E quem disse que peão também não é gay? – A Representação da Homossexualidade na Telenovela América Caio Barbosa1 Resumo O texto analisa a representação da homossexualidade na telenovela América, que apresentou, em sua trama, os personagens homossexuais Júnior e Zeca. Percebemos que, no discurso dessa telenovela, existe uma reafirmação da heterossexualidade compulsória. No entanto, notamos que a autora Glória Perez conseguiu dar um tratamento humanístico às personagens gays, enriquecendo, dessa forma, um discurso de aceitação das identidades sexuais que fogem das normas. Palavras-chave: Telenovela - Teoria queer - Homossexualidade - Heteronormatividade Introdução A análise da telenovela América é produto de uma pesquisa que está sendo realizada no interior do grupo Cultura e Sexualidade (CUS), do CULT (Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura), sediado na Universidade Federal da Bahia (UFBA, sob coordenação do Prof. Dr. Leandro Colling2. O objetivo central da pesquisa é elaborar um panorama analítico das telenovelas da Rede Globo que apresentaram personagens gays em suas tramas. A partir do diagnóstico formado pela comparação das diferentes representações que foram feitas desde a década de 70 – 1974 foi o ano da primeira aparição de um personagem homossexual na telenovela Rebu –, objetiva-se propor a criação de políticas públicas que permeiem a questão da diversidade sexual. Com base na crítica que tecem os teóricos queer contra a heteronormatividade, acreditamos que, desde quando sejam humanizados, os personagens afetados e afeminados não só podem como devem aparecer nas telenovelas, até porque esses indivíduos não são criações fictícias. Eles existem corporificados e em grande número na sociedade. 1 Graduando em Comunicação pela UFRB, pesquisador do Núcleo de Estudos em Sociedade, Poder e Cultura da UFRB e bolsista PIBIC/UFRB. [email protected] 2 Professor do Programa Multidisciplinar de Pós-graduação em Cultura e Sociedade da Facom/UFBA. Pesquisador associado ao CULT, onde coordena o grupo de pesquisa Cultura e Sexualidade (CUS). Doutor em Comunicação pela Facom/UFBA. [email protected] Chamamos de personagens humanizados aqueles que, mesmo desviando a norma heterossexual, não são tidos como perigosos, desordeiros ou que não são utilizados como objetos de chacota. Isso porque, como afirma Guacira Lopes, geralmente, gays e lésbicas e qualquer outro grupo desviante “(...) são considerados transgressores e, então, desvalorizados e desacreditados” (Louro, 2004, p. 87). Judith Butler vai falar ainda que esses indivíduos desviantes são completamente descaracterizados enquanto seres humanos, restando-lhes a abjeção. Esta matriz excludente pela qual os sujeitos são formados exige, pois, a produção simultânea de um domínio de seres abjetos, aqueles que ainda não são “sujeitos”, mas que formam o exterior constitutivo relativamente ao domínio do sujeito. O abjeto designa aqui precisamente aquelas zonas “inóspitas” e “inabitáveis” da vida social, que são, não obstante, densamente povoadas por aqueles que não gozam do status de sujeito (...) (Butler, 2001, p. 155). Como demonstra a análise que se segue, em América, as personagens Júnior e Zeca foram humanizadas, mas pensadas inseridas no modelo heteronormativo de representação. O sistema heteronormativo de representação seria aquele que apresenta as personagens exclusivamente a partir de características heterossexuais de conduta. Nesse sentido, os indivíduos podem ser gays, mas devem recusar performances – vestimenta, modo de falar, preferências profissionais, entre outras – de outros gêneros que não o masculino e o feminino. Um casal gay heteronormativo, por exemplo, pode trabalhar o relacionamento deles com a divisão de papéis de homem e de mulher, mesmo sendo os dois do mesmo sexo. Esse esquema é fruto de reflexões sobre heteronormatividade. Guacira Lopes vai dizer que a heteronormatividade se dá pela “(...) constante reiteração das normas sociais regulatórias, a fim de garantir a identidade sexual legitimada” (Lopes, 2001, p. 49). Sobre normas regulatórias, Butler vai comentar que elas: “(...) trabalham de uma forma performativa para construir a materialidade dos corpos e, mais especificamente, para materializar o sexo do corpo, para materializar a diferença sexual a serviço da consolidação do imperativo heterossexual” (Butler, 2001, p. 154). Logo, o sistema heteronormativo seria uma prática regulatória de normas. A seguir, apresentamos a análise da telenovela. Análise Dados gerais do produto Título: América Diretor: Jayme Monjardim (até abril de 2005), Marcos Schechtman, Marcelo Travesso, Teresa Lampreia, Federico Bonani e Carlo Milani ( Autor: Daniela Perez Elenco principal: Deborah Seco (Sol), Murilo Benício (Tião) e Lúcia Veríssimo (Gil). Elenco mais diretamente ligado com a temática homossexual: Bruno Gagliasso (Júnior), Eram Cordeiro (Zeca), Eliane Giardini (Neuta). Tempo de exibição: 14 de março a 5 de novembro de 2005. Ao total, foram 203 capítulos, exibidos sempre às 21h. Cada capítulo tinha duração de 60 minutos, exceto às quartas-feiras. Resumo do enredo: A história central da novela é a de Sol, uma garota da Zona Norte do Rio de Janeiro que sonha com uma mudança de vida radical através de uma viagem para os Estados Unidos da América. Sol passa um tempo tentando conseguir um visto para embarcar e não consegue. Daí, ela decide entrar no país ilegalmente e acaba presa. Sol foge da prisão e consegue um visto de permanência no país através de um casamento. No Brasil, Sol tinha deixado um peão apaixonado, Tião. O sonho do rapaz era ficar rico em Boiadeiros, no interior de São Paulo, e montar uma fazenda, vontade de seu falecido pai. Ao longo da trama, Tião vai ganhando habilidades no mundo dos rodeios. Seu principal desafio era enfrentar o touro Bandido, que ninguém tinha conseguido montar até então. As personagens Júnior e Zeca compõem uma trama paralela da novela. Júnior chega à fazenda da mãe em Boiadeiros para passar uma temporada após uma estadia que fez na cidade grande. A viúva Neuta esperava ansiosa pela chegada do filho. Segundo ela, Júnior era inteligente, bonito, muito macho e bom de rodeio. As marias breteiras3, afilhadas de Neuta, Detinha (Samara Felippo), Bebela (Christiana Kalache), Maria Ellis (Sílvia Buarque) e Penha (Carolina Macieira) ficaram assanhadíssimas com a propaganda do garotão. Mas, quando o rapaz chegou, a imagem do peão forte e másculo logo se desfez. Júnior era realmente bonito, mas não era brabo como a viúva Neuta havia descrito e não levava jeito algum para a vida entre bois e cavalos. 