios sistemas estaduais de ensino para suas redes públicas escolares, seja 105 por iniciativa própria, seja por força de legislação estadual, em todos os casos como resultado de uma persistente mobilização de amplos setores ligados à educação, que defendem a Sociologia e a Filosofia no contexto dos esforços de qualificação do Ensino Médio no Brasil. Esses avanços, ocorridos na maioria dos Estados, acabaram por criar uma situação desigual no acesso aos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia. Nos Estados que ainda não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, há toda uma população jovem posta à margem do acesso aos seus conhecimentos. Essa desigualdade ocorre, igualmente, na rede particular de ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por uma parte das escolas, muitas outras não o fizeram. Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho, propiciadora de uma equalização, visando à igualdade de direitos de acesso a esses conhecimentos no Ensino Médio do país. Uma análise cuidadosa da legislação e das normas pertinentes à matéria permite reunir os argumentos favoráveis à presença da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, inclusive na forma de disciplinas, nesse caso sempre e quando os sistemas de ensino estruturarem os currículos com o formato disciplinar. Já em maio de 1997, poucos meses após a promulgação da LDB, esta Câmara de Educação Básica cuidava indiretamente da questão, pelo Parecer CNE/CEB nº 5/97, que tratou de ―Proposta de Regulamentação da Lei 9.394/96‖. No item 3.1, referente às Disposições Gerais sobre a Educação Básica, indicava que: ―A lei trata de uma base comum nacional na composição dos currículos do ensino fundamental e do ensino médio. Caberá à Câmara deEducação Básica do Conselho Nacional de Educação “deliberar sobrediretrizes curriculares”, a partir de propostas oferecidas pelo Ministério da Educação e do Desporto, nelas definidas, é claro, essa base comum naciona,l por sua vez, a ser complementada com uma parte diversificada, capaz de atender as condições culturais, sociais e econômicas de natureza regional. Essa diversificação haverá de ser feita pelos órgãos normativos dos sistemas e, principalmente, pelas próprias instituições de ensino, à luz do interesse dademanda em cada uma (art. 26). Além desse complemento curricular (parte diversificada), o legislador impôs (art. 27), tanto nas finalidades como sob a forma de diretrizes, objetivos que não se enquadram como componentes curriculares propriamente ditos, visto que abrangem a base comum nacional e a diversificação, ou seja, não de natureza ético/social. Dizem respeito a valores fundamentais ao interesse social, direitos e deveres dos cidadãos, envolvendo respeito ao bem comum e à ordem democrática, como fundamentos da sociedade. Abrangem formação de atitudes, preparação para o trabalho, para a cidadania e para a ética nas relações humanas. 106 Note-se Sobre o assunto, estudos estão em andamento neste Colegiado visando à definição da base comum nacional e da especificação dos conteúdos definidos em lei, genericamente, como “o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil”. Além do ensino da arte como “componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”. A tais componentes curriculares, somam-se a “educação física, ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar, sendo facultativa nos cursos noturnos” e o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.‖ (gg. nn.) que a diversidade de termos correlatos utilizados pela LDB (componente,conteúdo, conhecimento, disciplina, estudo, matéria, ensino) foi unificada, nesse Parecer, que adotou o termo ―componente curricular‖. Com efeito, na Seção I – Das Disposições Gerais, e na Seção IV – Do Ensino Médio, que aqui interessa mais de perto, verificamos equivalente ocorrência desses termos, com sentido correlato. O termo ―componente curricular‖, com este sentido abrangente, aliás, é utilizado na própria LDB, como, por exemplo, no seu art. 24, inciso IV: “IV – poderão organizar-se classes ou turmas, com alunos de séries distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes curriculares;” (g.n.) De todo modo, cabe assinalar que o Parecer CNE/CEB nº 5/97, no item 3.4, referente ao Ensino Médio, já profetizava que: “Muito provavelmente, se pode antecipar a dúvida que será levantada nos sistemas de ensino e nas instituições que os integram, quanto à forma aser adotada, visando ao domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia”. Verifica-se, preliminarmente, que não há relação direta entre obrigatoriedade e formato ou modalidade do componente curricular (seja chamado de componente, conteúdo, conhecimento, disciplina, estudo, matéria ou ensino). Assim, o art. 26 da LDB, ao tratar dos currículos do Ensino Fundamental e Médio, em seus parágrafos, não determina que forma de organização os respectivos estudo, conhecimento ou ensino deverão ter, ao comporem a base nacional comum e a parte diversificada. Todos os componentes referidos são obrigatórios, mas, sem determinação de forma ou modalidade. Mais diretamente é colocada essa dissociação no art. 26-A, § 2º, relativo ao ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, o 107 qual é obrigatório, porém, seus conteúdos ―serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras‖. O Parecer CNE/CEB nº 16/2001, referente à ―consulta quanto à obrigatoriedade da Educação Física como componente curricular da Educação Básica e sobre a grade curricular do curso de Educação Física da rede pública de ensino‖, tratou dessa questão: ―Portanto, o exame da LDB e do Parecer CNE/CEB nº 5/97, que a esclarece, não permite concluir que os componentes curriculares devam configurar disciplinas de mesmo nome. Antes disso, deverão fazer parte da Proposta Pedagógica da Escola, que detalhará a modalidade na qual serão abordados ao longo do trabalho pedagógico. Para investigar mais profundamente a vinculação obrigatória ou não entre um componente curricular obrigatório e uma disciplina escolar específica, caberia uma analogia entre a Educação Física e a Educação Ambiental. A Lei 9.795/99 estabelece a Educação Ambiental como componente essencial e permanente da educação nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os níveis e modalidades do processo educativo. Não resta dúvida que se trate de componente curricular obrigatório na escola básica inclusive. No entanto, em seu artigo 10, afirma: „Art 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal. § 1o. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo de ensino.‟ Note-se, pois, que a mesma lei que determina a inclusão de um componente curricular recomenda que ele não constitua disciplina específica. A legislação em vigor tem outras evidências da desvinculação direta e automática entre componentes curriculares e disciplinas específicas.‟ (...) Conclui-se, portanto, que não existe vinculação direta entre componente curricular, mesmo obrigatório e disciplina específica no currículo de ensino.‖ (...) Examinemos a situação do Ensino Médio. As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Res. CNE/CEB nº 3/98) dispõem da mesma forma em relação à constituição de Proposta Pedagógica da Escola contemplando três áreas de conhecimento, que não correspondem biunivocamente a disciplinas: “Art. 10 A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber: I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, (...) II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, (...) III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, (...) § 1º A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento 108 metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a contextualização. § 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios; b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.” Deve-se notar, novamente, que nenhuma das áreas de conhecimento configura disciplina escolar tradicional.‖(gg.nn.) O Parecer CNE/CEB nº 22/2003, que tratou de ―questionamento sobre currículos da Educação Básica das escolas públicas e particulares‖, além de explicitar que ―não há, dentro da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como disciplinas‖, também, acrescentou que o artigo 12 da Lei nº 9.394/96 dispõe que: “Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar sua proposta pedagógica”; que confere aos estabelecimentos de ensino a competência de construírem os seus projetos pedagógicos atendendo a toda a legislação existente e dando-lhes o tratamento curricular que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, como por exemplo, considerar alguns assuntos como temas transversais. Ademais, a atual LDB não contempla mais a existência de currículos mínimos com disciplinas estanques, como muito bem explicitam os pareceres e resoluções desta Câmara de Educação Básica, que definiram Diretrizes Curriculares Nacionais para os vários níveis e modalidades da Educação Básica.” (gg.nn.) A Filosofia e a Sociologia são explicitamente mencionadas, apenas, no art. 36, § 1º, inciso III, da LDB, o qual determina que o currículo do Ensino Médio observará o disposto na Seção I do Capítulo II (onde está o art. 26) e as seguintes diretrizes: “Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre: I – (...); II – (...); III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania.” Quanto aos lembrados Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – PCNEM, deve-se esclarecer, primeiramente, que são subsídios valiosos, porém não são normas, nem são de aplicação obrigatória, como o são as DCNEM. No que se refere à questão em tela, se os PCNEM contemplam a Filosofia e a Sociologia, não deixam de ressaltar que: 109 ―É importante compreender que a Base Nacional Comum não pode constituir uma camisa-de-força que tolha a capacidade dos sistemas, dos estabelecimentos de ensino e do educando de usufruírem da flexibilidade que a lei não só permite, como estimula. Essa flexibilidade deve ser assegurada, tanto na organização dos conteúdos mencionados em lei, quanto na metodologia a ser desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem e na avaliação.‘ (gg.nn.) (...) ‗O fato de estes Parâmetros Curriculares terem sido organizados em cada uma das áreas por disciplinas potenciais não significa que estas são obrigatórias ou mesmo recomendadas. O que é obrigatório pela LDB ou pela Resolução nº 03/98 são os conhecimentos que estas disciplinas recortam e as 6 competências e habilidades a eles referidos e mencionados nos citados documentos.‖ (gg.nn.) A Secretaria de Educação Básica do MEC promoveu, em 2004, a elaboração do documento ―Orientações Curriculares do Ensino Médio‖, destinado a subsidiar as discussões de seminários regionais, realizados com o fito de consolidar a organização curricular do Ensino Médio (in site do MEC: www.mec.gov.br). No título referente à Filosofia, ao tratar das relações entre a LDB, as DCNEM e os PCNEM, encontra-se a consideração de que: “Ao contrário da legislação, não só os PCN dão tratamento disciplinar à Filosofia como, de modo singular, defendem sua obrigatoriedade. É evidente que, não podendo tornar obrigatório o que a LDB apenas faculta, os PCN tomam a defesa da área e recomendam a presença obrigatória de um profissional de Filosofia no Ensino Médio” (g.n.) Em resumo, há uma diretriz de que ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente proposta curricular, ―sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar‖, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho. O fato é que poucas escolas adotam concepções mais flexíveis e inovadoras, que a LDB permite e as DCNEM incentivam, com a autonomia que dão às instituições educacionais e aos sistemas de ensino, concepções essas que conduzam à construção de currícul os de arquitetura diversa da estruturada habitualmente por disciplinas (por exemplo, por unidades de estudos, atividades e projetos interdisciplinares). 110 A maioria das escolas mantém a concepção curricular mais comum, estruturada em disciplinas, entendidas estas, na prática, como recortes de áreas de conhecimento, sistematizados e distribuídos em aulas ao longo de um ou mais períodos escolares, com cargas horárias estabelecidas em calendário, sob a responsabilidade de docentes específicos e devidamente habilitados para cada uma delas. Para essas escolas, as dúvidas quanto à capacidade de efetivação do prescrito na LDB e nas DCNEM são maiores, pois, se os professores estão comprometidos com o desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente terão condições de dar tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários conhecimentos de Filosofia e Sociologia, ou mesmo outros, tão requeridos para o exercício da cidadania e para atender ao dever de ―vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social‖, além das legalmente obrigatórias História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental, esta assim definida pela Lei nº 9.795/99. Essas dúvidas não desmerecem os professores, pois decorrem, muito, de outros fatores, que vão, desde o tipo de formação nas licenciaturas, até o generalizado regime ―horista‖ de trabalho, passando pelo processo de gestão da escola, por sua proposta pedagógica e, sobretudo, por seu zelo em executá-la tal como concebida. Voltando à questão objeto deste Parecer, constata-se e reafirma-se que é obrigatório atender à diretriz de que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação sejam organizados de tal forma que, ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Coloca-se, então, a questão: como garantir a eficácia dessa diretriz, se não forem efetivados processos pertinentes de ensino e aprendizagem que propiciem esses conhecimentos? As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM deram interpretação que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no tratamento a ser dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação Física e à Arte, estas, sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como componentes curriculares dessa etapa da Educação Básica. A propósito dos componentes Educação Física e Arte, contemplados pelo art. 26, sem ressalva (como a do art. 26-A, § 2º, o faz para História e Cultura Afro-Brasileira), não podem deixar de ter o mesmo tratamento que os demais componentes indicados no mesmo artigo. 111 Assim, no caso de estruturação curricular por disciplinas, Educação Física e Arte devem ser incluídas e tratadas como tais. História e Cultura Afro-Brasileira (art. 26-A da LDB) e Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99) serão sempre tratadas de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes, pois, assim, explicitamente, determinam as respectivas disposições legais. No caso de organização curricular baseada, por exemplo, em unidades de estudos, atividades e projetos interdisciplinares e contextualizados, e não por disciplinas segmentadas, é desnecessário dar-lhes um caráter de exceção, como é feito no art. 10, § 2º, da Resolução CNE/CEB nº 3/98, pois, aí, o tratamento ―interdisciplinar e contextualizado‖ é a regra para todos os componentes. Pode-se, nessa oportunidade, avançar mais, indicando-se, como diretriz, a obrigação das escolas garantirem a completude e a coerência de seus projetos pedagógicos, dando o mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são obrigatórios, seja esse tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, como por unidades de estudos, atividades ou projetos interdisciplinares e contextualizados, por desenvolvimento transversal de temas ou outras formas diversas de organização, como a LDB possibilita e as Diretrizes Curriculares Nacionais orientam normativamente. É cabível e oportuno, ainda, reforçar, como diretriz, que a proposta pedagógica de toda e qualquer escola do país deve assegurar, efetivamente, que, ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Se a escola tem autonomia para desenvolver na própria concepção pedagógica, o que, aliás, é garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a obrigação de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização e na sua execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou em parte, com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal, sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá dar tratamento a todos os componentes obrigatórios. Portanto, observando a coerência exigida pela base legal e normativa vigente, os conhecimentos relativos à Filosofia e à Sociologia, da mesma forma que os componentes Arte e Educação Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na forma de disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplinas. 112 Para garantia do cumprimento da diretriz da LDB, referente à Filosofia e à Sociologia, não há dúvida de que, qualquer que seja o tratamento dado a esses componentes, as escolas devem oferecer condições reais para sua efetivação, com professores habilitados em licenciaturas que concedam direito de docência desses componentes, além de outras condições, como, notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas. Para finalizar, não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização. Já são passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas, experiências foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados. Alterações legislativas foram efetivadas, sendo que a LDB já sofreu várias emendas, algumas delas referentes, justamente, ao Ensino Médio. Outras leis foram promulgadas, que interferem nesse ensino, como as Leis Federais nº 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação), nº 9.795/99 (Política Nacional de Educação Ambiental), e nº 11.161/2005 (oferta do ensino da língua espanhola). De qualquer modo, norma da magnitude das Diretrizes que, por vez primeira foi elaborada e editada, tem, inevitável e desejavelmente, um caráter de orientação inicial de trabalho. Já é tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade educacional e com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa final da Educação Básica, se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da Nação. II – VOTO DOS RELATORES Diante do exposto, e nos termos deste parecer, votamos para que se altere a redação do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, especificamente: a) que seja alterado o § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que deverá ter a seguinte redação: § 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. b) que sejam incluídos os § 3º e 4º no artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, com a seguinte redação: § 3º - No caso de escolas que adotarem organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia. 113 § 4º - Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo. c) que seja incluída orientação no sentido de que os currículos dos cursos de Ensino Médio deverão ser adequados a essas novas disposições, sendo que, no caso do § 3º, acrescentado ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, devem os sistemas de ensino, no prazo de um ano a contar da data de publicação da Resolução decorrente deste Parecer, fixar as medidas necessárias para a referida inclusão de disciplinas de Sociologia e de Filosofia. Propõe-se, em conseqüência, a aprovação do Projeto de Resolução em anexo. Brasília (DF), 7 de julho de 2006. Conselheiro Cesar Callegari – Relator Conselheiro Murílio de Avellar Hingel – Relator Conselheiro Adeum Hilário Sauer – Relator III – DECISÃO DA CÂMARA A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto dos Relatores. Sala das Sessões, em7 de julho de 2006. Conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro – Presidente Conselheira Maria Beatriz Luce – Vice-Presidente 114 ANEXO 6 MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA RESOLUÇÃO Nº 4, DE 16 DE AGOSTO DE 2006. Altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98,que institui as Diretrizes curriculares Nacionais para o Ensino Médio. A Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no uso de suas atribuições legais, e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do artigo 9º da Lei nº 4.024/1961, com a redação dada pela Lei nº 9.131/1995, com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 38/2006, homologado por despacho do Senhor Ministro de Estado da Educação, publicado no DOU de 14/8/2006, resolve: Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte redação: § 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º, com a seguinte redação: § 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia. § 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente,os demais componentes do currículo. Art. 3º Os currículos dos cursos de Ensino Médio deverão ser adequados a estas disposições. Parágrafo único. No caso do § 3º, acrescentado ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os sistemas de ensino deverão, no prazo de um ano a contar da publicação desta Resolução, fixar as medidas necessárias para a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio. Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. CLÉLIA BRANDÃO ALVARENGA CRAVEIRO Presidente da Câmara de Educação Básica 115 ANEXO 7 Indicação CEE Nº: 62/2006 - CEB - Aprovada em 20-9-2006 Conselho Pleno 1. Relatório 1.1 Considerando que a Resolução CNE n° 04/06, do Conselho Nacional de Educação sobre a inclusão obrigatória de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio, publicada no Diário Oficial da União em 21-08-2006, estabelece o prazo de um ano para que os sistemas de ensino tomem as medidas necessárias para a inclusão das referidas disciplinas no currículo das escolas; 1.2 Considerando que existem dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução (c.f. - Art. 36 § 1° inciso III da Lei n° 9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de ensino; 1.3 Considerando que a Resolução CNE n.º 04/06 tem implicações não desprezíveis quanto aos recursos humanos e financeiros necessários a implementação com qualidade; 1.4 Considerando que pelas razões acima apresentadas serão necessários estudos aprofundados pelas Câmaras e Comissões desse Conselho, além de consultas à Secretaria de Estado da Educação; O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela Secretária da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da rede privada de ensino. 2.Conclusão Nos termos acima, propomos à apreciação do Plenário a presente Proposta de Indicação. São Paulo, 13 de setembro de 2006. Cons. Mauro de Salles Aguiar Relator 3. Decisão da Câmara A Câmara de Educação Básica adota como sua Indicação, o Voto do Relator. Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana Maria de Oliveira Mantovani, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila Rentroia Iannone, Maria Alice Setubal, Mauro de Salles Aguiar e Suzana Guimarães Trípoli. Sala da Câmara de Educação Básica, em 13 de setembro de 2006. a) Cons. Ana Luisa Restani Vice-Presidente da CEB Deliberação Plenária O Conselho Estadual de Educação aprova, por unanimidade, a presente Indicação. Sala ―Carlos Pasquale‖, em 20 de setembro de 2006. Pedro Salomão José Kassab Presidente (D.O.E. de 28/09/2006) 116 ANEXO 8 PARECER CEE Nº 343/2007 - CEB - Aprovado em 04-7-2007 PROCESSO CEE Nº: 492/2006 – Reautuado em 30-10-06 INTERESSADO: Conselho Estadual de Educação ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio RELATORES: Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro de Salles Aguiar CONSELHO PLENO 1. RELATÓRIO A Indicação CEE nº 62/2006 apresentou em seus considerandos que ―existem dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução CNE 04/06 (c.f.- Art.36 § 1º inciso III da Lei nº 9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de ensino‖. A matéria foi submetida à CLN deste Colegiado que assim se pronunciou: ―A Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação editou, recentemente, resolução por meio da qual alterou as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio. Tais diretrizes foram inicialmente fixadas, pela Resolução CNE/CEB n.º 03, de 26/06/1998. A alteração sobreveio por meio da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 16/08/2006 (publicada no Diário Oficial da União em 21/08/2006), nos seguintes termos: ―Art. 1º. - O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 passa a ter a seguinte redação: § 2º.- As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Art. 2º.- São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 os §§ 3º e 4º, com a seguinte redação: § 3º.- No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia (gn). § 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo‖. O efeito prático colimado pelos dispositivos transcritos foi o de tornar obrigatória a inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as escolas brasileiras de Ensino Médio — públicas ou privadas — que adotem estruturação curricular por disciplinas específicas. Ainda de acordo com a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, os Estados teriam prazo de 01 ano para, por intermédio dos respectivos Conselhos Estaduais de Educação, decidirem acerca da forma de implementação, no âmbito de seus sistemas de ensino. No Estado de São Paulo, o Conselho Estadual de Educação, em Sessão Plenária, realizada em 20-09-2006, decidiu, por unanimidade, aprovar a Indicação n.º 62/2006, publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 28-09-2006, nos seguintes termos: ―O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela Secretaria da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da 117 rede privada de ensino‖. A ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO A LDB, ao organizar a educação no país, o fez com base em algumas linhas mestras. Duas sobressaem no texto legal: a primeira é a de que compete à União a ―...coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais‖ (é o que estabelece o seu art. 8º, § 1º); a segunda é a de que, sem prejuízo desse papel coordenador da União, os sistemas de ensino têm autonomia ou ―liberdade de organização‖ (conforme dispõe o seu art. 8º, § 2º). Vejam-se as disposições na íntegra: ―Art. 8º. - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os respectivos sistemas de ensino. § 1º.- Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais. § 2º - Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei‖. A LDB, assim, atribuiu um papel coordenador ou articulador à União, a ser exercido, inclusive, por meio do manejo de competência de normatização do ensino, com efeitos vinculantes sobre todas as esferas da federação (não somente a federal, mas também as estaduais, as municipais e a distrital); paralelamente, ela assegurou autonomia, ou liberdade de organização, a esses sistemas descentralizados. Em apertada síntese, pode-se dizer que a lei, a um só tempo, encerrou nos seus dispositivos os vetores da coordenação federal e da autonomia. No que tange à coordenação, a LDB previu, além da linha mestra ditada pelo seu art. 8º, § 1º (no sentido de que esse papel coordenador seria da União), mecanismos por meio dos quais tal atividade de coordenação poderia ser, na prática, implementada. Um deles é o previsto no art. 9º, inciso IV, segundo o qual: ―Art. 9º. - A União incumbir-se-á de: IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum.