Alexandre Stein Coval e Regina Maria Guisard Gromann Aprendiz da paixão: estudos sobre a transferência Este artigo se propõe a apresentar o conceito de transferência para em seguida, realizar diversas reflexões sobre material clínico de uma paciente. Destaca-se a instalação da transferência e suas transformações no decorrer do progresso da análise, eclodindo no desenvolvimento do amor transferencial e seu manejo. > Palavras-chave: Transferência, transferência amorosa, contratransferência, resistência, repetição pulsional > revista de psicanálise > artigos > p. 28-33 número especial, maio de 2005 This article’s purpose is to present the concepts of transference, and then go into a variaty of reflexions about clinical material of a patient. Remarkably the instalation of transference and its transformations during the analysys process, bursting into the development of transferencial love and the dealing of it. > Key words: transference, counter-transference, love transference, resistance, repetition >28 A transferência e suas manifestações Nosso controle sobre nós mesmos não é tão completo que não possamos subitamente, um dia, ir mais além do que havíamos pretendido. Sigmund Freud O conceito de transferência, hoje, junto aos conceitos de resistência e interpretação formam o tripé fundamental da psicanálise. A complexidade do tema em nível teórico repercute também em seu manejo prático, bem como, enfatiza sua importância ne- cessária para o bom desenrolar da análise. No princípio da psicanálise, a transferência foi repudiada e considerada indigna de estudos por parte de Breuer, finalizando seu tratamento com Anna O. por acreditar na ausência de ética envolvida em sua relação terapêutica de cunho amoroso. Breuer afirmou que a “transferência é o pior obstáculo que podemos encontrar” (apud Zimerman, 1999, p. 332) na análise. Ao contrário, Freud se apropriou de sua neutralidade e tornou o amor transferencial em objeto de estudo. Era mais um fenômeno que deveria ser desnudado e interpretado para compreender o na como uma resistência ao tratamento e deve ser trabalhada em análise. Uma transferência positiva sublimada sempre persiste, e essa é apropriada e importante para a relação terapêutica (Etchegoyen, 2004, p. 62). Isso justifica que “há transferência em tudo, porém nem tudo é transferência a ser analisada e interpretada”, da mesma forma que não é a análise que cria a transferência; ela apenas evidencia sua existência (Zimerman, 1999, p. 341). Há também uma significativa diferença entre o analista trabalhar na transferência ou trabalhar a transferência (Zimerman, 1999). A transferência foi considerada por Freud como “a resistência mais poderosa ao tratamento”, bem como a mais efetiva (Freud, 1912), pois a transferência distorce a recordação e a transforma em algo presente. “Nada é melhor do que transferir para evitar a recordação” (Etchegoyen, 2004, p. 65). Assim, o paciente se impede de recordar a lembrança recalcada, pois está vivendo-a no presente e na relação. Da mesma forma, em função do desejo recalcado, é a atualidade da transferência que traz à tona a resistência mais forte. A transferência é apenas um aspecto da repetição. Com o progresso da análise e da regressão a transferência vai se tornando mais intensa, necessitando de repressão; assim o recordar possibilita a atuação. Entretanto, é ainda a transferência que possibilita a libertação de lembranças reprimidas para evitar a compulsão à repetição e à atuação, destacando aqui seu papel fundamental como instrumento da análise. É importante destacar que transferência não é sinônimo de resistência, mas sua funcionalidade vem agir como suporte a essa e pulsional > revista de psicanálise > artigos número especial, maio de 2005 processo de formação de sintomas e cura numa relação peculiar como a terapêutica. Freud chegou a considerar a transferência como algo indesejado para o bom andamento da análise, mas logo passou a considerála como uma “inevitável necessidade” e um “agente terapêutico” (Zimerman, 1999, p. 332). Dessa forma, o conceito foi revisto e redefinido por Freud diversas vezes, atribuindo-lhe funções e significados no desenvolvimento da psicanálise. A transferência pode ser entendida como “uma forma de deslocamento na qual o indivíduo dirige para um objeto presente todos aqueles impulsos, defesas, atitudes, sentimentos e respostas que experimentou ou desenvolveu no relacionamento com os primeiros objetos de sua vida. Já que o protótipo de toda relação objetal são as relações primitivas com os pais, elas servem como núcleo e origem das experiências psíquicas transferidas para o objeto presente”, no caso, o analista (Dewald, 1973, p. 213). Percebe-se o caráter de atualização e repetição de protótipos infantis e desejos inconscientes vividos na relação estabelecida com o analista (Laplanche, 1998). A grande questão sobre a transferência refere-se a sua função e, sendo considerada uma aliada da resistência, como pode desempenhar essa oposição à análise. Para responder essa