3 Maria breteira: “Refere-se à mulher que tem especial interesse em namorar peões de rodeio” (Wikipédia). De início, as afilhadas da viúva se decepcionaram. Júnior não demonstrava interesse por nenhuma delas. Porém, com o passar do tempo, eles se tornaram amigos. Quando não estava com a mãe por perto, ele maquiava as marias breteiras. Júnior sonhava em ser maquiador e estilista. Ele até tinha uma coleção de desenhos de manequins feitos por ele mesmo. O desejo da viúva Neuta era ver Júnior como um famoso montador de touros, substituindo assim o pai, o falecido Roberto Sinval Fontes. A viúva fazia de tudo para enquadrar o filho no perfil do falecido, que ela elogiava para todos como um excelente pai e marido, batalhador, respeitador e amigo de todos. Em uma das passagens, Neuta comprou um cavalo para Júnior, dizendo que o animal era muito parecido com um que o seu pai teve no passado. Júnior ficou apavorado com o fato de não saber montar o animal. Por muitas vezes, fingiu febres e alergias para não montar o cavalo. Até que Maria Ellis pediu ao peão Tião que desse umas aulas de montaria ao garoto. Depois das aulas e ainda muito medroso, o rapaz montou o cavalo. Tirou até uma foto para mostrar para a viúva Neuta, que ficou muito orgulhosa do filho. Ela não desistia de acreditar que tinha posto no mundo um macho brabo. O engraçado é que, durante as aulas de montaria, Júnior ficou fascinado com a beleza e desenvoltura do peão Tião, o que já dava indícios da atração que o rapaz tinha por homens. Ainda no início da trama, Maria Ellis apareceu grávida repentinamente. Neuta investigou quem seria o pai. Entre os candidatos prováveis, estiveram o domador de cavalos Carrerinha (Matheus Nachtergaele) e o “peão de vitrine” Waldomiro (Eri Johnson) – ele se fantasiava de peão, mas, na verdade, morria de medo dos bois. Os dois negaram a paternidade. Pressionada e temendo ser devolvida aos pais pela madrinha Neuta, Maria Ellis disse que o pai do seu filho era Júnior. O garoto, apesar de desajeitado, não desmentiu a amiga, que já havia “livrado sua barra” com as aulas de montaria. No entanto, Maria Ellis estava esperando um filho de um homem casado. Jamais teria acontecido algo entre ela e Júnior. A viúva Neuta ficou muito emocionada e feliz com a notícia de que seria avó. Logo, arquitetou o casamento do filho. O rapaz ficou apavorado. Ele sentia que era gay, mas vivia reprimido por conta do conservadorismo da mãe. Dessa forma, ele sustentava a idéia de que era heterossexual. Em muitas cenas, Júnior aparece deitado em seu quarto, pensativo. Chorava e indagava-se sobre o que era de fato e o que faria para não decepcionar a mãe que tanto amava. Pressionados pela idéia do casamento, Júnior e Maria Ellis conversaram sobre o assunto e ela falou ao garoto que sabia que ele não gostava de mulher, mas que o casamento poderia ser uma solução para a vida dos dois. De início, Júnior ficou magoado com o que Maria Ellis pensava ao seu respeito. Contudo, no fundo, ele tinha consciência da sua real situação e achou que poderia se dar bem se a mãe acreditasse que ele casaria com uma mulher. Então, Júnior e Maria Ellis subiram ao altar. A cerimônia foi simples. Os noivos estavam vestidos por roupas desenhadas pelo próprio Júnior. Neuta jamais soube disso. Ele disse que uma amiga teria feito os trajes. Mas, a verdade é que o rapaz desenvolvia sua afeição pela costura. Depois da cerimônia, os recém-casados, principalmente o noivo, detestaram a idéia de dividir a mesma cama. Mas os dias passaram e eles conseguiram sustentar a farsa de que eram de fato marido e mulher. Algumas vezes, os dois conversavam sobre a questão. Maria Ellis insistia na idéia de que Júnior deveria assumir suas verdadeiras vontades para ser feliz. O rapaz sabia o que era melhor para si, mas temia as conseqüências. Ele não pretendia de forma alguma magoar a viúva Neuta. Mãe e filho não eram compreensivos. Neuta percebia que Júnior não correspondia ao perfil que ela desejava, mas se fazia alheia ao fato. Ela chegava a ser intolerante quando forçava o garoto a assumir uma identidade que não era a sua. Júnior não se sentia bem com a situação, mas também não concordava com a conduta da mãe. Ele acreditava que por ser viúva, ela não deveria manter relação alguma com o outro homem, em respeito à imagem do pai. Independente e bonita, Neuta despertava a atração de muitos dos peões de Boiadeiros. Júnior sentia ciúmes da mãe e chegou a ficar bravo quando percebeu que existia um burburinho entre ela e Dinho (Murilo Rosa), peão parceiro de Tião. O pior é que, com o desenrolar da trama, Dinho e Neuta vivem uma paixão, deixando Júnior mais enciumado ainda. No início do namoro, muitas vezes, Dinho fugia apressado do quarto da viúva para não ser pego por Júnior. Certo dia, Júnior conhece Kerry (Marisol Ribeiro). A jovem é filha de Irene (Daniela Escobar), inconseqüente que gastava fortunas em jóias e roupas, e Laerte (Humberto Martins), dono de terras que vivia uma rixa com Tião – eles disputavam terrenos. Kerry ficou encantada com Júnior. Segundo ela, eles tinham gostos parecidos. Depois que se conheceram, os dois passaram a se ver com freqüência. Kerry ia sempre visitar o garoto na fazenda da viúva Neuta. Era