‖ (ggnn). É justamente este mecanismo coordenador, ou uniformizador, que merece a atenção aqui. Note-se que vem dele a atribuição, feita à União (ainda que em colaboração com os outros entes da federação), de fixar as chamadas diretrizes curriculares nacionais. O papel de aglutinação ou uniformização da União é exercido, em grande medida, por essas diretrizes, às quais todos os sistemas de ensino, em todas as esferas da federação, estão vinculados. Ademais, vem deste dispositivo da LDB a atribuição, igualmente feita à União, de prever, para além das diretrizes, as competências ou, preferindo-se, habilidades a serem desenvolvidas pelos educandos nos diversos sistemas de ensino, em todas as esferas da federação. Ao definir essas competências ou habilidades, a União também exerce o seu papel uniformizador. Toda essa fixação de diretrizes e habilidades é feita, como já apontado, por um órgão federal, o CNE, que nesta matéria se submete à competência homologadora do Ministro de Estado da Educação. Como se sabe, o CNE, órgão encartado na estrutura do Ministério da Educação, possui atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento, funcionando, em essência, como um pólo oficial de participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação nacional. De acordo com a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995) 118 [1] , ele é dividido internamente em duas Câmaras: a de Educação Básica e a de Educação Superior, sendo cada qual responsável por um conjunto de atribuições. No que interessa aqui salientar, é à sua Câmara de Educação Básica que compete emanar as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, objeto de toda a celeuma enfocada na presente manifestação. Deveras, estatui a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995), no seu art. 9º, § 1º, alínea c, que à Câmara compete ―deliberar sobre as diretrizes curriculares propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto‖. Visto assim, na sua face normativa, o papel coordenador que a legislação inequivocamente conferiu à União, munindo-a de competências para a fixação de diretrizes e habilidades vinculantes em todo o território nacional, todas emanadas do CNE (e, no que aqui é mais importante, da sua Câmara de Educação Básica), importa dar o passo seguinte no raciocínio, que é compreender adequadamente o sentido e alcance desse papel coordenador. Seu sentido é simples: trata-se de possibilitar aos educandos que transitem de um sistema de ensino para outro, caso necessitem, sem maiores dificuldades de adaptação, vez que todos esses sistemas estarão subordinados ao mesmo conjunto mínimo de diretrizes e bases predeterminado por um órgão central. De fato, essas diretrizes e competências uniformemente fixadas pela União possibilitam, em última análise, o que a lei chamou de formação básica comum, isto é, uma formação mínima, de base, aos educandos de qualquer dos sistemas de ensino existentes no país. Por outro lado, entra em cena aqui o já citado vetor da autonomia dos sistemas de ensino, que a lei igualmente prestigiou. Se a União tem um papel coordenador e, de certo modo, uniformizador, é certo, por outro lado, que não é da sua competência definir, propriamente, os currículos de cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos mínimos. A norma da LDB foi claríssima a este respeito: disse ela, no precitado inciso IV do art. 9º, que à União compete estabelecer competências e diretrizes que ―...nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos...‖. A União, pois, ditará os nortes, os rumos a seguir, mas quem haverá de fixar, efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus conteúdos mínimos, serão os próprios sistemas de ensino, no âmbito das correspondentes esferas da federação, no exercício da autonomia que, também, lhes foi expressamente assegurada pela própria lei (entra aí a força da expressão ―liberdade de organização‖ assegurada pelo precitado § 2º do art. 8º, que, como dito, constitui linha mestra a informar todo o espírito da lei). Dado que a lei prestigiou esta autonomia dos sistemas de ensino, há que se interpretar com certo cuidado a atribuição conferida à União para fixar as diretrizes curriculares e as competências ou habilidades a serem trabalhadas em todo o sistema nacional de educação. Incumbe-lhe dar os nortes, é verdade, mas não mais do que isso; o conteúdo em si dos currículos foge à sua alçada. A fixação das diretrizes e das habilidades feita pela União — notadamente por intermédio do CNE —, cumpre o importante papel de assegurar o mínimo de harmonia, o mínimo de identidade entre os currículos e os conteúdos essenciais de cada um dos diversos sistemas de ensino, de sorte a viabilizar que todos propiciem aos educandos uma formação básica comum. É à luz desses parâmetros, pois, que se faz necessário interpretar a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 e, em especial, os seus artigos 1º e 2º, que impuseram a adoção de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia. Ao fazer essa imposição, o órgão federal avançou para além dos limites de sua atribuição legal e, mais do que isso — e aqui é preciso reconhecê-lo claramente — para além das fronteiras que a própria Constituição Federal estabeleceu ao tratar do serviço de Educação no país. Pelo prisma constitucional, é preciso ter em vista que o art. 211, caput da Constituição Federal dispõe que ―a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em 119 regime de colaboração seus sistemas de ensino‖. Fica claro, pois, que cada ente da Federação detém autonomia para organizar seu sistema de ensino, ainda que em necessário — ou imprescindível — regime de colaboração. Em outras palavras, há o dever inequívoco de colaboração, mas fica preservada a autonomia de cada ente federado para organizar o seu sistema de ensino. Tal autonomia ainda é matizada por outras determinações constitucionais, como a constante do § 2º do mesmo art. 211, segundo o qual ―os Municípios atuarão prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil‖, ou a do § 3º subseqüente, segundo o qual ―os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio‖, ou, ainda, a do § 4º, segundo o qual, ―na organização de seus sistemas de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a universalização do ensino obrigatório‖. Como visto, há balizas legais a serem observadas para o estabelecimento de diretrizes, com destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino, aos quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos conteúdos mínimos. São todas determinações constitucionais que condicionam o exercício da autonomia, mas nenhuma vai além disso, é dizer, nenhuma delas implica seja solapada a autonomia claramente assegurada no caput. Note-se que formas de colaboração, tendo em vista o objetivo comum da universalização do ensino obrigatório, devem ser definidas, mas cada sistema de ensino mantém a sua identidade própria, estruturando sua grade curricular autonomamente. A isso se acresce o que dispõe o art. 209 da Constituição, segundo o qual ―o ensino é livre à iniciativa privada‖. Daí deriva o princípio da autonomia qualificada dos estabelecimentos privados, que têm liberdade para sua organização pedagógica. Essa liberdade é condicionada apenas pelo dever de respeito às ―normas gerais da educação nacional‖. Portanto, o que pode limitar a liberdade pedagógica desses estabelecimentos é apenas a norma efetivamente geral, editada para fixar ―diretrizes e bases‖ para a educação (Constituição Federal, art. 22, XXIV). A norma federal que pretendesse substituir-se ao juízo da comunidade educacional envolvida, quanto ao melhor modo de organizar concretamente o currículo do estabelecimento, iria muito além do campo das diretrizes, extrapolando o papel que a Constituição lhe reservou. Bem se vê, por tudo isso, que, quando resolução emanada do CNE vem e diz que Filosofia e Sociologia devem ser incorporadas à grade curricular de determinados sistemas de ensino, fere de morte a autonomia desses sistemas, a qual decorre não apenas da lei, mas da própria Constituição da República. Pelo prisma legislativo, a violação dos limites da competência atribuída ao CNE já foi apontada e pode, uma vez mais, ser resumida: se é verdade, por um lado, que o CNE é órgão que detém, efetivamente, atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao Ministro de Estado da Educação, inclusive para a edição das diretrizes curriculares nacionais e de certas habilidades pretendidas dos educandos, não é menos verdadeira a circunstância de que ele não pode fixar, por meio dessas diretrizes e determinações, absolutamente o que bem entender. Como visto, há balizas legais a serem observadas quando desta fixação, com destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino, aos quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos conteúdos mínimos. Note-se que sequer a fixação de conteúdos mínimos a lei concentrou nas mãos da União, pois o que fez foi dar-lhe a competência para fixar os nortes, a partir dos quais, aí sim, os diversos sistemas de ensino, nas correspondentes esferas da federação, e os diversos estabelecimentos, oficiais ou privados, teriam que estruturar seus currículos. Diante das razões até aqui apresentadas, já se poderia concluir, peremptoriamente, que 120 se afiguram inconstitucionais e ilegais os arts. 1º e 2º da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 1608-2006, naquilo em que veiculam a pretensão de obrigar todos os sistemas educacionais estaduais e municipais de Ensino Médio, com organização curricular estruturada por disciplinas, a incluírem, em suas respectivas grades, disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia. Mas cabe, por amor ao debate, dedicar atenção às razões encontráveis no Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, o qual foi, efetivamente, o ato de natureza indicativa que fundamentou a edição da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Nele se invoca, por exemplo, como fundamento da obrigatoriedade imposta, a já citada competência da Câmara de Educação Básica do CNE para emanar as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, nos termos do art. 9º, § 1º, alínea c da Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995). Porém, como já salientado aqui, o dispositivo não pode ser interpretado como se a tivesse autorizado a ditar a inclusão de disciplinas específicas nos currículos dos diversos sistemas de ensino. Não foi este o seu objetivo e não é este o seu sentido, mas ele serve, tão somente, para permitir ao CNE que estabeleça os nortes — com caráter vinculante, é verdade, mas não mais do que nortes — para que os sistemas de ensino, aí sim, nas respectivas esferas da federação, no exercício da liberdade de organização, que lhes é de direito, definam, autonomamente, as próprias grades curriculares. Outros argumentos constantes do Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 ligam-se ao art. 36 da LDB. Para respondê-los cumpre, primeiramente, transcrever esse dispositivo legal: ―Art. 36 - O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as seguintes diretrizes: I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da cidadania; II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes; III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da instituição. § 1º.- Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna; II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem; III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.‖ (ggnn). Observa-se, a partir dos trechos grifados, que o dispositivo estampa, de maneira bastante clara, a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos ministrados, as metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas sejam capazes de fazer com que, ao final do ensino médio, o aluno demonstre domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Nessa norma, contudo, não se vislumbra qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, domínio de princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de linguagem. Assim, não é possível sacar, do teor do art. 36, § 1º, III da LDB, a conclusão de que Filosofia e Sociologia devem ser, obrigatoriamente, aprendidas por meio do oferecimento de aulas específicas. O espírito que norteia a LDB é, precisamente, o oposto: deve-se conferir aos estabelecimentos de ensino a maior autonomia possível, para que, sempre tomando por base 121 as diretrizes da legislação, os mesmos possam elaborar suas propostas pedagógicas livres de quaisquer amarras não previstas na lei. É interessante notar, como o próprio Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 reconhece e chancela, o entendimento aqui exposto. Confira-se: ―Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente proposta curricular, ‗sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim recomendar‘, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho.‖ [¹] É igualmente interessante observar, contudo, que o excerto acima transcrito foi utilizado no Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 como ponto de partida para o desenvolvimento de um raciocínio oposto. Deveras, argumenta-se no parecer que a tão propalada autonomia concedida às escolas pela LDB teria redundado, na prática, em descumprimento da norma atinente aos conhecimentos de Filosofia e Sociologia por parte dos estabelecimentos de ensino, cuja grade curricular é estruturada por disciplinas. Para suprir essa deficiência, então, impor-se-ia — sempre segundo o parecer — a obrigatoriedade de sua inclusão como disciplinas específicas. O argumento, de tão contraditório, não se sustenta. Ora, se a legislação contempla e prestigia a autonomia dos sistemas de ensino para formular seus próprios modelos pedagógicos e curriculares, como justificar, sem afrontar o disposto na lei, a decisão de impor a todo um grupo de escolas de Ensino Médio, de maneira genérica, a obrigatoriedade de inserção de determinadas disciplinas? Simplesmente não há justificativa, legalmente embasada, capaz de responder a essa pergunta. Note-se que o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao tentar demonstrar a suposta obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ainda tenta buscar fundamentação nas diretrizes curriculares nacionais do Ensino Médio já instituídas por meio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Porém, cabe aqui apontar que a tentativa, de antemão, já deveria ter sido percebida como infrutífera. [1]Parecer CNE/CEB nº 38/2006.pág. 11- 12 Isto porque a resolução que instituiu as diretrizes curriculares para o Ensino Médio é pródiga em exemplos que confirmam o entendimento de que deve ser respeitada, nos termos da lei e da Constituição, a autonomia dos sistemas de ensino para a definição de suas grades curriculares. É possível arrolar, nesse sentido, os artigos: 5º, III[2]; 6º[3]; 7º, IV[4]; 8º, III e V[5]; dentre outros. Todos eles, como se pode facilmente perceber, remetem a um contexto de aprendizado marcado pela autonomia das unidades escolares para desenvolverem, da maneira que melhor lhes aprouver, seus próprios modelos pedagógicos.9¹³ Ocorre que, apesar de todo o exposto até agora, o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 chegou à conclusão diversa. Para obtê-la, baseou-se, primeiramente, em uma leitura equivocada do art. 10, § 2º, da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Observe-se o seguinte excerto do referido Parecer: Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 ―As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM deram interpretação que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no tratamento a ser dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação Física e à Arte, estas sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como componentes curriculares dessa etapa da Educação Básica.‖ [2] O equívoco deriva do fato de que o dispositivo das diretrizes curriculares lá referido — trata-se do art. 10, § 2º — simplesmente não promoveu tal equiparação. Confira-se o seu 122 teor: Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 ―Art. 10. A base nacional comum dos currículos de ensino médio será organizada em áreas de conhecimento, a saber: (...) § 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para: a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios; b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖. A redação é clara. Não se observa qualquer conexão lógica entre as matérias arroladas na alínea ―a‖ (que cuida da Educação Física e da Arte) e na alínea ―b‖ (que dispõe sobre conhecimentos de Filosofia e Sociologia). Educação Física e Arte são componentes curriculares obrigatórios; conhecimentos de Filosofia e Sociologia, por outro lado, devem ser agregados, com tratamento interdisciplinar e contextualizado, na medida da necessidade ao exercício da cidadania. Querer equiparar o conteúdo das duas alíneas somente pode ser entendido como realização de exegese torta, direcionada, comprometida com uma tese que extrapola os limites legais. O mais paradoxal é que, embora esse dispositivo da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 tenha sido invocado como um dos fundamentos da edição da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, sua redação foi modificada por este último instrumento normativo, exatamente para dar guarida ao intento de determinar a obrigatoriedade da inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas específicas. A contradição, portanto, é flagrante. Em um primeiro momento, bastava a interpretação ―dirigida‖ do art. 10, § 2º da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 para embasar a obrigatoriedade; em seguida, essa inferência já não era verdadeira, de modo que somente com uma redação distinta da até então vigente seria possível atingir o objetivo pretendido. Mas esse não é o único equívoco hermenêutico verificado no Parecer CNE/CEB n.º 38/2006. Partindo da premissa que acaba de revelar-se falsa — é dizer, da pretensa equiparação entre, de um lado, Educação Física e Arte, e, de outro, Filosofia e Sociologia — o Parecer procura justificar a obrigatoriedade por meio de uma interpretação a contrario sensu que, de plano, pode-se considerar totalmente descabida. Tal interpretação lastreia-se no teor do art. 26-A da LDB, acrescentado pela Lei n.º 10.639/03 e na Lei n.º 9.795/1999. Rezam as normas acima referidas: LDB 9394/96 ―Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras.‖ (grifos acrescentados). Lei n.º 9.795/1999 Art. 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal. 123 § 1º. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo de ensino.‖ (grifos acrescentados). Como se pode notar, as normas acima colacionadas dizem respeito a duas áreas de conhecimento — História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental — que a legislação, explicitamente, eximiu da condição de disciplinas específicas. Optou-se, ao contrário, por distribuí-las em toda a grade curricular, de modo a permear, com os elementos a elas inerentes, o conhecimento obtido pelos alunos em áreas afins. Então, tendo por base esse arcabouço normativo — cujo espírito foi reproduzido, digase de passagem, no art. 2º, § 4º [3] da mesma Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 — é que surge o argumento a contrario sensu: ora, se o intuito do legislador fosse o de não obrigar as unidades de ensino a adotarem disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ele teria criado normas do mesmo jaez daquelas presentes no art. 26-A da LDB e no art. 10, § 1º da Lei n.º 9.795/1999. Se não o fez, é porque pretendeu, sim, instituir a obrigatoriedade. Essa argumentação não possui a mínima sustentabilidade legal. O art. 26 da LDB [6], que cuida dos currículos do ensino fundamental e médio, em momento algum obriga as escolas a criar disciplinas específicas. Preocupa-se, isto sim, em firmar uma série de componentes curriculares obrigatórios, que podem ser ministrados no âmbito de uma ou várias disciplinas distintas. E, dentre tais componentes obrigatórios, não há menção à Filosofia, tampouco à Sociologia. Resta claro, diante dessa constatação, que a opção legislativa encarnada na LDB foi precisamente oposta àquela constante da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Ou seja, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria educacional, a inferência juridicamente válida é aquela segundo a qual Filosofia e Sociologia não são disciplinas, mas sim, áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos para serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania. [6] Art. 26- Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional, comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escola, por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da economia e da clientela. § 1º - Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil. § 2º - O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...) § 3º - A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...) § 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia. § 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição‖. Nesse sentido, o Parecer CNE/CEB n.º 15/1998, que embasou a instituição das diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, demonstra, de modo cristalino, o espírito que se pretendia aplicar ao Ensino Médio. Observe-se, a esse respeito, o que referido Parecer pontuou no tocante às Ciências Humanas, grande área do conhecimento onde se inscrevem a Filosofia e a Sociologia: Parecer CNE/CEB n.º 15/1998 124 ―Pela constituição dos significados de seus objetos e métodos, o ensino das ciências humanas e sociais deverá desenvolver a compreensão do significado da identidade, da sociedade e da cultura, que configuram os campos de conhecimentos de história, geografia, sociologia, antropologia, psicologia, direito, entre outros. Nesta área se incluirão também os estudos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania, para cumprimento do que manda a letra da lei. No entanto, é indispensável lembrar que o espírito da LDB é muito mais generoso com a constituição da cidadania e não a confina a nenhuma disciplina específica, como poderia dar a entender uma interpretação literal da recomendação do inciso III do parágrafo primeiro do artigo 36‖ [7] Assim, se a interpretação a contrario sensu difundida pelo Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 tivesse respaldo, seria possível depreender que não apenas Filosofia e Sociologia, mas também uma série de outros ramos do saber, tais como Direito, Antropologia, Psicologia, etc., deveriam ser, necessariamente, contemplados como disciplinas específicas no Ensino Médio, o que é um completo absurdo. [7] Parecer CNE/CEB n.o 15/1998, pág 18. Por fim, já examinados os argumentos empregados na tentativa de respaldar a pretensão que aqui se considera ilegal e inconstitucional, vale uma derradeira observação, tão somente com o intuito de se evitar eventuais mal-entendidos. É a seguinte: constatar que inexiste amparo legal à exigência, feita pelo CNE, de que Filosofia e Sociologia sejam contempladas como disciplinas específicas no Ensino Médio, não é sinônimo de lutar contra uma idéia ―necessariamente boa‖, em prejuízo da qualidade do ensino. Não se trata, em suma, de lutar contra o ―bem‖. Aliás, sequer se trata de fazer juízo acerca do caráter ―benéfico‖ ou ―maléfico‖ desta exigência para fins de aprimoramento do ensino brasileiro; cuida-se, tão somente, de examinar a sua legalidade, pois encampou solução diversa, consistente em privilegiar a autonomia dos sistemas e unidades de ensino e a liberdade de cada qual para, segundo seu próprio projeto pedagógico, optar entre dedicar a tais conteúdos disciplinas específicas ou então abordá-los de maneira transversal no âmbito de outras disciplinas já existentes. Se houve algum juízo quanto ao melhor rumo a tomar, esse juízo foi feito pelo legislador — democraticamente — e consistiu na decisão de que melhor seria privilegiar a autonomia de cada estabelecimento de ensino para decidir por si, firme em que tal autonomia seria perfeitamente compatível com a necessidade de incorporação, de alguma maneira, da Sociologia e da Filosofia ao currículo do Ensino Médio. Inadmissível, portanto, que o CNE venha se substituir ao legislador, exigindo dos estabelecimentos de ensino algo que a lei não exigiu e, não fosse o bastante, usurpando-lhes liberdade de escolha que a lei lhes quis assegurar. DA IMPOSSIBILIDADE DE DISCRIMINAÇÃO ENTRE MODELOS PEDAGÓGICOS Ainda que o CNE tivesse competência para editar os atos normativos que editou, isto é, ainda que a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, ao impor a obrigatoriedade da inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia na grade curricular das escolas do Ensino Médio, estivesse rigorosamente em linha com as disposições da LDB e com a Constituição, restaria um último ponto a examinar: a legalidade do tratamento diferenciado, conferido pela Resolução CNE/CEB n.º 4/2006, a dois modelos pedagógicos — o de organização curricular flexível e o estruturado por disciplinas. Vale lembrar os termos em que tal diferenciação encontra-se vazada: Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 125 ―Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98 passa a ter a seguinte redação: § 2º. As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98, os §§ 3º e 4º, com a seguinte redação: § 3º. No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.‖ § 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo‖. O Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao fundamentar a distinção, apresentou a seguinte justificativa: Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 ―Se a escola tem autonomia para desenvolver a própria concepção pedagógica, o que, aliás, é garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a obrigação de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização e na sua execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou em parte, com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal, sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá dar tratamento a todos os componentes obrigatórios‖. É curioso perceber como o texto do parecer confere à autonomia pedagógica das escolas uma interpretação enviesada. A leitura da parte final do excerto acima trazido demonstra que, para seus autores, tal autonomia só deve ser posta em prática e prestigiada se o intento da unidade de ensino for organizar seu currículo de forma flexível. Para os estabelecimentos que, diferentemente, optarem por estruturar seu currículo sob a forma de disciplinas, não há que se falar em autonomia. A lei, segundo essa linha de raciocínio, teria criado um rol estático de componentes curriculares obrigatórios, que deveriam, sem qualquer decisão autônoma por parte da escola, ser aplicados, de forma estanque, sob a roupagem de disciplinas específicas. Como já se demonstrou à exaustão ao longo desta manifestação, esse entendimento é absolutamente equivocado. A LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de se conferir tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma para decidir, dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo a ser ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos pelo art. 26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira transversal, permeando diferentes matérias. Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização grega, ou, ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é perfeitamente possível o estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de aulas de História Geral, ou mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final do Ensino Médio, o aluno tenha adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos necessários ao exercício da cidadania, pouco importando se tal aquisição deu-se por meio de aulas específicas ou como parte do 126 conteúdo de uma disciplina afim. Não tem amparo legal, portanto, a discriminação entre escolas de currículo flexível e escolas estruturadas por disciplinas, levada a cabo pela Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Tal Resolução, ao estipular esse tratamento diferenciado, criou uma escala entre os estabelecimentos voltados ao Ensino Médio que, nos termos da legislação, não existe. Por meio dela, foram relegadas à condição de escolas de segunda classe — por supostamente estarem sonegando a seus alunos conhecimentos de Filosofia e Sociologia — todas as unidades de ensino que, no exercício de sua autonomia pedagógica, prevista em todo o arcabouço normativo do setor de Educação, optaram por organizar suas grades curriculares em disciplinas específicas. A elas tenta-se impingir, com a edição da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, uma obrigação descabida, não amparada em lei. 2. CONCLUSÃO Adotamos in totum o parecer aprovado pela Comissão de Legislação e Normas, concluindo: A Resolução CNE/CEB n.