questão, Freud classificou as transferências em positiva e negativa por meio dos afetos envolvidos e não exatamente pela sua função na relação. Isto é, distinguiu os sentimentos afetuosos e amistosos dos sentimentos hostis na transferência. Apenas a transferência dotada de impulsos eróticos (seja positiva ou negativa) funcio- >29 pulsional > revista de psicanálise > artigos número especial, maio de 2005 >30 vice-versa. O que ocorre é uma resistência da tomada de consciência e da resolução da transferência, ou então, com a quebra de resistência, instala-se a transferência para evitar o acesso ao inconsciente reforçando outras resistências. Isto quer dizer que uma serve a outra. Freud deixa isso claro referindo-se ao amor transferencial, quando expõe que a resistência “não cria esse amor; encontra-o pronto, à mão, faz uso dele e agrava suas manifestações” (Freud, 1914). Levantando vantagens da transferência na relação analítica, Freud identificou uma importante parte da história de vida dos pacientes que, em vez de relatar na sessão, é representada diante do analista. A relação transferencial é ambivalente, assumindo atitudes positivas e negativas (afetuosas e hostis), uma vez que pode reproduzir a relação do paciente com um de seus pais, primitivamente ambivalente. É claro que o paciente tem introjetada a relação desenvolvida com suas diversas imagos paternas e maternas, cabendo ao analista identificar qual o pai ou mãe está envolvido na relação transferencial: o pai afetuoso; o pai castrador etc. Enfim, a transferência pode se manifestar de diversas formas no setting analítico, sendo algumas formas concebíveis à consciência ou passíveis de sublimação e, outras, importante instrumento para o tratamento. Enamoramento e aprendizado: discussões sobre um caso clínico A partir do seguinte caso clínico, procurarei discutir movimentos transferenciais de uma paciente, a qual chamarei de Valéria, e como esses movimentos repercutiram nas sessões e em seu desenvolvimento. A paciente veio à procura de psicoterapia após se recuperar de uma Síndrome de Pânico com tratamento medicamentoso, mas queixava-se freqüentemente do quanto não se sentia curada, pois havia sentimentos de solidão, irritações e medos que atribuía à síndrome. Acreditava que a origem de seu pânico se deu após um assalto que sofreu onde trabalhava, em um momento de sua vida que coincidiu com a internação de sua filha mais nova, decorrente de uma meningite muito forte, sofrendo risco de morte. Entretanto, no decorrer das sessões, Valéria apresentou um movimento regressivo que lhe trouxe diversas recordações muito significativas para construir um quadro mais panorâmico da origem de seus sintomas. Acredito que esse movimento foi facilitado, possivelmente, mediante a instalação de uma transferência positiva, que para percebê-la e identificá-la utilizei-me da contratransferência como um sinal das intenções da paciente para comigo. Sentia-me com um forte poder de transformar e ajudar a paciente, e as sessões transcorriam de forma muito agradável e confortável. Essa utilização da contratransferência como instrumento de investigação foi concebida por Paula Heimann, que a entendia como uma reação específica do analista para com aquele paciente. Os sentimentos do analista bem podem ter alguma correspondência com os sentimentos transferenciais do paciente e são, portanto, uma pista quanto à transferência, ou aspectos ocultos desta. (Hinshelwood, 1992, p. 352) Valéria identificava seus pavores como: medo de perder as pessoas e de ficar sozi- A paciente passou a desenvolver uma transferência amorosa, expressa por meio de diversos comportamentos singulares, da sala de espera ao setting. Valéria passou a lançar questões sobre minha vida pessoal, referia-se a meu comportamento com as mulheres, sorria constantemente nas sessões, e era perceptível seu embelezamento para vir aos atendimentos. A intensidade da transferência já parecia impedi-la de assimilar minhas intervenções, parecendo ouvir apenas aquilo que lhe agradava e minha contratransferência fazia com que me preocupasse com minhas intervenções, quase que temendo seu desagrado também. Freud discutiu isso em seu artigo sobre o amor transferencial: “Ela ficou inteiramente sem compreensão interna (insight) e parece estar absorvida em seu amor” (1914), acrescentando que isso parecia ser comum quando se tentava levar o paciente a reconhecer ou recordar de alguma situação muito aflitiva ou extremamente reprimida de sua história pessoal. Valéria se esforçava em afirmar o quanto não amava o marido e sugeria um amante para si mesma, relatando experiências com outros homens antes desse marido. Mas foi com a não correspondência do amor transferencial que acredito terem ocorrido mudanças significativas no desenvolvimento de nosso trabalho possibilitando o momento adequado para uma intervenção mais acertada. As sessões eram freqüentadas religiosamente no mesmo horário e mesmo dia, e caso ocorresse algum imprevisto, Valéria avisava antecipadamente para solicitar