uma forma de a menina fugir da vida conturbada dos pais. Mas ela estava apaixonada por Júnior também e a paixão crescia a cada encontro. Mesmo com o casamento de farsa, Maria Ellis ficava com uma ponta de ciúme da amizade do suposto marido e Kerry. Ela sentia que a garota queria algo a mais e chegou a alertar Júnior sobre o assunto. Maria Ellis dizia que ele poderia magoar Kerry por não gostar de fato de mulheres. Mas o garoto não seguia os conselhos da esposa. O que se pode perceber é que Júnior vivia um conflito quanto a sua sexualidade e se empolgava com qualquer situação que pudesse esconder sua homossexualidade. Júnior e Kerry acabam ficando numa festa de rodeio – essas festas eram recorrentes nas cenas da novela. Quando soube do fato, Maria Ellis ficou um pouco chateada, mas, como não vivia uma relação concreta com Júnior, não chegou a ter um aborrecimento sério com o rapaz. No entanto, um problema ainda seria criado entre Júnior e Kerry. O rapaz poderia tentar, mas não conseguiria fugir do seu verdadeiro comportamento sexual e Kerry sofreria com uma desilusão amorosa. O tempo passa e Maria Ellis dá a luz à criança que estava esperando. A viúva Neuta não conseguia se conter da tamanha alegria que sentia. Logo que viu o garoto, decidiu que ele se chamaria Roberto Sinval Neto, levando o nome dos supostos avô e pai. O bebê passou a ser chamado na fazenda de Sinvalzinho. Depois de recuperada do parto, Maria Ellis decidiu dar um fim à farsa que vivia com Júnior, fugindo da fazenda para a cidade grande. A justificativa dela era de que estava apaixonada por um rico peão e não queria mais atrapalhar a vida do rapaz. Ela acreditava que ele precisava buscar meios para se assumir. Júnior ficou desesperado com a possibilidade de levar má fama em Boiadeiros por ter sido abandonado pela mulher. Quem já desconfiava da sua sexualidade, poderia ver ali uma prova concreta de que o rapaz era gay. Para amenizar a situação, Maria Ellis deixou um bilhete para a madrinha Neuta, dizendo que estava fugindo por não agüentar o assédio das mulheres com Júnior e a falta de respeito dele, que correspondia às paqueras. Neuta ficou chateada com a separação, mas, ao mesmo tempo, muito orgulhosa da masculinidade do filho. Enrustindo a sua homossexualidade e pensando sempre em não magoar a mãe, Júnior disse a Maria Ellis que conquistaria Kerry. Quando soube que o rapaz estava solteiro, Kerry ficou esperançosa. Ela sonhava em ter algo mais sério com o filho da viúva. Para felicidade dela, os dois começaram a namorar. A garota parecia andar nas nuvens de tanto amor. Júnior estava empolgado com a situação e até gostava de Kerry, o que ele não sentia realmente era atração sexual. Por isso, não era sempre que ele queria estar ao lado dela. Em uma das festas de rodeio, por exemplo, Júnior bebeu demais e usou a bebedeira como desculpa para não dormir com a garota. Kerry esteve na fazenda e Júnior mandava alguém dizer que ele estava dormindo. Kerry ficava intrigada com o comportamento do namorado, mas logo se confortava com o fato de estar apaixonada e de já manter um relacionamento com ele. Júnior estava angustiado. Volta e meia, ele se trancava no quarto e, chorando, lembrava dos conselhos que Maria Ellis havia lhe dado quanto a sua sexualidade. O fato de esconder que era gay já estava ficando insuportável. O pior é que a viúva Neuta continuava entusiasmada com a suposta masculinidade do filho e orgulhava-se de ver Kerry correndo atrás do rapaz. Os indícios de que Júnior ainda se assumiria algum dia ficavam cada vez mais fortes. Um dia, por exemplo, ele comprou uma revista de nu masculino. A capa era de Cadu (Rafael Calomeni), o namorado de Gil, famosa em Boiadeiros por comandar sozinha uma grande fazenda. A situação de Júnior ficou complicada porque as afilhadas de Neuta encontraram a revista nas coisas do rapaz. Ele se justificou dizendo ter comprado a revista por conhecer Cadu de algum lugar. Depois do incidente, Júnior tratou logo de fortalecer ainda mais a relação com Kerry, jurando para a garota gostar muito dela. Porém, mais uma vez, Júnior acabou rejeitando transar com a namorada. A moça conseguiu ir dormir na fazenda e chegou até a se insinuar para o namorado, mas ele preferiu passar a noite toda só de mãos dadas. Ainda assim, a farsa do namoro continuou e, um dia, Júnior esboçou uma cena de ciúmes da namorada enquanto ela conversava com Deco (Lucas Lins e Silva), amigo do deficiente visual Jatobá (Marcos Frota). Kerry segredava sua vivência amorosa com Júnior para Simone (Gabriela Duarte), veterinária dos rodeios que se relacionou com o peão Tião a partir de certo ponto da trama. Simone notava que tinha algo de estranho com Júnior, mas ficava feliz em saber que a amiga Kerry estava cada vez mais apaixonada pelo rapaz. Mesmo assim, ela aconselhava Kerry para que ela estivesse sempre analisando o comportamento do namorado. Júnior conseguiu mentir sobre sua sexualidade até que chegasse à fazenda uma referência masculina, Zeca. Bonito, másculo e atraente, o peão chegou em Boiadeiros para trabalhar para a viúva Neuta. Ele cuidaria do touro Bandido. Em conversas, os rapazes descobriram que tinham várias afinidades. Acabou nascendo uma forte amizade. Neuta não se agradava do grude dos dois. Por isso, ela estava sempre rondando os quantos da fazenda em busca de Júnior e, quando o encontrava de conversa com Zeca, fazia o possível para separá-los. Uma das medidas adotadas pela viúva, por exemplo, era a de sempre perguntar ao filho sobre a namorada. Neuta chegou a indicar a Júnior que ele se casasse com Kerry. O rapaz disse que não faria aquilo por não ser apaixonado pela garota. Mesmo vivendo nesse contexto de repressão, Júnior não demorou em se apaixonar pelo bonito e másculo Zeca. Mas teve de esconder a paixão, pelo menos inicialmente. Júnior morria de ciúmes do peão. Zeca era constantemente assediado pelas afilhadas da viúva. As estavam