º 4/2006 é nula, írrita, de nenhum efeito. Em primeiro lugar, porque a obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia fere a autonomia assegurada aos sistemas de ensino, pela LDB e pela Constituição, para a definição de suas próprias grades curriculares. Com efeito, embora o art. 36, § 1º, III da LDB estampe a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos ministrados, as metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas sejam capazes de fazer com que, ao final do Ensino Médio, o aluno demonstre domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia, necessários ao exercício da cidadania, não se vislumbra, ali, qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, o domínio de princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de linguagem. Além disso, o art. 9º, inciso IV, da LDB, confere à União a atribuição de estabelecer as competências e diretrizes para o ensino médio com vistas, tão somente, a nortear a definição e organização dos currículos correspondentes, vez que a definição e a organização, em si, destes currículos é tarefa a ser exercida autonomamente pelos próprios sistemas de ensino, no âmbito das respectivas esferas da federação e dos estabelecimentos, oficiais ou privados. Não fosse o bastante, a LDB ainda estabelece no seu art. 8º, § 2º que os sistemas de ensino terão liberdade de organização, que envolve, por certo, a autonomia na estruturação de seus próprios currículos. De resto, a própria Constituição Federal, em seu art. 211, deixa entrever que, em que pese o dever de colaboração entre os entes federados na estruturação de seus sistemas de ensino, a autonomia de cada qual é um valor a ser preservado. De outro lado, também é impertinente a fundamentação utilizada pelo Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, para demonstrar a suposta obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ao referir-se às Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, instituídas por intermédio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Nesse ponto, o parecer realiza exegese jurídica equivocada, ora tentando equiparar componentes curriculares obrigatórios (Educação Física e Arte) aos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, ora tentando aplicar ao caso interpretação a contrario sensu absolutamente descabida, lastreada no argumento de que, se o legislador tivesse querido excluir Filosofia e Sociologia do rol de disciplinas obrigatórias, teria feito tal exclusão de maneira expressa, como procedeu no tocante à História e Cultura Afro-Brasileira e à Educação Ambiental. Todavia, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria educacional, a inferência 127 juridicamente válida é exatamente a oposta, isto é, a de que Filosofia e Sociologia não são disciplinas, mas sim áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos para serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania. Ainda que todos os argumentos acima expostos estivessem incorretos, a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 seria ilegal por conferir tratamento discriminatório a dois modelos pedagógicos: aqueles cuja organização curricular é flexível e aqueles estruturados por disciplinas. Deveras, a LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de se conferir tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma para decidir, dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo a ser ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos pelo art. 26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira transversal, permeando diferentes matérias. A Resolução em pauta, ao estipular esse tratamento diferenciado, criou uma escala entre os estabelecimentos voltados ao Ensino Médio que, nos termos da legislação, não existe, sendo, pois, ilegal. Finalmente, entende este Colegiado que os conhecimentos de Filosofia e Sociologia são necessários e oportunos à formação dos alunos, cabendo a cada Instituição ou sistema de ensino resguardar a sua autonomia e definir o tratamento curricular a ser dado a esses conhecimentos. São Paulo, 21 de maio de 2007. a) Consª Ana Luísa Restani Relatora a) Cons.Mauro de Salles Aguiar Relator 3. DECISÃO DA CÂMARA A Câmara de Educação Básica adota como seu Parecer, o Voto dos Relatores. Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana Maria de Oliveira Mantovani, Francisco Pagliato Neto, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila Rentroia Iannone, Maria Aparecida de Campos Brando Santilli e Mauro de Salles Aguiar. Sala da Câmara de Educação Básica, em 23 de maio de 2007. a) Consª. Maria Aparecida de Campos Brando Santilli no exercício da Presidência nos termos do artigo 13 § 3º do Regimento do CEE DELIBERAÇÃO PLENÁRIA O CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO aprova, por maioria, a decisão da Câmara de Educação Básica, nos termos do Voto dos Relatores. Os Conselheiros Angelo Luiz Cortelazzo e Maria Aparecida de Campos Brando Santilli votaram favoravelmente com restrições. A Consª. Sonia Teresinha de Sousa Penin votou contrariamente nos termos de sua Declaração de Voto. 128 Sala ―Carlos Pasquale‖, em 04 de julho de 2007. PEDRO SALOMÃO JOSÉ KASSAB Presidente Publicado no DOE em 07/7/07 - Seção I - Página 32 Publicado na íntegra em 18/8/07 - Seção I - Páginas 23/24/25 DECLARAÇÃO DE VOTO Pelos motivos a seguir apresentados, voto contrariamente ao referido Parecer, que questiona as alterações propostas às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, pela Resolução CNE n° 04/06, interpelando fundamentalmente a sua legalidade relativa à interferência na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares; a introdução de dois modelos pedagógicos expressos na ampla possibilidade de organização curricular, que pode ser adotada pelas escolas e pelos sistemas de ensino; e o entendimento que leva a transformar áreas de conhecimento em disciplinas obrigatórias. Quanto ao questionamento de ilegalidade, independente dos desdobramentos possíveis, compreendo o direito deste Conselho de fazê-lo, assim como entendo o relatório como bem circunstanciado. Não concordo, todavia, com o tom acusatório utilizado, desnecessário e contraproducente para estabelecer um debate nacional que caminhe a um consenso a respeito do assunto. No que diz respeito ao mérito educacional da Resolução do Conselho Nacional de Educação, é necessária uma ampla discussão, seja da forma de introdução das disciplinas em questão, seja da mudança curricular proposta, incluindo a autonomia dos sistemas e especialmente das escolas para definir o seu Projeto Pedagógico. No que se refere ao sentido das disciplinas, penso que é uma questão consensual o entendimento da importância da Filosofia e da Sociologia na formação dos alunos do Ensino Médio. A divergência esbarra na forma de sua inserção no currículo. As Diretrizes Curriculares de 1998 propuseram a organização do currículo por áreas, partindo do princípio de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos e de que todos eles de maneira articulada deveriam se tornar meios para atender aos objetivos de formação dos alunos. Todavia, ainda que se saiba do esforço e mesmo do sucesso de muitas escolas no sentido de avançar nessa direção, as dificuldades são inúmeras, começando pela ênfase disciplinar dominante nos cursos de formação dos professores para a educação básica. Paralelamente, há que se lembrar que, quando o CEE/SP discutiu as Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio em nível do estado, ficou claro que o tratamento interdisciplinar que se propunha não prescindia de rigor nem de propriedade. Rigor, no sentido de que era importante garantir na escola a presença de um professor formado na licenciatura do componente curricular específico, participando de projetos interdisciplinares. Propriedade, no sentido de que as disciplinas acadêmicas, ao se proporem a contribuir com os objetivos de formação do aluno da escola básica, necessariamente, devem se dispor a construir nesse nível e âmbito escolar conhecimentos novos, amalgamando conteúdos específicos e pedagógicos, como identifica Chervel, a partir das pesquisas que realizou quanto à história das disciplinas escolares. Esta posição difere do que está inscrito nas Diretrizes Curriculares Nacionais de 1998, em que se advoga que os componentes curriculares da educação básica devem se preocupar apenas com a transposição didática dos conteúdos acadêmicos à realidade deste nível de ensino, conforme defende Chevallard. Se ao tratamento interdisciplinar e mesmo disciplinar de qualquer conhecimento na escola básica é exigido propriedade e rigor, há que se supor que os profissionais, ao discutirem essas questões nas escolas devam dominar o mais profundamente possível um campo de conhecimento. Pelo exposto, causa estranheza a formulação da página 21 do Parecer CEE, afirmando que até 129 professores de Matemática poderiam desenvolver conteúdos específicos de Sociologia ou Filosofia. Esses componentes curriculares não podem ser confundidos com temas transversais, como dá a entender o texto. Ao contrário, ainda que o arcabouço teóricometodológico dessas disciplinas deva servir aos objetivos educacionais de formação dos alunos, parece lógico que os profissionais indicados para desenvolver um projeto interdisciplinar na escola sejam aqueles formados no campo das ciências humanas ou humanidades. Quanto à autonomia dos sistemas e mais fortemente das escolas para definir seu Projeto Pedagógico parece consensual o entendimento de que tal ponto impresso na LDB de 1996 significou um ―extraordinário progresso‖ (Azanha). Espero que o exame de quanto a proposição de dois modelos curriculares (interdisciplinar e disciplinar) pode ferir tal consenso, seja objeto de debates exaustivos em nível nacional. Fica aqui de pronto um lamento de que o CN não tenha aberto uma discussão em nível nacional, preliminarmente, como ocorreu com a instituição das DCNs. Há, principalmente, que se debater se a explícita referência à volta de um modelo curricular (disciplinar) que ainda representa a escolha majoritária das escolas (pela inércia de não tentar o diferente ou por reais dificuldades como as já apontadas) pode significar tanto a desistência de muitas de não experimentar a organização curricular com base interdisciplinar, quanto o desestímulo dos cursos de Pedagogia e dos demais de formação de professores a não trabalhar propostas dessa natureza. Lembrando que a definição explícita para a organização curricular por áreas de conhecimento está presente nas diretrizes para o Ensino Médio, fica a pergunta fundamental que deve orientar cada sistema e cada escola em sua reflexão: como determinada organização curricular e modelo pedagógico, incluindo a forma e o peso da participação de determinados componentes disciplinares no tempo de estudo previsto, podem elevar em cada lugar a qualidade da escola básica e as competências dos alunos para o trabalho, os estudos posteriores e a vida em geral? Há sempre que se acompanhar e avaliar as inovações, inclusive com estudos relativos aos egressos dessas experimentações. São Paulo, 4 de julho de 2007 a) Consª Sonia Teresinha de Sousa Penin -------------------------------------------------------------------------------[1] Esta lei faz referência ao Ministério da Educação e do Desporto, existente à época de sua criação. No entanto, posteriormente, houve a separação em duas pastas, resultando no Ministério da Educação e no Ministério do Esporte como órgãos distintos (v. Lei 10.683/03, artigo 25, incisos X e XI). 9 [2] ―Art.5º -Para cumprir as finalidades do ensino médio previstas pela lei, as escolas organizarão seus currículos de modo a: (...) III –adotar metodologias de ensino diversificadas, que estimulem a reconstrução do conhecimento e mobilizem o raciocínio, a experimentação, a solução de problemas e outras competências cognitivas superiores; ―. [3] ―Art.6º - Os princípios pedagógicos da Identidade, Diversidade e Autonomia, da Interdisciplinaridade e da Contextualização, serão adotados como estruturadores dos currículos do ensino médio.‖ [4] ‖Art. 7º - Na observância da Identidade, Diversidade e Autonomia, os sistemas de ensino e as escolas, na busca da melhor adequação possível às necessidades dos alunos e do meio social: (...) IV – criarão mecanismos que garantam liberdade e responsabilidade das 130 instituições escolares na formulação de sua proposta pedagógica,e evitem que as instâncias centrais dos sistemas de ensino burocratizem e ritualizem o que, no espírito da lei, deve ser expressão de iniciativa das escolas, com protagonismo de todos os elementos diretamente interessados, em especial dos professores;‖ [5] ―Art. 8º - Na observância da Interdisciplinaridade as escolas terão presente que: (...) III – as disciplinas escolares são recortes das áreas de conhecimentos que representam, carregam um grau de arbitrariedade e não esgotam isoladamente a realidade dos fatos físicos e sociais, devendo buscar entre si interações que permitam aos alunos a compreensão mais ampla da realidade; (...) V – a característica do ensino escolar, tal como indicada no inciso anterior, amplia significativamente a responsabilidade da escola para a constituição de identidades que integram conhecimentos, competências e valores que permitam o exercício pleno da cidadania e a inserção flexível no mundo do trabalho.‖ pág.13 [2] Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, p. 14. [3] Eis o teor do dispositivo em comento: ―os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo‖. 131 ANEXO 9 Presidência da República Casa Civil Subchefia para Assuntos Jurídicos LEI Nº 11.684, DE 2 DE JUNHO DE 2008. Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio. O VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no exercício do cargo de PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o O art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes alterações: “Art. 36. ..................................................................... ............................................................................................. IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do ensino médio. § 1o .............................................................................. ............................................................................................. III – (revogado). ...................................................................................” (NR) Art. 2o Fica revogado o inciso III do § 1o do art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996. Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Brasília, 2 de junho de 2008; 187o da Independência e 120o da República. JOSÉ ALENCAR Fernando Haddad GOMES Este texto não substitui o publicado no DOU de 3.6.2008 DA SILVA 132 ANEXO 10 Publicada no DOU de 18/5/2009, Seção 1, p. 25. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA RESOLUÇÃO Nº 1, DE 15 DE MAIO DE 2009 Dispõe sobre a implementação da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir da edição da Lei nº 11.684/2008, que alterou a Lei nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no uso de suas atribuições legais e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do artigo 9º da Lei nº 4.024/61, com a redação dada pela Lei nº 9.131/95, e com fundamento no Parecer CNE/CEB nº 22/2008, homologado por Despacho do Senhor Ministro de Estado da Educação, publicado no DOU em 12 de maio de 2009, resolve: Art. 1º Os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a organização do currículo, estruturado este por sequência de séries ou não, composto por disciplinas ou por outras formas flexíveis. Art. 2º Os sistemas de ensino deverão estabelecer normas complementares e medidas concretas visando à inclusão dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em todas as escolas, públicas e privadas, obedecendo aos seguintes prazos de implantação: I - início em 2009, com a inclusão obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do primeiro ano do curso; II - prosseguimento dessa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio com 3 (três) anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4 (quatro) anos. Parágrafo único. Os sistemas de ensino e escolas que já implantaram um ou ambos os componentes em seus currículos devem ser incentivados a antecipar a realização desse cronograma, para benefício maior de seus alunos. Art. 3º Os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos referidos componentes, garantindo-se, além de outras condições, aulas suficientes em cada ano e professores qualificados para o seu adequado desenvolvimento. Art. 4º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário. CESAR CALLEGARI 133 ANEXO 11 Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio3 Parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias Conhecimentos de Filosofia Para todo professor de Filosofia acostumado à lida no Ensino Médio, são bastante conhecidas as perguntas do tipo: ―para que serve a Filosofia?‖, ―é mesmo necessária esta disciplina ou ela é apenas para mostrar que este colégio tem mais disciplinas do que os outros?‖, ou ainda ―se Filosofia não cai no vestibular, por que temos de estudá-la?‖. Questões surgidas, na maior parte das vezes, logo nos primeiros contatos do aluno com essa ―nova realidade‖. Em geral, alunos não costumam questionar a necessidade ou a finalidade da Matemática ou da Física, ainda que pouquíssimos cheguem a escolher, de fato, tais disciplinas como carreiras a seguir. E não poderia ser diferente, visto que até um passado recente a educação brasileira privilegiou, ora mais, ora menos, o conhecimento do tipo técnicocientífico, em detrimento das ―humanidades‖, tendo em vista formar um mercado de trabalho de ―especialistas e técnicos‖, numa resposta ―adequada‖ à demanda de desenvolvimento e modernização do mundo industrial-tecnológico. Ainda que importante para justificar o estranhamento inicial do aluno, essa razão não é, todavia, a única, talvez nem mesmo a mais fundamental. São também conhecidos de todos os motivos do autoritarismo para retirar a Filosofia dos currículos escolares e, tendo em vista as inúmeras e excelentes avaliações sobre o assunto, seria ocioso historiar aqui todo o percurso feito, entrementes, até agora. Aliás, se considerarmos que sua reinclusão curricular vem acontecendo de modo gradativo há quase duas décadas, nem se admite mais que essa ―nova realidade‖ possa ser tratada como ―novidade‖. O que os pensadores e gestores daquele modelo de educação desconheciam é a necessidade – hoje tornada explícita a partir do próprio sistema produtivo – que as sociedades tecnológicas têm de que o indivíduo adquira uma educação geral, inclusive em sua dimensão literária e humanista, se não quiser que ele seja, conforme dizia Dilthey (na Introdução às Ciências do Espírito, já em 1884), apenas “um instrumento inanimado a seu serviço, mas(que) não coopera conscientemente para lhe dar sua forma”1. Talvez por isso, criaram-se 3 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de Filosofia. 134 as condições para que a nova educação brasileira pudesse prescrever, tanto à Filosofia quanto às Ciências Humanas, as atribuições pedagógicas com que hoje são apresentadas na Lei 9.394/96 e suas regulamentações. Convém considerar, brevemente, essa apresentação. Em primeiro lugar, do ponto de vista das finalidades do Ensino Médio, estabelecidas no Artigo 35 da LDB, destacam-se: a) “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (inciso I); b) “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar aprendendo” (inciso II); c) “o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (inciso III); d) “a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos” (inciso IV). Há, com certeza, uma contribuição decisiva da Filosofia para o alcance dessas finalidades: ela nasceu com a declarada intenção de buscar o Verdadeiro, o Belo, o Bom. A despeito de uma transformação histórica no âmbito de sua competência explicativa – em parte devida à sua enorme fertilidade em gerar novos saberes –, o pensamento filosófico resiste precisamente porque não abandona seu motivo originário. Tratando-se aqui de algumas reflexões a título de contribuição para a prática pedagógica da Filosofia no Ensino Médio, não chega a ser necessário insistir, junto aos docentes da disciplina, nas razões que lhe conferem seu enorme e indispensável poder formativo. Mais do que nunca, filosofar é preciso! Em segundo lugar, do ponto de vista das diretrizes curriculares para o Ensino Médio,definidas pela LDB, em seu Artigo 36, § 1o destaca-se: “o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (inciso III). A nova legislação educacional brasileira parece reconhecer, afinal, o próprio sentido histórico da atividade filosófica e, por esse motivo, enfatiza a competência da Filosofia para promover, sistematicamente, condições indispensáveis para a formação de cidadania plena! Em que pese essa competência, entretanto, cumpre destacar que, embora imprescindíveis, os conhecimentos filosóficos não são suficientes para o alcance dessa finalidade. Aliás, constitui-se quase num truísmo pedagógico o afirmar que todos os conhecimentos, disciplinas e componentes curriculares da Educação Básica são necessários e importantes na formação de cidadania do educando. Nesse sentido, embora restaurando para a Filosofia o papel que lhe cabe no contexto educacional, a legislação tratou igualmente de indicar como se deve corretamente dimensioná-la no Ensino Médio: a rigor, portanto, o texto refere-se aos conhecimentos da Filosofia que são necessários para o fim proposto. Destarte, a fim de atender à demanda legal, devemos fazer um esforço para recortar, do vasto universo dos conhecimentos filosóficos, aqueles que imediatamente precisam e podem ser trabalhados 135 no Ensino Médio, o que, convenhamos, não é tarefa fácil. Em terceiro lugar, do ponto de vista de sua inclusão curricular na área de ensino Ciências Humanas e suas Tecnologias – Diretrizes Curriculares Nacionais, Parecer No 15/98: “nesta área se incluirão também os estudos de Filosofia” (p. 58). A despeito de sua proximidade histórica com as ―humanidades‖, poderia causar estranheza para alguns, talvez, a inserção da Filosofia nessa área específica e não, por exemplo, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. No entanto, supõe-se que a opção por esta área não foi feita sem dificuldades, ainda que aproximações históricas e afinidades eletivas tenham sido consideradas: “As múltiplas formas de interação que se podem prever entre as disciplinas tal como tradicionalmente arroladas nas „grades curriculares‟, fazem com que toda proposição de áreas ou agrupamento das mesmas seja resultado de um corte que carrega certo grau de arbitrariedade. Não há paradigma curricular capaz de abarcar a todas. Nesse sentido, seria desastroso entender uma proposta de organização por áreas como fechada ou definitiva.” 2 (grifo nosso) Devemos levar isso em consideração e referirmo-nos sempre ao espírito de uma legislação que destina um papel primordial para a Filosofia no Ensino Médio. Isso fica mais claro quando apontamos o foco para a interdisciplinaridade, proposta como eixo estruturante a ser privilegiado em toda formulação curricular e o modo como devem ser tratados os conhecimentos filosóficos, conforme indicado expressamente na Resolução 03/98, a saber, no § 2o, alínea b do Artigo 10 – “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado para os conhecimentos de filosofia”. Assim, o papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer posição em que estivermos, ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes perspectivas teóricas e pedagógicas que compõem o universo escolar. Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando como ponto de partida o referido inciso III § 1º do Artigo 36, evidenciam-se naturalmente três questões: (a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo? É preciso, primeiro, tentar aproximar-se de (b), examinar (c) e, só então, chegar à discussão de (a). Não por acaso, como se apontou no início, o aluno do Ensino Médio faz perguntas a respeito da ―utilidade‖ da Filosofia. Aquém disso, no entanto, a questão mais elementar e à qual retorna com particular insistência (talvez porque a mais intrigante) é: ―o que é Filosofia?‖. Naturalmente que também não é mero acaso que o professor de Filosofia tenha, 136 em geral, dificuldades em respondê-la satisfatoriamente, suposto que ele não se limite a repetir essa ou aquela definição mais ou menos clássica. Na verdade, o que é Filosofia constitui-se, hoje, mais do que nunca, num problema filosófico. Se, de um lado, a Filosofia não é uma ciência, ao menos não no sentido em que se usa a palavra para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos abstratos dos fenômenos, e se não é, também, uma das belas artes, no sentido poiético de ser uma atividade voltada especificamente para a criação de objetos concretos, de outro lado, a Filosofia sempre teve conexões íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das artes e, no esforço de pensar seus fundamentos, muitas vezes foi além delas, abrindo campos para novos saberes e novas experiências 3. Além disso, em que pese o fato de se ter originado com uma vocação pela totalidade, ela sempre esteve, a cada etapa de seu desenvolvimento histórico, defronte a uma determinada ciência particular (ou, se preferirmos, uma ―ontologia regional‖). No caso da Grécia Clássica, essa ―área limítrofe‖ era a física (isto é, a física grega, bem entendido). Para a Filosofia moderna, em especial para Kant, essa ciência foi a Psicologia4. Hoje, vemos o filosofar ir de encontro à Lingüística, à Sociologia, à Antropologia entre outras. Ademais, dada a sua materialização como escrita, muitas vezes de beleza e vigor poéticos incomparáveis, não chega a ser inédito que alguns a aproximem da Literatura... Ao dirigir o olhar para fora de si, a Filosofia, ao mesmo tempo, tem a necessidade de se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de todos os outros saberes. No entanto, dada a grande variedade e diversidade dos modos e das correntes de pensamento filosófico, devemos dizer que existe Filosofia ou tudo o que existe são apenas filosofias? Antes de mais nada, não podemos nos esquecer de que uma maneira de filosofar se relaciona com todas as outras de um modo peculiar. Alguém acolhe uma maneira de filosofar porque a considera correta e heuristicamente (isto é, do ponto de vista de sua fertilidade conceptual) proveitosa. Nesse sentido, já quando os primeiros pensadores apontaram-na na direção da verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros, possibilidades de pensar que, supostamente, trazem a verdade à razão de quem pensa ou, se preferirmos, faz a razão desvelar a essência por trás da aparência. E embora seja evidente que hoje ninguém tem o privilégio particular de poder indicar qual é o critério correto e adequado para razão ou verdade, é também correto que nenhuma filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão com a qual ela mesma veio ao mundo sem, ao mesmo tempo, contradizer exatamente aquilo que faz, a saber, tentar, com os meios de que dispõe, lançar luz 137 onde a compreensão não parece alcançar, enxergar para além das aparências... Se nos postarmos, pois, numa perspectiva externa, isto é, a de um observador das atividades culturais, podemos considerar que tudo o que há são, de fato, filosofias. Se, ao contrário, examinarmos a questão de um ponto de vista interno, a saber, a perspectiva do próprio agente social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica, então existe Filosofia: a que ele mesmo pratica e considera ―verdadeira‖, quer dizer, justificada. É por meio desse critério, aliás, que os professores de Filosofia costumam distinguir as crenças em geral de uma ―crença‖ que se torna, porque fundamentada em boas razões e argumentos, uma filosofia. À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também verdade que essa dispersão discreta de um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da academia, mas que certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a ensaiar um retorno à praça pública, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em sua natureza reflexiva. Independente da maneira como uma determinada orientação filosófica esteja configurada, ela sempre concebe seu empreendimento não tanto como uma investigação que tematiza diretamente este ou aquele objeto mas, sobretudo, enquanto um exame de como os objetos podem nos ser dados no processo de conhecimento, como eles se tornam acessíveis para nós. Mais do que aquilo que se tem diante da visão, a atividade filosófica privilegia o ―voltar atrás‖ (reflectere). Observadas as diferenças de intenção nas várias abordagens filosóficas, o conceito de reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que freqüentemente se confundem: a reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que pode(m) ser entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s) epistemologia(s) e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar teoreticamente um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras; a crítica, quando a reflexão se volta para os modelos de percepção e ação compulsivamente restritos, pelos quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e, por um esforço de análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter 138 propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de pesquisa do tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e todas as elaborações teóricas que estão motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de uma ―falsa‖ consciência e extrair disso todas as conseqüências práticas. Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) ―que Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo que se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um. Essa é uma maneira de encaminhar a resposta à questão (b) ―que Filosofia?‖, que tem a vantagem de explicitar, de saída, seus pressupostos e que, acredita-se, deva facilitar as coisas no momento de uma tomada de posição com relação à questão (a) ―que conhecimentos são necessários?‖, cujo exame é mais conveniente no contexto de uma discussão sobre as competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por ora, é mais oportuno tentar colocar os termos da questão (c) ―de que concepção de cidadania estamos falando?‖. Em primeiro lugar, a cidadania é, poderíamos dizer assim, a finalidade síntese da Educação Básica, a qual não dispensa o contexto do trabalho como sentido prático para sua realização. As finalidades da Filosofia no Ensino Médio (Artigo 35 da LDB) estão, destarte, diretamente associadas ao contexto geral das finalidades da Educação Básica (Artigo 32), em geral, ou às diretrizes de sua área de ensino (Artigo 36/ Parecer No 15/98 / Resolução No 03/98), em particular. Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente apresentados na Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98: I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao respeito ao bem comum e à ordem democrática; II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. Tais valores, nucleados a partir do respeito ao bem comum e da consciência social, 139 democrática, solidária e tolerante, permitem identificar mais precisamente a concepção de cidadania que queremos para nós e que desejamos difundir para os outros. Eles projetam um éthos que, embora se refira à totalidade do ser humano, deixa-se clarificar em três dimensões distintas: estética, ética e política. Do ponto de vista estético, a cidadania se instala à proporção que se adquire a capacidade de acesso à própria ―natureza interna‖, suas necessidades e seus pontos cegos 8. Trata-se, portanto, de um modo de ser que se traduz na fluência da expressão subjetiva e na livre aceitação da diferença. Por um lado, a capacidade de ―conhecer-se a si mesmo‖ pode ser traduzida na possibilidade de refletir criticamente no sentido apontado e levar à elaboração consciente de comportamentos sintomáticos e/ou afetos reprimidos e, por outro lado, a capacidade de abertura para a diversidade, a novidade e a invenção – que deve materializar-se expressivamente, num fazer criativo e lúdico – é que tornam possível conceber um dos aspectos fundamentais em que a cidadania se exercita, a saber, a sensibilidade. Do ponto de vista ético, a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de respeito universal e liberdade na tomada de posição. De uma parte, a possibilidade de agir com simetria, a capacidade de reconhecer o outro em sua identidade própria e a admissão da solidariedade como forma privilegiada da convivência humana; de outra parte, a liberdade de tematizar e, eventualmente, criticar normas, além de agir com (e exigir) reciprocidade com relação àquelas que foram acordadas e o poder, livremente, decidir sobre o que fazer da própria vida, possibilitam desenhar os contornos de uma cidadania exercida em bases orientadas por princípios universais igualitários. O aspecto do éthos que se evidencia aqui é o que chamaríamos de identidade autônoma. Por último, do ponto de vista político, a cidadania só pode ser entendida plenamente na medida em que possa ser traduzida em reconhecimento dos direitos humanos, prática da igualdade de acesso aos bens naturais e culturais, atitude tolerante e protagonismo na luta pela sociedade democrática. Sem a consciência de direitos e deveres individuais e coletivos, sem a sede de uma justiça que distribua de modo equânime o que foi produzido socialmente, sem a tolerância a respeito de opiniões e estilos de vida ―não convencionais‖ e, sobretudo, sem o engajamento concreto na busca por uma sociedade democrática, não é possível de nenhum modo que se imagine o exercício pleno da cidadania. É o aspecto que poderíamos chamar de participação democrática. Como se vê, estas três perspectivas entrecruzadas devem ser tomadas em conjunto, na medida em que cada uma delas implica, pressupõe e corrige as outras. Embora brevissimamente esboçadas, servem ao propósito de explicitar os critérios políticoaxiológicos 140 destes Parâmetros Curriculares. Funcionam, portanto, como referência ideal. Sua pontuação, aqui, justifica-se no sentido de que tudo, desde as concepções de base, passando pelo material didático, até a relação pedagógica, deve ser pensado coerentemente, se não quisermos repetir os resultados que aquela antiga educação, referida no início, empenhou-se tão diligentemente em fazer parecer democráticos. Por fim, caso se tenha clareza sobre os princípios de cidadania referidos e caso se possa assumi-los numa perspectiva própria, surge o desafio de fazer aproximar, com todos os recursos de que se dispõe, realidade e ideal. Para enfrentá-lo, é preciso, antes de tudo, determinar que papel prático se deve ter, isto é, definir (a) ―que conhecimentos são necessários?‖. A seguir, aparecem listadas e brevemente comentadas as competências básicas que o aluno da disciplina deve formar e algumas maneiras, a título de sugestão, pelas quais o professor pode encaminhar a tradução de princípios em capacidades efetivas. Trata-se, pois, de prosseguir consolidando a posição conquistada – de direito e de fato – e não se esquivar às responsabilidades que dela decorrem. Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia • Ler textos filosóficos de modo significativo “As pessoas não sabem o quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Trabalhei nisso durante 80 anos e ainda não posso dizer que tenha conseguido.” (Goethe) Graças a uma história de pelo menos 2.500 anos, a Filosofia acumulou um vastíssimo corpo de conhecimentos, constituindo-se num dos maiores conjuntos bibliográficos de um único gênero. Esse conjunto poderia ser apresentado, simplificadamente, como uma moeda, que possui duas faces: uma refere-se às diversas dimensões sobre as quais a elaboração filosófica se produz, como, por exemplo, a natureza, a arte, a linguagem, a moral, o conhecimento etc; a outra refere-se às diversas perspectivas filosóficas em que essas dimensões são abordadas, os diferentes sistemas, diferentes tradições e correntes em Filosofia. É clara, portanto, a origem da primeira de nossas dificuldades na seleção de conteúdos programáticos em Filosofia no Ensino Médio. A tentação mais óbvia em que se incorre é, simplesmente, fazer uma lista enorme, enciclopédica, de áreas, assuntos e autores que devem ser ―ensi(g)nados‖, ―assimilados‖, sob a justa alegação de que são todos importantes. Relembrando o mote kantiano de que “não se ensina Filosofia, ensina-se a filosofar”, a solução para esse aparente impasse parece ser dada pela própria natureza da atividade filosófica, isto é, sua peculiar característica reflexiva: para além do conteúdo concreto a ser ensinado, o que está em questão é, antes, a necessidade de tornar familiar ao estudante um 141 modo de pensar que aponta, precipuamente, para os pressupostos daquilo que é aparente. Considerando que todos os conteúdos filosóficos (como, de resto, todos os conteúdos teóricos) são discursos, veremos que o ensinar Filosofia no Ensino Médio converte-se, primariamente, na tarefa de fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica. Destarte, de um ponto de vista propedêutico, a conexão interna entre conteúdo e método deve tornar-se evidente: que o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um método de acesso a esse conteúdo. Apropriar-se do método adequado significa, primariamente, portanto, construir e exercitar a capacidade de problematização. Nisto consiste, talvez, a contribuição mais específica da Filosofia para a formação do aluno do Ensino Médio: auxiliá-lo a tornar temático o que está implícito e problematizar o que parece óbvio. Portanto, a competência de leitura significativa de textos filosóficos consiste, antes de mais nada, na capacidade de problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo. Uma apropriação, portanto, que deve poder ser feita em todos os níveis de análise do discurso, a saber, o plano da literalidade imediata, o das vivências associadas a ele, o dos problemas que lhe são conexos ou dele decorrem e, por fim, o de sua estrutura interna, de ordem lógico-conceptual. Ademais, o plano dos pressupostos, ou, se preferirmos, o plano meta-discursivo termina por se converter, ele próprio, em discurso. Assim, o plano geral de trabalho deve concentrar-se na promoção metódica e sistemática da capacidade do aluno em tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e normas, expressões subjetivas e estruturas formais. Somente o desenvolvimento dessa capacidade é que pode indicar que o aluno se apropriou de um modo de ler/ pensar filosóficoreflexivo. Sendo evidente que o filosofar não se produz no vácuo, mas se desenvolve a partir de conteúdos concretos, vale dizer, sobre textos e discursos concretos, uma primeira escolha se impõe: não é possível pretender que o aluno construa uma competência de leitura filosófica sem que ele se familiarize com o universo específico em que essa atividade se desenvolve, sem que ele se aproprie de um quadro referencial a partir dos conceitos, temas, problemas e métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. Nesse sentido, a competência aqui referida é bem clara. É verdade, contudo, que com isso não se resolve ainda o problema prático de que conteúdos devam ser ministrados, que metodologias e que tipo de material didático devem ser utilizados. Além disso, qual é a maneira mais adequada de tratar os conteúdos de Filosofia no 142 Ensino Médio? Devemos optar por temas, domínios de investigação (áreas) ou pela história da Filosofia? Devemos tomar a história da Filosofia como linhacentral do programa ou como referencial? Devemos priorizar a leitura em toda a amplitude possível do(s) autor(es) que consideramos imprescindível(is) ou nos utilizarmos dele(s) como auxílio luxuoso para uma compreensão mais abrangente de áreas ou temas pré-selecionados? Tomar a história da Filosofia como centro, por exemplo, significa que se quer enfatizar o nexo histórico que subsiste entre os diversos pensadores e a relação que cada produção filosófica específica possui com suas coordenadas sócio-histórico-culturais. Na impossibilidade de estudar todos os sistemas e pensadores dessa tradição, é bastante razoável recortar dela a partir de um determinado ponto de vista que se queira privilegiar. Por exemplo, sob o enfoque dos paradigmas filosóficos mais significativos na subsunção de diferentes perspectivas filosóficas, da metafísica à análise da linguagem ou, ainda, explorar uma determinada ―linhagem‖ de pensadores, por exemplo, os racionalistas. Pode-se tomar, também, a história da Filosofia como referencial, quando se opta por dar ênfase a um tratamento temático ou por ―áreas‖ de investigação filosófica. No caso de uma opção por áreas, por exemplo, filosofia da natureza, filosofia da linguagem, filosofia da ciência, ética etc, deve-se recorrer à contribuição específica dos filósofos na elaboração de um corpo de conceitos, doutrinas, questões relativo a cada uma delas e o confronto dessas diversas contribuições sem, entretanto, ter que aprofundar, necessariamente, o conjunto da obra do autor, mas, apenas, o(s) aspecto(s) que se refere(m) à área estudada, como, por exemplo, a crítica kantiana da razão prática, a concepção política de Aristóteles ou, ainda, a contribuição de Hume para a teoria do conhecimento. Na opção por temas, pode-se privilegiar questões específicas para a discussão, consideradas isoladamente ou combinadas com outras, como, por exemplo, o que é Filosofia e como se relaciona com outros saberes, liberdade e determinismo, a civilização tecnológica, subjetividade, ideologia, corpo e repressão, trabalho e alienação, linguagem e pensamento, ética e engenharia genética etc. Enfim, se a preferência for a concentração em poucos autores (ou mesmo em um), o destaque será para a dinâmica e a arquitetônica de cada pensamento ou sistema, considerado numa perspectiva prevalentemente (mas não exclusivamente) interna. Cada uma dessas opções não exclui a combinação com outras. Nesse sentido, pode-se imaginar, perfeitamente, uma parte histórica e uma parte temática em um curso de Filosofia. Também se pode propor, evidentemente que de modo adequado às limitações e possibilidades do Ensino Médio, um curso cujo centro seja a análise de um autor filosófico - Platão, por 143 exemplo - e, a partir dele, abrir uma discussão sobre temas, áreas de elaboração filosófica ou, ainda, ligá-lo a outras elaborações históricas em conexão com o platonismo. Além disso, não se pode perder de vista o fato de que cada maneira de tratar os conteúdos possui vantagens e desvantagens comparativamente às outras. Onde se perde em precisão conceptual, pode-se ganhar em contextualização ou, ainda, em articulação histórica dos problemas, e vice-versa. É natural que, tratando-se de discursos das mais variadas origens, dos mais diversos modos de estruturação interna, deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez mesmo o mais influente, será o ponto de vista filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural. Outro, não menos importante, são os dados de realidade que emergem de uma análise cuidadosa, a cargo de toda a escola, a respeito da capacidade de leitura dos alunos que irão participar na prática educativa. Considerando o critério da formação cultural do professor, acredita-se que a presente proposta só pode vir a ser acolhida significativamente, se o docente estiver comprometido com a continuidade de sua formação (que no caso do ensino público deve ser garantida pelo Estado). Além disso, se o aprimoramento pessoal é uma finalidade de todos, e não apenas do educando, não parece razoável supor que profissionais inteligentes simplesmente decidam parar de ler, de aprender, ... Ainda que o professor de Filosofia no Ensino Médio não esteja obrigado, por dever de ofício, a produzir novidades intelectuais, sendo suficiente trabalhar como divulgador e como formador de um público leitor/agente competente, como professor de Filosofia está (desde sempre já) convocado a honrar uma tradição cujo motivo originário, historicamente renovado, é o páthos da perplexidade, a troca de certezas por dúvidas e a busca de esclarecimento. Considerando o critério da realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e contextualização conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que à opção de curso que for feita deve corresponder um cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos, levando sempre em conta as competências de que os alunos já dispõem e o que é necessário para introduzi-los significativamente no filosofar. Esse zelo metodológico se justifica na medida em que nem se pode ter a veleidade de pretender formar filósofos profissionais e nem se deve banalizar o conhecimento filosófico. Ambos os equívocos esvaziam o sentido e invalidam a pertinência da Filosofia no Ensino Médio. Não pretender formar filósofos profissionais significa que a presente proposta parte do pressuposto de que o Ensino Médio não deve ser uma transposição reduzida de qualquer currículo acadêmico. Ainda que se deva partir dos conhecimentos acadêmicos, deve-se evitar 144 o academicismo. Não banalizar o conhecimento filosófico significa não falsear ou trivializar o sentido de um pensamento filosófico, prática que ocorre, muitas vezes, sob o manto de metodologias pseudo-facilitadoras da aprendizagem. No sentido de favorecer a formação tanto desta quanto das outras competências a seguir indicadas, é preciso ter clareza do fato de que talvez jamais seja possível montar o ―curso ideal‖. Estar-se-á sempre experimentando, inovando e aprendendo o melhor modo de lidar com as responsabilidades que cabem à disciplina. É possível indicar, contudo, a título de um quadro de referências, que competências específicas contribuem para o desenvolvimento de uma competência geral de leitura filosófica. Em primeiro lugar, a capacidade de análise. Não é possível criticar nada sem o recurso ao exame detalhado dos elementos conceptuais que possibilitam a compreensão precisa de um texto filosófico. Essa capacidade se articula com outras, como por exemplo a destreza hermenêutica, isto é, a capacidade de interpretação. Trata-se, aqui, de tematizar aspectos implícitos, recuperar a ―camada profunda‖ que se oculta para além do que é dito expressamente. Além disso, a capacidade de reconstrução racional do texto indica a possibilidade de se reconfigurar a ―ordem de razões‖ que o sustenta e avaliar sua coerência interna. Por fim, a capacidade de crítica ou problematização aponta para o necessário distanciamento que o intérprete deve ter do texto, de modo a evitar um comprometimento equivocado com o ponto de vista apresentado. É, aliás, essa capacidade crítica que define o sentido mais próprio de um pensar autônomo, isto é, um pensar capaz de, entre outras, confrontar o dito e o não-dito, igualmente presentes no texto, imaginar possibilidades alternativas, flagrar a parcialidade e, quando for o caso, a ―falsidade‖ implicadas em uma determinada compreensão do mundo articulada no texto e, a partir disso, extrair suas implicações de ordem cognitiva, afetiva, moral e sóciopolítica. Em última análise, a pergunta ―a que finalidade e propósito serve este texto?‖ deve poder encontrar uma resposta satisfatória a partir da perspectiva de cada intérprete. A possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os propósitos do texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte, da cidadania. • Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros. Uma vez que toda vida humana – no que tem de especificamente humano – está constituída no medium do trabalho e no da comunicação lingüística, acredita-se que a capacidade de “compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que 145 constituem a identidade própria e a dos outros” (Parecer nº 15/98, Resolução nº 3/98) só pode ser produtivamente efetivada a partir do desenvolvimento de uma competência comunicativo-lingüística. Por sua vez, essa competência supõe a capacidade de decodificação dos significados pelos quais construímos a vida em comum e, ao recodificá-los, ressignificálos, construir uma vida própria, que se constitui simbolicamente numa identidade própria (a qual, por sua vez, está sempre referida à dos outros). A essa capacidade de decodificação/recodificação poder-se-ia designar, genericamente, como leitura. Uma vez que todo aluno, na própria medida do seu ser social-simbólico, já possui uma competência de leitura previamente construída, uma prática de ensino metódica e sistematicamente orientada e conduzida deve favorecer o desenvolvimento dessa competência de realizar tanto uma leitura significativa – filosófica – de textos filosóficos quanto ler, filosoficamente, textos estruturados a partir das configurações discursivas próprias das diferentes esferas culturais. Além disso, essa competência de leitura e análise, deve poder ser aplicada aos mais variados registros ou suportes textuais. Não se trata aqui, obviamente, de pretender que o desenvolvimento de uma competência de leitura filosófica possa autorizar o aluno de Filosofia a seguir julgando outras produções culturais a partir de um pedestal superior e imune, ele mesmo, a um contradiscurso. Ao contrário, o que se quer enfocar é a necessidade de desenvolver no aluno um olhar especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem sob as vistas. Por um lado, é fundamental que ele tenha internalizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, as quais, devem poder ser postas à disposição, principalmente pelo trabalho do professor, mas não exclusivamente, na medida em que se deve estimular o gosto da pesquisa individual. Por outro lado, isso, muitas vezes, não será suficiente: como entender e avaliar filosoficamente uma obra de arte como um filme autoral, por exemplo, sem o recurso a todo um conjunto de outras referências culturais, sem as quais o filme pode não fazer nenhum sentido? Como problematizar o método científico, sem o conhecimento prévio de alguns modos e procedimentos usuais da pesquisa científica e de como eles são historicamente constituídos? Como se referir criticamente ao ―hipertexto‖ que são o entorno sócio-cultural e o horizonte do mundo tecno-científico, sem a aquisição de informações e referências advindas das mais diversas origens e sem saber das lutas que são travadas para que o mundo se mantenha desse modo específico? Portanto, o desenvolvimento dessa competência tem implicações que extrapolam o alcance de um curso de Filosofia meramente disciplinar. Seria preciso ir além disso e trazer 146 para a prática cotidiana do aprender a filosofar (na medida do possível) alguns casos exemplares de outros textos, em diferentes suportes, que não o texto especificamente filosófico. Nesse sentido, é possível compor um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos da tradição filosófica, mas não exclusivamente neles. Por outro lado, é possível desenvolver diversas práticas pedagógicas que permitam ler, com esse enfoque, tanto os textos de todos os conhecimentos sistemáticos que a escola oferece quanto textos de conhecimentos não-sistemáticos, intra/extra escolares. É indispensável, nesse processo, aprender a respeitar a especificidade de cada estrutura discursiva (científica, narrativa, filosófica, moral, artística etc) e considerar, com igual cuidado, o registro ou o suporte textual específico em que essa estrutura se apresenta (discursos teóricos, técnicos, vídeos, filmes, peças teatrais, músicas, obras plásticas, jornais, discursos políticos, posturas pessoais e/ou coletivas etc.). Sem isso, corre-se o risco de não se conseguir nada além de ―emitir opiniões interessantes‖ sobre este ou aquele assunto, livro, filme, pintura etc., isto é, de não se conquistar um ponto de vista realmente fundado e articulado. A competência de leitura filosófica de outros discursos significa, por certo, a capacidade de problematizar e refletir a partir das estruturas e registros específicos desses discursos, isto é, lê-los com um olhar crítico. Isto pode ser traduzido também, mas não necessária ou unicamente, no exercício do reconhecimento de orientações filosóficas, refletidas ou não, originais ou não, que, eventualmente, possam habitar neles. De qualquer modo, o desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências culturais em geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências filosóficas e diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de uma leitura transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida em que os diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede. • Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais. Entre outros fatores, a decadência do domínio político da Igreja Católica, a possibilidade de se conceber um universo infinito, introduzida pela astronomia de Copérnico, os descobrimentos marítimos, o avanço da técnica e o enriquecimento da burguesia, contribuíram para alterar radicalmente a cosmovisão do Ocidente, a partir do século XVI. Na seqüência histórica, a instalação do projeto da Modernidade deu início a um processo de diferenciação cultural que logrou tornar autônomas três dimensões axiológico-culturais: 147 a) a ciência moderna; b) o direito natural racional e as éticas profanas baseadas em princípios; c) a arte autônoma e a crítica de arte institucionalizada. Estas três manifestações culturais foram, progressivamente, retraindo-se para domínios autônomos e expelindo as conexões diretas que antes possuíam com o todo da vida cultural, passando agora a exibir suas estruturas próprias de racionalidade. Questões de verdade, de justiça e de gosto, doravante, passam a ser respondidas no interior de cada um desses quadros. A modernidade cultural, portanto, caracteriza-se, em princípio, pela ruptura e pela fragmentação daquilo que antes estava reunido em uma visão do mundo unificada, sob a tutela das verdades ―reveladas‖. A dessacralização do mundo e a racionalização do sistema produtivo, para retomar Weber, levaram o processo de modernização social ao estado em que nos encontramos hoje, a saber: que não podemos mais reunificar esses domínios autônomos sem enfrentar grandes dificuldades de mediação teórica. Além disso, na realidade cotidiana, experimentamos o enorme desconforto que resulta da contradição entre as diferentes interpretações cognitivas, expectativas morais, possibilidades expressivas, valorações e a necessidade de interpenetrar todos esses aspectos num projeto de vida significativo. No intuito de minorar esse desconforto, emergiram respostas oriundas de todos os domínios em que a modernidade se compartimentalizou. Uma delas, destacada pelas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio como eixo privilegiado, é a concepção de interdisciplinaridade. O termo remonta, como se sabe, à problemática instaurada pela pesquisa científica, quando da tentativa de delimitação de domínios de investigação que recaem, por assim dizer, num ―entre disciplinas‖, como, por exemplo, a físico-química, a bioquímica, a psicolingüística etc. Mais recentemente, entretanto, o conceito de interdisciplinar passou a apontar para a necessidade de se ir além de uma prática científica meramente disciplinar, buscar as conexões existentes entre todos os saberes e tentar abrir os canais de diálogo entre todas as comunidades especializadas. Sendo a escola o espaço institucional por excelência da difusão do conhecimento, nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de fundo cultural fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino de disciplinas isoladas, para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a falência e a insuficiência de nossos modelos educacionais, do ponto de vista de seus mais altos objetivos, os quais exigem a formação de competências gerais e básicas nos planos cognitivo, instrumental, moral, político e estético. A reforma curricular que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa distorção. 