Maria Fernanda Alves Garcia Montero - PUC-SP

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MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO:
ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS
MESTRADO EM EDUCAÇÃO: HISTÓRIA, POLÍTICA, SOCIEDADE
PUC/São Paulo
2011
MARIA FERNANDA ALVES GARCIA MONTERO
O ENSINO DE FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO BRASILEIRO:
ANTECEDENTES E PERSPECTIVAS
Dissertação apresentada à Banca
Examinadora
da
Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo,
como exigência parcial para obtenção
do título de MESTRE em Educação:
História, Política, Sociedade, sob
orientação da Profª.Dra. Leda Maria de
Oliveira Rodrigues.
São Paulo
2011
BANCA EXAMINADORA
Profª.Dra. Leda Maria de Oliveira Rodrigues
Orientadora/PUC-SP
Profª.Dra. Circe Maria Fernandes Bittencourt
PUC-SP
Prof.Dr. Silvio Donizetti de Oliveira Gallo
UNICAMP
São Paulo,_____ de ___________________ de 2011
Àqueles que participaram indiretamente
da realização deste trabalho: família e
amigos.
Àqueles que estudam a educação na
esperança de torná-la melhor.
AGRADECIMENTOS
À Maria Aparecida, à Maria Júlia e ao Francisco Montero, por serem minha constante
inspiração.
Ao Fernando, pela presença.
À professora Leda Maria de Oliveira Rodrigues pela orientação e pela paciência.
À professora Circe Maria Fernandes Bittencourt e ao professor Silvio Donizetti de
Oliveira Gallo pelas sugestões oportunas e importantes quando da realização do exame de
qualificação.
À Betinha, secretaria do programa EHPS, que sempre trata à todos com carinho e
atenção, por toda ajuda desde o meu primeiro dia no programa.
Aos meus colegas do programa pelas reflexões e descontrações partilhadas durante
esses dois anos.
À todos os professores do programa EHPS pelos diferentes ensinamentos.
Digo: o real não está na saída nem
na chegada, ele se dispõe para a
gente é no meio da travessia
Guimarães Rosa
Resumo
Este trabalho visa estudar as razões alegadas para a implementação da Lei nº 11.684 de 2 de
junho de 2008, a qual alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 1996, para incluir a Filosofia e a
Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino Médio. Para tanto, historia-se a sua
proposição e tramitação no Congresso até a sanção presidencial, atentando para os conflitos
político-ideológicos que permearam essa tramitação. Pretende-se também investigar como a
Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, nos nos PCN+
Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações Curriculares para o Ensino Médio.
Documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada. A metodologia usada neste
estudo foi de natureza descritiva-reflexiva. Os autores Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci,
Goodson e Chervel balizaram a pesquisa e a análise dos dados coletados. Deles utilizamos os
conceitos de currículo oculto, currículo oficial ou real ou prescrito e regulamentado,
currículo em ação, ideologia, currículo e disciplina.
Dentre os resultados podemos citar as pressões de profissionais da educação e da área em tela;
as correntes político-ideológicas envolvidas na reintrodução da Filosofia como disciplina;
outro ponto, por mais que essa volta seja uma vitória, a Filosofia no currículo ainda está
sujeita a ambiguidades quanto aos resultados de sua reintrodução.
Palavras-chaves: Filosofia, disciplina obrigatória, ensino médio
Abstract
This work aims to study the reasons alleged for the implementation of the Law nº 11,684 of
June 2nd, 2008, which modified the article 36 of the Law nº 9394/ 1996, to include
Philosophy and Sociology as compulsory subjects in High School. To do that, an historic of
its proposal and processing in the Congress until the presidential approval, noting the political
and ideological conflicts that have permeated this procedure, is needed. We also intend to
study how Philosophy appears in the National Curriculum Guidelines for Secondary
Education, in the Complementary Educational Guidelines for the National Curriculum
Guidelines for Secondary Education, and in the Curriculum Orientations for Secondary
Education .
Official documents were the main source of research used. The methodoly used in this study
was descreptive and reflective. The authors Apple, Gimeno Sacristán, Gramsci, Goodson and
Chervel guided the research and data analysis. Of them we have used the concepts of hidden
curriculum, official curriculum or real curriculum or prescribed and regulated curriculum,
curriculum in action, ideology, curriculum and subject.
Among the results we can cite the pressures of professionals from the educational area and
from philosophers and sociologists; the political and ideological currents involved in the
reintroduction of Philosophy as an subject; and the fact that, even though this reintroduction
is a victory, Philosophy in the curriculum is still subject to ambiguities regarding the results of
its reintroduction.
Key-words: Philosophy, compulsory subject, high school
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS
ABFC - Associação Brasileira de Filósofos Católicos
ANPOF - Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia
APEOESP – Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São Paulo
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCJC – Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania
CEB – Câmara de Educação Básica
CEC – Comissão de Educação e Cultura
CEESP – Conselho Estadual de Educação de São Paulo
CNE – Conselho Nacional de Educação
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação
CONTEE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino
CONPEFIL - Conjunto de Pesquisa Filosófica
CONVÍVIO - Sociedade Brasileira de Cultura
CNDF - Coordenação Nacional dos Departamentos de Filosofia
DCNEM – Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
DSND - Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento
EMC – Educação Moral e Cívica
ENEFILS - Encontros Nacionais de Estudantes de Filosofia
ENEM – Exame Nacional do Ensino Médio
ESN – Estado de Segurança Nacional
EPB – Estudos dos Problemas Brasileiros
FNSB – Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil
GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação
e Cultura
IBF - Instituto Brasileiro de Filosofia
LDB – Lei de Diretrizes e Bases
MEC – Ministério de Educação e Cultura
NR – Norma Regulamentadora
OCEM – Orientações Curriculares para o Ensino Médio
OSPB – Organização Social e Política Brasileira
PCNEM – Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
PL – Projeto de Lei
PSB – Partido Socialista Brasileiro
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira
PT – Partido dos Trabalhadores
PS-GSE: Primeiro Secretário do Grupo de Supervisão Educacional
SARESP – Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo
SEAF – Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas
SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência
SINSESP – Sindicato das Secretarias do Estado de São Paulo
UBES – União Brasileira dos Estudantes Secundaristas
USAID – United States Agency for International Development
ÍNDICE
Introdução......................................................................................................................... p.11
Os instrumentos de pesquisa e análise...............................................................................p.14
Referêncial Teórico...........................................................................................................p.15
Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar
brasileira.............................................................................................................................p23
A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio.....................................................................................p.32
A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996 até
a promulgação da Lei nº 11.684/2008...............................................................................p.47
Considerações finais..........................................................................................................p.72
Bibliografia........................................................................................................................p.77
Anexo 1..............................................................................................................................p.84
Anexo 2..............................................................................................................................p.89
Anexo 3..............................................................................................................................p.94
Anexo 4..............................................................................................................................p.96
Anexo 5............................................................................................................................p.102
Anexo 6............................................................................................................................p.114
Anexo 7............................................................................................................................p.115
Anexo 8.............................................................................................................................p116
Anexo 9............................................................................................................................p.131
Anexo 10..........................................................................................................................p.132
Anexo 11..........................................................................................................................p.133
Anexo 12..........................................................................................................................p.158
Anexo 13..........................................................................................................................p.172
11
Introdução
Em 2 de junho de 2008, foi promulgada a lei número 11.684, que alterou o artigo 36
da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei 9.394/1996), para incluir a
Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos de ensino médio. Esta
Lei referenda o Parecer nº 38/2006, elaborado conjuntamente pelo Conselho Nacional de
Educação e pela Câmara de Educação Básica, cuja avaliação rezava pela obrigatoriedade do
ensino de Filosofia e Sociologia no currículo do ensino médio em todas as escolas brasileiras.
De acordo com Alves (2002), o ensino escolar brasileiro sempre teve sua estrutura e
seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente em cada momento da
história. As políticas educacionais adotadas sempre estiveram carregadas de intenções e são
estas que determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a
política educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até
quais devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos, o que
pode acabar por fragilizar o processo pedagógico, dificultando uma ação criadora e reflexiva.
E é justamente isso que podemos observar na atualidade: o sucateamento da educação (baixos
salários, grande número de alunos por sala, etc). Segundo Tommasi (2007), no que diz
respeito ao sistema educacional brasileiro, dois aspectos merecem destaque: 1) há a
prevalência da lógica financeira sobre a lógica social e educacional; 2) a falácia de políticas
que se declaram com o objetivo de elevar a qualidade do ensino, enquanto implementam a
redução dos gastos públicos para o setor educacional e mantêm-se indiferentes à carreira e ao
salário do professorado.
Se vivemos numa sociedade neoliberal, que preza os conhecimentos tácitos em
detrimento do conhecimento científico; se o preferível no momento é um ensino que tenha
aplicações mais práticas e diretas; e levando-se em consideração que uma disciplina escolar
não existe sem um objetivo, que ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas
também as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184),
por que se incluiu a Filosofia como disciplina obrigatória? Quais foram os conflitos que
resultaram nessa introdução?
No mundo moderno, a educação técnica, estreitamente ligada ao trabalho industrial,
mesmo ao mais primitivo e desqualificado, deve constituir a base do novo tipo de
intelectual [...] O modo de ser do novo intelectual não pode mais consistir na
eloqüência, motor exterior dos afetos e das paixões, mas num imiscuir-se ativamente
na vida prática, como construtor, organizador, “persuasor permanente” [...]
(GRAMSCI, s.d., p.11)
12
Assim sendo, e assumindo a constatação de que a sociedade compõe-se por diversos
blocos de poder com interesses conflitantes, é relevante o estudo dos conflitos que resultaram
na Lei nº 11.684 de 2 de junho de 2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de
dezembro de 1996. Além disso, uma certa lacuna de estudos na área (constatada depois de um
levantamento inicial)1, nos aponta mais uma vez para a oportunidade de se realizar este
trabalho.
[...] o estudo do conflito em torno da definição pré-ativa de currículo escrito irá
aumentar o nosso entendimento dos interesses e influências atuantes neste nível [...]
este entendimento nos fará conhecer melhor tanto os valores e objetivos patenteados
na escolarização quanto a forma como a definição pré-ativa pode estabelecer
parâmetros para a ação e negociação interativa no ambiente da sala de aula e da
própria escola [...] Entender a criação de um currículo é algo que deveria
proporcionar mapas ilustrativos das metas e estruturas prévias que situam a prática
contemporânea. (GOODSON, 2001, p.21/22)
O presente trabalho tem, então, como principal tema e problema examinar as razões
alegadas para a implementação da Lei 11.684/2008, que alterou o artigo 36 da Lei nº 9394, de
20 de dezembro de 1996, e reintroduziu a Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias no currículo do Ensino Médio.
Decorre dele o seguinte questionamento:
a) Como a Filosofia aparece nos Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino
Médio, nos PCN+ Ensino Médio (Orientações Educacionais Complementares aos
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio) e nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio? Documentos estes que norteiam a educação
nacional.
A questão é que o potencial para um estreita relação – no extremo oposto, uma nãorelação – entre teoria e prática ou entre currículo escrito e currículo ativo, depende
da natureza da construção pré-ativa dos currículos – quanto à exposição e quanto à
teoria – bem como da sua execução interativa em sala de aula (GOODSON, 2001,
p.24).
O fato de ter vivenciado todo o momento que antecedeu a promulgação da já citada
lei, e por pertencer a um grupo que seria diretamente afetado por ela – licenciados em
Filosofia (na época estava cursando o último ano da faculdade), me levou a questionar o que
teria levado à aprovação da Lei nº 11.684, considerando, claro, que a introdução ou retirada da
Filosofia, ou de qualquer outra disciplina, do currículo sempre esteve ligada a conjuntura
política em vigência.
1
Após levantamento feito no Banco de Teses da CAPES, constatou-se que não existem trabalhos recentes que
abordem a questão dos conflitos por detrás da reintrodução da Filosofia no currículo do Ensino Médio. O
trabalho mais recente encontrado data do ano 2000, mas não trabalha especificamente com os conflitos políticosideológicos.
13
Assim sendo, o objetivo geral deste trabalho é levantar e analisar as razões para a volta
da Filosofia ao currículo do Ensino Médio. Já os objetivos específicos são: a) Levantar as
justificativas que levaram o Congresso a aprovar a Lei 11.684/2008; b) Verificar à quais
necessidades a disciplina Filosofia vem atender; c) Verificar como a disciplina é proposta nos
Parâmetros, nos PCN+ e nas Orientações;
As principais hipóteses que guiarão esta pesquisa serão as seguintes:
a) vivemos em um momento histórico neoliberal, com o advento da sociedade do
conhecimento, da pedagogia das competências, com o apogeu do individualismo, da
competitividade da globalização, da formação continuada, de cada vez mais provisioriedade
de conhecimento. Caberia então pensar que a disciplina de Filosofia viria, então, para auxiliar
esse pensamento que se caracteriza pela mobilidade;
b) assim como aconteceu nos governos de Geisel e Figueiredo, quando a reintrodução
da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário fez parte de uma estratégia do ESN (Estado de
Segurança Nacional) para renovação de sua legitimidade e para assegurar a continuidade do
modelo político-econômico vigente, a volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio em
2008, pode não ter tido razões voltadas para o conteúdo e para a melhor formação dos jovens,
mas sim razões corporativas, apenas para responder à demanda/pressão dos professores, e
futuros professores, de Filosofia, que viam as poucas aulas existentes serem ministradas por
professores formados em outras áreas, como História e Geografia;
c) examinar ainda que superficialmente, as possíveis implicações do fato de que talvez
não seja apenas coincidência que num governo declaradamente neoliberal, presidido por um
sociólogo, deu-se o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino
Médio, enquanto que essa introdução foi facilitada num outro governo que, ao menos
tendencialmente, questiona e se afasta dos excessos do modelo neoliberal.
Vale deixar claro que uma história da Filosofia como disciplina escolar no Brasil ainda
está para ser feita. A grande ênfase atual é num estudo histórico da Filosofia como àrea do
conhecimento. Este trabalho tenta, portanto, contribuir para que passos na direção de estudos
da Filosofia como disciplina sejam dados.
14
Os instrumentos de pesquisa e análise
Visando o alcance dos objetivos e dos questionamentos propostos para a realização
desta dissertação, documentos oficiais foram a principal fonte de pesquisa utilizada.
Os documentos oficiais foram utilizados, sobretudo, na realização de uma síntese do
percurso da Filosofia na educação brasileira para melhor compreender sua atual situação
como uma disciplina curricular. Afinal, as políticas educacionais e, conseqüentemente, os
currículos escolares, são constituídos historicamente. Aqui foram usados principalmente os
textos das Reformas de Francisco Campos (decreto nº 19.890, de 18 de abril de 1932) e de
Gustavo Capanema (especificamente o Decreto-lei n.4.244 de 9 de abril de 1942); da Lei de
Diretrizes e Bases de 1961 (Lei nº 4024); da Lei n. º 5692 de 1971, que fixa diretrizes e bases
para o ensino de 1º e 2º graus, e dá outras providências; e da Lei de Diretrizes e Bases de
1996 (Lei n. º 9.394). Tais documentos foram escolhidos por representarem momentos que
consideramos como os mais importantes na história da Filosofia no currículo do ensino médio
(antigo secundário) brasileiro.
A pesquisa documental também foi feita para tentar clarificar quais foram os conflitos
políticos-ideológicos que resultaram na mudança curricular ocorrida em 2008, com a
reintrodução da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio. Foram
coletados e analisados os projetos de leis e pareceres que marcaram os embates pela volta da
Filosofia ao currículo do Ensino Médio, desde a promulgação da LDB de 1996. Podemos citar
aqui como os principais, os seguintes documentos: Parecer CNE/CEB Nº15/98; Resolução
CNE/CEB nº03/98; Mensagem nº 1073, de 8 de outubro de 2001; Projeto de Lei n.º
1641/2003; Parecer CNE/CEB nº 38/2006; Resolução CNE/CEB nº4/2006; Parecer CEE nº
343/2007 – CEB aprovado em 7/7/2007; Lei nº 11684/2008; Parecer nº 22/2008.
Além dos documentos já citados, também foram analisados os textos dos Paramêtros
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (Parte IV: Ciências Humanas e suas tecnologias),
dos PCN+ Ensino Médio (Ciências Humanas e suas tecnologia) e das Orientações
Curriculares para o Ensino Médio (Volume 3: Ciências Humanas e suas tecnologias).
A análise das informações retiradas dos documentos foi guiada pelos conceitos de
Currículo Oficial ou Real, Currículo em Ação, elaborados por Gimeno Sacristán;
de
Currículo Oculto, elaborado por Michael W. Apple; e de ideologia, elaborado por Antonio
Gramsci. Foram utilizados também os conceitos de currículo e disciplina, elaborados por
Goodson e Chervel.
15
Referencial Teórico
Os principais referenciais teóricos, no que tange à análise dos documentos oficiais
(Paramêtros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio; Orientações Curriculares para o
Ensino Médio), e à análise de como as propostas são contempladas na prática, serão Gimeno
Sacristán e Michael W. Apple. Deles, serão utilizados três conceitos: o de currículo oculto, o
de currículo oficial ou prescrito e regulamentado, e o de currículo em ação.
Currículo oculto, segundo Apple (1999), diz respeito às normas e valores
implicitamente e efetivamente transmitidos pelas escolas e que, habitualmente, não são
mencionados nos objetivos apresentados pelos professores. Segundo Apple (1999) a
hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal, mas também pelo oculto.
Currículo oculto é, então, o conjunto de normas sociais, princípios e valores transmitidos
tacitamente através do processo de escolarização. O currículo oculto não aparece explicitado
nos planos educacionais ou nas propostas curriculares oficiais, mas ocorre sistematicamente
produzindo resultados não acadêmicos, embora igualmente significativos.
[...] historicamente e actualmente se introduziram no currículo determinadas
concepções relativas às normas de cultura e valores legítimos. No entanto, há que
salientar que a hegemonia é produzida e reproduzida não só pelo corpus formal do
conhecimento escolar, mas também pelo ensino oculto (APPLE, 1999, p.137).
De acordo com Gimeno Sacristán (1998), o currículo oculto se caracteriza por duas
condições: o que não se pretende e o que é obtido por meio da experiência natural, que não foi
diretamente planejada pelos professores ou por qualquer outro sujeito.
O currículo oficial, segundo esse mesmo autor, diz respeito às propostas curriculares
oficiais, ou seja, os conteúdos que devem ser ensinados definidos em documentos
oficiais/legais.
[...] o currículo real é mediado pelo contexto social, econômico, político e cultural,
e, compreender o currículo oficial nos possibilita analisar, com base nas intenções
expressas e latentes, presentes nas políticas oficiais, os limites e possibilidades da
realidade educativa cotidiana das escolas (PAIVA, 2006:13).
Segundo Gimeno Sacristán (1998), “[...] para entender o currículo real é preciso
esclarecer os âmbitos práticos em que é elaborado e desenvolvido, pois, do contrário
estaríamos falando de um objeto reificado à margem da realidade” (p.129). Ou seja, o
currículo oficial mostra facetas das intenções do processo educativo escolar, ou seja, aquilo
que as autoridades estão buscando na educação escolar. Isso porque os conhecimentos
16
vinculados nos componentes curriculares estão sempre atrelados ao objetivo da educação. Por
trás do currículo sempre há interesses.
É importante ressaltar que, para Gimeno Sacristán, para se conhecer o currículo é
preciso ir muito além das declarações oficiais, da retórica, dos documentos, ou seja, é preciso
se aproximar o máximo possível da realidade.
O que se torna evidente é que, pelas propostas do currículo, expressam-se mais os
desejos do que as realidades. Sem entender as interações entre ambos os aspectos
não podemos compreender o que acontece realmente aos alunos/as e o que
aprendem (GIMENO SACRISTÁN, 1998, p.137).
Currículo em ação, segundo Gimeno Sacristán (1998), é o currículo reelaborado na
prática, é a transformação do currículo oficial no pensamento e no plano dos professores e nas
tarefas acadêmicas.
O conjunto de tarefas de aprendizagem que os alunos/as realizam, das quais extraem
a experiência educativa real, que podem ser analisadas nos cadernos e na interação
da aula e que são, em parte, reguladas pelos planos ou programações dos
professores/as – é o chamado currículo em ação (GIMENO SACRISTÁN, 1998,
p.138).
É interessante sublinhar que, para Gimeno Sacristán, currículo não é simplesmente
uma prescrição, sua realidade não se mostra somente em suas modelagens documentais; para
o autor, currículo é um processo, que se mostra na interação de todos os seus contextos
práticos, que vão desde o âmbito de decisões políticas e administrativas que resultam no
currículo oficial (documentos curriculares) até sua transformação em currículo em ação.
Já no que tange à historicização da proposição e tramitação no Congresso até a sanção
presidencial, da Lei nº 11.684/2008, far-se-á uso da Abordagem do Ciclo de Políticas,
formulada por Ball e Bowe. Acreditamos que tal Abordagem será muito útil para guiar a
análise do trâmite da Lei, pois nos permite organizar os documentos/acontecimentos de forma
a refletir a sucessão dos eventos.
Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional,
enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as
políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos macro e
micro na análise de políticas educacionais. É importante destacar [...] que este
referencial teórico-analítico não é estático, mas dinâmico e flexível [...]
(MAINARDES, 2006, p. 49).
Segundo Mainardes (2006, p. 48), tal abordagem é bastante útil para a análise de
políticas educacionais, principalmente no contexto brasileiro.
[...] a abordagem do ciclo de políticas constitui-se num referencial analítico útil para
a análise de programas e políticas educacionais e que essa abordagem permite a
análise crítica da trajetória de programas e políticas educacionais desde sua
formulação inicial até a sua implementação no contexto da prática e seus efeitos [...]
Essa abordagem destaca a natureza complexa e controversa da política educacional,
17
enfatiza os processos micropolíticos e a ação dos profissionais que lidam com as
políticas no nível local e indica a necessidade de se articularem os processos micro e
macro na análise de políticas educacionais. (MAINARDES, 2006, p.48).
A Abordagem do Ciclo de Políticas tem cinco contextos.
O primeiro é o contexto da influência, onde normalmente as políticas públicas são
iniciadas.
É aqui que o discurso político é contruído. É aqui que os partidos interessados lutam
para influenciar a definição e as finalidades sociais da educação, o que significa ser
educado. (BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.19)2
Nesse contexto atuam as redes sociais dentro e em torno dos partidos políticos, do
governo e do poder legislativo. É neste momento que os conceitos como os de educação, de
políticas públicas e de políticas educacionais, adquirem legitimidade e formam o discurso
político.
O segundo é o da produção de texto, que é o momento em que são articulados os
textos políticos (que representam a política); é o momento em que as leis são articuladas. Os
textos políticos são o resultado de disputas e acordos, já que os grupos que atuam dentro dos
diferentes lugares da produção de textos competem para controlar as representações da
política.
Os textos políticos, portanto, representam a política. Essa representação pode tomar
varias formas, sendo a mais comum os textos oficiais e os documentos políticos [...]
(BOWE; BALL; GOLD, 1992, p.20).3
O terceiro é o contexto da prática, que é onde a política está sujeita à interpretação e
recriação, é onde a política produz efeitos e conseqüências, as quais podem representar
mudanças significativas na política original/anterior. O ponto-chave deste contexto, para Ball
e Bowe, é o fato de que as políticas não serão simplesmente implementadas, elas estão
sujeitas à interpretação, ou seja, estão sujeitas à recriação.
O quarto é o contexto dos resultados e efeitos, no qual há a preocupação com questões
de justiça, igualdade e liberdade individual (análise dos efeitos e impactos das políticas).
O quinto e último é o de estratégia política, que envolve a identificação de um
conjunto de atividades políticas e sociais que seriam necessárias para entender as
desigualdades criadas ou reproduzidas pelas políticas públicas investigadas.
Dado os interesses já citados deste trabalho (investigar os conflitos políticos e os reais
2
3
Tradução nossa. Do original em inglês: “It is here that policy discourses are constructed. It is here that
interested parties strugle to influence the definition and social purposes of education, what it means to be
educated.”
Tradução nossa. Do original em inglês: “Policy texts therefore represent policy. These representations can
take various forms: most obviously „official‟ legal texts and policy documents [...]”
18
objetivos por trás da inserção da Filosofia como componente curricular obrigatório no Ensino
Médio) far-se-á uso principalmente dos três primeiros contextos da Abordagem do Ciclo de
Políticas. Os dois últimos contextos não serão utilizados por acreditar-se ser muito cedo para
termos resultados observáveis dessa inserção, que ocorreu no 2º semestre de 2008.
Como já foi dito anteriormente, o presente trabalho tem como principal objetivo
analisar a presença da Filosofia como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio;
mais especificamente, examinar os conflitos político-ideológicos que resultaram na Lei nº
11.684 de 2 de junho de 2008. Por isso se faz necessário explicar o que será definido como
ideologia. Usaremos a definição grasmsciniana de ideologia.
Ideologia, segundo Gramsci, é uma concepção de mundo que implicitamente se
manifesta na arte, no direito, na atividade econômica e em todas as manifestações da vida
intelectual e coletiva. É um conjunto de idéias, crenças e valores que constituem a visão de
mundo de um determinado grupo social ou povo. Ou seja, a ideologia não é enganosa ou
negativa em si, mas constitui qualquer ideário de um grupo social. É importante ressaltar que
a definição de Gramsci difere muito da definição de Marx e Engels, para quem a noção de
ideologia é uma distorção
das contradições sociais reais e, portanto, contribui para a
reprodução destas. O conceito de ideologia apresenta, aqui, uma clara conotação negativa.
No entanto, para Gramsci, ideologia não é apenas um conjunto de idéias, ela também
está relacionada com a capacidade de inspirar atitudes concretas e proporcionar orientação
para ação. Assim, a ideologia é o terreno sobre o qual os Homens se movimentam, ou seja, ela
está socialmente generalizada pois seres humanos não podem viver sem um código de
conduta, sem orientações. É, portanto, na e pela ideologia que uma classe pode exercer
hegemonia sobre outras, isto é, pode assegurar a adesão e o consentimento das grandes
massas. Aqui, Gramsci atenta para o papel dos intelectuais na produção da ideologia.
Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das
funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação
impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce
“historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante
obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do
aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que
não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a
sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais
fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14).
Assim sendo, a dominação ideológica é igual à subordinação intelectual, ou seja, o
grupo que tem o domínio da ideologia, tem o domínio sobre a educação e todas as instituições
ligadas a ela direta ou indiretamente. O poder das classes dominantes, dentro do modo de
produção capitalista, não reside simplesmente no controle dos aparatos repressivos do Estado.
19
Se assim fosse, tal poder seria relativamente fácil de ser combatido (bastaria que fosse atacado
por uma força armada equivalente ou superior que trabalhasse para as classes dominadas).
Este poder é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que as classes
dominantes logram exercer, através do controle do sistema educacional, das instituições
religiosas e dos meios de comunicação. Usando deste controle, as classes dominantes
"educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e conveniente.
Acreditamos ser importante, também, definir o que será entendido aqui como
disciplina e como currículo.
Currículo (do lat. Curriculu): 4. Bras. P. ext. As matérias constantes de um curso.
Disciplina (do lat. Disciplina): 6.Qualquer ramo do conhecimento (artístico,
científico, histórico, etc); 8. Conjunto de conhecimentos em cada cadeira dum
estabelecimento de ensino; matérias de ensino
Essas são as definições dadas pelo Novo Dicionário Aurélio para os termos currículo e
disciplina. Currículo então seria o conjunto de disciplinas ministradas em um estabelecimento
de ensino, e disciplinas (ou matérias) seriam conjuntos de conhecimentos de uma área
específica (matemática, história, biologia etc). Porém, os hoje denominados currículo e
disciplina escolar nem sempre tiveram a compreensão que contemporaneamente lhes
atribuímos.
Segundo Goodson (2001) o termo currículo advém da palavra latina currere, que pode
ser traduzida como correr, referindo-se a curso a ser seguido, mais especificamente a ser
apresentado. Na atualidade, currículo passa a ser compreendido como um conjunto daquilo
que se ensina e daquilo que se aprende, tendo como referência alguma ordem de progressão,
podendo ir além do que está escrito oficialmente.
Já o termo disciplina, no sentido de conteúdos de ensino, segundo Chervel (1990), só
aparece nas primeiras décadas do século XX, pois até o fim do século XIX, seu significado
não era mais do que a vigilância dos estabelecimentos em relação às condutas prejudiciais á
sua boa ordem e àquela parte da educação dos alunos que contribui para tal ordem.
Mas é importante ressaltar que tanto currículo como disciplina são conceitos que vão
muito além dessas simples definições. Ambos são construções históricas e sociais, ou seja, a
construção de um currículo e, conseqüentemente, a escolha de determinadas disciplinas, estão
repletas de conflitos, interesses, objetivos, relações de dominância etc. É por esse motivo que
devem ser analisados historicamente, caso contrário, não podem ser compreendidos.
De acordo com Goodson (2001), o currículo é formulado numa grande variedade de
áreas e níveis, mas o fundamental para esta variedade é a distinção entre o currículo escrito e
o currículo interativo (como atividade em sala de aula). Segundo o autor, o que se vê hoje é
20
uma tendência a se analisar cada um separadamente, como se não houvesse nenhum tipo de
relação entre o currículo escrito e o interativo, o que acaba conduzindo a dois erros,
principalmente: o primeiro, é considerar que o currículo escrito é irrelevante para a prática,
que existe “uma dicotomia completa e inevitável entre o currículo adotado, na sua forma
escrita, e o currículo ativo, na sua forma vivida e experienciada” (p.52); o segundo é tomar o
currículo escrito como fato consumado.
[...] é politicamente ingênuo e conceitualmente inadequado afirmar que “o
importante é a prática em sala de aula” (da mesma forma que é uma ignorância
querer excluir a política da educação) [...][...] o estudo do conflito em torno da
definição pré-ativa de currículo escrito irá aumentar o nosso entendimento dos
interesses e influências atuantes neste nível [...] este entendimento nos fará conhecer
melhor tanto os valores e objetivos patenteados na escolarização quanto a forma
como a definição pré-ativa pode estabelecer parâmetros para a ação e negociação
interativa no ambiente da sala de aula e da própria escola [...] Entender a criação de
um currículo é algo que deveria proporcionar mapas ilustrativos das metas e
estruturas prévias que situam a prática contemporânea. (GOODSON, 2001b,
p.20/21/22)
Para Goodson é preciso que ambos sejam estudados, mas antes de se partir para a
prática, é preciso estudar o currículo escrito, pois entender a criação do currículo nos
possibilita mapear as metas e estruturas prévias que podem vir a influenciar a prática.
Entender a contrução pré-ativa de um currículo pode estabelecer importantes parâmetros para
a compreensão de sua realização interativa dentro da sala de aula. A desconsideração da
elaboração histórica e social do currículo nos leva a aceitá-lo como um fato consumado, não
permitindo uma renovação e atualização da forma e do conteúdo curriculares.
Começar qualquer análise da escolaridade aceitando, sem questionamento, a forma e
o conteúdo do currículo, aspectos que suscitaram lutas e que foram estabelecidos
num ponto histórico particular, com base em certas prioridades sociais e políticas;
isto é, tomar o currículo como um dado, significa renunciar a um vasto conjunto de
entendimentos sobre aspectos do controlo e do funcionamento da escola e da sala de
aula (GOODSON, 2001, p.57/58).
Assim, como foi dito acima, currículo é mais do que uma simples palavra para definir
um conjunto de disciplinas: é uma construção histórica, reflete um conflito social. A definição
daquilo que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades sociais e políticas
que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala de aula. O
currículo não é uma realidade abstrata, à margem do sistema socioeconômico, da cultura e do
sistema educativo. O currículo é uma práxis, não um objeto estático. É a expressão da função
socializadora e cultural da escola. Por isso, as funções que o currículo cumpre são realizadas
por meio de seus conteúdos, de seu formato e das práticas que gera.
Tal como dissemos em relação ao currículo, o mesmo se passa com as disciplinas.
Estas também são mais do que uma palavra usada para designar um conjunto de
21
conhecimento de determinada área.
Nenhuma disciplina é incluída no currículo sem motivo, uma disciplina escolar não
existe sem um objetivo (segundo Chervel, este é o tópico principal a partir do qual uma
disciplina se constitui), ela “comporta não somente as práticas docentes da aula, mas também
as grandes finalidades que presidiram sua constituição” (CHERVEL, 1990, p.184). E, para
entender essas finalidades, para entender por que a escola ensina o que ensina, é preciso,
também, analisar historicamente as disciplinas escolares.
Conforme vimos acima, o ensino escolar, sendo uma construção histórico-social,
sempre teve sua estrutura e seu papel condicionados pelo modelo econômico-político vigente
em cada momento da história. Relembrando, ainda, as políticas educacionais adotadas sempre
estiveram carregadas de intenções, já que são definidas por sujeitos, e são estas que
determinam qual é o tipo de pessoa/cidadão que deve ser “criado”. Assim sendo, a política
educacional, que define desde como a organização da instituição escolar deve ser até quais
devem ser os conteúdos trabalhados, canaliza a educação para fins específicos. A seleção dos
conteúdos depende necessariamente de finalidades específicas.
A constituição dos saberes escolares específicos a cada disciplina do currículo é
resultado de um complexo processo que envolve conflitos, consentimentos, mediações entre
diversos sujeitos e instituições, diante dos papéis que são atribuídos à escola em determinada
época e sociedade.
Geografia, Matemática, História, Educação Física, entre outras tantas disciplinas
escolares, fazem parte dos currículos e constituem saberes, aparentemente,
“naturais” que circulam no cotidiano das salas de aula. Mas esta “naturalidade” da
presença das disciplinas nas escolas e o “lugar” de cada uma delas no currículo
escolar têm sido objeto de questionamentos, tanto na atualidade, como em outros
momentos da história da educação escolar (BITTENCOURT, 2003, p.9).
Segundo Chervel (1990), existe um consenso de que as disciplinas escolares são
conteúdos impostos à escola pela sociedade, conteúdos estes que foram construídos em outro
lugar que não na escola. Mas esse consenso nega a autonomia tanto da escola quanto das
disciplinas, além de reduzir estas às metodologias. Para Chervel, as disciplinas escolares não
são resultado de uma simples transposição didática, não são uma “vulgarização” dos
conhecimentos acadêmicos. São construções feitas pela escola, na escola e para a escola, mas
ainda assim mantêm relação com os diferentes campos do conhecimento (ciências).
A concepção de escola como puro e simples agente de transmissão de saberes
elaborados fora dela está na origem da idéia, muito amplamente partilhada no
mundo das ciências humanas e entre o grande público, segundo a qual ela é, por
excelência, o lugar do conservadorismo, da inércia, da rotina. Por mais que ela se
esforce, raramente pode-se vê-la seguir, etapa por etapa, nos seus ensinos, o
progresso das ciências que se supõe ela deva difundir (CHERVEL, 1990, p.182).
22
Chervel, então, define as disciplinas escolares como entidades epistemológicas
autônomas e, em sua argumentação, concebe a escola como uma instituição que obedece a
uma lógica particular e específica, com a participação de inúmeros agentes, tanto externos
quanto internos, mas que não deixa de ser um local de produção de um conhecimento próprio.
Por isso não basta apenas pesquisar a gênese, as finalidades e o funcionamento de uma
disciplina por si só, mas é preciso, também, investigar a disciplina como parte integrante da
cultura escolar, pois só assim é possível entender as relações estabelecidas com o exterior,
com a cultura e com a sociedade. Não podemos esquecer que as disciplinas que compõem o
currículo escolar não desempenham um papel neutro. Os conhecimentos vinculados nas
disciplinas não são “naturais” e não existem por si só; a liberdade do que se ensina na escola
está circundada pelos documentos oficiais que balizam a atuação do(a) professor(a).
É importante ressaltar que o processo de criação de uma disciplina não é o mesmo em
todos os casos. Cada disciplina tem uma trajetória própria. Segundo Goodson (1990), que
também se posiciona contra a idéia de transposição didática, cada disciplina precisa ter seu
percurso histórico analisado, para que seja possível entendê-la. Muitas matérias escolares4 não
possuem as mesmas estruturas das disciplinas acadêmicas, além de utilizarem diferentes
conceitos e metodologias. Goodson também argumenta que algumas matérias escolares nem
mesmo possuem uma disciplina correspondente, como é o caso da educação ambiental.
Muitas escolas adotaram tal matéria, mas ela não existe como disciplina acadêmica.
Segundo Bittencourt (2003), a presença de uma disciplina no currículo não se restringe
somente a questões epistemológicas ou didáticas, ela também se articula ao papel político que
uma disciplina desempenha ou tende a desempenhar. Muitos são os sujeitos envolvidos na
constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros, partidos políticos em geral,
professores e alunos, entre outros. Estes sujeitos também delimitam a legitimidade e o poder
de uma disciplina.
Ainda segundo a autora (2005), é “fundamental conhecer a história das disciplinas
para identificar os pressupostos que possibilitam entender os liames e as diferenças entre uma
disciplina escolar e as ciências de referência, uma vez que cada disciplina possui uma
história” (p.40)
4
Para Ivor Goodson o termo disciplina é entendido como uma forma de conhecimento originária da tradição
acadêmica. Para o caso de escolas primárias e secundárias ele utiliza o termo matéria escolar.
23
Breve síntese da presença/ausência da Filosofia como disciplina na educação escolar
brasileira
O ponto de partida deste breve histórico será a Reforma Francisco Campos (1931) pois foi a
partir dela que o ensino secundário5 adquiriu o caráter de curso, com um currículo seriado e
freqüência obrigatória.
Até essa época, o ensino secundário não tinha organização digna desse nome, pois
não passava, na maior parte do território nacional, de cursos preparatórios, de
caráter, portanto, exclusivamente propedêutico. Além disso, todas as reformas que
antecederam o movimento renovador, quando efetuadas pelo poder central,
limitaram-se a quase exclusivamente ao Distrito Federal, que as apresentava como
“modelo” aos Estados, sem, contudo, obrigá-los a adotá-las [...] Era a primeira vez
que uma reforma atingia profundamente a estrutura do ensino e, o que é importante,
era pela primeira vez imposta a todo o território nacional. Era, pois, o início de uma
ação mais objetiva do Estado em relação à educação (ROMANELLI, 1984, p.131)
As modificações na infra-estrutura econômica do Brasil, resultantes da Revolução de
1930, determinaram novas funções para a escola.
A intensificação do capitalismo industrial no Brasil, que a Revolução de 30 acabou
por representar, determinou conseqüentemente o aparecimento de novas exigências
educacionais. Se antes, na estrutura oligárquica, as necessidades de instrução não
eram sentidas, nem pela população, nem pelos poderes constituídos (pelo menos em
termos de propósitos reais), a nova situação implantada na década de 30 veio
modificar profundamente o quadro das aspirações sociais, em matéria de educação,
e, em função disso, a ação do própio Estado. (ROMANELLI, 1984, p.59)
A reforma no ensino secundário foi proposta, primeiramente, através do Decreto
19.890, de 18 de abril de 1931, e foi consolidada depois, pelo Decreto 21.241, de 4 de abril de
1932. Na exposição de motivo deste último, Francisco Campos escreveu que a finalidade
exclusiva do ensino secundário era a formação do Homem para a atividade nacional, e não
apenas a matrícula nos cursos superiores. O ensino secundário deveria inculcar no espírito do
sujeito todo um conjunto de hábitos, atitudes e comportamentos.
Esse decreto conseguiu dar ao ensino secundário um caráter mais estável. Até então o
curso não era seriado, a matrícula era por disciplina e os alunos acabavam fazendo somente as
disciplinas que eram pedidas nos exames para o ensino superior. Até o final da década de
1920, “imperava o sistema de „preparatórios‟ e de exames parcelados para ingresso no ensino
5
Era chamado "ensino secundário" o que hoje corresponde ao Ensino Fundamental II (a partir do sexto ano) e ao
Ensino Médio. De acordo com o Art.21 do Decreto 21.241 de 1932, o candidato a exame de admissão deveria
provar ter a idade de 11 anos ou que a completaria até junho do ano em que requereria a incrição.
24
superior, sendo o curso secundário, quando existente, pouco procurado” (ROMANELLI,
1984, p.135). Por isso a Reforma Francisco Campos teve o mérito de dar ao ensino secundário
organicidade, estabelecendo definitivamente o currículo seriado, a freqüência obrigatória, dois
ciclos e a exigência de habilitação neles para o ingresso no ensino superior.
Com essa reforma o ensino secundário ficou dividido em dois ciclos: um fundamental,
de cinco anos; e outro complementar, de dois anos. O primeiro tornou-se obrigatório para o
ingresso em qualquer escola superior e o segundo, somente em determinadas escolas. Além
disso, o ciclo complementar ficou subdividido em três cursos preparatórios para o ensino
superior (cada um com duas séries), um destinado para os alunos que queriam ingressar na
Faculdade de Direito, outro para aqueles que queriam ingressar nas Faculdades de Medicina,
Odontologia e Farmácia, e outro para aqueles que queriam ingressar nos cursos de Engenharia
e Arquitetura.
Segundo o Art.4º do Decreto 21.241/1932, constavam como disciplinas obrigatórias
para o ciclo complementar: Alemão ou Inglês, Latim, Literatura, Geografia, Geofísica e
Cosmografia, História da Civilização, Matemática, Física, Química, História Natural,
Biologia Geral, Higiene, Psicologia e Lógica, Sociologia, Noções de Economia e Estatística,
História da Filosofia e Desenho.
A Reforma Francisco Campos (1932) [...] teve como medidas mais significativas a
criação do regime seriado de estudos e a freqüência obrigatória [...] Quanto à nova
estrutura do curso secundário, este ficou divido em dois ciclos: um fundamental, de
cinco anos [...] e outro complementar, de dois anos [...] A Filosofia passou a compor
o currículo do ciclo complementar, como história da filosofia e como lógica
(ALVES, 2002, p. 32).
A Lógica era ministrada juntamente com a Psicologia nos ciclos complementares que
preparavam para os cursos de Direito, Medicina, Farmácia e Odontologia, Engenharia e
Arquitetura. Para os cursos jurídicos (destinado aos que queria ingressar nos cursos de
Direito) exigia-se, também, a História da Filosofia na 2ª série do ciclo complementar.
O ensino secundário, segundo os objetivos propostos pela Reforma Campos, devia
se voltar para a formação do homem, habilitando-o, por atitudes e comportamentos,
a viver por si e a tomar decisões. Os ensinamentos da lógica contribuíam em muito
para essa formação, pois auxiliavam no treino e no uso da razão. Na universidade,
esse exercício do raciocínio convertia-se num processo de interpretação da
experiência, em termos de relações de pensamento. Estava encaminhada, portanto,
uma justificativa para a inclusão da referida disciplina no ciclos complementares,
propedêuticos ao ensino superior (CARTOLANO, 1985, p.57/58).
Em 1942, por iniciativa do então ministro Gustavo Capanema, começam a ser
reformados alguns ramos do ensino. Essas reformas, nem todas realizadas sob o Estado Novo,
receberam o nome de Leis Orgânicas do Ensino. A Lei Orgânica do Ensino Secundário era o
Decreto-lei 4.244, de 9 de abril de 1942.
25
Na exposição de motivo, Gustavo Capanema afirma que o que constituía o caráter do
ensino secundário era a função de formar nos alunos uma sólida cultura geral, acentuar e
elevar a consciência patriótica e a consciência humanística. Deveria ser um ensino capaz de
dar ao aluno a compreensão dos problemas e necessidades, da missão e dos ideais da nação.
[...] o ensino secundário se destina à preparação das individualidades condutoras,
isto é, dos homens que deverão assumir as responsabilidades maiores dentro da
sociedade e da nação, dos homens portadores das concepções e atitudes espirituais
que é preciso infundir nas massas, que é preciso tornar habituais entre o povo. Ele
deve ser, por isso, um ensino patriótico por excelência [...] (EXPOSIÇÃO DE
MOTIVOS DA LEI ORGÂNICA DO ENSINO SECUNDÁRIO DE 1º DE ABRIL
DE 1942)
Segundo Romanelli (1984), é possível, a partir do texto da lei, sintetizar as principais
funções do ensino secundário:
a) possibilitar uma cultura geral e humanística;
b) alimentar uma ideologia política definida em termos de patriotismo e
nacionalismo de caráter fascista;
c) dar condições para o ingresso no ensino superior;
d) formação de lideranças (p.157).
De acordo com Cartolano (1985), a Lei Orgânica do Ensino Secundário não mudou
muito o cenário do Ensino Secundário. Este continuou dividido em dois ciclos, mas a duração
e a nomenclatura destes foi alterada. Segundo os Art.2º, 3º e 4º, o Ensino Secundário seria
ministrado em dois ciclos: o primeiro compreendia um só curso com duração de quatro anos,
o ginasial; o segundo compreendia dois cursos parelelos, cada qual com a duração de três
anos: o clássico e o científico.
O curso ginasial tinha como objetivo dar aos adolescentes os elementos fundamentais
do Ensino Secundário. Os cursos clássico e científico tinham por objetivo consolidar a
educação ministrada no curso ginasial, assim como densenvolvê-la e apronfundá-la. No curso
clássico havia uma maior ênfase na formação intelectual, além de um maior conhecimento de
filosofia e um acentuado estudo das letras antigas. No curso científico a formação seria
marcada por um estudo maior das ciências.
[...] sobressaíam, nos dois níveis, uma preocupação excessivamente enciclopédica e
ausência de distinção entre os dois cursos: o clássico e o científico. Finalmente o
currículo não era diversificado, nem sequer quanto aos níveis, sendo praticamente as
mesmas disciplinas em quase todas as séries. Esse ensino não diversificado só tinha,
na verdade um objetivo: preparar para o ingresso no ensino superior. Em função
disso só podia existir como educação de classe. Continuava, pois, constituindo-se no
ramo nobre do ensino, aquele realmente voltado para a formação das
“individualidades condutoras” (ROMANELLI, 1984, p. 158).
A Filosofia era indicada como disciplina obrigatória na 3ª série do curso clássico, e na
3ª série do científico.
Todavia, durante este período, uma gradativa redução do número de aulas atribuídas à
26
Filosofia aconteceu.
A filosofia era disciplina comum aos cursos clássico e científico e deveria ser
ensinada de acordo com um mesmo programa para ambos os cursos, apenas com
maior amplitude no curso clássico. Em 1946, pela Portaria n.º19 de 12 de janeiro, os
programas passaram a ser elaborados por comissões designadas pelo ministro da
Educação e se caracterizavam por sua respeitável extensão. Já os programas de
1951, publicados pela Portaria n.º 966, de 2 de outubro [...] eram menos extensos,
devendo no entanto, ser claros e flexíveis. As aulas de Filosofia foram, a princípio,
distribuídas em quatro por semana na 2ª série do clássico e 3º científico e duas aulas
semanais no 3º clássico. O então ministro da Educação e Saúde, Raul Leitão da
Cunha, em Portaria de 10 de dezembro de 1945, modificou o regime para quatro
aulas semanais na 3º série do científico e três aulas nas séries do clássico, apenas
distribuindo melhor o tempo destinado ao ensino de Filosofia. Mas as alterações não
cessaram aí, e pela Portaria n.º 966 de 2 de outubro de 1951, que reestruturou os
programas da disciplina para os cursos clássico e científico, as horas-aula semanais
passaram a ser três, em ambas as séries desses cursos. Finalmente, a Portaria n.º 54,
de 1954, reduziu o número de aulas semanais, estabelecendo um mínimo de duas
horas por semana nas séries do clássico e uma hora, apenas, no científico. Esse
quadro é uma mostra do processo de extinção da Filosofia como disciplina
obrigatória e, depois, como optativa, do currículo do ensino secundário, em nosso
país (CARTOLANO, 1985, p.59).
A próxima reforma de ensino que trouxe maiores conseqüências para Filosofia foi a lei
n.º 4024 de 1961 (Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional), que introduziu a
descentralização do ensino, permitindo, assim, que as escolas pudessem optar entre vários
currículos. De acordo com Romanelli, a lei 4024 de 1961, em essência, nada mudou. Sua
única vantagem foi, talvez, “o fato de não ter prescrito um currículo fixo e rígido para todo o
território nacional, em cada nível e ramo. Este, a nosso ver, o único progresso da lei: a quebra
da rigidez e certo grau de descentralização” (p.181).
A estrutura do ensino secundário6 ficou como estava, dividida em dois ciclos, o
ginasial e o colegial, o primeiro com quatro anos e o segundo com três.
No que diz respeito à grade curricular, quatro opções de currículo passaram a existir
no colegial, que compreendiam até cinco disciplinas indicadas como obrigatórias: português,
matemática, geografia, história e ciências. “Aos conselhos estaduais, se existissem, cabia
escolher, dentre os vários conjuntos possíveis, as disciplinas que iriam complementar o
currículo. A Filosofia é indicada aqui para o 2º ciclo” (ALVES, 2002, p.34). Somente no
conjunto das disciplinas optativas, a Filosofia aparecia como Lógica, e perdia, assim, o caráter
de obrigatoriedade que possuía na Reforma Gustavo Capanema.
Segundo Alves, “a questão da presença ou ausência da Filosofia no ensino secundário
brasileiro chega às portas do Golpe Militar de 1964, marcada por um processo de 'extinção'
6
Os cursos secundários, assim como os cursos técnicos e de formação de professores para o Ensino Primário
e Pré-Primário, compreendiam o Ensino Médio, ensino em prosseguimento ao ministrado na escola primária
que destinava-se à formação do adolescente. Vale ressaltar que, aqui, era preciso ter 11 anos de idade ou
alcançar essa idade no correr do primeiro ano letivo do curso.
27
gradativa do currículo que se manifestou na forma de redução de sua carga horária” (2002,
p.34).
As reformas políticas empreendidas pelos governos militares devem ser analisadas
num contexto em que predominava a ideologia da DSND (Doutrina de Segurança Nacional e
Desenvolvimento). Para assegurar as melhores condições para a implementação e manutenção
do modelo ecônomico de internacionalização do mercado interno, em substituição ao modelo
nacional-desenvolvimentista” vigente até então, várias reformas foram elaboradas, sobretudo
no campo educacional.
É assim que, sob a assessoria dos técnicos da USAID, o MEC empreendeu as
reformas educacionais “necessárias” para que se garantisse um desenvolvimento
econômico sem entraves. Os técnicos dessa Agências norte-americana propuseram
uma reformulação curricular dos diversos níveis de ensino escolar no Brasil, que
deveriam se modernizar (ALVES, 2002, p.37)
Essa modernização, segundo Cartolano (1985, p.71) implicava, dentre outra coisas,
uma valorização das áreas técnológicas, em detrimento da formação geral e da gradativa
perda de status das humanidades e ciências sociais.
Visando formar quadros, ou melhor, mão-de-obra barata para preencher as
categorias ocupacionais das empresas em expansão, especialmente as multinacionais
que aqui se instalaram, reorganizaram-se os currículos escolares segundo o modelo
tecnicista, sobretudo os do nível secundário, com vistas a formar indivíduos
executantes de idéias apropriadas do exterior, em vez de formar pesquisadores e
pessoas criativas a partir da realidade nacional. Nesse cenário, a Filosofia passou a
ter cada vez menos importância, seja por não servir aos objetivos tecnicistas em
andamento, ou porque não se coadunava também com os objetivos ideológicos,
condensados na DSND (Doutrina de Segurança Nacional e Desenvolvimento)
(ALVES, 2002, p.37).
Criaram-se então, situações para justificar a ausência da Filosofia no currículo escolar,
como por exemplo, a inclusão de outras disciplinas que, supostamente, tinham o conteúdo
correspondente ao da Filosofia. Eram essas disciplinas: Educação Moral e Cívica (EMC),
Organização Social e Política Brasileira (OSPB) e Estudos dos Problemas Brasileiros (EPB).
Mas isso não significava que tais disciplinas comportassem os conteúdos filosóficos,
muito pelo contrário, mas era essa a idéia veiculada como justificativa para não incluir a
Filosofia no currículo. A educação moral e cívica, por exemplo, veiculava valores fundados na
moral católica e no civismo, destacando o aprimoramento do caráter, a dedicação à família e,
principalmente o culto da obediência à lei. “A Filosofia era normalmente associada a essa
disciplina, em nível de equivalência, de modo que se uma fosse contemplada no currículo não
havia a necessidade de incluir a outra, para não sobrecarregar o currículo com disciplinas
equivalentes” (ALVES, 2002, p.39).
Porém, foi a Lei n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino
28
de 1º e 2º graus)7 que definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do
nível secundário, até o fim do regime militar.
A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus
(antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma
nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização
compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das
funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75).
Segundo seu Art. 1º, o ensino, tanto de 1º como de 2º grau, tinham como objetivo geral
“proporcionar ao educando a formação necessária ao desenvolvimento de suas
potencialidades como elemento de auto-realização, qualificação para o trabalho e preparo para
o exercício consciente da cidadania”. Tendo em vista, então, a qualificação para o trabalho, a
Lei n.º 5692/71, previa em seu Art. 4º a organização dos currículos, tanto do ensino primário
como o secundário, atribuindo-lhes um “núcleo comum”, obrigatório em âmbito nacional, e
uma “parte diversificada”, que deveria atender às necessidades de cada escola e/ou região.
As disciplinas que passaram a constituir o núcleo comum, fixadas pelo Conselho
Federal de Educação foram “Comunicação e Expressão (língua portuguesa e língua
estrangeira moderna), Estudos Sociais (história, geografia e organização social e política do
Brasil) e Ciências (matemática e ciências físicas e biológicas)” (CARTOLANO, 1985, p.76).
Além desse núcleo comum, outras disciplinas foram fixadas como obrigatórias pelo
Conselho Federal. Conforme o Art. 7º da Lei n.º 5692/71, eram elas: Educação Moral e
Cívica, Educação Física, Educação Artística e Programas de Saúde; o ensino religioso, de
matrícula facultativa, constituiu-se disciplina dos horários normais dos estabelecimentos de
ensino de 1º e 2º graus.
Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser
integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na
prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo
federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino.
Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do
ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a
inclusão da Filosofia no currículo.
[...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em
função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se
filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4).
É nesse período que é criada a Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficas (SEAF),
7
Com a Lei 5692, de 1971 o colegial passou a se denominar 2º grau, que deveria ter três ou quatro séries
anuais. O ginásio incorporou-se ao ensino de 1º grau, que deveria ter a duração de 8 anos letivos.
29
em 1975, como resposta à retirada da Filosofia do currículo do ensino secundário (Lei n. º
5692/71).
A SEAF nasceu devido à necessidade de se criar uma alternativa para a discussão de
idéias, compartilhar estudos, etc., atividades inviabilizadas nos cursos e departamentos de
Filosofia das universidades por causa da grande vigilância imposta pelo regime militar. A
SEAF fazia parte de um movimento de protesto contra a exclusão da Filosofia, movimento
que reivindicava a volta da disciplina ao currículo escolar. Esse movimento contou também
com outras importantes referências nacionais, tais como a CONVÍVIO (Sociedade Brasileira
de Cultura); o CONPEFIL (Conjunto de Pesquisa Filosófica); a ABFC (Associação Brasileira
de Filósofos Católicos); o IBF (Instituto Brasileiro de Filosofia), a CNDF (Coordenação
Nacional dos Departamentos de Filosofia); além da marcante presença dos estudantes de
Filosofia, que além de participarem das atividades das entidades já citadas, passaram a
organizar seus próprios encontros, os ENEFILS (Encontros Nacionais de Estudantes de
Filosofia). Outro acontecimento marcante desse movimento de protesto foi a criação da
ANPOF (Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia), em 1983.