sempre se jogando para ele. Nervoso em pensar que poderia ver Zeca namorando uma garota, Júnior cortava as investidas que as meninas davam em seu peão. Chateadas, elas se perguntavam por que Júnior ficava irritado com o assédio com Zeca. De início, o peão não demonstrava qual era a sua real intenção com Júnior. No entanto, o tempo pôde revelar que Zeca queria em intensificar a relação com o rapaz. As conversas a sós eram cada vez mais freqüentes. Zeca passou a ser confidente de Júnior. Até mesmo o fato de gostar do mundo dos rodeios, idéia que Júnior sustentava para a mãe, ele confidenciou ser mentira para Zeca. O rapaz o aconselhava a assumir a verdade e viver como desejava de fato. Júnior ficava cada vez mais angustiado, mas passou a tomar certas atitudes que denunciavam que, o mais cedo possível, ele estaria mostrando quem realmente era. Uma das atitudes foi terminar o namoro com Kerry. A garota ficou arrasada com a situação. Júnior foi sincero, dizendo estar apaixonado por uma outra pessoa. Kerry lhe perguntou quem era, se era alguma das meninas das festas de rodeios ou alguma das afilhadas de Neuta, mas o rapaz não revelou que estava apaixonado por Zeca. Kerry, no entanto, se queixou que Júnior dava mais atenção ao peão do que a ela, que até então era a namorada dele. Júnior ficou nervoso, embaralhou-se e Kerry, apesar de não confirmar quem teria “roubado” o coração do seu namorado, percebeu que o fim da relação era o melhor a acontecer. Próximo ao fim da trama, surgiu o boato de que o falecido marido da viúva Neuta estaria preso no Rio de Janeiro por conta de uns crimes que havia cometido. Daí, ocorreu uma revelação bombástica de Neuta. O marido perfeito que ela vivia elogiando a todos em Boiadeiros era uma criação dela. Na verdade, Sinval jamais tinha prestado. Neuta e Júnior nunca contaram com a presença efetiva de um marido e de um pai correto. Sinval gastava todo o dinheiro da família em bebidas e jogos. Neuta tinha chegado em Boiadeiros justamente depois que o marido havia falecido. Ela fugiu da cidade onde vivia, para dar uma boa educação ao filho. Por isso, ela obrigava Júnior a seguir aquele perfil de homem perfeito, evitando que ele cometesse os mesmos erros que o pai. Quando soube da suposta prisão de Sinval no Rio de Janeiro, Neuta temeu que a sua vida e de Júnior voltassem a ser um inferno. Com isso, resolveu contar a verdade a Júnior, que ficou chocado. Por fim, descobriu-se que quem estava preso de fato era Alex (Thiago Lacerda), bandido que cometeu seus crimes usando o nome do morto. Outra revelação ocorreu nos últimos capítulos. Enfim, Júnior tomou coragem e contou para a mãe que era gay. Tudo aconteceu porque Kerry pegou Zeca acariciando o rosto de Júnior enquanto eles conversavam na cozinha da fazenda. Na hora, a menina saiu correndo desapontada. No dia seguinte, ele procurou Júnior e lhe perguntou se ele tinha atração por homens. Júnior não se conteve e revelou à antiga namorada que era homossexual. Esse diálogo foi visto por Neuta, que chegou inesperadamente. A mãe ficou louca com a notícia. Kerry deixou os dois a sós. Neuta fez um relato de tudo o que achou que era verdadeiro até então, o casamento com Maria Ellis, as paqueras com as meninas dos rodeios, o gosto por bois e cavalos, o namoro com Kerry. Júnior simplesmente negou tudo e confirmou ser gay. Zeca exerceu forte influência na decisão de Júnior. Ele já tinha conhecimento da homossexualidade do rapaz por conta das confidências que um fazia ao outro e achou o momento ideal para Júnior se revelar, pois Neuta também mostrou que sustentava uma mentira quanto ao falecido Sinval. O desentendimento com Júnior deixou Neuta muito deprimida. O namoro com Dinho foi que conseguiu devolver a alegria à viúva. Depois de tantas revelações, ela resolveu assumir publicamente o seu amor. Neuta e Dinho chegaram juntos a uma festa em Boiadeiros e dançaram agarrados para a surpresa de todos os presentes, inclusive as afilhadas e Júnior. Mas a intolerância da viúva continuou e ela decidiu mandar Zeca embora da fazenda. Júnior se desesperou, acabou revelando a paixão que vivia pelo peão e saiu correndo atrás dele. O último capítulo foi marcado por surpresas para Júnior. A primeira foi a de que a viúva Neuta readmitiu Zeca como funcionário da fazenda e disse que aceitava o filho como ele era. Júnior nunca tinha se sentido tão feliz. E mais: Maria Ellis retornou a Boiadeiros para fazer uma vista a seu filho, Sinvalzinho. Ela foi também para entregar um convite de um desfile a Júnior. Ele ficou muito contente quando soube do evento. O que ele não sabia é que seria um desfile com uma coleção das roupas que ele tinha desenhado. Maria Ellis tinha roubado os desenhos de Júnior e os levou para uma estilista conceituada em São Paulo. A profissional não só aprovou o trabalho, como deu corpo às roupas desenhadas por Júnior. No desfile, a estilista divulgou quem era o dono do trabalho e ainda convidou o rapaz para trabalharem juntos. Pela primeira vez, Neuta se emocionou e orgulhou-se do filho. Foi ao ar também uma cena que insinuava um beijo entre Júnior e Zeca. A ação se passou numa festa de rodeio. Os dois trocaram carícias e se aproximaram bastante até que a imagem ficasse turva e desse margens ao telespectador a acreditar ou não que os lábios dos dois se tocaram. Aspectos fixos dos personagens homossexuais: “Posição do personagem no enredo: se é principal, coadjuvante, se faz ponta, figuração, citada ou recorrida.” (Moreno, 2001, p.167). As duas personagens fazem parte de uma trama secundária da novela, mas têm grande visibilidade, podendo ser consideradas recorrentes. Zeca não fica evidente logo início. Ele aparece na trama cinco meses depois do lançamento da novela, mas logo se destaca por conta do relacionamento que mantém com Júnior. Mais para o fim da trama, é possível perceber que eles passam a ter uma visibilidade maior, principalmente em