148 Assim como na formação das outras competências referidas, também nesta a iniciativa em questão deve partir do professor. Nesse sentido, cada docente está convocado a um esforço de superação da tendência cultural a uma óptica reducionista, isolacionista. É necessário, mais do que nunca, levar o aluno a ampliar seu campo de visão até a inteira latitude do real, no sentido de apreendê-lo, não como um amontoado caótico de coisas independentes e que apenas se sucedem desordenadamente, mas, sim, como um conjunto de relações entre todos os seus elementos, como uma trama que supõe a costura e o entrelaçamento dos fios: é preciso tomar o real como uma totalidade inter-relacionada. A conseqüência de uma opção pela interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação de cidadãos dotados de uma visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os elementos da cultura, apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma e, de outro, agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade. Todavia, cabe aqui uma advertência: podemos facilmente cair na tentação de fazer meras justaposições de conteúdos programáticos distintos num mesmo espaço didático, aula, atividade etc, ou, ainda, associações rápidas e superficiais entre conhecimentos e discursos que, como já dissemos antes, pertencem a domínios cognitivos e culturais que não podem nem devem ser reduzidos ou subsumidos uns aos outros. Não sendo satisfatório um planejamento curricular estritamente disciplinar, também não é satisfatório remediar esse estado de coisas, fazendo superposições precipitadas, equivocadas e, a bem do uso competente do período letivo, desnecessárias: “Por isso, a interdisciplinaridade, antes de ser uma tentativa de estabelecer conexões primárias entre as disciplinas, deve orientar-nos, antes de mais nada, no sentido de perceber a inter-relação entre as expressões da realidade. É compreendendo a realidade como totalidade que poderemos educar para a totalidade. Tentar apenas estabelecer simples fios condutores entre as diferentes disciplinas é tentar tapar o sol com a peneira, tentar esconder o que de fato precisa ser denunciado.” Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando for o caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos, programas de estudo etc. É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo dispensar a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica dos diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe frisar que o conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que, portanto, não pode ser 149 adequadamente tratado por leigos. Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc), das Ciências Humanas (o a priori lingüístico-cultural, estruturas discursivas críticas, a enunciação histórico-hermenêutica etc.) e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas poéticas, a enunciação estético-expressiva etc). Além disso, ao se apropriar reflexivamente de conceitos, temas, doutrinas e problemas específicos referidos nos textos especificamente filosóficos, sejam eles recortados do interior de um sistema filosófico ou a partir de outras esferas culturais (como é o caso de cientistas ou críticos de arte que refletem sobre sua própria prática), o aluno adquire, ao mesmo tempo, um conjunto de referências que lhe permite reconhecer as ―relações de parentesco‖ existentes entre as diferentes abordagens filosóficas e as mais diversas produções culturais, desde a ciência até a arte: o positivismo científico, o historicismo, o relativismo na antropologia cultural e o subjetivismo estético, por exemplo, radicam-se em elaborações filosóficas bem conhecidas. Considerando a inter/transdisciplinaridade do ponto de vista de outros conteúdos disciplinares, é evidente que deve restar em aberto o modo pelo qual os agentes sociais no sistema escolar optam por construir o ―ensino de área‖, a saber, que pontes pretendem estabelecer entre si. A partir deste ponto de vista, somente a construção socialmente compartilhada de um currículo escolar inter/transdisciplinar e contextualizado é que pode produzir a articulação efetiva dos conhecimentos filosóficos e dos outros conhecimentos e, assim, auxiliar o aluno a alcançar uma compreensão ampla e integrada dos diferentes conteúdos disciplinares. Nesse sentido, uma Filosofia só não faz verão... Qualquer que seja o ângulo considerado nessa questão, o fundamental é que a Filosofia não se furte ao compromisso, desde sempre assumido, com o reencontro da unidade possível dentro da diversidade. Bem entendido que não se trata mais de fazer soar uma ―voz soberana‖ que aspira à explicação da totalidade. Essa pretensão, hoje, tornou-se injustificável. No entanto, ela ainda não pode sentir-se dispensada de se referir à totalidade. • Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica. 150 Embora se possam distinguir diferentes competências, no plano de uma análise com a finalidade de ressaltar as condições de sua construção ou as suas características mais específicas, não se pode, a rigor, isolá-las como capacidades estanques. Nesse sentido, as três competências listadas a seguir estão, de fato, intimamente ligadas às três outras referidas anteriormente. A capacidade de contextualizar os conhecimentos imbrica-se com a destreza hermenêutica, assim como com a crítica. Elaborar por escrito os resultados de uma aprendizagem implica também uma prévia operação de análise e reconstrução quando da leitura, isto é, recompor os traços que foram observados e examinados no momento de se compreender o texto. Por sua vez, participar em debates sistemáticos – um evento certamente ainda bastante incomum em nossa prática escolar – reúne ao mesmo tempo todas essas competências. O recurso do tratamento contextualizado dos conhecimentos, por parte da escola, pode auxiliar o aluno a desenvolver competências de mediação entre ele mesmo e os diferentes conhecimentos, isto é, o tornar-se intérprete. Essa competência de interpretação/tradução, para ser completa, deve poder ser pensada em duas direções, a saber: tanto no sentido ascendente quanto descendente, isto é, tanto na direção do intérprete em seu próprio contexto, até o contexto específico de um conhecimento, quanto na direção oposta, ou seja, quando se trata de ―aplicar‖ um conhecimento a uma situação determinada no contexto do próprio intérprete. Nesse sentido, a metodologia utilizada pode ir tanto do vivencial para o abstrato quanto deste para a situação de aprendizagem. E deve transitar o mais possível nas duas direções. Em ambos os casos, é pela capacidade do professor de escutar atentamente, exibir uma sincera postura dialógica (não autoritária) e, não menos importante, estabelecer habilmente as ligações suficientes, que uma competência de contextualização pode ser desenvolvida. Ao serem apresentados ao aluno, os conhecimentos filosóficos, abstratos por sua natureza, exigirão dele um esforço de inteligibilidade a que normalmente, isto é, na perspectiva do senso comum cotidiano, não estão acostumados. É necessário que ele tenha ultrapassado o estágio do egocentrismo léxico 13 – que consiste na dificuldade que tem o jovem leitor de aceitar a argumentação do autor, já que ainda continua envolvido em suas próprias fantasias e idéias – e atingido o estágio da disciplina receptiva (Elkind) – que consiste na descentração necessária para abandonar (temporariamente) seu próprio ponto de vista e seguir a argumentação do autor, considerando o ponto de vista deste. Para contextualizar os conhecimentos filosóficos, tem-se, em primeiro lugar, que localizálos no sistema conceptual de onde provêm originariamente. O que supõe o 151 aprendizado da linguagem em que estão formulados – não é possível entender Descartes, por exemplo, sem o recurso às ―regras gramaticais‖ que configuram seu pensamento. Em segundo lugar, é imprescindível assinalar as coordenadas gerais em que esse pensamento se inscreve. Para serem compreendidos, portanto, é necessário que os conhecimentos filosóficos sejam interpretados, ao mesmo tempo, na perspectiva de seu autor e no contexto de origem desse pensamento. Para torná-los compreensíveis, é preciso, como já foi referido anteriormente, que o professor conheça e leve em consideração as dificuldades e competências prévias do aluno/intérprete. Para compreendê-los, o aluno/intérprete tem de: a) partir de seus conhecimentos, capacidades e contexto pessoal (biográfico, sóciohistórico etc); b) abandonar essa primeira perspectiva e alcançar o texto em seu contexto específico; c) retornar às suas próprias demandas problemáticas. Em síntese, uma ―exegese‖ do texto filosófico só é possível na perspectiva de uma mediação entre o texto e o contexto de seu intérprete. Por outro lado, que o aluno tenha conseguido – na medida da precisão conceptual possível no Ensino Médio – conquistar um acesso significativo a um determinado conteúdo filosófico, implica que possa dispor dele com mais liberdade para ―aplicá-lo‖, isto é, reutilizálo, transferi-lo para outras situações cognitivas ou de análise, vale dizer, compor suas habilidades. É, aliás, essa possibilidade de aplicação o melhor critério para o reconhecimento de que uma competência foi adquirida de fato. Não se pode dizer que um indivíduo disponha de uma competência lingüística, por exemplo, se ele não é capaz de se comunicar em qualquer uma das linguagens, ou seja, de aplicar essa competência em comunicações concretas. Considerando essa aplicação ao plano pessoal-biográfico, uma competência de contextualização a partir de conhecimentos filosóficos pode ser muito importante na compreensão de determinadas vivências, sem falar, é claro, da riqueza que o imenso panorama filosófico tem a oferecer como contribuição na tarefa de construir uma (ou reconhecer-se numa) visão do mundo cujos pressupostos busquem fundamentar-se de modo refletido, crítico. Por outro lado, ao conquistar um estilo pessoal de pensar e refletir, o aluno tem a possibilidade de retornar essa reflexão sobre si próprio. Pode, nesse sentido, identificar tanto sua originalidade quanto a falta dela; valorizar o trabalho como meio privilegiado da autoconstrução e desvalorizar a labuta como valor em si; reconhecer suas capacidades, potencialidades e dificuldades; abrir-se para as diferenças discursivas e habilitar-se a aprender com argumentos morais, entre tantas outras coisas. Além disso, é possível – como um 152 resultado lateral tanto desejável quanto imprevisível – deixar livre o espaço para mudanças na estrutura afetivo-motivacional, caso tenha conseguido, reflexivamente, aperceber-se de sintomas que indiciam obstáculos no seu ―ir adiante‖. Tudo isto aponta para a direção da autonomia na condução de si mesmo e para a emancipação de todas as repressões inúteis, a que todo ser humano tem direito. Que a Filosofia não seja, muitas vezes, afirmativa, pode ser muito útil, quando tudo o que se necessita, num momento de formação, é examinar criticamente as certezas e verdades, questionar os valores e deixar aberto o espaço para a invenção significativa da própria vida. Como, de fato, a vida de cada um se passa sempre num dado entorno sóciohistóricocultural, saber ler esse entorno com um olhar filosófico é de fundamental importância para quem quer que seja. Nesse sentido, para além de apenas fornecer referências culturais, a Filosofia serve ainda mais quando o aluno a contextualiza no seu tempo e espaço sociais. É possível, assim: identificar com clareza sua posição de classe; lidar melhor com a complexidade e a pluralidade de discursos, valores e coisas que parecem se amontoar desordenadamente; reconhecer o trabalho social como esforço comum necessário para a construção da vida compartilhada, além de reconhecer a injustiça e a inumanidade na distribuição dos frutos desse esforço histórico coletivo; trazer à tona e apontar o arsenal da crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em normas morais injustas; na medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos inautênticos. Pode ajudá-lo a identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis (e opor-se a elas, na medida de sua coragem), desde a sala de aula, passando pelo bairro/condomínio, cidade, estado, até a esfera nacional; também a rastrear seus próprios impulsos autoritários, totalitários, e que raízes esses impulsos deitam em seu contexto sociovital. Sobretudo, pode auxiliá-lo a compreender a dimensão preeminentemente social que tem sua própria vida e a descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou universalmente. Por fim, quando contextualizados no horizonte de uma sociedade que se reproduz sistemicamente por meio da ciência e da tecnologia, os conhecimentos de Filosofia podem levar o aluno a descobrir, por exemplo, no contexto de que estruturas discursivas, sistemas de representação e movimentos ideológicos foram plasmadas, historicamente, essas forças produtivas; que características apresentam; que importância e poder possuem; que papel concreto desempenham; que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na 153 afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a alteração globalizada das relações entre capital e trabalho; que conexões podem eventualmente possuir com interesses econômico-políticos inconfessáveis. Uma contextualização bem feita, no rumo proposto, pode facilitar a desmistificação de muitas lendas e a derrubada de uma grande quantidade de preconceitos infundados a esse respeito, mas pode, também e essencialmente, ajudar a explicitar os fundamentos críticos de um número ainda mais de opiniões absolutamente justificadas. • Elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo. “Quem não sabe escrever não aprendeu a ler.” (Paulo Freire) A uma certa competência de leitura deve corresponder, necessariamente, uma certa competência de escrita. Pressuposta a adoção de alguma(s) das metodologias e técnicas de leitura, análise e fichamento de textos à disposição e estimulada a prática da pesquisa bibliográfica, preferencialmente individual, mas também em conjunto, é razoável admitir que o aluno desenvolva capacidades de escrita que lhe permitam elaborar, de forma própria, os resultados de sua aprendizagem, a partir de suas pesquisas, leituras, análises individuais, discussões em grupos de trabalho e, inclusive, de apontamentos e conteúdos ―fornecidos‖ pelo professor. Para se apropriar mais completamente de toda a riqueza possível de um texto, o aluno tem que desenvolver alguns procedimentos analíticos e, ao fazê-lo, ele já precisa ir registrando, de algum modo, suas impressões, interpretações, observações parciais etc, até que consiga reconstruir a estrutura textual e efetuar as críticas que julga pertinentes. Portanto, uma reelaboração por escrito dos conteúdos é simplesmente o contraponto necessário de uma leitura criteriosa. Para além disso, deve-se esperar que o aluno possa desenvolver argumentações próprias e aprender a encadeá-las, no sentido de estruturar uma justificação para suas críticas. A rigor, na escola só é possível acompanhar o desenvolvimento das quatro primeiras competências listadas a partir de uma avaliação bem feita das duas últimas e, em especial, da capacidade de elaborar o aprendizado por escrito. Enquanto na situação de uma exposição em seminário ou no calor de um debate pode-se estar distraído ou ser impreciso, diante de um texto produzido pelo aluno, tem-se a possibilidade, além da obrigação, de avaliar com mais vagar e mais objetividade. É quando se pode indicar a cada um os motivos, um por um, que levam a endossar ou recusar a elaboração feita e sugerir os encaminhamentos devidos. Além disso, a quantidade de informações trazidas e o grau de articulação presentes no texto escrito 154 são, em geral, seguramente maiores. A elaboração escrita do aluno constitui uma situação de avaliação privilegiada, na medida em que ele pode tomar conhecimento da opinião do outro sobre sua produção, referirse a algum padrão social mente aceito, representado pela escola. Além disso, ao escrever, o aluno pode objetivar seus processos de compreensão e tomá-los como elementos de autoconstrução consciente. Nesse caso, o desenvolvimento da competência de escrita não é, de nenhum modo, um aspecto secundário no desenvolvimento da personalidade, dos mecanismos de aprendizagem e, evidentemente, de um pensar reflexivo. • Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes. “Quando Aristóteles define o homem como „animal político‟, sublinha o que separa a Razão grega da de hoje. Se o homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a própria Razão, em sua essência, é política.” (J.P. Vernant) Num texto bastante famoso, J. P. Vernant conjumina o nascimento da Filosofia e o advento da pólis: “entre as duas ordens de fenômenos, os vínculos são demasiado estreitos para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas sociais e mentais próprias da cidade grega” 14. A Filosofia, portanto, nasceu no espaço social que constituiu a democracia grega, um espaço-praça (ágora) criado em função do debate público acerca da vida comum. Fica claro, então, a partir do sentido proporcionado pelo contexto originário da Filosofia, porque esta é uma espécie de competência-síntese das anteriores: a partir de um ponto de vista rico na informação, claro na formulação, concatenado na articulação e fundamentado reflexivamente, vale dizer, elaborado conscientemente e decididamente posicionado, o aluno deve poder participar, em igualdade de condições, em qualquer debate, sistemático ou não, intra e/ou extra- escolar. Uma vez que se trata de construir conhecimento e vida em comum, ele está imediatamente convocado a participar no debate, a começar pelo espaço escolar: só será possível desenvolver a capacidade de uma tomada de posição refletida se, durante a exposição do professor, em sua própria exposição oral, na discussão em pequenos grupos ou num debate generalizado em sua turma, ele tiver e atribuir de modo simétrico aos interlocutores a oportunidade de, com toda liberdade, perguntar, responder, solicitar e fazer esclarecimentos, opor-se, criticar, confrontar diferentes posições e possibilidades, recusar interpretações, fazer interpretações etc e, em especial, mudar de posição quando estiver convencido de que a sua 155 pode não ser necessariamente a melhor. Nesse sentido, para o professor, nem mesmo o conteúdo programático deve estar excluído do debate com o aluno, muito ao contrário. É mesmo desejável que, na medida do possível, este possa manifestar-se, fazer opções, discutir encaminhamentos e, quem sabe até, metodologias e materiais didáticos. Ou seja, o professor deve estar atento para reorientar o seu curso em atendimento a demandas legítimas que se instalem durante o processo. Para o aluno, por sua vez, aprender a negociar seus interesses no conjunto de outras preferências é uma das mais ricas conquistas da aprendizagem. Como em tudo o mais, depende muito de que o professor seja capaz de uma decidida abertura pedagógica no sentido de fomentar e estimular a aprendizagem como prática discursiva, na qual o debate sistematicamente conduzido tem lugar de destaque. Visto que ninguém pode, sensatamente, pretender dominar tudo o que outros agentes sociais sabem, participar significativamente num debate é sempre aprender com ele. Por um lado, a prática constante do debate propicia o desenvolvimento e o fortalecimento da capacidade individual de fazer sua própria voz ser ouvida na ―assembléia‖, na medida em que o aluno possa aceitar livremente suas regras e manifestar seu desacordo acerca de qualquer infração das regras do debate. Por outro lado, essa mesma prática pode auxiliá-lo a reformular seus pontos de vista, incorporar novas visões a respeito do assunto-objeto do debate, internalizar normas mais justas e, se for o caso, alterar sua posição inicial. Trata-se aqui também de uma mediação: a autonomia deve poder livremente reconhecer os melhores argumentos. A rigor, por sua relevância para o desenvolvimento de uma competência global de aprender a aprender, esta última competência não diz respeito apenas à disciplina Filosofia. No entanto, é também verdade que, assim como na concepção grega de paidéia, a Filosofia ainda compreende sua missão pedagógica como um compromisso com o desenvolvimento da competência discursiva em toda a sua extensão e não apenas filosófico-discursiva. Acredita-se mesmo que este seja o quadro geral em que se inscreve a cidadania. Um conceito, aliás, que remete necessariamente à participação na vida da pólis, à dimensão prática de um debate/embate que se deve travar cotidianamente, a fim de redistribuir os poderes de forma mais simétrica e igualitária. Diante da sintomática despolitização da sociedade contemporânea, desenvolver a competência política com o objetivo de repolitizar uma práxis esvaziada, converte-se, talvez, na mais urgente tarefa da educação. Evidentemente, tratando-se de competências, delas se pode dizer que alguém as possui em maior ou menor grau. Quem toca piano, por exemplo, pode tocá-lo mais ou menos 156 virtuosamente. No entanto, ele dispõe de alguma competência para o instrumento. No caso do aluno de Filosofia do Ensino Médio, o grau mínimo que assinala a construção das competências previstas (no qual certamente devem estar incluídas todas as condições para o crescimento e a aprendizagem contínuos, isto é, o desenvolvimento dessas competências e suas reaplicações-habilidades) deve poder ser medido, em último caso, através da constituição dessa autonomia discursiva ou (o que vem a ser sinônimo) da construção de uma competência de participação democrática. Todavia, dado o caráter essencialmente dinâmico dos processos de aprendizagem e de formação, não é possível indicar, por razões óbvias, ―o modo concreto e inquestionável‖ a respeito de como avaliar, completa e corretamente, se e quando já se construíram essas competências. Ademais, por se tratar de regras, é conveniente ter claro que elas possuem a especial característica de sempre dependerem do acordo de pelos menos dois indivíduos sobre o sentido de sua aplicação correta... Infelizmente, a maioridade (no sentido kantiano), pretendida em todo projeto educacional digno desse nome, é, ainda hoje, mais uma direção a que se tende do que uma realidade que se constate no dia-a-dia do trabalho pedagógico e, a dar razão a Freud, a grande maioria dos indivíduos ―adultos‖ de uma sociedade humana não chegam a ser adultos de fato. Em todo caso, porque não é possível nos esquecermos do horror, temos o dever de lutar e o direito de esperar que um trabalho bem feito de nossa parte possa contribuir para a formação de homens mais dignos, livres, sábios, diferentes e iguais, capazes até, ao invés de se adaptar, de recusar o mundo tal como está proposto nos termos atuais e engajar-se ativamente em sua transformação, com vistas a uma convivência mais justa e fraterna. É pedir demais que esse viver seja, quem sabe, mais feliz? Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia Representação e comunicação • Ler textos filosóficos de modo significativo. • Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros. • Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo. • Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes. Investigação e compreensão • Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais. 157 Contextualização sócio-cultural • Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica. 158 ANEXO 12 Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN+)4 Ciências Humanas e suas tecnologias Filosofia Os conceitos estruturadores da Filosofia Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos quais poderemos partir: • o art 2° prescreve que a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho; • o art. 27, que trata dos conteúdos curriculares da educação básica, estabelece como diretrizes a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; • o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico (inciso III) e a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV); • o art. 36, sobre o currículo do Ensino Médio, dispõe no inciso III do § 1° que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania (grifo nosso). Estabelecer o que o aluno deve conhecer e que competências desenvolver no curso de Filosofia no Ensino Médio configura uma tarefa a ser enfrentada de maneira diversa daquela que se espera em qualquer outra disciplina, por causa das características que são próprias ao filosofar. O professor de Física, por exemplo, é capaz de definir o campo da ciência com a qual trabalha, conhece sua metodologia e, a partir dessa base aceita pelos cientistas dos quais é contemporâneo, consegue estabelecer um conteúdo programático mínimo e, além disso, escalonar as dificuldades para escolher o que será estudado de início, 4 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de Filosofia 159 como pré-requisito para a compreensão de conceitos mais complexos. No entanto, não existe uma Filosofia – como há uma Física ou uma Química –, o que existem são filosofias, podendo o professor (a quem chamaríamos de filósofo-educador) privilegiar certas linhas de pensamento e de metodologia, sejam elas a dialética, a fenomenológica, a racionalista etc. Também, diferentemente de outras disciplinas, não há um ―começo‖, um pré-requisito para se introduzir a Filosofia, a não ser quanto aos cuidados necessários com o estágio de competência de leitura e abstração dos alunos, bem como o universo de conhecimentos e valores que cada um deles já traz consigo. Outra dificuldade encontrar-se-ia nas sugestões dos PCNEM quanto aos saberes e às competências necessários para a formação do cidadão, como sujeito ético e político. Ora, se pensarmos que a Filosofia não tem função pragmática, no sentido de que sua finalidade está nela mesma, ou seja, no filosofar, somos levados a concluir não ser possível transformála em instrumento de qualquer fim, por mais nobre que seja. No entanto, não há como negar a vocação do filósofo, como pessoa do seu tempo, em estabelecer vínculos com a educação. Basta lembrarmos da alegoria da caverna, em A República, de Platão: aqueles que foram libertos das correntes e voltaram para o convívio dos demais, após terem contemplado as coisas mesmas e superado o conhecimento ilusório dado pelas sombras projetadas na caverna, têm um compromisso com a paideia. Assim diz Platão, pela boca de Sócrates: A educação é, portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão da alma, e que procura os meios mais fáceis e mais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão da alma, pois que este já o possui; mas como ele está mal disposto e não olha para onde deveria, a educação se esforça por levá-lo à boa direção. É verdade, no entanto, que os tempos mudaram e com eles as concepções a respeito do papel do educador. Mais do que aquele que dirige o processo, por conhecer a ―verdade‖, cabe ao professor dar condições para que o próprio aluno construa seu conhecimento crítico e se oriente na direção da autonomia da ação. Dessa forma, não constitui incoerência recusar a função pragmática da Filosofia, no momento em que o filósofo criador elabora conceitos originais, ao mesmo tempo em que se reconhece a dimensão pedagógica da Filosofia. Assim, no presente documento discutiremos o trabalho do filósofo-educador e suas intenções pedagógicas – nesse caso, intencionais e pragmáticas – de proporcionar a ocasião oportuna para seus alunos desenvolverem determinadas competências e habilidades que os tornem sujeitos autônomos e cidadãos conscientes. Antes, porém, seria preciso definir o que é Filosofia e determinar seu objeto e método, o que configura, já de início, um problema filosófico. Não por acaso, um dos campos de 160 investigação filosófica é a Filosofia da Filosofia. É nesse sentido que Edmund Husserl se pergunta: O que pretendo sob o título de Filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o, naturalmente. E contudo não o sei… Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a Filosofia deixou de ser um enigma? […] Só os pensadores secundários que, na verdade, não se podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições. Desde o momento em que os gregos distinguiram os relatos míticos da nascente Filosofia, valeram-se da defesa da racionalidade. Mas a razão filosófica dos gregos não é a mesma dos pensadores medievais, que subordinavam a Filosofia, como ancilla theologiae (serva da teologia), às verdades inquestionadas e inquestionáveis da fé. Nem é a mesma razão dos modernos que, instigantes, indagavam sobre o ponto de partida do conhecimento, a fim de conhecer a capacidade mesma de conhecer. Recrudescendo esse questionamento, Kant colocou a razão num tribunal para avaliar criticamente seus limites e possibilidades, o que, em última análise, criou um impasse para a metafísica. No século XIX, com o desenvolvimento acelerado das ciências particulares, o cientificismo positivista procedeu a um reducionismo: ao valorizar de maneira exagerada o conhecimento científico como a suprema forma de racionalidade positiva, reduziu drasticamente a função da Filosofia. Como reação ao positivismo, a fenomenologia de Husserl enfatizou o papel da Filosofia como conhecimento rigoroso da possibilidade do conhecimento científico e o estudo dos fundamentos, dos métodos e dos resultados das ciências. Já a Filosofia analítica, com suas inúmeras