A ANPOF não demonstrava grandes interesses pelas questões que inspiravam a SEAF,
inclusive no que dizia respeito à reintrodução da Filosofia no 2º grau, no entanto, passou a ser
oficialmente reconhecida como representante da área de filosofia junto “aos órgão públicos
federais de fomento para ensino, pesquisa e extensão, começando a receber verbas da CAPES
e do CNPq ...” (ALVES, 2002, p. 51).
A Filosofia voltou ao currículo no Rio de Janeiro, como “noções de Filosofia”, pelo
parecer CEE/RJ n. 49, de 21 de janeiro de 1980.
A Filosofia retornou ao ambiente escolar, mas como uma disciplina optativa,
controlada/vigiada e muitas vezes ministrada por professores formados em outras áreas do
conhecimento. A forma como foi reintroduzida, portanto, não correspondeu, em muitos
aspectos, àquilo que pretendiam as várias entidades representativas do movimento.
Já que até o momento a Filosofia não havia encontrado nenhum respaldo nos órgãos
oficiais, responsáveis pela política educacional do governo, por que, então, a sua inclusão no
currículo do secundário passava a ser interessante aos olhos do governo, vale dizer do ESN?
Para responder tal questão, é preciso contextualizar o momento.
Era o período do desgaste do “milagre econômico”, que teve como efeito, dentre
outras coisas, a queda do nível de vida das camadas médias, contribuindo, assim, para
aumentar o clima de oposição ao regime militar.
Com uma oposição quase generalizada, vinda de vários setores da sociedade,
30
inclusive de setores da elite, como a OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), ABI
(Associação Brasileira de Imprensa), CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do
Brasil), universidades etc., o governo começou a não poder mais assegurar a „ordem‟
por meio da repressão indiscriminada e violenta, sendo obrigado a buscar outras
formas de legitimação. (ALVES, 2002, P. 49).
Teve início, então, o processo de “redemocratização” da sociedade, marcado por uma
política de abertura lenta, gradual e segura dos Governos Geisel e Figueiredo, o que significou
uma estratégia muito bem articulada de recomposição da hegemonia do ESN, que conseguiu
renovar sua legitimidade perante a elite oposicionista e, ao mesmo tempo, assegurar a
continuidade do modelo político e econômico vigente. Assim, tudo indica que a reintrodução
da Filosofia ao currículo do Ensino Secundário, nesse momento, fez parte da estratégia do
ESN para a recomposição da sua hegemonia, reafirmando o discurso oficial de
democratização da sociedade.
Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei nº 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma
“presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os
educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e
Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas. Presença inócua porque o
discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma presença efetiva dessa disciplina
nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade da Filosofia está presente na lei,
mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não nos é possível afirmar com
precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio, se como uma
disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada de forma transversal
em outras disciplinas.
Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento.
Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a
tomar (SEVERINO, 2002, p. 65).
Segundo Alves (2002), a Lei número 9.394/96 é o cumprimento de um programa cujo
principal objetivo é a centralidade da educação. Tal programa começou a ser implementado no
Brasil de forma mais incisiva e sistemática no governo de Fernando Collor de Melo, e que foi
sustentado com maior competência pelo governo de Fernando Henrique Cardoso em seus dois
mandatos. Não é coincidência que, depois de oito anos, a lei tenha sido aprovada nesse
período. Ela finalmente estava de acordo com os “interesses privatistas e com o ideário
neoliberal” (ALVES, 2002, p. 64). A Lei, nos moldes almejados pela iniciativa privada e pelo
MEC, foi sancionada sem vetos pelo então presidente da República Fernando Henrique
Cardoso.
31
Ainda segundo Alves (2002), essa Lei é um
marco simbólico de uma „guinada‟ neoconvervadora em educação no Brasil, na
década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que se caracteriza pelo combate
intransigente aos direitos sociais e aos ganhos de produtividade da classe
trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos econômicos,
defendendo o postulado de que “o mercado é a lei social soberana” ( 2002, p. 63).
Como diz Saviani:
Seria possível considerar esse tipo de orientação e, portanto, essa concepção de
LDB, como uma concepção neoliberal? Levando-se em conta o significado
correntemente atribuído ao conceito neoliberal, a saber: valorização dos mecanismos
de mercado, apelo à iniciativa privada e às organizações não governamentais em
detrimento do lugar e do papel do Estado e das iniciativas do setor público, com a
conseqüente redução das ações e dos investimentos públicos, a resposta será positiva
(2003, p. 200).
Por aproximadamente três anos, tramitou na Câmara e no Senado Federal, um projeto
de lei complementar que substituiria o artigo 36 da LDB, definindo a obrigatoriedade das
disciplinas de filosofia e sociologia nos currículos do Ensino Médio. Após a aprovação do
projeto nessas duas instâncias do Poder Legislativo Federal, ele foi vetado, em outubro de
2001, pelo então presidente Fernando Henrique Cardoso.
Os argumentos que sustentaram o veto foram basicamente dois [...] a) a inclusão das
disciplinas de Filosofia e Sociologia implicaria incremento orçamentário impossível
de ser arcado pelos estados e municípios; b) não haveria suficientes professores
formados para fazer frente às novas exigências da obrigatoriedade da disciplina
(FÁVERO, CEPPAS, GONTIJO, GALLO, KOHAN, 2003, p. 260).
Mas em 2 de junho de 2008, a lei número 11.684 alterou o artigo 36 da lei número
9.394/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias nos currículos
de ensino médio.
Como se pode ver, a Filosofia tem uma certa presença na educação brasileira, por isso,
é relevante estudar sua situação como componente obrigatório do currículo do Ensino Médio
para que se possa compreender por que, nos dias atuais, ela voltou a ser algo relevante para a
formação dos jovens.
32
A Filosofia nos Parâmetros Curriculares Nacionais, nos PCN+ e nas Orientações
Curriculares para o Ensino Médio.
A atual LDB reforça a necessidade de se proporcionar uma formação básica comum
para todos os educandos em território nacional. Tem-se, então, a necessidade de se estabelecer
diretrizes básicas que norteiem os currículos. É neste contexto em que surgem os documentos
oficiais que estabelecem orientações e parâmetros para a organização curricular no país. São
estes documentos: os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN); os PCN+ (Orientações
Educacionais Complementares aos PCN); e as Orientações Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (OCNEM), datados respectivamente de 2000, 2002 e 2006.
É importante frisar que a existência desses documentos não significa que exista um
sistema nacional de ensino no Brasil. Os PCN, os PCN+ e as OCNEM são apenas modelos,
sugestões, que podem ou não ser seguidos. Esses documentos são parâmetros, e não ditames.
Esses três documentos constituem uma reiteração das diretrizes e finalidades do
Ensino Médio expressas na LDB. Dessa forma, as concepções de formação e de cidadão
expressas na LDB figuram como uma espécie de pano de fundo desses documentos: será com
vistas nessas concepções que os documentos farão suas propostas.
Assim sendo, analisar como se dá a presença da Filosofia nesses três documentos
ajudaria ainda mais a entende-la como disciplina escolar, além de ajudar a ver a evolução da
importância dada à sua presença no currículo do Ensino Médio.
Se considerarmos como “princípios gerais do Ensino Médio” os definidos na Lei de
Diretrizes e Bases, o espírito da proposta de ensino desenvolvida na parte dos PCNEM
dedicada à Filosofia, é bem coerente com a concepção assumida nos textos que compõem as
Bases Legais.
A coerência entre os textos dos PCN da Filosofia e a lei, repousa em concepções de
ensino e de Filosofia que se aproximam em muitos pontos, particularmente nos conceitos de
razão, crítica, interdisciplinaridade, contextualização e competência, sobretudo se levarmos
em conta o Parecer CEB/CNE nº 15/98 que compõe as Diretrizes.
No entanto, essa coerência repousa sobre uma ambigüidade fundamental (não um
conflito explícito) entre os textos da lei - LDB e as Diretrizes Curriculares para o Ensino
Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 03/98) - e a parte dos 3
documentos dedicada à Filosofia. Enquanto a LDB e as DCNEM (em seu texto original), ao
mesmo tempo em que valorizam os conhecimentos de Filosofia como necessários ao
33
exercício da cidadania, não asseguram a oferta destes no Ensino Médio, os Parâmetros, os
PCN+ e as OCNEM defendem sua obrigatoriedade, embora discordem entre si quanto à
forma como tal obrigatoriedade deva ocorrer. Os Parâmetros defendem a transversalidade, os
PCN+ defendem um currículo elaborado em torno de eixos temáticos (começam a dar
elementos para a exigência de um espaço próprio para os conteúdos de Filosofia, mas ainda
não falam em um conteúdo obrigatório) e as OCNEM defendem que a Filosofia deva ser
disciplina obrigatória e indicam um currículo baseado nos seus conteúdos construídos
historicamente (algo como uma história da Filosofia).
É neste quesito (defesa da obrigatoriedade) que se encontra a principal diferença entre
os três documentos.
Os PCNEM, embora defendam a importância e a obrigatoriedade da Filosofia ,
afirmam que ela deve ser tratada com interdisciplinaridade (estando assim, de acordo com as
DCNEM), pois assim o “papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer
posição em que estivermos, ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes
perspectivas teóricas e pedagógicas que compõem o universo escolar” (PCNEM/Filosofia,
p.46).
De acordo com o texto dos PCNEM/Filosofia, ela possui uma natureza
transdisciplinar8, o que poderia colaborar decisivamente no trabalho de articulação entre os
diferentes sistemas teóricos. Segundo o texto, essa transdisciplinaridade da Filosofia poderia,
por exemplo, levar o estudante a compreender de forma reflexiva, conteúdos das Ciências
Naturais, das Ciências Humanas e das Artes.
Vale frisar que há nos PCNEM uma grande defesa de um currículo interdisciplinar, ou
seja, não mais organizado em disciplinas. De acordo com o texto:
[...] nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de
fundo cultural fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino
de disciplinas isoladas, para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a
falência e a insuficiência de nossos modelos educacionais, do ponto de vista de seus
mais altos objetivos, os quais exigem a formação de competências gerais e básicas
nos planos cognitivo, instrumental, moral, político e estético. A reforma curricular
que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa distorção
(PCN/Filosofia, p.56).
A interdisciplinaridade viria, então, ajudar na busca por uma contextualização do
conhecimento escolar, evitando sua compartimentalização. Assim, os PCNEM/Filosofia não
indicam conteúdos de Filosofia, apenas apontam competências e habilidades que devem ser
desenvolvidas.
8
Transversalidade e interdisciplinaridade são modos de se trabalhar o conhecimento buscando a reintegração
de aspectos que ficaram isolados uns dos outros pelo tratamento disciplinar.
34
Tal atitude parece ser um tanto quanto falha, uma vez que não é possível exercitar a
“reflexão sobre” sem estar ciente de fenômenos, conceitos e conteúdos próprios de uma
determinada área. Segundo Gallo (2002), só se pode tranversalizar a partir de uma
singularidade.
Sem a singularidade da Filosofia estar presenta na escola, através de um professor
bem formado, apto a promover a atividade filosófica com os jovens estudantes, não
haverá possibilidade de um aporte de fato filosófico (GALLO, 2002, p.287)
Não se pode ignorar que, como área do conhecimento, a Filosofia possui conteúdo
cultural, métodos e mecanismos próprios. Ela não é apenas reflexão sobre as outras áreas do
conhecimento.
Fica claro, então, que nos PCNEM/Filosofia, não há uma defesa de um espaço próprio
para os conhecimentos de Filosofia.
Nesse pontos, os PCN+/Filosofia “avançam” um passo em relação aos PCN/Filosofia,
pois embora não defendam explicitamente que a Filosofia deva ter um espaço próprio, eles
defendem o uso de conteúdos programáticos no desenvolvimento de competências e
habilidades.
O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos progrmáticos,
e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais
inéditas e complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes
acumulados se não se transformassem em condições para serem aplicadas no
trabalho, no convívio da família, no lazer, nas mais diversas situações que exijam
reconfigurações do conhecimento (PCN+/Filosofia, p.49)
Nos PCN+/Filosofia também há uma argumentação a favor da utilização da
interdisciplinaridade na organização curricular nacional.
Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do
ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica,tentando dar
conta da avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas
inúmeras disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma
aprendizagem fragmentada da realidade (PCN+/Filosofia, p.49)
E também defendem que a Filosofia possui uma natureza transdisciplinar e,
portanto, teria uma vocação para “a visão de conjunto, para a percepção da totalidade” (p.49).
Mas, como dissemos anteriormente, ao contrário dos PCNEM/Filosofia, que defendem a
Filosofia apenas como uma reflexão, os PCN+/Filosofia afirmam que é através da articulação
de conceitos e conteúdos próprios da Filosofia que as competências e habilidades serão
desenvolvidas. Em outras palavras, começam a dar elementos para a exigência de um espaço
próprio para os conteúdos de Filosofia. Os PCNN+/Filosofia sugerem um currículo baseado
em eixos temáticos derivados “dos conceitos estruturadores e das competências sugeridas para
a àrea em geral e para cada disciplina” (p.52). Por exemplo, uma dos eixos temáticos
35
sugeridos é o “Relações de poder e democracia”, dentro desse eixo há o tema “Democracia
grega” e dentro deste temos os subtemas “A ágora e a assembléia: igualdade nas leis e no
direito à palavra” e “Democracia direta: formas contemporâneas possíveis de participação da
sociedade civil”. A idéia por detrás desse currículo seria introduzir discussões acerca do
mundo moderno através de temas filosóficos.
Já nas OCNEM/Filosofia, de 2006, encontramos uma explícita defesa de um espaço
próprio e obrigatória para a Filosofia.
A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio [...] O
tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao mesmo
tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi
o, pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são
possíveis se forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como
disciplina, implicando a garantia de recursos materiais e humanos
(OCNEM/Filosofia, p.15)
De acordo com o texto do documento, rediscutir os parâmetros para a Filosofia traria
“novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes curriculares do Ensino Médio”
(p.16).
Segundo as OCNEM/Filosofia, os PCNEM/Filosofia contêm muitas ambigüidades, e a
maioria delas são resultado de uma indefinição: a de apontar a necessidade da Filosofia sem,
no entanto, oferecer-lhe as adequadas condições curriculares. A origatoriedade da disciplina
seria algo essencial para qualquer debate interdisciplinar, pois sem estar presente (com um
espaço próprio) a Filosofia nada teria a dizer, pois não seria considerada como um conjunto
particular de conteúdos e técnicas. Ela acabaria se tornando “uma vulgarização perigosa de
boas intenções que só podem conduzir a péssimos resultados” (p.17)
As Orientações indicam um currículo baseado numa abordagem história dos conteúdos
de Filosofia. O texto argumenta que o aspecto peculiar da Filosofia, que a diferencia das
outras áreas do saber, é a relação singular que ela mantém com sua história, “sempre
retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e
sentido” (p.27). De acordo com o documento, pedir aos alunos que pensem e reflitam sobre os
problemas modernos do ser-humano sem oferecer-lhes a base teórica seria a mesma coisa que
pedir-lhes que descubram por si mesmos qual a é a fórmula da gravitação sem estudar Física.
Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma
amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode propor-se
ao diálogo com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar
na formação do educando (OCNEM/Filosofia, p.27)
Logo no primeiro parágrafo da Introdução das OCNEM/Filosofia podemos ler:
A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é
condição para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível
36
de ensino, com as outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do
educando (p.15)
É evidente que, não podendo tornar obrigatório o que a LDB apenas faculta 9, os
documentos tomam a defesa da área e recomendam a presença obrigatória de um profissional
de filosofia no Ensino Médio.
É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo dispensar
a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela
Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica
dos diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe
frisar que o conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que,
portanto, não pode ser adequadamente tratado por leigos. (PCN/Filosofia, p. 56)
Levando em conta a legislação educacional em vigor, em especial a LDB/96, que, ao
definir o perfil de saída do egresso do Ensino Médio, prescreve que este deve apresentar,
dentre outras coisas, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao
exercício da cidadania, três questões são discutidas nos textos dos PCNEM/Filosofia e das
OCNEM/Filosofia: “(a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que
aspectos deve-se recobrir
a concepção de cidadania assumida como norte educativo?” (PCNEM/ Filosofia, p.46).
A discussão sobre a questão (a)”que conhecimentos são necessários?” foi deixada
para o final, pois, segundo os autores ela está inserida no contexto do debate sobre
“as competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por isso iniciam
abordando, primeiramente a questão (b)”que Filosofia?” (ALVES, 2002, p.97).
Por isso, nos Parâmetros e nas Orientações, a primeira questão contemplada é a
necessidade e a importância do professor de Filosofia realizar, não só em sua prática junto aos
alunos mas também na sua construção de identidade como docente de Filosofia, uma reflexão
acerca do problema “O que é Filosofia?”. Nos Parâmetros lemos:
Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta
(b) “que Filosofia?” decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de
filosofar que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que
ele tenha feito sua escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o
mundo, pensa e ensina. Caso contrário, além de esvaziar sua credibilidade como
professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um fundamento, a partir do qual
possa encetar qualquer esboço de crítica. (PCN/Filosofia, p.48).
A mesma tese é apresentada nas Orientações
Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta “que
filosofia?” sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que
considere justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e
axiológica a partir da qual lê o mundo, pensa e ensina (OCN/Filosofia, p.24).
Sinaliza-se, então, a necessidade do professor construir sua identidade enquanto um
agente que atua dentro de um conjunto sistematizado de conhecimentos. Assim sendo, a
9
Todos os documentos aqui trabalhados foram escritos antes da mudança no Art.36 da LDB.
37
definição filosófica adotada pelo professor está atrelada à construção da própria identidade do
professor como sujeito e não apenas como professor de Filosofia. Ou seja, a posição do
professor diante da questão “que Filosofia” não significa somente definir sua concepção
filosófica, trata-se de um posicionamento político diante de seu trabalho. Isto implica a opção
por um determinado modo de filosofar que o(a) professor(a) considera justificado. Definir o
conceito de Filosofia é, então, o passo fundante do processo de se ensinar Filosofia; significa
dizer, desde o início, com qual autor, com qual referencial teórico irá trabalhar; é, enfim,
assumir “uma postura filosófica em torno dos problemas filosóficos emergidos no processo de
ensino” (Danelon, 2010, p.109).
No entanto, ao mesmo tempo em que defendem que o professor deve ter definido seu
próprio conceito de Filosofia (o que implica escolher determinada corrente filosófica) a ser
assumido em sua prática pedagógica, tanto os PCNEM como os PCN+, como as OCNEM,
baseando-se na Resolução CNE/CEB nº 03/98, ao definirem quais valores devem ser
trabalhados para uma formação cidadã, acabam por delimitar a ação pedagógica. Isso porque
não são todas as correntes filosóficas que abordam tais valores.
Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente
apresentados na
Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98:
I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao
respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca.
(PCNEM/Filosofia, p. 48)
É importante relembrar, nesta altura, a afirmação de Goodson (2001) de que não existe
uma total dicotomia entre o currículo escrito e o currículo interativo. O currículo escrito não é
irrelevante para a prática pedagógica (por mais que o (a) professor (a) tenha sua autonomia
uma vez que a porta da sala de aula se feche), esta não está completamente livre das
definições pré-ativas. Embora seja possível para a prática subverter ou transcender tais
definições, a definição do que deve ser ensinado envolve um enorme conjunto de prioridades
sociais e políticas que, inevitavelmente, afetam a orientação pedagógica e a realização na sala
de aula. Nem o currículo escrito, nem o currículo interativo são fatos consumados: ambos são
uma práxis.
Um bom exemplo da influência das definições pré-ativas na prática pedagógica é o
vestibular, que é “construído” baseado na LDB e nas DCNEM. Isso porque, mesmo que o(a)
professor(a) tenha sua autonomia dentro da sala de aula, ele(a) ainda tem que “passar” para
seus(as) alunos(as) os conhecimentos exigidos pelo vestibular. Afinal, uma das finalidades da
38
educação básica é fornecer ao educando “meios para progredir no trabalho e e em estudos
posteriores” (LDB, Art 22º).
Num segundo momento a questão (c) é discutida. A cidadania é tomada em três
dimensões distintas: estética, ética e política.
[...]A perspectiva estética, ou da sensibilidade, volta-se para questões de “natureza
interna” e “se traduz na fluência da expressão subjetiva e na livre aceitação da
diferença (Brasil, SEMTEC, 199b, p.97): ela é expressão da capacidade de abertura
para o outro, o diferente, a novidade etc. No aspecto ético ou identidade autônoma,
“a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de respeito universal e
liberdade na tomada de posição” (idem, ibidem) [...] do ponto de vista político, ou da
participação democrática, deve-se garantir o acesso de todos aos bens culturais e
naturais existentes; o respeito às opiniões e aos estilos de vida de cada cidadão e o
engajamento concreto na construção de uma sociedade democrática (ALVES, 2002,
p.98)
A discussão acerca da questão “(a) que conhecimentos são necessários?” é
desenvolvida no item “Competências e Habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia”.
Os Parâmetros, assim como as Orientações, na parte específica sobre “Conhecimentos
de Filosofia”, apóiam-se, de início, no artigo 35 da LDB, que define as finalidades do Ensino
Médio e insistem na contribuição decisiva da Filosofia para o alcance das seguintes
finalidades:
Art. 35º. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de
três anos, terá como finalidades:
I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar
aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições
de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética
e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Nos PCN+ encontramos a mesma referência ao artigo 35 da LDB.
Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos
quais poderemos partir [...]
o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação
básica para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico (inciso III) e a compreensão dos
fundamentos científicos e tecnológicos dos processos produtivos, relacionando
a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV); [...]
(PCN+/Filosofia, p.41)
Em seguida, complementam sua afirmação com o texto do Art. 36º, reforçando o
domínio de conhecimentos necessários à cidadania. Com isso, os documentos acolhem como
meritório o que parece ser um aspecto problemático: o de restringir o interesse essencial da
Filosofia, que deve ser ministrada no Ensino Médio, a questões, aparentemente, de Filosofia
39
Política, sendo convocada, talvez, em lugar da Educação Moral e Cívica ou da Organização
Social e Política Brasileira, com o objetivo de desempenhar um papel politicamente correto.
À medida que o texto continua, os conhecimentos de Filosofia se traduzem em
competências e habilidades. Parece-nos que, tanto os PCNEM/Filosofia quanto os
PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia (embora estes dois últimos defendam um espaço
próprio para a Filosofia), não defendem conteúdos de Filosofia que possam, em tese,
contribuir para a formação dos jovens, mas sim atitudes e competências ditas filosóficas,
como a competência da leitura – que não é qualquer leitura, mas uma que envolva a
capacidade de análise, de interpretação, de reconstrução racional e de crítica. O texto dos
documentos destaca principalmente I)competências comunicativas e II)competências cívicas.
A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se
trata de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do
desenvolvimento do pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial
e fragmentada dos fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da
capacidade de pensar múltiplas alternativas para a solução de um problema, ou seja,
do desenvolvimento do pensamento crítico, da capacidade de trabalhar em equipe,
da disposição para procurar e aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber
comunicar-se, da capacidade de buscar conhecimentos. De forma um tanto sumária,
pode-se afirmar que se trata tanto de competências comunicativas, que parecem
solicitar da Filosofia um refinamento do uso argumentativo da linguagem, para o
qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da Filosofia, quanto de
competências, digamos, cívicas [...] (OCNEM/Filosofia, p.30)
Poderíamos, até mesmo, fazer um paralelo com as aulas de retórica ministradas pelos
Sofistas na Grécia Antiga. A retórica era a arte de persuadir, independentemente das razões
adotadas. A grande crítica feita aos Sofistas, principalmente por Platão, era a de que os
Sofistas apenas formavam grande oradores, com uma capacidade de argumentar a favor de
qualquer ideal, não formavam sujeitos que dominassem os conhecimentos filosóficos. No
diálogo Sofista, Platão demonstra que a sofística tinha como objetivo o desenvolvimento do
poder de argumentação, da habilidade retórica.
Os conhecimentos necessários à cidadania, à medida que se traduzem em
competências, não coincidem, necessariamente, com conteúdos, digamos, de ética e
de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida, é a contribuição
mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência
discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o
desenvolvimento geral de competências comunicativas [...] (OCNEM/Filosofia,
p.30)
Todos os três documentos defendem o desenvolvimento de habilidades e
competências. A grande diferença entre eles consiste no dato de que os PCN+/Filosofia e as
OCNEM/Filosofia afirmam que tais habilidades e competências devem ser desenvolvidas
através de conceitos/conteúdos próprios da Filosofia. No entanto, é preciso ter claro que tais
conceitos e conteúdos assumem um papel secundário. Eles não são o objetivo final da
40
disciplina, eles são o meio para desenvolver habilidades e competências ditas filosóficas.
Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências
gerais. Ou seja, mais do que ensinar, deve “fazer aprender”, uma vez que não se
pode prever as modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais
diversos campos da cultura. O importante, no entando, não consiste em menosprezar
os conteúdos programáticos, e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a
serem mobilizados nas mais inéditas e complexas situações reais (PCN+/Filosofia, p
46).
A pergunta que se faz é: “qual a contribuição específica da Filosofia em relação ao
exercício da cidadania para essa etapa da formação?” (OCNEM/Filosofia, p.26). A solução
proposta destaca o papel da Filosofia no desenvolvimento das competências da fala, da
leitura e da escrita.
Nos três documentos são listadas, dentre outras, as competências e habilidades de ler
textos filosóficos de modo significativo; ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas
e registros; elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo; debater, tomando
uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em face de
argumentos mais consistentes.
Nas OCNEM/Filosofia lemos:
A resposta a essa questão destaca o papel peculiar da fi losofi a no desenvolvimento
da competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de
um modo bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofi a e à sua
tradição histórica. Cabe, então, especifi camente à Filosofi a a capacidade de análise,
de reconstrução racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições
diante de textos propostos de qualquer tipo (tanto textos fi losófi cos quanto textos
não filosóficos e formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões
acerca deles é um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania. (p.26)
Em outras palavras: quando o(a) aluno(a) exercita bem a fala (expressão oral de sua
reflexão filosófica), a escrita (produção material de sua reflexão filosófica) e a leitura
(subsídio para a reflexão filosófica), ele(a) desenvolve competências que contribuem para o
exercício geral da cidadania.
Isso é coerente, já que a cidadania é um exercício e a Filosofia pode contribuir com tal
exercício na medida em que ajuda no desenvolvimento das já citadas competências. Porém,
encontramos aqui um “problema”.
Se mais acima localizamos algumas contradições entre textos dos PCNEM/Filosofia,
dos PCN+/Filosofia e das OCNEM/Filosofia e o texto da LDB/96, encontramos aqui mais
uma. Observemos que o Art. 36º da LDB/96 não faz referência a competências necessárias ao
exercício da cidania, mas sim a conhecimentos de Filosofia necessários ao exercício da
cidadania; ou seja, quais conceitos, idéias, sistemas da filosofia podem contribuir para o
exercício da cidadania.
41
Nesse ponto a LDB é extremamente diretiva naquilo que propõe como finalidade da
Filosofia. O Art. 36 demanda uma resposta à pergunta “quais conhecimentos/conteúdos
podem ser ministrados visando colaborar com os jovens para o exercício da cidadania. Essa
era, de fato, a demanda feita pela LDB à Filosofia.
De acordo com Falleiros (2005), o enfoque em competências e habilidades é proposto
objetivando a adaptação dos alunos(as) – novos adultos – às instáveis condições sociais e
profissionais. Apesar da importância dada ao conhecimento, à tecnologia e à ciência, não são
estes que ganham prioridade nas propostas.
Ainda segundo Falleiros (2005), um risoc que se corre ao adotar a pedagogia das
competências é que o conhecimento sistematizado para atingir as competências e habilidades
desejadas seja desvinculado da história, seja “desideoligizado”, desxontextualizado e acrítico.
Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia apresentam uma proposta de
especificidade das Filosofia. Ambos os documentos remetem aos mesmos argumentos na
demarcação da especificidade da Filosofia. O específico da Filosofia é a reflexão.
No PCNEM/Filosofia lemos
À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de
problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e
problemas novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa,
produzindo em resposta a isso um universo sempre crescente de novas teorias e
posições filosóficas. No entanto, é também verdade que essa dispersão discreta de
um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da academia, mas que
certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a ensaiar um
retorno à praça públicas, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum
em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro
lugar, em sua natureza reflexiva. (p.47)
Ou seja, é específico da Filosofia a reflexão como atividade, sem ela não há Filosofia.
A reflexão, segundo o PCNEM/Filosofia abrange duas dimensões distintas, mas que se
confundem: a reconstrução e a crítica.
[...] a reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições
de
possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que
pode(m) ser entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s)
epistemologia(s) e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar
teoreticamente um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos
num dado sistema de regras; a crítica, quando a reflexão se volta para os modelos de
percepção e ação compulsivamente restritos, pelos quais, em nossos processos de
formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e, por um esforço de
análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter
propriamente ilusório.(PCNEM/Filosofia, p.47).
Nas OCNEM/Filosofia o argumento também versa sobre a reflexão
Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do filosofar, não
importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos
42
localizar o que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi
lósofos sopesar os conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugarescomuns que aceitaríamos sem reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de
questões bem mais intrincadas, como a que opõe o determinismo de nossas ações ao
livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar a naturalidade com que usamos
as palavras, tornando-se reflexão (OCNEM/Filosofia, p.22).
Mais adiante o documento afirma:
.Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução
racional e de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos
propostos de qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e
formações discursivas não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é
um pressuposto indispensável para o exercício da cidadania (OCNEM/Filosofia,
p.26).
Nos PCN+/Filosofia a reflexão também é tida como eixo orientador da Filosofia:
[...] optamos por assumir determinada orientação – uma entre muitas possíveis,
voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais como uma
reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos
pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica
dos conhecimentos e das práticas.
(PCN+/Filosofia, p. 44).
No entanto, segundo Gallo (2002), a Filosofia é a criação de conceitos, essa é a sua
ferramenta básica de trabalho. A Filosofia é, então, necessariamente, ação; é produção, é um
ato essencialmente criativo. Assim, sendo, enquanto atividade, a Filosofia não é contemplação
nem diálogo nem reflexão, muito menos discussão.
Além de não garantir a singularidade da Filosofia, a sua limitação ao ato de refletir a
despontencializa como empreendimento criativo: se o filósofo limita-se a refletir, ele
nada cria (Gallo, 2002, p.280).
Além disso, a reflexão é, de fato, uma atividade específica do ser-humano, que é capaz
de refletir sobre si mesmo, sobre os outros e sobre o mundo.
Isto posto, a definição da especificade da Filosofia nos permite remeter a outras
interrogações, a saber, qual é a natureza da reflexão filosófica que a diferencia de
outras formas de reflexão? Seria a capacidade argumentativa? A rigorosidade na
elaboração das definições e dos conceitos? O enfrentamento na natureza da reflexão
filosófica que poderia demarcar a diferença da reflexão do filósofo e do sociólogo ou
do psicólogo, por exemplo, não encontra moradia nesses documentos oficiais, de
forma que fica estabelecido um hiato conceitual acerca do que é, especificamente, a
reflexão filosófica (Danelon, 2010, p.116).
A definição da atividade reflexiva como especificidade da Filosofia demarca um
campo conceitual. Os três documentos introduzem o tema da cidadania no campo conceitual
da especificidade da Filosofia. No entanto, não argumentam o porquê da cidadania pertencer à
especificidade da Filosofia.
Os documentos trazem à tona o tema da cidadania para responder aos dois documentos
normativos da Educação Brasileira: a LDB/96 e as Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no Parecer CNE/CEB n.º 15/98).
43
Ambos apresentam a cidadania como finalidade da educação básica e, conseqüentemente,
como guia para a organização curricular do Ensino Médio.
Nessas questões ((a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de
que aspectos deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte
educativo?) vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da
Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes
entre os professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não
quanto ao “norte educativo”, centrado na formação da cidadania. (PCN+/Filosofia,
p. 43).
Os 3 documentos trabalhados aqui foram escritos quando ainda rezava na LDB/96 a
antiga redação do Art.36, no entanto, a revogação desse artigo não interfere no fato de que a
Filosofia, agora com configuração de conteúdo obrigatório, responde à LDB/96 e às DCNEM
que, conforme vimos, determinam o exercício da cidadania como finalidade do Ensino Médio.
Fica evidente que a Filosofia não está livre e/ou imune às perspectivas que acabam por
direcioná-la.
Conforme vimos anteriormente, segundo Goodson (2001) o currículo não existe à
margem do sistema socioeconômico, da cultura etc. Por isso a seleção dos conteúdos depende
necessariamente de finalidades específicas previstas para a educação. “Tomar o currículo
como um dado significa renunciar a um vasto conjunto de entendimentos sobre aspectos do
controlo e do funcionamento da escola e da sala de aula” (Goodson, 2001, p.57/58).
A presença de uma disciplina no currículo se articula ao papel político que esta
desempenha ou tende a desempenhar.
É importante ressaltar que a escola não é um espaço neutro. Ela é
antes de tudo, uma instituição de controle social e de formação de subjetividades,
um dispositivo que normaliza e simultaneamente totaliza enquanto engloba, ou
procura englobar, os que assistem a ela, naquilo que uma instância exterior
determina como normal e sanciona como correto. Como tal, a escola produz e
reproduz saberes e valores afirmados socialmente (Kohan; Waksman, 1998, p. 85).
Os autores Pedro Gontijo e Erasmo B. Valadão, no texto “Ensino de Filosofia no
Ensino Médio nas escolas públicas do Distrito Federal” (2004) a partir de entrevistas com
professores (as) de Filosofia do Distrito Federal, estabeleceram 3 sentidos que eles(as)
atribuem ao ensino de Filosofia no Ensino Médio:
1 – O ensino de filosofia como um espaço onde se fornecem aos alunos instrumentos
e/ou métodos do aprender a “pensar”, estudar e escrever. Como
uma ajuda aos alunos para terem um argumento logicamente organizado e
fundamentado que os auxilie em qualquer área do conhecimento, ou mesmo em
como organizarem um trabalho acadêmico [...]
2 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinação política e ideológica,
partindo-se do pressuposto de que os alunos são alienados politicamente e a filosofia
teria o papel de libertá-los dessa alienação [...]
3 – O ensino de filosofia como instrumento de doutrinamento moral. Parece que
seria papel da filosofia ajudar os alunos a “encontrarem o caminho”,
44
levá-los a perceber como devem se portar moralmente. Parte-se de alguma
concepção, por exemplo de cidadania ou de civilidade, como modelo e justifica-se
sua primazia sobre outras concepções. [...] (p.297)
Particularmente o 3º sentido, que é o que mais nos interessa aqui, reflete, segundo os
autores, o entendimento dado à Filosofia pela Secretaria de Educação do Distrito Federal. De
acordo com os autores, ao estipular valores como “responsabilidade pelo bem comum” e
“reconhecer direitos humanos e lutar por eles”, a Secretaria da Educação manifesta o que
deseja com a Filosofia na escola.
A partir destes eixos fica uma impressão de que o que a Secretaria de Educação
deseja com a filosofia no ensino médio seja, de certo modo, pouco filosófico e mais
um processo de doutrinamento ético. Quando enfatiza tanto o reconhecer, o valorizar
e optar os aspectos acima citados, parece haver toda uma visão de mundo, de
sociedade e de ser humano que coloca o papel da filosofia como aquela que
possibilitará chegar ao que é o bem e o que é o certo. Expressados por certa visão de
bem comum, de direitos humanos, de indivíduo autônomo, de desenvolvimento e de
reflexão ética, pouco sobra espaço para uma crítica a estas concepções. Afirmamos
que muito mais interessante é se a filosofia possibilitar aos alunos um espaço para
refletirem e problematizarem sobre estes conceitos. (GONTIJO; VALADÃO, 2004,
p.297).
Os autores demonstram enorme preocupação com a vinculação da Filosofia ao aparato
político através de documentos normativos, pois estes apontam um real direcionamento
político e ideológico.
Para além do Distrito Federal, a LDB e as DCNEM também definem valores e
princípios que nortearão a educação nacional.
As DCNEM, inspiradas na LDB, definem os valores norteadores da educação
nacional:
Art. 2º. A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores
apresentados na Lei 9.394, a saber:
I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de
respeito ao bem comum e à ordem democrática;
II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca.
Vale relembrar que a LDB/96 é o marco simbólico de uma “guinada” neoconservadora
na educação brasileira, na década de 1990, nos moldes do ideário neoliberal, que, segundo
Alves (2002, p.63) “se caracteriza pelo combate intransigente aos direitos sociais e aos ganhos
de produtividade da classe trabalhadora, enfim, contra a intervenção do Estado em assuntos
econômicos, defendendo o postulado de que o mercado é a lei social soberana [...]”.
A discussão, votação e promulgação da atual LDB se deu num momento específico
da história político-econômica do Brasil, marcado por uma tendência apresentada
como inovadora e capaz de trazer a modernidade ao país. Assim, no contexto da
globalização de todos os setores da vida social, as elites responsáveis pela gestão
político-administrativa do país rearticulam suas alianças com parceiros estrangeiros,
investindo na inserção do Brasil na ordem mundial desenhada pelo modelo
45
neoliberal. De acordo com esse modelo, o processo fundamental da história humana
deve ser conduzido pelas forças da própria sociedade civil e não mais pela
administração via aparelho do Estado. Entende-se que o motor da vida social é o
mercado e não a administração política. As leis gerais são aquelas da economia do
mercado e não as da economia política. E o mercado se regula por forças
concorrenciais, nascidas dos interesses dos indivíduos e grupos, que se vetorizam no
interior da própria sociedade civil; de onde a proposta do Estado mínimo e os
elogios à fecundidade da livre iniciativa, à privatização generalizada etc.
(SEVERINO, 2002, p.61)
Ainda segundo Alves (2002), a LDB/96 é o cumprimeto de um programa que começou
a ser implementado no Brasil no governo de Fernando Collor, e que foi sustentado mais
sistematicamente no governo de Fernando Henrique Cardoso. A LDB/96 foi aprovada e
promulgada nesse período por estar de acordo com interesses privatistas e com a ideologia
neoliberal. Segundo Marrach (1996), a modernização em curso pretende transformar o Estado
em Estado-mínimo, desenvolver a economia, fazer a reforma educacional e aumentar o poder
da iniciativa privada, por meio do consenso ideológico. Existe, então, uma real possibilidade
de direcionamento político e ideológico da Filosofia.
Além dos valores explicitados que devem ser trabalhados para uma formação cidadã,
apresentados tanto no Art.2º da LDB/96 como no Art.2º das DCNEM (Resolução CNE/CEB
nº3/98), outras normas e valores podem permear as disposições legais, implicitamente. É
aquilo que Apple definiu como currículo oculto. Segundo Apple (1999), o currículo oculto é
constituído por normas e valores que não são mencionados nos objetivos formalizados.
Segundo o autor, a hegemonia de um conjunto ideológico não é produzida e reproduzida
somente pelo corpus formal do currículo. Por detrás dos ideais explicitados na lei, existe uma
certa concepção de ser-humano, de homem, de mulher, de trabalho, de ética etc. O ensino
escolar não se reduz ao que os programa oficiais dizem que querem transmitir.
[...] a Filosofia institucionalizada torna-se uma disciplina da grade curricular,
inserida, portanto, nesta tessitura ideológica e nos discursos hegemônicos que se
ramificam na vida social; está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que
refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo
e de sociedade, bem como um ideal de ser humano a ser formado (Danelon, 2010,
p121).
A lei pressupões valores que definem um modelo de ser-humano, de cidadão a ser
formado pela educação. Fazemos referência, aqui, ao Art.27 da LDB, que define as diretrizes
da educação básica.
Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as
seguintes diretrizes:
I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos
cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática[...]
III - orientação para o trabalho [...]
46
Há aqui, explicitamente, um modelo de ética, de cidadão, de moral. Já está definido
nesses documentos o cenário em que a Filosofia se inclui, bem como sua finalidade.
Vale lembrar que a legislação estadual não pode sobrepor-se à federal. O que ocorre,
portanto, é a organização da educação, seja em nível federal ou municipal, a partir de valores
e princípios apresentados na LDB/96 e nas DCNEM. Como a Filosofia agora faz parte do
aparato escolar, ela não está descolada desses documentos normativos. Os documentos
oficiais postulam um direcionamento à Filosofia. Isso porque os documentos não são neutros
e/ou desiteressados, mas sim carregados com os interesses dos diversos sujeitos envolvidos na
sua formulação.
Não estamos aqui negando a autonomia e a liberdade que o(a) professor(a) tem em sua
sala de aula a partir do momento em que a porta da sala de aula se fechada. Mas não podemos
esquecer que os alunos serão avaliados (SARESP, ENEM, vestibulares etc). Tais avaliações
serão organizadas de acordo com os objetivos determinados na lei para o Ensino Médio, serão
organizadas para verficiar se os egressos atingiram aquilo que era esperado deles.
Os PCNEM/Filosofia e as OCNEM/Filosofia são inspiradores dos projetos
pedagógicos e, conseqüentemente, da avaliação destes.
Acreditar que a Filosofia, uma vez, institucionalizada no aparato legal/burocrático
do sistema de ensino, conserva, mesmo assim, total independência e autonomia é
uma olhar demasiado superficial que toma a Filosofia como o mais importante dos
saberes e que se justifica por si mesma, além de denotar um romantismo roussiniano
(sic) que toma a tarefa de preceptor em Filosofia independente e desligada do meio
social, muito mais próxima, à luz de Rousseau, da natureza (Danelon, 2010, p.121).
A Filosofia institucionalizada, então, torna-se uma disciplina inserida em um
determinado contexto ideológico e está sujeita a toda interferência dos discursos oficiais que
refletem uma visão de mundo, um conjunto de valores, uma concepção de indivíduo e de
sociedade.
Não queremos afirmar que a Filosofia deva ser neutra, mesmo porque a neutralidade
é impossível dado que todo discurso vincula valores, idéias e ideologias. Porém,
demandar para a Filosofia a tarefa de propagar discursos hegemônicos é abstrair dela
a diversidade de idéias e conceitos, bem como de interpretações e visões de mundo
que encontramos na história da Filosofia (Danelon, 2010, p.121).
47
A volta da Filosofia ao currículo do Ensino Médio: da promulgação da nova LDB/1996
até a promulgação da Lei nº 11.684/2008
O desenrolar histórico da presença/ausência da Filosofia como disciplina obrigatória
no currículo do Ensino Médio, nunca foi linear ou harmônico. Por se tratar de um nível de
ensino que passou por muitas reformas (ou crises de identidade), ora voltando-se para a
formação profissional, ora para a formação geral do indivíduo, a história da presença/ausência
da Filosofia no Ensino Médio foi marcada por muitos conflitos, lutas, resistências.
A Filosofia esteve ausente do currículo do Ensino Médio desde a promulgação da Lei
n. º 5692, de agosto de 1971 (que fixa diretrizes e bases para o ensino de 1º e 2º graus), que
definiu a completa ausência da Filosofia dos currículos escolares do nível secundário, até o
fim do regime militar.
A Lei de Diretrizes e Bases, de agosto de 1971, reorganizou o ensino de 1º e 2º graus
(antigos primário, ginásio e colégio) em todo o território nacional, dando-lhes uma
nova estrutura fundada em objetivos universais e criando a profissionalização
compulsória no 2 º grau, que visou, fundamentalmente, o aperfeiçoamento das
funções de discriminação social, via escolaridade (CARTOLANO, 1985, p.75).
Apesar das condições adversas, do ponto de vista legal, a Filosofia poderia ser
integrada no currículo do secundário, como disciplina da parte diversificada; porém, na
prática isso se tornava quase impossível, devido aos muitos dispositivos criados pelo governo
federal que inviabilizavam a inclusão da Filosofia nesse nível de ensino.
Mesmo não sendo possível, neste momento, garantir sua presença no currículo do
ensino médio das escolas públicas nacionais, sempre existiu alguma forma de pressão para a
inclusão da Filosofia no currículo.
[...] a questão do ensino da Filosofia não ficou esquecida nem sem defensores. Em
função do retorno do seu ensino em caráter obrigatório, ao 2º Grau, empenharam-se
filósofos, educadores, estudantes e entidades (GASPARELLO, 1986, p. 3,4).
Até 1971, o Ensino Médio estava basicamente centrado na formação humanística,
voltada para a preparação da elite brasileira para ocupar as profissões consideradas
dignas/nobres: medicina, direito e engenharia; para as atividades intelectuais e artísticas. A
preparação para o trabalho, ou ensino profissionalizante, era somente oferecido aos jovens
das classes mais baixas. Essa “modalidade” de ensino, até então, era uma forma de controle
da pobreza.
O Ensino Médio (aquele voltado para as elites) tinha uma caráter clássico e científico,
isso porque havia uma grande valorização do passado (dos clássicos) andando de mãos dadas
48
com as ciências, que eram necessárias para o estudo da sociedade moderna. Visava-se, então,
formar o ser-humano integral (idéia de cultura geral).
Mas em 1971, com a lei nº5692, rompeu-se com esse eixo de ensino, baseado na idéia
de cultura geral. O Ensino Médio passou a se caracterizar pela formação profissional, pelo
ensino tecnicista e profissionalizante, demonstrando a ênfase à educação como investimento
para o desenvolvimento e como habilitação para o trabalho. O ensino profissionalizante já não
era “exclusividade” das classes menos abastadas.
Nos governos militares, rompe-se com o eixo do ensino baseado nas disciplinas
tradicionais das ciências humanas e ciências naturais. O currículo do 1º e do 2º grau
regionaliza10 os conhecimentos agrupando-os em áreas de aplicabilidade tecnológica
imediata. Assim, disciplinas como a Filosofia e a Sociologia foram deixadas de lado. Segundo
Callegari (2008, p.23) “o cerco foi tal, que essas matérias foram desaparecendo, tanto das
escolas públicas quanto das particulares”.
Já nos anos 90, auge do neoliberalismo, a Filosofia voltou a ficar na mira de medidas
restritivas. Afetados pela idéia de uma educação meramente utilitária e tecnicista, os
currículos foram adaptados para assegurar apenas o que era considerado como mais
necessário. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da situação
atual, a qual passa a ser vista como inevitável. A qualificação profissional passa a apresentada
como grande fórmula para se ingressar no mercado de trabalho e, assim, a pobreza e a riqueza
deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão de
capacitação profissional e intelectual do indivíduo.
Mesmo em São Paulo, o maior estado brasileiro em termos econômicos, houve uma
brutal reorganização curricular do ensino médio que acarretou a supressão de
milhões de aulas de história, geografia, artes e, como não poderia deixar de ser, o
desaparecimento de milhares de aulas remanescentes de sociologia e filosofia [...]
Porém, para lástima daqueles burocratas da educação, nem bem dez anos foram
necessários para que se constatasse que
algo não deu certo. Dados e análises do Sistema de Avaliação da Educação Básica
produzido pelo MEC/INEP, passaram revelar uma realidade implacável: de 1995
para cá, a qualidade da educação dos jovens brasileiros (e dos paulistas também) não
parou de cair [...] Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que faz os
conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência
dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de
ensino e aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira. O
descompromisso das elites dominantes que ao longo da nossa história tomaram
decisões sobre a prioridade a ser dada à educação chega às raias da
irresponsabilidade para com o futuro da nação (CALLEGARI, 2008, p.24).
Mas, no dia 9 de junho de 2008, o então presidente da República em exercício, José
Alencar, sancionou o projeto de lei que tornou obrigatórias as disciplinas de sociologia e
10
Regionalizar os conhecimentos significa agrupá-los em função de sua aplicabilidade
49
filosofia nas três séries do ensino médio em todas as escolas do país. O ato presidencial não
apenas coroou mais de trinta anos de lutas de várias entidades, como também colocou um
ponto final nas disputas legislativas que vinham desde o veto de Fernando Henrique Cardoso
ao projeto de lei nº 3.178/1997.11
Passemos agora à análise de alguns instrumentos legais que refletem as vicissitudes da
presença/ausência do ensino da Filosofia nos currículos oficiais pelo Brasil.
Em 20 dezembro de 1996 foi promulgada a nova Lei de Diretrizes e Bases da
Educação Nacional (Lei n. º 9.394). Desse ponto em diante, a Filosofia passa a ter uma
“presença inócua” no currículo da educação secundária, pois a lei, apesar de afirmar que os
educandos devem apresentar, ao final do Ensino Médio, conhecimento de Filosofia e
Sociologia, ela não define a obrigatoriedade dessas duas disciplinas.
Art. 36
§ 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de
tal forma que ao final do ensino médio o educando demonstre: [...]
III - domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao
exercício da cidadania..
Presença inócua porque o discurso da importância da Filosofia não se traduz em uma
presença efetiva dessa disciplina nos currículos do Ensino Médio. Por um lado, a necessidade
da Filosofia está presente na lei, mas ao analisarmos mais atentamente percebemos que não
nos é possível afirmar com precisão como se dá a inclusão da Filosofia no currículo do Ensino
Médio, se como uma disciplina específica, obrigatória, ou se a Filosofia deve ser trabalhada
de forma transversal em outras disciplinas. Pelas determinações da nova LDB, o ensino de
Filosofia em nenhum aspecto é proíbido, mas apesar da indicação de sua possibilidade,
também não é obrigatório.
Desse modo, a lei conceitua mas não obriga, não assegura seu próprio cumprimento.
Assim, tudo passa a depender das medidas que os gestores do sistema venham a
tomar (SEVERINO, 2002, p. 65).
Percebe-se que a Filosofia é contemplada referencialmente apenas como conhecimento
a ser dominado e demonstrado ao final do curso do ensino médio. De algum modo indica-se a
necessidade de que a Filosofia faça parte do currículo; ao contrário do modo como, nos cinco
parágrafos do Artigo 26 da LDB de 1996, se expõe a obrigatoriedade do estudo da língua
portuguesa e da matemática; do mundo físico e natural e da realidade social e política,
especialmente do Brasil; da arte; da educação física; da história; e de uma língua extrangeira.
11
No dia 8 de outubro de 2001, Fernando Henrique Cardoso, então presidente da República, vetou o projeto de
lei do deputado padre Roque Zimmerman, que propunha a obrigatoriedade do ensino da sociologia e filosofia no
ensino médio
50
No entanto, poucos meses depois da nova LDB, o então deputado federal Padre Roque
Zimmermann12 (PT-PR), apresentou o Projeto de Lei n.º 3.178, de 28/05/1997 (que no Senado
ganhou o número de PLC 9/00). O referido projeto propunha a alteração do Artigo 36 da Lei
n.º 9394/96, para que a Filosofia e a Sociologia se tornassem disciplinas obrigatórias no
Ensino Médio.
Num primeiro momento de apreciação nas Comissões Temáticas, o PL13 obteve
parecer favorável na Comissão de Educação, Cultura e Desporto (CECD), encarregada da
análise do mérito e da avaliação e apreciação inicial do projeto. A Comissão de Constituição e
Justiça (CCJ), encarregada da apreciação da juridicidade, constitucionalidade e técnica
legislativa, também aprova o Projeto de Lei de Zimmermann. O poder terminativo das
referidas Comissões dispensou seu trâmite pelo Plenário da Câmara dos Deputados, sendo
que, imediatamente após as apreciações das duas Comissões, o PL foi encaminhando ao
Senado Federal, em 13 de abril de 2000.
Os trâmites pelo Senado Federal seguiram as ritualísticas legislativas de praxe, com
ambas as comissões, de Educação e de Justiça, através dos Senadores José Fogaça (Justiça) e
Álvaro Dias (Educação) apresentando pareceres favoráveis à aprovação da obrigatoriedade da
inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia nos currículos do ensino médio.
O governo de Fernando Henrique Cardoso reage à proposta legislativa com um
Parecer elaborado pela Conselheira Guiomar Namo de Mello (PSDB), do CNE. No dia 1º de
junho é aprovado no CNE o Parecer CNE/CEB nº 15/9814 (da referida conselheira), que trata
minuciosamente das Diretrizes Curriculares para o Ensino Médio, as quais foram instituídas
pela Resolução CNE/CEB nº 03/98, aprovada no dia 26 de junho
De acordo com o Artigo 1 da Resolução CNE/CEB nº 03/98, as diretrizes
[...] estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições
doutrinárias sobre princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na
organização pedagógica e curricular de cada unidade escolar integrante de diversos
sistemas de ensino, em atendimento ao que manda a lei, tendo em vista vincular a
educação com o mundo do trabalho e a prática social, consolidando a preparação
para o exercício da cidadania e propiciando preparação básica para o trabalho.
No Artigo 10, incisos I, II e III, se explicita a organização e estruturação do currículo
não mais em disciplinas, mas sim em àreas do conhecimento. São definidas três grandes áreas
de conhecimento para esse nível de ensino: Linguagens, códigos e suas Tecnologias; Ciências
12
Depois de passar por dois mandatos de deputado federal (1995-2002) pelo PT e de ser candidato ao governo
do estado pelo mesmo partido, em 2002, Padre Roque foi secretário do Trabalho e Ação Social no segundo
governo de Roberto Requião. Pertence à setores da esquerda da Igreja Católica, ligado à movimentos sociais.
13
Projeto de Lei
14
CNE: Conselho Nacional de Educação / CEB: Câmara da Educação Básica
51
da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias.
No parágrafo 1o do Artigo 10, diz-se que: “A base nacional comum dos currículos do
Ensino Médio deverá contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento
metodológico que evidencie a interdisciplinariedade e a contextualização”.
No parágrafo 2o do mesmo Artigo, afirma-se que:
As novas propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento
interdisciplinar e contextualizado para:
a)Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;
b)Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
Embora os documentos não excluam explícitamente o ensino disciplinar, vê-se uma
preferência pela presença transversal no currículo, a qual garantiria, em tese, o cumprimento
do previsto na LDB/96 quanto à necessidade de domínio de conhecimentos de Filosofia e
Sociologia.
De acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo, Gallo; Kohan (2003), são três os principais
argumentos usados para defender o ensino transversal da Filosofia:
O primeiro diz respeito à precariedade da formação de professores de Filosofia para
o Ensino Médio em âmbito nacional. Embora existam cursos de licenciatura em
Filosofia na grande maioria dos estados, ainda há, de fato, muito o que aprimorar na
busca de uma formação qualificada dos professores, mesmo nos estados com
melhores índices ecnômicos e educacionais. Permanece, entretanto, a controvérsia
em torno da pertinência da adoção do ensino disciplinar. Quem a defende considera
que a medida pode ser indutora de processos de melhoria da formação docente;
quem a critica, enfatiza a suposta irresponsabilidade que significaria, de imediato,
colocar em sala de aula um grande número de professores aparentemente
despreparados para a função. Outro argumento, fortemente vinculado ao primeiro,
diz respeito aos problemas que a obrigatoriedade da disciplina em nível nacional
poderia trazer aos estados e seus sistemas de ensino, em especial em termos de
investimentos. Por fim, há os que se posicionam contrariamente à inserção da
disciplina por criticarem o modelo disciplinar de escola. Estes defendem que a
inserção de mais uma disciplina escolar é uma medida infeliz, particularmente no
caso da Filosofia. A partir desse ponto de vista, se a Filosofia deve ser um exercício
de pensamento crítico, ou lúdico, ou que vise à autonomia etc., transformá-la em
“matéria escolar” seria sujeitá-la aos rituais e tratamentos pedagógicos que os
estudantes costumam identificar, precisamente, com o oposto da crítica, do prazer,
da autonomia etc. (p.259/260).