função da ânsia do telespectador em saber como se resolveria a questão da relação homossexual que elas mantinham e também por conta de um suposto beijo gay que aconteceria nos últimos capítulos. “Contexto social do personagem: a que classe ele pertence” (Moreno, 2001, p.167): Júnior e a mãe possuem uma fazendo pequena, mas promissora. Por isso, pode ser considerado como pertencente à classe média. Já Zeca é um simples peão. Pode-se considerar que ele pertence à classe baixa. Cor: Júnior e Zeca são morenos, sendo Zeca mais claro. Profissão: Júnior tinha o sonho de se tornar maquiador e estilista. Zeca é peão. Na fazenda de Neuta, ele cuidava dos bois, cavalos e vacas. Aspectos da linguagem utilizada e da composição geral do personagem: Tipos de gestualidade: 1) estereotipada, com gestual explícito que caracteriza de forma debochada e desrespeitosa à personagem homossexual; 2) gestualidade típica de alguns sujeitos queer, especialmente os adeptos de um comportamento/estética camp; 3) não estereotipada (gestual considerado “normal” e “natural”, sem indicação de homossexualidade, inscrito dentro de um comportamento heterossexual); Júnior e Zeca não apresentam uma gestualidade estereotipada. Júnior parece mais sensível que o peão forte e másculo que é Zeca. Em algumas passagens, por conta do sofrimento que vive, o dilema de ser forçado a seguir uma identidade imposta pela mãe, Júnior grita e chora, mas não chega a ser afetado. No geral, os dois podem ser considerados como gays heterossexualizados, enquadrados no item 3. “Subgestualidade: compreende o vestuário, maquiagem e adereços utilizados/usados pela personagem” (Moreno, 2001, p. 167): As roupas de Júnior parecem transitar entre um estilo próprio da terra dos rodeios e um tom mais fashion, característico de jovens do meio urbano ligados à moda. As calças jeans que ele usa representam o lado peão, já as camisas se aproximam mais de uma vestimenta comum dos grandes centros urbanos. Zeca usa durante as cenas o vestuário típico de peões – calças jeans, chapéus e botas de couro, cinto de fivela grande, camisas de manga comprida, na maioria das vezes quadriculadas. Análise de seqüências: “É um recurso para detalhar mais as ações de um filme (em nosso caso a telenovela ou as peças) e explicitar o seu conteúdo de forma minuciosa, como diante de uma lente de aumento.” (Moreno, 2001, p. 168): Uma cena que merece ser escrutinada é a que mostra a revelação de Júnior para a viúva Neuta. A mãe leva um grande choque quando toma conhecimento que o perfil de filho que ela idealizava e até acreditava existir era, na verdade, uma vontade utópica. (O dia era o do casamento de Carreirinha e Júnior se arrumava para a festa, quando foi surpreendido pela entrada de Kerry. Seria a primeira vez que eles se falariam depois do incidente de Kerry pegar o rapaz sendo acariciado no rosto por Zeca. Júnior se olhava no espelho, quando Kerry abriu a porta repentinamente. Os dois tinham olhares tristes, Júnior além disso parecia estar assustado.) Júnior: Kerry!? Kerry: Oi, Júnior! (A garota entrou vagarosamente no quarto e continuou o diálogo). Eu queria te pedir desculpas pelo jeito que eu falei com você ontem. Eu não queria ter falado com você daquele jeito, Júnior, mas é que eu fiquei chocada. Eu fiquei... J: Kerry... (O rapaz tenta interromper, mas a garota continua.) K: De verdade chocada. (Kerry queria tanto esclarecer a situação que parecia não escutar Júnior.) J: Ke... Kerry... Olha... (Ele insiste em falar.) K: Júnior, escuta! Eu não quero ouvir explicações agora, por favor! Sabe? O que eu vi ficou muito claro pra mim. J: Não é questão de te dar explicação agora! K: Ô, Júnior! De verdade, de verdade... Calma! Eu não quero ouvir de você que eu me enganei, que você fez uma coisa que eu não vi, que eu tou enganada. Eu não quero ouvir isso! J: Eu só quero que você saiba... K: Júnior!!! Se você gostar de homem, Júnior, assume!!! (Irritada, Kerry fala mais alto. O que os dois não perceberam foi que, nesse instante, a viúva Neuta chegou à porta do quarto do filho. Ela conseguia ouvir perfeitamente a conversa.) J: Eu não tava usando você, Kerry!!! Eu não tava!!! Olha, quando eu digo que te adoro é porque eu te adoro! De verdade... (Júnior também estava irritado e mais exaltado.) K: Eu sei! Eu acredito que você me adora, Júnior. Mas apaixonado, apaixonado, você é apaixonado pelo Zeca!!! (Essas últimas palavras Kerry disse em tom mais alto ainda. Júnior baixou o rosto, respirou fundo e aí percebeu que a viúva Neuta estava parada em frente à porta do quarto.) J: Mãe??? (O garoto pronunciou mais do que assustado.) Neuta: O que é que essa menina tá dizendo? (A mãe pergunta ao filho, entrando no quarto e abrindo os abraços à frente dele. Júnior engole em seco.) J: É verdade! Neuta: Você casou com a Maria Ellis, teve um filho com a Maria Ellis! Eu vejo as meninas loucas atrás de você... Essa Kerry... Ela é doida por você, Júnior! Você não vê? Não ia ser assim se... Se... Se você fosse como ela disse! Você está numa idade que... As pessoas ficam mesmo cheias de dúvidas a respeito de tudo... A gente se pergunta: quem eu sou? Como é que eu sou? Do que é que eu gosto? Olha pra mim. Diz alguma coisa... Olha pra mim... (A viúva ficou descontrolada e não conseguia parar de falar. Júnior não lhe diz nada e ela fica mais nervosa ainda.) Nessa passagem, dois pontos principais merecem ser comentados. O primeiro deles: mesmo apaixonada por Júnior, Kerry incentiva o rapaz a assumir-se enquanto gay. Esse discurso pode ser visto como uma vontade da autora Glória Perez de transmitir a mensagem de que os gays não devem temer preconceitos e assumir seus verdadeiros perfis afetivos e sexuais. O segundo ponto se refere à fala da viúva Neuta. É válido perceber como o discurso da personagem está embasado na heterossexualidade compulsória. Neuta acredita que a possibilidade de Júnior ter se casado e gerado um filho seria