ramificações surgidas desde o início do século XX, reduziu a tarefa da Filosofia à análise da linguagem, a partir dos problemas lógicos colocados pelas ciências. Como disse Wittgenstein em seu Tractatus, ―O fim da Filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos‖ […] ―O resultado da Filosofia não são ‗proposições filosóficas‘, mas é tornar proposições claras‖. Ao percorrermos, na história da Filosofia, as mais diversas definições, percebemos a vocação filosófica que se encontra sobretudo na colocação de problemas e menos na resolução deles. Mesmo porque, à medida que mudam as formas de relações humanas e o conhecimento do mundo, surgem novos questionamentos e perplexidades. Diante da exigência didática de escolher um caminho, no sentido etimológico primeiro de estabelecer um ―método‖, convém, por questões práticas, antes de nos agarrarmos a uma definição de Filosofia, buscar uma orientação para reconhecer atividades que possamos qualificar de filosóficas, sempre tendo em vista nosso propósito de educadores. As dificuldades em definir o que é Filosofia já se encontram explicitadas nos PCNEM: Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando como ponto de partida o referido inciso III § 1° do artigo 36, evidenciam-se naturalmente três questões: (a) que 161 conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo? (p. 329) Nessas questões vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes entre os professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não quanto ao ―norte educativo‖, centrado na formação da cidadania. É o que se encontra enfatizado na continuidade da leitura dos PCN: Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) ―que Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo que se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um. (p.331) Mesmo reconhecendo a multiplicidade de caminhos que cada filósofo-educador possa privilegiar, por questões didáticas, optamos por assumir determinada orientação – uma entre muitas possíveis, voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais como uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos conhecimentos e das práticas. Embora os artigos da LDB citados inicialmente neste documento (com exceção do artigo 36, que trata explicitamente da Filosofia e da Sociologia) façam referência a todas as disciplinas do currículo, a Filosofia, por suas características, tem condições de contribuir de forma bastante efetiva no processo de aprimoramento do educando como pessoa e na sua formação cidadã. Ou seja, enquanto os temas de ética e cidadania bordejam as demais disciplinas como reflexão transversal, no ensino da Filosofia esses temas podem constituir os eixos principais do conteúdo programático. Não se pense que, com essa afirmação, estejamos conferindo algum tipo de superioridade a ela, mas sim reconhecendo que, pela sua especificidade, a Filosofia: • abre o espaço por excelência para tematizar e explicitar os conceitos que permeiam todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical, ou seja, buscando suas raízes ou fundamentos e pressupostos; • discute os fins últimos da razão humana e os fins a que se orientam todas as formas de ação humanas, e sob esse aspecto, levanta a questão dos valores; • examina os problemas sob a perspectiva de conjunto – enquanto as ciências 162 particulares abordam ―recortes‖ da realidade – o que permite à Filosofia elaborar uma visão lobalizante, interdisciplinar e mesmo transdisciplinar (metadisciplinar); • não trata de um objeto específico, como nas ciências, porque nada escapa ao seu interesse, ocupando-se de tudo. Nem sempre, porém, a disposição humana para a reflexão é estimulada, antes chega a ser desencorajada ou escamoteada. Por isso é importante o trabalho da educação: se o senso comum é um conjunto de idéias e valores que servem de base à nossa primeira visão de mundo, trata-se no entanto de um saber não-crítico, fragmentado, incoerente, desarticulado, misturado a crenças arraigadas e, portanto, pré-reflexivo. Uma das funções do filósofo-educador consiste em dar elementos para o aluno examinar de forma crítica as certezas recebidas e descobrir os preconceitos muitas vezes velados que as permeiam. Mais ainda, ao refletir sobre os pressupostos das ciências, da técnica, das artes, da ação política, do comportamento moral, a Filosofia auxilia o educando a lançar outro olhar sobre o mundo e a transformar a experiência vivida numa experiência compreendida. Não se trata, porém, de concluir que o professor de Filosofia é um ―guia‖ que conduz o aluno ―das trevas à luz‖, mas sim que é o mediador entre o educando e o texto filosófico (ou o texto não-filosófico que será compreendido segundo o enfoque da Filosofia), o que equivale a dizer que o professor é o mediador entre o aluno e a cultura em que vive, já que o ensino/aprendizagem não se faz à margem do contexto histórico-social. Podemos, agora, considerar a Filosofia na sua dimensão pedagógica, como disciplina do Ensino Médio comprometida com a formação cidadã, e, a partir do posicionamento tomado no item anterior e das ressalvas que foram feitas sobre os diversos caminhos a serem seguidos, torna-se possível estabelecer como conceitos estruturadores da Filosofia: o ser, o conhecimento e a ação. Desdobramos então esses conceitos, lembrando que a apropriação que deles faz a Filosofia é no sentido de uma reflexão radical – que busca as raízes dos conceitos, seus fundamentos e pressupostos – e indaga sobre seus fins. Quanto à reflexão sobre o ser, de que trata a Filosofia? Sabemos, desde Platão,que o filósofo é aquele que se admira diante do óbvio, porque introduz no mundo a estranheza, o questionamento. Dessa forma, busca a origem, o sentido das coisas, das idéias, dos comportamentos estabelecidos. Além disso, enquanto as ciências particulares ou qualquer outra expressão do conhecimento humano têm seu objeto circunscrito a determinado campo, a Filosofia se ocupa da totalidade dos seres: se a História se utiliza do conceito de tempo, se a Biologia o de ser vivo, se a Psicologia o de liberdade e determinismo, se a Religião parte da 163 verdade revelada e se sustenta pela fé, cabe à Filosofia indagar sobre o que é a realidade representada por esses conceitos e quais seus pressupostos. Como disse Merleau-Ponty (1998): […] é impossível negar que a Filosofia coxeia. Habita a história e a vida, mas quereria instalar-se no seu centro, naquele ponto em que são advento, sentido nascente. Sente-se mal no já feito. Sendo expressão, só se realiza renunciando a coincidir com aquilo que exprime e afastando-se dele para lhe captar o sentido. É a utopia de uma posse a distância. Na reflexão sobre os fundamentos e fins do conhecimento, a Filosofia investiga os instrumentos do pensar, como a lógica e a metodologia; distingue e compara as diversas formas de apreensão do real, tais como mito, religião, senso comum, ciência, filosofia etc.; labora a teoria do conhecimento, indagando sobre as possibilidades e os limites desse conhecimento. Ao analisar os fundamentos e os fins da ação, parte-se das grandes áreas de reflexão da ética, estética, política, antropologia etc., a fim de compreender as formas de agir nos campos da moral, da arte, do exercício do poder, da técnica, da magia etc. Vale destacar também que a separação dos três conceitos é didática, uma vez que se encontram imbricados: só para dar um exemplo, a obra de arte é do domínio do fazer humano, mas também depende da maneira pela qual o artista compreende o mundo, ao mesmo tempo que, para o fruidor, representa uma nova forma de conhecimento que amplia sua sensibilidade e imaginação. Além disso, na Filosofia prevalecem as discussões em torno dos juízos de valor, pelos quais, diante ―do que é‖ pergunta-se sobre o ―dever ser‖. Decorre daí o papel de crítica da cultura que lhe cabe. Citamos o historiador da Filosofia François Châtelet: Desde que há Estado – da cidade grega às burocracias contemporâneas –, a idéia de verdade sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles como testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês do século XVIII ao século XIX). Por conseguinte, a contribuição específica da Filosofia que se coloca ao serviço da liberdade, de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia, as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da pesquisa, da medicina, da família, da política, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la… O significado das competências específicas da Filosofia Ao contrário de longa tradição que persiste em considerar o Ensino Médio como o momento preparatório para o curso superior, mais do nunca enfatiza-se hoje em dia a necessidade de tomá-lo como etapa conclusiva. Além dos diversos motivos já alegados, da formação integral do sujeito humano e do cidadão, não há como desprezar a rapidez das transformações da sociedade e do mundo do trabalho, o que exige a ênfase de outro tipo de intenção pedagógica. Aliás, desde o Renascimento, Montaigne já advertia para esse engano 164 fatal na educação da crianças, ao se privilegiar as ―cabeças cheias‖ em detrimento de ―cabeças bemfeitas‖, mote retomado por educadores contemporâneos, como Edgard Morin e Philippe Perrenoud. Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências gerais. Ou seja, mais do ensinar, deve ―fazer aprender‖, uma vez que não se pode prever as modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais diversos campos da cultura. O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos programáticos, e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais inéditas e complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes acumulados se não se transformassem em condições para serem aplicadas no trabalho, no convívio da família, no lazer, nas mais diversas situações que exijam reconfigurações dos conhecimentos e improvisação no agir? São diferentes as seleções de competências a serem privilegiadas na educação, tal como é advertido no documento geral sobre as áreas. A seguir abordaremos as competências específicas da Filosofia, de acordo com as escolhas sugeridas pelos PCNEM. Representação e comunicação Ler textos filosóficos de modo significativo. Lembramos aqui a citação de Kant, inúmeras vezes repetida: ―não se ensina Filosofia, ensina-se a filosofar‖, o que nos convence a evitar a abordagem tradicional de oferecer aos alunos a herança filosófica de maneira passiva, como um produto acabado. Para apropriar-se de fato do texto filosófico, o aluno deverá compreender o processo de um modo de pensar peculiar que só é possível pelo desenvolvimento da competência discursivo-filosófica. Como já antevimos nos itens anteriores, o acesso ao conteúdo filosófico se faz de maneira reflexiva, buscando os pressupostos dos conceitos e exercitando a capacidade de problematização. Para tanto, há que se utilizar da leitura de textos dos filósofos e, mesmo quando o professor preferir desenvolver um programa a partir de temas, não se deve deixar de tomar a história da Filosofia como referencial constante das reflexões, a fim de evitar equívocos e a banalização do conhecimento filosófico (PCNEM, 1999, p.335). Há várias formas de se desenvolver a leitura analítica, mas em geral é importante fazer com que o aluno comece pela análise temática, ocasião em que aprende a ―ouvir o que o autor tem a dizer‖. Esses passos iniciais são importantes para estimular a disciplina intelectual, ao aprender a identificar as idéias centrais, o rigor dos conceitos, a articulação da argumentação, a coerência da exposição, para só então enveredar pelos aspectos denotativos 165 do texto e exercitar a análise interpretativa e a posterior problematização. Resta lembrar que a apropriação do processo do filosofar é uma maneira de construir uma forma de pensar autônoma, em última análise, um pressuposto decisivo para o exercício da cidadania. Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros. À medida que o aluno desenvolve a competência de realizar uma leitura significativa dos textos filosóficos, o professor pode ampliar esse processo oferecendo outros textos de diferentes estruturas e registros, tais como artigo de jornal, poesia, romance, programa de televisão, filme, peça teatral, música, pintura, propaganda, texto científico etc. É indispensável respeitar a especificidade de cada estrutura discursiva e que o aluno entenda essa abordagem não como forma superior de analisar aquelas produções culturais, e sim para experienciar ―um olhar especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem sob as vistas‖. […] ―De qualquer modo, o desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências culturais em geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências filosóficas e diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de uma leitura transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida em que os diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede‖ (PCNEM, 1999, pp. 338-339). (grifos nossos) Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo. É importante garantir ao aluno o espaço para a produção própria. Esse espaço começa na sala de aula, quando formula questões ou participa de trabalhos em grupo e de debates. Dessa forma, exercita, pela expressão oral, a organização do seu pensamento assim como o respeito pela palavra do outro. Além desses procedimentos, é preciso que seja estimulado a desenvolver a expressão escrita, por meio da dissertação filosófica. Segundo Folscheid e Wunenburger: A dissertação filosófica, com efeito, é o exercício filosófico por excelência. Não há melhor lugar para exercitar nosso pensamento sobre um tema preciso, para analisar e produzir conceitos articulando-os dentro e através de um discurso, não há outro meio de colocarnos na necessidade de ter de construir uma problemática. Em suma, a dissertação, em filosofia, é insubstituível, essencial: tem a ver com a essência do ato de filosofar. Bem sabemos das dificuldades iniciais de nossos alunos diante do desafio de estruturar 166 a espinha dorsal de um texto, de organizar o raciocínio e fundamentar suas idéias com argumentos mais precisos do que os usados no calor dos debates. No entanto, essas dificuldades iniciais precisam ser vencidas, porque o trabalho dissertativo é o coroamento do processo que começa com leituras dos textos, fichamentos, pesquisas, debates, e configura-se como a condição da autonomia intelectual do educando. Embora se apresente como trabalho individual, a dissertação deve ser compreendida como o amadurecimento das discussões, não só das que se iniciam com os autores dos textos, como daquelas que se ampliaram com os colegas de classe. E por fim, a dissertação deve retornar ao aluno para ser comentada, não só pelo professor, mas pelo grupo, no esforço dialógico de avaliação intersubjetiva no qual são verificados o rigor conceitual do texto e a coerência da exposição. Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição face a argumentos mais consistentes. O esforço de dialogar com o autor do texto analisado se estende em outros procedimentos igualmente importantes, tal como o debate em sala de aula, que estimula a relação dialógica, por excelência intersubjetiva – lembramos que a Filosofia nasceu na praça pública, como resultado da discussão dos temas de interesse da cidade. Destacando o aspecto de imbricamento entre conteúdo e competências, o debate não deve ser meramente opiniático, mas deve estar alavancado a partir dos textos analisados e dos conteúdos examinados, ainda quando extrapole esse ponto de partida. Educar para o pensar também é, portanto, dar condições para que os jovens superem o egocentrismo infantil, procedendo à descentração da inteligência e da afetividade. De fato, segundo Piaget, a reflexão é uma deliberação interior, uma discussão que se tem consigo mesmo, enquanto a discussão, por sua vez, é uma reflexão exteriorizada. Não por acaso, aprender a pensar e a debater é contribuir para a construção da sociedade pluralista, que supõe o sujeito autônomo e crítico e que, ao mesmo tempo, é capaz de reconhecer a alteridade, aceitar as diferenças, buscar o consenso pelo poder da palavra, mas reconhecendo o dissenso como expressão da sociedade democrática, que não é homogênea. Investigação e compreensão Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais. Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do 167 ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica, tentando dar conta da avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas inúmeras disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma aprendizagem fragmentada da realidade. A educação contemporânea tem buscado superar essa distorção, restabelecendo os elos que unem os diversos saberes. Mesmo no ensino superior, ainda que não se recuse a necessária formação de especialistas, já existem experiências na criação de centros transdisciplinares encarregados de discutir a interação e a integração dos saberes, numa abordagem holística. A propósito da necessidade de se tornar a interdisciplinaridade um eixo privilegiado do Ensino Médio, a ser encarada como desafio para qualquer professor, não há como negar a vocação da Filosofia para a visão de conjunto, para a percepção da totalidade: Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando for o caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos,programas de estudo etc. […] Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc.), das Ciências Humanas (o a priori lingüísticocultural, as estruturas discursivas críticas, a enunciação histórico-hermenêutica etc.) e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas poéticas, a enunciação estéticoexpressiva etc.) (PCNEM, 1999, p. 342). Contextualização sociocultural Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica. No processo de trabalhar com textos especificamente filosóficos, com outras estruturas e outros registros e no esforço de articular os conhecimentos filosóficos e outras expressões culturais, assim como de debater e de elaborar dissertações, o aluno aprende a examinar o texto como algo que não se encontra fechado em si mesmo, mas aberto a interpretações e a problematizações diversas. De fato, a habilidade hermenêutica supõe a contextualização dos conhecimentos filosóficos sob diversos aspectos: 1. No plano da origem específica desses conhecimentos, já que o aluno aprende a situá-los no sistema conceptual de onde surgiram, interpretando-os com a perspectiva de seu autor e no contexto em que surgiu esse pensamento. 2. No plano pessoal-biográfico, porque, se de início o aluno se afasta da perspectiva 168 pessoal a fim de examinar o texto com isenção, depois retorna ao seu próprio contexto, ou seja, ele parte de sua vivência para o abstrato e deste retorna, enriquecendo sua experiência pessoal. 3. No entorno sócio-histórico-cultural, pelo qual o aluno consegue ―identificar com clareza sua posição; lidar melhor com a complexidade e a pluralidade de discursos, valores e coisas que parecem se amontoar desordenadamente; reconhecer o trabalho social como esforço comum necessário para a construção da vida compartilhada, além de reconhecer a injustiça e a inumanidade na distribuição dos frutos desses esforço histórico coletivo; trazer à tona e apontar o arsenal da crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em normas morais injustas; na medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos inautênticos […] identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis […] descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou universalmente‖. (PCNEM, 1999 pp. 344-345). 4. No horizonte da sociedade científico-tecnológica, os conhecimentos filosóficos podem levar o aluno a descobrir em que contextos essas forças produtivas foram plasmadas, que poder possuem e ―que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a alteração globalizada das relações entre capital e trabalho‖ (PCNEM, 1999, p. 345). A articulação dos conceitos estruturadores com as competências específicas da Filosofia Dissemos no item anterior que as competências permitem mobilizar conceitos, relações e procedimentos. E também consideramos a possibilidade de cada professor escolher o conteúdo programático centrado em temas filosóficos, ou na história da Filosofia, desde que, no primeiro caso, não se perca a história da Filosofia como referencial permanente. Resta acrescentar que esse recurso da história da Filosofia não se reduz à simples exposição histórica de fatos e idéias, mas representa o retorno à gênese dos conceitos e à sua reinterpretação até compreendê-los a partir do contexto atual. Por exemplo, no eixo temático ―Relações de poder e democracia‖, que iremos sugerir no próximo item, o conceito de democracia desdobra-se a partir dos três citados conceitos estruturadores: o que é democracia, que tipo de ação constitui a política democrática, o que conhecemos a respeito dos diversos conceitos de democracia. Nesse sentido, a discussão sobre o que hoje entendemos por democracia, pode passar pelo exame do que foi a 169 democracia na Antiguidade grega, pela concepção de Montesquieu, no século XVIII, a respeito da divisão dos três poderes, oportunidade que permite discutir as formas pelas quais o poder Executivo, nas ditaduras, se sobrepõe ao Legislativo e ao Judiciário, ou ainda quando, mesmo sob a vigência do Estado de direito, o Executivo exagera nas medidas provisórias, o que também provoca desequilíbrio entre os três poderes. Pode-se também rever como Rousseau elaborou o conceito de soberania do povo e de democracia direta, para em seguida, a partir do contexto atual, em que predominam as democracias representativas, discutir os artigos da Constituição Brasileira de 1988, na qual recursos como plebiscito, referendo e iniciativa popular significam a incorporação de mecanismos de democracia semi-direta. Igualmente, a análise de vários tipos de organizações não-governamentais (ONG) dão elementos para a percepção de como a democracia é uma policracia, em que o poder não se concentra, mas se distribui pelos cidadãos, cuja atuação participativa pode ir muito além do ato da escolha do representante pelo voto. É dessa forma que se pretenderealizar a contextualização dos conteúdos filosóficos. No nível da própria vivência da comunidade escolar, as assembléias criadas para discutir conflitos internos torna-se um bom exercício do diálogo, da argumentação, do respeito pelas posições divergentes, na busca da colocação de problemas e no esforço comum de encontrar para eles soluções coletivas. Dessa forma, exercita-se a competência de representação e comunicação, sobretudo por meio do debate, pela defesa de pontos de vista baseada em argumentos que poderão ser mudados em face a argumentos mais consistentes. É bom lembrar que, ainda dentro desse item das competências, já falamos sobre a importância de o próprio aluno produzir por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo. Em outros níveis de articulação, pode-se verificar o que ocorre nas demais expressões no universo da cultura simbólica, tal como na arte, em que a democracia permite a livre criatividade, enquanto as ditaduras se ocupam de vigiar e punir com a censura. Ou ainda, como a sociedade democrática não significa apenas garantir o formalismo do direito e das instituições livres, mas exige a efetiva distribuição igualitária dos bens produzidos, desde o saber científico-tecnológico até as riquezas materiais, a fim de garantir a todos o direito à informação e ao usufruto dos bens produzidos. Sob esse aspecto, busca-se desenvolver a competência de investigação e compreensão, pela articulação de conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos nas Artes e de outras produções culturais. Evidentemente, estamos apenas dando exemplos de conteúdos programáticos e de suas relações com as competências, cabendo ao professor seguir outros caminhos, de acordo com sua formação e seus interesses. O importante é mostrar que, dessa forma, procedem-se a 170 diversas articulações dos conceitos com as competências específicas da Filosofia. Sugestões de organização de eixos temáticos em Filosofia Apresentamos, a seguir, os eixos temáticos, para que o professor elabore posteriormente sua própria organização programática, tendo em vista o perfil de seus alunos e o tempo de que dispõe para as aulas de Filosofia. Lembramos o que já foi dito na apresentação geral deste documento: ―As sugestões temáticas que serão apresentadas – derivadas que são dos conceitos estruturadores e das competências sugeridas para a área em geral e para cada disciplina que a compõe em particular – não devem ser entendidas como listas de tópicos que possam ser tomadas por um currículo mínimo, porque é simplesmente uma proposta, nem obrigatória nem única, de uma visão ampla do trabalho em cada disciplina.