Podemos perceber, então, uma clara dubiedade entre as afirmações da LDB e as das
referidas Diretrizes, pois ao mesmo tempo em que a primeira afirma que existem
conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, as Diretrizes
atribuem às duas disciplinas um caráter de transversalidade e de interdisciplinaridade.
Vale lembrar que o artigo 36, § 1º, inciso III, da Lei 9394/96 – LDB afirma:
§ 1º. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizadas de
tal forma que ao final do Ensino Médio o educando demonstre:
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao
exercício da cidadania.
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Em contraposição, o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº3/98, fundamentada no
Parecer CNE/CEB n.º 15/98, afirma:
§ 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento
interdisciplinar e contextualizado para:
b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da
cidadania.
Fica claro que os conteúdos da Resolução CNE/CEB nº 03/98, de forma praticamente
explícita, negam a obrigatoriedade do ensino de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio, com
base em uma interpretação ainda mais neoliberal da própria LDB.
A ideologia neoliberal que, segundo Marrach (1996), atrela a educação escolar à
preparação para o trabalho, pois assegura que o mundo empresarial deseja uma força de
trabalho qualificada, e fala numa profissionalização situada no interior de uma formação
geral, permeia intensamente esses documentos, na medida em que estes abordam a escola no
âmbito do mercado e das técnicas de gerenciamento. O Parecer CNE/CEB nº 15/98 afirma,
diversas vezes, que a principal função do Ensino Médio é a preparação para o trabalho, e que
é este que dá significado às aprendizagens da escola média. É interessante ressaltar aqui que
um dos papéis atribuídos pela retórica neoliberal à educação é a de atrelar a educação à
preparação para o trabalho e a pesquisa acadêmica ao imperativo do mercado ou às
necessidades da livre iniciativa
O trabalho é o contexto mais importante da experiência curricular no ensino médio
[...] na medida em que o ensino médio é parte integrante da educação básica e que o
trabalho é o princípio organizador do currículo, muda inteiramente a noção
tradiconal de educação geral acadêmica ou, melhor dito, academicista. O trabalho já
não é mais limitado ao ensino profissionalizante. Muito ao contrário, a lei reconhece
que, nas sociedades contemporâneas, todos, independentemente de sua origem ou
destino socioprofissional, devem ser educados na perpectiva do trabalho enquanto
uma das principais atividades humanas [...] (Parecer CNE/CEB nº 15/98, p. 43)
Como vimos anteriormente, Gimeno Sacristán (1998) afirma que é a partir da análise
do currículo oficial que podemos perceber as intenções do processo educativo escolar. É
justamente isso que percebemos aqui: de acordo com os documentos citados acima, o grande
objetivo da educação básica é a qualificação profissional, apresentada como grande fórmula
para se ingressar no mercado de trabalho, ou retornar a ele. No entanto, essa fórmula não
passa de um mito. Primeiro, porque não existem vagas suficientes para empregar todos
aqueles que se formam no Ensino Médio; o que se acaba produzindo, então, é um “exército”
de possíveis empregados. Segundo, porque enquanto os trabalhadores acreditarem que podem
solucionar seus problemas socio-econômicos apenas mediante uma melhor qualificação
profissional, não se tentará romper com a hegemonia neoliberal/capitalista. A probreza e a
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riqueza deixam de ser uma questão de ordem econômica-política e passam a ser uma questão
de capacitação profissional e intelectual do indivíduo.
Todo aquele que está pobre ou desempregado está nessa situação devido à sua
incapacidade (incompetência) para disputar uma “vaga” no mercado de trabalho, que
em tese é acessível a todos os indivíduos capacitados e competentes. Não há lugar na
atual sociedade para os despreparados (a maioria do povo, diga-se de passagem) ou
para os preguiçosos (ALVES, 2002, p.65).
Dessa forma, tem-se de maneira extremamente eficiente a perpetuação do aparelho
ideológico neoliberal. A educação assume contornos ideológicos a serviço da legitimação da
situação atual, a qual passa a ser vista como inevitável. Segundo Gramsci, o poder das classes
dominantes é garantido fundamentalmente pela "hegemonia" cultural que estas
logram
exercer, através do controle sobre a escola, e sobre outras instituições também. As classes
dominantes "educam" os dominados para que estes vivam em submissão como algo natural e
conveniente.
Os intelectuais são os “comissários” do grupo dominante para o exercício das
funções subalternas da hegemonia social e do governo político, isto é: 1) do
consenso “espontâneo” das grandes massas da população quanto à orientação
impressa pelo grupo fundamental dominante, à vida social, consenso que nasce
“historicamente” do prestígio (e, portanto, da confiança) que o grupo dominante
obtém, por causa de sua posição e de sua função no mundo da produção; 2) do
aparato de coerção estatal, que assegura “legalmente” a disciplina dos grupos que
não “consentem”, nem ativa nem passivamente, mas que é constituído para toda a
sociedade, na previsão dos momentos de crise no comando e na direção, nos quais
fracassa o consenso espontâneo (GRAMSCI, s.d., p.14).
Para Gramsci não existe separação entre cultura e política, assim como não existe
separação entre economia e política. Cultura é, para Gramsci, um dos instrumentos da práxis
sócio-política. Isto nos remete a pensar que a hegemonia, enquanto uma direção moral e
intelectual, não é construída somente na estrutura econômico-política da sociedade, mas
também no campo das idéias e da cultura, na capacidade de uma determinada classe conseguir
criar um consenso nas formas de pensar.
Várias mobilizações da comunidade acadêmica e educacional fizeram com que o
projeto de reintrodução das disciplinas de Filosofia e de Sociologia fosse aprovado tanto na
Câmara dos Deputados como no Senado Federal. E em setembro de 2001, após ser aprovado
na Câmara por unanimidade, o Projeto de Lei do Padre Roque é aprovado no plenário por 40
votos a favor e 20 contra e vai à sanção presidencial.
O coroamento dessa luta nacional foi encabeçado pela Federação Nacional dos
Sociólogos, que articulou com os cursos de ciências sociais, com as entidades estaduais e com
os profissionais e professores pela aprovação desse projeto.
No dia 08/10/2001, o sociólogo e então Presidente da República, Fernando Henrique
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Cardoso, veta na íntegra o Projeto.
A partir da leitura da Mensagem nº 1.073, de 8 de outubro de 2001, de Fernando
Henrique Cardoso, enviada ao Presidente do Senado Federal, é possível perceber que
praticamente todos os argumentos que se opõem à criação de um espaço disciplinar
obrigatório para a Filosofia não são de ordem pedagógica, epistemológica ou de políticas
educacionais. Tais argumentos são basicamente de natureza estritamente burocrática e giram
em torno do fato de que o resultado imediato será a necessidade de abrir concurso, contratar
professores para a escola pública, o que irá gerar despesas, caracterizando-se assim como
uma questão econômica.
As razões do veto foram procedimentais e centradas na idéia de que não haveria
professores para assumir estas aulas e de que isso significaria uma despesa vultosa. O mérito
pedagógico e político sequer foi tomado em conta pela burocracia governamental daquele
momento.
Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas
obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os
Estados e o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a
contratação de professores de tais disciplinas, com o agravante de que, segundo
informações da Secretaria de Educação Média e Tecnológica, não há no País
formação suficiente de tais profissionais para atender a demanda que advirá caso
fosse sancionado o projeto, situações que por si só recomendam que seja vetado na
sua totalidade por ser contrário ao interesse público (Mensagem nº 1.073, de 8 de
outubro de 2001).
O que percebemos no argumento de Fernando Henrique é, mais uma vez, a
manifestação de uma grande presença da ideologia neoliberal, que converte os problemas
sociais, econômicos, políticos e culturais da educação em problemas administrativos, técnicos
e de reengenharia.
O único argumento de ordem pedagógica usado para justificar o veto foi dado pelo
então Ministro da Educação, Paulo Renato Souza, que defendia que a volta das duas
disciplinas seria uma volta ao passado, pois a proposta representava um retrocesso no perfil
curricular do Ensino Médio, que a partir da LDB/96 (que apresenta uma flexibilidade quanto
ao formato disciplinar de currículo) passou a valorizar a interdisciplinaridade no lugar do
ensino de disciplinas estanques. Aprovar mais duas disciplinas seria ir na contramão da LDB.
No entanto, tal argumento é completamente falho, uma vez que o PL não afirma a
obrigatoriedade da organização curricular por disciplinas; as escolas que estruturassem seus
currículos por áreas de conhecimento, por exemplo, não seriam obrigadas a incluir disciplinas,
mas sim colocar a Filosofia e a Sociologia entre as áreas.
Podemos retomar aqui as observações de Tommasi (2007) apresentadas no início deste
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texto: no que diz respeito ao sistema educacional brasileiro, há a prevalência da lógica
financeira sobre a lógica social e educacional, e há a falácia de políticas que se declaram com
a finalidade de elevar a qualidade do ensino, quando na realidade o que fazem é implementar
a redução de gastos públicos para o setor educacional. É justamente o que vemos na
argumento de Fernando Henrique: uma visão apenas gerencial da educação, ou seja, para
reduzir os custos com educação, ao invés de se estabelecer disciplinas obrigatórias com
professores especializados, o preferível foi que os “conhecimentos de Filosofia e Sociologia
necessários ao exercício da cidadania” fossem ministrados através da transversalidade, por
professores de outras disciplinas
É preciso ter claro aqui que o posicionamento de Fernando Henrique Cardoso quanto à
importância das disciplinas nada tem a ver com a sua formação como sociólogo pois, apesar
de sua trajetória política ter sido “na oposição ao regime militar, em seu horizonte intelectual
e político não estava presente a ruptura efetiva com a ordem burguesa” (LIMA, 2007, p.93)
Segundo Carvalho (2001), quanto mais ignorante for a nossa juventude, melhor será
para as elites que dominam o país. Fazer com que a juventude reflita sobre temas como ética,
política, moral, costumes, o porquê de existirem pobres e ricos, modos de produção etc, é algo
que pode colocar em risco o status quo. Essas reflexões devem ficar restritas a uma minoria
de iluminados. E ainda: “Ao povo, como sempre, nega-se a possibilidade do acesso ao
conhecimento”.
A FNSB (Federação Nacional dos Sociólogos – Brasil) orienta, então, aos estados que
a luta deve se voltar para as assembléias legislativas estaduais com a aprovação de Projetos de
Leis que obriguem o ensino da Filosofia e Sociologia em cada estado, ampliando-se ainda a
luta com as comissões das grandes universidades, especialmente as públicas, para que adotem
ambas as disciplinas, bem como mantenham contatos com as secretarias estaduais de
educação, para introduzir as disciplinas pela via administrativa.
Desde a posse do Presidente Luis Inácio Lula da Silva, em 2003, a FNSB fez várias
gestões para ou derrubar o veto, ou implantar ambas as disciplinas por via administrativa, pelo
MEC ou mudando o parecer do CNE.
Mas percebendo que o processo administrativo não seria tão rápido, em agosto de
2003 o Deputado Federal Dr. Ribamar Alves, do PSB do Maranhão, reapresentou o Projeto de
Lei do Padre Roque, com algumas modificações – Projeto de Lei nº 1.641 – que passou a ter o
apoio do SINSESP (Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo) e da FNSB.
Na Justificação do PL, o Deputado atenta para o fato de que a Filosofia não deve ser
tratada com interdisciplinaridade, pois é uma área do conhecimento assim como o são as
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outras disciplinas, ou seja, possui um conteúdo próprio, possui técnicas a serem dominadas,
possui uma terminologia específica, etc.
Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida
aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que
não sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o
texto da LDB insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela [...]
A Filosofia nos currículos do Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito,
dissolvendo-a em modadilades temáticas de outras disciplinas. (PROJETO DE LEI
Nº 1.641, DE 2003, p.3, 4).
Além disso, de acordo com Fávero; Ceppas; Gontigo; Gallo; Kohan (2003), em uma
escola que ainda é fortemente baseada na organização por disciplinas, relegar a Filosofia à
tranversalidade acabaria não apenas diluindo sua especificidade em meio aos estudos que
realmente constam no currículo, como também aprofundaria a situação de precariedade que se
imputa aos professores de Filosofia no país, na medida em que poderia vir a reforçar a
dispensa de contratação de profissionais especializados.
Segundo Gallo (1997), aplicar a proposta da tranversalidade na educação implicaria o
“desaparecimento” da escola tal como a conhecemos hoje. Seria preciso o surgimento de um
novo paradigma que rompesse radicalmente com o sistema de disciplinas.
A transversalidade do conhecimento implica possibilidade de escolas e de currículos
em muito diferentes daquelas que hoje conhecemos novos espaços de construção e
circulação de saberes onde a hierarquização já não será a estrutura básica, e onde
situações até então insuspeitas poderão emergir (p.131)
Ainda de acordo com Gallo (2002), vivemos numa realidade em que o currículo
disciplinar apresenta cada vez mais provas de seu desgaste e da necessidade de sua
transformação/reforma.
Como nossos currículos seguem sendo absolutamente disciplinares e como,
infelizmente, ainda levaremos um bom tempo para lograr diminuir a influência
disciplinar e, quem sabe, “dês-disciplinar” os currículos, vejo como muito remota a
hipótese de uma escola, seja ela pública ou privada, contratar um professor de
Filosofia para “transversalisar” seu currículo, sem que haja uma disciplina de
Filosofia disciplinarmente alocada neste currículo, uma vez que nosso modelo de
contratação de docentes, na quase totalidade das escolas, é um modelo “aulista”, isto
é, contrata-se pelas aulas que o professor terá na escola (Gallo, 2002, p.287).
Vale lembrar que as disciplinas escolares não são mera repetição de um conteúdo
produzido fora da escola. A Filosofia dos filósofos certamente estará presente no trabalho com
a disciplina nas escolas, mas esta não será uma simples transposição didática. Como disse
Chervel (1990) e Gimeno Sacristán (1998) as disciplinas escolares são como entidades
epistemológicas autônomas; a cultura selecionada e organizada dentro de um currículo não é a
cultura em si mesma, mas sim uma versão “escolarizada”.
A ciência que está contida nos programas escolares não é a ciência em abstrato,
como a literatura que se ensina-aprende nas escolas, tampouco é “a literatura”, mas
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versões e pacotes especialmente planejados para a escola (GIMENO SACRISTÁN,
1998, p.128).
Além disso, o mencionado Deputado também chama a atenção para a importância da
Filosofia para a formação de um cidadão crítico, responsável e preparado para o debate
reflexivo.
Ora, a Filosofia tem no atual contexto político de fortalecimento das instituições
democráticas do país um dos papéis mais relevantes neste projeto, qual seja, o de
contribuir para uma formação e fundamentação da opinião pública brasileira, não
deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê à deriva com o cerco
do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em ouro, ou melhor,
mercado, tudo o que toca [...]Assim, contribuirá para uma opinião pública
responsável e crítica, convidando para o debatle reflexivo, introduzindo valores que
se assentam sobre aquela tradição grega [...] que em suma, é de vocação política
(PROJETO DE LEI Nº 1.641, DE 2003, p.4).
Através da leitura desse pequeno trecho fica evidente a confirmação da assertiva de
Chervel acerca dos objetivos de uma disciplina, os quais são o principal tópico a partir do qual
uma disciplina se constitui. No entanto, épreciso ter claro que as finalidades de uma
disciplina escolar visam não somente o ambiente escolar, mas também a sociedade em que
este se situa.
Em agosto de 2003, o Projeto foi encaminhado para Comissão De Educação e Cultura
(CEC), onde não foram apresentadas emendas ao PL. Em novembro, o Deputado César
Bandeira escreveu um Parecer pela aprovação do Projeto, afirmando que este “beneficiará a
formação integral do estudante” e que o encaminhamento pela aprovação “objetiva acelerar o
processo de inclusão das disciplinas no currículo escolar, e a de inclusão dos estudantes na
sociedade com: senso crítico, capacidade de analisar situações, sentimento ético, lógica e
identidade social”. O parecer foi aprovado por unanimidade pela Comissão.
Em seguida, em dezembro de 2003, o PL foi encaminhado para a Comissão de
Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC). Em junho de 2004, o Deputado Alexandre
Cardoso (PSB-RJ), apresentou um parecer votando pela constitucionalidade, juricidade e boa
técnica legislativa do Projeto de Lei nº 1.641/2003 com duas emendas: que ao final da nova
redação do Art.36 da LDB dada pelo Art 1º do Projeto, fosse acrescentada a rubrica NR, e que
o Art 4º do Projeto fosse suprimido15. O parecer foi, também, aprovado por unanimidade pela
CCJC.
No entanto, em julho de 2004, o Deputado Carlos Abicalil (do PT de Mato Grosso)
apresentou à Mesa Diretora da Câmara dos Deputados o Recurso n.º 139, de 2004, contra a
15
“Art.4º Revogam-se as disposições em contrário”
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apreciação conclusiva nas Comissões sobre o Projeto de Lei n.º 1.641 de 2003. Ocorre que os
secretários estaduais de educação de vários estados estavam preocupados com a
“compulsoriedade” do PL, que mencionava em seu Art. 3º que a Lei deveria entrar em vigor
na data de sua publicação, e afirmavam que seria necessário criar um período de transição
para que a Lei entrasse em vigor gradativamente. O principal motivo para essa preocupação
era o fato de que, talvez, não se tivesse número suficiente de professores para assumir os
cargos imediatamente.
De acordo com o regimento da Câmara, um PL, quando é terminativo, pode seguir
direto ao Senado sem passar pelo plenário da Câmara, depois de aprovado em duas Comissões
(no caso a CEC e a CCJC). O recurso foi, então, assinado por 51 deputados (número
suficiente de assinaturas), incluindo o autor do PL, deferido e impediu que o Projeto de Lei,
aprovado pela Câmara, seguisse direto ao Senado, para que o Projeto fosse discutido em
plenário.
O SINSESP, presidido pelo Prof. Dr. Paulo Roberto Martins, ao perceber que o
processo pela via legislativa estava emperrado, decide oferecer ao MEC uma proposta
detalhada para que, pela via administrativa , a Resolução CNE/CEB nº 03/98, fosse alterada.
Tal proposta foi inicialmente elaborada pelo diretor da entidade, Prof. Dr. Amaury César
Moraes, da Universidade de São Paulo (USP), e enviada ao MEC.
O Departamento de Políticas do Ensino Médio do MEC solicitou aos professores
Amaury César Morais e João Carlos Salles Pires da Silva que redigissem uma proposta de
Parecer que estabelecesse a obrigatoriedade da Filosofia e da Sociologia. . Foram realizadas
três reuniões nacionais para a elaboração do texto final, sempre envolvendo entidades
nacionais como a UBES (União Brasileira dos Estudantes Secundaristas), a CNTE
(Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação) e a CONTEE (Confederação
Nacional dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino). Em agosto de 2005, os
professores Morais e Pires da Silva se reuniram em Brasília para fazer uma última leitura do
texto que seria encaminhado ao CNE como contribuição do MEC.
Mas somente em novembro de 2005 é que o MEC, finalmente, envia a proposta ao
CNE, para apreciação. Registra-se o apoio tanto do Ministro da Educação, Fernando Haddad,
bem como do Secretário Nacional de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas.
O Ministro da Educação Fernando Haddad recebeu em audiência, no dia 19 de outubro
de 2005, o sociólogo Lejeune Mato Grosso Xavier de Carvalho16, que no ato representava o
16
Foi professor de Sociologia da Universidade Metodista de Piracicaba (UNIMEP) entre 1985 e 2006, e vicepresidente do SINSESP entre 2004 e 2007
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Sindicato dos Sociólogos do Estado de São Paulo, juntamente com diversas lideranças de
entidades de ensino, o deputado Dr. Ribamar Alves (PSB/MA) – autor do PL - para tratar da
viabilização da implantação destas disciplinas, numa linha de agenda positiva por consenso
entre lideres ou por via administrativa. As principais reivindicações foram de (1) Apoio total
do MEC à aprovação do PL do Dr. Ribamar Alves e (2) Modificação, pelo CNE, do antigo e
antidemocrático parecer de Guiomar Namo de Mello, que impedia as disciplinas de
Sociologia e Filosofia de serem lecionadas de forma obrigatória.
À guisa de relembrar, retomamos aqui a fala de Bittencourt (2003) de que são muitos
os sujeitos envolvidos na constituição de uma disciplina: Estado, deputados, ministros,
partidos políticos em geral, professores e alunos, entre outros.
No dia 9 de novembro foi realizada outra reunião com o Ministro Fernando Haddad,
com a presença do Prof. Lejeune Mato Grosso X. de Carvalho (Unimep) e do Prof. Amaury
Moraes (Usp) e outras significativas lideranças de entidades de trabalhadores em educação.
Nesta reunião foi discutida de forma exaustiva, por quatro longas horas (das 14h ás 18h) o
texto da proposta de Parecer, que deveria ser formalizado e encaminhado para aprovação do
Conselho Nacional de Educação
É, então, protocolado no CNE o Ofício nº 9647/GAB/SEB/MEC 17, de 15 de
novembro, pelo qual o então Secretário de Educação Básica do Ministério da Educação,
Francisco das Chagas Fernandes, encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as
“Diretrizes Curriculares das Disciplinas Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”, elaborado
pela Secretaria com a participação de representantes de diversas entidades. O documento
apresentava uma série de considerações favoráveis à inclusão da Filosofia e da Sociologia
como disciplinas obrigatórias no currículo do Ensino Médio. O documento foi dividido em
três títulos: 1. Filosofia; 2. Sociologia e 3. Filosofia e Sociologia no Currículo do Ensino
Médio, nos quais foram apresentadas razões que justificavam a inclusão de cada uma das
disciplinas como obrigatória, contrapondo-se às Diretrizes Curriculares Nacionais para o
Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98). Ao final da
argumentação, de acordo com o Parecer nº 38/2006, foi proposta a alteração da Resolução
CEB/CNE nº 3/98, Art. 10, § 2º, com supressão da alínea b e inclusão do § 3º com a seguinte
redação: “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento de
componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”.
O próximo passo foi a convocação de uma audiência pública pelo então presidente da
17
GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura.
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Câmara de Educação Básica do CNE, César Callegari18, para apresentar oficialmente o
documento. Uma grande mobilização, liderada pelo sociólogo e professor Lejeune Mato
Grosso Xavier de Carvalho, na época vice-presidente do Sindicato dos Sociólogos do Estado
de São Paulo, divulgou todos os passos desse processo pela internet.
Em 1º de fevereiro de 2006 o CNE retomou o debate sobre o assunto, através de sua
Câmara de Ensino Básico (CEB), então sob a presidência do Conselheiro César Callegari, e
realizou audiência pública para a qual foram convidadas várias entidades ligadas à luta, tais
como o SINSESP, a APEOESP (Sindicato dos Professores do Ensino Oficial do Estado de São
Paulo), a UBES, a CONTEE e a CNTE, além de sociólogos, professores de Filosofia e de
Sociologia, estudantes e outros profissionais, para discutir o tema “Alteração das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares
obrigatórios de Filosofia e Sociologia”.
Callegari foi escolhido, juntamente com o Conselheiro Adeum Hilário Sauer, também
sociólogo, e com o Conselheiro Murílio de Avellar Hingel, ex-Ministro da Educação do
governo Itamar Franco, relator do Parecer sobre a inclusão das disciplinas de Filosofia e
Sociologia nas diretrizes nacionais do ensino médio como matérias obrigatórias.
Mesmo dentro do CNE a batalha não foi fácil. Em abril de 2006, extinguiram-se os
mandatos de vários conselheiros. A correlação de forças era desfavorável para os que lutavam
pela volta das duas disciplinas. Em maio, tomaram posse pelo menos seis novos conselheiros,
de um total de 12. A realidade se alterou pelas novas presenças dentre os conselheiros,
especialmente Isabel Noronha, que representava a APEOESP, e pela primeira vez um
professor de rede pública e sindicalistas tinham assento num Conselho de Estado.
O SINSESP e todas as entidades do comando nacional de luta compareceram à posse
dos novos conselheiros da CEB/CNE,
entregaram um manifesto de apoio à luta e
conversaram com o Ministro da Educação Fernando Haddad, pedindo-lhe mais uma
audiência, incluindo parlamentares que apoiavam a luta das referidas entidades pela inclusão
da Filosofia e Sociologia no ensino médio.
Em 07 de junho de 2006, cerca de 300 professores e estudantes compareceram à
reunião do CNE, já sob a presidência da conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro, exReitora da Universidade Católica de Goiás. Mas como o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 (de
autoria dos conselheiros Cesar Callegari, Adeum Hilário Sauer e Murílio de Avellar Hingel)
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Sociólogo, Cesar Callegari lutou durante anos para que as disciplinas de Filosofia e Sociologia voltassem a
fazer parte do currículo das escolas do País. Ao tomar posse como membro do CNE intensificou seus esforços,
redigindo o Parecer CNE/CEB nº. 38/2006 e a Resolução 4/2006.
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havia sido apresentado apenas na véspera da reunião, os conselheiros pediram que a decisão
fosse adiada para a reunião de julho, sinalizando, entretanto, que o Parecer seria aprovado.
Nesse mesmo dia o Ministro da Educação Fernando Haddad e o Secretário Nacional
de Ensino Básico, Prof. Francisco Chagas, receberam mais de 20 lideranças do movimento no
MEC e declaram de forma enfática que o governo apoiaria as mudanças no CNE.
Apenas um mês depois, em 7 de julho de 2006, O CNE aprovou, às 12h30, por
unanimidade, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB
nº 03/98, tornando obrigatório o ensino das disciplinas de Sociologia e Filosofia em todas as
escolas do Ensino Médio, dando aos sistemas estaduais de ensino um prazo máximo de um
ano para que os Sistemas de Ensino providenciassem sua implantação. A proposta foi
encaminhada ao Ministro da Educação Fernando Haddad, para que fosse homologado.
Os três relatores (Callegari, Hingel e Sauer), no Parecer CNE/CEB nº 38/2006
reiteram a “importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para um processo educacional
consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que se deseja sejam cidadãos
éticos, críticos, sujeitos e protagonistas”(p.2). 19 E afirmam que tal importância é reconhecida
não só pela argumentação dos proponentes, mas também por pesquisadores e educadores,
inclusive não filósofos e/ou não sociólogos. Outro argumento apresentado pelos relatores é o
de que uma adoção crescente do ensino de Filosofia e Sociologia pela maioria das escolas das
redes públicas e estaduais acabou por criar uma situação desigual no acesso aos
conhecimentos proporcionados por essas disciplinas. Isso porque, como vimos, pelas
determinações da LDB/96 – antes da alteração do Art.36º - o ensino de Filosofia não é
proíbido, mas também não é obrigatório. A decisão de introduzir ou não a Filosofia no
currículo cabia unicamente às escolas.
Nos Estados que ainda não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no
currículo do Ensino Médio há toda uma população jovem posta à margem do acesso
aos seus conhecimentos. Essa desigualdade ocorre, igualmente, na rede particular de
ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por uma parte das escolas, muitas
outras não o fizeram. Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho,
propiciadora de uma equalização, visando à igualdade de direitos de acesso a esses
conhecimentos no Ensino Médio do país (Parecer CNE/CEB nº 38/2006).
A nova LDB afirma em seu artigo 36, § 1º, inciso III, que os conteúdos, as
metodologias e as formas de avaliação sejam organizados de tal forma que, ao final do Ensino
Médio, o educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de
Sociologia necessários ao exercício da cidadania e, de acordo com os três relatores, a
principal questão que se levanta ao se analisar essa afirmação é: como garantir a eficácia
19
É importante destacar que é a primeira vez em que a palavra “protagonista” aparece referindo-se ao alunado.
62
dessa diretriz?
Segundo Callegari, Hingel e Sauer, as próprias Diretrizes Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio (DCNEM) deram a interpretação que ajudou a responder a essa questão, pois
considerou, em seu Art.10º, na composição e no tratamento a ser dado ao currículo do Ensino
Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação Física e à Arte, estas sim,
contempladas como componentes obrigatórios do currículo da Educação Básica no Artigo 26
da LDB, e também no 2º parágrafo do Art. 10º das DCNEM.
Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em
áreas de conhecimento, a saber [...]
§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento
interdisciplinar e contextualizado para:
a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;
b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania.
(Resolução CNE/CEB nº3/98)
Ou seja, se a escola opta por uma estruturação curricular por disciplinas, Educação
Física e Arte devem ser incluídas e tratadas como tais. Conseqüentemente, a Filosofia e a
Sociologia não podem deixar de ter o mesmo tratamento que essas disciplinas. 20
Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo [...] com base em
disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal,
sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia
que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outro forma, do mesmo modo deverá
dar tratamento a todos os componentes obrigatórios. Portanto [...] os conhecimentos
de Filosofia e Sociologia, da mesma forma que os componentes Arte e Educação
Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na forma de
disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe
faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplina (Parecer
CNE/CEB nº 38/2006).
Portanto, as escolas, tanto aquelas que organizam seus currículos em disciplinas,
quanto aquelas que, usando da autonomia que lhes garante a Lei, têm seu currículo
organizado de outra forma que não por disciplinas, do mesmo modo deverão dar tratamento a
todos os componentes obrigatórios.
Cabe ressaltar que as argumentações apresentadas nesse Parecer são em sua grande
maioria argumentações lógicas em torno da LDB, e não uma batalha de persuasão do por que
e para que ensinar Filosofia e Sociologia nesse nível de Ensino.
20
As escolas têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua proposta curricular,
dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, o que é garantido pela
Constituição Federal e reiterado pela nova LDB. Em outras palavras: elas podem organizar seus currículos
por disciplinas ou não. Além disso, no que diz respeito ao formato de disciplina, no texto da nova LDB não
há sua obrigatoriedade para nenhum componente curricular, seja ele da base nacional comum ou da parte
diversificada., ou seja, as escolas podem escolher entre adotar um currículo organizado em disciplinas ou
transversalizado.
63
Os relatores finalizam afirmando que
[...] não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização das
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização.
Já são passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas,
experiências foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados [...] Já é
tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de
incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade
educacional e com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa
final da Educação Básica, se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da
Nação (Parecer CNE/CEB nº 38/2006, p.9).
Homologado pelo Ministro da Educação, em 11 de agosto de 2006, o Parecer
CNE/CEB nº 38, a Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de
Educação, Clélia Brandão Alvarenga Craveiro baixou a Resolução CNE/CEB nº 4 de 16 de
agosto de 2006, que altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que institui as
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio e resolve:
Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte
redação:
§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização
curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento
interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de
Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania.
Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º,
com a seguinte redação:
§ 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização
curricular estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e
Sociologia.
§ 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação
Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando,
pertinentemente, os demais componentes do currículo. (Resolução CNE/CEB nº 4
de 16 de agosto de 2006).
Assim sendo, a Filosofia deve estar presente em todas as escolas, independentemente
da organização curricular adotada.
A Resolução deu o prazo de um ano para que os Conselhos Estaduais de Educação se
regulamentassem, estabelecendo a carga horária e as séries em que as duas novas disciplinas
seriam oferecidas – se apenas em um, dois ou nos três anos do Ensino Médio. Como o prazo
terminaria em agosto de 2007, as aulas começariam a ser ministradas a partir de 2008.
Em julho de 2007 foi realizado em São Paulo, no Centro de Convenções do Anhembi,
o 1º Encontro Nacional sobre Filosofia e Sociologia. O Encontro foi uma iniciativa da
APEOESP em parceria com o SINSESP e das entidades ligadas à educação, como a CNTE. O
Encontro teve como principal motivação a inclusão das duas ciências como conteúdos
obrigatórios nas escolas brasileiras de Ensino Médio.
64
Em sua fala, o professor Emmanuel Appel21 defendeu que tanto a Filosofia como a
Sociologia possuem um ponto de vista crítico que é fundamental para a juventude, por ser um
instrumento para sua emancipação, capaz de tornar os (as) jovens donos (as) de sua própria
autonomia intelectual. Appel não nega que outras disciplinas também sejam críticas, mas
afirma que a Filosofia e a Sociologia têm uma tradição crítica muito maior.
No entanto, o que pareceu um alento, logo se viu assolado pela resistência de vários
sistemas estaduais, que evocavam a LDB para não cumprir a Resolução do CNE.
O CEESP (Conselho Estadual de Educação de São Paulo) considerou nulas as
argumentações apresentadas no Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e na Resolução CNE/CEB nº
4/2006. O CEESP pronunciou-se pela não obrigatoriedade da introdução da Filosofia e da
Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio. De acordo com a Indicação CEE nº
62/2006, aprovada em 20 de setembro de 2006, existem
dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução (c.f. – Art. 36 §1º inciso III da
Lei nº 9394/96 – LDB), na medida em que interfere na autonomia dos sistemas de
ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às
diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e
sistemas de ensino.
No Parecer CEE nº 343/2007 – CEB aprovado em 7 de julho de 2007, o principal
argumento apresentado é o de que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006, emanada do CNE, ao
dizer que a Filosofia e a Sociologia devem ser incorporadas ao currículo de todos os sistemas
de ensino, feriu a autonomia desses mesmos sistemas, assegurada pela Constituição e pela
LDB, para a definição de suas próprias grades curriculares. Evocando o Art. 8º e o Art. 9º da
LDB22, os relatores (Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro Salles Aguiar) argumentam:
Se a União tem o papel coordenador e, de certo modo, uniformizador, é certo, por
outro lado, que não é da sua competência definir, propriamente, os currículos de
cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos mínimos [...] à União
compete estabelecer competências e diretrizes que “...nortearão os currículos e seus
conteúdos mínimos...”. A União, pois ditará os nortes [...] mas quem haverá de fixar,
efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus conteúdos mínimos,
serão os próprios sistemas de ensino [...] (Parecer CEE nº 343/2007, p.3).
Mas ao mesmo tempo em que afirmam que a Resolução CNE/CEB nº 4/2006 fere a
21
Professor de Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e coordenador do Fórum Sul-Brasileiro de
Filosofia e Ensino.
22
“Art.8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de colaboração, os
respectivos sistemas de ensino.
§1ºCaberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e
sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais.
§2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei.
Art.9º A União incubir-se-á de:
IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e
diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e seus
conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum;”
65
autonomia dos sistemas de ensino no que diz respeito à organização curricular, utilizam como
argumentação o Art. 26º da LDB, que define uma série de componentes curriculares
obrigatórios. Ao que parece, a utilização desse Artigo seria uma maneira contraditória e
falaciosa de argumentar contra uma suposta imposição aos sistema de ensino: o referido artigo
limita, ainda que de maneira generalizada, (são utilizados termos genéricos como “mundo
físico e natural” e “realidade social e política, especialmente do Brasil”) o conteúdo a ser
ministrado nas escolas. Além disso, o fato de ter-se definido uma determinada disciplina como
obrigatória não nos parece ser suficiente para ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que
a definição da obrigatoriedade não é, por extensão, uma definição dos conteúdos e métodos a
serem utilizados.
A autonomia das escolas garantida pela LDB/96 se refere ao tratamento curricular, e
não à escolha das disciplinas que devem construir a base nacional. O paragráfo 2º do Art. 8º
afirma: “Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei”. Além
disso, como dissemos anteriormente, o Art. 26º da LDB define uma série de componentes
curriculares obrigatórios. Assim sendo, o Parecer CNE/CEB nº 38/2006 e a Resolução
CNE/CEB nº 4/2006 não parecem ferir a autonomia dos sistemas escolares, já que apenas
determinam a obrigatoriedade do ensino de Filosofia, independente da organização curricular
adotada pela escola.
Segundo Goodson (2001b), o currículo não é um fato consumado. O autor afirma que
o currículo é uma práxis e não um objeto estático. A definição pré-ativa do currículo pode
estabelecer parâmetros para a ação interativa, mas isso não significa que a prática não possa
subverter ou transcender tais parâmetros.
É importante ressaltar aqui que a organização da educação nacional é fragmentada, ou
“descentralizada”, já que cada esfera do governo (União, estados e municípios e o Distrito
Federal) deve organizar seu respectivo sistema de ensino, em regime de colaboração
(Art.8º/LDB). Assim sendo, segundo Pino (2002), “a lei não assume a organização da
educação em sistema nacional”(p.37).
De acordo com os Art. 16º, 17º e 18º da nova LDB, a educação escolar brasileira está
organizada em três esferas administrativas: União, estados e Distrito Federal, e municípios. E
cada um deles abriga um sistema de ensino, sendo:
[...] a União, o sistema federal de ensino, com as instituições de ensino médio
técnico e de nível superior (públicas e privadas); os estados e Distrito Federal,
abrigam o sistema estadual de ensino, com instituições de todos os níveis (públicas e
privadas); os municípios, o sistema municipal de ensino, com instituições de
educação infantil, incluindo as creches, e de ensino fundamental (LIBÂNEO;
OLIVEIRA; TOSCHI, 2008, p.240)
66
Assim sendo, se existe uma separação entre sistemas federal, estadual e municipal de
ensino, não se pode dizer que existe um sistema nacional de educação. Em tese, um sistema
nacional deveria garantir um mínimo igual nacional.
Outro ponto que nos leva a afirmar a inexistência de um sistema nacional de ensino é a
autonomia dada às escolas no quesito de organização curricular. Em outras palavras, as
escolas não são obrigadas a adotar a organização por disciplinas. Como afirma o Art. 23º da
LDB:
Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos
semestrais, ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados,
com base na idade, na competência e em outros critérios, ou por forma diversa de
organização, sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o
recomendar.
Na conclusão do Parecer, os relatores afirmam que no artigo 36, § 1º, inciso III da
nova LDB não se vislumbra qualquer imposição de que os conhecimentos de Filosofia e
Sociologia sejam oferecidos em disciplinas específicas; o que se quer, na verdade, é tornar
esses conhecimentos parte de um “aprendizado notadamente generalista, que contemple, além
da Filosofia e da Sociologia, o domínio de princípios científicos e tecnológicos e
conhecimento de formas contemporâneas de linguagem”
Vemos aqui, mais uma vez, a idéia de transversalidade.
Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de
Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização
grega, ou, ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é
perfeitamente possível o estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de
aula de História Geral, ou mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final
do Ensino Médio, o aluno tenha adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos
necessários ao exercicío da cidadania, pouco importante se tal aquisição deu-se por
meio de aulas específicas ou como parte do conteúdo de uma disciplina afim
(Parecer CEE nº 343/2007, p.11).
O detalhe que os relatores desse Parecer parecem esquecer e que é muito bem
apresentado pelo Parecer CNE/CEB nº 38/2006 é o de que, nas escolas que têm a sua
organização curricular estruturada em disciplinas, há um grande problema quanto à
capacidade de efetivação do que está prescrito no Art. 36 da LDB, “pois se os professores
estão comprometidos com o desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente
terão condições de dar tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários
conhecimentos de Filosofia e Sociologia, ou mesmo outros [...] (Parecer CNE/CEB nº
38/2006, p.7).
Além desses argumentos, foi também apresentado pelo então presidente do CEESP,
67
Pedro Salomão José Kassab 23 (1930-2009), o argumento de que não haveria número
suficiente de professores para lecionar as duas disciplinas. Para Lejeune Matro Grosso, em
entrevista à UOL24, não faltariam professores de Sociologia. “Estimamos que, em 3 anos, seja
necessário contratar 10 mil professores em cada uma das disciplinas. No Brasil já existem 40
mil formados na área. E, por ano, se formam de 1500 a 2000 sociólogos”, afirma.
Na reportagem da UOL acima aludida, também foi entrevistado o professor Emmanuel
Appel e, segundo ele, também há Filósofos em número suficiente para lecionar. “Temos 190
cursos de Filosofia no país, e a disciplina foi suprimida do Ensino Médio em agosto de 1971.
Durante 35 anos esses cursos formaram um considerável número de pessoas”, afirma.
Mas apesar das manifestações do Conselho Estadual de Educação de São Paulo, a
Filosofia, em 2008, foi parte integrante da rede estadual de ensino em duas séries do Ensino
Médio, com uma carga horária de duas horas por semana.
Graças às resistências à Resolução do CNE, o PL do deputado Ribamar Alves ganhou
mais força. Em agosto de 2007, apenas um mês depois da aprovação do Parecer CEE
nº343/2007, o deputado Carlos Abicalil, do PT do Mato Grosso, apresentou à Mesa Diretora
da Câmara dos Deputados o Requerimento nº 1445, solicitando a retirada de tramitação do
Recurso nº 139 de 2004, que recorria contra a apreciação conclusiva do Projeto de Lei nº
1641 de 2003. No entanto, tal requerimento foi indeferido por não conter número suficiente
de signatários. Mas em outubro, o deputado apresenta um novo requerimento à Mesa, o
Requerimento nº 1779, que também solicitava a retirada de tramitação do recurso nº
139/2004. Este requerimento, com o número suficiente de assinaturas, foi deferido.
Em 21 de novembro de 2007 a Mesa Diretora da Câmara dos Deputados aprovou o
ofício SGM-P25 1985/2007, encaminhando o PL à CCJC para a elaboração da Redação Final.
Menos de um mês depois a CCJC designou o relator da Redação Final, o Deputado Fernando
Coruja (PPS – SC). Em 13 de dezembro de 2007 o Deputado apresentou à CCJC a Redação
Final da Lei, e no dia 18 do mesmo mês, a Redação Final foi aprovada por unanimidade na
Câmara dos Deputados.
Finalmente, em janeiro de 2008, a Mesa da Câmara dos Deputados encaminhou a
Redação Final da lei ao Senado Federal através do Ofício nº 774/07/PS-GSE26, onde obteve,
23
Foi presidente da Associação Médica Brasileira (1969-1981). Comandou a Associação Médica Mundial (1976
e 1977). Exercia o cargo de diretor-geral do Liceu Pasteur desde 1957. Foi presidente do CEESP em 2006 e
2007.
24
Reportagem de Juliana Doretto, “Escolas de São Paulo não precisam implantar Filosofia e Sociologia”, de
21/08/2007.
25
SGM-P: Secretaria Geral da Mesa-Presidência
26
PS-GSE: Primeiro Secretário-Grupo de Supervisão Educacional
68
também, aprovação unânime. Em maio de 2008 a Câmara dos Deputados recebeu o Ofício nº
669/08 do Senado Federal, que comunicava a aprovação da matéria e o envio à sanção
presidencial.
Em 2 de junho de 2008, o PL é transformado na Lei Ordinária n.º 11.684/2008, e foi
publicada no Diário Oficial da União de 3 de junho. Uma semana depois da publicação no
DOU, a Câmara dos Deputados recebeu do Senado Federal o Ofício n.º 808/08, que
encaminhava o autógrafo sancionado do Vice Presidente José Alencar.
Assim, após 37 anos de luta, foi sancionada, em 2 de junho de 2008, pelo presidente
da República em exercício, José Alencar, a lei que torna obrigatório o ensino das disciplinas
de sociologia e filosofia nas escolas de ensino médio, públicas e privadas de todo o Brasil. A
solenidade contou com a presença de mais de 300 pessoas, entre representantes de entidades
estudantis, como a União Nacional dos Estudantes (UNE) e União Brasileira de Estudantes
Secundaristas (UBES), sindicatos de professores e associações profissionais de sociólogos e
filósofos. A CONTEE foi representada pela Secretária de Comunicação Social da entidade, a
socióloga Maria Clotilde Lemos Petta.
Vale afirmar que, apesar da preocupação com a “compulsoriedade” do PL, que levou
ao Requerimento n.º 139/2004, a Lei sancionada contém em seu Art.3º a afirmação de que a
Lei deveria entrar em vigor na data de sua publicação.
A nova legislação deu força de lei ao Parecer nº 38/2006, do Conselho Nacional de
Educação (CNE), que tornava obrigatória a inclusão de Filosofia e Sociologia no ensino
médio sem estabelecer, no entanto, em que série deveriam ser implantadas.
Com a aprovação da Lei nº 11.684, as resistências às mudanças nas Diretrizes
Curriculares Nacionais, propostas pelo Parecer nº 38/2006, passaram para o plano secundário
ou deixaram de existir, e em seu lugar, questionamentos a respeito de sua aplicação
começaram a surgir. Em 13 de junho de 2008 foi protocolado no CNE o Oficio nº
1897/GAB/SEB/MEC27, através do qual a professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e
Silva, Secretária da Educação Básica do Ministério da Educação encaminhou para análise e
posicionamento, questões acerca de prazos e planos para a implantação da Lei.
1. Considerando a aprovação pelo Congresso Nacional e a sanção presidencial da
Lei n° 11.684, de 2 de junho de 2008, incluindo Sociologia e Filosofia como
disciplinas obrigatórias no currículo do ensino médio e com vistas a analisar os
questionamentos encaminhados a esta Secretaria sobre o referido assunto,
consultamos a esse Conselho sobre o seguinte:
• até o presente momento, seguindo determinação do CNE, os estados vinham
oferecendo as disciplinas de acordo com distribuição e programação própria das
escolas/sistemas de ensino na sua organização curricular. Considerando que a
27
GAB/SEB/MEC: Gabinete da Secretaria de Educação Básica do Ministério de Educação e Cultura
69
supracitada Lei passa a vigorar na data de sua publicação, haverá um prazo para a
sua implantação e conseqüente inclusão das duas disciplinas nas três séries do
currículo escolar?; e
• é possível estabelecer plano de implantação gradativa das referidas disciplinas ao
longo dos próximos anos para cada uma das séries do ensino médio permitindo que
os sistemas de ensino organizem quadro de professores que atenda a nova demanda
estabelecida com a sanção da citada lei?
(Oficio nº 1897/GAB/SEB/MEC in Parecer CNE/CEB nº22/2008)
Em resposta ao citado Ofício o CNE aprovou, em outubro, o Parecer n.º22/2008, cujo
relator foi, mais uma vez, Cesar Callegari.
Antes de responder às perguntas propriamente ditas, o relator faz uma breve
apresentação sobre o entendimento de “série” e de “disciplina”, termos empregados no inciso
IV do art. 36, caput, da LDB, introduzido pela Lei nº 11.684/2008.
De acordo com o Parecer, a LDB utiliza os termos série, etapa e fase para designar
cada um dos anos da duração mínima obrigatória para o Ensino Fundamental e Ensino Médio
sem rigor conceitual. Porém, o Art. 23 da citada lei torna claro que a estruturação por
seqüência de séries não é obrigatória, pois admite diversas formas de organização.
Não há dúvida, de todo modo, que o legislador, mesmo utilizando o termo específico
“série” no novo inciso IV do art. 36, da LDB, incluiu a Filosofia e a Sociologia ao
longo de todos os anos do Ensino Médio, quaisquer que sejam a denominação e a
forma de organização adotada, seja com formato disciplinar, seja com construção
flexível e inovadora, diversa da tradicional.
Desse entendimento resulta que os sistemas de ensino de todos os entes federativos
devem fixar normas complementares e medidas concretas para a oferta desses
componentes curriculares em todos os anos de duração do Ensino Médio.
Devem, ainda, zelar para que haja sua efetivação, coibindo atendimento meramente
formal ou esparso e diluído, garantindo aulas suficientes para o desenvolvimento
adequado de estudos e atividades desses componentes, com a designação específica
de professores qualificados para tanto.
(Parecer CNE/CEB nº22/2008)
Já sobre o termo “disciplina”, mais uma vez o Relator atenta para o fato de que não há
na LDB relação direta entre a obrigatoriedade e o formato do componente curricular (fato que
já havia sido tratado no Parecer CNE/CEB nº 38/2006). Além disso, o texto da LDB também
indica que
[...] quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum
componente curricular, seja da Base Nacional Comum, seja da Parte Diversificada.
As escolas têm garantida a autonomia quanto à sua concepção pedagógica e para a
formulação de sua correspondente proposta curricular, sempre que o interesse do
processo de aprendizagem assim o recomendar, dando-lhe o formato que julgarem
compatível com a sua proposta de trabalho. (Parecer CNE/CEB nº22/2008)
Assim sendo, as considerações apresentadas no Parecer nº 38/2006 continuam válidas,
a única diferença é que com a sanção da Lei nº 11.684/2008 fica clara e definida a
obrigatoriedade de serem incluídos os componentes curriculares Filosofia e Sociologia em
todos os anos do Ensino Médio, dando-lhes o mesmo tratamento dos demais componentes
70
obrigatórios, que podem ou não assumir o formato de “disciplinas”.
Sobre as questões acerca dos prazos e planos para a implantação da Lei, o Relator
afirma que sua aplicação deve ser imediata (um facilitador seria o fato de que muitos sistemas
de ensino e escolas haviam implantado uma ou ambas disciplinas em seus currículos por
decisão originária própria, ou as implantaram em decorrência das alterações na Resolução
CNE/CEB nº 3/98) mas que é preciso levar em consideração que a Lei nº 11.684/2008 foi
promulgada em meio ao ano letivo da quase totalidade das escolas. Por isso, segundo
Callegari, é razoável e legítima a proposição para que a aplicação da nova Lei atenda “normas
complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos sistemas de
ensino, até 31 de dezembro de 2008, para que sua implantação possa ser gradual”.
Assim, os sistemas de ensino deveriam tomar as devidas providências para que fosse
possível: 1) iniciar em 2009 a inclusão obrigatória da Filosofia e da Sociologia em, pelo
menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do primeiro ano do curso; 2)
prosseguir essa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio de 3 anos de
duração, e até 2012, para os cursos com 4 anos de duração.
Para concluir o Parecer, Callegari apresenta seu voto, no sentido de responder à
consulta da professora Maria do Pilar Lacerda de Almeia e Silva, indicando que:
1. os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo de
todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a forma de
organização curricular adotada;
2. para a Educação Básica e, portanto para o Ensino Médio, não é obrigatória a
estruturação do curso por seqüência de séries, pois a LDB admite diversas formas de
organização, além da seriada tradicional, sendo que o obrigatório é o número
mínimo de anos;
3. as escolas têm autonomia quanto à concepção pedagógica e à formulação de sua
correspondente proposta curricular, desde que garantam sua completude e coerência,
devendo dar o mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são
obrigatórios, seja esse tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, com
tratamento interdisciplinar e contextualizado;
4. a aplicação do inciso IV do art. 36, da LDB, que inclui a Filosofia e a Sociologia
como obrigatórias em todas os anos do Ensino Médio atenderá normas
complementares e medidas concretas que devem ser fixadas pelos respectivos
Sistemas de Ensino até 31 de dezembro de 2008;
5. a implantação obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em
todas as escolas, públicas e privadas, obedecerá aos seguintes prazos:
a. início em 2009, com a inclusão em, pelo menos, um dos anos do Ensino
Médio;
b. prosseguimento dessa inclusão, ano a ano, até 2011, para os cursos de
Ensino Médio de 3 anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4
anos;
6. os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos referidos
componentes, garantindo-se aulas suficientes em cada ano e professores qualificados
para o seu adequado desenvolvimento, além de outras condições, como,
notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas [...]
(Parecer CNE/CEB nº22/2008)
Assim, em 15 de maio de 2009, foi aprovada a Resolução nº1, que dispõe sobre a
71
implementação da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir da edição
da Lei nº11.684/2008.
A Resolução afirma que os conteúdos de Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao
longo de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a organização curricular adotada,
em todas as escolas públicas e privadas do país, e estabelece os prazos de implementação. A
inclusão obrigatória deveria ter início em 2009 em pelo menos um dos anos do Ensino Médio.
A inclusão deveria ser feita ano a ano, até 2011, para os cursos estruturados em 3 anos, e até
2012, para os cursos estruturados em 4 anos.
72
Considerações finais
À guisa de conclusão e apenas para rememorar o que foi dito faremos aqui uma breve
recapitulação.
Primeiro fizemos uma breve síntese do percurso da Filosofa como disciplina escolar
na educação brasileira. Vimos que o desenrolar histórico da Filosofia no currículo escolar
nunca foi linear ou harmônico. Por ser um nível de ensino que passou por inúmeras reformas,
a presença/ausência da Filosofia em seu currículo foi marcada por muitos conflitos. Mas
podemos dizer, talvez, que esses conflitos sejam “normais”, pois, de acordo com Goodson
(2001) tanto o currículo como a disciplina são construções históricas e sociais, ou seja, sua
construção está repleta de objetivos, conflitos, interesses etc.
Em seguida, nos propusemos a realizar uma reflexão crítica sobre como a Filosofia
está presente nos documentos oficiais, sendo estes os Parâmetros Curriculares Nacionais para
o Ensino Médio/Filosofia, os PNC+ para Ensino Médio/Filosofia e as Orientações
Curriculares para o Ensino Médio/Filosofia. Aqui pudemos constatar algumas contradições
entre os textos desses documentos e os textos da LDB/96 e das Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (Parecer CNE/CEB nº 15/98), como por exemplo, o fato de
que enquanto estas últimas, ao mesmo tempo em que valorizam conhecimentos de Filosofia e
Sociologia
não
asseguram
a
oferta
destes
como
componentes
obrigatórios,
os
PCNEM/Filosofia, os PCN+/Filosofia e as OCNEM/Filosofia não oferecem a estes
conhecimentos outro tratamento que não o de caráter obrigatório, embora divirjam quanto ao
“formato” desta obrigatoriedade.
No entanto, apesar das contradições encontradas, se considerarmos os princípios gerais
do Ensino Médio, definidos na LDB/96 e reforçados nas DCNEM, o espírito da proposta de
ensino desenvolvida nesses 3 documentos, é bem coerente com a concepção delineada nos
textos que compõem as bases legais da educação brasileira.
Além disso, a análise desses 3 documentos também nos permitiu ver a evolução da
importância dada à presença da Filosofia no currículo do Ensino Médio, uma vez que no
primeiro documento (PCN, de 1999) dá-se a defesa da transversalidade da Filosofia enquanto
que no último (OCNEM, de 2006) dá-se uma defesa de um espaço próprio e obrigatório para
a Filosofia.
Como vimos, a reformulação do Ensino Médio que se deu na década de 1990 (idéia de
uma educação meramente utilitária e tecnicista) resultou numa constante queda na qualidade
73
da educação dos jovens brasileiros. “Evidentemente, esse quadro não se deve só à falta que
faz os conhecimentos de filosofia e de sociologia na formação dos jovens. Mas a ausência
dessas matérias é explicada pelo empobrecimento deliberado das condições de ensino e
aprendizagem vigentes no contexto da educação básica brasileira” (Callegari, 2008, p.24),
mas a volta das duas disciplinas parece ser uma tentativa de mudar esse quadro, uma tentativa
de oferecer uma completa, ampla e sólida formação básica. Mesmo não existindo um sistema
nacional de ensino – de acordo com a LDB/96 existem três sistemas: o federal, o estadual e do
Distrito Federal, e o municipal - as escolas não podem fugir daquilo que a LDB determina
como conteúdo obrigatório. O Art. 26º da LDB define uma série de componentes curriculares
obrigatórios.