atestado da heterossexualidade do rapaz. Teóricos e simpatizantes dos argumentos queer vão comentar justamente que as identidades de gênero e sexo são móveis, podendo um indivíduo atuar enquanto heterossexual num dado momento e vir a ser homossexual, bissexual ou assexual em outras lógicas. Guacira Lopes, buscando propor a formulação de uma pedagogia queer, vai se mostrar ao fato de que: O embate (entre defensores da pluralidade sexual e setores tradicionais que recusam a idéia) por si só merece especial atenção de estudiosos/as culturais e educadores/as. Mas o que torna ainda mais complexo é sua contínua transformação e instabilidade. O grande desafio não é apenas assumir que as posições de gênero e sexuais se multiplicaram e, então, que é impossível lidar com elas apoiadas em esquemas binários; mas também admitir que as fronteiras vêm sendo constantemente atravessadas e – o que é ainda mais complicado – que o lugar social no qual alguns sujeitos vivem é exatamente a fronteira (Lopes, 2004, p. 28). Aqui, é preciso comentar também outra postura da viúva Neuta que denuncia apego com a heterossexualidade compulsória e serviu mesmo de incentivo para a criação do título desse artigo. Neuta acreditava que, desde que apresentasse e reiterasse a imagem de um peão, Júnior podaria seu perfil homossexual. A idéia é a de que um peão – figura que potencializa os conceitos de força e rudez masculinas num pensamento heterossexista – não pudesse desenvolver atração afetiva e/ou sexual por um indivíduo do mesmo sexo e/ou gênero. Contudo, não se pode deixar de comentar que, em certa medida, a própria narrativa de América deixa claro que essas regras não podem ser sustentadas. A personagem Zeca é um peão, rude e másculo, mas que se apaixona por Júnior. Características gerais da personalidade do personagem: criminoso, violento, psicopata, saudável, calmo etc.: Júnior, mesmo vivendo o dilema de revelar ou não para os outros sua identidade homossexual e o amor que vivia por Zeca, no geral, pode ser considerado calmo. Passou por alguns momentos conflituosos, chorou em muitos deles, mas não chegou a se descontrolar por completo. O mesmo pode ser dito de Zeca. Esse, na verdade, apesar do comportamento rude inerente à profissão que seguia, aparece como um ombro amigo de Júnior. Não foram poucas as passagens em que o garoto desabafou com o grande amor. Aspectos sobre a sexualidade do personagem Personagem se apresenta (assume verbalmente) como: gay, lésbica, travesti, transformista, transexual, transgênero, intersexo, bissexual: Júnior leva grande parte da trama assumindo verbalmente ser heterossexual. Mas toda a construção do personagem permite ao telespectador criar a idéia de que ele tinha realmente atração por pessoas do mesmo sexo. Isso ficaria mais evidente quando da chegada de Zeca à fazenda e o florescer da paixão que os dois passariam a viver. Zeca não afirma identidade sexual alguma durante a novela, mas não hesita em se deixar levar pela atração por Júnior, ficando clara para o telespectador sua identidade homossexual. Em que ponto da narrativa fica claro que o personagem é homossexual? Logo que aparece na trama, Júnior, mesmo afirmando verbalmente a heterossexualidade, deixa claro para o telespectador que é homossexual. Seus modos mais delicados e a atração por homens são apresentados desde a primeira cena. Zeca só vai ser percebido como gay quando se mostra atraído por Júnior. Se eles não chegassem a viver uma paixão, a homossexualidade do peão não seria revelada pois ele não apresentava trejeito algum em seu comportamento. Como se dá a performatividade de gênero? Que normas ou conjunto de normas o personagem reitera e/ou reforça? Júnior demonstra ser mais sensível que Zeca. Ainda assim, a personagem não possui trejeitos em seu comportamento. Talvez, Júnior não tivesse oportunidade de ser mais afetado, por conta da sua família e também pelo fato de ser pouco comum encontrar gays fechativos num ambiente de rodeios. Esse último aspecto pode ser justificativa também para a masculinidade do peão Zeca. Em maio de 2005, em entrevista à Folha Online (ver Camila Marques, 2005), o ator Bruno Gagliasso afirmou que estava evitando construir um personagem caricato. Disse também que visitou ambientes gays e se inspirou na literatura homoerótica. No início das gravações, o site de América (2005) divulgou que o ator estava estudando as teorias de Freud, Jung e Darwin para compor seu personagem mais sensível e delicado. Segundo o site também, a atriz Eliane Giardini disse a Bruno Gagliasso: “Acho que o Júnior não precisa ser espalhafatoso. O fato de ele aparecer feliz da vida maquiando as meninas já vai dizer tudo”. O engraçado é saber que Gagliasso costumava adotar outra postura quando não estava gravando as cenas. O site de América (2005) conta: “Mas quando as câmeras não estão gravando, ele nunca perde uma piada: “Muito prazer, queridas! Eu sou a quinta maria breteira!”, ele disse de brincadeira, afetadíssimo, ao se apresentar às colegas de elenco Sílvia Buarque, Sâmara Felippo, Christiana Kalache e Carolina Macieira”. Esses aspectos permitem perceber o quanto as leituras da sociedade sobre sexualidade estão presas ao sistema da heterossexualidade compulsória. De acordo com essa idéia, existe uma linha tênue entre sexo biológico, gênero e prática sexual. Nesse sentido, o indivíduo que nasce com um pênis, por exemplo, tem que necessariamente assumir uma identidade de gênero masculina e desejar manter relações com pessoas do sexo oposto. Além disso, no caso de homens, o normal é apresentar modos grosseiros de comportamento, enquanto as mulheres devem ter uma conduta fina, delicada, indicativa de fragilidade. Os indivíduos que desvirtuam tal norma são tidos como seres abjetos e devem ser execrados da sociedade. Os teóricos queer acreditam que as identidades de gênero e sexo são construções culturais. Logo, o sexo, o gênero, o desejo