‖. Eixos temáticos Relação de poder e democracia Temas Subtemas 1 A democracia grega . A ágora e a assembléia: igualdade nas leia e no direito à palavra .Democracia direta: formas contemporâneas possíveos de participação da sociedade civil . Antecedentes: - Montesquieu e a teoria dos três poderes -Rousseau e a soberanis do povo .O confronto entre as idéias liberais e o socialismo .O conceito de cidadania .Os totalitarismos de direita e esquerda .Fundamentalismos religiosos e a política contemporânea 2 A democracia contemporânea 3. O avesso da democracia Temas 1. Autonomia e liberdade 2. As formas da alienação moral 3. Ética e política Temas 1. Filosofia, mito e senso comum A construção do sujeito moral Subtemas .Descentração do indivíduo e o reconhecimento do outro . As várias dimensões da liberdade )ética, econômica, política) . Liberdade e determinismo .O individualismo contemporâneo e a recusa do outro .As condutas massificadas na sociedade contemporânea .Maquiavel: as relações entre moral e política .Cidadania: os limites entre o público e o privado O que é Filosofia Subtemas . Mito e Filosofia: o nascimento da Filosofia na Grécia .Mitos contemporâneos .Do senso comum ao pensamento filosófico 171 2. Filosofia, ciência e .Características do método científico tecnocracia .O mito do cientificismo: as concepções reducionistas da ciência .A tecnologia a serviço de objetivos humanos e os riscos da tecnocracia .A bioética 3. Filosofia e estética .Os diversos tipos de valor .A arte como forma de conhecer o mundo .Estética e desenvolvimento da sensibilidade e imaginação 172 ANEXO 13 ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO 5 Volume 3 - Ciências Humanas e suas Tecnologias Conhecimentos de Filosofia INTRODUÇÃO A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é condição para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando. No entanto, mesmo sem o status de obrigatoriedade, a Filosofia, nos últimos tempos, vem passando por um processo de consolidação institucional, correlata à expansão de uma grande demanda indireta, representada pela presença constante de preocupações filosófi cas de variado teor. Chama a atenção um leque de temas, desde reflexões sobre técnicas e tecnologias até inquirições metodológicas de caráter mais geral concernentes a controvérsias nas pesquisas científicas de ponta, expressas tanto em publicações especializadas como na grande mídia. Também são prementes as inquietações de cunho ético, que são suscitadas por episódios políticos nos cenários nacional e internacional, além dos debates travados em torno dos critérios de utilização das descobertas científicas. Situação análoga foi detectada em outras instâncias de discussão pública e mobilização social, como o evidenciam, por exemplo, os debates relativos à conduta de veículos de comunicação, tais como televisão e rádio. Ainda que, na grande maioria dos casos, não se possa falar de uma conceituação rigorosa, não se pode ignorar que nessas discussões estão envolvidos temas, noções e critérios de ordem fi losófi ca. Isso signifi ca que há uma certa demanda da sociedade por uma linha de refl exão que forneça instrumentos para o adequado equacionamento de tais problemas. Uma prova disso é que mesmo a grande mídia não se furta ao aproveitamento dessas oportunidades para levar a público debates de idéias no nível filosófico, ainda que freqüentemente de modo superficial ou unilateral. O tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi o, pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são possíveis se 5 O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de Filosofia 173 forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos. Ademais, pensar a disciplina Filosofia no ensino médio exige também uma discussão sobre os cursos de graduação em Filosofi a, que preparam os futuros profissionais, e da pesquisa filosófica em geral, uma vez que, especialmente nessa disciplina, não se pode dissociá-la do ensino, da produção filosófica e da transmissão do conhecimento. Considerando a refl exão acerca da Filosofi a no ensino médio, cabe mencionar uma difi culdade peculiar: trata-se da reimplantação de uma disciplina por muito tempo ausente na maioria das instituições de ensino, motivo pelo qual ela não se encontra consolidada como componente curricular dessa última etapa da educação básica quer em materiais adequados, quer em procedimentos pedagógicos, quer por um histórico geral e sufi cientemente aceito. Tendo deixado de ser obrigatória em 1961 (Lei no 4.024/61) e sendo em 1971 (Lei nº 5.692/71) excluída do currículo escolar ofi cial, criou-se um hiato em termos de seu amadurecimento como disciplina. E embora na década de 1990 (Lei nº 9.394/96) se tenha determinado que ao fi nal do ensino médio o estudante deva ―dominar os conteúdos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖ (artigo 36), nem por isso a Filosofia passou a ter um tratamento de disciplina, como os demais conteúdos, mantendo-se no conjunto dos temas ditos transversais. Assim, a idéia de rediscutir os parâmetros curriculares para a disciplina traz novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes curriculares do ensino médio, e, com eles e outras iniciativas, a filosofia pode e deve retomar seu lugar na formação de nossos estudantes. Respeitada a diversidade própria dos níveis de ensino, vemos desenhar-se, sem solução de continuidade e em todo o país, um padrão elevado e comum tanto para o ensino de Filosofi a como para a formação de docentes, superando- se progressivamente a antiga objeção de que por ausência de profissionais qualificados seria desastrosa a introdução da Filosofia no ensino médio. Aqui, entre outros motivos, a qualificação desejada para nossos profissionais decorre, em grande medida, da ampliação e da melhoria dos cursos de graduação e da clara ampliação da rede de pós-graduação, com a existência de quase trinta programas de pós-graduação em Filosofi a em todo o país. Um ponto central, cuja relevância talvez escape a áreas que já o têm resolvido, é a obrigatoriedade do ensino de Filosofi a. Muitas das ambigüidades dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) anteriores resultam da indefinição, que consiste em apontar a necessidade da Filosofi a, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas condições curriculares. A afirrmação da obrigatoriedade, inclusive na forma da lei, torna-se essencial para qualquer 174 debate interdisciplinar, no qual a Filosofia nada teria a dizer, não fora também ela tratada como disciplina, ou seja, como conjunto particular de conteúdos e técnicas, todos eles amparados em uma história rica de problematização de temas essenciais e que, por conseguinte, exige formação profi ssional específi ca, só podendo estar a cargo de profi ssionais da área. Caso contrário, ela se tornaria uma vulgarização perigosa de boas intenções que só podem conduzir a péssimos resultados. Cabe insistir na centralidade da História da Filosofi a como fonte para o tratamento adequado de questões filosóficas. Com efeito, não realizamos no ensino médio uma simplificação ou uma mera antecipação do ensino superior e sim uma etapa específica, com regras e exigências próprias, mas essas só podem ser bem compreendidas ou satisfeitas por profi ssionais formados em contato com o texto fi losófi co e, desse modo, capazes de oferecer tratamento elevado de questões relevantes para a formação plena dos nossos estudantes. Como sabemos, uma simples didática (mesmo a mais animada e aparentemente crítica) não é por si só filosófica. Não basta então o talento do professor se não houver igualmente uma formação fi losófi ca adequada e, de preferência, contínua. Isto é, pois, parte essencial desta discussão. Ser capaz de valer-se de elementos do cotidiano pode tornar rica, por exemplo, uma aula de Física, mas não torna um discurso sobre a natureza uma aula de Física, no sentido disciplinar que estamos dispostos, coletiva e institucionalmente, a reconhecer. Da mesma forma, a utilização de valorosos materiais didáticos pode ligar um conhecimento filosófico abstrato à realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a simples alusão a questões éticas não é ética, nem fi losofi a política a mera menção a questões políticas, não sendo o desejo de formar cidadãos o suficiente para uma leitura filosófica, uma vez que tampouco é prerrogativa exclusiva da Filosofia um pensamento crítico ou a preocupação com os destinos da humanidade. Com isso, a boa formação em Filosofi a é, sim, condição necessária, mesmo quando não suficiente, para uma boa didática filosófica. Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosofia não a pode desejar como um pequeno luxo, um saber supérfl uo que venha a acrescentar noções aparentemente requintadas a saberes outros, os verdadeiramente úteis. A Filosofia cumpre, afi nal, um papel formador, articulando noções de modo bem mais duradouro que o porventura afetado pela volatilidade das informações. Por isso mesmo, compreender sua importância é também conceder-lhe tempo. De modo específico, importa atribuir-lhe carga horária sufi ciente à fixação do que lhe é próprio. Nesse sentido, propõe-se um mínimo de duas horas-aula semanais para a disciplina, apontando ademais que deva ser ministrada em mais de uma série do ensino médio. Não desconhecemos, porém, que essas questões envolvem diferenças 175 regionais e são subordinadas a distintas correlações políticas, de sorte que deixamos essa proposição como um horizonte a ser considerado nas formulações dos diversos projetos pedagógicos. Outra decorrência da obrigatoriedade da Filosofia é, por conseguinte, uma refl exão sobre sua especifi cidade e seus pontos de contato com outras disciplinas, cabendo ressaltar que, a nosso juízo, a Filosofi a não se insere tão-somente na área de ciências humanas. A compreensão da Filosofia como disciplina reforça, sem paradoxo, sua vocação transdisciplinar, tendo contato natural com toda ciência que envolva descoberta ou exercite demonstrações, solicitando boa lógica ou reflexão epistemológica. Da mesma forma, pela própria valorização do texto filosófico, da palavra e do conceito, verifica-se a possibilidade de estabelecer proveitoso intercâmbio com a área de linguagens. Além de contribuir para a integração dos currículos e das outras disciplinas, a afi rmação da Filosofia como componente curricular do ensino médio traz à tona questões inerentes à própria disciplina, tais como: a concepção teórica do ensino de Filosofia como Filosofia; as abordagens metodológicas específi cas; e, sobretudo, os conteúdos que podem estruturar o ensino. Os PCN vigentes para a disciplina, assim como os anteriores, sofrem da ambigüidade que pretenderam curar e muitas vezes oscilam entre enunciar pouco e enunciar excessivamente. Assim, ao lado de uma cautela excessiva, podemos encontrar passos por demais doutrinários que terminam por roubar à Filosofia um de seus aspectos mais ricos, a saber, a multiplicidade de perspectivas, que não deve ser reduzida a uma voz unilateral. Mostrou-se, pois, necessária uma reformulação que evite imposições doutrinárias, mesmo quando resultantes das melhores intenções. Um currículo de Filosofia deve contemplar a diversidade sem desconsiderar o professor que tem suas posições, nem impedir que ele as defenda. Essa honestidade é inclusive condição de coerência. Ao mesmo tempo, a orientação geral em um currículo de Filosofia pode tão-somente ser filosófica, e não especifi camente kantiana, hegeliana, positivista ou marxista. A cautela filosófica é ainda mais necessária nesse nível de ensino, no qual posturas por demais doutrinárias podem sufocar a própria possibilidade de diálogo entre a Filosofia e as outras disciplinas, cabendo sempre lembrar que as tomadas de posições, mesmo as politicamente corretas, não são ipso facto filosoficamente adequadas ou propícias ao ensino. Nesse debate, a noção de competência não pode ser apresentada como solução mágica para as difi culdades do ensino, mas também não constitui obstáculo intransponível. Afastouse assim tudo que nesse termo possa sugerir competição ou adequação fl exível ao mercado de trabalho, ressaltando-se, primeiro, que a definição de competência não pode ser exterior à 176 própria disciplina, e, segundo, que a competência pode realizar-se no interesse de contato com nossa tradição e nossa especificidade filosófica. Nesse sentido, o currículo desejado se articula com o perfil de profissional que deve ser formado nos cursos de graduação em Filosofia, cujas habilidades e competências são bem definidas em documento da comissão de especialistas no ensino de Filosofia da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério da Educação. Essas considerações iniciais reproduzem, em parte, o Relatório das Discussões sobre as Orientações Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia, resultante de uma série de seminários regionais e de um seminário nacional realizados em 2004 sob a coordenação do Departamento de Políticas de Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do Ministério da Educação. Esse texto é uma das peças institucionais que subsidiam o presente documento, dando-lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parâmetros Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia, as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia e a Portaria das Diretrizes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2005 para a Área de Filosofia. O processo de redação deste documento coincidiu com um novo quadro institucional para a disciplina Filosofia. Em primeiro lugar, os cursos de graduação em Filosofia passaram a ser submetidos à avaliação institucional, tendo sido nomeada uma comissão para elaborar os critérios para a futura elaboração de provas para o Enade 2005 da área de Filosofia. Os trabalhos dessa comissão certamente contribuíram para o amadurecimento das discussões sobre a composição da disciplina para o ensino médio, na medida em que se afirmaram algumas posições acerca da graduação e das competências esperadas do profissional formado nos cursos de licenciatura em Filosofia. A primeira decisão importante da comissão foi a de não separar, no momento da avaliação, o bacharelado e a licenciatura em Filosofia, uma vez que, como bem rezam as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia, ―ambas as habilitações devem oferecer substancialmente a mesma formação básica, em termos de conteúdo e de qualidade, com uma sólida formação de História da Filosofia, que capacite para a compreensão e a transmissão dos principais temas, problemas, sistemas filosóficos, assim como para a análise e a reflexão crítica da realidade social em que se insere‖. Em segundo lugar, decidiu-se que a avaliação de cursos de graduação em Filosofi a deve tomar como eixo central o currículo mínimo composto pelas cinco matérias básicas: História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética, Lógica e Filosofia Geral: Problemas Metafísicos. Enfatizando o papel da história da filosofia e das demais disciplinas básicas, a comissão indicou os pontos centrais da avaliação do profi 177 ssional que irá atuar com a citada disciplina. Com isso, concorda-se com a posição expressa nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia de que o elenco de tais disciplinas tem permitido aos melhores cursos do país um ensino flexível e adequado. Ao lado disso, tomam corpo em todo o país as discussões acerca da formação do professor de Filosofi a no ensino médio, especialmente em função dos impactos causados nos cursos de graduação pela nova legislação para as licenciaturas (CNE. Resolução CNE/CP 2/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de março de 2002. Seção 1, p. 9). A nova legislação estabelece, em seu Artigo 1o, 400 horas de prática como componente curricular e 400 horas de estágio curricular supervisionado. Tendo em conta as dificuldades de se integralizar tal carga horária sem perder de vista a formação básica em conteúdo e a qualidade da formação do profissional da área (formação que não deve diferenciar, substancialmente, sob esse aspecto, o bacharel e o licenciado), é possível afirmar que a preparação específica de atividades e a seleção de material didático para o ensino médio podem e devem ser consideradas quando da integralização curricular, orientando as atividades práticas previstas tanto em ofi cinas de pesquisa e produção de material didático como em sua aplicação durante o estágio supervisionado. Portanto, o presente documento busca sistematizar os resultados de uma ampla discussão em curso na área de Filosofia, desde a caracterização da disciplina até a preparação do profi ssional que irá atuar com ela, oferecendo subsídios para a definição de temas e conteúdos a serem trabalhados, bem como do material didático a ser confeccionado. Ao evitar estabelecer de antemão os conteúdos ou uma linha a ser seguida e enfatizar ainda a especificidade da Filosofia em relação às outras disciplinas, bem como a necessidade de um ensino de qualidade no ensino médio, destaca-se o respeito tanto ao profissional da área com as peculiaridades de sua formação quanto ao caráter plural e diverso da Filosofia. Tem-se aqui como pressuposto que não existe uma Filosofia, mas Filosofias, e que a liberdade de opção dentro de seu universo não restringe seu papel formador. IDENTIDADE DA FILOSOFIA A pergunta acerca da natureza da fi losofi a é um primeiro e permanente problema filosófico. Não podendo ser solucionado aqui mais que parcialmente (nem devendo ser solucionado integralmente em nenhum lugar), cabe-nos, porém, a tarefa de delinear alguns elementos para uma contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no ensino médio. Tomando-se como ponto de partida o já mencionado Inciso III do § 1o do Artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394 de 20/12/1996), no qual se afi rma que o educando ao fi nal 178 do ensino médio deve demonstrar o ―domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖, faz-se necessária alguma compreensão, mesmo provisória e descritiva, do que se pode entender por ―Filosofia‖, de modo que, em seguida, a possamos também relacionar com uma possível compreensão do termo ―cidadania‖ e seu importante exercício. O termo ―Filosofi a‖ recobre muitos sentidos, mesmo em sua prática profissional. Em certa medida, contra uma ingênua cobrança lógica de univocidade, a ambigüidade não é, em seu caso, um malefício, resultando de uma sua exigência íntima. Se a questão ―o que é Física?‖ não é exatamente um problema físico, a questão ―o que é Filosofia?‖ é talvez um primeiro e recorrente problema filosófico, e a ela cada fi lósofo sempre procurará responder baseado nos conceitos pelos quais elabora seu pensamento. Não há então como controlar universalmente tal ambigüidade seja por decreto ou por alguma definição restritiva. Não obstante, vale observar que no interior de cada pensamento a exigência de univocidade volta a impor-se. É comum o embaraço que sentimos diante da pergunta sobre o sentido da Filosofia. De certa forma, é como se nos indagassem acerca de algo que não está nem pode estar bem resolvido. Não fugimos aqui a uma resposta. Ao contrário, indicamos explicitamente, em primeiro lugar, que nenhuma pode ser ingênua, uma vez que cada resposta está comprometida com pontos de vista eles próprios filosóficos. Assim, responder à pergunta é já filosofar, sendo perigosa e enganadora a inocência. Uma resposta aparentemente universal se situa logo em um campo particular (no aristotelismo, no platonismo, no marxismo, etc.), sendo a trama que lhe confere sentido um misto de autonomia do pensador e de instalação em um contexto histórico. Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do fi losofar, não importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos localizar o que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi lósofos sopesar os conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-comuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reflexão. Pretende decerto ser um discurso consciente das coisas, como a ciência; entretanto, diferencia-se dessa por pretender ainda ser um discurso consciente de si mesmo, um discurso sobre o discurso, um conhecimento do conhecimento. Não pergunta simplesmente se isso ou aquilo é verdadeiro; antes indaga: o que pode ser verdadeiro? Ou ainda, o que é a verdade? Por isso, a Filosofia é corrosiva mesmo se reverente, pois até a 179 covardia ou a servidão que porventura algum filósofo defenda exigirá considerandos e passará pelo crivo da linguagem. Se a Filosofia não é uma ciência (ao menos não no sentido em que se usa essa palavra para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos abstratos dos fenômenos) e tampouco uma das belas-artes (no sentido poético de ser uma atividade voltada especifi camente para a criação de objetos concretos), ela sempre teve conexões íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das artes. Ao dirigir o olhar para fora de si, no entanto, a Filosofia tem a necessidade, ao mesmo tempo, de se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de todos os outros saberes. Antes de qualquer coisa, diante da grande variedade e da diversidade dos modos e das correntes de pensamento, não se pode perder de vista que é possível falar em Filosofia e não apenas em Filosofias, nem se pode esquecer que uma maneira de filosofar se relaciona com todas as outras de um modo peculiar. Alguém acaso escolhe uma maneira de fi losofar porque a considera correta e heuristicamente proveitosa do ponto de vista da sua fertilidade conceptual? Nesse sentido, quando os primeiros pensadores apontaram na direção da verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros, possibilidades de pensar que supostamente trariam verdade à razão ou, se preferirmos, fariam a razão desvelar a essência por trás da aparência. E embora hoje ninguém pareça ter o privilégio particular de indicar qual o critério correto e adequado para a razão ou a verdade, é também correto que nenhuma Filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão com que veio ao mundo sem contradizer exatamente sua procura por enxergar para além das aparências. Caso nos coloquemos numa perspectiva externa (digamos, a de um observador das atividades culturais), podemos considerar que tudo o que há são filosofias. Entretanto, ao examinarmos a questão de um ponto de vista interno (a saber, a perspectiva do próprio agente social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica), então há filosofia. Existe ademais um critério geral para distinguir, por exemplo, uma ―crença‖ de uma Filosofia, porquanto a filosofia, ao contrário da mera crença, apresenta-se fundamentada em boas razões e argumentos. E a prática daquele agente social poderá ser considerada filosófica quando justificada. À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de problemas herdados da grande tradição cultural filosófica, somam-se temas e problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo-se em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também verdade que essa dispersão discreta de um filosofar não nos pode impedir de reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica 180 enquanto expressa, sobretudo, em sua natureza reflexiva. Independentemente de como determinada orientação filosófica estiver configurada, ela sempre resulta não tanto de uma investigação que tematiza diretamente este ou aquele objeto, mas, sobretudo, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como eles se nos tornam acessíveis. Mais do que o disposto à visão, a atividade filosófica privilegia um certo ―voltar atrás‖, um refletir por que a própria possibilidade e a natureza do imediatamente dado se tornam alvo de interrogação. Observadas assim as diferenças de intenção nas várias abordagens filosóficas, o conceito de reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que freqüentemente se confundem. Primeira: a reconstrução racional, quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que podem ser entendidas as lógicas, as teorias do conhecimento, as epistemologias e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicar teoreticamente um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras. Segunda: a crítica, quando a refl exão se volta para os modelos de percepção e de ação compulsivamente restritos pelos quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos, de sorte que, por um esforço de análise, a reflexão consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, em seu caráter propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de pesquisa do tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e todas as elaborações teóricas motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de uma ―falsa‖ consciência e de extrair disso conseqüências práticas. Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta ―que filosofia?‖ sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que considere justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiológica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina. Isso só tende a reforçar sua credibilidade como professor de Filosofia, uma vez que não lhe falta um padrão, um fundamento a partir do qual pode dar início a qualquer esboço de crítica. Por certo, há talvez Filosofias mais ou menos críticas sem que isso diminua a importância formadora e sempre algo corrosiva de todo filosofar. No entanto, independentemente da posição adotada (sendo pressuposto que o professor se responsabilize por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um e deve ser de todo diverso de uma doutrinação. Compreendendo a noção de ―Filosofia‖ desse modo, a um só tempo lábil e rigoroso, 181 devemos convir que a noção de ―cidadania‖ não escapa de opções filosóficas, não sendo assim um conceito unívoco, nem um mero ponto de partida fi xo e de todo estabelecido. Em verdade, tal noção aparece como um resultado de um processo filosófico, sendo ele mesmo travado por nossa reflexão. Em todo caso, conservando uma ampla margem para produtivas redefinições filosóficas, o termo torna-se mais um desafio para uma disciplina formadora e menos um conjunto de informações doutrinárias que decoraríamos como a um hino patriótico. Tendo em conta a necessidade de se esboçar alguma correlação entre conhecimentos de Filosofia e uma concepção de cidadania presente na legislação vigente, podemos tomar como ponto de partida o explicitado como cidadania nos documentos das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Assim, o Artigo 2º da Resolução CEB nº 3, de 26 de junho de 1998, reporta-nos aos valores apresentados na Lei nº 9.394, a saber: I. os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática; II. os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância recíproca. Tendo em vista a observância de tais valores, o Artigo 3o da mesma Resolução exortanos à coerência entre a prática escolar e princípios estéticos, políticos e éticos, a saber: I. a Estética da Sensibilidade, que deverá substituir a da repetição e padronização, estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade, bem como facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver com a diversidade, valorizar a qualidade, a delicadeza, a sutileza, as formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da sexualidade e da imaginação um exercício de liberdade responsável; II. a Política da Igualdade, tendo como ponto de partida o reconhecimento dos direitos humanos e dos deveres e direitos da cidadania, visando à constituição de identidades que busquem e pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o respeito ao bem comum, o protagonismo e a responsabilidade no âmbito público e privado, o combate a todas as formas discriminatórias e o respeito aos princípios do Estado de Direito na forma do sistema federativo e do regime democrático e republicano; III. a Ética da Identidade, buscando superar dicotomias entre o mundo da moral e o mundo da matéria, o público e o privado, para constituir identidades sensíveis e igualitárias no testemunho de valores de seu tempo, praticando um humanismo contemporâneo, pelo reconhecimento, pelo respeito e pelo acolhimento da identidade do outro e pela incorporação da solidariedade, da responsabilidade e da reciprocidade como orientadoras de seus atos na 182 vida profissional, social, civil e pessoal. Independentemente, neste momento, de qualquer avaliação acerca da concepção que se apresenta na legislação, cabe ressaltar, em primeiro lugar, que seria criticável tentar justificar a Filosofia apenas por sua contribuição como um instrumental para a cidadania. Mesmo que pudesse fazê-lo, ela nunca deveria ser limitada a isso. Muito mais amplo é, por exemplo, seu papel no processo de formação geral dos jovens. Em segundo lugar, deve-se ter presente, em função da própria legislação, que a formação para a cidadania, além da preparação básica para o trabalho, é a finalidade síntese da educação básica como um todo (LDB, Artigo 32) e do ensino médio em especial (LDB, artigo 36). Não se trata, portanto, de um papel particular da disciplina Filosofia, nesse conjunto, oferecer um tipo de formação que tenha por pressuposto, por exemplo, incutir nos jovens os valores e os princípios mencionados, nem mesmo assumir a responsabilidade pela formação para a solidariedade ou para a tolerância. Tampouco caberia a ela, isoladamente, ―o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico‖ (LDB, artigo 35, inciso III). Uma vez que é possível formar cidadãos sem a contribuição formal da Filosofi a, seria certamente um erro pensar que a ela, exclusivamente, caberia tal papel, como se fosse a única disciplina capaz de fazê-lo, como se às outras disciplinas coubesse o ensinamento de conhecimentos técnicos e a ela o papel de formar para uma leitura crítica da realidade. Esse é na verdade um papel do conjunto das disciplinas e da política pública voltada para essa etapa da formação. Não se trata, portanto, de a Filosofia vir a ocupar um espaço crítico que se teria perdido sem ela, permitindo-se mesmo um questionamento acerca de sua competência em conferir tal capacidade ao aluno. Da mesma maneira, não se pode esperar da Filosofia o cumprimento de papéis anteriormente desempenhados por disciplinas como Educação Moral e Cívica, assim como não é papel da Filosofia suprir eventual carência de um ―lado humanístico‖ na formação dos estudantes. A pergunta que se coloca é: qual a contribuição específi ca da Filosofia em relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação? A resposta a essa questão destaca o papel peculiar da filosofia no desenvolvimento da competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de um modo bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofia e à sua tradição histórica. Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável 183 para o exercício da cidadania. Neste ponto, em que se procura a confluência entre a especifi cidade da Filosofia e seu papel formador no ensino médio, cabe enfatizar um aspecto peculiar que a diferencia de outras áreas do saber: a relação singular que a Filosofia mantém com sua história, sempre retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e sentido. Com efeito, se estudamos a obra teórica de um sociólogo como Weber ou Durkheim, dizemos estar fazendo teoria sociológica. Tão íntima, porém, é a relação entre a Filosofi a e sua história que seria absurdo dizer que estudando Kant ou Descartes estejamos fazendo algo como uma teoria filosófica, pois é na leitura de textos filosóficos que se constituem problemas, vocabulários e estilos de fazer simplesmente Filosofia. E isso se aplica tanto para a pesquisa em Filosofia quanto para seu ensino. Mais ainda, [...] não é possível fazer Filosofia sem recorrer a sua própria história. Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que os alunos pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou que mais preocupam o homem moderno sem oferecer-lhes a base teórica para o aprofundamento e a compreensão de tais problemas e sem recorrer à base histórica da reflexão em tais questões é o mesmo que numa aula de Física pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da lei da gravitação sem estudar Física, esquecendo-se de todas as conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforço e do trabalho monumental de Newton (NASCIMENTO, Milton, apud SILVEIRA, René, Um sentido para o ensino de Filosofi a no ensino médio, p. 142.) É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a sua história, em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno. Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode proporse ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do educando. OBJETIVOS DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO A Filosofia deve compor, com as demais disciplinas do ensino médio, o papel proposto 184 para essa fase da formação. Nesse sentido, além da tarefa geral de ―pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho‖ (Artigo 2º da Lei nº 9.394/96), destaca-se a proposição de um tipo de formação que não é uma mera oferta de conhecimentos a serem assimilados pelo estudante, mas sim o aprendizado de uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se ―com fl exibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores‖ (Artigo 36, Inciso II) – o que significa, mais que dominar um conteúdo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos de forma signifi cativa. A educação deve centrar-se mais na idéia de fornecer instrumentos e de apresentar perspectivas, enquanto caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um conhecimento útil não corresponde a um saber prático e restrito, quem sabe à habilidade para desenvolver certas tarefas. Há, com isso, uma importante mudança no foco da educação para o aluno, que, tomando como ponto de partida a sua formação ou em termos mais amplos a constituição de si, deve posicionar-se diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo uma ativa relação com eles e não somente apreendendo conteúdos. A Filosofia cumpre, afinal, um papel formador, uma vez que articula noções de modo bem mais duradouro que outros saberes, mais suscetíveis de serem afetados pela volatilidade das informações. Por conseguinte, ela não pode ser um conjunto sem sentido de opiniões, um sem-número de sistemas desconexos a serem guardados na cabeça do aluno que acabe por desencorajá-lo de ter idéias próprias. Os conhecimentos de Filosofia devem ser para ele vivos e adquiridos como apoio para a vida, pois do contrário difi cilmente teriam sentido para um jovem nessa fase de formação. Outro objetivo geral do ensino médio constante na legislação e de interesse para os objetivos dessa disciplina é a proposição de ―aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico‖ (Lei nº 9.394/96, Artigo 36, Inciso III). Embora se trate de uma idéia vaga, o aprimoramento como pessoa humana indica a intenção de uma formação que não corresponda apenas à necessidade técnica voltada a atender a interesses imediatos, como por exemplo do mercado de trabalho. Tratar-se-ia antes de um tipo de formação que inclua a constituição do sujeito como produto de um processo, e esse processo como um instrumento para o aprimoramento do jovem aluno. O objetivo da disciplina Filosofia não é apenas propiciar ao aluno um mero enriquecimento intelectual. Ela é parte de uma proposta de ensino que pretende desenvolver 185 no aluno a capacidade para responder, lançando mão dos conhecimentos adquiridos, as questões advindas das mais variadas situações. Essa capacidade de resposta deve ultrapassar a mera repetição de informações adquiridas, mas, ao mesmo tempo, apoiar-se em conhecimentos prévios. Por exemplo, caberia não apenas compreender ciências, letras e artes, mas, de modo mais preciso, seu significado, além de desenvolver competências comunicativas intimamente associadas à argumentação. Ademais, sendo a formação geral o objetivo e a condição anterior até mesmo ao ensino profissionalizante, o ensino médio deve tornar-se a etapa final de uma educação de caráter geral, na qual antes se desenvolvem competências do que se memorizam conteúdos. COMPETÊNCIAS E HABILIDADES EM FILOSOFIA Sob essa perspectiva formadora e de superação de um ensino meramente enciclopédico, desenvolveu-se a idéia de um ensino por competências. Tal concepção, no entanto, não pode ser admitida sem a denúncia da coincidência flagrante entre o perfil do educando esboçado e, por exemplo, certos documentos do Banco Mundial. A flexibilização aparece, então, sob outra luz, como competências que ―podem ser aplicadas a uma grande variedade de empregos e permitir às pessoas adquirirem habilidades e conhecimentos específi cos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho‖. (BANCO MUNDIAL, 1995, p. 63, apud SANTIAGO, Anna, Política educacional, diversidade e cultura: a racionalidade dos PCN posta em questão, p. 503). Nesse sentido, não se pode perder de vista que a mesma lógica que introduz o conhecimento filosófico por ser útil não é distinta da que o suprimiria por ser inconveniente. Em ambas as situações, o estudante é considerado instrumento, ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um instrumento. Deixaremos de lado, no entanto, neste momento, a afirmação sobre a coincidência entre o desenvolvimento de competências cognitivas e culturais e o que se busca na esfera da produção. Medir-se pelo que se espera é sempre delicado. Afinal, em uma sociedade desigual, pode esperar-se também o desigual, ameaçando um processo global de formação que deveria servir à correção da desigualdade. Afastado, porém, esse aspecto, a noção de competência parece vir ao encontro do labor filosófico. Com efeito, ela é sempre interior a cada disciplina, não havendo uma noção universal. Sendo da ordem das disposições, só pode ser lida e reconhecida à luz de matrizes conceituais específicas. Em certos casos, a competência mostrase na elaboração de hipóteses, visando à solução de problemas. Em outros casos, porém, uma vez que as competências não se desenvolvem sem conteúdos nem sem o apoio da tradição, a competência pode significar a recusa de soluções aparentes por recurso ao aprofundamento 186 sistemático dos problemas. A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de conteúdos filosóficos. Podemos constatar, novamente, uma convergência entre o papel educador da Filosofia e a educação para a cidadania que se postulou anteriormente. Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida que se traduzem em competências, não coincidem, necessariamente, com conteúdos, digamos, de ética e de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida, é a contribuição mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o desenvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica um tipo de leitura, envolvendo capacidade de análise, de inter pretação, de reconstrução racional e de crítica. Com isso, a possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os propósitos do texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por conseguinte, da cidadania. Considerando-se em especial a competência para a leitura, a pergunta que se impõe é, afinal, que competência de leitura não poderia ser desenvolvida, por exemplo, por um profissional da área de Letras? O que seria um olhar especificamente filosófico? Não basta dizer que é especificamente filosófico o olhar analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desenvolva um tal olhar. O fundamental aparece a seguir, conferindo a marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível que ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, o que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos dessa tradição, mesmo que não exclusivamente neles. Assim, quer como centro quer como 187 referência, para recuperar uma distinção do professor Franklin Leopoldo e Silva, a história da Filosofia (não como um saber enciclopédico ou eclético) torna-se pedra de toque de nossa especificidade. Uma indicação clara do que se espera do professor de Filosofia no ensino médio pode ser encontrada nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofi a e pela Portaria INEP nº 171, de 24 de agosto de 2005, que instituiu o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) de Filosofia, que também apresenta as habilidades e as competências esperadas do profi ssional responsável pela implementação das diretrizes para o ensino médio: a) capacitação para um modo especificamente filosófico de formular e propor soluções a problemas, nos diversos campos do conhecimento; b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade sócio-histórico-política; c) capacidade para análise, interpretação e comentário de textos teóricos, segundo os mais rigorosos procedimentos de técnica hermenêutica; d) compreensão da importância das questões acerca do sentido e da significação da própria existência e das produções culturais; e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a produção científica, artística, bem como com o agir pessoal e político; f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da cidadania e com o respeito à pessoa, dentro da tradição de defesa dos direitos humanos. Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso de Filosofia, seja ele licenciado ou bacharel, deve apresentar uma sólida formação em História da Filosofia, que o capacite a: a) compreender os principais temas, problemas e sistemas filosóficos; b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar com as ciências e as artes, e refletir sobre a realidade; c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente. Tendo presente, pois, a grande harmonia, ao menos nominal, entre os dois níveis de ensino, que se complementam e se solicitam, é de se esperar que um profissional assim formado possa desenvolver no aluno do ensino médio competências e habilidades similares. Essas competências, que terão importante papel formador no ensino médio, remetem novamente àquilo que torna o exercício da filosofia diferente do exercício das profissões das demais áreas do conhecimento, por mais que se assemelhem: o recurso à tradição filosófica. 188 Caso se tome, por exemplo, a primeira competência, a preparação para a ―capacitação para um modo filosófico de formular e propor soluções de problemas‖ implica que o professor de Filosofia tenha, em sua formação, familiaridade com a História da Filosofia – em especial, com os textos clássicos. Esse deve ser seu diferencial, sua especificidade. Essa é a formação que se tem nos cursos de Filosofia no país. Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o ponto de partida para a leitura da realidade é uma sólida formação em História da Filosofia, mesmo que não seja esse o ponto de chegada. É importante registrar que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e aprender a filosofar pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a ausência de formação em véus de suspeita competência argumentativa de pretensos livrespensadores. Há de se concordar, nesse ponto, com Sílvio Gallo: ―Filosofia é processo e produto ao mesmo tempo; só se pode filosofar pela História da Filosofia, e só se faz história filosófica da Filosofia, que não é mera reprodução‖. A idéia é importante, pois deixa de opor o conteúdo à forma, a capacidade para filosofar e o trato constante com o conteúdo filosófico, tal como se expressa em sua matéria precípua – o texto filosófico. Aceitando essa tensa relação entre conteúdo e forma, pode-se perceber a importância estratégica em se preservar a correlação entre as competências propostas para a graduação e aquelas que se esperam em relação ao estudante de ensino médio. O texto das diretrizes para os Cursos de Graduação em Filosofia é cuidadoso – defende um pensamento crítico, aponta para o exercício da cidadania e para a importância de uma técnica exegética que permita um aprofundamento da reflexão. Entretanto, não antecipa o resultado desse aprofundamento (no que se inclinaria de modo tendencioso) nem o descola da tradição filosófica em que pode lograr sua especifi cidade. De fato, no espírito desse documento, a tarefa do professor, ao desenvolver habilidades, não é incutir valores, doutrinar, mas sim ―despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente‖. O desafio é, então, manter a especifi cidade de disciplina, ou seja, o recurso ao texto, sem ―objetivá-lo‖. O profi ssional bem formado em licenciatura não reproduzirá em sala a técnica de leitura que o formou, transformando o ensino médio em uma versão apressada da sua graduação. Ao contrário, tendo sido bem preparado na leitura dos textos fi losófi cos, poderá, por exemplo, associar adequadamente temas a textos, cumprindo satisfatoriamente a difícil tarefa de despertar o interesse do aluno para a reflexão filosófica e de articular conceitualmente os diversos aspectos culturais que então se apresentam. Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competências e das habilidades a serem 189 desenvolvidas em Filosofi a em três grupos: 1º) Representação e comunicação: • ler textos filosóficos de modo significativo; • ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros; • elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo; • debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face de argumentos mais consistentes. 2º) Investigação e compreensão: • articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais. 3º) Contextualização sociocultural: • contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte da sociedade científi co-tecnológica. CONTEÚDOS DE FILOSOFIA Mais do que fornecer um roteiro de trabalho, este item apresenta sugestões de conteúdos para aqueles que futuramente venham a preparar um currículo ou material didático para a disciplina Filosofia no ensino médio. A lista que se segue tem por referência os temas trabalhados no currículo mínimo dos cursos de graduação em Filosofia e cobrados como itens de avaliação dos egressos desses cursos, ou seja, os professores de Filosofia para o ensino médio. Trata-se de referências, de pontos de apoio para a montagem de propostas curriculares, e não de uma proposta curricular propriamente dita. Dessa forma, não precisam todos ser trabalhados, nem devem ser trabalhados de maneira idêntica à que costumam ser tratados nos cursos de graduação, embora devam valer-se de textos filosóficos clássicos, cuidadosamente selecionados, mesmo quando complementados por outras leituras e atividades. Os temas podem ensejar a produção de materiais e dão um quadro da formação mínima dos professores, a partir da qual podemos esperar um diálogo competente com os alunos. Outros temas de feição assemelhada também podem propiciar a mesma ligação entre uma questão atual e uma formulação clássica, um tema instigante e o vocabulário e o modo de argumentar próprios da Filosofia, além de ligarem a formação específica do profissional que pode garantir a disciplinaridade da Filosofi a com a formação pretendida do aluno: 1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de Filosofia; 190 2) validade e verdade; proposição e argumento; 3) falácias não formais; reconhecimento de argumentos; conteúdo e forma; 4) quadro de oposições entre proposições categóricas; inferências imediatas em contexto categórico; conteúdo existencial e proposições categóricas; 5) tabelas de verdade; cálculo proposicional; 6) filosofia pré-socrática; uno e múltiplo; movimento e realidade; 7) teoria das idéias em Platão; conhecimento e opinião; aparência e realidade; 8) a política antiga; a República de Platão; a Política de Aristóteles; 9) a ética antiga; Platão, Aristóteles e fi lósofos helenistas; 10) conceitos centrais da metafísica aristotélica; a teoria da ciência aristotélica; 11) verdade, justificação e ceticismo; 12) o problema dos universais; os transcendentais; 13) tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimento divino; 14) teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino; 15) a teoria das virtudes no período medieval; 16) provas da existência de Deus; argumentos ontológico, cosmológico, teleológico; 17) teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidência; idéias; causalidade; indução; método; 18) vontade divina e liberdade humana; 19) teorias do sujeito na filosofia moderna; 20) o contratualismo; 21) razão e entendimento; razão e sensibilidade; intuição e conceito; 22) éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do sujeito; 23) idealismo alemão; filosofias da história; 24) razão e vontade; o belo e o sublime na Filosofia alemã; 25) crítica à metafísica na contemporaneidade; Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger; 26) fenomenologia; existencialismo; 27) Filosofia analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Círculo de Viena; 28) marxismo e Escola de Frankfurt; 29) epistemologias contemporâneas; Filosofi a da ciência; o problema da demarcação entre ciência e metafísica; 30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault; Deleuze. A seqüência de temas acima perpassa a História da Filosofia. Desse conjunto, o professor pode selecionar alguns tópicos para o trabalho em sala de aula. É importante ter em 191 mente que tal elenco propicia uma unidade entre o quadro da formação e o quadro do ensino, desenhando possíveis recortes formadores, agora bem amparados em um novo arranjo institucional. A Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, devendo ser preservada como tal e não como um somatório de idéias que o estudante deva decorar. Um tal somatório manualesco e sem vida seria dogmático e antifilosófico, seria doutrinação e nunca diálogo. Isto é, tornar-se-ia uma soma de preconceitos, recusando à Filosofia esse traço que julgamos característico e essencial. Desse modo, cabe ensinar Filosofia acompanhando ou, pelo menos, respeitando o movimento do pensar à luz de grandes obras, independentemente do autor ou da teoria escolhida. METODOLOGIA Para que o aluno desenvolva as competências esperadas ao final do ensino médio, não pode haver uma separação entre conteúdo, metodologia e formas de avaliação. Assim, uma metodologia para o ensino da Filosofia deve considerar igualmente aquilo que é peculiar a ela e o conteúdo específi co que estará sendo trabalhado. Seguem, então, algumas considerações sobre procedimentos metodológicos que podem ser úteis na prática acadêmica. Como se sabe, a metodologia mais utilizada nas aulas de Filosofia é, de longe, a aula expositiva, muitas vezes com o apoio do debate ou de trabalhos em grupo. A grande maioria dos professores adota os livros didáticos (manuais) ou compõe apostilas com formato semelhante ao do livro didático; mesmo assim, valem-se da aula expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos e de textos adequados. Muitas vezes, o trabalho limita-se à interpretação e à contextualização de fragmentos de alguns filósofos ou ao debate sobre temas atuais, confrontando-os com pequenos textos filosóficos. Há, ainda, o uso de seminários realizados pelos alunos, pesquisas bibliográfi cas e, mais ocasionalmente, o uso de música, poesia, literatura e filmes em vídeo para sensibilização quanto ao tema a ser desenvolvido. Em função de alguns elementos preponderantes, como o uso do manual e a aula expositiva, é possível dizer que a metodologia mais empregada no ensino de Filosofia destoa da concepção de ensino de Filosofia que se pretende. Em primeiro lugar, boa parte dos professores tem formação em outras áreas (embora existam hoje bons cursos de graduação em Filosofia em número sufi ciente para a formação de profissionais devidamente qualifi cados para atuar em Filosofia no ensino médio), ou, sendo em Filosofia, não tem a oportunidade de promover a desejável formação contínua (sem a qual a simples inclusão da Filosofia no ensino médio pode ser ilusória e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado de 192 material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto filosófico é, então, interpretado à luz da formação do historiador, do pedagogo, do geógrafo, de modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamento dos temas filosóficos a um arsenal de lugares-comuns, a um pretenso aprendizado direto do filosofar que encobre, em verdade, bem intencionadas ou meramente demagógicas ―práticas de ensino espontaneístas e muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo à descaracterização tanto da Filosofia quanto da educação‖.(SILVEIRA, René, Um sentido para o ensino de Filosofia no ensino médio, p. 139). Para a realização de competências específi cas, que se têm sobretudo mediante a referência consistente à História da Filosofia, deve-se manter a centralidade do texto fi losófi co (primários de preferência), pois a Filosofia comporta ―um acervo próprio de questões, uma história que a destaca sufi cientemente das outras produções culturais, métodos peculiares de investigação e conceitos sedimentados historicamente‖. (LEOPOLDO E SILVA, Frankin apud SILVEIRA, René, op cit., p. 139). Certamente, no desenvolvimento do modo especificamente filosófico de apresentar e propor soluções de problemas, o exercício de busca e reconhecimento de problemas filosóficos em textos de outra natureza, literários e jornalísticos, por exemplo, não deixa de ser salutar, contanto que não se desloque, com isso, o primado do texto filosófico. Essa centralidade da História da Filosofia pode matizar um ponto que, ao contrário, se afi gura bastante controverso, qual seja, a assunção de uma perspectiva filosófica pelo professor. Certamente ninguém trabalha uma questão filosófica se situando fora de suas próprias referências intelectuais, sendo inevitável que o professor dê seu assentimento a uma perspectiva. Essa adesão, entretanto, tem alguma medida de controle na referência à História da Filosofia, sem a qual seu labor tornar-se-ia mera doutrinação. Além disso, tendo esse pano de fundo, mais que incutir valores o professor deve convidar os alunos à prática da reflexão. A Filosofia, afinal, ao contrário do que se faria em qualquer tipo de doutrinação, deveria instaurar procedimentos, como o de nunca dar sua adesão a uma opinião sem antes submetê-la à crítica. Na estruturação do currículo e mesmo no desenho das práticas pedagógicas da disciplina, a centralidade da História da Filosofia tem ainda méritos adicionais: (i) solicita uma competência profissional específica, de sorte que os temas próprios da Filosofia devam ser determinados por uma tradição de leitura consolidada em cursos de licenciaturas próprios; (ii) solicita do profissional já formado continuidade de pesquisa e formação especificamente filosófi cas; (iii) evita a gratuidade da opinião, com a qual imperariam docentes malformados, 193 embora mais informados que seus alunos, suprimindo o lugar da refl exão e da autêntica crítica; e (iv) determina ainda o sentido da utilização de recursos didáticos e de quem pode usar bem esses recursos, de modo que sejam filosóficas as habilidades de leitura adquiridas. Com efeito, sendo formado em Filosofia e tendo a História da Filosofia como referencial, essa maior riqueza de recursos didáticos pode tornar as aulas do docente mais atraentes, e mais fácil a veiculação de questões filosóficas. Garantidas as condições teóricas já citadas, é desejável e prazerosa a utilização de dinâmicas de grupo, recursos audiovisuais, dramatizações, apresentação de filmes, trabalhos sobre outras ordens de texto, etc., com o cuidado de não substituir com tais recursos ―os textos específi cos de Filosofia que abordem os temas estudados, incluindo-se aqui, sempre que possível, textos ou excertos dos próprios filósofos, pois é neles que os alunos encontrarão o suporte teórico necessário para que sua reflexão seja, de fato, filosófica‖. (SILVEIRA, René, op. cit., p. 143.) Pensar a especificidade em termos de um ensino anterior à graduação remete-nos novamente à questão de como deve ocorrer o ensino da Filosofia nesse universo específico que é o do ensino médio. Nesse ponto, o amadurecimento das reflexões acerca do que é genuinamente próprio da Filosofia também em termos de metodologia implica, por um lado, buscar um equilíbrio entre a complexidade de algumas questões de Filosofia e as condições de ensino encontradas, e, por outro, evitar posições extremadas, que, por exemplo, (i) nos fariam transpor para aquele nível de ensino uma versão reduzida do currículo da graduação e a mesma metodologia que se adota nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ou (ii), ao contrário, procurando torná-la acessível, nos levariam a falseá-la pela banalização do pensamento filosófico. A diferença em relação à graduação, no entanto, não pode significar uma espécie de ecletismo no ensino da Filosofia. O que corresponderia a uma espécie de saída de emergência para professores sem formação devida, como se fora um recurso de pleno bom senso, residindo aí seu maior perigo. Em versão mais generosa, o ecletismo afi rmaria apenas a parte positiva das doutrinas, suprimindo qualquer negatividade. Assim, por exemplo, diante da divergência entre intelectualistas e empiristas, concederia razão a ambas as correntes. Entretanto, sob qual perspectiva pode alguém separar o positivo do negativo? Ocultadas por aparente bom senso, seriam urdidas sínteses filosóficas precárias. Não tendo valores precisos, nem sendo bem formado e, mais ainda, usando expedientes para ocultar-se no debate, um professor de Filosofi a cumpriria, assim, limitado papel formador. Supõe-se, portanto, que o professor com honestidade intelectual deva situar-se em uma perspectiva própria, o que indica maturidade e boa formação. Assim, em vez de uma posição soberana que 194 pretenda suprimir o próprio debate filosófico, parece necessário retornar, também com perspectivas próprias, ao debate e a textos selecionados que sirvam de fundamento à reflexão. Tomando-se como ponto de partida as mesmas Diretrizes Curriculares para os Cursos de Graduação em Filosofia que norteiam a formação dos professores para o ensino de Filosofia no nível médio, tem-se a seguinte caracterização do licenciado em Filosofia: ―O licenciado deverá estar habilitado para enfrentar com sucesso os desafi os e as dificuldades inerentes à tarefa de despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente‖. Nesse universo de jovens e adolescentes, é imprescindível despertar o estudante para os temas clássicos da Filosofia e orientá-lo a buscar na disciplina um recurso para pensar sobre seus problemas. Em todos esses níveis, no entanto, não se pode perder de vista a especificidade da Filosofia, sob pena de se ter uma estranha concorrência do profissional de Filosofia com o de Letras, Antropologia, Sociologia ou Psicologia, entre outros. Diferentemente, ciente do que lhe é próprio, o profissional de Filosofia poderá desenvolver projetos em conjunto, inclusive com temas transversais e interdisciplinares, enriquecendo o ensino e ―estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade‖. Participação ativa na formação do jovem e capacidade para o diálogo com outras áreas do conhecimento pressupõem, como já foi visto aqui, que o professor de Filosofia não perca de vista a especifi cidade de sua própria área. Por outro lado, para bem cumprir sua tarefa, não bastará ter em conta seu próprio talento, pois inserirá seu trabalho em um novo contexto para a Filosofia no país, em que se ligam esforços os mais diversos, inclusive para sanar o dano histórico resultante da ausência da Filosofia. Com isso, devemos reconhecer que está se abrindo para o ensino de Filosofia um novo tempo, no qual não se frustrarão nossos esforços na medida em que reconhecermos a importância da formação contínua dos docentes de Filosofia no ensino médio, bem como o esforço coletivo de reflexão e de produção de novos materiais. É preciso, assim, estarmos à altura da elevada qualidade que deve caracterizar o trabalho de profi ssionais da Filosofia, quando já se pode afi rmar, alterando uma antiga diretriz, que ―as propostas pedagógicas das escolas deverão, obrigatoriamente, assegurar tratamento disciplinar e contextualizado para os conhecimentos de Filosofia‖.