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional
comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar,
por uma parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da
sociedade, da cultura, da economia e da clientela.
§ 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente,
o estudo da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e
natural e da realidade social e política, especialmente do Brasil.
§ 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais,
constituirá componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação
básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada
pela Lei nº 12.287, de 2010)
§ 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é
componente curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa
ao aluno: (Redação dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003) [...]
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das
diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das
matrizes indígena, africana e européia.
§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a
partir da quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja
escolha ficará a cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da
instituição.
§ 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do
componente curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769,
de 2008)
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos
e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e
indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Independentemente da organização curricular que adotem (transversalidade ou por
disciplinas) o conteúdo de Filosofia deve estar presente. Como vimos no decorrer do trabalho,
a autonomia das escolas garantida pela LDB/96 não se refere à escolha das disciplinas que
devem construir a base nacional. A autonomia garantida às escolas é pedagógica e financeira,
como afirma o Art.15º da LDB/96:
Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de
educação básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e
administrativa e de gestão financeira, observadas as normas gerais de direito
financeiro público.
74
No último capítulo mapeamos a tramitação do Projeto de Lei nº1641 de 2003, do
Deputado Dr, Ribamar Alves (PSB do Maranhão), que propunha a alteração do Art.36 da
LDB/96, para incluir a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias no Ensino
Médio.
Essa tramitação foi também repleta de conflitos entre aqueles que defendiam que a
única forma da Filosofia fazer realmente parte da formação dos alunos era dar-lhe o caráter de
conteúdo obrigatório (ou seja, com um espaço próprio para ser trabalhado, com a presença de
um profissional da área); e aqueles que defendiam que a transversalidade seria suficiente para
ensinar aos alunos os conhecimentos necessários.
Houve imensa pressão por parte de associações, professores, alunos, filósofos e
sociólogos para que o referido PL fosse aprovado. O principal argumento usado era o de que a
escola carece de uma dimensão crítica e analítica, e que os conteúdos de Filosofia e
Sociologia seriam capazes de fornecer tal dimensão. A Filosofia seria capaz de desenvolver
nos educandos a capacidade de reflexão e análise crítica, habilidades necessárias a uma
participação significativa na sociedade. Na Justificação do PL, o Deputado Dr. Ribamar Alves
afirma que a Filosofia contribuiria “para uma opinião pública responsável e crítica,
convidando para o debate reflexivo [...] (p.4)
Outro aspecto que também pudemos constatar através desse mapeamento foi o fato de
que os sociólogos mostraram-se muito mais articulados politicamente do que os filósofos, que
acabram optando por uma via mais acadêmica. O que aconteceu, então, foi que a discussão
acerca do significado e do sentido da Filosofia no Ensino Médio acabou ficando restrita ao
meio acadêmico. Os filósofos não conseguiram levar a discussão para outros meios, para
outros círculos. Não fossem os sociólogos levarem a discussão para a esfera política, talvez a
lei não tivesse sido aprovada. A Filosofia e a Sociologia não têm tradição no currículo escolar
- como é o caso da matemática e do português, por exemplo – por isso a pressão na esfera
política foi extremamente crucial para se ter definida a obrigatoriedade.
A institucionalização da Filosofia como obrigatória foi uma grande vitória, porém, é
preciso ter claro que a introdução de um artigo na lei que torne a Filosofia uma disciplina
obrigatória não é garantia de que os egressos do Ensino Médio serão capazes de, através de
um pensamento rigoroso, realizar um exame minucioso das suas condições reais de
existência, como uma forma radical de exercerem a crítica do senso comum. Como dissemos
anteriormente, tornar uma disciplina obrigatória não significa determinar os conteúdos e
métodos que serão utilizados. Assim, reafirmando que não temos um sistema nacional de
ensino, fica a cabo de cada escola/região determinar quais serão esses conteúdos e métodos.
75
Ou
seja,
numa
escola
que
discute/produz/implemente
um
não
tem
projeto
clareza
dos
seus
político-pedagógico
objetivos,
que
comprometido
não
com
transformações, provavelmente terá na Filosofia apenas mais uma disciplina inútil a enfastiar
seus alunos.
Além disso, a Filosofia institucionalizada está sujeita a dispositivos e discursos legais
que exercem um tipo de controle social, na medida em que a escola, sendo uma instância que
prepara para a vida e para a inserção dos sujeitos no mundo, se sustenta vinculando verdades
úteis para a sociedade, verdades úteis para que os egressos sejam inseridos neste mundo já
organizado.
Segundo a Filosofia de Nietzsche, a verdade não é universal e irrefutável, mas sim um
produto de convenção. A verdade é
[...] uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em
resumo, um conjunto de relações humanas poeticamente e retoricamente erguidas,
transpostas, enfeitadas e que depois de um longo uso, parecem a um povo firmes,
canoniais, e constrangedoras: as verdades são ilusões que nós esquecemos que são,
metáforas que foram usadas e que perderam a sua força, moedas que perderam seu
cunho, seu valor (Nietzsche, 1984, p.84).
Ou seja, verdade é apenas uma interpretação tornada tradição. A escola então vincula
um conhecimento já solidificado pelo tempo, útil para a manutenção da sociedade.
O Estado jamais se importa com a verdade, salvo com aquela que lhe é útil – mais
exatamente ele se ocupa em geral com tudo o que lhe é útil [...] Aliança do Estado
com a Filosofia não tem, portanto, sentido, senão quando a Filosofia pode prometer
ser incondicionalmente útil ao Estado (Nietzsche, 2003, p.217)
Por isso há a necessidade de se perguntar: qual conhecimento será veiculado em
Filosofia? O conhecimento de enfoque pragmático em detrimento do “saber acumulado”?
Se é difícil pensar a Filosofia, em razão de sua complexidade, pensá-la no cenário
educacional é um desafio ainda maior, pois temos todas as dificuldades inerentes à educação
no atual contexto neoliberal, no qual a escola é constituída como uma alavanca a serviço do
mercado de trabalho e dos vestibulares.
Esse modelo de escola, parece-nos, está muito mais interessado em transmitir saberes
e conhecimentos pouco especializados, seguindo as imposições desse modelo de sociedade
que só considera que algo deve ser ensinado se tiver alguma finalidade prática, imediata e
vísivel.
O senso comum de nossa sociedade considera útil o que dá prestígio, poder, fama e
riqueza. Julga o útil pelos resultados vísiveis das coisas e das ações, identificando
utilidade e a famosa expressão “levar vantagem em tudo”.(CHAUÍ, 1995, p.18).
Os documentos oficiais enfatizam a formação para um tipo de cidadania e uma
preparação básica para o trabalho, “sem nenhum destaque ao aprofundamento dos estudos
76
acadêmicos nas diferentes áreas do conhecimento” (Falleiros, 2005, p.223).
Na orientação vemos que há uma categoria de magnitude indiscutível, absoluta, e que
seria o mercado. Este seria o responsável por orientar e delimitar a sociabilidade humana
desejável. Desse modo a formação humana e/ou cidadã deve, necessariamente, subordinar-se
aos ditames das necessidades do mercado. Pode-se apreender que aqui há claramente uma
subordinação do humano/social a um determinado tipo de organização produtiva que,
entretanto, resta indiscutida porque indiscutível. Nesse contexto, a função da Filosofia no
currículo escolar poderia apenas ser a de elemento concorrente para o atingimento da
satisfação das necessidades do mercado. Esse predomínio do mercado, que também é
conhecido por sociedade neoliberal, acaba, portanto, por determinar mesmo de formas
indiretas a função do ensino da Filosofia.
Não seria, portanto, descabido, traçar um paralelo entre a trajetória da Filosofia
enquanto disciplina escolar num governo assumidamente neoliberal e noutro, presidido por
um ex-metalúrgico, que, ao menos tendencialmente, questiona e se afasta desse modelo
globalmente consagrado. Talvez não seja apenas coincidência que no primeiro governo deu-se
o veto à introdução da Filosofia e da Sociologia ao currículo do Ensino Médio, enquanto que
essa introdução foi facilitada no segundo.
O conhecimento vinculado nas disciplinas curriculares desempenha, então, o papel de
formar pessoas, instituir conceitos, valores, ideologias e visões de mundo. Segundo Goodson
(2001, p.10) “[...] o currículo é construído para ter efeito sobre pessoas. As instituições
escolares processam mais do que conhecimento, processam pessoas”.
77
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84
ANEXO 1
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 9.394, DE 20 DE DEZEMBRO DE 1996.1
Vide Adin 3324-7, de 2005
Vide Decreto nº 3.860, de 2001
Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Vide Lei nº 12.061, de 2009
TÍTULO II
Dos Princípios e Fins da Educação Nacional
Art. 2º A educação, dever da família e do Estado, inspirada nos princípios de liberdade e
nos ideais de solidariedade humana, tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho.
TÍTULO IV
Da Organização da Educação Nacional
Art. 8º A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime
de colaboração, os respectivos sistemas de ensino.
§ 1º Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os
diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em
relação às demais instâncias educacionais.
§ 2º Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei.
Art. 9º A União incumbir-se-á de: (Regulamento)
I - elaborar o Plano Nacional de Educação, em colaboração com os Estados, o Distrito
Federal e os Municípios;
II - organizar, manter e desenvolver os órgãos e instituições oficiais do sistema federal
de ensino e o dos Territórios;
III - prestar assistência técnica e financeira aos Estados, ao Distrito Federal e aos
Municípios para o desenvolvimento de seus sistemas de ensino e o atendimento prioritário à
escolaridade obrigatória, exercendo sua função redistributiva e supletiva;
1
O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho.
85
IV - estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica
comum;
V - coletar, analisar e disseminar informações sobre a educação;
VI - assegurar processo nacional de avaliação do rendimento escolar no ensino
fundamental, médio e superior, em colaboração com os sistemas de ensino, objetivando a
definição de prioridades e a melhoria da qualidade do ensino;
VII - baixar normas gerais sobre cursos de graduação e pós-graduação;
VIII - assegurar processo nacional de avaliação das instituições de educação superior,
com a cooperação dos sistemas que tiverem responsabilidade sobre este nível de ensino;
IX - autorizar, reconhecer, credenciar, supervisionar e avaliar, respectivamente, os
cursos das instituições de educação superior e os estabelecimentos do seu sistema de ensino.
§ 1º Na estrutura educacional, haverá um Conselho Nacional de Educação, com funções
normativas e de supervisão e atividade permanente, criado por lei.
§ 2° Para o cumprimento do disposto nos incisos V a IX, a União terá acesso a todos os
dados e informações necessários de todos os estabelecimentos e órgãos educacionais.
§ 3º As atribuições constantes do inciso IX poderão ser delegadas aos Estados e ao
Distrito Federal, desde que mantenham instituições de educação superior.
Art. 15. Os sistemas de ensino assegurarão às unidades escolares públicas de educação
básica que os integram progressivos graus de autonomia pedagógica e administrativa e de
gestão financeira, observadas as normas gerais de direito financeiro público.
Art. 16. O sistema federal de ensino compreende:
I - as instituições de ensino mantidas pela União;
II - as instituições de educação superior criadas e mantidas pela iniciativa privada;
III - os órgãos federais de educação.
Art. 17. Os sistemas de ensino dos Estados e do Distrito Federal compreendem:
I - as instituições de ensino mantidas, respectivamente, pelo Poder Público estadual e
pelo Distrito Federal;
II - as instituições de educação superior mantidas pelo Poder Público municipal;
III - as instituições de ensino fundamental e médio criadas e mantidas pela iniciativa
privada;
IV - os órgãos de educação estaduais e do Distrito Federal, respectivamente.
Parágrafo único. No Distrito Federal, as instituições de educação infantil, criadas e
86
mantidas pela iniciativa privada, integram seu sistema de ensino.
Art. 18. Os sistemas municipais de ensino compreendem:
I - as instituições do ensino fundamental, médio e de educação infantil mantidas pelo
Poder Público municipal;
II - as instituições de educação infantil criadas e mantidas pela iniciativa privada;
III – os órgãos municipais de educação.
TÍTULO V
Dos Níveis e das Modalidades de Educação e Ensino
CAPÍTULO II
DA EDUCAÇÃO BÁSICA
Seção I
Das Disposições Gerais
Art. 22. A educação básica tem por finalidades desenvolver o educando, assegurar-lhe a
formação comum indispensável para o exercício da cidadania e fornecer-lhe meios para
progredir no trabalho e em estudos posteriores.
Art. 23. A educação básica poderá organizar-se em séries anuais, períodos semestrais,
ciclos, alternância regular de períodos de estudos, grupos não-seriados, com base na idade, na
competência e em outros critérios, ou por forma diversa de organização, sempre que o
interesse do processo de aprendizagem assim o recomendar.
§ 1º A escola poderá reclassificar os alunos, inclusive quando se tratar de transferências
entre estabelecimentos situados no País e no exterior, tendo como base as normas curriculares
gerais.
§ 2º O calendário escolar deverá adequar-se às peculiaridades locais, inclusive
climáticas e econômicas, a critério do respectivo sistema de ensino, sem com isso reduzir o
número de horas letivas previsto nesta Lei.
Art. 25. Será objetivo permanente das autoridades responsáveis alcançar relação
adequada entre o número de alunos e o professor, a carga horária e as condições materiais do
estabelecimento.
Parágrafo único. Cabe ao respectivo sistema de ensino, à vista das condições
disponíveis e das características regionais e locais, estabelecer parâmetro para atendimento do
disposto neste artigo.
Art. 26. Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional
comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escolar, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
87
economia e da clientela.
§ 1º Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo
da língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da
realidade social e política, especialmente do Brasil.
§ 2o O ensino da arte, especialmente em suas expressões regionais, constituirá
componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação básica, de forma a
promover o desenvolvimento cultural dos alunos. (Redação dada pela Lei nº 12.287, de 2010)
§ 3o A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente
curricular obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (Redação
dada pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)
I – que cumpra jornada de trabalho igual ou superior a seis horas; (Incluído pela Lei nº
10.793, de 1º.12.2003)
II – maior de trinta anos de idade; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)
III – que estiver prestando serviço militar inicial ou que, em situação similar, estiver
obrigado à prática da educação física; (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)
IV – amparado pelo Decreto-Lei no 1.044, de 21 de outubro de 1969; (Incluído pela Lei
nº 10.793, de 1º.12.2003)
V – (VETADO) (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)
VI – que tenha prole. (Incluído pela Lei nº 10.793, de 1º.12.2003)
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes
culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena,
africana e européia.
§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da
quinta série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a
cargo da comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.
§ 6o A música deverá ser conteúdo obrigatório, mas não exclusivo, do componente
curricular de que trata o § 2o deste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.769, de 2008)
Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e
privados, torna-se
obrigatório o estudo da
história
e
cultura
afro-brasileira
e
indígena. (Redação dada pela Lei nº 11.645, de 2008).
Art. 27. Os conteúdos curriculares da educação básica observarão, ainda, as seguintes
diretrizes:
I - a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos
cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
88
II - consideração das condições de escolaridade dos alunos em cada estabelecimento;
III - orientação para o trabalho;
IV - promoção do desporto educacional e apoio às práticas desportivas não-formais.
Seção IV
Do Ensino Médio
Art. 35. O ensino médio, etapa final da educação básica, com duração mínima de três
anos, terá como finalidades:
I - a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos;
II - a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para continuar
aprendendo, de modo a ser capaz de se adaptar com flexibilidade a novas condições de
ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
III - o aprimoramento do educando como pessoa humana, incluindo a formação ética e o
desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento crítico;
IV - a compreensão dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos,
relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina.
Art. 36. O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e
as seguintes diretrizes:
I - destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência,
das letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a
língua portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da
cidadania;
II - adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos
estudantes;
III - será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória,
escolhida pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das
disponibilidades da instituição.
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as
séries do ensino médio. (Incluído pela Lei nº 11.684, de 2008)
§ 1º Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal
forma que ao final do ensino médio o educando demonstre:
I - domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;
II - conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;
89
ANEXO 2
RESOLUÇÃO CEB Nº 3, DE 26 DE JUNHO DE 19982
Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para oEnsino Médio.
O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, de
conformidade com o disposto no art. 9º § 1º, alínea ―c‖, da Lei 9.131, de 25 de novembro de
1995, nos artigos 26, 35 e 36 da Lei 9.394, de 20 de dezembro de 1996, e tendo em vista o
Parecer CEB/CNE 15/98, homologado pelo Senhor Ministro da Educação e do Desporto em
25 de junho de 1998, e que a esta se integra, RESOLVE:
Art. 1º As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio – DCNEM,
estabelecidas nesta Resolução, se constituem num conjunto de definições doutrinárias sobre
princípios, fundamentos e procedimentos a serem observados na organização pedagógica e
curricular de cada unidade escolar integrante dos diversos sistemas de ensino, em atendimento
ao que manda a lei, tendo em vista vincular a educação com o mundo do trabalho e a prática
social, consolidando a preparação para o exercício da cidadania e propiciando preparação
básica para o trabalho.
Art. 2º A organização curricular de cada escola será orientada pelos valores
apresentados na Lei 9.394, a saber:
I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem
comum e à ordem democrática;
II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância
recíproca.
Art. 4º As propostas pedagógicas das escolas e os currículos constantes dessas
propostas incluirão competências básicas, conteúdos e formas de tratamento dos conteúdos,
previstas pelas finalidades do ensino médio estabelecidas pela lei:
I - desenvolvimento da capacidade de aprender e continuar aprendendo, da autonomia
intelectual e do pensamento crítico, de modo a ser capaz de prosseguir os estudos e de
adaptar-se com flexibilidade a novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento;
2
O presente anexo não se encontra na íntegra. Foram selecionados somente os artigos pertinentes ao trabalho.
90
II - constituição de significados socialmente construídos e reconhecidos como verdadeiros
sobre o mundo físico e natural, sobre a realidade social e política;
III - compreensão do significado das ciências, das letras e das artes e do processo de
transformação da sociedade e da cultura, em especial as do Brasil, de modo a possuir as
competências e habilidades necessárias ao exercício da cidadania e do trabalho;
IV - domínio dos princípios e fundamentos científico-tecnológicos que presidem a produção
moderna de bens, serviços e conhecimentos, tanto em seus produtos como em seus processos,
de modo a ser capaz de relacionar a teoria com a prática e o desenvolvimento da flexibilidade
para novas condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores;
V - competência no uso da língua portuguesa, das línguas estrangeiras e outras linguagens
contemporâneas como instrumentos de comunicação e como processos de constituição de
conhecimento e de exercício de cidadania.
Art. 10 A base nacional comum dos currículos do ensino médio será organizada em
áreas de conhecimento, a saber:
I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e
habilidades que permitam ao educando:
a) Compreender e usar os sistemas simbólicos das diferentes linguagens como meios
de organização cognitiva da realidade pela constituição de significados, expressão,
comunicação e informação.
b) Confrontar opiniões e pontos de vista sobre as diferentes linguagens e suas
manifestações específicas.
c) Analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando
textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das
manifestações, de acordo com as condições de produção e recepção.
d) Compreender e usar a língua portuguesa como língua materna, geradora de
significação e integradora da organização do mundo e da própria identidade.
e) Conhecer e usar língua(s) estrangeira(s) moderna(s) como instrumento de acesso a
informações e a outras culturas e grupos sociais.
f) Entender os princípios das tecnologias da comunicação e da informação, associá-las
aos conhecimentos científicos, às linguagens que lhes dão suporte e aos problemas que se
propõem solucionar.
g) Entender a natureza das tecnologias da informação como integração de diferentes
meios de comunicação, linguagens e códigos, bem como a função integradora que elas
exercem na sua relação com as demais tecnologias.
91
h) Entender o impacto das tecnologias da comunicação e da informação na sua vida,
nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.
i) Aplicar as tecnologias da comunicação e da informação na escola, no trabalho e em
outros contextos relevantes para sua vida.
II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, objetivando a constituição de
habilidades e competências que permitam ao educando:
a) Compreender as ciências como construções humanas, entendendo como elas se
desenvolvem por acumulação, continuidade ou ruptura de paradigmas, relacionando o
desenvolvimento científico com a transformação da sociedade.
b) Entender e aplicar métodos e procedimentos próprios das ciências naturais.
c) Identificar variáveis relevantes e selecionar os procedimentos necessários para a
produção, análise e interpretação de resultados de processos ou experimentos científicos e
tecnológicos.
d) Compreender o caráter aleatório e não determinístico dos fenômenos naturais e
sociais e utilizar instrumentos adequados para medidas, determinação de amostras e cálculo
de probabilidades.
e) Identificar, analisar e aplicar conhecimentos sobre valores de variáveis,
representados em gráficos, diagramas ou expressões algébricas, realizando previsão de
tendências, extrapolações e interpolações e interpretações.
f)
Analisar
qualitativamente
dados
quantitativos
representados
gráfica
ou
algebricamente relacionados a contextos sócio-econômicos, científicos ou cotidianos
g) Apropriar-se dos conhecimentos da física, da química e da biologia e aplicar esses
conhecimentos para explicar o funcionamento do mundo natural, planejar, executar e avaliar
ações de intervenção na realidade natural.
h) Identificar, representar e
utilizar o conhecimento geométrico para o
aperfeiçoamento da leitura, da compreensão e da ação sobre a realidade.
i) Entender a relação entre o desenvolvimento das ciências naturais e o
desenvolvimento tecnológico e associar as diferentes tecnologias aos problemas que se
propuseram e propõem solucionar.
j) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências naturais na sua vida
pessoal, nos processos de produção, no desenvolvimento do conhecimento e na vida social.
l) Aplicar as tecnologias associadas às ciências naturais na escola, no trabalho e em
outros contextos relevantes para sua vida.
92
m) Compreender conceitos, procedimentos e estratégias matemáticas e aplicá-las a
situações diversas no contexto das ciências, da tecnologia e das atividades cotidianas.
III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, objetivando a constituição de competências e
habilidades que permitam ao educando:
a) Compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que constituem a
identidade própria e dos outros.
b) Compreender a sociedade, sua gênese e transformação e os múltiplos fatores que
nelas intervêm, como produtos da ação humana; a si mesmo como agente social; e os
processos sociais como orientadores da dinâmica dos diferentes grupos de indivíduos.
c) Compreender o desenvolvimento da sociedade como processo de ocupação de
espaços físicos e as relações da vida humana com a paisagem, em seus desdobramentos
político-sociais, culturais, econômicos e humanos.
d) Compreender a produção e o papel histórico das instituições sociais, políticas e
econômicas, associando-as às práticas dos diferentes grupos e atores sociais, aos princípios
que regulam a convivência em sociedade, aos direitos e deveres da cidadania, à justiça e à
distribuição dos benefícios econômicos.
e) Traduzir os conhecimentos sobre a pessoa, a sociedade, a economia, as práticas
sociais e culturais em condutas de indagação, análise, problematização e protagonismo diante
de situações novas, problemas ou questões da vida pessoal, social, política, econômica e
cultural.
f) Entender os princípios das tecnologias associadas ao conhecimento do indivíduo, da
sociedade e da cultura, entre as quais as de planejamento, organização, gestão, trabalho de
equipe, e associá-las aos problemas que se propõem resolver.
g) Entender o impacto das tecnologias associadas às ciências humanas sobre sua vida
pessoal, os processos de produção, o desenvolvimento do conhecimento e a vida social.
h) Entender a importância das tecnologias contemporâneas de comunicação e
informação para o planejamento, gestão, organização, fortalecimento do trabalho de equipe.
i) Aplicar as tecnologias das ciências humanas e sociais na escola, no trabalho e outros
contextos relevantes para sua vida.
§ 1º A base nacional comum dos currículos do ensino médio deverá contemplar as três áreas
do conhecimento, com tratamento metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a
contextualização.
§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e
contextualizado para:
93
a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;
b) Conhecimentos de filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania.
ULYSSES DE OLIVEIRA PANISSET
Presidente da Câmara de Educação Básica
94
ANEXO 3
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
MENSAGEM Nº 1.073, DE 8 DE OUTUBRO DE 2001.
Senhor Presidente do Senado Federal,
Comunico a Vossa Excelência que, nos termos do parágrafo 1 o do artigo 66 da
constituição Federal, decidi vetar integralmente, por contrariedade ao interesse público, o
Projeto de Lei no 9, de 2000 (no 3.178/97 na Câmara dos Deputados), que "Altera o art. 36 da
Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional".
Ouvido, o Ministério da Educação assim se manifestou:
Razões do veto:
"A Constituição Federal em seu art. 210, caput, preceitua:
"Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a
assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e
regionais."
Celso Ribeiro Bastos e Ives Gandra Martins, in Comentários à Constituição do Brasil,
lecionam que na fixação do conteúdo mínimo para o ensino fundamental devem ser levadas
em conta as diferenças regionais de desenvolvimento socioeconômico, que devem estar
presentes em benefício da própria unidade federada em que encontra instituído o
estabelecimento de ensino. O conteúdo mínimo tem como finalidade manter a unidade dos
currículos em todo o País e ao mesmo tempo manter uma parte diversificada, capaz de atender
às peculiaridades e características de cada região, aos planos das escolas e às diferenças
individuais existentes e necessárias dos educandos.
Sabiamente, a LDB (Lei n o 9.394/96), em atenção às peculiaridades e características
de cada região, em seu art. 9o, inciso IV, atribuiu à União a incumbência de "estabelecer, em
95
colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, competências e diretrizes
para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio, que nortearão os currículos e
seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica comum".
Acrescente-se que o art. 211 da Constituição Federal, em seu § 3 o, preceitua que os
Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino fundamental e médio.
Assim, o projeto de inclusão da Filosofia e da Sociologia como disciplinas
obrigatórias no currículo do ensino médio implicará na constituição de ônus para os Estados e
o Distrito Federal, pressupondo a necessidade da criação de cargos para a contratação de
professores de tais disciplinas, com a agravante de que, segundo informações da Secretaria de
Educação Média e Tecnológica, não há no País formação suficiente de tais profissionais para
atender a demanda que advirá caso fosse sancionado o projeto, situações que por si só
recomendam que seja vetado na sua totalidade por ser contrário ao interesse público.
Muito embora o art. 210 da Constituição Federal se refira à fixação de conteúdos
mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum, entendo
que os princípios inerentes de tal diploma sejam observados para a fixação dos currículos e
conteúdos mínimos para o ensino médio, a cargo da União, em colaboração com os Estados, o
Distrito Federal e os Municípios, conforme preceitua o art. 9 o, inciso IV, da Lei no 9.394/96.
Por derradeiro, tecnicamente, a proposta contida no projeto, se viável, deveria ser
inserida no art. 26 da Lei no 9.394/96, o qual em seu § 1o estabelece que os currículos do
ensino fundamental e médio devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da língua portuguesa
e da matemática."
Estas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais
ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.
Brasília, 8 de outubro de 2001.
96
ANEXO 4
PROJETO DE LEI N° _____, DE 2003
(Do Sr. Dr. Ribamar Alves)
Altera dispositivos do art. 36 da Lei n°
9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional.
O congresso Nacional decreta:
Art. 1º É acrescentado o seguinte inciso IV ao artigo 36 da Lei nº 9394, de 20 de dezembro de
1996:
―Art. 36..............................................
IV – Serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as
séries do Ensino Médio.‖
Art. 2º É suprimido o inciso III do § 1º do art. 36 da Lei n° 9394, de 20 de dezembro de 1996.
Art. 3º Esta Lei entra em vigor na data de sua Publicação.
Art. 4º Revogam-se as disposições em contrário.
JUSTIFICAÇÃO
Herdamos do mundo grego não apenas semântica estrutural da língua, mas o processo
de inserção do homem na existência mediante a atividade do pensar. Com efeito, um dos
ideais gregos que alicerçam tal consideração é a idéia de que é tarefa primordial do ser
humano o desenvolvimento intelectual de sua personalidade. Por isso, a filosofia, a idéia
grega do amor ao saber pelo saber , pressupõe o necessário exercício do pensar como
fundamento do conhecer. O desdobrar deste ideal nos direciona, essencialmente, a dois
problemas básicos a educação e a política. É impossível, para os gregos, desvincular educação
e política só é possível na Estado e através dele.
Assim situando-nos na realidade histórica do Brasil contemporâneo, sem jamais perder
de vista a precipua influência dos ideais gregos relativos à educação, cultura e política faz-se
urgente uma reflexão sobre a atual situação da Filosofia no referido contexto., mais
especificamente à problemática de sua inclusão, ou re-inclusão, nas escolas brasileiras e seus
97
currículos do Ensino Médio.
A re-inclusão da Filosofia no currículo do Ensino Médio pode nos parecer redundante,
mas extemporânea, reafirmar a necessidade da filosofia nos currículos de Ensino Médio,
mesmo em pleno regime democrático é sobretudo uma conseqüência de anos de luta, o que
nos remonta a sua subtração ainda durante o regime militar. Algo que nos faz historiar a
respeito de fatos ocorridos no limiar dos anos oitenta, quando a então Ministra do Governo
Figueiredo professora Ester Ferraz, após receber uma comissão de professores, chegou a
recomendar às secretarias de educação e conselhos estaduais de educação, que a Filosofia
fosse acrescentada como disciplina nos currículo do então segundo grau, hoje Ensino Médio.
É obvio que esta atitude não foi fortuita, mas como dissemos, fruto de uma longa luta,
iniciada uma década anterior, com direito a encontros nacionais e fundação de entidades
representativas. Contudo, o que importa destacar é a simetria entre as atitudes, (ou ausência
dela) que intercalam os dois tempos históricos, o ontem e o hoje. O que se revela no mínimo
curioso, posto que uma Ministra do regime autoritário faz uma recomendação que caberia ao
regime democrático executar com grande aptidão.
É preeminente o discurso que a educação brasileira vem tomando nos últimos anos,
especialmente, após a aprovação da lei 9394/96 (LDB). Há toda uma fala que provoca
referendar o tema da educação como a mais avançada que tivemos na historia brasileira ―uma
revolução silenciosa‖. As Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio- DCNEM
impelem o caminho que prima pelos ―princípios estéticos, políticos e éticos que inspiram a
LDB e, por conseqüência, devem inspirar o currículo‖, posto que estes conceitos
fundamentaram o novo ensino médio brasileiro. Elas informam no seu bojo um espirito
democrático que busca fundamentar um novo Ensino Médio e, segundo, este documento do
Ministério da Educação, que só ratifica substancialmente a importância e necessidade da
Filosofia, quando infere que s fundamentos do Ensino Médio se assentam sob os conceitos da
estética, política e ética. Ora, apenas o fato de se chamar a discussão para os fundamentos,
seria motivo de sobra para que a filosofia atravessasse todo esse ciclo educacional como
disciplina. Para sermos mais específicos, os Parâmetros Curriculares Nacionais – PCN´s em
seus Parecer CEB 15/98, irrompem com esta mesma posição numa louvável citação do
filósofo francês Gilles Gaston Grander;
“(...) A filosofia sempre teve conexões intimas e duradouras
com os resultados das ciências e das artes e, no esforço de pensar
seus fundamentos muitas vezes foi além delas, abrindo campos para
98
novos saberes e novas experiências” (GRANDER; apud. BRASIL,
MEC. 1998, p.329).
O referido parecer das diretrizes decide, além da orientação acima, considerar como
fundamentos do ensino médio conceitos que estão intimamente ligados à Filosofia,
conceitos que estão na sua gênese. O que o parecer supra mencionado chama de estética da
sensibilidade, política da igualdade de ética da identidade não é senão aquilo que nutre a
bagagem conceptual da Filosofia, suas categorias de discurso mais originais ao longo dos
seus vinte e cinco séculos. Falar então da Filosofia como disciplina no currículo do Ensino
Médio passa a ser nada mais que uma condição sine qua non, principalmente, se tomada na
conceito disciplina, tal como o próprio Ministério da Educação compreende.
“(...) A expressão “disciplina escolar” refere-se a uma seleção
de conhecimentos que são ordenados e organizados para serem
apresentados ao aluno. Recorrendo, como apoio a essa apresentação
um conjunto de procedimentos didáticos e metodológicos e de
avaliação. (...) a disciplina escolar é ainda mais ampla pois incha
programas ou formas ordenamento, sequenciação, os métodos para o
seu ensino e a avaliação da aprendizagem. A disciplina escolar supõe
ainda uma teoria da aprendizagem adequada à idade a quem vai ser
ensinada (...) (Brasil. MEC., 1998. p.88)
Esse conceito utilizado pelos PCN´s só ratifica a presença só ratifica a presença da
filosofia como disciplina no Ensino Médio, uma vez que considera relevante as questões
especifico de determinada área como balizamento, método de investigação e recuso à teoria.
No mesmo sentido é a afirmação do professor Celso Favaretto.
“A filosofia deve ser considerada no ensino médio como uma disciplina,
ao nível dos demais. Como “disciplina”, ao nível das demais. Como
“disciplina”, é um conjunto específico de conhecimentos, com
características próprias, sobre ensino, formação, valores, etc. (...) Como
“disciplinas” ainda, ela mescla conteúdo cultural a partir de seus
materiais, mecanismos e métodos, como qualquer outra. Está vinculada
às necessidades de formação e saber inscritos culturalmente e
solicitados socialmente.
99
A mesma orientação é dada para o ensino da filosofia mais adiante nos PEN‘s, que
avança duplamente ao qualificar a Filosofia como um conhecimento ao mesmo tempo é
específico e articulador, que pelo diálogo com os demais campos epstemológicos, colabora
com uma compreensão da realidade complexa e dinâmica.
“(...) possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar
(metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar decisivamente no
trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais
curriculares (...) É oportuno recomendar expressamente que não se
pode de nenhum modo dispensar a presença de um profissional na
área, (...) para proporcionar a construção de competências de leitura
e análise filosófica dos diversos textos em que o conhecimento de
filosofia é um saber altamente especializado e que portanto, não se
pode ser adequadamente tratado por leigos (...) “, (BRASIL. MEC.,
1998. P.342)
Como ―transdisciplinar‖ a Filosofia não significa outo-dissolução entre as demais,
uma vez que transdisciplinaridade não é uma condição exclusiva da Filosofia, mas de todo e
qualquer conhecimento que queira transpor as barreiras instituídas pelo positivismo que
abateu-se
sobre
a
produção
do
conhecimento,
sobretudo,
na
educação.
―A
transdisciplinaridade, como prefixo ―trans‖ indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo
tempo entre as disciplinas, através das diferenças e além de qualquer disciplina. Seu objetivo
é a compreensão do mundo, presente, para qual um dos imperativos é a unidade do
conhecimento‖ (NICOLESCU, 1999). A Filosofia sim tem o papel de articuladora, uma vez
que a transdisciplinaridade é o que impõe sua condição como disciplina e, não sua
naturalidade. O filosofo de Kõnigsberg pensava a Universidade como um sujeito-critico de
suas próprias práticos, que pudesse implementar a partir dessa instância crítica, indagações,
sem regras, das condições de possibilidades dos discursos e das próprias regras que ali
circulavam (RINESI, 2001, p 90-91). Para Kant, a Filosofia, o ―tribunal da razão‖, é o fórum
mais legitimo onde se institui e se julga qualquer regra. Se a Filosofia, tem essa
responsabilidade na Universidade, porque não no Ensino Médio? Na verdade a fala dos
PCN´s ao colocar a Filosofia como articuladora revela senão esse caráter, posto que a
Filosofia é uma modalidade do conhecimento que põe a questão sobre si mesma, noutros
termo, põe a questão da consciência critica da própria consciência filosófica. Sua
características transdisciplinar tem ai sua justificativa contumaz.
100
Como saber, ou conhecimento altamente especializado, será impossível a devida
aplicação de temas ou conteúdos filosóficos em outras disciplinas, por docentes que não
sejam adequadamente habilitados para a realização dessa atividade. Isso faz o texto da LDB
insuficiente, já que não considera a especialidade da área em tela. Nesse sentido, quanto a
Filosofia ao currículo da Ensino Médio, cabe ainda ressaltar a fala professor Franklin
Leopoldo e Silva (apud: Pe, Roque, 1997)
“Existe, portanto, um lado pelo qual o filosofia ocupa na
estrutura curricular posição análogo a qualquer outra disciplina: há
o que aprender., há o que memorizar, há técnicas a serem dominadas,
há, sobretudo, uma terminologia especifica a ser devidamente
assimilada. Não devemos nos iludir com o adágio “não se aprende
filosofia”, algo que pode levar a um comodismo ou a uma
descaracterização da disciplina. O que a filosofia tem de diferente das
outras disciplinas é que o ato de ensina-la se confunde com a
transmissão do estilo reflexivo, e o ensino da Filosofia somente
logrará algum existe na medida em qual estilo for efetivamente
transmitido. No entanto, isto ocorre de
forma concomilante à
assimilação dos conteúdos específicos, da carga de informação que
pode ser transmitida de variadas formas. O estilo reflexivo não pode
ser ensinada formal e diretamente, mas pode ser suficientemente
ilustrado quando o professor e os alunos refazem o percurso da
interrogação filosófica e identificam a maneira peculiar pela qual a
Filosofia constrói suas questões e suas respostas.
Ora, é desta maneira especifico que a Filosofia realiza o
trabalho de articulação cultural...Pensar e repensar a cultura não se
confunde com compatibilidade de métodos e sistematização de
resultados: é uma atividade autônoma de índole critica. Não devemos,
portanto entender que a Filosofia estará no currículo do Ensino
Média em função das outras disciplinas, quase num papel de
assessora metodológica. No entanto, seria grave infidelidade ao
espírito filosófico entender que a Filosofia virá se agregar ao
currículo apenas para torna-se mais uma parte é um todo desconexo,
ou pelo menos como profundos problemas de integração e conexão.
Nesse sentido, não representa prestação dizer que a Filosofia não é
101
apenas mais uma disciplina: ao dize-lo, estaremos apenas
reafirmando a natureza do estudo filosófica. Tem uma função de
articulação do indivíduo enquanto personagem social, se entendemos
que o autêntico processo de socialização requer a consciência e o
reconhecimento da identidade social e uma compreensão critica da
relação homem-mundo.”
Na realidade contemporânea, na atualidade, tanto ou mais que em outras épocas
históricas, sociais e políticas, a Filosofia deve estar presente para propiciar a análise e
compreensão de problemas, envolvendo questões emergentes da diversidade dos contextos.
Vivemos numa época do encontro das culturas, do fim do mito do discurso único e onde as
legitimações ideológicas estão sendo desautorizadas. Vivemos num cenário que proporciona
choques e tensionamentos que incidem rapidamente sobre fatos sociais, políticos, históricos,
econômicos e que clamam por uma compreensão que somente a Filosofia pode proporcionar à
altura.
A filosofia nos currículos da Ensino Médio não pode atuar num espaço restrito,
dissolvendo-a em modalidades temáticas de outras disciplinas. Ora, a Filosofia tem no atual
contexto político do fortalecimento das instituições democráticas do país um dos papéis mais
relevantes neste projeto, qual seja, o de contribuir para uma formação e fundamentação da
opinião pública brasileira, não deixando somente a cargo da imprensa, que muitas vezes se vê
à deriva com o cerco do fenômeno midiático, que, ao modo do Rei Midas, transforma em
ouro, ou melhor, mercado, tudo o que toca. Ela oporá, por aporias. Assim, contribuirá para
uma opinião pública responsável e crítica, convidando para o debate reflexivo, introduzindo
valores que se assentam sobre aquela tradição grega que falávamos inicio q que em suma, é de
vocação política. Para nós, é o que pode construir instituições democráticas e consolidar a
democracia verdadeiramente num país como o Brasil.
Sala das Sessões, em ____/____/____
Deputado Dr. Ribamar Alves
PSB/MA
102
ANEXO 5
PARECER HOMOLOGADO(*)
(*) Despacho do Ministro, publicado no Diário Oficial da União de 14/8/2006
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
INTERESSADO: Ministério da Educação/Secretaria de Educação Básica
UF: DF
ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do
Ensino Médio.
RELATORES: Cesar Callegari, Murílio de Avellar Hingel e Adeum Hilário Sauer
PROCESSO nº: 23001.000179/2005-11
PARECER CNE/CEB Nº:
COLEGIADO:
APROVADO EM:
38/2006
CEB
7/7/2006
I – RELATÓRIO
Histórico
Em 24/11/2005, foi protocolado no Conselho Nacional de Educação o Oficio nº
9647/GAB/SEB/MEC, de 15 de novembro de 2005, pelo qual o Secretário de Educação
Básica do Ministério da Educação encaminhou, para apreciação, documento anexado sobre as
“Diretrizes Curriculares das disciplinas de Sociologia e Filosofia no Ensino Médio”,
elaborado pela Secretaria com a participação de representantes de várias entidades.
O documento juntado contém uma série de considerações favoráveis à inclusão
obrigatória de disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio.
Nesse documento, em sua ―Parte I – Do contexto legal‖, entre outras considerações, é
lembrado o artigo 36, § 1o, inciso III, da Lei nº 9.394/96 – LDB:
“§ 1o. Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão
organizadas de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando
demonstre:
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários
ao exercício da cidadania.‖
Em contraposição, é lembrado o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98,
fundamentada no Parecer CNE/CEB nº 15/98:
“§ 2º. As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar
tratamento interdisciplinar e contextualizado para:
b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício
da cidadania.”
É referido, ainda, o Parecer CNE/CEB nº 22/2003, no qual, ao tratar de
―questionamento sobre currículos da Educação Básica, das escolas públicas e particulares‖,
e recorrendo à LDB e à Resolução CNE/CEB nº 3/98, este Colegiado ponderou que ―não há,
103
dentro da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como
disciplinas.‖
Entretanto, com apoio no disposto na LDB, os proponentes desenvolvem
argumentação que conclui que Filosofia e Sociologia devem passar a ser entendidas como
disciplinas obrigatórias.
A ―Parte II - Do contexto pedagógico‖, do documento anexado, está dividida em três
títulos:
―1 – Filosofia‘
‗2 – Sociologia‘
‗3 - Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio‖.
Nos dois primeiros, entre várias considerações, são apresentadas razões que
justificam a inclusão de cada uma como disciplina obrigatória no currículo do Ensino Médio,
contrapondo-se, em especial, às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio
(Parecer CNE/CEB nº 15/98 e Resolução CNE/CEB nº 3/98).
No terceiro título, também entre outras considerações, são confrontadas as Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM com os Parâmetros Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio – PCNEM, salientando que estes, diferentemente das
primeiras, apresentam opção por estruturação disciplinar, ―apenas fazendo certa concessão à
imposição que as DCNEM determinaram de se buscar a interdisciplinaridade‖.
Indagam, ainda, quanto ao tratamento preconizado pelas DCNEM: ―como garantir que
os ‗conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‘ sejam
tratados efetivamente pelas demais disciplinas escolares, ou seja, como dizem as DCNEM,
com ‗tratamento interdisciplinar e contextualizado‖?
Ao final da argumentação, acabam por propor que seja alterada a Resolução
CNE/CEB nº 3/98, no seu artigo 10º, § 2º, com a supressão da alínea b e inclusão do § 3º com
a seguinte redação:
“As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento
de componente disciplinar obrigatório à Filosofia e à Sociologia”.
Antes de passar à análise da proposta, registra-se que, em 1º de fevereiro de 2006, a
Câmara de Educação Básica promoveu reunião, para a qual foram convidadas mais de 30
entidades e pessoas, para discussão do tema ―Alteração das Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Ensino Médio/inclusão de componentes curriculares obrigatórios deFilosofia e
Sociologia‖, com base na proposta da Secretaria de Educação Básica do MEC.Participaram
dessa audiência 20 pessoas, entre sociólogos, professores de Filosofia e de Sociologia,
representantes de entidades, estudantes e outros profissionais. Foram apresentados e
104
discutidos os vários aspectos concernentes à reivindicação da inclusão obrigatória de
disciplinas de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio, mediante alteração na
Resolução CNE/CEB nº 3/98.
A mesma preocupação com o ensino da Filosofia e da Sociologia está presente em
outras instâncias, inclusive no Legislativo, em que se registram iniciativas parlamentares
visando a sua inclusão no currículo do Ensino Médio: Projeto de Lei da Câmara dos
Deputados n° 1.641, de 2003, e Projeto de Lei do Senado n° 4, de 2004.
Análise do Mérito
Preliminarmente, reitera-se a importância e o valor da Filosofia e da Sociologia para
um processo educacional consistente e de qualidade na formação humanística de jovens que
se deseja sejam cidadãos éticos, críticos, sujeitos e protagonistas. Essa relevância é
reconhecida não só pela argumentação dos proponentes, como por pesquisadores e
educadores em geral, inclusive não filósofos ou não sociólogos.
O legislador, por seu lado, reconheceu essa importância ao destacar nominalmente os
conhecimentos de Filosofia e de Sociologia, dando-lhes valor essencial e não acidental, com
caráter de finalidade do processo educacional do Ensino Médio. (artigo 36, § 1 o, inciso III, da
Lei nº 9.394/96).
Não é demais destacar que, na ótica da LDB, os conhecimentos de Filosofia e
Sociologia são justificados como ―necessários ao exercício da cidadania” (artigo 36, § 1o,
inciso III, da Lei nº 9.394/96). Com os demais componentes da Educação Básica, devem
contribuir para uma das finalidades do Ensino Médio, que é a de ―aprimoramento como
pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e
do pensamento crítico‖ (art. 35, inciso II, da LDB). E devem, ainda, mais especialmente,
seguir a diretriz de ―difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e
deveres dos cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática‖ (art. 27, inciso I, da
LDB).
Outro ponto a considerar é a realidade, expressa na adoção crescente do ensino de
Filosofia e de Sociologia pela maioria das redes de escolas públicas estaduais. Segundo
informação do MEC, em 17 estados da Federação, a Filosofia e a Sociologia foram incluídas
no currículo, sendo optativas em 2 deles. Muitas escolas particulares, em todo o país, por seu
lado, também, decidiram livremente a sua inclusão.
Essa inclusão crescente não foi determinada por lei federal ou por norma nacional,
mas, sim, pelos próprios sistemas estaduais de ensino para suas redes públicas escolares, seja
105
por iniciativa própria, seja por força de legislação estadual, em todos os casos como resultado
de uma persistente mobilização de amplos setores ligados à educação, que defendem a
Sociologia e a Filosofia no contexto dos esforços de qualificação do Ensino Médio no Brasil.
Esses avanços, ocorridos na maioria dos Estados, acabaram por criar uma situação
desigual no acesso aos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia. Nos Estados que ainda
não incluíram o ensino da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio, há toda
uma população jovem posta à margem do acesso aos seus conhecimentos. Essa desigualdade
ocorre, igualmente, na rede particular de ensino, na qual, malgrado a iniciativa de inclusão por
uma parte das escolas, muitas outras não o fizeram.
Essa reflexão impõe a manifestação deste Conselho, propiciadora de uma equalização,
visando à igualdade de direitos de acesso a esses conhecimentos no Ensino Médio do país.
Uma análise cuidadosa da legislação e das normas pertinentes à matéria permite reunir os
argumentos favoráveis à presença da Filosofia e da Sociologia no currículo do Ensino Médio,
inclusive na forma de disciplinas, nesse caso sempre e quando os sistemas de ensino
estruturarem os currículos com o formato disciplinar.
Já em maio de 1997, poucos meses após a promulgação da LDB, esta Câmara de
Educação Básica cuidava indiretamente da questão, pelo Parecer CNE/CEB nº 5/97, que
tratou de ―Proposta de Regulamentação da Lei 9.394/96‖. No item 3.1, referente às
Disposições Gerais sobre a Educação Básica, indicava que:
―A lei trata de uma base comum nacional na composição dos
currículos do ensino fundamental e do ensino médio. Caberá à
Câmara deEducação Básica do Conselho Nacional de Educação
“deliberar sobrediretrizes curriculares”, a partir de propostas
oferecidas pelo Ministério da Educação e do Desporto, nelas
definidas, é claro, essa base comum naciona,l
por sua vez, a ser complementada com uma parte diversificada, capaz
de atender as condições culturais, sociais e econômicas de natureza
regional.
Essa diversificação haverá de ser feita pelos órgãos normativos dos
sistemas e, principalmente, pelas próprias instituições de ensino, à luz
do interesse dademanda em cada uma (art. 26). Além desse
complemento curricular (parte diversificada), o legislador impôs (art.
27), tanto nas finalidades como sob a forma de diretrizes, objetivos
que não se enquadram como componentes curriculares
propriamente ditos, visto que abrangem a base comum nacional e a
diversificação, ou seja, não de natureza ético/social. Dizem respeito a
valores fundamentais ao interesse social, direitos e deveres dos
cidadãos, envolvendo respeito ao bem comum e à ordem democrática,
como fundamentos da sociedade. Abrangem formação de atitudes,
preparação para o trabalho, para a cidadania e para a ética nas
relações humanas.
106
Note-se
Sobre o assunto, estudos estão em andamento neste Colegiado
visando à definição da base comum nacional e da especificação dos
conteúdos definidos em lei, genericamente, como “o estudo da língua
portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e
natural e da realidade social
e política, especialmente do Brasil”. Além do ensino da arte como
“componente curricular obrigatório nos diversos níveis da educação
básica, de forma a promover o desenvolvimento cultural dos alunos”.
A tais componentes curriculares, somam-se a “educação física,
ajustando-se às faixas etárias e às condições da população escolar,
sendo facultativa nos cursos noturnos” e o ensino de pelo menos uma
língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da
comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição.‖ (gg.
nn.)
que a diversidade de termos correlatos utilizados pela LDB
(componente,conteúdo, conhecimento, disciplina, estudo, matéria, ensino) foi unificada, nesse
Parecer, que adotou o termo ―componente curricular‖. Com efeito, na Seção I – Das
Disposições Gerais, e na Seção IV – Do Ensino Médio, que aqui interessa mais de perto,
verificamos equivalente ocorrência desses termos, com sentido correlato. O termo
―componente curricular‖, com este sentido abrangente, aliás, é utilizado na própria LDB,
como, por exemplo, no seu art. 24, inciso IV:
“IV – poderão organizar-se classes ou turmas, com alunos de séries
distintas, com níveis equivalentes de adiantamento na matéria, para o
ensino de línguas estrangeiras, artes, ou outros componentes
curriculares;” (g.n.)
De todo modo, cabe assinalar que o Parecer CNE/CEB nº 5/97, no item 3.4, referente
ao Ensino Médio, já profetizava que:
“Muito provavelmente, se pode antecipar a dúvida que será levantada
nos sistemas de ensino e nas instituições que os integram, quanto à
forma aser adotada, visando ao domínio dos conhecimentos de
Filosofia e Sociologia”.
Verifica-se, preliminarmente, que não há relação direta entre obrigatoriedade e
formato ou modalidade do componente curricular (seja chamado de componente, conteúdo,
conhecimento, disciplina, estudo, matéria ou ensino). Assim, o art. 26 da LDB, ao tratar dos
currículos do Ensino Fundamental e Médio, em seus parágrafos, não determina que forma de
organização os respectivos estudo, conhecimento ou ensino deverão ter, ao comporem a base
nacional comum e a parte diversificada. Todos os componentes referidos são obrigatórios,
mas, sem determinação de forma ou modalidade. Mais diretamente é colocada essa
dissociação no art. 26-A, § 2º, relativo ao ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira, o
107
qual é obrigatório, porém, seus conteúdos ―serão ministrados no âmbito de todo o currículo
escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras‖.
O Parecer CNE/CEB nº 16/2001, referente à ―consulta quanto à obrigatoriedade da
Educação Física como componente curricular da Educação Básica e sobre a grade
curricular do curso de Educação Física da rede pública de ensino‖, tratou dessa questão:
―Portanto, o exame da LDB e do Parecer CNE/CEB nº 5/97, que a
esclarece, não permite concluir que os componentes curriculares
devam configurar disciplinas de mesmo nome. Antes disso, deverão
fazer parte da Proposta Pedagógica da Escola, que detalhará a
modalidade na qual serão abordados ao longo do trabalho
pedagógico.
Para investigar mais profundamente a vinculação obrigatória ou não
entre um componente curricular obrigatório e uma disciplina escolar
específica, caberia uma analogia entre a Educação Física e a
Educação Ambiental. A Lei 9.795/99 estabelece a Educação
Ambiental como componente essencial e permanente da educação
nacional, devendo estar presente, de forma articulada, em todos os
níveis e modalidades do processo educativo. Não resta dúvida que se
trate de componente curricular obrigatório na escola básica
inclusive. No entanto, em seu artigo 10, afirma:
„Art 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática
educativa integrada, contínua e permanente em todos os níveis e
modalidades do ensino formal.
§ 1o. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina
específica no currículo de ensino.‟
Note-se, pois, que a mesma lei que determina a inclusão de um
componente curricular recomenda que ele não constitua disciplina
específica. A legislação em vigor tem outras evidências da
desvinculação direta e automática entre componentes curriculares e
disciplinas específicas.‟
(...)
Conclui-se, portanto, que não existe vinculação direta entre
componente curricular, mesmo obrigatório e disciplina específica no
currículo de ensino.‖
(...)
Examinemos a situação do Ensino Médio. As Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio (Res. CNE/CEB nº 3/98) dispõem da
mesma forma em relação à constituição de Proposta Pedagógica da
Escola contemplando três áreas de conhecimento, que não
correspondem biunivocamente a disciplinas:
“Art. 10 A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio será
organizada em áreas de conhecimento, a saber:
I - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, (...)
II - Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias, (...)
III - Ciências Humanas e suas Tecnologias, (...)
§ 1º A base nacional comum dos currículos do Ensino Médio deverá
contemplar as três áreas do conhecimento, com tratamento
108
metodológico que evidencie a interdisciplinaridade e a
contextualização.
§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar
tratamento
interdisciplinar e contextualizado para:
a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares
obrigatórios;
b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício
da cidadania.”
Deve-se notar, novamente, que nenhuma das áreas de conhecimento
configura disciplina escolar tradicional.‖(gg.nn.)
O Parecer CNE/CEB nº 22/2003, que tratou de ―questionamento sobre currículos da
Educação Básica das escolas públicas e particulares‖, além de explicitar que ―não há, dentro
da legislação pertinente, obrigatoriedade de oferecer Filosofia e Sociologia como
disciplinas‖, também, acrescentou que o artigo 12 da Lei nº 9.394/96 dispõe que:
“Os estabelecimentos de ensino, respeitadas as normas comuns e as
do seu sistema de ensino, terão a incumbência de: I – elaborar sua
proposta pedagógica”; que confere aos estabelecimentos de ensino a
competência de construírem os seus projetos pedagógicos atendendo
a toda a legislação existente e dando-lhes o tratamento curricular
que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho, como por
exemplo, considerar alguns assuntos como temas transversais.
Ademais, a atual LDB não contempla mais a existência de
currículos mínimos com disciplinas estanques, como muito bem
explicitam os pareceres e resoluções desta Câmara de Educação
Básica, que definiram Diretrizes Curriculares Nacionais para os
vários níveis e modalidades da Educação Básica.” (gg.nn.)
A Filosofia e a Sociologia são explicitamente mencionadas, apenas, no art. 36, § 1º,
inciso III, da LDB, o qual determina que o currículo do Ensino Médio observará o disposto na
Seção I do Capítulo II (onde está o art. 26) e as seguintes diretrizes:
“Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão
organizados de tal forma que ao final do Ensino Médio o educando
demonstre:
I – (...);
II – (...);
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia
necessários ao exercício da cidadania.”