e a prática sexuais ganham corpo a partir da reiteração de modelos social e politicamente oferecidos. Guacira Lopes Louro, estendendo um raciocínio de Judith Butler, afirma que: “Os corpos considerados “normais” e “comuns” são, também, produzidos através de uma série de artefatos, acessórios, gestos e atitudes que uma sociedade arbitrariamente estabeleceu como adequados e legítimos” (Louro, 2004, p. 87). Judith Butler vai dizer ainda que, nesse processo, não se produzem indivíduos completos e fixos. Ela pontua: Crucialmente, pois, a construção não é nenhum marco singular, nem um processo iniciado por um sujeito, culminando em um conjunto de efeitos fixos. A construção não apenas ocorre no tempo, mas é, ela própria, um processo temporal que atua através da reiteração de normas; o sexo é produzido e, ao mesmo tempo, desestabilizado no curso dessa reiteração. Como um efeito sedimentado de uma prática reiterativa ou ritual, o sexo adquire seu efeito naturalizado e, contudo, é também, em virtude dessa reiteração, que fossos e fissuras são abertos, fossos e fissuras que podem ser vistos como as instabilidades constitutivas dessas construções, como aquilo que escapa ou excede a norma, como aquilo que não pode ser totalmente definido ou fixado pelo trabalho repetitivo daquela norma. Essa instabilidade é a possibilidade desconstitutiva no próprio processo de repetição, o poder que desfaz os próprios efeitos pelos quais o “sexo” é estabilizado, a possibilidade de colocar a consolidação das normas do “sexo” em uma crise potencialmente produtiva (Butler, 2001, p. 163 e 164). Em linhas gerais, Butler destaca que a heterossexualidade, muitas vezes tida como inabalável e inata ao ser humano, além de ser materializada e naturalizada através da reiteração da norma, não é invicta do desvio e dá sustento para que se formem perfis destoantes – os dos gays, lésbicas e os tantos outros que a sociedade for capaz de construir. Outro ponto da representação de Júnior e Zeca que reafirma que eles estão inseridos num sistema de conduta heteronormativa é o do fato de se perceber que entre os dois existe a definição de dois papéis de gênero, o modelo binário de masculino e feminino. Júnior, mais sensível e delicado, com um tom de voz mais baixo, despertando interesse por moda e maquiagem e não se envergonhando de chorar, estaria representando uma figura feminina da relação. Já Zeca, rude, másculo e grosseiro até no modo de se vestir, seria o homem. De acordo com a Teoria Queer, a afirmação de que casais héteros e homossexuais devem seguir um modelo binário de gênero e sexo é fruto da normatização das condutas culturais, exercida pela reiteração de modelos realizada pelas instituições sociais – Estado, religião e família –, que inviabilizam a vivência de indivíduos que, por construírem suas identidades a partir de bases que fogem da norma, acabam utilizando outras performances de gênero. Como afirma Guacira Lopes Louro, Judith Butler toma emprestado da lingüística o conceito de performatividade, para afirmar que a linguagem que se refere aos corpos ou ao sexo não faz apenas uma constatação ou uma descrição desses corpos, mas, no instante mesmo da nomeação, constrói, “faz” aquilo que nomeia, isto é, produz os corpos e os sujeitos. Esse é um processo constrangido e limitado desde seu início, uma vez que o sujeito não decide sobre o sexo que irá ou não assumir; na verdade, as normas regulatórias de uma sociedade abrem possibilidades que ele assume, apropria e materializa (Louro, 2004, p. 44). Já pensando a retirada dos indivíduos desviantes da norma de uma perspectiva de inferioridade, Guacira Lopes, imbuída do raciocínio de Butler, vai ainda afirmar que esses indivíduos são bastante importantes para existências dos “normais” porque eles delimitam até onde vai a norma. Ela continua: Ainda que essas normas reiterem sempre, de forma compulsória, a heterossexualidade, paradoxalmente, elas também dão espaço para a produção dos corpos que a elas não se ajustam. Esses serão constituídos como sujeitos “abjetos” – aqueles que escapam da norma, mas, precisamente por isso, esses sujeitos são socialmente indispensáveis, já que fornecem o limite e a fronteira, isto é, fornecem “o exterior” para os corpos que “materializam a norma”, os corpos que efetivamente “importam” (BUTLER, 1999). (Louro, 2004, p. 44 e 45). De maneira grosseira, é o mesmo que dizer que os normais heterossexuais só existem por conta dos anormais indivíduos que desvirtuam a normatividade. Resumo conclusivo e redutor sobre a representação dos homossexuais na sociedade: Resultado 1: forte carga de estereótipos e outras características que contribuem para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia; Resultado 2: caracteriza os personagens com alguns elementos da comunidade queer, constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos preconceitos e a homofobia; Resultado 3: caracteriza os personagens homossexuais dentro de um modelo heteronormativo que contribui para a reduplicação dos preconceitos e da homofobia; Resultado 4: caracteriza os personagens homossexuais dentro de um modelo heteronormativo, mas constrói um tratamento humanístico e contribui para o combate aos preconceitos e a homofobia. Resultado 5: indica uma representação dúbia e produz dúvida sobre o tratamento dado. América apresentou personagens gays com comportamentos heterossexuais, mas não hesitou em tocar pontos relevantes dos conflitos vividos por uma parcela considerável dos homossexuais. De uma forma geral, pode-se incluir a representação que a telenovela fez dos personagens dentro do resultado 4 da metodologia. O tratamento humanístico conferido aos personagens homossexuais, principalmente a Júnior, fica evidente em vários sentidos. De uma forma geral, a autora não hesitou em tocar pontos relevantes das problemáticas vividas por uma parcela considerável dos homossexuais – a questão do conflito