SOCIOLOGIA INTERPRETATIVA Alfred Schutz Da unidade das ciências Uma palavra sobre o problema da unidade do método das ciências empíricas. Parece-me que o cientista social pode concordar com a afirmação segundo a qual as principais diferenças entre as Ciências Sociais e as Naturais não têm de ser procuradas numa lógica diferente que rege cada ramo do conhecimento. Mas isso não quer dizer que as Ciências Sociais têm de abandonar os dispositivos particulares que usam para explorar a realidade social em nome de uma unidade ideal de métodos que se baseia na hipótese inteiramente infundada de que apenas os métodos utilizados nas Ciências Naturais e especialmente na Física são científicos. [...] Uma teoria que visa explicar a realidade social tem de desenvolver dispositivos particulares, estranhos às Ciências Naturais, a fim de acompanhar a experiência do senso comum do mundo social. Isso foi, de fato, o que fizeram todas as ciências teóricas das coisas humanas — Economia, Sociologia, Direito, Lingüística, Antropologia Cultural etc. Esse estado de coisas fundamenta-se no fato de que existe uma diferença essencial entre a estrutura dos objetos de pensamento, ou construtos mentais, formados pelas Ciências Sociais e aqueles formados pelas Ciências Naturais. Compete ao cientista natural, e somente a ele, definir, de acordo com as regras de procedimento de sua ciência, o seu campo de observação e determinar os fatos, dados e eventos dentro dele que são relevantes para o seu problema ou propósito científico em questão. Nem esses fatos e eventos são previamente selecionados nem o campo de observação é previamente interpretado. O mundo da natureza, segundo é explorado pelo cientista natural, nada “significa” para as moléculas, átomos e elétrons aí existentes. O campo de observação do cientista social, no entanto, ou mais precisamente a realidade social, tem um significado específico e uma estrutura de relevâncias para os seres humanos que vivem, agem e pensam dentro dele. Através de uma série de construções do senso comum, eles previamente selecionaram e interpretaram esse mundo que vivenciam como a realidade de suas vidas diárias. São esses seus objetos de pensamento que 1 determinam seu comportamento, motivando-o. Os objetos de pensamentos construídos pelo cientista social para captar essa realidade social têm de ser fundamentados nos objetos de pensamento construídos pelo pensamento do senso comum dos homens que vivem sua vida diária dentro do seu mundo social. Assim, os construtos das Ciências Sociais são, por assim dizer, construtos de segundo grau, ou seja, construtos dos construtos feitos pelos atores no cenário social, cujo comportamento o cientista social tem de observar e explicar de acordo com as regras de procedimento da sua ciência. Assim, a exploração dos princípios gerais segundo os quais o homem organiza suas experiências na vida diária, e especialmente as do mundo social, é a primeira tarefa da metodologia das Ciências Sociais. Sociologia da compreensão O fato de que, no pensamento do senso comum, tomamos como pressuposto o nosso conhecimento real ou potencial do significado das ações humanas e de seus produtos é, assim penso eu, precisamente o que os cientistas querem expressar quando falam de compreensão ou Verstehen como uma técnica para lidar com as coisas humanas. Verstehen é, pois, primeiramente, não um método usado pelo cientista social, mas a forma particular de experiência através da qual o pensamento do senso comum toma conhecimento do mundo social e cultural. Não tem nada a ver com introspecção, é resultado de processos de aprendizado ou aculturação, do mesmo modo que a experiência do senso comum do chamado mundo natural. Verstehen, além disso, não é de modo algum uma coisa privada do observador, que não pode ser controlada pelas experiências de outros observadores. É controlável pelo menos na mesma medida em que as percepções sensoriais privadas de um indivíduo são controláveis por qualquer outro indivíduo em certas condições. Basta pensar numa discussão do júri num tribunal quanto a se o réu demonstrou “maldade premeditada” ou “intenção” de matar uma pessoa, se ele era capaz de saber das conseqüências do seu feito etc. Aqui, temos até certas “regras de procedimento”, fornecidas pelas “regras de evidência”, no sentido jurídico, e uma espécie de verificação dos resultados obtida através de processos de Verstehen, como o Tribunal de Apelação etc. Muitas outras predições baseadas em Verstehen são feitas freqüentemente e com muito sucesso no pensamento do senso comum. 2 Existe mais do que uma chance razoável de que uma carta devidamente selada e endereçada, colocada numa caixa de correio em Nova York, chegue ao seu destino em Chicago. Apesar disso, tanto os defensores quanto os críticos do processo de Verstehen mantêm, e com razão, que Verstehen é “subjetivo”. Infelizmente, porém, cada partido usa esse termo num sentido diferente. Os críticos da compreensão a chamam de subjetiva porque, para eles, compreender os motivos da ação de outro homem depende da intuição pessoal, incontrolável e impossível de verificar, do observador, ou refere-se ao seu sistema pessoal de valores. Os cientistas sociais, como Max Weber, no entanto chamam Verstehen de subjetiva porque a sua meta é descobrir o que o ator “significa” em sua ação, em contraste com o significado que essa ação tem para o parceiro do ator ou para um observador neutro. É essa a origem do famoso postulado de Max Weber da interpretação subjetiva... Toda a discussão é prejudicada pelo fato de não se distinguir com clareza entre Verstehem. 1) como a forma de experiência do conhecimento do senso comum das coisas humanas; 2) como um problema epistemológico; e 3) como um método peculiar das Ciências Sociais. Interpretação subjetiva Os construtos envolvidos na experiência do senso comum do mundo intersubjetivo na vida diária, que são chamados Verstehen, são os construtos de primeiro grau, sobre os quais têm de ser erigidos os construtos de segundo grau das Ciências Sociais... Mostramos que os construtos de primeiro grau, os construtos do senso comum, referem-se a elementos subjetivos, ou seja, a Verstehen da ação do ator do seu, do ator, ponto de vista. Conseqüentemente, se as Ciências Sociais visam, de fato, explicar a realidade social, então os construtos científicos de segundo grau têm também de incluir uma referência, ao significado subjetivo que uma ação tem para o ator. Isso é, penso, o que Max Weber concebia em seu famoso postulado da interpretação subjetiva, o qual, de fato, tem sido observado na formação das teorias de todas as Ciências Sociais. O postulado da interpretação subjetiva tem de ser entendido no sentido de que todas as explicações científicas do mundo social podem e, para certos propósitos, têm de referir-se ao significado subjetivo das ações dos seres humanos, das quais se origina a realidade social... 3 Como é possível formar conceitos objetivos e teorias objetivamente verificáveis de estruturas de significado subjetivas? A visão básica de que os conceitos formados pelo cientista social são construtos dos construtos formados no pensamento do senso comum pelos atores no cenário social responde a essa pergunta. Os construtos científicos de segundo grau, formados de acordo com as regras de procedimento válidas para todas as ciências empíricas, são construtos objetivos típicos, idealizados e, como tais, de tipo diferente dos desenvolvidos no primeiro grau, o do pensamento do senso comum, o qual têm de substituir. São sistemas teóricos contendo hipóteses gerais verificáveis. (In: Fenomenologia e relações sociais. Rio de Janeiro, Zahar, p. - ) 4