Quanto aos lembrados Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio –
PCNEM, deve-se esclarecer, primeiramente, que são subsídios valiosos, porém não são
normas, nem são de aplicação obrigatória, como o são as DCNEM. No que se refere à questão
em tela, se os PCNEM contemplam a Filosofia e a Sociologia, não deixam de ressaltar que:
109
―É importante compreender que a Base Nacional Comum não pode
constituir uma camisa-de-força que tolha a capacidade dos sistemas,
dos estabelecimentos de ensino e do educando de usufruírem da
flexibilidade que a lei não só permite, como estimula. Essa
flexibilidade deve ser assegurada, tanto na organização dos
conteúdos mencionados em lei, quanto na metodologia a ser
desenvolvida no processo de ensino-aprendizagem e na avaliação.‘
(gg.nn.)
(...)
‗O fato de estes Parâmetros Curriculares terem sido organizados em
cada uma das áreas por disciplinas potenciais não significa que
estas são obrigatórias ou mesmo recomendadas. O que é obrigatório
pela LDB ou pela Resolução nº 03/98 são os conhecimentos que
estas disciplinas recortam e as 6 competências e habilidades a eles
referidos e mencionados nos citados documentos.‖ (gg.nn.)
A Secretaria de Educação Básica do MEC promoveu, em 2004, a elaboração do
documento ―Orientações Curriculares do Ensino Médio‖, destinado a subsidiar as discussões
de seminários regionais, realizados com o fito de consolidar a organização curricular do
Ensino Médio (in site do MEC: www.mec.gov.br). No título referente à Filosofia, ao tratar
das relações entre a LDB, as DCNEM e os PCNEM, encontra-se a consideração de que:
“Ao contrário da legislação, não só os PCN dão tratamento
disciplinar à Filosofia como, de modo singular, defendem sua
obrigatoriedade. É evidente que, não podendo tornar obrigatório o
que a LDB apenas faculta, os PCN tomam a defesa da área e
recomendam a presença obrigatória de um profissional de Filosofia
no Ensino Médio” (g.n.)
Em resumo, há uma diretriz de que ao final do Ensino Médio, o educando demonstre,
entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao
exercício da cidadania.
Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum
componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas
têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente
proposta curricular, ―sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim o
recomendar‖, dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho.
O fato é que poucas escolas adotam concepções mais flexíveis e inovadoras, que a
LDB permite e as DCNEM incentivam, com a autonomia que dão às instituições educacionais
e aos sistemas de ensino, concepções essas que conduzam à construção de currícul os de
arquitetura diversa da estruturada habitualmente por disciplinas (por exemplo, por unidades
de estudos, atividades e projetos interdisciplinares).
110
A maioria das escolas mantém a concepção curricular mais comum, estruturada em
disciplinas, entendidas estas, na prática, como recortes de áreas de conhecimento,
sistematizados e distribuídos em aulas ao longo de um ou mais períodos escolares, com cargas
horárias estabelecidas em calendário, sob a responsabilidade de docentes específicos e
devidamente habilitados para cada uma delas.
Para essas escolas, as dúvidas quanto à capacidade de efetivação do prescrito na LDB
e nas DCNEM são maiores, pois, se os professores estão comprometidos com o
desenvolvimento do programa de suas disciplinas, dificilmente terão condições de dar
tratamento interdisciplinar e contextualizado aos necessários conhecimentos de Filosofia e
Sociologia, ou mesmo outros, tão requeridos para o exercício da cidadania e para atender ao
dever de ―vincular-se ao mundo do trabalho e à prática social‖, além das legalmente
obrigatórias História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental, esta assim definida
pela Lei nº 9.795/99.
Essas dúvidas não desmerecem os professores, pois decorrem, muito, de outros
fatores, que vão, desde o tipo de formação nas licenciaturas, até o generalizado regime
―horista‖ de trabalho, passando pelo processo de gestão da escola, por sua proposta
pedagógica e, sobretudo, por seu zelo em executá-la tal como concebida.
Voltando à questão objeto deste Parecer, constata-se e reafirma-se que é obrigatório
atender à diretriz de que os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação sejam
organizados de tal forma que, ao final do Ensino Médio, o educando demonstre, entre
outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício
da cidadania.
Coloca-se, então, a questão: como garantir a eficácia dessa diretriz, se não forem
efetivados processos pertinentes de ensino e aprendizagem que propiciem esses
conhecimentos?
As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio - DCNEM deram
interpretação que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no
tratamento a ser dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como
equiparadas à Educação Física e à Arte, estas, sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como
componentes curriculares dessa etapa da Educação Básica.
A propósito dos componentes Educação Física e Arte, contemplados pelo art. 26, sem
ressalva (como a do art. 26-A, § 2º, o faz para História e Cultura Afro-Brasileira), não podem
deixar de ter o mesmo tratamento que os demais componentes indicados no mesmo artigo.
111
Assim, no caso de estruturação curricular por disciplinas, Educação Física e Arte
devem ser incluídas e tratadas como tais. História e Cultura Afro-Brasileira (art. 26-A da
LDB) e Educação Ambiental (Lei nº 9.795/99) serão sempre tratadas de forma transversal,
permeando, pertinentemente, os demais componentes, pois, assim, explicitamente,
determinam as respectivas disposições legais.
No caso de organização curricular baseada, por exemplo, em unidades de estudos,
atividades e projetos interdisciplinares e contextualizados, e não por disciplinas segmentadas,
é desnecessário dar-lhes um caráter de exceção, como é feito no art. 10, § 2º, da Resolução
CNE/CEB nº 3/98, pois, aí, o tratamento ―interdisciplinar e contextualizado‖ é a regra para
todos os componentes.
Pode-se, nessa oportunidade, avançar mais, indicando-se, como diretriz, a obrigação
das escolas garantirem a completude e a coerência de seus projetos pedagógicos, dando o
mesmo valor e tratamento aos componentes do currículo que são obrigatórios, seja esse
tratamento por disciplinas, seja por formas flexíveis, como por unidades de estudos,
atividades ou projetos interdisciplinares e contextualizados, por desenvolvimento transversal
de temas ou outras formas diversas de organização, como a LDB possibilita e as Diretrizes
Curriculares Nacionais orientam normativamente.
É cabível e oportuno, ainda, reforçar, como diretriz, que a proposta pedagógica de toda
e qualquer escola do país deve assegurar, efetivamente, que, ao final do Ensino Médio, o
educando demonstre, entre outros, o domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia
necessários ao exercício da cidadania.
Se a escola tem autonomia para desenvolver na própria concepção pedagógica, o que,
aliás, é garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a
obrigação de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização
e na sua execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou
em parte, com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem
ressalva legal, sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da
autonomia que lhe dá a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá
dar tratamento a todos os componentes obrigatórios.
Portanto, observando a coerência exigida pela base legal e normativa vigente,
os conhecimentos relativos à Filosofia e à Sociologia, da mesma forma que os componentes
Arte e Educação Física, devem estar presentes nos currículos do Ensino Médio, inclusive na
forma de disciplinas específicas, sempre e quando a escola, valendo-se daquilo que a Lei lhe
faculta, adotar no todo ou em parte, a organização curricular por disciplinas.
112
Para garantia do cumprimento da diretriz da LDB, referente à Filosofia e à Sociologia,
não há dúvida de que, qualquer que seja o tratamento dado a esses componentes, as escolas
devem oferecer condições reais para sua efetivação, com professores habilitados em
licenciaturas que concedam direito de docência desses componentes, além de outras
condições, como, notadamente, acervo pertinente nas suas bibliotecas.
Para finalizar, não se pode deixar de considerar a necessidade de revisão e atualização
das Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, visando à sua revitalização. Já são
passados oito anos de sua edição, período no qual inovações foram propostas, experiências
foram desenvolvidas, estudos e pesquisas foram realizados. Alterações legislativas foram
efetivadas, sendo que a LDB já sofreu várias emendas, algumas delas referentes, justamente,
ao Ensino Médio. Outras leis foram promulgadas, que interferem nesse ensino, como as Leis
Federais nº 10.172/2001 (Plano Nacional de Educação), nº 9.795/99 (Política Nacional de
Educação Ambiental), e nº 11.161/2005 (oferta do ensino da língua espanhola).
De qualquer modo, norma da magnitude das Diretrizes que, por vez primeira foi
elaborada e editada, tem, inevitável e desejavelmente, um caráter de orientação inicial de
trabalho. Já é tempo de avaliar seus resultados, propriedades e inadequações e, sobretudo, de
incorporar dados das experiências e de retornar ao debate com a comunidade educacional e
com a sociedade civil, contribuindo para que o Ensino Médio, etapa final da Educação Básica,
se corporifique, verdadeiramente, como um projeto da Nação.
II – VOTO DOS RELATORES
Diante do exposto, e nos termos deste parecer, votamos para que se altere a redação do
artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 que instituiu as Diretrizes Curriculares Nacionais
do Ensino Médio, especificamente:
a) que seja alterado o § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, que deverá ter a
seguinte redação:
§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização
curricular flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar
tratamento interdisciplinar e contextualizado, visando ao domínio de
conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da
cidadania.
b) que sejam incluídos os § 3º e 4º no artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, com a
seguinte redação:
§ 3º - No caso de escolas que adotarem organização curricular estruturada
por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.
113
§ 4º - Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação
Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal,
permeando, pertinentemente, os demais componentes do currículo.
c) que seja incluída orientação no sentido de que os currículos dos cursos de Ensino Médio
deverão ser adequados a essas novas disposições, sendo que, no caso do § 3º, acrescentado ao
artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, devem os sistemas de ensino, no prazo de um ano
a contar da data de publicação da Resolução decorrente deste Parecer, fixar as medidas
necessárias para a referida inclusão de disciplinas de Sociologia e de Filosofia. Propõe-se, em
conseqüência, a aprovação do Projeto de Resolução em anexo.
Brasília (DF), 7 de julho de 2006.
Conselheiro Cesar Callegari – Relator
Conselheiro Murílio de Avellar Hingel – Relator
Conselheiro Adeum Hilário Sauer – Relator
III – DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica aprova por unanimidade o voto dos Relatores.
Sala das Sessões, em7 de julho de 2006.
Conselheira Clélia Brandão Alvarenga Craveiro – Presidente
Conselheira Maria Beatriz Luce – Vice-Presidente
114
ANEXO 6
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
RESOLUÇÃO Nº 4, DE 16 DE AGOSTO DE 2006.
Altera o artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98,que institui
as Diretrizes curriculares Nacionais para o Ensino Médio.
A Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no
uso de suas atribuições legais, e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do
artigo 9º da Lei nº 4.024/1961, com a redação dada pela Lei nº 9.131/1995, com fundamento
no Parecer CNE/CEB nº 38/2006, homologado por despacho do Senhor Ministro de Estado da
Educação, publicado no DOU de 14/8/2006, resolve:
Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98 passa a ter a seguinte
redação:
§ 2º As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular
flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e
contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários
ao exercício da cidadania.
Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB nº 3/98, os § 3º e 4º,
com a seguinte redação:
§ 3º No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular
estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.
§ 4º Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão,
em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente,os demais
componentes do currículo.
Art. 3º Os currículos dos cursos de Ensino Médio deverão ser adequados a estas
disposições.
Parágrafo único. No caso do § 3º, acrescentado ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB
nº 3/98, os sistemas de ensino deverão, no prazo de um ano a contar da publicação desta
Resolução, fixar as medidas necessárias para a inclusão das disciplinas de Filosofia e
Sociologia no currículo das escolas de Ensino Médio.
Art. 4º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
CLÉLIA BRANDÃO ALVARENGA CRAVEIRO
Presidente da Câmara de Educação Básica
115
ANEXO 7
Indicação CEE Nº: 62/2006 - CEB - Aprovada em 20-9-2006
Conselho Pleno
1. Relatório
1.1 Considerando que a Resolução CNE n° 04/06, do Conselho Nacional de Educação
sobre a inclusão obrigatória de Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino Médio,
publicada no Diário Oficial da União em 21-08-2006, estabelece o prazo de um ano para que
os sistemas de ensino tomem as medidas necessárias para a inclusão das referidas disciplinas
no currículo das escolas;
1.2 Considerando que existem dúvidas relevantes quanto à legalidade da Resolução
(c.f. - Art. 36 § 1° inciso III da Lei n° 9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia
dos sistemas de ensino e das unidades escolares, além do tratamento não homogêneo dado às
diversas formas de organização curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de
ensino;
1.3 Considerando que a Resolução CNE n.º 04/06 tem implicações não desprezíveis
quanto aos recursos humanos e financeiros necessários a implementação com qualidade;
1.4 Considerando que pelas razões acima apresentadas serão necessários estudos
aprofundados pelas Câmaras e Comissões desse Conselho, além de consultas à Secretaria de
Estado da Educação;
O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não
obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino
Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela
Secretária da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da
rede privada de ensino.
2.Conclusão
Nos termos acima, propomos à apreciação do Plenário a presente Proposta de
Indicação.
São Paulo, 13 de setembro de 2006.
Cons. Mauro de Salles Aguiar
Relator
3. Decisão da Câmara
A Câmara de Educação Básica adota como sua Indicação, o Voto do Relator.
Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana
Maria de Oliveira Mantovani, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila Rentroia
Iannone, Maria Alice Setubal, Mauro de Salles Aguiar e Suzana Guimarães Trípoli.
Sala da Câmara de Educação Básica, em 13 de setembro de 2006.
a) Cons. Ana Luisa Restani
Vice-Presidente da CEB
Deliberação Plenária
O Conselho Estadual de Educação aprova, por unanimidade, a presente Indicação.
Sala ―Carlos Pasquale‖, em 20 de setembro de 2006.
Pedro Salomão José Kassab
Presidente
(D.O.E. de 28/09/2006)
116
ANEXO 8
PARECER CEE Nº 343/2007 - CEB - Aprovado em 04-7-2007
PROCESSO CEE Nº: 492/2006 – Reautuado em 30-10-06
INTERESSADO: Conselho Estadual de Educação
ASSUNTO: Inclusão obrigatória das disciplinas Filosofia e Sociologia no currículo do Ensino
Médio
RELATORES: Conselheiros Ana Luisa Restani e Mauro de Salles Aguiar
CONSELHO PLENO
1. RELATÓRIO
A Indicação CEE nº 62/2006 apresentou em seus considerandos que ―existem dúvidas
relevantes quanto à legalidade da Resolução CNE 04/06 (c.f.- Art.36 § 1º inciso III da Lei nº
9394/96 - LDB), na medida que interfere na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades
escolares, além do tratamento não homogêneo dado às diversas formas de organização
curricular adotado pelas diferentes escolas e sistemas de ensino‖.
A matéria foi submetida à CLN deste Colegiado que assim se pronunciou:
―A Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação editou, recentemente,
resolução por meio da qual alterou as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio.
Tais diretrizes foram inicialmente fixadas, pela Resolução CNE/CEB n.º 03, de 26/06/1998. A
alteração sobreveio por meio da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 16/08/2006 (publicada no
Diário Oficial da União em 21/08/2006), nos seguintes termos:
―Art. 1º. - O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 passa a ter a seguinte
redação:
§ 2º.- As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular
flexível, não estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e
contextualizado, visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários
ao exercício da cidadania.
Art. 2º.- São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 03/98 os §§ 3º e
4º, com a seguinte redação:
§ 3º.- No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular
estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia (gn).
§ 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão,
em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais
componentes do currículo‖.
O efeito prático colimado pelos dispositivos transcritos foi o de tornar obrigatória a
inclusão das disciplinas de Filosofia e Sociologia em todas as escolas brasileiras de Ensino
Médio — públicas ou privadas — que adotem estruturação curricular por disciplinas
específicas. Ainda de acordo com a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, os Estados teriam
prazo de 01 ano para, por intermédio dos respectivos Conselhos Estaduais de Educação,
decidirem acerca da forma de implementação, no âmbito de seus sistemas de ensino.
No Estado de São Paulo, o Conselho Estadual de Educação, em Sessão Plenária,
realizada em 20-09-2006, decidiu, por unanimidade, aprovar a Indicação n.º 62/2006,
publicada no Diário Oficial do Estado de São Paulo em 28-09-2006, nos seguintes termos:
―O Conselho Estadual de Educação do Estado de São Paulo pronuncia-se pela não
obrigatoriedade da introdução de Filosofia e Sociologia no currículo das Escolas de Ensino
Médio, no âmbito de sua jurisdição, no ano de 2007, respeitado o já disciplinado pela
Secretaria da Educação para as escolas da rede pública estadual, bem como, pelas escolas da
117
rede privada de ensino‖.
A ORGANIZAÇÃO DO SISTEMA NACIONAL DE EDUCAÇÃO
A LDB, ao organizar a educação no país, o fez com base em algumas linhas mestras.
Duas sobressaem no texto legal: a primeira é a de que compete à União a ―...coordenação da
política nacional de educação, articulando os diferentes níveis e sistemas e exercendo função
normativa, redistributiva e supletiva em relação às demais instâncias educacionais‖ (é o que
estabelece o seu art. 8º, § 1º); a segunda é a de que, sem prejuízo desse papel coordenador da
União, os sistemas de ensino têm autonomia ou ―liberdade de organização‖ (conforme dispõe
o seu art. 8º, § 2º). Vejam-se as disposições na íntegra:
―Art. 8º. - A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão, em regime de
colaboração, os respectivos sistemas de ensino.
§ 1º.- Caberá à União a coordenação da política nacional de educação, articulando os
diferentes níveis e sistemas e exercendo função normativa, redistributiva e supletiva em
relação às demais instâncias educacionais.
§ 2º - Os sistemas de ensino terão liberdade de organização nos termos desta Lei‖.
A LDB, assim, atribuiu um papel coordenador ou articulador à União, a ser exercido,
inclusive, por meio do manejo de competência de normatização do ensino, com efeitos
vinculantes sobre todas as esferas da federação (não somente a federal, mas também as
estaduais, as municipais e a distrital); paralelamente, ela assegurou autonomia, ou liberdade
de organização, a esses sistemas descentralizados. Em apertada síntese, pode-se dizer que a
lei, a um só tempo, encerrou nos seus dispositivos os vetores da coordenação federal e da
autonomia.
No que tange à coordenação, a LDB previu, além da linha mestra ditada pelo seu art.
8º, § 1º (no sentido de que esse papel coordenador seria da União), mecanismos por meio dos
quais tal atividade de coordenação poderia ser, na prática, implementada. Um deles é o
previsto no art. 9º, inciso IV, segundo o qual:
―Art. 9º. - A União incumbir-se-á de:
IV – estabelecer, em colaboração com os Estados, o Distrito Federal e os Municípios,
competências e diretrizes para a educação infantil, o ensino fundamental e o ensino médio,
que nortearão os currículos e seus conteúdos mínimos, de modo a assegurar formação básica
comum.‖ (ggnn).
É justamente este mecanismo coordenador, ou uniformizador, que merece a atenção
aqui. Note-se que vem dele a atribuição, feita à União (ainda que em colaboração com os
outros entes da federação), de fixar as chamadas diretrizes curriculares nacionais. O papel de
aglutinação ou uniformização da União é exercido, em grande medida, por essas diretrizes, às
quais todos os sistemas de ensino, em todas as esferas da federação, estão vinculados.
Ademais, vem deste dispositivo da LDB a atribuição, igualmente feita à União, de
prever, para além das diretrizes, as competências ou, preferindo-se, habilidades a serem
desenvolvidas pelos educandos nos diversos sistemas de ensino, em todas as esferas da
federação. Ao definir essas competências ou habilidades, a União também exerce o seu papel
uniformizador.
Toda essa fixação de diretrizes e habilidades é feita, como já apontado, por um órgão
federal, o CNE, que nesta matéria se submete à competência homologadora do Ministro de
Estado da Educação. Como se sabe, o CNE, órgão encartado na estrutura do Ministério da
Educação, possui atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento, funcionando, em
essência, como um pólo oficial de participação da sociedade no aperfeiçoamento da educação
nacional. De acordo com a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995)
118
[1] , ele é dividido internamente em duas Câmaras: a de Educação Básica e a de Educação
Superior, sendo cada qual responsável por um conjunto de atribuições. No que interessa aqui
salientar, é à sua Câmara de Educação Básica que compete emanar as diretrizes curriculares
nacionais para o Ensino Médio, objeto de toda a celeuma enfocada na presente manifestação.
Deveras, estatui a Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º 9.131/1995), no seu
art. 9º, § 1º, alínea c, que à Câmara compete ―deliberar sobre as diretrizes curriculares
propostas pelo Ministério da Educação e do Desporto‖.
Visto assim, na sua face normativa, o papel coordenador que a legislação
inequivocamente conferiu à União, munindo-a de competências para a fixação de diretrizes e
habilidades vinculantes em todo o território nacional, todas emanadas do CNE (e, no que aqui
é mais importante, da sua Câmara de Educação Básica), importa dar o passo seguinte no
raciocínio, que é compreender adequadamente o sentido e alcance desse papel coordenador.
Seu sentido é simples: trata-se de possibilitar aos educandos que transitem de um
sistema de ensino para outro, caso necessitem, sem maiores dificuldades de adaptação, vez
que todos esses sistemas estarão subordinados ao mesmo conjunto mínimo de diretrizes e
bases predeterminado por um órgão central. De fato, essas diretrizes e competências
uniformemente fixadas pela União possibilitam, em última análise, o que a lei chamou de
formação básica comum, isto é, uma formação mínima, de base, aos educandos de qualquer
dos sistemas de ensino existentes no país.
Por outro lado, entra em cena aqui o já citado vetor da autonomia dos sistemas de
ensino, que a lei igualmente prestigiou. Se a União tem um papel coordenador e, de certo
modo, uniformizador, é certo, por outro lado, que não é da sua competência definir,
propriamente, os currículos de cada sistema de ensino, tampouco os respectivos conteúdos
mínimos. A norma da LDB foi claríssima a este respeito: disse ela, no precitado inciso IV do
art. 9º, que à União compete estabelecer competências e diretrizes que ―...nortearão os
currículos e seus conteúdos mínimos...‖. A União, pois, ditará os nortes, os rumos a seguir,
mas quem haverá de fixar, efetivamente, quais são esses currículos, e quais são os seus
conteúdos mínimos, serão os próprios sistemas de ensino, no âmbito das correspondentes
esferas da federação, no exercício da autonomia que, também, lhes foi expressamente
assegurada pela própria lei (entra aí a força da expressão ―liberdade de organização‖
assegurada pelo precitado § 2º do art. 8º, que, como dito, constitui linha mestra a informar
todo o espírito da lei).
Dado que a lei prestigiou esta autonomia dos sistemas de ensino, há que se interpretar
com certo cuidado a atribuição conferida à União para fixar as diretrizes curriculares e as
competências ou habilidades a serem trabalhadas em todo o sistema nacional de educação.
Incumbe-lhe dar os nortes, é verdade, mas não mais do que isso; o conteúdo em si dos
currículos foge à sua alçada. A fixação das diretrizes e das habilidades feita pela União —
notadamente por intermédio do CNE —, cumpre o importante papel de assegurar o mínimo
de harmonia, o mínimo de identidade entre os currículos e os conteúdos essenciais de cada um
dos diversos sistemas de ensino, de sorte a viabilizar que todos propiciem aos educandos uma
formação básica comum.
É à luz desses parâmetros, pois, que se faz necessário interpretar a Resolução
CNE/CEB n.º 04/2006 e, em especial, os seus artigos 1º e 2º, que impuseram a adoção de
disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia.
Ao fazer essa imposição, o órgão federal avançou para além dos limites de sua
atribuição legal e, mais do que isso — e aqui é preciso reconhecê-lo claramente — para além
das fronteiras que a própria Constituição Federal estabeleceu ao tratar do serviço de Educação
no país.
Pelo prisma constitucional, é preciso ter em vista que o art. 211, caput da Constituição
Federal dispõe que ―a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios organizarão em
119
regime de colaboração seus sistemas de ensino‖. Fica claro, pois, que cada ente da Federação
detém autonomia para organizar seu sistema de ensino, ainda que em necessário — ou
imprescindível — regime de colaboração. Em outras palavras, há o dever inequívoco de
colaboração, mas fica preservada a autonomia de cada ente federado para organizar o seu
sistema de ensino. Tal autonomia ainda é matizada por outras determinações constitucionais,
como a constante do § 2º do mesmo art. 211, segundo o qual ―os Municípios atuarão
prioritariamente no ensino fundamental e na educação infantil‖, ou a do § 3º subseqüente,
segundo o qual ―os Estados e o Distrito Federal atuarão prioritariamente no ensino
fundamental e médio‖, ou, ainda, a do § 4º, segundo o qual, ―na organização de seus sistemas
de ensino, os Estados e os Municípios definirão formas de colaboração, de modo a assegurar a
universalização do ensino obrigatório‖.
Como visto, há balizas legais a serem observadas para o estabelecimento de diretrizes,
com destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino,
aos quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos
conteúdos mínimos.
São todas determinações constitucionais que condicionam o exercício da autonomia,
mas nenhuma vai além disso, é dizer, nenhuma delas implica seja solapada a autonomia
claramente assegurada no caput. Note-se que formas de colaboração, tendo em vista o
objetivo comum da universalização do ensino obrigatório, devem ser definidas, mas cada
sistema de ensino mantém a sua identidade própria, estruturando sua grade curricular
autonomamente.
A isso se acresce o que dispõe o art. 209 da Constituição, segundo o qual ―o ensino é
livre à iniciativa privada‖. Daí deriva o princípio da autonomia qualificada dos
estabelecimentos privados, que têm liberdade para sua organização pedagógica. Essa
liberdade é condicionada apenas pelo dever de respeito às ―normas gerais da educação
nacional‖. Portanto, o que pode limitar a liberdade pedagógica desses estabelecimentos é
apenas a norma efetivamente geral, editada para fixar ―diretrizes e bases‖ para a educação
(Constituição Federal, art. 22, XXIV). A norma federal que pretendesse substituir-se ao juízo
da comunidade educacional envolvida, quanto ao melhor modo de organizar concretamente o
currículo do estabelecimento, iria muito além do campo das diretrizes, extrapolando o papel
que a Constituição lhe reservou.
Bem se vê, por tudo isso, que, quando resolução emanada do CNE vem e diz que
Filosofia e Sociologia devem ser incorporadas à grade curricular de determinados sistemas de
ensino, fere de morte a autonomia desses sistemas, a qual decorre não apenas da lei, mas da
própria Constituição da República.
Pelo prisma legislativo, a violação dos limites da competência atribuída ao CNE já foi
apontada e pode, uma vez mais, ser resumida: se é verdade, por um lado, que o CNE é órgão
que detém, efetivamente, atribuições normativas, deliberativas e de assessoramento ao
Ministro de Estado da Educação, inclusive para a edição das diretrizes curriculares nacionais
e de certas habilidades pretendidas dos educandos, não é menos verdadeira a circunstância de
que ele não pode fixar, por meio dessas diretrizes e determinações, absolutamente o que bem
entender. Como visto, há balizas legais a serem observadas quando desta fixação, com
destaque para a exigência fundamental de respeito à autonomia dos sistemas de ensino, aos
quais compete a definição dos seus próprios currículos e, inclusive, dos respectivos conteúdos
mínimos.
Note-se que sequer a fixação de conteúdos mínimos a lei concentrou nas mãos da
União, pois o que fez foi dar-lhe a competência para fixar os nortes, a partir dos quais, aí sim,
os diversos sistemas de ensino, nas correspondentes esferas da federação, e os diversos
estabelecimentos, oficiais ou privados, teriam que estruturar seus currículos.
Diante das razões até aqui apresentadas, já se poderia concluir, peremptoriamente, que
120
se afiguram inconstitucionais e ilegais os arts. 1º e 2º da Resolução CNE/CEB n.º 04, de 1608-2006, naquilo em que veiculam a pretensão de obrigar todos os sistemas educacionais
estaduais e municipais de Ensino Médio, com organização curricular estruturada por
disciplinas, a incluírem, em suas respectivas grades, disciplinas específicas de Filosofia e
Sociologia.
Mas cabe, por amor ao debate, dedicar atenção às razões encontráveis no Parecer
CNE/CEB n.º 38/2006, o qual foi, efetivamente, o ato de natureza indicativa que fundamentou
a edição da Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Nele se invoca, por exemplo, como
fundamento da obrigatoriedade imposta, a já citada competência da Câmara de Educação
Básica do CNE para emanar as diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, nos
termos do art. 9º, § 1º, alínea c da Lei n.º 4.024/1961 (com a redação dada pela Lei n.º
9.131/1995). Porém, como já salientado aqui, o dispositivo não pode ser interpretado como se
a tivesse autorizado a ditar a inclusão de disciplinas específicas nos currículos dos diversos
sistemas de ensino. Não foi este o seu objetivo e não é este o seu sentido, mas ele serve, tão
somente, para permitir ao CNE que estabeleça os nortes — com caráter vinculante, é verdade,
mas não mais do que nortes — para que os sistemas de ensino, aí sim, nas respectivas esferas
da federação, no exercício da liberdade de organização, que lhes é de direito, definam,
autonomamente, as próprias grades curriculares.
Outros argumentos constantes do Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 ligam-se ao art. 36 da
LDB. Para respondê-los cumpre, primeiramente, transcrever esse dispositivo legal:
―Art. 36 - O currículo do ensino médio observará o disposto na Seção I deste Capítulo e as
seguintes diretrizes:
I – destacará a educação tecnológica básica, a compreensão do significado da ciência, das
letras e das artes; o processo histórico de transformação da sociedade e da cultura; a língua
portuguesa como instrumento de comunicação, acesso ao conhecimento e exercício da
cidadania;
II – adotará metodologias de ensino e de avaliação que estimulem a iniciativa dos estudantes;
III – será incluída uma língua estrangeira moderna, como disciplina obrigatória, escolhida
pela comunidade escolar, e uma segunda, em caráter optativo, dentro das disponibilidades da
instituição.
§ 1º.- Os conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal
forma que ao final do ensino médio o educando demonstre:
I – domínio dos princípios científicos e tecnológicos que presidem a produção moderna;
II – conhecimento das formas contemporâneas de linguagem;
III – domínio dos conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da
cidadania.‖ (ggnn).
Observa-se, a partir dos trechos grifados, que o dispositivo estampa, de maneira
bastante clara, a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos ministrados, as
metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas sejam capazes de
fazer com que, ao final do ensino médio, o aluno demonstre domínio dos conhecimentos de
Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania. Nessa norma, contudo, não se
vislumbra qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em
disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz
notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, domínio de
princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de
linguagem.
Assim, não é possível sacar, do teor do art. 36, § 1º, III da LDB, a conclusão de que
Filosofia e Sociologia devem ser, obrigatoriamente, aprendidas por meio do oferecimento de
aulas específicas. O espírito que norteia a LDB é, precisamente, o oposto: deve-se conferir aos
estabelecimentos de ensino a maior autonomia possível, para que, sempre tomando por base
121
as diretrizes da legislação, os mesmos possam elaborar suas propostas pedagógicas livres de
quaisquer amarras não previstas na lei.
É interessante notar, como o próprio Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 reconhece e
chancela, o entendimento aqui exposto. Confira-se:
―Quanto ao formato de disciplina, não há sua obrigatoriedade para nenhum
componente curricular, seja da base nacional comum, seja da parte diversificada. As escolas
têm autonomia quanto à sua concepção pedagógica e à formulação de sua correspondente
proposta curricular, ‗sempre que o interesse do processo de aprendizagem assim recomendar‘,
dando-lhe o formato que julgarem compatível com a sua proposta de trabalho.‖ [¹]
É igualmente interessante observar, contudo, que o excerto acima transcrito foi
utilizado no Parecer CNE/CEB n.º 38/2006 como ponto de partida para o desenvolvimento de
um raciocínio oposto. Deveras, argumenta-se no parecer que a tão propalada autonomia
concedida às escolas pela LDB teria redundado, na prática, em descumprimento da norma
atinente aos conhecimentos de Filosofia e Sociologia por parte dos estabelecimentos de
ensino, cuja grade curricular é estruturada por disciplinas. Para suprir essa deficiência, então,
impor-se-ia — sempre segundo o parecer — a obrigatoriedade de sua inclusão como
disciplinas específicas.
O argumento, de tão contraditório, não se sustenta. Ora, se a legislação contempla e
prestigia a autonomia dos sistemas de ensino para formular seus próprios modelos
pedagógicos e curriculares, como justificar, sem afrontar o disposto na lei, a decisão de impor
a todo um grupo de escolas de Ensino Médio, de maneira genérica, a obrigatoriedade de
inserção de determinadas disciplinas? Simplesmente não há justificativa, legalmente
embasada, capaz de responder a essa pergunta.
Note-se que o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao tentar demonstrar a suposta
obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ainda tenta
buscar fundamentação nas diretrizes curriculares nacionais do Ensino Médio já instituídas por
meio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Porém, cabe aqui apontar que a tentativa, de
antemão, já deveria ter sido percebida como infrutífera.
[1]Parecer CNE/CEB nº 38/2006.pág. 11- 12
Isto porque a resolução que instituiu as diretrizes curriculares para o Ensino Médio é
pródiga em exemplos que confirmam o entendimento de que deve ser respeitada, nos termos
da lei e da Constituição, a autonomia dos sistemas de ensino para a definição de suas grades
curriculares. É possível arrolar, nesse sentido, os artigos: 5º, III[2]; 6º[3]; 7º, IV[4]; 8º, III e
V[5]; dentre outros. Todos eles, como se pode facilmente perceber, remetem a um contexto de
aprendizado marcado pela autonomia das unidades escolares para desenvolverem, da maneira
que melhor lhes aprouver, seus próprios modelos pedagógicos.9¹³
Ocorre que, apesar de todo o exposto até agora, o Parecer CNE/CEB n.º 38/2006
chegou à conclusão diversa. Para obtê-la, baseou-se, primeiramente, em uma leitura
equivocada do art. 10, § 2º, da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998. Observe-se o seguinte
excerto do referido Parecer:
Parecer CNE/CEB n.º 38/2006
―As Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio – DCNEM deram interpretação
que adiantou, em parte, sua solução, pois considerou, na composição e no tratamento a ser
dado ao currículo do Ensino Médio, a Filosofia e a Sociologia como equiparadas à Educação
Física e à Arte, estas sim, contempladas pelo art. 26 da LDB como componentes curriculares
dessa etapa da Educação Básica.‖ [2]
O equívoco deriva do fato de que o dispositivo das diretrizes curriculares lá referido
— trata-se do art. 10, § 2º — simplesmente não promoveu tal equiparação. Confira-se o seu
122
teor:
Resolução CNE/CEB n.º 03/1998
―Art. 10. A base nacional comum dos currículos de ensino médio será organizada em áreas de
conhecimento, a saber:
(...)
§ 2º As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar tratamento interdisciplinar e
contextualizado para:
a) Educação Física e Arte, como componentes curriculares obrigatórios;
b) Conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖.
A redação é clara. Não se observa qualquer conexão lógica entre as matérias arroladas
na alínea ―a‖ (que cuida da Educação Física e da Arte) e na alínea ―b‖ (que dispõe sobre
conhecimentos de Filosofia e Sociologia). Educação Física e Arte são componentes
curriculares obrigatórios; conhecimentos de Filosofia e Sociologia, por outro lado, devem ser
agregados, com tratamento interdisciplinar e contextualizado, na medida da necessidade ao
exercício da cidadania. Querer equiparar o conteúdo das duas alíneas somente pode ser
entendido como realização de exegese torta, direcionada, comprometida com uma tese que
extrapola os limites legais.
O mais paradoxal é que, embora esse dispositivo da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998
tenha sido invocado como um dos fundamentos da edição da Resolução CNE/CEB n.º
04/2006, sua redação foi modificada por este último instrumento normativo, exatamente para
dar guarida ao intento de determinar a obrigatoriedade da inclusão da Filosofia e da
Sociologia como disciplinas específicas. A contradição, portanto, é flagrante. Em um primeiro
momento, bastava a interpretação ―dirigida‖ do art. 10, § 2º da Resolução CNE/CEB n.º
03/1998 para embasar a obrigatoriedade; em seguida, essa inferência já não era verdadeira, de
modo que somente com uma redação distinta da até então vigente seria possível atingir o
objetivo pretendido.
Mas esse não é o único equívoco hermenêutico verificado no Parecer CNE/CEB n.º
38/2006. Partindo da premissa que acaba de revelar-se falsa — é dizer, da pretensa
equiparação entre, de um lado, Educação Física e Arte, e, de outro, Filosofia e Sociologia — o
Parecer procura justificar a obrigatoriedade por meio de uma interpretação a contrario sensu
que, de plano, pode-se considerar totalmente descabida. Tal interpretação lastreia-se no teor
do art. 26-A da LDB, acrescentado pela Lei n.º 10.639/03 e na Lei n.º 9.795/1999.
Rezam as normas acima referidas:
LDB 9394/96
―Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares,
torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira.
§ 1º. O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da
História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o
negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas
social, econômica e política pertinentes à História do Brasil.
§ 2º. Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito
de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e
História Brasileiras.‖ (grifos acrescentados).
Lei n.º 9.795/1999
Art. 10. A educação ambiental será desenvolvida como uma prática educativa integrada,
contínua e permanente em todos os níveis e modalidades do ensino formal.
123
§ 1º. A educação ambiental não deve ser implantada como disciplina específica no currículo
de ensino.‖ (grifos acrescentados).
Como se pode notar, as normas acima colacionadas dizem respeito a duas áreas de
conhecimento — História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental — que a
legislação, explicitamente, eximiu da condição de disciplinas específicas. Optou-se, ao
contrário, por distribuí-las em toda a grade curricular, de modo a permear, com os elementos a
elas inerentes, o conhecimento obtido pelos alunos em áreas afins.
Então, tendo por base esse arcabouço normativo — cujo espírito foi reproduzido, digase de passagem, no art. 2º, § 4º [3] da mesma Resolução CNE/CEB n.º 04/2006 — é que
surge o argumento a contrario sensu: ora, se o intuito do legislador fosse o de não obrigar as
unidades de ensino a adotarem disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia, ele teria
criado normas do mesmo jaez daquelas presentes no art. 26-A da LDB e no art. 10, § 1º da Lei
n.º 9.795/1999. Se não o fez, é porque pretendeu, sim, instituir a obrigatoriedade.
Essa argumentação não possui a mínima sustentabilidade legal.
O art. 26 da LDB [6], que cuida dos currículos do ensino fundamental e médio, em
momento algum obriga as escolas a criar disciplinas específicas. Preocupa-se, isto sim, em
firmar uma série de componentes curriculares obrigatórios, que podem ser ministrados no
âmbito de uma ou várias disciplinas distintas. E, dentre tais componentes obrigatórios, não há
menção à Filosofia, tampouco à Sociologia. Resta claro, diante dessa constatação, que a
opção legislativa encarnada na LDB foi precisamente oposta àquela constante da Resolução
CNE/CEB n.º 04/2006. Ou seja, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria
educacional, a inferência juridicamente válida é aquela segundo a qual Filosofia e Sociologia
não são disciplinas, mas sim, áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos
para serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania.
[6] Art. 26- Os currículos do ensino fundamental e médio devem ter uma base nacional,
comum, a ser complementada, em cada sistema de ensino e estabelecimento escola, por uma
parte diversificada, exigida pelas características regionais e locais da sociedade, da cultura, da
economia e da clientela.
§ 1º - Os currículos a que se refere o caput devem abranger, obrigatoriamente, o estudo da
língua portuguesa e da matemática, o conhecimento do mundo físico e natural e da realidade
social e política, especialmente do Brasil.
§ 2º - O ensino da arte constituirá componente curricular obrigatório, nos diversos níveis da
educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...)
§ 3º - A educação física, integrada à proposta pedagógica da escola, é componente curricular
obrigatório da educação básica, sendo sua prática facultativa ao aluno: (...)
§ 4º O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e
etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e
européia.
§ 5º Na parte diversificada do currículo será incluído, obrigatoriamente, a partir da quinta
série, o ensino de pelo menos uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo da
comunidade escolar, dentro das possibilidades da instituição‖.
Nesse sentido, o Parecer CNE/CEB n.º 15/1998, que embasou a instituição das
diretrizes curriculares nacionais para o Ensino Médio, demonstra, de modo cristalino, o
espírito que se pretendia aplicar ao Ensino Médio. Observe-se, a esse respeito, o que referido
Parecer pontuou no tocante às Ciências Humanas, grande área do conhecimento onde se
inscrevem a Filosofia e a Sociologia:
Parecer CNE/CEB n.º 15/1998
124
―Pela constituição dos significados de seus objetos e métodos, o ensino das ciências humanas
e sociais deverá desenvolver a compreensão do significado da identidade, da sociedade e da
cultura, que configuram os campos de conhecimentos de história, geografia, sociologia,
antropologia, psicologia, direito, entre outros. Nesta área se incluirão também os estudos de
filosofia e sociologia necessários ao exercício da cidadania, para cumprimento do que manda
a letra da lei. No entanto, é indispensável lembrar que o espírito da LDB é muito mais
generoso com a constituição da cidadania e não a confina a nenhuma disciplina específica,
como poderia dar a entender uma interpretação literal da recomendação do inciso III do
parágrafo primeiro do artigo 36‖ [7]
Assim, se a interpretação a contrario sensu difundida pelo Parecer CNE/CEB n.º
38/2006 tivesse respaldo, seria possível depreender que não apenas Filosofia e Sociologia,
mas também uma série de outros ramos do saber, tais como Direito, Antropologia, Psicologia,
etc., deveriam ser, necessariamente, contemplados como disciplinas específicas no Ensino
Médio, o que é um completo absurdo.
[7] Parecer CNE/CEB n.o 15/1998, pág 18.
Por fim, já examinados os argumentos empregados na tentativa de respaldar a
pretensão que aqui se considera ilegal e inconstitucional, vale uma derradeira observação, tão
somente com o intuito de se evitar eventuais mal-entendidos. É a seguinte: constatar que
inexiste amparo legal à exigência, feita pelo CNE, de que Filosofia e Sociologia sejam
contempladas como disciplinas específicas no Ensino Médio, não é sinônimo de lutar contra
uma idéia ―necessariamente boa‖, em prejuízo da qualidade do ensino. Não se trata, em suma,
de lutar contra o ―bem‖. Aliás, sequer se trata de fazer juízo acerca do caráter ―benéfico‖ ou
―maléfico‖ desta exigência para fins de aprimoramento do ensino brasileiro; cuida-se, tão
somente, de examinar a sua legalidade, pois encampou solução diversa, consistente em
privilegiar a autonomia dos sistemas e unidades de ensino e a liberdade de cada qual para,
segundo seu próprio projeto pedagógico, optar entre dedicar a tais conteúdos disciplinas
específicas ou então abordá-los de maneira transversal no âmbito de outras disciplinas já
existentes. Se houve algum juízo quanto ao melhor rumo a tomar, esse juízo foi feito pelo
legislador — democraticamente — e consistiu na decisão de que melhor seria privilegiar a
autonomia de cada estabelecimento de ensino para decidir por si, firme em que tal autonomia
seria perfeitamente compatível com a necessidade de incorporação, de alguma maneira, da
Sociologia e da Filosofia ao currículo do Ensino Médio.
Inadmissível, portanto, que o CNE venha se substituir ao legislador, exigindo dos
estabelecimentos de ensino algo que a lei não exigiu e, não fosse o bastante, usurpando-lhes
liberdade de escolha que a lei lhes quis assegurar.
DA IMPOSSIBILIDADE DE DISCRIMINAÇÃO ENTRE MODELOS PEDAGÓGICOS
Ainda que o CNE tivesse competência para editar os atos normativos que editou, isto
é, ainda que a Resolução CNE/CEB n.º 04/2006, ao impor a obrigatoriedade da inclusão de
disciplinas específicas de Filosofia e Sociologia na grade curricular das escolas do Ensino
Médio, estivesse rigorosamente em linha com as disposições da LDB e com a Constituição,
restaria um último ponto a examinar: a legalidade do tratamento diferenciado, conferido pela
Resolução CNE/CEB n.º 4/2006, a dois modelos pedagógicos — o de organização curricular
flexível e o estruturado por disciplinas. Vale lembrar os termos em que tal diferenciação
encontra-se vazada:
Resolução CNE/CEB n.º 04/2006
125
―Art. 1º O § 2º do artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98 passa a ter a seguinte redação:
§ 2º. As propostas pedagógicas de escolas que adotarem organização curricular flexível, não
estruturada por disciplinas, deverão assegurar tratamento interdisciplinar e contextualizado,
visando ao domínio de conhecimentos de Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da
cidadania.
Art. 2º São acrescentados ao artigo 10 da Resolução CNE/CEB n.º 3/98, os §§ 3º e 4º, com a
seguinte redação:
§ 3º. No caso de escolas que adotarem, no todo ou em parte, organização curricular
estruturada por disciplinas, deverão ser incluídas as de Filosofia e Sociologia.‖
§ 4º.- Os componentes História e Cultura Afro-Brasileira e Educação Ambiental serão, em
todos os casos, tratados de forma transversal, permeando, pertinentemente, os demais
componentes do currículo‖.
O Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, ao fundamentar a distinção, apresentou a seguinte
justificativa:
Parecer CNE/CEB n.º 38/2006
―Se a escola tem autonomia para desenvolver a própria concepção pedagógica, o que, aliás, é
garantido pela Constituição Federal e reiterado pela LDB, ela tem, por outro lado, a obrigação
de coerência nessa concepção, bem como no seu planejamento, na sua organização e na sua
execução. Nesse sentido, se a escola planejou e organizou seu currículo, no todo ou em parte,
com base em disciplinas, a lógica obriga que os componentes obrigatórios, sem ressalva legal,
sejam oferecidos da mesma forma. Se a escola, ao contrário, usando da autonomia que lhe dá
a Lei, organizou seu currículo de outra forma, do mesmo modo deverá dar tratamento a todos
os componentes obrigatórios‖.
É curioso perceber como o texto do parecer confere à autonomia pedagógica das
escolas uma interpretação enviesada. A leitura da parte final do excerto acima trazido
demonstra que, para seus autores, tal autonomia só deve ser posta em prática e prestigiada se
o intento da unidade de ensino for organizar seu currículo de forma flexível. Para os
estabelecimentos que, diferentemente, optarem por estruturar seu currículo sob a forma de
disciplinas, não há que se falar em autonomia. A lei, segundo essa linha de raciocínio, teria
criado um rol estático de componentes curriculares obrigatórios, que deveriam, sem qualquer
decisão autônoma por parte da escola, ser aplicados, de forma estanque, sob a roupagem de
disciplinas específicas.
Como já se demonstrou à exaustão ao longo desta manifestação, esse entendimento é
absolutamente equivocado.
A LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de se conferir
tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma para decidir,
dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo a ser
ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos pelo art.
26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira transversal,
permeando diferentes matérias.
Assim, nada impede, por exemplo, que os conceitos de Filosofia contidos na obra de
Platão e Aristóteles possam ser apresentados no âmbito do estudo da civilização grega, ou,
ainda, numa aula de Português ou Literatura. De modo análogo, é perfeitamente possível o
estudo da Sociologia de Weber ou Durkheim como parte de aulas de História Geral, ou
mesmo de Matemática. O que se objetiva é que, ao final do Ensino Médio, o aluno tenha
adquirido conhecimentos filosóficos e sociológicos necessários ao exercício da cidadania,
pouco importando se tal aquisição deu-se por meio de aulas específicas ou como parte do
126
conteúdo de uma disciplina afim.
Não tem amparo legal, portanto, a discriminação entre escolas de currículo flexível e
escolas estruturadas por disciplinas, levada a cabo pela Resolução CNE/CEB n.º 04/2006. Tal
Resolução, ao estipular esse tratamento diferenciado, criou uma escala entre os
estabelecimentos voltados ao Ensino Médio que, nos termos da legislação, não existe. Por
meio dela, foram relegadas à condição de escolas de segunda classe — por supostamente
estarem sonegando a seus alunos conhecimentos de Filosofia e Sociologia — todas as
unidades de ensino que, no exercício de sua autonomia pedagógica, prevista em todo o
arcabouço normativo do setor de Educação, optaram por organizar suas grades curriculares
em disciplinas específicas. A elas tenta-se impingir, com a edição da Resolução CNE/CEB n.º
04/2006, uma obrigação descabida, não amparada em lei.
2. CONCLUSÃO
Adotamos in totum o parecer aprovado pela Comissão de Legislação e Normas,
concluindo: A Resolução CNE/CEB n.º 4/2006 é nula, írrita, de nenhum efeito.
Em primeiro lugar, porque a obrigatoriedade de inclusão de disciplinas específicas de
Filosofia e Sociologia fere a autonomia assegurada aos sistemas de ensino, pela LDB e pela
Constituição, para a definição de suas próprias grades curriculares. Com efeito, embora o art.
36, § 1º, III da LDB estampe a preocupação do legislador em determinar que os conteúdos
ministrados, as metodologias aplicadas e as formas de avaliação escolhidas pelas escolas
sejam capazes de fazer com que, ao final do Ensino Médio, o aluno demonstre domínio dos
conhecimentos de Filosofia e Sociologia, necessários ao exercício da cidadania, não se
vislumbra, ali, qualquer imposição de que tais conhecimentos sejam oferecidos ao aluno em
disciplinas específicas; quer-se, isso sim, torná-los parte de um aprendizado de matiz
notadamente generalista, que contemple, além da Filosofia e da Sociologia, o domínio de
princípios científicos e tecnológicos e conhecimento de formas contemporâneas de
linguagem.
Além disso, o art. 9º, inciso IV, da LDB, confere à União a atribuição de estabelecer as
competências e diretrizes para o ensino médio com vistas, tão somente, a nortear a definição e
organização dos currículos correspondentes, vez que a definição e a organização, em si, destes
currículos é tarefa a ser exercida autonomamente pelos próprios sistemas de ensino, no âmbito
das respectivas esferas da federação e dos estabelecimentos, oficiais ou privados. Não fosse o
bastante, a LDB ainda estabelece no seu art. 8º, § 2º que os sistemas de ensino terão liberdade
de organização, que envolve, por certo, a autonomia na estruturação de seus próprios
currículos.
De resto, a própria Constituição Federal, em seu art. 211, deixa entrever que, em que
pese o dever de colaboração entre os entes federados na estruturação de seus sistemas de
ensino, a autonomia de cada qual é um valor a ser preservado.
De outro lado, também é impertinente a fundamentação utilizada pelo Parecer
CNE/CEB n.º 38/2006, para demonstrar a suposta obrigatoriedade de inclusão de disciplinas
específicas de Filosofia e Sociologia, ao referir-se às Diretrizes Curriculares Nacionais do
Ensino Médio, instituídas por intermédio da Resolução CNE/CEB n.º 03/1998.
Nesse ponto, o parecer realiza exegese jurídica equivocada, ora tentando equiparar
componentes curriculares obrigatórios (Educação Física e Arte) aos conhecimentos de
Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania, ora tentando aplicar ao caso
interpretação a contrario sensu absolutamente descabida, lastreada no argumento de que, se o
legislador tivesse querido excluir Filosofia e Sociologia do rol de disciplinas obrigatórias,
teria feito tal exclusão de maneira expressa, como procedeu no tocante à História e Cultura
Afro-Brasileira e à Educação Ambiental.
Todavia, da leitura do arcabouço legal vigente em matéria educacional, a inferência
127
juridicamente válida é exatamente a oposta, isto é, a de que Filosofia e Sociologia não são
disciplinas, mas sim áreas do conhecimento que devem ser apresentadas aos alunos para
serem utilizadas como ferramentas necessárias ao exercício da cidadania.
Ainda que todos os argumentos acima expostos estivessem incorretos, a Resolução
CNE/CEB n.º 04/2006 seria ilegal por conferir tratamento discriminatório a dois modelos
pedagógicos: aqueles cuja organização curricular é flexível e aqueles estruturados por
disciplinas. Deveras, a LDB e a Resolução CNE/CEB n.º 03/1998 (que instituiu as diretrizes
curriculares nacionais para o Ensino Médio) em momento algum previram a possibilidade de
se conferir tratamento discriminatório entre modelos pedagógicos. Cada escola é autônoma
para decidir, dentro das balizas postas pela legislação, o melhor modo de organizar o currículo
a ser ministrado aos seus alunos. Basta, apenas, que os componentes obrigatórios previstos
pelo art. 26 da LDB estejam presentes, seja em disciplinas próprias, seja de maneira
transversal, permeando diferentes matérias. A Resolução em pauta, ao estipular esse
tratamento diferenciado, criou uma escala entre os estabelecimentos voltados ao Ensino
Médio que, nos termos da legislação, não existe, sendo, pois, ilegal.
Finalmente, entende este Colegiado que os conhecimentos de Filosofia e Sociologia
são necessários e oportunos à formação dos alunos, cabendo a cada Instituição ou sistema de
ensino resguardar a sua autonomia e definir o tratamento curricular a ser dado a esses
conhecimentos.
São Paulo, 21 de maio de 2007.
a) Consª Ana Luísa Restani
Relatora
a) Cons.Mauro de Salles Aguiar
Relator
3. DECISÃO DA CÂMARA
A Câmara de Educação Básica adota como seu Parecer, o Voto dos Relatores.
Presentes os Conselheiros: Amarilis Simões Serra Sério, Ana Luísa Restani, Ana Maria de
Oliveira Mantovani, Francisco Pagliato Neto, Joaquim Pedro Villaça de Souza Campos, Leila
Rentroia Iannone, Maria Aparecida de Campos Brando Santilli e Mauro de Salles Aguiar.
Sala da Câmara de Educação Básica, em 23 de maio de 2007.
a) Consª. Maria Aparecida de Campos Brando Santilli
no exercício da Presidência nos termos do artigo 13 § 3º do Regimento do CEE
DELIBERAÇÃO PLENÁRIA
O CONSELHO ESTADUAL DE EDUCAÇÃO aprova, por maioria, a decisão da Câmara de
Educação Básica, nos termos do Voto dos Relatores.
Os Conselheiros Angelo Luiz Cortelazzo e Maria Aparecida de Campos Brando
Santilli votaram favoravelmente com restrições.
A Consª. Sonia Teresinha de Sousa Penin votou contrariamente nos termos de sua
Declaração de Voto.
128
Sala ―Carlos Pasquale‖, em 04 de julho de 2007.
PEDRO SALOMÃO JOSÉ KASSAB
Presidente
Publicado no DOE em 07/7/07 - Seção I - Página 32
Publicado na íntegra em 18/8/07 - Seção I - Páginas 23/24/25
DECLARAÇÃO DE VOTO
Pelos motivos a seguir apresentados, voto contrariamente ao referido Parecer, que
questiona as alterações propostas às Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio,
pela Resolução CNE n° 04/06, interpelando fundamentalmente a sua legalidade relativa à
interferência na autonomia dos sistemas de ensino e das unidades escolares; a introdução de
dois modelos pedagógicos expressos na ampla possibilidade de organização curricular, que
pode ser adotada pelas escolas e pelos sistemas de ensino; e o entendimento que leva a
transformar áreas de conhecimento em disciplinas obrigatórias.