identitário; o medo de decepcionar a família; a angústia de esconder dos outros a real face. A aceitação da viúva Neuta da real identidade sexual do filho e a indicação de que a família deles viveria harmoniosamente mesmo depois da Júnior ser reconhecido pelos outros como gay são também vestígios da humanização conferida à personagem e ao tema da homossexualidade. Contudo, alguns outros aspectos conseguem distanciar a representação dada por Glória Perez ao tema da homossexualidade de uma conduta que se prezaria por contribuir para a quebra de preconceitos e da homofobia. Alguns desses pontos ficam mais notórios quando se analisa, por exemplo, a repercussão da telenovela na mídia. Os últimos capítulos causaram furor na sociedade que esperava pelo primeiro beijo gay da teledramaturgia brasileira. Houve uma grande confusão porque a autora Glória Perez afirmou que a cena tinha sido gravada e que foi vetada pela Rede Globo. A emissora comentou que o veto partiu da autora. Segundo o site da telenovela (2005), semanas antes do término de América, a autora Glória Perez afirmou que recebia muitas cartas de telespectadores que pediam que o beijo entre Júnior e Zeca fosse ao ar. Disse ainda que muitos homens heterossexuais lhe escreviam dizendo admirar o personagem Júnior. Na ocasião, a autora afirmou: “Houve um tempo em que personagens homossexuais eram até retirados das novelas, porque incomodavam. Mas evoluímos muito desde então, as coisas mudaram”. O site de América (2005) também publicou que Glória Perez disse em entrevista que o beijo de Júnior e Zeca seria apresentado dentro de uma conduta delicada, que teria sido utilizada durante toda a trama, não contrariando os mais conservadores. Ela chegou a afirmar: “Não dá para começar como “Cinderela” e terminar como “A dama do lotação””. A postura da autora aí pode ser duramente criticada. A idéia de que um beijo gay deve ser suavizado para ser apresentado numa telenovela, não indo de encontro com os ideais conservadores da sociedade, é praticamente um atestado de que a heteronormatividade jamais deve ser criticada e abalada. Nesse sentido, Glória Perez parece considerar a homossexualidade um desvio problemático da norma “perfeita”. E mais, a comparação feita com as personagens “Cinderela” e “A dama do lotação” soa preconceituosa. A primeira personagem, um clássico conto de fadas que ficou mais famoso ainda a partir do filme Walt Disney de 1937, apresenta uma postura extremamente delicada, afirmando um perfil de pureza da virgem feminina. Ela se casaria com o príncipe encantado. A Dama do Lotação – personagem do filme dirigido por Neville de Almeida em 1978 – foi interpretada por Sônia Braga e potencializa o discurso de liberdade da prática sexual com vários parceiros. A atriz Sônia Braga foi vítima de preconceituosos que a taxavam de devassa e promíscua. Então, para Glória Perez, um gay que beija de forma explícita um companheiro deixa um comportamento delicado ideal e passa a ser devasso, desrespeitador, incorreto. Texto publicado no site Folha Online (2005) informa que o ator Bruno Gagliasso chegou a gravar a cena do beijo sete vezes e que, segundo site de fofocas, chorou quando ficou sabendo que a gravação teria sido vetada. Ainda segundo Folha Online, Glória Perez comentou: “Eu e o Marcos [Schechtman, diretor da novela] tivemos duas reuniões com a cúpula e defendemos a cena até o final. Não sou maluca, divulguei que o beijo ia sair. Está na hora de ser mostrado. O beijo tinha aceitação. Não vou carregar isso. É injusto”. O diretor da Central Globo de Comunicação, Luís Erlanger, negou a proibição da cena à Folha Online. Ele disse ainda que o capítulo que foi entregue não continha a cena e que. se ela cena existisse e a Globo julgasse que deveria cortar, cortaria, como faz com tudo que julga impertinente. Supomos que a exibição de um beijo entre dois homens ou duas mulheres em uma telenovela não seria vista como um desrespeito por muitos dos simpatizantes dos posicionamentos queer. Parte considerável deles não se preocupa em deixar de chocar a sociedade “normal”. Na verdade, eles potencializam a idéia de que são realmente diferentes e querem viver nessa diferença. Isso fica claro na própria tentativa de tradução do termo queer para o português. Nos Estados Unidos, o termo foi historicamente empregado como um adjetivo extremamente depreciativo contra os gays e lésbicas. “Esse termo, com toda sua carga de estranheza e de deboche, é assumido por uma vertente dos movimentos homossexuais precisamente para caracterizar sua perspectiva de oposição e de contestação. (...) Queer representa claramente a diferença que não quer ser assimilada ou tolerada, e, portanto, sua forma de ação é muito mais transgressora e pertubadora” (Lopes, 2004, p. 38 e 39). Quem sabe um dia algum autor de telenovela brasileira, imbuído de um comportamento e estética queer, defenda até mesmo a mostra de uma cena de sexo gay explícito em sua trama? Referências bibliográficas BUTLER, Judith. Corpos que pesam: sobre os limites discursivos do “sexo”. In: LOURO, Guacira Lopes (org.) O corpo educado: pedagogias da sexualidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2001, p. 151 a 172. COLLING, Leandro. Aquenda a metodologia! uma proposta a partir da análise de avental todo sujo de ovo. Trabalho apresentado no IV ENECULT – Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado entre os dias 28 a 30 de maio de 2008, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. Disponível em http://www.cult.ufba.br/enecult2008/14306.pdf - capturado em 20 de agosto de 2008. _________. Personagens homossexuais nas telenovelas da Rede Globo: criminosos, afetados e heterossexualizados. Revista Gênero, volume 8, número 1, segundo semestre de 2007, Niterói: EDUFF, p. 207 a 222. FOLHA ONLINE. Assediado, Bruno Gagliasso diz estar "honrado" com parada gay. 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