Quanto ao questionamento de ilegalidade, independente dos desdobramentos
possíveis, compreendo o direito deste Conselho de fazê-lo, assim como entendo o relatório
como bem circunstanciado. Não concordo, todavia, com o tom acusatório utilizado,
desnecessário e contraproducente para estabelecer um debate nacional que caminhe a um
consenso a respeito do assunto.
No que diz respeito ao mérito educacional da Resolução do Conselho Nacional de
Educação, é necessária uma ampla discussão, seja da forma de introdução das disciplinas em
questão, seja da mudança curricular proposta, incluindo a autonomia dos sistemas e
especialmente das escolas para definir o seu Projeto Pedagógico.
No que se refere ao sentido das disciplinas, penso que é uma questão consensual o
entendimento da importância da Filosofia e da Sociologia na formação dos alunos do Ensino
Médio. A divergência esbarra na forma de sua inserção no currículo. As Diretrizes
Curriculares de 1998 propuseram a organização do currículo por áreas, partindo do princípio
de que todo conhecimento mantém um diálogo permanente com outros conhecimentos e de
que todos eles de maneira articulada deveriam se tornar meios para atender aos objetivos de
formação dos alunos. Todavia, ainda que se saiba do esforço e mesmo do sucesso de muitas
escolas no sentido de avançar nessa direção, as dificuldades são inúmeras, começando pela
ênfase disciplinar dominante nos cursos de formação dos professores para a educação básica.
Paralelamente, há que se lembrar que, quando o CEE/SP discutiu as Diretrizes
Curriculares para o Ensino Médio em nível do estado, ficou claro que o tratamento
interdisciplinar que se propunha não prescindia de rigor nem de propriedade. Rigor, no
sentido de que era importante garantir na escola a presença de um professor formado na
licenciatura do componente curricular específico, participando de projetos interdisciplinares.
Propriedade, no sentido de que as disciplinas acadêmicas, ao se proporem a contribuir com os
objetivos de formação do aluno da escola básica, necessariamente, devem se dispor a
construir nesse nível e âmbito escolar conhecimentos novos, amalgamando conteúdos
específicos e pedagógicos, como identifica Chervel, a partir das pesquisas que realizou quanto
à história das disciplinas escolares. Esta posição difere do que está inscrito nas Diretrizes
Curriculares Nacionais de 1998, em que se advoga que os componentes curriculares da
educação básica devem se preocupar apenas com a transposição didática dos conteúdos
acadêmicos à realidade deste nível de ensino, conforme defende Chevallard. Se ao tratamento
interdisciplinar e mesmo disciplinar de qualquer conhecimento na escola básica é exigido
propriedade e rigor, há que se supor que os profissionais, ao discutirem essas questões nas
escolas devam dominar o mais profundamente possível um campo de conhecimento. Pelo
exposto, causa estranheza a formulação da página 21 do Parecer CEE, afirmando que até
129
professores de Matemática poderiam desenvolver conteúdos específicos de Sociologia ou
Filosofia. Esses componentes curriculares não podem ser confundidos com temas
transversais, como dá a entender o texto. Ao contrário, ainda que o arcabouço teóricometodológico dessas disciplinas deva servir aos objetivos educacionais de formação dos
alunos, parece lógico que os profissionais indicados para desenvolver um projeto
interdisciplinar na escola sejam aqueles formados no campo das ciências humanas ou
humanidades.
Quanto à autonomia dos sistemas e mais fortemente das escolas para definir seu
Projeto Pedagógico parece consensual o entendimento de que tal ponto impresso na LDB de
1996 significou um ―extraordinário progresso‖ (Azanha). Espero que o exame de quanto a
proposição de dois modelos curriculares (interdisciplinar e disciplinar) pode ferir tal
consenso, seja objeto de debates exaustivos em nível nacional. Fica aqui de pronto um
lamento de que o CN não tenha aberto uma discussão em nível nacional, preliminarmente,
como ocorreu com a instituição das DCNs. Há, principalmente, que se debater se a explícita
referência à volta de um modelo curricular (disciplinar) que ainda representa a escolha
majoritária das escolas (pela inércia de não tentar o diferente ou por reais dificuldades como
as já apontadas) pode significar tanto a desistência de muitas de não experimentar a
organização curricular com base interdisciplinar, quanto o desestímulo dos cursos de
Pedagogia e dos demais de formação de professores a não trabalhar propostas dessa natureza.
Lembrando que a definição explícita para a organização curricular por áreas de conhecimento
está presente nas diretrizes para o Ensino Médio, fica a pergunta fundamental que deve
orientar cada sistema e cada escola em sua reflexão: como determinada organização curricular
e modelo pedagógico, incluindo a forma e o peso da participação de determinados
componentes disciplinares no tempo de estudo previsto, podem elevar em cada lugar a
qualidade da escola básica e as competências dos alunos para o trabalho, os estudos
posteriores e a vida em geral? Há sempre que se acompanhar e avaliar as inovações, inclusive
com estudos relativos aos egressos dessas experimentações.
São Paulo, 4 de julho de 2007
a) Consª Sonia Teresinha de Sousa Penin
-------------------------------------------------------------------------------[1] Esta lei faz referência ao Ministério da Educação e do Desporto, existente à época de sua
criação. No entanto, posteriormente, houve a separação em duas pastas, resultando no
Ministério da Educação e no Ministério do Esporte como órgãos distintos (v. Lei 10.683/03,
artigo 25, incisos X e XI).
9 [2] ―Art.5º -Para cumprir as finalidades do ensino médio previstas pela lei, as escolas
organizarão seus currículos de modo a: (...) III –adotar metodologias de ensino diversificadas,
que estimulem a reconstrução do conhecimento e mobilizem o raciocínio, a experimentação, a
solução de problemas e outras competências cognitivas superiores; ―.
[3] ―Art.6º - Os princípios pedagógicos da Identidade, Diversidade e Autonomia, da
Interdisciplinaridade e da Contextualização, serão adotados como estruturadores dos
currículos do ensino médio.‖
[4] ‖Art. 7º - Na observância da Identidade, Diversidade e Autonomia, os sistemas de ensino e
as escolas, na busca da melhor adequação possível às necessidades dos alunos e do meio
social: (...) IV – criarão mecanismos que garantam liberdade e responsabilidade das
130
instituições escolares na formulação de sua proposta pedagógica,e evitem que as instâncias
centrais dos sistemas de ensino burocratizem e ritualizem o que, no espírito da lei, deve ser
expressão de iniciativa das escolas, com protagonismo de todos os elementos diretamente
interessados, em especial dos professores;‖
[5] ―Art. 8º - Na observância da Interdisciplinaridade as escolas terão presente que: (...) III –
as disciplinas escolares são recortes das áreas de conhecimentos que representam, carregam
um grau de arbitrariedade e não esgotam isoladamente a realidade dos fatos físicos e sociais,
devendo buscar entre si interações que permitam aos alunos a compreensão mais ampla da
realidade; (...) V – a característica do ensino escolar, tal como indicada no inciso anterior,
amplia significativamente a responsabilidade da escola para a constituição de identidades que
integram conhecimentos, competências e valores que permitam o exercício pleno da cidadania
e a inserção flexível no mundo do trabalho.‖ pág.13
[2] Parecer CNE/CEB n.º 38/2006, p. 14.
[3] Eis o teor do dispositivo em comento: ―os componentes História e Cultura Afro-Brasileira
e Educação Ambiental serão, em todos os casos, tratados de forma transversal, permeando,
pertinentemente, os demais componentes do currículo‖.
131
ANEXO 9
Presidência da República
Casa Civil
Subchefia para Assuntos Jurídicos
LEI Nº 11.684, DE 2 DE JUNHO DE 2008.
Altera o art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de
dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e
bases da educação nacional, para incluir a
Filosofia e a Sociologia como disciplinas
obrigatórias nos currículos do ensino médio.
O VICE–PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no
exercício
do
cargo
de PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu
sanciono a seguinte Lei:
Art. 1o O art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com as seguintes
alterações:
“Art. 36. .....................................................................
.............................................................................................
IV – serão incluídas a Filosofia e a Sociologia como disciplinas obrigatórias em todas as séries do
ensino médio.
§ 1o ..............................................................................
.............................................................................................
III – (revogado).
...................................................................................” (NR)
Art. 2o Fica revogado o inciso III do § 1o do art. 36 da Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996.
Art. 3o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília, 2 de junho de 2008; 187o da Independência e 120o da República.
JOSÉ
ALENCAR
Fernando Haddad
GOMES
Este texto não substitui o publicado no DOU de 3.6.2008
DA
SILVA
132
ANEXO 10
Publicada no DOU de 18/5/2009, Seção 1, p. 25.
MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO
CONSELHO NACIONAL DE EDUCAÇÃO
CÂMARA DE EDUCAÇÃO BÁSICA
RESOLUÇÃO Nº 1, DE 15 DE MAIO DE 2009
Dispõe sobre a implementação da Filosofia e da
Sociologia no currículo do Ensino Médio, a partir
da edição da Lei nº 11.684/2008, que alterou a Lei
nº 9.394/1996, de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LDB).
O Presidente da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, no
uso de suas atribuições legais e de conformidade com o disposto na alínea ―c‖ do § 1º do
artigo 9º da Lei nº 4.024/61, com a redação dada pela Lei nº 9.131/95, e com fundamento no
Parecer CNE/CEB nº 22/2008, homologado por Despacho do Senhor Ministro de Estado da
Educação, publicado no DOU em 12 de maio de 2009, resolve:
Art. 1º Os componentes curriculares Filosofia e Sociologia são obrigatórios ao longo
de todos os anos do Ensino Médio, qualquer que seja a denominação e a organização do
currículo, estruturado este por sequência de séries ou não, composto por disciplinas ou por
outras formas flexíveis.
Art. 2º Os sistemas de ensino deverão estabelecer normas complementares e medidas
concretas visando à inclusão dos componentes curriculares Filosofia e Sociologia em todas as
escolas, públicas e privadas, obedecendo aos seguintes prazos de implantação:
I - início em 2009, com a inclusão obrigatória dos componentes curriculares Filosofia e
Sociologia em, pelo menos, um dos anos do Ensino Médio, preferentemente a partir do
primeiro ano do curso;
II - prosseguimento dessa inclusão ano a ano, até 2011, para os cursos de Ensino Médio com 3
(três) anos de duração, e até 2012, para os cursos com duração de 4 (quatro) anos.
Parágrafo único. Os sistemas de ensino e escolas que já implantaram um ou ambos os
componentes em seus currículos devem ser incentivados a antecipar a realização desse
cronograma, para benefício maior de seus alunos.
Art. 3º Os sistemas de ensino devem zelar para que haja eficácia na inclusão dos
referidos componentes, garantindo-se, além de outras condições, aulas suficientes em cada
ano e professores qualificados para o seu adequado desenvolvimento.
Art. 4º Esta Resolução entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as
disposições em contrário.
CESAR CALLEGARI
133
ANEXO 11
Parâmetros Curriculares Nacionais - Ensino Médio3
Parte IV - Ciências Humanas e suas Tecnologias
Conhecimentos de Filosofia
Para todo professor de Filosofia acostumado à lida no Ensino Médio, são bastante
conhecidas as perguntas do tipo: ―para que serve a Filosofia?‖, ―é mesmo necessária esta
disciplina ou ela é apenas para mostrar que este colégio tem mais disciplinas do que os
outros?‖, ou ainda ―se Filosofia não cai no vestibular, por que temos de estudá-la?‖. Questões
surgidas, na maior parte das vezes, logo nos primeiros contatos do aluno com essa ―nova
realidade‖.
Em geral, alunos não costumam questionar a necessidade ou a finalidade da
Matemática ou da Física, ainda que pouquíssimos cheguem a escolher, de fato, tais disciplinas
como carreiras a seguir. E não poderia ser diferente, visto que até um passado recente a
educação brasileira privilegiou, ora mais, ora menos, o conhecimento do tipo técnicocientífico, em detrimento das ―humanidades‖, tendo em vista formar um mercado de trabalho
de ―especialistas e técnicos‖, numa resposta ―adequada‖ à demanda de desenvolvimento e
modernização do mundo industrial-tecnológico.
Ainda que importante para justificar o estranhamento inicial do aluno, essa razão não
é, todavia, a única, talvez nem mesmo a mais fundamental. São também conhecidos de todos
os motivos do autoritarismo para retirar a Filosofia dos currículos escolares e, tendo em vista
as inúmeras e excelentes avaliações sobre o assunto, seria ocioso historiar aqui todo o
percurso feito, entrementes, até agora. Aliás, se considerarmos que sua reinclusão curricular
vem acontecendo de modo gradativo há quase duas décadas, nem se admite mais que essa
―nova realidade‖ possa ser tratada como ―novidade‖.
O que os pensadores e gestores daquele modelo de educação desconheciam é a
necessidade – hoje tornada explícita a partir do próprio sistema produtivo – que as sociedades
tecnológicas têm de que o indivíduo adquira uma educação geral, inclusive em sua dimensão
literária e humanista, se não quiser que ele seja, conforme dizia Dilthey (na Introdução às
Ciências do Espírito, já em 1884), apenas “um instrumento inanimado a seu serviço,
mas(que) não coopera conscientemente para lhe dar sua forma”1. Talvez por isso, criaram-se
3
O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de
Filosofia.
134
as condições para que a nova educação brasileira pudesse prescrever, tanto à Filosofia quanto
às Ciências Humanas, as atribuições pedagógicas com que hoje são apresentadas na Lei
9.394/96 e suas regulamentações. Convém considerar, brevemente, essa apresentação.
Em primeiro lugar, do ponto de vista das finalidades do Ensino Médio, estabelecidas
no Artigo 35 da LDB, destacam-se:
a) “a consolidação e o aprofundamento dos conhecimentos adquiridos no ensino
fundamental, possibilitando o prosseguimento de estudos” (inciso I);
b) “a preparação básica para o trabalho e a cidadania do educando, para
continuar aprendendo” (inciso II);
c) “o aprimoramento do educando, incluindo a formação ética e o desenvolvimento
da autonomia intelectual e do pensamento crítico” (inciso III); d) “a compreensão
dos fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos” (inciso IV).
Há, com certeza, uma contribuição decisiva da Filosofia para o alcance dessas
finalidades: ela nasceu com a declarada intenção de buscar o Verdadeiro, o Belo, o Bom. A
despeito de uma transformação histórica no âmbito de sua competência explicativa – em parte
devida à sua enorme fertilidade em gerar novos saberes –, o pensamento filosófico resiste
precisamente porque não abandona seu motivo originário. Tratando-se aqui de algumas
reflexões a título de contribuição para a prática pedagógica da Filosofia no Ensino Médio, não
chega a ser necessário insistir, junto aos docentes da disciplina, nas razões que lhe conferem
seu enorme e indispensável poder formativo. Mais do que nunca, filosofar é preciso!
Em segundo lugar, do ponto de vista das diretrizes curriculares para o Ensino
Médio,definidas pela LDB, em seu Artigo 36, § 1o destaca-se: “o domínio dos conhecimentos
de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania” (inciso III).
A nova legislação educacional brasileira parece reconhecer, afinal, o próprio sentido
histórico da atividade filosófica e, por esse motivo, enfatiza a competência da Filosofia para
promover, sistematicamente, condições indispensáveis para a formação de cidadania plena!
Em que pese essa competência, entretanto, cumpre destacar que, embora
imprescindíveis, os conhecimentos filosóficos não são suficientes para o alcance dessa
finalidade. Aliás, constitui-se quase num truísmo pedagógico o afirmar que todos os
conhecimentos, disciplinas e componentes curriculares da Educação Básica são necessários e
importantes na formação de cidadania do educando. Nesse sentido, embora restaurando para a
Filosofia o papel que lhe cabe no contexto educacional, a legislação tratou igualmente de
indicar como se deve corretamente dimensioná-la no Ensino Médio: a rigor, portanto, o texto
refere-se aos conhecimentos da Filosofia que são necessários para o fim proposto. Destarte, a
fim de atender à demanda legal, devemos fazer um esforço para recortar, do vasto universo
dos conhecimentos filosóficos, aqueles que imediatamente precisam e podem ser trabalhados
135
no Ensino Médio, o que, convenhamos, não é tarefa fácil.
Em terceiro lugar, do ponto de vista de sua inclusão curricular na área de ensino
Ciências Humanas e suas Tecnologias – Diretrizes Curriculares Nacionais, Parecer No 15/98:
“nesta área se incluirão também os estudos de Filosofia” (p. 58).
A despeito de sua proximidade histórica com as ―humanidades‖, poderia causar
estranheza para alguns, talvez, a inserção da Filosofia nessa área específica e não, por
exemplo, na área de Linguagens, Códigos e suas Tecnologias. No entanto, supõe-se que a
opção por esta área não foi feita sem dificuldades, ainda que aproximações históricas e
afinidades eletivas tenham sido consideradas: “As múltiplas formas de interação que se
podem prever entre as disciplinas tal como tradicionalmente arroladas nas „grades
curriculares‟, fazem com que toda proposição de áreas ou agrupamento das mesmas seja
resultado de um corte que carrega certo grau de arbitrariedade. Não há paradigma
curricular capaz de abarcar a todas. Nesse sentido, seria desastroso entender uma proposta
de organização por áreas como fechada ou definitiva.” 2 (grifo nosso)
Devemos levar isso em consideração e referirmo-nos sempre ao espírito de uma
legislação que destina um papel primordial para a Filosofia no Ensino Médio. Isso fica mais
claro quando apontamos o foco para a interdisciplinaridade, proposta como eixo estruturante
a ser privilegiado em toda formulação curricular e o modo como devem ser tratados os
conhecimentos filosóficos, conforme indicado expressamente na Resolução 03/98, a saber, no
§ 2o, alínea b do Artigo 10 – “As propostas pedagógicas das escolas deverão assegurar
tratamento interdisciplinar e contextualizado para os conhecimentos de filosofia”. Assim, o
papel da Filosofia fica alargado e poderemos, a partir de qualquer posição em que estivermos,
ajudar a pôr em marcha a cooperação entre as diferentes perspectivas teóricas e pedagógicas
que compõem o universo escolar.
Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na
contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando
como ponto de partida o referido inciso III § 1º do Artigo 36, evidenciam-se naturalmente três
questões: (a) que conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos
deve-se recobrir a concepção de cidadania assumida como norte educativo? É preciso,
primeiro, tentar aproximar-se de (b), examinar (c) e, só então, chegar à discussão de (a).
Não por acaso, como se apontou no início, o aluno do Ensino Médio faz perguntas a
respeito da ―utilidade‖ da Filosofia. Aquém disso, no entanto, a questão mais elementar e à
qual retorna com particular insistência (talvez porque a mais intrigante) é: ―o que é
Filosofia?‖. Naturalmente que também não é mero acaso que o professor de Filosofia tenha,
136
em geral, dificuldades em respondê-la satisfatoriamente, suposto que ele não se limite a
repetir essa ou aquela definição mais ou menos clássica. Na verdade, o que é Filosofia
constitui-se, hoje, mais do que nunca, num problema filosófico.
Se, de um lado, a Filosofia não é uma ciência, ao menos não no sentido em que se usa
a palavra para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos
abstratos dos fenômenos, e se não é, também, uma das belas artes, no sentido poiético de ser
uma atividade voltada especificamente para a criação de objetos concretos, de outro lado, a
Filosofia sempre teve conexões íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das
artes e, no esforço de pensar seus fundamentos, muitas vezes foi além delas, abrindo campos
para novos saberes e novas experiências 3. Além disso, em que pese o fato de se ter originado
com uma vocação pela totalidade, ela sempre esteve, a cada etapa de seu desenvolvimento
histórico, defronte a uma determinada ciência particular (ou, se preferirmos, uma ―ontologia
regional‖). No caso da Grécia Clássica, essa ―área limítrofe‖ era a física (isto é, a física grega,
bem entendido). Para a Filosofia moderna, em especial para Kant, essa ciência foi a
Psicologia4. Hoje, vemos o filosofar ir de encontro à Lingüística, à Sociologia, à
Antropologia entre outras. Ademais, dada a sua materialização como escrita, muitas vezes de
beleza e vigor poéticos incomparáveis, não chega a ser inédito que alguns a aproximem da
Literatura...
Ao dirigir o olhar para fora de si, a Filosofia, ao mesmo tempo, tem a necessidade de
se definir no interior do filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de
todos os outros saberes. No entanto, dada a grande variedade e diversidade dos modos e das
correntes de pensamento filosófico, devemos dizer que existe Filosofia ou tudo o que existe
são apenas filosofias?
Antes de mais nada, não podemos nos esquecer de que uma maneira de filosofar se
relaciona com todas as outras de um modo peculiar. Alguém acolhe uma maneira de filosofar
porque a considera correta e heuristicamente (isto é, do ponto de vista de sua fertilidade
conceptual) proveitosa. Nesse sentido, já quando os primeiros pensadores apontaram-na na
direção da verdade e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros,
possibilidades de pensar que, supostamente, trazem a verdade à razão de quem pensa ou, se
preferirmos, faz a razão desvelar a essência por trás da aparência. E embora seja evidente que
hoje ninguém tem o privilégio particular de poder indicar qual é o critério correto e adequado
para razão ou verdade, é também correto que nenhuma filosofia pode significativamente
abandonar a pretensão de razão com a qual ela mesma veio ao mundo sem, ao mesmo tempo,
contradizer exatamente aquilo que faz, a saber, tentar, com os meios de que dispõe, lançar luz
137
onde a compreensão não parece alcançar, enxergar para além das aparências...
Se nos postarmos, pois, numa perspectiva externa, isto é, a de um observador das
atividades culturais, podemos considerar que tudo o que há são, de fato, filosofias. Se, ao
contrário, examinarmos a questão de um ponto de vista interno, a saber, a perspectiva do
próprio agente social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica, então
existe Filosofia: a que ele mesmo pratica e considera ―verdadeira‖, quer dizer, justificada. É
por meio desse critério, aliás, que os professores de Filosofia costumam distinguir as crenças
em geral de uma ―crença‖ que se torna, porque fundamentada em boas
razões e argumentos, uma filosofia.
À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de
problemas herdados da grande tradição cultural filosófica somam-se temas e problemas novos
e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo em resposta a isso um
universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é também
verdade que essa dispersão discreta de um filosofar que se move, por certo, no ritmo longo da
academia, mas que certamente não se esgota nela e que, num outro ritmo, chega mesmo a
ensaiar um retorno à praça pública, não pode nos impedir de reconhecer o que há de comum
em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica consiste, em primeiro lugar, em
sua natureza reflexiva.
Independente da maneira como uma determinada orientação filosófica esteja
configurada, ela sempre concebe seu empreendimento não tanto como uma investigação que
tematiza diretamente este ou aquele objeto mas, sobretudo, enquanto um exame de como os
objetos podem nos ser dados no processo de conhecimento, como eles se tornam acessíveis
para nós. Mais do que aquilo que se tem diante da visão, a atividade filosófica privilegia o
―voltar atrás‖ (reflectere).
Observadas as diferenças de intenção nas várias abordagens filosóficas, o conceito de
reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que freqüentemente se confundem: a
reconstrução (racional), quando o exame analítico se volta para as condições de possibilidade
de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É nesse sentido que pode(m) ser
entendida(s) a(s) lógica(s), a(s) teoria(s) do conhecimento, a(s) epistemologia(s) e todas as
elaborações filosóficas que se esforçam para explicitar teoreticamente um saber pré-teórico
que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de regras; a crítica, quando
a reflexão se volta para os modelos de percepção e ação compulsivamente restritos, pelos
quais, em nossos processos de formação individual ou coletiva, nos iludimos a nós mesmos e,
por um esforço de análise, consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, seu caráter
138
propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de pesquisa do
tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e todas as
elaborações teóricas que estão motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de
uma ―falsa‖ consciência e extrair disso todas as conseqüências práticas.
Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta
(b) ―que Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar
que ele considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua
escolha categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso
contrário, além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um
padrão, um fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo,
há filosofias mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome
(pressupondo que se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver
bons frutos de seu trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua
escolha filosófica – um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação
cultural de cada um.
Essa é uma maneira de encaminhar a resposta à questão (b) ―que Filosofia?‖, que tem
a vantagem de explicitar, de saída, seus pressupostos e que, acredita-se, deva facilitar as
coisas no momento de uma tomada de posição com relação à questão (a) ―que conhecimentos
são necessários?‖, cujo exame é mais conveniente no contexto de uma discussão sobre as
competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia. Por ora, é mais oportuno
tentar colocar os termos da questão (c) ―de que concepção de cidadania estamos falando?‖.
Em primeiro lugar, a cidadania é, poderíamos dizer assim, a finalidade síntese da
Educação Básica, a qual não dispensa o contexto do trabalho como sentido prático para sua
realização. As finalidades da Filosofia no Ensino Médio (Artigo 35 da LDB) estão, destarte,
diretamente associadas ao contexto geral das finalidades da Educação Básica (Artigo 32), em
geral, ou às diretrizes de sua área de ensino (Artigo 36/ Parecer No 15/98 / Resolução No
03/98), em particular.
Devemos, pois, tomar, como ponto de partida, os valores tematicamente apresentados
na Lei 9394/96, conforme dispostos na Resolução No 03/98:
I - os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, ao respeito ao
bem comum e à ordem democrática;
II - os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de
tolerância recíproca.
Tais valores, nucleados a partir do respeito ao bem comum e da consciência social,
139
democrática, solidária e tolerante, permitem identificar mais precisamente a concepção de
cidadania que queremos para nós e que desejamos difundir para os outros. Eles projetam um
éthos que, embora se refira à totalidade do ser humano, deixa-se clarificar em três dimensões
distintas: estética, ética e política.
Do ponto de vista estético, a cidadania se instala à proporção que se adquire a
capacidade de acesso à própria ―natureza interna‖, suas necessidades e seus pontos cegos 8.
Trata-se, portanto, de um modo de ser que se traduz na fluência da expressão subjetiva e na
livre aceitação da diferença. Por um lado, a capacidade de ―conhecer-se a si mesmo‖ pode ser
traduzida na possibilidade de refletir criticamente no sentido apontado e levar à elaboração
consciente de comportamentos sintomáticos e/ou afetos reprimidos e, por outro lado, a
capacidade de abertura para a diversidade, a novidade e a invenção – que deve materializar-se
expressivamente, num fazer criativo e lúdico – é que tornam possível conceber um dos
aspectos fundamentais em que a cidadania se exercita, a saber, a sensibilidade.
Do ponto de vista ético, a cidadania deve ser entendida como consciência e atitude de
respeito universal e liberdade na tomada de posição. De uma parte, a possibilidade de agir
com simetria, a capacidade de reconhecer o outro em sua identidade própria e a admissão da
solidariedade como forma privilegiada da convivência humana; de outra parte, a liberdade de
tematizar e, eventualmente, criticar normas, além de agir com (e exigir) reciprocidade com
relação àquelas que foram acordadas e o poder, livremente, decidir sobre o que fazer da
própria vida, possibilitam desenhar os contornos de uma cidadania exercida em bases
orientadas por princípios universais igualitários. O aspecto do éthos que se evidencia aqui é o
que chamaríamos de identidade autônoma.
Por último, do ponto de vista político, a cidadania só pode ser entendida plenamente
na medida em que possa ser traduzida em reconhecimento dos direitos humanos, prática da
igualdade de acesso aos bens naturais e culturais, atitude tolerante e protagonismo na luta pela
sociedade democrática. Sem a consciência de direitos e deveres individuais e coletivos, sem a
sede de uma justiça que distribua de modo equânime o que foi produzido socialmente, sem a
tolerância a respeito de opiniões e estilos de vida ―não convencionais‖ e, sobretudo, sem o
engajamento concreto na busca por uma sociedade democrática, não é possível de nenhum
modo que se imagine o exercício pleno da cidadania. É o aspecto que poderíamos chamar de
participação democrática.
Como se vê, estas três perspectivas entrecruzadas devem ser tomadas em conjunto, na
medida em que cada uma delas implica, pressupõe e corrige as outras. Embora
brevissimamente esboçadas, servem ao propósito de explicitar os critérios políticoaxiológicos
140
destes Parâmetros Curriculares. Funcionam, portanto, como referência ideal. Sua pontuação,
aqui, justifica-se no sentido de que tudo, desde as concepções de base, passando pelo material
didático, até a relação pedagógica, deve ser pensado coerentemente, se não quisermos repetir
os resultados que aquela antiga educação, referida no início, empenhou-se tão diligentemente
em fazer parecer democráticos.
Por fim, caso se tenha clareza sobre os princípios de cidadania referidos e caso se
possa assumi-los numa perspectiva própria, surge o desafio de fazer aproximar, com todos os
recursos de que se dispõe, realidade e ideal. Para enfrentá-lo, é preciso, antes de tudo,
determinar que papel prático se deve ter, isto é, definir (a) ―que conhecimentos são
necessários?‖. A seguir, aparecem listadas e brevemente comentadas as competências básicas
que o aluno da disciplina deve formar e algumas maneiras, a título de sugestão, pelas quais o
professor pode encaminhar a tradução de princípios em capacidades efetivas. Trata-se, pois,
de prosseguir consolidando a posição conquistada – de direito e de fato – e não se esquivar às
responsabilidades que dela decorrem.
Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia
• Ler textos filosóficos de modo significativo
“As pessoas não sabem o quanto custa em tempo e esforço aprender a ler. Trabalhei nisso
durante 80 anos e ainda não posso dizer que tenha conseguido.” (Goethe)
Graças a uma história de pelo menos 2.500 anos, a Filosofia acumulou um vastíssimo
corpo de conhecimentos, constituindo-se num dos maiores conjuntos bibliográficos de um
único gênero. Esse conjunto poderia ser apresentado, simplificadamente, como uma moeda,
que possui duas faces: uma refere-se às diversas dimensões sobre as quais a elaboração
filosófica se produz, como, por exemplo, a natureza, a arte, a linguagem, a moral, o
conhecimento etc; a outra refere-se às diversas perspectivas filosóficas em que essas
dimensões são abordadas, os diferentes sistemas, diferentes tradições e correntes em Filosofia.
É clara, portanto, a origem da primeira de nossas dificuldades na seleção de conteúdos
programáticos em Filosofia no Ensino Médio. A tentação mais óbvia em que se incorre é,
simplesmente, fazer uma lista enorme, enciclopédica, de áreas, assuntos e autores que devem
ser ―ensi(g)nados‖, ―assimilados‖, sob a justa alegação de que são todos importantes.
Relembrando o mote kantiano de que “não se ensina Filosofia, ensina-se a filosofar”,
a solução para esse aparente impasse parece ser dada pela própria natureza da atividade
filosófica, isto é, sua peculiar característica reflexiva: para além do conteúdo concreto a ser
ensinado, o que está em questão é, antes, a necessidade de tornar familiar ao estudante um
141
modo de pensar que aponta, precipuamente, para os pressupostos daquilo que é aparente.
Considerando que todos os conteúdos filosóficos (como, de resto, todos os conteúdos
teóricos) são discursos, veremos que o ensinar Filosofia no Ensino Médio converte-se,
primariamente, na tarefa de fazer o estudante aceder a uma competência discursivo-filosófica.
Destarte, de um ponto de vista propedêutico, a conexão interna entre conteúdo e método deve
tornar-se evidente: que o estudante tenha se apropriado significativamente de um determinado
conteúdo filosófico significa, ao mesmo tempo, que ele se apropriou conscientemente de um
método de acesso a esse conteúdo.
Apropriar-se do método adequado significa, primariamente, portanto, construir e
exercitar a capacidade de problematização. Nisto consiste, talvez, a contribuição mais
específica da Filosofia para a formação do aluno do Ensino Médio: auxiliá-lo a tornar
temático o que está implícito e problematizar o que parece óbvio. Portanto, a competência de
leitura significativa de textos filosóficos consiste, antes de mais nada, na capacidade de
problematizar o que é lido, isto é, apropriar-se reflexivamente do conteúdo.
Uma apropriação, portanto, que deve poder ser feita em todos os níveis de análise do
discurso, a saber, o plano da literalidade imediata, o das vivências associadas a ele, o dos
problemas que lhe são conexos ou dele decorrem e, por fim, o de sua estrutura interna, de
ordem lógico-conceptual. Ademais, o plano dos pressupostos, ou, se preferirmos, o plano
meta-discursivo termina por se converter, ele próprio, em discurso. Assim, o plano geral de
trabalho deve concentrar-se na promoção metódica e sistemática da capacidade do aluno em
tematizar e criticar, de modo rigoroso, conceitos, proposições e argumentos, valores e
normas, expressões subjetivas e estruturas formais. Somente o desenvolvimento dessa
capacidade é que pode indicar que o aluno se apropriou de um modo de ler/ pensar
filosóficoreflexivo.
Sendo evidente que o filosofar não se produz no vácuo, mas se desenvolve a partir de
conteúdos concretos, vale dizer, sobre textos e discursos concretos, uma primeira escolha se
impõe: não é possível pretender que o aluno construa uma competência de leitura filosófica
sem que ele se familiarize com o universo específico em que essa atividade se desenvolve,
sem que ele se aproprie de um quadro referencial a partir dos conceitos, temas, problemas e
métodos conforme elaborados a partir da própria tradição filosófica. Nesse sentido, a
competência aqui referida é bem clara.
É verdade, contudo, que com isso não se resolve ainda o problema prático de que
conteúdos devam ser ministrados, que metodologias e que tipo de material didático devem ser
utilizados. Além disso, qual é a maneira mais adequada de tratar os conteúdos de Filosofia no
142
Ensino Médio? Devemos optar por temas, domínios de investigação (áreas) ou pela história
da Filosofia? Devemos tomar a história da Filosofia como linhacentral do programa ou como
referencial? Devemos priorizar a leitura em toda a amplitude possível do(s) autor(es) que
consideramos imprescindível(is) ou nos utilizarmos dele(s) como auxílio luxuoso para uma
compreensão mais abrangente de áreas ou temas pré-selecionados?
Tomar a história da Filosofia como centro, por exemplo, significa que se quer enfatizar
o nexo histórico que subsiste entre os diversos pensadores e a relação que cada produção
filosófica
específica
possui
com
suas
coordenadas
sócio-histórico-culturais.
Na
impossibilidade de estudar todos os sistemas e pensadores dessa tradição, é bastante razoável
recortar dela a partir de um determinado ponto de vista que se queira privilegiar. Por exemplo,
sob o enfoque dos paradigmas filosóficos mais significativos na subsunção de
diferentes perspectivas filosóficas, da metafísica à análise da linguagem ou, ainda, explorar
uma determinada ―linhagem‖ de pensadores, por exemplo, os racionalistas.
Pode-se tomar, também, a história da Filosofia como referencial, quando se opta por
dar ênfase a um tratamento temático ou por ―áreas‖ de investigação filosófica. No caso de
uma opção por áreas, por exemplo, filosofia da natureza, filosofia da linguagem, filosofia da
ciência, ética etc, deve-se recorrer à contribuição específica dos filósofos na elaboração de um
corpo de conceitos, doutrinas, questões relativo a cada uma delas e o confronto dessas
diversas contribuições sem, entretanto, ter que aprofundar, necessariamente, o conjunto da
obra do autor, mas, apenas, o(s) aspecto(s) que se refere(m) à área estudada, como, por
exemplo, a crítica kantiana da razão prática, a concepção política de Aristóteles ou, ainda, a
contribuição de Hume para a teoria do conhecimento.
Na opção por temas, pode-se privilegiar questões específicas para a discussão,
consideradas isoladamente ou combinadas com outras, como, por exemplo, o que é Filosofia e
como se relaciona com outros saberes, liberdade e determinismo, a civilização tecnológica,
subjetividade, ideologia, corpo e repressão, trabalho e alienação, linguagem e pensamento,
ética e engenharia genética etc.
Enfim, se a preferência for a concentração em poucos autores (ou mesmo em um), o
destaque será para a dinâmica e a arquitetônica de cada pensamento ou sistema, considerado
numa perspectiva prevalentemente (mas não exclusivamente) interna.
Cada uma dessas opções não exclui a combinação com outras. Nesse sentido, pode-se
imaginar, perfeitamente, uma parte histórica e uma parte temática em um curso de Filosofia.
Também se pode propor, evidentemente que de modo adequado às limitações e possibilidades
do Ensino Médio, um curso cujo centro seja a análise de um autor filosófico - Platão, por
143
exemplo - e, a partir dele, abrir uma discussão sobre temas, áreas de elaboração filosófica ou,
ainda, ligá-lo a outras elaborações históricas em conexão com o platonismo. Além disso, não
se pode perder de vista o fato de que cada maneira de tratar os conteúdos possui vantagens e
desvantagens comparativamente às outras. Onde se perde em precisão conceptual, pode-se
ganhar em contextualização ou, ainda, em articulação histórica dos problemas, e vice-versa.
É natural que, tratando-se de discursos das mais variadas origens, dos mais diversos
modos de estruturação interna, deve-se ter critérios muito claros na escolha que se fizer deles
para o cotidiano pedagógico. Um deles, talvez mesmo o mais influente, será o ponto de vista
filosófico do professor, conjugado à sua formação cultural. Outro, não menos importante, são
os dados de realidade que emergem de uma análise cuidadosa, a cargo de toda a escola, a
respeito da capacidade de leitura dos alunos que irão participar na prática educativa.
Considerando o critério da formação cultural do professor, acredita-se que a presente
proposta só pode vir a ser acolhida significativamente, se o docente estiver comprometido
com a continuidade de sua formação (que no caso do ensino público deve ser garantida pelo
Estado). Além disso, se o aprimoramento pessoal é uma finalidade de todos, e não apenas do
educando, não parece razoável supor que profissionais inteligentes simplesmente decidam
parar de ler, de aprender, ... Ainda que o professor de Filosofia no Ensino Médio não esteja
obrigado, por dever de ofício, a produzir novidades intelectuais, sendo suficiente trabalhar
como divulgador e como formador de um público leitor/agente competente, como professor
de Filosofia está (desde sempre já) convocado a honrar uma tradição cujo motivo originário,
historicamente renovado, é o páthos da perplexidade, a troca de certezas por dúvidas e a busca
de esclarecimento.
Considerando o critério da realidade do aluno, acredita-se que, num país de baixa
literatação, como é o nosso caso, uma disciplina com o grau de abstração e contextualização
conceptual e histórica, como ocorre com a Filosofia, supõe que à opção de curso que for feita
deve corresponder um cuidado redobrado com respeito às metodologias e materiais didáticos,
levando sempre em conta as competências de que os alunos já dispõem e o que é necessário
para introduzi-los significativamente no filosofar. Esse zelo metodológico se justifica na
medida em que nem se pode ter a veleidade de pretender formar filósofos profissionais e nem
se deve banalizar o conhecimento filosófico. Ambos os equívocos esvaziam o sentido e
invalidam a pertinência da Filosofia no Ensino Médio.
Não pretender formar filósofos profissionais significa que a presente proposta parte do
pressuposto de que o Ensino Médio não deve ser uma transposição reduzida de qualquer
currículo acadêmico. Ainda que se deva partir dos conhecimentos acadêmicos, deve-se evitar
144
o academicismo. Não banalizar o conhecimento filosófico significa não falsear ou trivializar o
sentido de um pensamento filosófico, prática que ocorre, muitas vezes, sob o manto de
metodologias pseudo-facilitadoras da aprendizagem.
No sentido de favorecer a formação tanto desta quanto das outras competências a
seguir indicadas, é preciso ter clareza do fato de que talvez jamais seja possível montar o
―curso ideal‖. Estar-se-á sempre experimentando, inovando e aprendendo o melhor modo de
lidar com as responsabilidades que cabem à disciplina. É possível indicar, contudo, a título de
um quadro de referências, que competências específicas contribuem para o desenvolvimento
de uma competência geral de leitura filosófica.
Em primeiro lugar, a capacidade de análise. Não é possível criticar nada sem o recurso
ao exame detalhado dos elementos conceptuais que possibilitam a compreensão precisa de um
texto filosófico. Essa capacidade se articula com outras, como por exemplo a destreza
hermenêutica, isto é, a capacidade de interpretação. Trata-se, aqui, de tematizar aspectos
implícitos, recuperar a ―camada profunda‖ que se oculta para além do que é dito
expressamente. Além disso, a capacidade de reconstrução racional do texto indica a
possibilidade de se reconfigurar a ―ordem de razões‖ que o sustenta e avaliar sua coerência
interna. Por fim, a capacidade de crítica ou problematização aponta para o necessário
distanciamento que o intérprete deve ter do texto, de modo a evitar um comprometimento
equivocado com o ponto de vista apresentado.
É, aliás, essa capacidade crítica que define o sentido mais próprio de um pensar
autônomo, isto é, um pensar capaz de, entre outras, confrontar o dito e o não-dito, igualmente
presentes no texto, imaginar possibilidades alternativas, flagrar a parcialidade e, quando for o
caso, a ―falsidade‖ implicadas em uma determinada compreensão do mundo articulada no
texto e, a partir disso, extrair suas implicações de ordem cognitiva, afetiva, moral e sóciopolítica. Em última análise, a pergunta ―a que finalidade e propósito serve este texto?‖ deve
poder encontrar uma resposta satisfatória a partir da perspectiva de cada intérprete. A
possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os propósitos do
texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e, por
conseguinte, da cidadania.
• Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.
Uma vez que toda vida humana – no que tem de especificamente humano – está
constituída no medium do trabalho e no da comunicação lingüística, acredita-se que a
capacidade de “compreender os elementos cognitivos, afetivos, sociais e culturais que
145
constituem a identidade própria e a dos outros” (Parecer nº 15/98, Resolução nº 3/98) só
pode ser produtivamente efetivada a partir do desenvolvimento de uma competência
comunicativo-lingüística. Por sua vez, essa competência supõe a capacidade de decodificação
dos significados pelos quais construímos a vida em comum e, ao recodificá-los,
ressignificálos, construir uma vida própria, que se constitui simbolicamente numa identidade
própria (a qual, por sua vez, está sempre referida à dos outros). A essa capacidade de
decodificação/recodificação poder-se-ia designar, genericamente, como leitura.
Uma vez que todo aluno, na própria medida do seu ser social-simbólico, já possui uma
competência de leitura previamente construída, uma prática de ensino metódica e
sistematicamente orientada e conduzida deve favorecer o desenvolvimento dessa competência
de realizar tanto uma leitura significativa – filosófica – de textos filosóficos quanto ler,
filosoficamente, textos estruturados a partir das configurações discursivas próprias das
diferentes esferas culturais. Além disso, essa competência de leitura e análise, deve poder ser
aplicada aos mais variados registros ou suportes textuais.
Não se trata aqui, obviamente, de pretender que o desenvolvimento de uma
competência de leitura filosófica possa autorizar o aluno de Filosofia a seguir julgando outras
produções culturais a partir de um pedestal superior e imune, ele mesmo, a um contradiscurso.
Ao contrário, o que se quer enfocar é a necessidade de desenvolver no aluno um olhar
especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo, questionador, reflexivo, que
possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que tem
sob as vistas. Por um lado, é fundamental que ele tenha internalizado um quadro mínimo de
referências a partir da tradição filosófica, as quais, devem poder ser postas à disposição,
principalmente pelo trabalho do professor, mas não exclusivamente, na medida em que se
deve estimular o gosto da pesquisa individual. Por outro lado, isso, muitas vezes, não será
suficiente: como entender e avaliar filosoficamente uma obra de arte como um filme autoral,
por exemplo, sem o recurso a todo um conjunto de outras referências culturais, sem as quais o
filme pode não fazer nenhum sentido? Como problematizar o método científico, sem o
conhecimento prévio de alguns modos e procedimentos usuais da pesquisa científica e de
como eles são historicamente constituídos? Como se referir criticamente ao ―hipertexto‖ que
são o entorno sócio-cultural e o horizonte do mundo tecno-científico, sem a aquisição de
informações e referências advindas das mais diversas origens e sem saber das lutas que são
travadas para que o mundo se mantenha desse modo específico?
Portanto, o desenvolvimento dessa competência tem implicações que extrapolam o
alcance de um curso de Filosofia meramente disciplinar. Seria preciso ir além disso e trazer
146
para a prática cotidiana do aprender a filosofar (na medida do possível) alguns casos
exemplares de outros textos, em diferentes suportes, que não o texto especificamente
filosófico. Nesse sentido, é possível compor um programa de trabalho centrado
primordialmente nos próprios textos da tradição filosófica, mas não exclusivamente neles.
Por outro lado, é possível desenvolver diversas práticas pedagógicas que permitam ler, com
esse enfoque, tanto os textos de todos os conhecimentos sistemáticos que a escola oferece
quanto textos de conhecimentos não-sistemáticos, intra/extra escolares.
É indispensável, nesse processo, aprender a respeitar a especificidade de cada estrutura
discursiva (científica, narrativa, filosófica, moral, artística etc) e considerar, com igual
cuidado, o registro ou o suporte textual específico em que essa estrutura se apresenta
(discursos teóricos, técnicos, vídeos, filmes, peças teatrais, músicas, obras plásticas, jornais,
discursos políticos, posturas pessoais e/ou coletivas etc.). Sem isso, corre-se o risco de não se
conseguir nada além de ―emitir opiniões interessantes‖ sobre este ou aquele assunto, livro,
filme, pintura etc., isto é, de não se conquistar um ponto de vista realmente fundado e
articulado.
A competência de leitura filosófica de outros discursos significa, por certo, a
capacidade de problematizar e refletir a partir das estruturas e registros específicos desses
discursos, isto é, lê-los com um olhar crítico. Isto pode ser traduzido também, mas não
necessária ou unicamente, no exercício do reconhecimento de orientações filosóficas,
refletidas ou não, originais ou não, que, eventualmente, possam habitar neles. De qualquer
modo, o desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências
culturais em geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências
filosóficas e diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de
uma leitura transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida
em que os diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede.
• Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências
naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais.
Entre outros fatores, a decadência do domínio político da Igreja Católica, a
possibilidade de se conceber um universo infinito, introduzida pela astronomia de Copérnico,
os descobrimentos marítimos, o avanço da técnica e o enriquecimento da burguesia,
contribuíram para alterar radicalmente a cosmovisão do Ocidente, a partir do século XVI. Na
seqüência histórica, a instalação do projeto da Modernidade deu início a um processo de
diferenciação cultural que logrou tornar autônomas três dimensões axiológico-culturais:
147
a) a ciência moderna;
b) o direito natural racional e as éticas profanas baseadas em princípios;
c) a arte autônoma e a crítica de arte institucionalizada.
Estas três manifestações culturais foram, progressivamente, retraindo-se para domínios
autônomos e expelindo as conexões diretas que antes possuíam com o todo da vida cultural,
passando agora a exibir suas estruturas próprias de racionalidade. Questões de verdade, de
justiça e de gosto, doravante, passam a ser respondidas no interior de cada um desses quadros.
A modernidade cultural, portanto, caracteriza-se, em princípio, pela ruptura e pela
fragmentação daquilo que antes estava reunido em uma visão do mundo unificada, sob a
tutela das verdades ―reveladas‖. A dessacralização do mundo e a racionalização do sistema
produtivo, para retomar Weber, levaram o processo de modernização social ao estado em que
nos encontramos hoje, a saber: que não podemos mais reunificar esses domínios autônomos
sem enfrentar grandes dificuldades de mediação teórica. Além disso, na realidade cotidiana,
experimentamos o enorme desconforto que resulta da contradição entre as diferentes
interpretações cognitivas, expectativas morais, possibilidades expressivas, valorações e a
necessidade de interpenetrar todos esses aspectos num projeto de vida significativo.
No intuito de minorar esse desconforto, emergiram respostas oriundas de todos os
domínios em que a modernidade se compartimentalizou. Uma delas, destacada pelas
Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio como eixo privilegiado, é a concepção
de interdisciplinaridade. O termo remonta, como se sabe, à problemática instaurada pela
pesquisa científica, quando da tentativa de delimitação de domínios de investigação que
recaem, por assim dizer, num ―entre disciplinas‖, como, por exemplo, a físico-química, a
bioquímica, a psicolingüística etc. Mais recentemente, entretanto, o conceito de
interdisciplinar passou a apontar para a necessidade de se ir além de uma prática científica
meramente disciplinar, buscar as conexões existentes entre todos os saberes e tentar abrir os
canais de diálogo entre todas as comunidades especializadas.
Sendo a escola o espaço institucional por excelência da difusão do conhecimento,
nossos currículos escolares estão, naturalmente, decalcados desse pano de fundo cultural
fragmentador, isto é, nossa prática escolar ainda se ancora no ensino de disciplinas isoladas,
para não dizer desconexas. O resultado já conhecido é a falência e a insuficiência de nossos
modelos educacionais, do ponto de vista de seus mais altos objetivos, os quais exigem a
formação de competências gerais e básicas nos planos cognitivo, instrumental, moral, político
e estético. A reforma curricular que ora se apresenta visa, expressamente, a tentar corrigir essa
distorção.
148
Assim como na formação das outras competências referidas, também nesta a iniciativa
em questão deve partir do professor. Nesse sentido, cada docente está convocado a um esforço
de superação da tendência cultural a uma óptica reducionista, isolacionista. É necessário, mais
do que nunca, levar o aluno a ampliar seu campo de visão até a inteira latitude do real, no
sentido de apreendê-lo, não como um amontoado caótico de coisas independentes e que
apenas se sucedem desordenadamente, mas, sim, como um conjunto de relações entre todos
os seus elementos, como uma trama que supõe a costura e o entrelaçamento dos fios: é
preciso tomar o real como uma totalidade inter-relacionada.
A conseqüência de uma opção pela interdisciplinaridade deve ser, portanto, a formação
de cidadãos dotados de uma visão de conjunto que lhes permita, de um lado, integrar os
elementos da cultura, apropriados como fragmentos desconexos, numa identidade autônoma
e, de outro, agir responsavelmente tanto em relação à natureza quanto em relação à sociedade.
Todavia, cabe aqui uma advertência: podemos facilmente cair na tentação de fazer
meras justaposições de conteúdos programáticos distintos num mesmo espaço didático, aula,
atividade etc, ou, ainda, associações rápidas e superficiais entre conhecimentos e discursos
que, como já dissemos antes, pertencem a domínios cognitivos e culturais que não podem
nem devem ser reduzidos ou subsumidos uns aos outros. Não sendo satisfatório um
planejamento curricular estritamente disciplinar, também não é satisfatório remediar esse
estado de coisas, fazendo superposições precipitadas, equivocadas e, a bem do uso
competente do período letivo, desnecessárias: “Por isso, a interdisciplinaridade, antes de ser
uma tentativa de estabelecer conexões primárias entre as disciplinas, deve orientar-nos, antes
de mais nada, no sentido de perceber a inter-relação entre as expressões da realidade. É
compreendendo a realidade como totalidade que poderemos educar para a totalidade. Tentar
apenas estabelecer simples fios condutores entre as diferentes disciplinas é tentar tapar o sol
com a peneira, tentar esconder o que de fato precisa ser denunciado.”
Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode
cooperar decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e
conceptuais curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando for o
caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos, programas de
estudo etc. É oportuno recomendar expressamente que não se pode de nenhum modo
dispensar a presença de um profissional da área, qualquer que seja a forma assumida pela
Escola para proporcionar a construção de competências de leitura e análise filosófica dos
diversos textos em que o mundo é tornado significativo. Nesse sentido, cabe frisar que o
conhecimento filosófico é um saber altamente especializado e que, portanto, não pode ser
149
adequadamente tratado por leigos.
Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios
conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação
reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de
método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc), das
Ciências Humanas (o a priori lingüístico-cultural, estruturas discursivas críticas, a enunciação
histórico-hermenêutica etc.) e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas
poéticas, a enunciação estético-expressiva etc).
Além disso, ao se apropriar reflexivamente de conceitos, temas, doutrinas e problemas
específicos referidos nos textos especificamente filosóficos, sejam eles recortados do interior
de um sistema filosófico ou a partir de outras esferas culturais (como é o caso de cientistas ou
críticos de arte que refletem sobre sua própria prática), o aluno adquire, ao mesmo tempo, um
conjunto de referências que lhe permite reconhecer as ―relações de parentesco‖ existentes
entre as diferentes abordagens filosóficas e as mais diversas produções culturais, desde a
ciência até a arte: o positivismo científico, o historicismo, o relativismo na antropologia
cultural e o subjetivismo estético, por exemplo, radicam-se em elaborações filosóficas bem
conhecidas.
Considerando a inter/transdisciplinaridade do ponto de vista de outros conteúdos
disciplinares, é evidente que deve restar em aberto o modo pelo qual os agentes sociais no
sistema escolar optam por construir o ―ensino de área‖, a saber, que pontes pretendem
estabelecer entre si. A partir deste ponto de vista, somente a construção socialmente
compartilhada de um currículo escolar inter/transdisciplinar e contextualizado é que pode
produzir a articulação efetiva dos conhecimentos filosóficos e dos outros conhecimentos e,
assim, auxiliar o aluno a alcançar uma compreensão ampla e integrada dos diferentes
conteúdos disciplinares. Nesse sentido, uma Filosofia só não faz verão...
Qualquer que seja o ângulo considerado nessa questão, o fundamental é que a
Filosofia não se furte ao compromisso, desde sempre assumido, com o reencontro da unidade
possível dentro da diversidade. Bem entendido que não se trata mais de fazer soar uma ―voz
soberana‖ que aspira à explicação da totalidade. Essa pretensão, hoje, tornou-se injustificável.
No entanto, ela ainda não pode sentir-se dispensada de se referir à totalidade.
• Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto
em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o
horizonte da sociedade científico-tecnológica.
150
Embora se possam distinguir diferentes competências, no plano de uma análise com a
finalidade de ressaltar as condições de sua construção ou as suas características mais
específicas, não se pode, a rigor, isolá-las como capacidades estanques. Nesse sentido, as três
competências listadas a seguir estão, de fato, intimamente ligadas às três outras referidas
anteriormente.
A capacidade de contextualizar os conhecimentos imbrica-se com a destreza
hermenêutica, assim como com a crítica. Elaborar por escrito os resultados de uma
aprendizagem implica também uma prévia operação de análise e reconstrução quando da
leitura, isto é, recompor os traços que foram observados e examinados no momento de se
compreender o texto. Por sua vez, participar em debates sistemáticos – um evento certamente
ainda bastante incomum em nossa prática escolar – reúne ao mesmo tempo todas essas
competências.
O recurso do tratamento contextualizado dos conhecimentos, por parte da escola, pode
auxiliar o aluno a desenvolver competências de mediação entre ele mesmo e os diferentes
conhecimentos, isto é, o tornar-se intérprete. Essa competência de interpretação/tradução, para
ser completa, deve poder ser pensada em duas direções, a saber: tanto no sentido ascendente
quanto descendente, isto é, tanto na direção do intérprete em seu próprio contexto, até o
contexto específico de um conhecimento, quanto na direção oposta, ou seja, quando se trata
de ―aplicar‖ um conhecimento a uma situação determinada no contexto do próprio intérprete.
Nesse sentido, a metodologia utilizada pode ir tanto do vivencial para o abstrato quanto deste
para a situação de aprendizagem. E deve transitar o mais possível nas duas direções. Em
ambos os casos, é pela capacidade do professor de escutar atentamente, exibir uma sincera
postura dialógica (não autoritária) e, não menos importante, estabelecer habilmente as
ligações suficientes, que uma competência de contextualização pode ser desenvolvida.
Ao serem apresentados ao aluno, os conhecimentos filosóficos, abstratos por sua
natureza, exigirão dele um esforço de inteligibilidade a que normalmente, isto é, na
perspectiva do senso comum cotidiano, não estão acostumados. É necessário que ele tenha
ultrapassado o estágio do egocentrismo léxico 13 – que consiste na dificuldade que tem o
jovem leitor de aceitar a argumentação do autor, já que ainda continua envolvido em suas
próprias fantasias e idéias – e atingido o estágio da disciplina receptiva (Elkind) – que
consiste na descentração necessária para abandonar (temporariamente) seu próprio ponto de
vista e seguir a argumentação do autor, considerando o ponto de vista deste.
Para contextualizar os conhecimentos filosóficos, tem-se, em primeiro lugar, que
localizálos no sistema conceptual de onde provêm originariamente. O que supõe o
151
aprendizado da linguagem em que estão formulados – não é possível entender Descartes, por
exemplo, sem o recurso às ―regras gramaticais‖ que configuram seu pensamento. Em segundo
lugar, é imprescindível assinalar as coordenadas gerais em que esse pensamento se inscreve.
Para serem compreendidos, portanto, é necessário que os conhecimentos filosóficos
sejam interpretados, ao mesmo tempo, na perspectiva de seu autor e no contexto de origem
desse pensamento. Para torná-los compreensíveis, é preciso, como já foi referido
anteriormente, que o professor conheça e leve em consideração as dificuldades e
competências prévias do aluno/intérprete. Para compreendê-los, o aluno/intérprete tem de:
a) partir de seus conhecimentos, capacidades e contexto pessoal (biográfico, sóciohistórico
etc);
b) abandonar essa primeira perspectiva e alcançar o texto em seu contexto específico;
c) retornar às suas próprias demandas problemáticas. Em síntese, uma ―exegese‖ do
texto filosófico só é possível na perspectiva de uma mediação entre o texto e o contexto de
seu intérprete.
Por outro lado, que o aluno tenha conseguido – na medida da precisão conceptual
possível no Ensino Médio – conquistar um acesso significativo a um determinado conteúdo
filosófico, implica que possa dispor dele com mais liberdade para ―aplicá-lo‖, isto é, reutilizálo, transferi-lo para outras situações cognitivas ou de análise, vale dizer, compor suas
habilidades. É, aliás, essa possibilidade de aplicação o melhor critério para o reconhecimento
de que uma competência foi adquirida de fato. Não se pode dizer que um indivíduo disponha
de uma competência lingüística, por exemplo, se ele não é capaz de se comunicar em qualquer
uma das linguagens, ou seja, de aplicar essa competência em comunicações concretas.
Considerando essa aplicação ao plano pessoal-biográfico, uma competência de
contextualização a partir de conhecimentos filosóficos pode ser muito importante na
compreensão de determinadas vivências, sem falar, é claro, da riqueza que o imenso
panorama filosófico tem a oferecer como contribuição na tarefa de construir uma (ou
reconhecer-se numa) visão do mundo cujos pressupostos busquem fundamentar-se de modo
refletido, crítico.
Por outro lado, ao conquistar um estilo pessoal de pensar e refletir, o aluno tem a
possibilidade de retornar essa reflexão sobre si próprio. Pode, nesse sentido, identificar tanto
sua originalidade quanto a falta dela; valorizar o trabalho como meio privilegiado da
autoconstrução e desvalorizar a labuta como valor em si; reconhecer suas capacidades,
potencialidades e dificuldades; abrir-se para as diferenças discursivas e habilitar-se a aprender
com argumentos morais, entre tantas outras coisas. Além disso, é possível – como um
152
resultado lateral tanto desejável quanto imprevisível – deixar livre o espaço para mudanças na
estrutura afetivo-motivacional, caso tenha conseguido, reflexivamente, aperceber-se de
sintomas que indiciam obstáculos no seu ―ir adiante‖. Tudo isto aponta para a direção da
autonomia na condução de si mesmo e para a emancipação de todas as repressões inúteis, a
que todo ser humano tem direito. Que a Filosofia não seja, muitas vezes, afirmativa, pode ser
muito útil, quando tudo o que se necessita, num momento de formação, é examinar
criticamente as certezas e verdades, questionar os valores e deixar aberto o espaço para a
invenção significativa da própria vida.
Como, de fato, a vida de cada um se passa sempre num dado entorno sóciohistóricocultural, saber ler esse entorno com um olhar filosófico é de fundamental
importância para quem quer que seja. Nesse sentido, para além de apenas fornecer referências
culturais, a Filosofia serve ainda mais quando o aluno a contextualiza no seu tempo e espaço
sociais. É possível, assim: identificar com clareza sua posição de classe; lidar melhor com a
complexidade e a pluralidade de discursos, valores e coisas que parecem se amontoar
desordenadamente; reconhecer o trabalho social como esforço comum necessário para a
construção da vida compartilhada, além de reconhecer a injustiça e a inumanidade na
distribuição dos frutos desse esforço histórico coletivo; trazer à tona e apontar o arsenal da
crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em normas morais injustas; na
medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos inautênticos. Pode ajudá-lo
a identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis (e opor-se a elas, na
medida de sua coragem), desde a sala de aula, passando pelo bairro/condomínio, cidade,
estado, até a esfera nacional; também a rastrear seus próprios impulsos autoritários,
totalitários, e que raízes esses impulsos deitam em seu contexto sociovital. Sobretudo, pode
auxiliá-lo a compreender a dimensão preeminentemente social que tem sua própria vida e a
descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se
aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou
universalmente.
Por fim, quando contextualizados no horizonte de uma sociedade que se reproduz
sistemicamente por meio da ciência e da tecnologia, os conhecimentos de Filosofia podem
levar o aluno a descobrir, por exemplo, no contexto de que estruturas discursivas, sistemas de
representação e movimentos ideológicos foram plasmadas, historicamente, essas forças
produtivas; que características apresentam; que importância e poder possuem; que papel
concreto desempenham; que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no
bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na
153
afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a
alteração globalizada das relações entre capital e trabalho; que conexões podem
eventualmente
possuir
com
interesses
econômico-políticos
inconfessáveis.
Uma
contextualização bem feita, no rumo proposto, pode facilitar a desmistificação de muitas
lendas e a derrubada de uma grande quantidade de preconceitos infundados a esse respeito,
mas pode, também e essencialmente, ajudar a explicitar os fundamentos críticos de um
número ainda mais de opiniões absolutamente justificadas.
• Elaborar, por escrito, o que foi apropriado de modo reflexivo.
“Quem não sabe escrever não aprendeu a ler.” (Paulo Freire)
A uma certa competência de leitura deve corresponder, necessariamente, uma certa
competência de escrita. Pressuposta a adoção de alguma(s) das metodologias e técnicas de
leitura, análise e fichamento de textos à disposição e estimulada a prática da pesquisa
bibliográfica, preferencialmente individual, mas também em conjunto, é razoável admitir que
o aluno desenvolva capacidades de escrita que lhe permitam elaborar, de forma própria, os
resultados de sua aprendizagem, a partir de suas pesquisas, leituras, análises individuais,
discussões em grupos de trabalho e, inclusive, de apontamentos e conteúdos ―fornecidos‖ pelo
professor.
Para se apropriar mais completamente de toda a riqueza possível de um texto, o aluno
tem que desenvolver alguns procedimentos analíticos e, ao fazê-lo, ele já precisa ir
registrando, de algum modo, suas impressões, interpretações, observações parciais etc, até que
consiga reconstruir a estrutura textual e efetuar as críticas que julga pertinentes. Portanto, uma
reelaboração por escrito dos conteúdos é simplesmente o contraponto necessário de uma
leitura criteriosa. Para além disso, deve-se esperar que o aluno possa desenvolver
argumentações próprias e aprender a encadeá-las, no sentido de estruturar uma justificação
para suas críticas.
A rigor, na escola só é possível acompanhar o desenvolvimento das quatro primeiras
competências listadas a partir de uma avaliação bem feita das duas últimas e, em especial, da
capacidade de elaborar o aprendizado por escrito. Enquanto na situação de uma exposição em
seminário ou no calor de um debate pode-se estar distraído ou ser impreciso, diante de um
texto produzido pelo aluno, tem-se a possibilidade, além da obrigação, de avaliar com mais
vagar e mais objetividade. É quando se pode indicar a cada um os motivos, um por um, que
levam a endossar ou recusar a elaboração feita e sugerir os encaminhamentos devidos. Além
disso, a quantidade de informações trazidas e o grau de articulação presentes no texto escrito
154
são, em geral, seguramente maiores.
A elaboração escrita do aluno constitui uma situação de avaliação privilegiada, na
medida em que ele pode tomar conhecimento da opinião do outro sobre sua produção, referirse a algum padrão social mente aceito, representado pela escola. Além disso, ao escrever, o
aluno pode objetivar seus processos de compreensão e tomá-los como elementos de
autoconstrução consciente. Nesse caso, o desenvolvimento da competência de escrita não é,
de nenhum modo, um aspecto secundário no desenvolvimento da personalidade, dos
mecanismos de aprendizagem e, evidentemente, de um pensar reflexivo.
• Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de
posição face a argumentos mais consistentes.
“Quando Aristóteles define o homem como „animal político‟, sublinha o que separa a
Razão grega da de hoje. Se o homo sapiens é a seus olhos um homo politicus, é que a
própria Razão, em sua essência, é política.” (J.P. Vernant)
Num texto bastante famoso, J. P. Vernant conjumina o nascimento da Filosofia e o
advento da pólis: “entre as duas ordens de fenômenos, os vínculos são demasiado estreitos
para que o pensamento racional não apareça, em suas origens, solidário das estruturas
sociais e mentais próprias da cidade grega” 14. A Filosofia, portanto, nasceu no espaço
social que constituiu a democracia grega, um espaço-praça (ágora) criado em função do
debate público acerca da vida comum.
Fica claro, então, a partir do sentido proporcionado pelo contexto originário da
Filosofia, porque esta é uma espécie de competência-síntese das anteriores: a partir de um
ponto de vista rico na informação, claro na formulação, concatenado na articulação e
fundamentado reflexivamente, vale dizer, elaborado conscientemente e decididamente
posicionado, o aluno deve poder participar, em igualdade de condições, em qualquer debate,
sistemático ou não, intra e/ou extra- escolar.
Uma vez que se trata de construir conhecimento e vida em comum, ele está
imediatamente convocado a participar no debate, a começar pelo espaço escolar: só será
possível desenvolver a capacidade de uma tomada de posição refletida se, durante a exposição
do professor, em sua própria exposição oral, na discussão em pequenos grupos ou num debate
generalizado em sua turma, ele tiver e atribuir de modo simétrico aos interlocutores a
oportunidade de, com toda liberdade, perguntar, responder, solicitar e fazer esclarecimentos,
opor-se, criticar, confrontar diferentes posições e possibilidades, recusar interpretações, fazer
interpretações etc e, em especial, mudar de posição quando estiver convencido de que a sua
155
pode não ser necessariamente a melhor.
Nesse sentido, para o professor, nem mesmo o conteúdo programático deve estar
excluído do debate com o aluno, muito ao contrário. É mesmo desejável que, na medida do
possível, este possa manifestar-se, fazer opções, discutir encaminhamentos e, quem sabe até,
metodologias e materiais didáticos. Ou seja, o professor deve estar atento para reorientar o seu
curso em atendimento a demandas legítimas que se instalem durante o processo. Para o aluno,
por sua vez, aprender a negociar seus interesses no conjunto de outras preferências é uma das
mais ricas conquistas da aprendizagem. Como em tudo o mais, depende muito de que o
professor seja capaz de uma decidida abertura pedagógica no sentido de fomentar e estimular
a aprendizagem como prática discursiva, na qual o debate sistematicamente conduzido tem
lugar de destaque.
Visto que ninguém pode, sensatamente, pretender dominar tudo o que outros agentes
sociais sabem, participar significativamente num debate é sempre aprender com ele. Por um
lado, a prática constante do debate propicia o desenvolvimento e o fortalecimento da
capacidade individual de fazer sua própria voz ser ouvida na ―assembléia‖, na medida em que
o aluno possa aceitar livremente suas regras e manifestar seu desacordo acerca de qualquer
infração das regras do debate. Por outro lado, essa mesma prática pode auxiliá-lo a reformular
seus pontos de vista, incorporar novas visões a respeito do assunto-objeto do debate,
internalizar normas mais justas e, se for o caso, alterar sua posição inicial. Trata-se aqui
também de uma mediação: a autonomia deve poder livremente reconhecer os melhores
argumentos.
A rigor, por sua relevância para o desenvolvimento de uma competência global de
aprender a aprender, esta última competência não diz respeito apenas à disciplina Filosofia.
No entanto, é também verdade que, assim como na concepção grega de paidéia, a Filosofia
ainda compreende sua missão pedagógica como um compromisso com o desenvolvimento da
competência discursiva em toda a sua extensão e não apenas filosófico-discursiva. Acredita-se
mesmo que este seja o quadro geral em que se inscreve a cidadania. Um conceito, aliás, que
remete necessariamente à participação na vida da pólis, à dimensão prática de um
debate/embate que se deve travar cotidianamente, a fim de redistribuir os poderes de forma
mais simétrica e igualitária. Diante da sintomática despolitização da sociedade
contemporânea, desenvolver a competência política com o objetivo de repolitizar uma práxis
esvaziada, converte-se, talvez, na mais urgente tarefa da educação.
Evidentemente, tratando-se de competências, delas se pode dizer que alguém as possui
em maior ou menor grau. Quem toca piano, por exemplo, pode tocá-lo mais ou menos
156
virtuosamente. No entanto, ele dispõe de alguma competência para o instrumento. No caso do
aluno de Filosofia do Ensino Médio, o grau mínimo que assinala a construção das
competências previstas (no qual certamente devem estar incluídas todas as condições para o
crescimento e a aprendizagem contínuos, isto é, o desenvolvimento dessas competências e
suas reaplicações-habilidades) deve poder ser medido, em último caso, através da constituição
dessa autonomia discursiva ou (o que vem a ser sinônimo) da construção de uma competência
de participação democrática.
Todavia, dado o caráter essencialmente dinâmico dos processos de aprendizagem e de
formação, não é possível indicar, por razões óbvias, ―o modo concreto e inquestionável‖ a
respeito de como avaliar, completa e corretamente, se e quando já se construíram essas
competências. Ademais, por se tratar de regras, é conveniente ter claro que elas possuem a
especial característica de sempre dependerem do acordo de pelos menos dois indivíduos sobre
o sentido de sua aplicação correta...
Infelizmente, a maioridade (no sentido kantiano), pretendida em todo projeto
educacional digno desse nome, é, ainda hoje, mais uma direção a que se tende do que uma
realidade que se constate no dia-a-dia do trabalho pedagógico e, a dar razão a Freud, a grande
maioria dos indivíduos ―adultos‖ de uma sociedade humana não chegam a ser adultos de fato.
Em todo caso, porque não é possível nos esquecermos do horror, temos o dever de lutar e o
direito de esperar que um trabalho bem feito de nossa parte possa contribuir para a formação
de homens mais dignos, livres, sábios, diferentes e iguais, capazes até, ao invés de se
adaptar, de recusar o mundo tal como está proposto nos termos atuais e engajar-se
ativamente em sua transformação, com vistas a uma convivência mais justa e fraterna.
É pedir demais que esse viver seja, quem sabe, mais feliz?
Competências e habilidades a serem desenvolvidas em Filosofia
Representação e comunicação
• Ler textos filosóficos de modo significativo.
• Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.
• Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.
• Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de
posição face a argumentos mais consistentes.
Investigação e compreensão
• Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas
Ciências Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais.
157
Contextualização sócio-cultural
• Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica,
quanto em outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e
cultural; o horizonte da sociedade científico-tecnológica.
158
ANEXO 12
Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares Nacionais
(PCN+)4
Ciências Humanas e suas tecnologias
Filosofia
Os conceitos estruturadores da Filosofia
Examinemos, na Lei de Diretrizes e Bases (n° 9.394, de 1996), alguns artigos dos
quais poderemos partir:
• o art 2° prescreve que a educação tem por finalidade o pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho;
• o art. 27, que trata dos conteúdos curriculares da educação básica, estabelece como
diretrizes a difusão de valores fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos
cidadãos, de respeito ao bem comum e à ordem democrática;
• o art. 35 estabelece como finalidades do Ensino Médio, além da preparação básica
para o trabalho e a cidadania do educando, o seu aprimoramento como pessoa humana,
incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do pensamento
crítico (inciso III) e a compreensão dos fundamentos científicos e tecnológicos dos processos
produtivos, relacionando a teoria com a prática, no ensino de cada disciplina (inciso IV);
• o art. 36, sobre o currículo do Ensino Médio, dispõe no inciso III do § 1° que os
conteúdos, as metodologias e as formas de avaliação serão organizados de tal forma que ao
final do Ensino Médio o educando demonstre domínio dos conhecimentos de Filosofia e de
Sociologia necessários ao exercício da cidadania (grifo nosso).
Estabelecer o que o aluno deve conhecer e que competências desenvolver no curso
de Filosofia no Ensino Médio configura uma tarefa a ser enfrentada de maneira diversa
daquela que se espera em qualquer outra disciplina, por causa das características que são
próprias ao filosofar. O professor de Física, por exemplo, é capaz de definir o campo da
ciência com a qual trabalha, conhece sua metodologia e, a partir dessa base aceita pelos
cientistas dos quais é contemporâneo, consegue estabelecer um conteúdo programático
mínimo e, além disso, escalonar as dificuldades para escolher o que será estudado de início,
4
O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de
Filosofia
159
como pré-requisito para a compreensão de conceitos mais complexos.
No entanto, não existe uma Filosofia – como há uma Física ou uma Química –, o que
existem são filosofias, podendo o professor (a quem chamaríamos de filósofo-educador)
privilegiar certas linhas de pensamento e de metodologia, sejam elas a dialética, a
fenomenológica, a racionalista etc. Também, diferentemente de outras disciplinas, não
há um ―começo‖, um pré-requisito para se introduzir a Filosofia, a não ser quanto aos
cuidados necessários com o estágio de competência de leitura e abstração dos alunos, bem
como o universo de conhecimentos e valores que cada um deles já traz consigo.
Outra dificuldade encontrar-se-ia nas sugestões dos PCNEM quanto aos saberes
e às competências necessários para a formação do cidadão, como sujeito ético e político. Ora,
se pensarmos que a Filosofia não tem função pragmática, no sentido de que sua finalidade
está nela mesma, ou seja, no filosofar, somos levados a concluir não ser possível transformála em instrumento de qualquer fim, por mais nobre que seja. No entanto, não há como negar a
vocação do filósofo, como pessoa do seu tempo, em estabelecer vínculos com a educação.
Basta lembrarmos da alegoria da caverna, em A República, de Platão: aqueles que foram
libertos das correntes e voltaram para o convívio dos demais, após terem contemplado as
coisas mesmas e superado o conhecimento ilusório dado pelas sombras projetadas na caverna,
têm um compromisso com a paideia. Assim diz Platão, pela boca de Sócrates:
A educação é, portanto, a arte que se propõe este fim, a conversão da alma, e que procura os
meios mais fáceis e mais eficazes de operá-la; ela não consiste em dar a vista ao órgão da alma,
pois que este já o possui; mas como ele está mal disposto e não olha para onde deveria, a
educação se esforça por levá-lo à boa direção.
É verdade, no entanto, que os tempos mudaram e com eles as concepções a respeito do
papel do educador. Mais do que aquele que dirige o processo, por conhecer a ―verdade‖, cabe
ao professor dar condições para que o próprio aluno construa seu conhecimento crítico e se
oriente na direção da autonomia da ação.
Dessa forma, não constitui incoerência recusar a função pragmática da Filosofia, no
momento em que o filósofo criador elabora conceitos originais, ao mesmo tempo em que se
reconhece a dimensão pedagógica da Filosofia. Assim, no presente documento discutiremos o
trabalho do filósofo-educador e suas intenções pedagógicas – nesse caso, intencionais e
pragmáticas – de proporcionar a ocasião oportuna para seus alunos desenvolverem
determinadas competências e habilidades que os tornem sujeitos autônomos e cidadãos
conscientes.
Antes, porém, seria preciso definir o que é Filosofia e determinar seu objeto e método,
o que configura, já de início, um problema filosófico. Não por acaso, um dos campos de
160
investigação filosófica é a Filosofia da Filosofia. É nesse sentido que
Edmund Husserl se
pergunta:
O que pretendo sob o título de Filosofia, como fim e campo das minhas elaborações, sei-o,
naturalmente. E contudo não o sei… Qual o pensador para quem, na sua vida de filósofo, a
Filosofia deixou de ser um enigma? […] Só os pensadores secundários que, na verdade, não se
podem chamar filósofos, estão contentes com as suas definições.
Desde o momento em que os gregos distinguiram os relatos míticos da nascente
Filosofia, valeram-se da defesa da racionalidade. Mas a razão filosófica dos gregos não é a
mesma dos pensadores medievais, que subordinavam a Filosofia, como ancilla theologiae
(serva da teologia), às verdades inquestionadas e inquestionáveis da fé. Nem é a mesma razão
dos modernos que, instigantes, indagavam sobre o ponto de partida do conhecimento, a fim de
conhecer a capacidade mesma de conhecer. Recrudescendo esse questionamento, Kant
colocou a razão num tribunal para avaliar criticamente seus limites e possibilidades, o que, em
última análise, criou um impasse para a metafísica. No século XIX, com o desenvolvimento
acelerado das ciências particulares, o cientificismo positivista procedeu a um reducionismo:
ao valorizar de maneira exagerada o conhecimento científico como a suprema forma de
racionalidade positiva, reduziu drasticamente a função da Filosofia. Como reação ao
positivismo, a fenomenologia de Husserl enfatizou o papel da Filosofia como conhecimento
rigoroso da possibilidade do conhecimento científico e o estudo dos fundamentos, dos
métodos e dos resultados das ciências. Já a Filosofia analítica, com suas inúmeras
ramificações surgidas desde o início do século XX, reduziu a tarefa da Filosofia à análise da
linguagem, a partir dos problemas lógicos colocados pelas ciências. Como disse Wittgenstein
em seu Tractatus, ―O fim da Filosofia é o esclarecimento lógico dos pensamentos‖ […] ―O
resultado da Filosofia não são ‗proposições filosóficas‘, mas é tornar proposições claras‖.
Ao percorrermos, na história da Filosofia, as mais diversas definições, percebemos
a vocação filosófica que se encontra sobretudo na colocação de problemas e menos na
resolução deles. Mesmo porque, à medida que mudam as formas de relações humanas e o
conhecimento do mundo, surgem novos questionamentos e perplexidades.
Diante da exigência didática de escolher um caminho, no sentido etimológico primeiro
de estabelecer um ―método‖, convém, por questões práticas, antes de nos agarrarmos a uma
definição de Filosofia, buscar uma orientação para reconhecer atividades que possamos
qualificar de filosóficas, sempre tendo em vista nosso propósito de educadores.
As dificuldades em definir o que é Filosofia já se encontram explicitadas nos PCNEM:
Trata-se aqui, então, de delinear alguns elementos que podem auxiliar na contextualização mais
adequada dos conhecimentos filosóficos no Ensino Médio. Tomando como ponto de partida o
referido inciso III § 1° do artigo 36, evidenciam-se naturalmente três questões: (a) que
161
conhecimentos são necessários? (b) que Filosofia? e (c) de que aspectos deve-se recobrir a
concepção de cidadania assumida como norte educativo? (p. 329)
Nessas questões vislumbra-se de forma clara a intenção pedagógica da utilização da
Filosofia no Ensino Médio, o que supõe a aceitação de posicionamentos diferentes entre os
professores de Filosofia na escolha dos conteúdos programáticos, mas não quanto ao ―norte
educativo‖, centrado na formação da cidadania. É o que se encontra enfatizado na
continuidade da leitura dos PCN:
Em suma, a resposta que cada professor de Filosofia do Ensino Médio dá à pergunta (b) ―que
Filosofia?‖ decorre, naturalmente, da opção por um modo determinado de filosofar que ele
considera justificado. Aliás, é fundamental para esta proposta que ele tenha feito sua escolha
categorial e axiológica, a partir da qual lê e entende o mundo, pensa e ensina. Caso contrário,
além de esvaziar sua credibilidade como professor de Filosofia, faltar-lhe-á um padrão, um
fundamento, a partir do qual possa encetar qualquer esboço de crítica. Por certo, há filosofias
mais ou menos críticas. No entanto, independentemente da posição que tome (pressupondo que
se responsabilize teórica e praticamente por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu
trabalho docente na justa medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica –
um rigor que, certamente, varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um. (p.331)
Mesmo reconhecendo a multiplicidade de caminhos que cada filósofo-educador possa
privilegiar, por questões didáticas, optamos por assumir determinada orientação – uma entre
muitas possíveis, voltamos a frisar –, pela qual a Filosofia é compreendida em linhas gerais
como uma reflexão crítica a respeito do conhecimento e da ação, a partir da análise dos
pressupostos do pensar e do agir e, portanto, como fundamentação teórica e crítica dos
conhecimentos e das práticas.
Embora os artigos da LDB citados inicialmente neste documento (com exceção do
artigo 36, que trata explicitamente da Filosofia e da Sociologia) façam referência a todas as
disciplinas do currículo, a Filosofia, por suas características, tem condições de contribuir de
forma bastante efetiva no processo de aprimoramento do educando como pessoa e na sua
formação cidadã. Ou seja, enquanto os temas de ética e cidadania bordejam as demais
disciplinas como reflexão transversal, no ensino da Filosofia esses temas podem constituir os
eixos principais do conteúdo programático.
Não se pense que, com essa afirmação, estejamos conferindo algum tipo de
superioridade a ela, mas sim reconhecendo que, pela sua especificidade, a Filosofia:
• abre o espaço por excelência para tematizar e explicitar os conceitos que permeiam
todas as outras disciplinas, e o faz de forma radical, ou seja, buscando suas raízes ou
fundamentos e pressupostos;
• discute os fins últimos da razão humana e os fins a que se orientam todas as formas
de ação humanas, e sob esse aspecto, levanta a questão dos valores;
• examina os problemas sob a perspectiva de conjunto – enquanto as ciências
162
particulares abordam ―recortes‖ da realidade – o que permite à Filosofia elaborar uma visão
lobalizante, interdisciplinar e mesmo transdisciplinar (metadisciplinar);
• não trata de um objeto específico, como nas ciências, porque nada escapa ao seu
interesse, ocupando-se de tudo.
Nem sempre, porém, a disposição humana para a reflexão é estimulada, antes chega a
ser desencorajada ou escamoteada. Por isso é importante o trabalho da educação: se o senso
comum é um conjunto de idéias e valores que servem de base à nossa primeira visão de
mundo, trata-se no entanto de um saber não-crítico, fragmentado, incoerente, desarticulado,
misturado a crenças arraigadas e, portanto, pré-reflexivo.
Uma das funções do filósofo-educador consiste em dar elementos para o aluno
examinar de forma crítica as certezas recebidas e descobrir os preconceitos muitas vezes
velados que as permeiam. Mais ainda, ao refletir sobre os pressupostos das ciências, da
técnica, das artes, da ação política, do comportamento moral, a Filosofia auxilia o educando a
lançar outro olhar sobre o mundo e a transformar a experiência vivida numa experiência
compreendida.
Não se trata, porém, de concluir que o professor de Filosofia é um ―guia‖ que conduz
o aluno ―das trevas à luz‖, mas sim que é o mediador entre o educando e o texto filosófico (ou
o texto não-filosófico que será compreendido segundo o enfoque da Filosofia), o que equivale
a dizer que o professor é o mediador entre o aluno e a cultura em que vive, já que o
ensino/aprendizagem não se faz à margem do contexto histórico-social.
Podemos, agora, considerar a Filosofia na sua dimensão pedagógica, como disciplina
do Ensino Médio comprometida com a formação cidadã, e, a partir do posicionamento
tomado no item anterior e das ressalvas que foram feitas sobre os diversos caminhos a serem
seguidos, torna-se possível estabelecer como conceitos estruturadores da Filosofia: o ser, o
conhecimento e a ação. Desdobramos então esses conceitos, lembrando que a apropriação que
deles faz a Filosofia é no sentido de uma reflexão radical – que busca as raízes dos conceitos,
seus fundamentos e pressupostos – e indaga sobre seus fins.
Quanto à reflexão sobre o ser, de que trata a Filosofia? Sabemos, desde Platão,que o
filósofo é aquele que se admira diante do óbvio, porque introduz no mundo a estranheza, o
questionamento. Dessa forma, busca a origem, o sentido das coisas, das idéias, dos
comportamentos estabelecidos. Além disso, enquanto as ciências particulares ou qualquer
outra expressão do conhecimento humano têm seu objeto circunscrito a determinado campo, a
Filosofia se ocupa da totalidade dos seres: se a História se utiliza do conceito de tempo, se a
Biologia o de ser vivo, se a Psicologia o de liberdade e determinismo, se a Religião parte da
163
verdade revelada e se sustenta pela fé, cabe à Filosofia indagar sobre o que é a realidade
representada por esses conceitos e quais seus pressupostos. Como disse Merleau-Ponty
(1998):
[…] é impossível negar que a Filosofia coxeia. Habita a história e a vida, mas quereria
instalar-se no seu centro, naquele ponto em que são advento, sentido nascente. Sente-se
mal no já feito. Sendo expressão, só se realiza renunciando a coincidir com aquilo que
exprime e afastando-se dele para lhe captar o sentido. É a utopia de uma posse a distância.
Na reflexão sobre os fundamentos e fins do conhecimento, a Filosofia investiga os
instrumentos do pensar, como a lógica e a metodologia; distingue e compara as diversas
formas de apreensão do real, tais como mito, religião, senso comum, ciência, filosofia etc.;
labora a teoria do conhecimento, indagando sobre as possibilidades e os limites desse
conhecimento.
Ao analisar os fundamentos e os fins da ação, parte-se das grandes áreas de reflexão da
ética, estética, política, antropologia etc., a fim de compreender as formas de agir nos campos
da moral, da arte, do exercício do poder, da técnica, da magia etc.
Vale destacar também que a separação dos três conceitos é didática, uma vez que se
encontram imbricados: só para dar um exemplo, a obra de arte é do domínio do fazer humano,
mas também depende da maneira pela qual o artista compreende o mundo, ao mesmo tempo
que, para o fruidor, representa uma nova forma de conhecimento que amplia sua sensibilidade
e imaginação. Além disso, na Filosofia prevalecem as discussões em torno dos juízos de valor,
pelos quais, diante ―do que é‖ pergunta-se sobre o ―dever ser‖. Decorre daí o papel de crítica
da cultura que lhe cabe. Citamos o historiador da Filosofia François Châtelet:
Desde que há Estado – da cidade grega às burocracias contemporâneas –, a idéia de verdade
sempre se voltou, finalmente, para o lado dos poderes (ou foi recuperada por eles como
testemunha, por exemplo, a evolução do pensamento francês do século XVIII ao século XIX).
Por conseguinte, a contribuição específica da Filosofia que se coloca ao serviço da liberdade,
de todas as liberdades, é a de minar, pelas análises que ela opera e pelas ações que desencadeia,
as instituições repressivas e simplificadoras: quer se trate da ciência, do ensino, da tradução, da
pesquisa, da medicina, da família, da política, do fato carcerário, dos sistemas burocráticos, o
que importa é fazer aparecer a máscara, deslocá-la, arrancá-la…
O significado das competências específicas da Filosofia
Ao contrário de longa tradição que persiste em considerar o Ensino Médio como o
momento preparatório para o curso superior, mais do nunca enfatiza-se hoje em dia a
necessidade de tomá-lo como etapa conclusiva. Além dos diversos motivos já alegados, da
formação integral do sujeito humano e do cidadão, não há como desprezar a rapidez das
transformações da sociedade e do mundo do trabalho, o que exige a ênfase de outro tipo de
intenção pedagógica. Aliás, desde o Renascimento, Montaigne já advertia para esse engano
164
fatal na educação da crianças, ao se privilegiar as ―cabeças cheias‖ em detrimento de ―cabeças
bemfeitas‖, mote retomado por educadores contemporâneos, como Edgard Morin e Philippe
Perrenoud.
Mais do que transmitir conhecimentos, o professor deve promover competências
gerais. Ou seja, mais do ensinar, deve ―fazer aprender‖, uma vez que não se pode prever as
modificações que virão a ocorrer em curto espaço de tempo nos mais diversos campos da
cultura. O importante, no entanto, não consiste em menosprezar os conteúdos programáticos,
e sim reconhecer que os conhecimentos são recursos a serem mobilizados nas mais inéditas e
complexas situações reais. Caso contrário, de que adiantariam os saberes acumulados se não
se transformassem em condições para serem aplicadas no trabalho, no convívio da família, no
lazer, nas mais diversas situações que exijam reconfigurações dos conhecimentos e
improvisação no agir?
São diferentes as seleções de competências a serem privilegiadas na educação, tal
como é advertido no documento geral sobre as áreas. A seguir abordaremos as competências
específicas da Filosofia, de acordo com as escolhas sugeridas pelos PCNEM.
Representação e comunicação
Ler textos filosóficos de modo significativo.
Lembramos aqui a citação de Kant, inúmeras vezes repetida: ―não se ensina Filosofia,
ensina-se a filosofar‖, o que nos convence a evitar a abordagem tradicional de oferecer aos
alunos a herança filosófica de maneira passiva, como um produto acabado. Para apropriar-se
de fato do texto filosófico, o aluno deverá compreender o processo de um modo de pensar
peculiar que só é possível pelo desenvolvimento da competência discursivo-filosófica. Como
já antevimos nos itens anteriores, o acesso ao conteúdo filosófico se faz de maneira reflexiva,
buscando os pressupostos dos conceitos e exercitando a capacidade de problematização. Para
tanto, há que se utilizar da leitura de textos dos filósofos e, mesmo quando o professor preferir
desenvolver um programa a partir de temas, não se deve deixar de tomar a história da
Filosofia como referencial constante das reflexões, a fim de evitar equívocos e a banalização
do conhecimento filosófico (PCNEM, 1999, p.335).
Há várias formas de se desenvolver a leitura analítica, mas em geral é importante
fazer com que o aluno comece pela análise temática, ocasião em que aprende a ―ouvir o que o
autor tem a dizer‖. Esses passos iniciais são importantes para estimular a disciplina
intelectual, ao aprender a identificar as idéias centrais, o rigor dos conceitos, a articulação da
argumentação, a coerência da exposição, para só então enveredar pelos aspectos denotativos
165
do texto e exercitar a análise interpretativa e a posterior problematização.
Resta lembrar que a apropriação do processo do filosofar é uma maneira de construir
uma forma de pensar autônoma, em última análise, um pressuposto decisivo para o exercício
da cidadania.
Ler, de modo filosófico, textos de diferentes estruturas e registros.
À medida que o aluno desenvolve a competência de realizar uma leitura significativa
dos textos filosóficos, o professor pode ampliar esse processo oferecendo outros textos de
diferentes estruturas e registros, tais como artigo de jornal, poesia, romance, programa de
televisão, filme, peça teatral, música, pintura, propaganda, texto científico etc. É
indispensável respeitar a especificidade de cada estrutura discursiva e que o aluno entenda
essa abordagem não como forma superior de analisar aquelas produções culturais, e sim para
experienciar ―um olhar especificamente filosófico, vale dizer, analítico, investigativo,
questionador, reflexivo, que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da
produção textual específica que tem sob as vistas‖. […] ―De qualquer modo, o
desenvolvimento dessa competência supõe a capacidade de articular referências culturais em
geral e, mais especificamente, a capacidade de articular diferentes referências filosóficas e
diferentes discursos. Uma prática, portanto, comprometida com o pressuposto de uma leitura
transdisciplinar do mundo, a qual deve poder ser fomentada pela escola na medida em que os
diversos conhecimentos disponíveis se interliguem numa rede‖ (PCNEM, 1999, pp. 338-339).
(grifos nossos)
Elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.
É importante garantir ao aluno o espaço para a produção própria. Esse espaço começa
na sala de aula, quando formula questões ou participa de trabalhos em grupo e de debates.
Dessa forma, exercita, pela expressão oral, a organização do seu pensamento assim como o
respeito pela palavra do outro. Além desses procedimentos, é preciso que seja estimulado a
desenvolver a expressão escrita, por meio da dissertação filosófica. Segundo Folscheid e
Wunenburger:
A dissertação filosófica, com efeito, é o exercício filosófico por excelência. Não há melhor
lugar para exercitar nosso pensamento sobre um tema preciso, para analisar e produzir
conceitos articulando-os dentro e através de um discurso, não há outro meio de colocarnos
na necessidade de ter de construir uma problemática. Em suma, a dissertação, em
filosofia, é insubstituível, essencial: tem a ver com a essência do ato de filosofar.
Bem sabemos das dificuldades iniciais de nossos alunos diante do desafio de estruturar
166
a espinha dorsal de um texto, de organizar o raciocínio e fundamentar suas idéias com
argumentos mais precisos do que os usados no calor dos debates. No entanto, essas
dificuldades iniciais precisam ser vencidas, porque o trabalho dissertativo é o coroamento do
processo que começa com leituras dos textos, fichamentos, pesquisas, debates, e configura-se
como a condição da autonomia intelectual do educando.
Embora se apresente como trabalho individual, a dissertação deve ser compreendida
como o amadurecimento das discussões, não só das que se iniciam com os autores dos textos,
como daquelas que se ampliaram com os colegas de classe. E por fim, a dissertação deve
retornar ao aluno para ser comentada, não só pelo professor, mas pelo grupo, no esforço
dialógico de avaliação intersubjetiva no qual são verificados o rigor conceitual do texto e a
coerência da exposição.
Debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição
face a argumentos mais consistentes.
O esforço de dialogar com o autor do texto analisado se estende em outros
procedimentos igualmente importantes, tal como o debate em sala de aula, que estimula a
relação dialógica, por excelência intersubjetiva – lembramos que a Filosofia nasceu na praça
pública, como resultado da discussão dos temas de interesse da cidade. Destacando o aspecto
de imbricamento entre conteúdo e competências, o debate não deve ser meramente opiniático,
mas deve estar alavancado a partir dos textos analisados e dos conteúdos examinados, ainda
quando extrapole esse ponto de partida.
Educar para o pensar também é, portanto, dar condições para que os jovens superem o
egocentrismo infantil, procedendo à descentração da inteligência e da afetividade. De fato,
segundo Piaget, a reflexão é uma deliberação interior, uma discussão que se tem consigo
mesmo, enquanto a discussão, por sua vez, é uma reflexão exteriorizada. Não por acaso,
aprender a pensar e a debater é contribuir para a construção da sociedade pluralista, que supõe
o sujeito autônomo e crítico e que, ao mesmo tempo, é capaz de reconhecer a alteridade,
aceitar as diferenças, buscar o consenso pelo poder da palavra, mas reconhecendo o dissenso
como expressão da sociedade democrática, que não é homogênea.
Investigação e compreensão
Articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas Ciências
Naturais e Humanas, nas Artes e em outras produções culturais.
Desde há muito tempo, a escola estrutura seu conteúdo programático em torno do
167
ensino das diversas disciplinas, muitas vezes de maneira enciclopédica, tentando dar conta da
avalanche de conhecimentos. Além da perversa ênfase no conteúdo, essas inúmeras
disciplinas permanecem estanques em seus territórios, levando a uma aprendizagem
fragmentada da realidade.
A educação contemporânea tem buscado superar essa distorção, restabelecendo os elos
que unem os diversos saberes. Mesmo no ensino superior, ainda que não se recuse a
necessária formação de especialistas, já existem experiências na criação de centros
transdisciplinares encarregados de discutir a interação e a integração dos saberes, numa
abordagem holística.
A propósito da necessidade de se tornar a interdisciplinaridade um eixo privilegiado
do Ensino Médio, a ser encarada como desafio para qualquer professor, não há como negar a
vocação da Filosofia para a visão de conjunto, para a percepção da totalidade:
Possuindo uma natureza, a rigor, transdisciplinar (metadisciplinar), a Filosofia pode cooperar
decisivamente no trabalho de articulação dos diversos sistemas teóricos e conceptuais
curriculares, quer seja oferecida como disciplina específica, quer, quando
for o caso, esteja inserida no currículo escolar sob a forma de atividades, projetos,programas de
estudo etc.
[…] Considerando a transdisciplinaridade a partir do ponto de vista de seus próprios
conteúdos disciplinares, a Filosofia pode, por exemplo, levar o estudante à apropriação
reflexiva de conceitos, modos discursivos e problemas das Ciências Naturais (questões de
método, estruturas discursivas lógico-matemáticas, a enunciação empírico-analítica etc.), das
Ciências Humanas (o a priori lingüísticocultural, as estruturas discursivas críticas, a
enunciação histórico-hermenêutica etc.)
e das Artes (o fazer artístico, estruturas discursivas
poéticas, a enunciação estéticoexpressiva etc.) (PCNEM, 1999, p. 342).
Contextualização sociocultural
Contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica, quanto em
outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte
da sociedade científico-tecnológica.
No processo de trabalhar com textos especificamente filosóficos, com outras estruturas
e outros registros e no esforço de articular os conhecimentos filosóficos e outras
expressões culturais, assim como de debater e de elaborar dissertações, o aluno aprende a
examinar o texto como algo que não se encontra fechado em si mesmo, mas aberto a
interpretações e a problematizações diversas. De fato, a habilidade hermenêutica supõe a
contextualização dos conhecimentos filosóficos sob diversos aspectos:
1. No plano da origem específica desses conhecimentos, já que o aluno aprende a
situá-los no sistema conceptual de onde surgiram, interpretando-os com a perspectiva de seu
autor e no contexto em que surgiu esse pensamento.
2. No plano pessoal-biográfico, porque, se de início o aluno se afasta da perspectiva
168
pessoal a fim de examinar o texto com isenção, depois retorna ao seu próprio contexto, ou
seja, ele parte de sua vivência para o abstrato e deste retorna, enriquecendo sua experiência
pessoal.
3. No entorno sócio-histórico-cultural, pelo qual o aluno consegue ―identificar com
clareza sua posição; lidar melhor com a complexidade e a pluralidade de discursos, valores e
coisas que parecem se amontoar desordenadamente; reconhecer o trabalho social como
esforço comum necessário para a construção da vida compartilhada, além de reconhecer a
injustiça e a inumanidade na distribuição dos frutos desses esforço histórico coletivo; trazer à
tona e apontar o arsenal da crítica filosófica contra toda contextura de interesses apoiados em
normas morais injustas; na medida em que sejam reconhecidos, desmascarar comportamentos
inautênticos […] identificar distorções na dimensão política em seus vários níveis […]
descobrir que seu projeto de vida se torna tanto mais pessoal e significativo quanto mais se
aprofunda no contexto da comunidade em que se projeta, seja ela entendida local, regional ou
universalmente‖. (PCNEM, 1999 pp. 344-345).
4. No horizonte da sociedade científico-tecnológica, os conhecimentos filosóficos
podem levar o aluno a descobrir em que contextos essas forças produtivas foram plasmadas,
que poder possuem e ―que relações têm com o atual estado de coisas em casa, na escola, no
bairro, na cidade, no país, no mundo; que impacto produzem nas relações sociais e na
afetividade, na escolha profissional e na própria garantia de vida, tornada problemática com a
alteração globalizada das relações entre capital e trabalho‖ (PCNEM, 1999, p. 345).
A articulação dos conceitos estruturadores com as competências específicas da Filosofia
Dissemos no item anterior que as competências permitem mobilizar conceitos,
relações e procedimentos. E também consideramos a possibilidade de cada professor
escolher o conteúdo programático centrado em temas filosóficos, ou na história da Filosofia,
desde que, no primeiro caso, não se perca a história da Filosofia como referencial permanente.
Resta acrescentar que esse recurso da história da Filosofia não se reduz à simples exposição
histórica de fatos e idéias, mas representa o retorno à gênese dos
conceitos e à sua reinterpretação até compreendê-los a partir do contexto atual.
Por exemplo, no eixo temático ―Relações de poder e democracia‖, que iremos sugerir
no próximo item, o conceito de democracia desdobra-se a partir dos três citados conceitos
estruturadores: o que é democracia, que tipo de ação constitui a política democrática, o que
conhecemos a respeito dos diversos conceitos de democracia. Nesse sentido, a discussão
sobre o que hoje entendemos por democracia, pode passar pelo exame do que foi a
169
democracia na Antiguidade grega, pela concepção de Montesquieu, no século XVIII, a
respeito da divisão dos três poderes, oportunidade que permite discutir as formas pelas quais o
poder Executivo, nas ditaduras, se sobrepõe ao Legislativo e ao Judiciário, ou ainda quando,
mesmo sob a vigência do Estado de direito, o Executivo exagera nas medidas provisórias, o
que também provoca desequilíbrio entre os três poderes.
Pode-se também rever como Rousseau elaborou o conceito de soberania do povo e de
democracia direta, para em seguida, a partir do contexto atual, em que predominam as
democracias representativas, discutir os artigos da Constituição Brasileira de 1988, na qual
recursos como plebiscito, referendo e iniciativa popular significam a incorporação de
mecanismos de democracia semi-direta. Igualmente, a análise de vários tipos de organizações
não-governamentais (ONG) dão elementos para a percepção de como a democracia é uma
policracia, em que o poder não se concentra, mas se distribui pelos cidadãos, cuja atuação
participativa pode ir muito além do ato da escolha do representante pelo voto. É dessa forma
que se pretenderealizar a contextualização dos conteúdos filosóficos.
No nível da própria vivência da comunidade escolar, as assembléias criadas para
discutir conflitos internos torna-se um bom exercício do diálogo, da argumentação, do
respeito pelas posições divergentes, na busca da colocação de problemas e no esforço comum
de encontrar para eles soluções coletivas. Dessa forma, exercita-se a competência de
representação e comunicação, sobretudo por meio do debate, pela defesa de pontos de vista
baseada em argumentos que poderão ser mudados em face a argumentos mais consistentes. É
bom lembrar que, ainda dentro desse item das competências, já falamos sobre a importância
de o próprio aluno produzir por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo.
Em outros níveis de articulação, pode-se verificar o que ocorre nas demais expressões
no universo da cultura simbólica, tal como na arte, em que a democracia permite a livre
criatividade, enquanto as ditaduras se ocupam de vigiar e punir com a censura. Ou ainda,
como a sociedade democrática não significa apenas garantir o formalismo do direito e das
instituições livres, mas exige a efetiva distribuição igualitária dos bens produzidos, desde o
saber científico-tecnológico até as riquezas materiais, a fim de garantir a todos o direito à
informação e ao usufruto dos bens produzidos. Sob esse aspecto, busca-se desenvolver a
competência de investigação e compreensão, pela articulação de conhecimentos filosóficos e
diferentes conteúdos nas Artes e de outras produções culturais.
Evidentemente, estamos apenas dando exemplos de conteúdos programáticos e de suas
relações com as competências, cabendo ao professor seguir outros caminhos, de acordo com
sua formação e seus interesses. O importante é mostrar que, dessa forma, procedem-se a
170
diversas articulações dos conceitos com as competências específicas da Filosofia.
Sugestões de organização de eixos temáticos em Filosofia
Apresentamos, a seguir, os eixos temáticos, para que o professor elabore
posteriormente sua própria organização programática, tendo em vista o perfil de seus alunos e
o tempo de que dispõe para as aulas de Filosofia.
Lembramos o que já foi dito na apresentação geral deste documento: ―As sugestões
temáticas que serão apresentadas – derivadas que são dos conceitos estruturadores e das
competências sugeridas para a área em geral e para cada disciplina que a compõe em
particular – não devem ser entendidas como listas de tópicos que possam ser tomadas por um
currículo mínimo, porque é simplesmente uma proposta, nem obrigatória nem única, de uma
visão ampla do trabalho em cada disciplina.‖.
Eixos temáticos
Relação de poder e democracia
Temas
Subtemas
1 A democracia grega
. A ágora e a assembléia: igualdade nas leia e no direito à
palavra
.Democracia direta: formas contemporâneas possíveos de
participação da sociedade civil
. Antecedentes:
- Montesquieu e a teoria dos três poderes
-Rousseau e a soberanis do povo
.O confronto entre as idéias liberais e o socialismo
.O conceito de cidadania
.Os totalitarismos de direita e esquerda
.Fundamentalismos religiosos e a política contemporânea
2 A democracia
contemporânea
3. O avesso da democracia
Temas
1. Autonomia e
liberdade
2. As formas da
alienação moral
3. Ética e política
Temas
1. Filosofia, mito e
senso comum
A construção do sujeito moral
Subtemas
.Descentração do indivíduo e o reconhecimento do outro
. As várias dimensões da liberdade )ética, econômica,
política)
. Liberdade e determinismo
.O individualismo contemporâneo e a recusa do outro
.As condutas massificadas na sociedade contemporânea
.Maquiavel: as relações entre moral e política
.Cidadania: os limites entre o público e o privado
O que é Filosofia
Subtemas
. Mito e Filosofia: o nascimento da Filosofia na Grécia
.Mitos contemporâneos
.Do senso comum ao pensamento filosófico
171
2. Filosofia, ciência e .Características do método científico
tecnocracia
.O mito do cientificismo: as concepções reducionistas da
ciência
.A tecnologia a serviço de objetivos humanos e os riscos da
tecnocracia
.A bioética
3. Filosofia e estética .Os diversos tipos de valor
.A arte como forma de conhecer o mundo
.Estética e desenvolvimento da sensibilidade e imaginação
172
ANEXO 13
ORIENTAÇÕES CURRICULARES NACIONAIS PARA O ENSINO MÉDIO 5
Volume 3 - Ciências Humanas e suas Tecnologias
Conhecimentos de Filosofia
INTRODUÇÃO
A Filosofia deve ser tratada como disciplina obrigatória no ensino médio, pois isso é condição
para que ela possa integrar com sucesso projetos transversais e, nesse nível de ensino, com as
outras disciplinas, contribuir para o pleno desenvolvimento do educando. No entanto, mesmo
sem o status de obrigatoriedade, a Filosofia, nos últimos tempos, vem passando por um
processo de consolidação institucional, correlata à expansão de uma grande demanda indireta,
representada pela presença constante de preocupações filosófi cas de variado teor. Chama a
atenção um leque de temas, desde reflexões sobre técnicas e tecnologias até inquirições
metodológicas de caráter mais geral concernentes a controvérsias nas pesquisas científicas de
ponta, expressas tanto em publicações especializadas como na grande mídia. Também são
prementes as inquietações de cunho ético, que são suscitadas por episódios políticos nos
cenários nacional e internacional, além dos debates travados em torno dos critérios de
utilização das descobertas científicas.
Situação análoga foi detectada em outras instâncias de discussão pública e
mobilização social, como o evidenciam, por exemplo, os debates relativos à conduta de
veículos de comunicação, tais como televisão e rádio. Ainda que, na grande maioria dos
casos, não se possa falar de uma conceituação rigorosa, não se pode ignorar que nessas
discussões estão envolvidos temas, noções e critérios de ordem fi losófi ca. Isso signifi ca que
há uma certa demanda da sociedade por uma linha de refl exão que forneça instrumentos para
o adequado equacionamento de tais problemas. Uma prova disso é que mesmo a grande mídia
não se furta ao aproveitamento dessas oportunidades para levar a público debates de idéias no
nível filosófico, ainda que freqüentemente de modo superficial ou unilateral.
O tratamento da Filosofia como um componente curricular do ensino médio, ao
mesmo tempo em que vem ao encontro da cidadania, apresenta-se, porém, como um desafi o,
pois a satisfação dessa necessidade e a oferta de um ensino de qualidade só são possíveis se
5
O presente anexo não se encontra na íntegra. Foi selecionada somente a parte referente aos conhecimentos de
Filosofia
173
forem estabelecidas condições adequadas para sua presença como disciplina, implicando a
garantia de recursos materiais e humanos. Ademais, pensar a disciplina Filosofia no ensino
médio exige também uma discussão sobre os cursos de graduação em Filosofi a, que
preparam os futuros profissionais, e da pesquisa filosófica em geral, uma vez que,
especialmente nessa disciplina, não se pode dissociá-la do ensino, da produção filosófica e da
transmissão do conhecimento.
Considerando a refl exão acerca da Filosofi a no ensino médio, cabe mencionar uma
difi culdade peculiar: trata-se da reimplantação de uma disciplina por muito tempo ausente na
maioria das instituições de ensino, motivo pelo qual ela não se encontra consolidada como
componente curricular dessa última etapa da educação básica quer em materiais adequados,
quer em procedimentos pedagógicos, quer por um histórico geral e sufi cientemente aceito.
Tendo deixado de ser obrigatória em 1961 (Lei no 4.024/61) e sendo em 1971 (Lei nº
5.692/71) excluída do currículo escolar ofi cial, criou-se um hiato em termos de seu
amadurecimento como disciplina. E embora na década de 1990 (Lei nº 9.394/96) se tenha
determinado que ao fi nal do ensino médio o estudante deva ―dominar os conteúdos de
Filosofia e Sociologia necessários ao exercício da cidadania‖ (artigo 36), nem por isso a
Filosofia passou a ter um tratamento de disciplina, como os demais conteúdos, mantendo-se
no conjunto dos temas ditos transversais. Assim, a idéia de rediscutir os parâmetros
curriculares para a disciplina traz novo fôlego para a sua consolidação entre os componentes
curriculares do ensino médio, e, com eles e outras iniciativas, a filosofia pode e deve retomar
seu lugar na formação de nossos estudantes.
Respeitada a diversidade própria dos níveis de ensino, vemos desenhar-se, sem
solução de continuidade e em todo o país, um padrão elevado e comum tanto para o ensino de
Filosofi a como para a formação de docentes, superando- se progressivamente a antiga
objeção de que por ausência de profissionais qualificados seria desastrosa a introdução da
Filosofia no ensino médio. Aqui, entre outros motivos, a qualificação desejada para nossos
profissionais decorre, em grande medida, da ampliação e da melhoria dos cursos de graduação
e da clara ampliação da rede de pós-graduação, com a existência de quase trinta programas de
pós-graduação em Filosofi a em todo o país.
Um ponto central, cuja relevância talvez escape a áreas que já o têm resolvido, é a
obrigatoriedade do ensino de Filosofi a. Muitas das ambigüidades dos Parâmetros
Curriculares Nacionais (PCN) anteriores resultam da indefinição, que consiste em apontar a
necessidade da Filosofi a, sem oferecer-lhe, contudo, as adequadas condições curriculares. A
afirrmação da obrigatoriedade, inclusive na forma da lei, torna-se essencial para qualquer
174
debate interdisciplinar, no qual a Filosofia nada teria a dizer, não fora também ela tratada
como disciplina, ou seja, como conjunto particular de conteúdos e técnicas, todos eles
amparados em uma história rica de problematização de temas essenciais e que, por
conseguinte, exige formação profi ssional específi ca, só podendo estar a cargo de profi
ssionais da área. Caso contrário, ela se tornaria uma vulgarização perigosa de boas intenções
que só podem conduzir a péssimos resultados. Cabe insistir na centralidade da História da
Filosofi a como fonte para o tratamento adequado de questões filosóficas. Com efeito, não
realizamos no ensino médio uma simplificação ou uma mera antecipação do ensino superior e
sim uma etapa específica, com regras e exigências próprias, mas essas só podem ser bem
compreendidas ou satisfeitas por profi ssionais formados em contato com o texto fi losófi co
e, desse modo, capazes de oferecer tratamento elevado de questões relevantes para a formação
plena dos nossos estudantes.
Como sabemos, uma simples didática (mesmo a mais animada e aparentemente
crítica) não é por si só filosófica. Não basta então o talento do professor se não houver
igualmente uma formação fi losófi ca adequada e, de preferência, contínua. Isto é, pois, parte
essencial desta discussão. Ser capaz de valer-se de elementos do cotidiano pode tornar rica,
por exemplo, uma aula de Física, mas não torna um discurso sobre a natureza uma aula de
Física, no sentido disciplinar que estamos dispostos, coletiva e institucionalmente, a
reconhecer. Da mesma forma, a utilização de valorosos materiais didáticos pode ligar um
conhecimento filosófico abstrato à realidade, inclusive ao cotidiano do estudante, mas a
simples alusão a questões éticas não é ética, nem fi losofi a política a mera menção a questões
políticas, não sendo o desejo de formar cidadãos o suficiente para uma leitura filosófica, uma
vez que tampouco é prerrogativa exclusiva da Filosofia um pensamento crítico ou a
preocupação com os destinos da humanidade. Com isso, a boa formação em Filosofi a é, sim,
condição necessária, mesmo quando não suficiente, para uma boa didática filosófica.
Uma sociedade que compreenda a obrigatoriedade da Filosofia não a pode desejar
como um pequeno luxo, um saber supérfl uo que venha a acrescentar noções aparentemente
requintadas a saberes outros, os verdadeiramente úteis. A Filosofia cumpre, afi nal, um papel
formador, articulando noções de modo bem mais duradouro que o porventura afetado pela
volatilidade das informações. Por isso mesmo, compreender sua importância é também
conceder-lhe tempo. De modo específico, importa atribuir-lhe carga horária sufi ciente à
fixação do que lhe é próprio. Nesse sentido, propõe-se um mínimo de duas horas-aula
semanais para a disciplina, apontando ademais que deva ser ministrada em mais de uma série
do ensino médio. Não desconhecemos, porém, que essas questões envolvem diferenças
175
regionais e são subordinadas a distintas correlações políticas, de sorte que deixamos essa
proposição como um horizonte a ser considerado nas formulações dos diversos projetos
pedagógicos.
Outra decorrência da obrigatoriedade da Filosofia é, por conseguinte, uma refl exão
sobre sua especifi cidade e seus pontos de contato com outras disciplinas, cabendo ressaltar
que, a nosso juízo, a Filosofi a não se insere tão-somente na área de ciências humanas. A
compreensão da Filosofia como disciplina reforça, sem paradoxo, sua vocação
transdisciplinar, tendo contato natural com toda ciência que envolva descoberta ou exercite
demonstrações, solicitando boa lógica ou reflexão epistemológica. Da mesma forma, pela
própria valorização do texto filosófico, da palavra e do conceito, verifica-se a possibilidade de
estabelecer proveitoso intercâmbio com a área de linguagens. Além de contribuir para a
integração dos currículos e das outras disciplinas, a afi rmação da Filosofia como componente
curricular do ensino médio traz à tona questões inerentes à própria disciplina, tais como: a
concepção teórica do ensino de Filosofia como Filosofia; as abordagens metodológicas
específi cas; e, sobretudo, os conteúdos que podem estruturar o ensino.
Os PCN vigentes para a disciplina, assim como os anteriores, sofrem da ambigüidade
que pretenderam curar e muitas vezes oscilam entre enunciar pouco e enunciar
excessivamente. Assim, ao lado de uma cautela excessiva, podemos encontrar passos por
demais doutrinários que terminam por roubar à Filosofia um de seus aspectos mais ricos, a
saber, a multiplicidade de perspectivas, que não deve ser reduzida a uma voz unilateral.
Mostrou-se, pois, necessária uma reformulação que evite imposições doutrinárias, mesmo
quando resultantes das melhores intenções. Um currículo de Filosofia deve contemplar a
diversidade sem desconsiderar o professor que tem suas posições, nem impedir que ele as
defenda. Essa honestidade é inclusive condição de coerência. Ao mesmo tempo, a orientação
geral em um currículo de Filosofia pode tão-somente ser filosófica, e não especifi camente
kantiana, hegeliana, positivista ou marxista. A cautela filosófica é ainda mais necessária nesse
nível de ensino, no qual posturas por demais doutrinárias podem sufocar a própria
possibilidade de diálogo entre a Filosofia e as outras disciplinas, cabendo sempre lembrar que
as tomadas de posições, mesmo as politicamente corretas, não são ipso facto filosoficamente
adequadas ou propícias ao ensino.
Nesse debate, a noção de competência não pode ser apresentada como solução mágica
para as difi culdades do ensino, mas também não constitui obstáculo intransponível. Afastouse assim tudo que nesse termo possa sugerir competição ou adequação fl exível ao mercado
de trabalho, ressaltando-se, primeiro, que a definição de competência não pode ser exterior à
176
própria disciplina, e, segundo, que a competência pode realizar-se no interesse de contato com
nossa tradição e nossa especificidade filosófica. Nesse sentido, o currículo desejado se
articula com o perfil de profissional que deve ser formado nos cursos de graduação em
Filosofia, cujas habilidades e competências são bem definidas em documento da comissão de
especialistas no ensino de Filosofia da Secretaria de Educação Superior (SESu) do Ministério
da Educação.
Essas considerações iniciais reproduzem, em parte, o Relatório das Discussões sobre
as Orientações Curriculares do Ensino Médio e a Filosofia, resultante de uma série de
seminários regionais e de um seminário nacional realizados em 2004 sob a coordenação do
Departamento de Políticas de Ensino Médio da Secretaria de Educação Básica do Ministério
da Educação. Esse texto é uma das peças institucionais que subsidiam o presente documento,
dando-lhe as coordenadas, em conjunto com o texto Os Parâmetros Curriculares do Ensino
Médio e a Filosofia, as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia e a
Portaria das Diretrizes do Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade) 2005 para
a Área de Filosofia.
O processo de redação deste documento coincidiu com um novo quadro institucional
para a disciplina Filosofia. Em primeiro lugar, os cursos de graduação em Filosofia passaram
a ser submetidos à avaliação institucional, tendo sido nomeada uma comissão para elaborar os
critérios para a futura elaboração de provas para o Enade 2005 da área de Filosofia. Os
trabalhos dessa comissão certamente contribuíram para o amadurecimento das discussões
sobre a composição da disciplina para o ensino médio, na medida em que se afirmaram
algumas posições acerca da graduação e das competências esperadas do profissional formado
nos cursos de licenciatura em Filosofia. A primeira decisão importante da comissão foi a de
não separar, no momento da avaliação, o bacharelado e a licenciatura em Filosofia, uma vez
que, como bem rezam as Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia,
―ambas as habilitações devem oferecer
substancialmente a mesma formação básica, em termos de conteúdo e de qualidade, com uma
sólida formação de História da Filosofia, que capacite para a compreensão e a transmissão dos
principais temas, problemas, sistemas filosóficos, assim como para a análise e a reflexão
crítica da realidade social em que se insere‖. Em segundo lugar, decidiu-se que a avaliação de
cursos de graduação em Filosofi a deve tomar como eixo central o currículo mínimo
composto pelas cinco matérias básicas: História da Filosofia, Teoria do Conhecimento, Ética,
Lógica e Filosofia Geral: Problemas Metafísicos. Enfatizando o papel da história da filosofia
e das demais disciplinas básicas, a comissão indicou os pontos centrais da avaliação do profi
177
ssional que irá atuar com a citada disciplina. Com isso, concorda-se com a posição expressa
nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofia de que o elenco de tais
disciplinas tem permitido aos melhores cursos do país um ensino flexível e adequado.
Ao lado disso, tomam corpo em todo o país as discussões acerca da formação do
professor de Filosofi a no ensino médio, especialmente em função dos impactos causados nos
cursos de graduação pela nova legislação para as licenciaturas (CNE. Resolução CNE/CP
2/2002. Diário Oficial da União, Brasília, 4 de março de 2002. Seção 1, p. 9). A nova
legislação estabelece, em seu Artigo 1o, 400 horas de prática como componente curricular e
400 horas de estágio curricular supervisionado. Tendo em conta as dificuldades de se
integralizar tal carga horária sem perder de vista a formação básica em conteúdo e a qualidade
da formação do profissional da área (formação que não deve diferenciar, substancialmente,
sob esse aspecto, o bacharel e o licenciado), é possível afirmar que a preparação específica de
atividades e a seleção de material didático para o ensino médio podem e devem ser
consideradas quando da integralização curricular, orientando as atividades práticas previstas
tanto em ofi cinas de pesquisa e produção de material didático como em sua aplicação durante
o estágio supervisionado.
Portanto, o presente documento busca sistematizar os resultados de uma ampla
discussão em curso na área de Filosofia, desde a caracterização da disciplina até a preparação
do profi ssional que irá atuar com ela, oferecendo subsídios para a definição de temas e
conteúdos a serem trabalhados, bem como do material didático a ser confeccionado. Ao evitar
estabelecer de antemão os conteúdos ou uma linha a ser seguida e enfatizar ainda a
especificidade da Filosofia em relação às outras disciplinas, bem como a necessidade de um
ensino de qualidade no ensino médio, destaca-se o respeito tanto ao profissional da área com
as peculiaridades de sua formação quanto ao caráter plural e diverso da Filosofia. Tem-se aqui
como pressuposto que não existe uma Filosofia, mas Filosofias, e que a liberdade de opção
dentro de seu universo não restringe seu papel formador.
IDENTIDADE DA FILOSOFIA
A pergunta acerca da natureza da fi losofi a é um primeiro e permanente problema filosófico.
Não podendo ser solucionado aqui mais que parcialmente (nem devendo ser solucionado
integralmente em nenhum lugar), cabe-nos, porém, a tarefa de delinear alguns elementos para
uma contextualização mais adequada dos conhecimentos filosóficos no ensino médio.
Tomando-se como ponto de partida o já mencionado Inciso III do § 1o do Artigo 36 da Lei de
Diretrizes e Bases (Lei nº 9.394 de 20/12/1996), no qual se afi rma que o educando ao fi nal
178
do ensino médio deve demonstrar o ―domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia
necessários ao exercício da cidadania‖, faz-se necessária alguma compreensão, mesmo
provisória e descritiva, do que se pode entender por ―Filosofia‖, de modo que, em seguida, a
possamos também relacionar com uma possível compreensão
do termo ―cidadania‖ e seu importante exercício.
O termo ―Filosofi a‖ recobre muitos sentidos, mesmo em sua prática profissional. Em
certa medida, contra uma ingênua cobrança lógica de univocidade, a ambigüidade não é, em
seu caso, um malefício, resultando de uma sua exigência íntima. Se a questão ―o que é
Física?‖ não é exatamente um problema físico, a questão ―o que é Filosofia?‖ é talvez um
primeiro e recorrente problema filosófico, e a ela cada fi lósofo sempre procurará responder
baseado nos conceitos pelos quais elabora seu pensamento. Não há então como controlar
universalmente tal ambigüidade seja por decreto ou por alguma definição restritiva. Não
obstante, vale observar que no interior de cada pensamento a exigência de univocidade volta a
impor-se.
É comum o embaraço que sentimos diante da pergunta sobre o sentido da Filosofia. De
certa forma, é como se nos indagassem acerca de algo que não está nem pode estar bem
resolvido. Não fugimos aqui a uma resposta. Ao contrário, indicamos explicitamente, em
primeiro lugar, que nenhuma pode ser ingênua, uma vez que cada resposta está comprometida
com pontos de vista eles próprios filosóficos. Assim, responder à pergunta é já filosofar,
sendo perigosa e enganadora a inocência. Uma resposta aparentemente universal se situa logo
em um campo particular (no aristotelismo, no platonismo, no marxismo, etc.), sendo a trama
que lhe confere sentido um misto de autonomia do pensador e de instalação em um contexto
histórico. Ademais, se descrevemos alguns procedimentos característicos do fi losofar, não
importando o tema a que se volta nem a matriz teórica em que se realiza, podemos localizar o
que caracteriza o filosofar. Afinal, é sempre distintivo do trabalho dos fi lósofos sopesar os
conceitos, solicitar considerandos, mesmo diante de lugares-comuns que aceitaríamos sem
reflexão (por exemplo, o mundo existe?) ou de questões bem mais intrincadas, como a que
opõe o determinismo de nossas ações ao livre arbítrio. Com isso, a Filosofia costuma quebrar
a naturalidade com que usamos as palavras, tornando-se reflexão. Pretende decerto ser um
discurso consciente das coisas, como a ciência; entretanto, diferencia-se dessa por pretender
ainda ser um discurso consciente de si
mesmo, um discurso sobre o discurso, um conhecimento do conhecimento. Não pergunta
simplesmente se isso ou aquilo é verdadeiro; antes indaga: o que pode ser verdadeiro? Ou
ainda, o que é a verdade? Por isso, a Filosofia é corrosiva mesmo se reverente, pois até a
179
covardia ou a servidão que porventura algum filósofo defenda exigirá considerandos e passará
pelo crivo da linguagem.
Se a Filosofia não é uma ciência (ao menos não no sentido em que se usa essa palavra
para designar tradições empíricas de pesquisa voltadas para a construção de modelos abstratos
dos fenômenos) e tampouco uma das belas-artes (no sentido poético de ser uma atividade
voltada especifi camente para a criação de objetos concretos), ela sempre teve conexões
íntimas e duradouras com os resultados das ciências e das artes. Ao dirigir o olhar para fora de
si, no entanto, a Filosofia tem a necessidade, ao mesmo tempo, de se definir no interior do
filosofar como tal, isto é, naquilo que tem de próprio e diferente de todos os outros saberes.
Antes de qualquer coisa, diante da grande variedade e da diversidade dos modos e das
correntes de pensamento, não se pode perder de vista que é possível falar em Filosofia e não
apenas em Filosofias, nem se pode esquecer que uma maneira de filosofar se relaciona com
todas as outras de um modo peculiar. Alguém acaso escolhe uma maneira de fi losofar porque
a considera correta e heuristicamente proveitosa do ponto de vista da sua fertilidade
conceptual? Nesse sentido, quando os primeiros pensadores apontaram na direção da verdade
e da razão de ser das coisas, uma concepção filosófica define parâmetros, possibilidades de
pensar que supostamente trariam verdade à razão ou, se preferirmos, fariam a razão desvelar a
essência por trás da aparência. E embora hoje ninguém pareça ter o privilégio particular de
indicar qual o critério correto e adequado para a razão ou a verdade, é também correto que
nenhuma Filosofia pode significativamente abandonar a pretensão de razão com que veio ao
mundo sem contradizer exatamente sua procura por enxergar para além das aparências.
Caso nos coloquemos numa perspectiva externa (digamos, a de um observador das
atividades culturais), podemos considerar que tudo o que há são filosofias. Entretanto, ao
examinarmos a questão de um ponto de vista interno (a saber, a perspectiva do próprio agente
social que se sente convocado para a empresa da investigação filosófica), então há filosofia.
Existe ademais um critério geral para distinguir, por exemplo, uma ―crença‖ de uma Filosofia,
porquanto a filosofia, ao contrário da mera crença, apresenta-se fundamentada em boas razões
e argumentos. E a prática daquele agente social poderá ser considerada filosófica quando
justificada. À multiplicidade real de linhas e orientações filosóficas e ao grande número de
problemas herdados da grande tradição cultural filosófica, somam-se temas e problemas
novos e cada vez mais complexos em seus programas de pesquisa, produzindo-se em resposta
a isso um universo sempre crescente de novas teorias e posições filosóficas. No entanto, é
também verdade que essa dispersão discreta de um filosofar não nos pode impedir de
reconhecer o que há de comum em nosso trabalho: a especificidade da atividade filosófica
180
enquanto expressa, sobretudo, em sua natureza reflexiva.
Independentemente de como determinada orientação filosófica estiver configurada, ela
sempre resulta não tanto de uma investigação que tematiza diretamente este ou aquele objeto,
mas, sobretudo, de um exame de como os objetos nos podem ser dados, como eles se nos
tornam acessíveis. Mais do que o disposto à visão, a atividade filosófica privilegia um certo
―voltar atrás‖, um refletir por que a própria possibilidade e a natureza do imediatamente dado
se tornam alvo de interrogação. Observadas assim as diferenças de intenção nas várias
abordagens filosóficas, o conceito de reflexão, em geral, abarca duas dimensões distintas que
freqüentemente se confundem. Primeira: a reconstrução racional, quando o exame analítico se
volta para as condições de possibilidade de competências cognitivas, lingüísticas e de ação. É
nesse sentido que podem ser entendidas as lógicas, as teorias do conhecimento, as
epistemologias e todas as elaborações filosóficas que se esforçam para explicar teoreticamente
um saber pré-teórico que adquirimos à medida que nos exercitamos num dado sistema de
regras. Segunda: a crítica, quando a refl exão se volta para os modelos de percepção e de ação
compulsivamente restritos pelos quais, em nossos processos de formação individual ou
coletiva, nos iludimos a nós mesmos, de sorte que, por um esforço de análise, a reflexão
consegue flagrá-los em sua parcialidade, vale dizer, em
seu caráter propriamente ilusório. É nesse sentido que podemos compreender as tradições de
pesquisa do tipo da crítica da ideologia, das genealogias, da psicanálise, da crítica social e
todas as elaborações teóricas motivadas pelo desejo de alterar os elementos determinantes de
uma ―falsa‖ consciência e de extrair disso conseqüências práticas.
Em suma, a resposta de cada professor de Filosofia do ensino médio à pergunta ―que
filosofia?‖ sempre dependerá da opção por um modo determinado de filosofar que considere
justificado. Aliás, é relevante que ele tenha feito uma escolha categorial e axiológica a partir
da qual lê o mundo, pensa e ensina. Isso só tende a reforçar sua credibilidade como professor
de Filosofia, uma vez que não lhe falta um padrão, um fundamento a partir do qual pode dar
início a qualquer esboço de crítica. Por certo, há talvez Filosofias mais ou menos críticas sem
que isso diminua a importância formadora e sempre algo corrosiva de todo filosofar. No
entanto, independentemente da posição adotada (sendo pressuposto que o professor se
responsabilize por ela), ele só pode pretender ver bons frutos de seu trabalho docente na justa
medida do rigor com que operar a partir de sua escolha filosófica – um rigor que, certamente,
varia de acordo com o grau de formação cultural de cada um e deve ser de todo diverso de
uma doutrinação.
Compreendendo a noção de ―Filosofia‖ desse modo, a um só tempo lábil e rigoroso,
181
devemos convir que a noção de ―cidadania‖ não escapa de opções filosóficas, não sendo
assim um conceito unívoco, nem um mero ponto de partida fi xo e de todo estabelecido. Em
verdade, tal noção aparece como um resultado de um processo filosófico, sendo ele mesmo
travado por nossa reflexão. Em todo caso, conservando uma ampla margem para produtivas
redefinições filosóficas, o termo torna-se mais um desafio para uma disciplina formadora e
menos um conjunto de informações doutrinárias que decoraríamos como a um hino patriótico.
Tendo em conta a necessidade de se esboçar alguma correlação entre conhecimentos
de Filosofia e uma concepção de cidadania presente na legislação vigente, podemos tomar
como ponto de partida o explicitado como cidadania nos documentos das Diretrizes
Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Assim, o Artigo 2º da Resolução CEB nº 3, de
26 de junho de 1998, reporta-nos aos valores apresentados na Lei nº 9.394, a saber:
I. os fundamentais ao interesse social, aos direitos e deveres dos cidadãos, de respeito ao bem
comum e à ordem democrática;
II. os que fortaleçam os vínculos de família, os laços de solidariedade humana e de tolerância
recíproca.
Tendo em vista a observância de tais valores, o Artigo 3o da mesma Resolução exortanos à coerência entre a prática escolar e princípios estéticos, políticos e éticos, a saber:
I. a Estética da Sensibilidade, que deverá substituir a da repetição e padronização,
estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo inusitado e a afetividade,
bem como facilitar a constituição de identidades capazes de suportar a inquietação, conviver
com o incerto e o imprevisível, acolher e conviver com a diversidade, valorizar a qualidade, a
delicadeza, a sutileza, as formas lúdicas e alegóricas de conhecer o mundo e fazer do lazer, da
sexualidade e da imaginação um exercício de liberdade responsável;
II. a Política da Igualdade, tendo como ponto de partida o reconhecimento dos direitos
humanos e dos deveres e direitos da cidadania, visando à constituição de identidades que
busquem e pratiquem a igualdade no acesso aos bens sociais e culturais, o respeito ao bem
comum, o protagonismo e a responsabilidade no âmbito público e privado, o combate a todas
as formas discriminatórias e o respeito aos princípios do Estado de Direito na forma do
sistema federativo e do regime democrático e republicano;
III. a Ética da Identidade, buscando superar dicotomias entre o mundo da moral e o mundo da
matéria, o público e o privado, para constituir identidades sensíveis e igualitárias no
testemunho de valores de seu tempo, praticando um humanismo contemporâneo, pelo
reconhecimento, pelo respeito e pelo acolhimento da identidade do outro e pela incorporação
da solidariedade, da responsabilidade e da reciprocidade como orientadoras de seus atos na
182
vida profissional, social, civil e pessoal.
Independentemente, neste momento, de qualquer avaliação acerca da concepção que
se apresenta na legislação, cabe ressaltar, em primeiro lugar, que seria criticável tentar
justificar a Filosofia apenas por sua contribuição como um instrumental para a cidadania.
Mesmo que pudesse fazê-lo, ela nunca deveria ser limitada a isso. Muito mais amplo é, por
exemplo, seu papel no processo de formação geral dos jovens. Em segundo lugar, deve-se ter
presente, em função da própria legislação, que a formação para a cidadania, além da
preparação básica para o trabalho, é a finalidade síntese da educação básica como um todo
(LDB, Artigo 32) e do ensino médio em especial (LDB, artigo 36). Não se trata, portanto, de
um papel particular da disciplina Filosofia, nesse conjunto, oferecer um tipo de formação que
tenha por pressuposto, por exemplo, incutir nos jovens os valores e os princípios
mencionados, nem mesmo assumir a responsabilidade pela formação para a solidariedade ou
para a tolerância. Tampouco caberia a ela, isoladamente, ―o aprimoramento do educando
como pessoa humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia
intelectual e do pensamento crítico‖ (LDB, artigo 35, inciso III). Uma vez que é possível
formar cidadãos sem a contribuição formal da Filosofi a, seria certamente um erro pensar que
a ela, exclusivamente, caberia tal papel, como se fosse a única disciplina capaz de fazê-lo,
como se às outras disciplinas coubesse o ensinamento de conhecimentos técnicos e a ela o
papel de formar para uma leitura crítica da realidade. Esse é na verdade um papel do conjunto
das disciplinas e da política pública voltada para essa etapa da formação.
Não se trata, portanto, de a Filosofia vir a ocupar um espaço crítico que se teria
perdido sem ela, permitindo-se mesmo um questionamento acerca de sua competência em
conferir tal capacidade ao aluno. Da mesma maneira, não se pode esperar da Filosofia o
cumprimento de papéis anteriormente desempenhados por disciplinas como Educação Moral
e Cívica, assim como não é papel da Filosofia suprir eventual carência de um ―lado
humanístico‖ na formação dos estudantes. A pergunta que se coloca é: qual a contribuição
específi ca da Filosofia em relação ao exercício da cidadania para essa etapa da formação? A
resposta a essa questão destaca o papel peculiar da filosofia no desenvolvimento da
competência geral de fala, leitura e escrita – competência aqui compreendida de um modo
bastante especial e ligada à natureza argumentativa da Filosofia e à sua tradição histórica.
Cabe, então, especificamente à Filosofia a capacidade de análise, de reconstrução racional e
de crítica, a partir da compreensão de que tomar posições diante de textos propostos de
qualquer tipo (tanto textos filosóficos quanto textos não filosóficos e formações discursivas
não explicitadas em textos) e emitir opiniões acerca deles é um pressuposto indispensável
183
para o exercício da cidadania.
Neste ponto, em que se procura a confluência entre a especifi cidade da Filosofia e seu
papel formador no ensino médio, cabe enfatizar um aspecto peculiar que a diferencia de
outras áreas do saber: a relação singular que a Filosofia mantém com sua história, sempre
retornando a seus textos clássicos para descobrir sua identidade, mas também sua atualidade e
sentido. Com efeito, se estudamos a obra teórica de um sociólogo como Weber ou Durkheim,
dizemos estar fazendo teoria sociológica. Tão íntima, porém, é a relação entre a Filosofi a e
sua história que seria absurdo dizer que estudando Kant ou Descartes estejamos fazendo algo
como uma teoria filosófica, pois é na leitura de textos filosóficos que se constituem
problemas, vocabulários e estilos de fazer simplesmente Filosofia. E isso se aplica tanto para
a pesquisa em Filosofia quanto para seu ensino. Mais ainda,
[...] não é possível fazer Filosofia sem recorrer a sua própria história.
Dizer que se pode ensinar filosofia apenas pedindo que os alunos
pensem e reflitam sobre os problemas que os afligem ou que mais
preocupam o homem moderno sem oferecer-lhes a base teórica para o
aprofundamento e a compreensão de tais problemas e sem recorrer à
base histórica da reflexão em tais questões é o mesmo que numa aula
de Física pedir que os alunos descubram por si mesmos a fórmula da
lei da gravitação sem estudar Física, esquecendo-se de todas as
conquistas anteriores naquele campo, esquecendo-se do esforço e do
trabalho monumental de Newton (NASCIMENTO, Milton, apud SILVEIRA,
René, Um sentido para o ensino de Filosofi a no ensino médio, p. 142.)
É salutar, portanto, para o ensino da Filosofia que nunca se desconsidere a sua história,
em cujos textos reconhecemos boa parte de nossas medidas de competência e também
elementos que despertam nossa vocação para o trabalho filosófico. Mais que isso, é
recomendável que a história da Filosofia e o texto filosófico tenham papel central no ensino
da Filosofia, ainda que a perspectiva adotada pelo professor seja temática, não sendo
excessivo reforçar a importância de se trabalhar com os textos propriamente filosóficos e
primários, mesmo quando se dialoga com textos de outra natureza, literários e jornalísticos,
por exemplo – o que pode ser bastante útil e instigante nessa fase de formação do aluno.
Porém, é a partir de seu legado próprio, com uma tradição que se apresenta na forma
amplamente conhecida como História da Filosofia, que a Filosofia pode proporse ao diálogo
com outras áreas do conhecimento e oferecer uma contribuição peculiar na formação do
educando.
OBJETIVOS DA FILOSOFIA NO ENSINO MÉDIO
A Filosofia deve compor, com as demais disciplinas do ensino médio, o papel proposto
184
para essa fase da formação. Nesse sentido, além da tarefa geral de ―pleno desenvolvimento do
educando, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualifi cação para o trabalho‖
(Artigo 2º da Lei nº 9.394/96), destaca-se a proposição de um tipo de formação que não é uma
mera oferta de conhecimentos a serem assimilados pelo estudante, mas sim o aprendizado de
uma relação com o conhecimento que lhe permita adaptar-se ―com fl exibilidade a novas
condições de ocupação ou aperfeiçoamento posteriores‖ (Artigo 36, Inciso II) – o que
significa, mais que dominar um conteúdo, saber ter acesso aos diversos conhecimentos de
forma signifi cativa. A educação deve centrar-se mais na idéia de fornecer instrumentos e de
apresentar perspectivas, enquanto caberá ao estudante a possibilidade de posicionar-se e de
correlacionar o quanto aprende com uma utilidade para sua vida, tendo presente que um
conhecimento útil não corresponde a um saber prático e restrito, quem sabe à habilidade para
desenvolver certas tarefas.
Há, com isso, uma importante mudança no foco da educação para o aluno, que,
tomando como ponto de partida a sua formação ou em termos mais amplos a constituição de
si, deve posicionar-se diante dos conhecimentos que lhe são apresentados, estabelecendo uma
ativa relação com eles e não somente apreendendo conteúdos. A Filosofia cumpre, afinal, um
papel formador, uma vez que articula noções de modo bem mais duradouro que outros
saberes, mais suscetíveis de serem afetados pela volatilidade das informações. Por
conseguinte, ela não pode ser um conjunto sem sentido de opiniões, um sem-número de
sistemas desconexos a serem guardados na cabeça do aluno que acabe por desencorajá-lo de
ter idéias próprias. Os conhecimentos de Filosofia devem ser para ele vivos e adquiridos
como apoio para a vida, pois do contrário difi cilmente teriam sentido para um jovem nessa
fase de formação.
Outro objetivo geral do ensino médio constante na legislação e de interesse para os
objetivos dessa disciplina é a proposição de ―aprimoramento do educando como pessoa
humana, incluindo a formação ética e o desenvolvimento da autonomia intelectual e do
pensamento crítico‖ (Lei nº 9.394/96, Artigo 36, Inciso III). Embora se trate de uma idéia
vaga, o aprimoramento como pessoa humana indica a intenção de uma formação que não
corresponda apenas à necessidade técnica voltada a atender a interesses imediatos, como por
exemplo do mercado de trabalho. Tratar-se-ia antes de um tipo de formação que inclua a
constituição do sujeito como produto de um processo, e esse processo como um instrumento
para o aprimoramento do jovem aluno.
O objetivo da disciplina Filosofia não é apenas propiciar ao aluno um mero
enriquecimento intelectual. Ela é parte de uma proposta de ensino que pretende desenvolver
185
no aluno a capacidade para responder, lançando mão dos conhecimentos adquiridos, as
questões advindas das mais variadas situações. Essa capacidade de resposta deve ultrapassar a
mera repetição de informações adquiridas, mas, ao mesmo tempo, apoiar-se em
conhecimentos prévios. Por exemplo, caberia não apenas compreender ciências, letras e artes,
mas, de modo mais preciso, seu significado, além de desenvolver competências
comunicativas intimamente associadas à argumentação. Ademais, sendo a formação geral o
objetivo e a condição anterior até mesmo ao ensino profissionalizante, o ensino médio deve
tornar-se a etapa final de uma educação de caráter geral, na qual antes se desenvolvem
competências do que se memorizam conteúdos.
COMPETÊNCIAS E HABILIDADES EM FILOSOFIA
Sob essa perspectiva formadora e de superação de um ensino meramente
enciclopédico, desenvolveu-se a idéia de um ensino por competências. Tal concepção, no
entanto, não pode ser admitida sem a denúncia da coincidência flagrante entre o perfil do
educando esboçado e, por exemplo, certos documentos do Banco Mundial. A flexibilização
aparece, então, sob outra luz, como competências que ―podem ser aplicadas a uma grande
variedade de empregos e permitir às pessoas adquirirem habilidades e conhecimentos específi
cos orientados para o trabalho, quando estiverem no local de trabalho‖. (BANCO MUNDIAL,
1995, p. 63, apud SANTIAGO, Anna, Política educacional, diversidade e cultura: a
racionalidade dos PCN posta em questão, p. 503). Nesse sentido, não se pode perder de vista
que a mesma lógica que introduz o conhecimento filosófico por ser útil não é distinta da que o
suprimiria por ser inconveniente. Em ambas as situações, o estudante é considerado
instrumento, ora perigoso, ora requintado. Em suma, mesmo que animado, um instrumento.
Deixaremos de lado, no entanto, neste momento, a afirmação sobre a coincidência
entre o desenvolvimento de competências cognitivas e culturais e o que se busca na esfera da
produção. Medir-se pelo que se espera é sempre delicado. Afinal, em uma sociedade desigual,
pode esperar-se também o desigual, ameaçando um processo global de formação que deveria
servir à correção da desigualdade. Afastado, porém, esse aspecto, a noção de competência
parece vir ao encontro do labor filosófico. Com efeito, ela é sempre interior a cada disciplina,
não havendo uma noção universal. Sendo da ordem das disposições, só pode ser lida e
reconhecida à luz de matrizes conceituais específicas. Em certos casos, a competência mostrase na elaboração de hipóteses, visando à solução de problemas. Em outros casos, porém, uma
vez que as competências não se desenvolvem sem conteúdos nem sem o apoio da tradição, a
competência pode significar a recusa de soluções aparentes por recurso ao aprofundamento
186
sistemático dos problemas.
A pergunta que se faz, portanto, é: de que capacidades se está falando quando se trata
de ensinar Filosofia no ensino médio? Da capacidade de abstração, do desenvolvimento do
pensamento sistêmico ou, ao contrário, da compreensão parcial e fragmentada dos
fenômenos? Trata-se da criatividade, da curiosidade, da capacidade de pensar múltiplas
alternativas para a solução de um problema, ou seja, do desenvolvimento do pensamento
crítico, da capacidade de trabalhar em equipe, da disposição para procurar e
aceitar críticas, da disposição para o risco, de saber comunicar-se, da capacidade de buscar
conhecimentos. De forma um tanto sumária, pode-se afirmar que se trata tanto de
competências comunicativas, que parecem solicitar da Filosofia um refinamento do uso
argumentativo da linguagem, para o qual podem contribuir conteúdos lógicos próprios da
Filosofia, quanto de competências, digamos, cívicas, que podem fixar-se igualmente à luz de
conteúdos filosóficos.
Podemos constatar, novamente, uma convergência entre o papel educador da Filosofia
e a educação para a cidadania que se postulou anteriormente. Os conhecimentos necessários à
cidadania, à medida que se traduzem em competências, não coincidem, necessariamente, com
conteúdos, digamos, de ética e de filosofia política. Ao contrário, destacam o que, sem dúvida,
é a contribuição mais importante da Filosofia: fazer o estudante aceder a uma competência
discursivo-filosófica. Espera-se da Filosofia, como foi apontado anteriormente, o
desenvolvimento geral de competências comunicativas, o que implica um tipo de leitura,
envolvendo capacidade de análise, de inter pretação, de reconstrução racional e de crítica.
Com isso, a possibilidade de tomar posição por sim ou por não, de concordar ou não com os
propósitos do texto é um pressuposto necessário e decisivo para o exercício da autonomia e,
por conseguinte, da cidadania.
Considerando-se em especial a competência para a leitura, a pergunta que se impõe é,
afinal, que competência de leitura não poderia ser desenvolvida, por exemplo, por um
profissional da área de Letras? O que seria um olhar especificamente filosófico? Não basta
dizer que é especificamente filosófico o olhar analítico, investigativo, questionador, reflexivo,
que possa contribuir para uma compreensão mais profunda da produção textual específica que
tem sob seu foco. Ora, nada impede que o cientista desenvolva um tal olhar. O fundamental
aparece a seguir, conferindo a marca de conteúdo e de método filosófico: é imprescindível
que ele tenha interiorizado um quadro mínimo de referências a partir da tradição filosófica, o
que nos conduz a um programa de trabalho centrado primordialmente nos próprios textos
dessa tradição, mesmo que não exclusivamente neles. Assim, quer como centro quer como
187
referência, para recuperar uma distinção do professor Franklin Leopoldo e Silva, a história da
Filosofia (não como um saber enciclopédico ou eclético) torna-se pedra de toque de nossa
especificidade.
Uma indicação clara do que se espera do professor de Filosofia no ensino médio pode
ser encontrada nas Diretrizes Curriculares aos Cursos de Graduação em Filosofi a e pela
Portaria INEP nº 171, de 24 de agosto de 2005, que instituiu o Exame Nacional de
Desempenho dos Estudantes (Enade) de Filosofia, que também apresenta as habilidades e as
competências esperadas do profi ssional responsável pela implementação das diretrizes para o
ensino médio:
a) capacitação para um modo especificamente filosófico de formular e propor soluções a
problemas, nos diversos campos do conhecimento;
b) capacidade de desenvolver uma consciência crítica sobre conhecimento, razão e realidade
sócio-histórico-política;
c) capacidade para análise, interpretação e comentário de textos teóricos, segundo os mais
rigorosos procedimentos de técnica hermenêutica;
d) compreensão da importância das questões acerca do sentido e da significação da própria
existência e das produções culturais;
e) percepção da integração necessária entre a Filosofia e a produção científica, artística, bem
como com o agir pessoal e político;
f) capacidade de relacionar o exercício da crítica filosófica com a promoção integral da
cidadania e com o respeito à pessoa, dentro da tradição de defesa dos direitos humanos.
Destacando ainda a mesma portaria, que o egresso do curso de Filosofia, seja ele
licenciado ou bacharel, deve apresentar uma sólida formação em História da Filosofia, que o
capacite a:
a) compreender os principais temas, problemas e sistemas filosóficos;
b) servir-se do legado das tradições filosóficas para dialogar com as ciências e as artes, e
refletir sobre a realidade;
c) transmitir o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e independente.
Tendo presente, pois, a grande harmonia, ao menos nominal, entre os dois níveis de
ensino, que se complementam e se solicitam, é de se esperar que um profissional assim
formado possa desenvolver no aluno do ensino médio competências e habilidades similares.
Essas competências, que terão importante papel formador no ensino médio, remetem
novamente àquilo que torna o exercício da filosofia diferente do exercício das profissões das
demais áreas do conhecimento, por mais que se assemelhem: o recurso à tradição filosófica.
188
Caso se tome, por exemplo, a primeira competência, a preparação para a ―capacitação para
um modo filosófico de formular e propor soluções de problemas‖ implica que o professor de
Filosofia tenha, em sua formação, familiaridade com a História da Filosofia – em especial,
com os textos clássicos. Esse deve ser seu diferencial, sua especificidade. Essa é a formação
que se tem nos cursos de Filosofia no país. Tanto na graduação quanto na pós-graduação, o
ponto de partida para a leitura da realidade é uma sólida formação em História da Filosofia,
mesmo que não seja esse o ponto de chegada.
É importante registrar que uma certa dicotomia muito citada entre aprender filosofia e
aprender a filosofar pode ter papel enganador, servindo para encobrir, muitas vezes, a
ausência de formação em véus de suspeita competência argumentativa de pretensos livrespensadores. Há de se concordar, nesse ponto, com Sílvio Gallo: ―Filosofia é processo e
produto ao mesmo tempo; só se pode filosofar pela História da Filosofia, e só se faz história
filosófica da Filosofia, que não é mera reprodução‖. A idéia é importante, pois deixa de opor o
conteúdo à forma, a capacidade para filosofar e o trato constante com o conteúdo filosófico,
tal como se expressa em sua matéria precípua – o texto filosófico. Aceitando essa tensa
relação entre conteúdo e forma, pode-se perceber a importância estratégica em se preservar a
correlação entre as competências propostas para a graduação e aquelas que se esperam em
relação ao estudante de ensino médio.
O texto das diretrizes para os Cursos de Graduação em Filosofia é cuidadoso –
defende um pensamento crítico, aponta para o exercício da cidadania e para a importância de
uma técnica exegética que permita um aprofundamento da reflexão. Entretanto, não antecipa
o resultado desse aprofundamento (no que se inclinaria de modo tendencioso) nem
o descola da tradição filosófica em que pode lograr sua especifi cidade. De fato, no espírito
desse documento, a tarefa do professor, ao desenvolver habilidades, não é incutir valores,
doutrinar, mas sim ―despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos
alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e
independente‖. O desafio é, então, manter a especifi cidade de disciplina, ou seja, o recurso ao
texto, sem ―objetivá-lo‖. O profi ssional bem formado em licenciatura não reproduzirá em
sala a técnica de leitura que o formou, transformando o ensino médio em uma versão
apressada da sua graduação. Ao contrário, tendo sido bem preparado na leitura dos textos fi
losófi cos, poderá, por exemplo, associar adequadamente temas a textos, cumprindo
satisfatoriamente a difícil tarefa de despertar o interesse do aluno para a reflexão filosófica e
de articular conceitualmente os diversos aspectos culturais que então se apresentam.
Sinteticamente, pode-se manter a listagem das competências e das habilidades a serem
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desenvolvidas em Filosofi a em três grupos:
1º) Representação e comunicação:
• ler textos filosóficos de modo significativo;
• ler de modo filosófico textos de diferentes estruturas e registros;
• elaborar por escrito o que foi apropriado de modo reflexivo;
• debater, tomando uma posição, defendendo-a argumentativamente e mudando de posição em
face de argumentos mais consistentes.
2º) Investigação e compreensão:
• articular conhecimentos filosóficos e diferentes conteúdos e modos discursivos nas ciências
naturais e humanas, nas artes e em outras produções culturais.
3º) Contextualização sociocultural:
• contextualizar conhecimentos filosóficos, tanto no plano de sua origem específica quanto em
outros planos: o pessoal-biográfico; o entorno sócio-político, histórico e cultural; o horizonte
da sociedade científi co-tecnológica.
CONTEÚDOS DE FILOSOFIA
Mais do que fornecer um roteiro de trabalho, este item apresenta sugestões de conteúdos para
aqueles que futuramente venham a preparar um currículo ou material didático para a
disciplina Filosofia no ensino médio. A lista que se segue tem por referência os temas
trabalhados no currículo mínimo dos cursos de graduação em Filosofia e cobrados como itens
de avaliação dos egressos desses cursos, ou seja, os professores de Filosofia para o ensino
médio. Trata-se de referências, de pontos de apoio para a montagem de propostas curriculares,
e não de uma proposta curricular propriamente dita. Dessa forma, não precisam todos ser
trabalhados, nem devem ser trabalhados de maneira idêntica à que costumam ser tratados nos
cursos de graduação, embora devam valer-se de textos filosóficos clássicos, cuidadosamente
selecionados, mesmo quando complementados por outras leituras e atividades. Os temas
podem ensejar a produção de materiais e dão um quadro da formação mínima dos professores,
a partir da qual podemos esperar um diálogo competente com os alunos. Outros temas de
feição assemelhada também podem propiciar a mesma ligação entre uma questão atual e uma
formulação clássica, um tema instigante e o vocabulário e o modo de argumentar próprios da
Filosofia, além de ligarem a formação específica do profissional que pode garantir a
disciplinaridade da Filosofi a com a formação pretendida do aluno:
1) Filosofia e conhecimento; Filosofia e ciência; definição de Filosofia;
190
2) validade e verdade; proposição e argumento;
3) falácias não formais; reconhecimento de argumentos; conteúdo e forma;
4) quadro de oposições entre proposições categóricas; inferências imediatas em contexto
categórico; conteúdo existencial e proposições categóricas;
5) tabelas de verdade; cálculo proposicional;
6) filosofia pré-socrática; uno e múltiplo; movimento e realidade;
7) teoria das idéias em Platão; conhecimento e opinião; aparência e realidade;
8) a política antiga; a República de Platão; a Política de Aristóteles;
9) a ética antiga; Platão, Aristóteles e fi lósofos helenistas;
10) conceitos centrais da metafísica aristotélica; a teoria da ciência aristotélica;
11) verdade, justificação e ceticismo;
12) o problema dos universais; os transcendentais;
13) tempo e eternidade; conhecimento humano e conhecimento divino;
14) teoria do conhecimento e do juízo em Tomás de Aquino;
15) a teoria das virtudes no período medieval;
16) provas da existência de Deus; argumentos ontológico, cosmológico, teleológico;
17) teoria do conhecimento nos modernos; verdade e evidência; idéias; causalidade; indução;
método;
18) vontade divina e liberdade humana;
19) teorias do sujeito na filosofia moderna;
20) o contratualismo;
21) razão e entendimento; razão e sensibilidade; intuição e conceito;
22) éticas do dever; fundamentações da moral; autonomia do sujeito;
23) idealismo alemão; filosofias da história;
24) razão e vontade; o belo e o sublime na Filosofia alemã;
25) crítica à metafísica na contemporaneidade; Nietzsche; Wittgenstein; Heidegger;
26) fenomenologia; existencialismo;
27) Filosofia analítica; Frege, Russell e Wittgenstein; o Círculo de Viena;
28) marxismo e Escola de Frankfurt;
29) epistemologias contemporâneas; Filosofi a da ciência; o problema da demarcação entre
ciência e metafísica;
30) Filosofia francesa contemporânea; Foucault; Deleuze.
A seqüência de temas acima perpassa a História da Filosofia. Desse conjunto, o
professor pode selecionar alguns tópicos para o trabalho em sala de aula. É importante ter em
191
mente que tal elenco propicia uma unidade entre o quadro da formação e o quadro do ensino,
desenhando possíveis recortes formadores, agora bem amparados em um novo arranjo
institucional.
A Filosofia é teoria, visão crítica, trabalho do conceito, devendo ser preservada como
tal e não como um somatório de idéias que o estudante deva decorar. Um tal somatório
manualesco e sem vida seria dogmático e antifilosófico, seria doutrinação e nunca diálogo.
Isto é, tornar-se-ia uma soma de preconceitos, recusando à Filosofia esse traço que julgamos
característico e essencial. Desse modo, cabe ensinar Filosofia acompanhando ou, pelo menos,
respeitando o movimento do pensar à luz de grandes obras, independentemente do autor ou da
teoria escolhida.
METODOLOGIA
Para que o aluno desenvolva as competências esperadas ao final do ensino médio, não
pode haver uma separação entre conteúdo, metodologia e formas de avaliação. Assim, uma
metodologia para o ensino da Filosofia deve considerar igualmente aquilo que é peculiar a ela
e o conteúdo específi co que estará sendo trabalhado. Seguem, então, algumas considerações
sobre procedimentos metodológicos que podem ser úteis na prática acadêmica. Como se sabe,
a metodologia mais utilizada nas aulas de Filosofia é, de longe, a aula expositiva, muitas
vezes com o apoio do debate ou de trabalhos em grupo. A grande maioria dos professores
adota os livros didáticos (manuais) ou compõe apostilas com formato semelhante ao do livro
didático; mesmo assim, valem-se da aula expositiva em virtude da falta de recursos mais ricos
e de textos adequados. Muitas vezes, o trabalho limita-se à interpretação e à contextualização
de fragmentos de alguns filósofos ou ao debate sobre temas atuais, confrontando-os com
pequenos textos filosóficos. Há, ainda, o uso de seminários realizados pelos alunos, pesquisas
bibliográfi cas e, mais ocasionalmente, o uso de música, poesia, literatura e filmes em vídeo
para sensibilização quanto ao tema a ser desenvolvido.
Em função de alguns elementos preponderantes, como o uso do manual e a aula
expositiva, é possível dizer que a metodologia mais empregada no ensino de Filosofia destoa
da concepção de ensino de Filosofia que se pretende. Em primeiro lugar, boa parte dos
professores tem formação em outras áreas (embora existam hoje bons cursos de graduação em
Filosofia em número sufi ciente para a formação de profissionais devidamente qualifi cados
para atuar em Filosofia no ensino médio), ou, sendo em Filosofia, não tem a oportunidade de
promover a desejável formação contínua (sem a qual a simples inclusão da Filosofia no
ensino médio pode ser ilusória e falha). Isso acarreta, em geral, um uso inadequado de
192
material didático, mesmo quando, eventualmente, esse tenha qualidade. Dessa forma, o texto
filosófico é, então, interpretado à luz da formação do historiador, do pedagogo, do geógrafo,
de modo que a falta de formação específica pode reduzir o tratamento dos temas filosóficos a
um arsenal de lugares-comuns, a um pretenso aprendizado direto do filosofar que encobre, em
verdade, bem intencionadas ou meramente demagógicas ―práticas de ensino espontaneístas e
muito pouco rigorosas, que acabam conduzindo à descaracterização tanto da Filosofia quanto
da educação‖.(SILVEIRA, René, Um sentido para o ensino de Filosofia no ensino médio, p.
139).
Para a realização de competências específi cas, que se têm sobretudo mediante a
referência consistente à História da Filosofia, deve-se manter a centralidade do texto fi losófi
co (primários de preferência), pois a Filosofia comporta ―um acervo próprio de questões, uma
história que a destaca sufi cientemente das outras produções culturais, métodos peculiares de
investigação e conceitos sedimentados historicamente‖. (LEOPOLDO E SILVA, Frankin apud
SILVEIRA, René, op cit., p. 139). Certamente, no desenvolvimento do modo especificamente
filosófico de apresentar e propor soluções de problemas, o exercício de busca e
reconhecimento de problemas filosóficos em textos de outra natureza, literários e
jornalísticos, por exemplo, não deixa de ser salutar, contanto que não se desloque, com isso, o
primado do texto filosófico.
Essa centralidade da História da Filosofia pode matizar um ponto que, ao contrário, se
afi gura bastante controverso, qual seja, a assunção de uma perspectiva filosófica pelo
professor. Certamente ninguém trabalha uma questão filosófica se situando fora de suas
próprias referências intelectuais, sendo inevitável que o professor dê seu assentimento a uma
perspectiva. Essa adesão, entretanto, tem alguma medida de controle na referência à História
da Filosofia, sem a qual seu labor tornar-se-ia mera doutrinação. Além disso, tendo esse pano
de fundo, mais que incutir valores o professor deve convidar os alunos à prática da reflexão. A
Filosofia, afinal, ao contrário do que se faria em qualquer tipo de doutrinação, deveria
instaurar procedimentos, como o de nunca dar sua adesão a uma opinião sem antes submetê-la
à crítica.
Na estruturação do currículo e mesmo no desenho das práticas pedagógicas da
disciplina, a centralidade da História da Filosofia tem ainda méritos adicionais: (i) solicita
uma competência profissional específica, de sorte que os temas próprios da Filosofia devam
ser determinados por uma tradição de leitura consolidada em cursos de licenciaturas próprios;
(ii) solicita do profissional já formado continuidade de pesquisa e formação especificamente
filosófi cas; (iii) evita a gratuidade da opinião, com a qual imperariam docentes malformados,
193
embora mais informados que seus alunos, suprimindo o lugar da refl exão e da autêntica
crítica; e (iv) determina ainda o sentido da utilização de recursos didáticos e de quem pode
usar bem esses recursos, de modo que sejam filosóficas as habilidades de leitura adquiridas.
Com efeito, sendo formado em Filosofia e tendo a História da Filosofia como referencial, essa
maior riqueza de recursos didáticos pode tornar as aulas do docente mais atraentes, e mais
fácil a veiculação de questões filosóficas. Garantidas as condições teóricas já citadas, é
desejável e prazerosa a utilização de dinâmicas de grupo, recursos audiovisuais,
dramatizações, apresentação de filmes, trabalhos sobre outras ordens de texto, etc., com o
cuidado de não substituir com tais recursos ―os textos específi cos de Filosofia que abordem
os temas estudados, incluindo-se aqui, sempre que possível, textos ou excertos dos próprios
filósofos, pois é neles que os alunos encontrarão o suporte teórico necessário para que sua
reflexão seja, de fato, filosófica‖. (SILVEIRA, René, op. cit., p. 143.)
Pensar a especificidade em termos de um ensino anterior à graduação remete-nos
novamente à questão de como deve ocorrer o ensino da Filosofia nesse universo específico
que é o do ensino médio. Nesse ponto, o amadurecimento das reflexões acerca do que é
genuinamente próprio da Filosofia também em termos de metodologia implica, por um lado,
buscar um equilíbrio entre a complexidade de algumas questões de Filosofia e as condições de
ensino encontradas, e, por outro, evitar posições extremadas, que, por exemplo, (i) nos fariam
transpor para aquele nível de ensino uma versão reduzida do currículo da graduação e a
mesma metodologia que se adota nos cursos de graduação e pós-graduação em Filosofia ou
(ii), ao contrário, procurando torná-la acessível, nos levariam a falseá-la pela banalização do
pensamento filosófico.
A diferença em relação à graduação, no entanto, não pode significar uma espécie de
ecletismo no ensino da Filosofia. O que corresponderia a uma espécie de saída de emergência
para professores sem formação devida, como se fora um recurso de pleno bom senso,
residindo aí seu maior perigo. Em versão mais generosa, o ecletismo afi rmaria apenas a parte
positiva das doutrinas, suprimindo qualquer negatividade. Assim, por exemplo, diante da
divergência entre intelectualistas e empiristas, concederia razão a ambas as correntes.
Entretanto, sob qual perspectiva pode alguém separar o positivo do negativo? Ocultadas por
aparente bom senso, seriam urdidas sínteses filosóficas precárias. Não tendo valores precisos,
nem sendo bem formado e, mais ainda, usando expedientes para ocultar-se
no debate, um professor de Filosofi a cumpriria, assim, limitado papel formador. Supõe-se,
portanto, que o professor com honestidade intelectual deva situar-se em uma perspectiva
própria, o que indica maturidade e boa formação. Assim, em vez de uma posição soberana que
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pretenda suprimir o próprio debate filosófico, parece necessário retornar, também com
perspectivas próprias, ao debate e a textos selecionados que sirvam de fundamento à reflexão.
Tomando-se como ponto de partida as mesmas Diretrizes Curriculares para os Cursos
de Graduação em Filosofia que norteiam a formação dos professores para o ensino de
Filosofia no nível médio, tem-se a seguinte caracterização do licenciado em Filosofia: ―O
licenciado deverá estar habilitado para enfrentar com sucesso os desafi os e as dificuldades
inerentes à tarefa de despertar os jovens para a reflexão filosófica, bem como transmitir aos
alunos do ensino médio o legado da tradição e o gosto pelo pensamento inovador, crítico e
independente‖. Nesse universo de jovens e adolescentes, é imprescindível despertar o
estudante para os temas clássicos da Filosofia e orientá-lo a buscar na disciplina um recurso
para pensar sobre seus problemas. Em todos esses níveis, no entanto, não se pode perder de
vista a especificidade da Filosofia, sob pena de se ter uma estranha concorrência do
profissional de Filosofia com o de Letras, Antropologia, Sociologia ou Psicologia, entre
outros. Diferentemente, ciente do que lhe é próprio, o profissional de Filosofia poderá
desenvolver projetos em conjunto, inclusive com temas transversais e interdisciplinares,
enriquecendo o ensino e ―estimulando a criatividade, o espírito inventivo, a curiosidade pelo
inusitado e a afetividade‖.
Participação ativa na formação do jovem e capacidade para o diálogo com outras áreas
do conhecimento pressupõem, como já foi visto aqui, que o professor de Filosofia não perca
de vista a especifi cidade de sua própria área. Por outro lado, para bem cumprir sua tarefa, não
bastará ter em conta seu próprio talento, pois inserirá seu trabalho em um novo contexto para
a Filosofia no país, em que se ligam esforços os mais diversos, inclusive para sanar o dano
histórico resultante da ausência da Filosofia. Com isso, devemos reconhecer que está se
abrindo para o ensino de Filosofia um novo tempo, no qual não se frustrarão nossos esforços
na medida em que reconhecermos a importância da formação contínua dos docentes de
Filosofia no ensino médio, bem como o esforço coletivo de reflexão e de produção de novos
materiais. É preciso, assim, estarmos à altura da elevada qualidade que deve caracterizar o
trabalho de profi ssionais da Filosofia, quando já se pode afi rmar, alterando uma antiga
diretriz, que ―as propostas pedagógicas das escolas deverão, obrigatoriamente, assegurar
tratamento disciplinar e contextualizado para os conhecimentos de Filosofia‖.
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