reposição da sessão. Porém, com a intensificação da pulsional > revista de psicanálise > artigos número especial, maio de 2005 nha, e por meio desses foi se remetendo gradativamente ao passado e à sua relação com os pais. Esses mesmos medos da paciente puderam ser identificados em sua infância, na relação com seus pais. Valéria vivenciou, quando criança, uma internação de sua mãe por conta de um ataque cardíaco, de forma que se exigia permanecer ao seu lado constantemente por medo da morte dela em sua ausência. Sentiu nessa experiência a solidão e temor de perder alguém muito especial, intensificado por sua imaturidade e fantasias infantis. (Os primeiros ataques de pânico de Valéria ocorreram no hospital em que sua filha foi internada). Seu pai era ausente e pouco comunicativo e, segundo a paciente, assustava-a com sua indiferença. Relatava situações muito primitivas de se deitar junto do pai para exigir carinho, mas era rejeitada e ignorada. Ao mesmo tempo em que visualizava esse mergulho no passado por parte da paciente, sentia uma intensificação da transferência positiva, a ponto de sentir-me constrangido e incapaz de corresponder à tamanha expectativa da paciente para comigo. Mas sua regressão continuou mais um pouco, revelando outras fantasias. Seus pais se divorciaram e ela teve de ir morar com um irmão, separando-se de ambos os pais. Relatou que o divórcio se deu por conta de um caso extraconjugal de seu pai, mas foi quando Valéria trouxe para a recordação um vizinho, muito amigo de sua mãe, que seu movimento regressivo cessou. Acredito ter havido uma fantasia não verbalizada de que sua mãe também tinha um amante, e foi após este momento que sua transferência se destacou ainda mais para mim. >31 pulsional > revista de psicanálise > artigos número especial, maio de 2005 >32 transferência e a não correspondência dessa, ela passou a faltar sem avisos ou chegava atrasada para as sessões. De forma que me questionava, em seguida, se eu havia pensado na possibilidade dela abandonar o trabalho terapêutico, como quem desejando causar-me sofrimento e ameaçando nossa relação, caso eu não a satisfizesse. Conseqüentemente, sua queixa pelos sentimentos de solidão surgiu mais uma vez nas sessões. Freud concebeu que os impulsos sexuais transferidos para o analista devem ser trabalhados e interpretados e, no caso de Valéria, os impulsos eróticos que em princípio surgiram de forma afetuosa estavam se transformando em ataques agressivos para a representação que eu estava tendo naquele momento. Por conta da ambivalência envolvida na relação transferencial, Valéria não poderia abandonar o trabalho psicoterápico, mas necessitava expressar seus impulsos agressivos também. Sua irritação vinha com a decepção de esperar que alguém se interessasse por sua vida e, em seguida, surgia o desejo de isolamento para se proteger. Dessa forma, procurei mostrar-lhe que em nossa relação ela parecia se sentir confortável, compreendida e cuidada; considerava-se alguém importante e interessante para mim e, talvez, que ela esperasse uma relação desse tipo com outra pessoa em sua vida. Logo, a paciente pareceu recolher seus impulsos da transferência e pôde verbalizar seus sentimentos de carência em relação a seu pai. Valéria chorou e contou o quanto se sentia sozinha e incompreendida. Acredito que a transferência que Valéria vinha desenvolvendo a impedia de vivenciar ou mesmo admitir seus sentimentos de carência e solidão. Possivelmente eu era para ela, naquele momento, um pai idealizado, composto por seus impulsos eróticos de origem edípica. O pânico que vinha como questão original sobrepunha-se às suas angústias primitivas e edipianas que pareceram eclodir diante de situações que a remetiam diretamente às lembranças aflitivas da infância. Valéria pode não ter associado que deitar na cama com o pai e exigir carinho tenha impulsos eróticos, mas foi após essas lembranças, justamente com as da relação de sua mãe com o vizinho, que penso serem responsáveis pelo desenvolvimento de uma transferência amorosa tão intensa e carregada de fantasias. Valéria observava minha chegada na clínica, surpreendendo-se quando não me via chegar e logo ia convidá-la para iniciarmos a sessão. Quando pude finalmente trabalhar a transferência, penso ter devolvido diversos sentimentos negados e projetados em outros, fazendo com que a paciente tivesse que finalmente vivenciá-los e, possivelmente, vir a elaborá-los no futuro. Trabalhar a transferência foi considerado por Freud (1914) uma das maiores dificuldades para um analista iniciante. Evidentemente, a relação transferencial traz à tona uma gama de emoções que podem intimidar o principiante exigindo, desse, seu trabalho analítico próprio. Freud revelou que, diante do amor transferencial, o analista tem de travar uma batalha em sua mente “contra as forças que procuram arrastá-lo para abaixo do nível analítico” (1914). Caberia questionar como o sexo do analista pode interferir na transferência amorosa? Referências DEWALD, P. A. Psicoterapia: uma abordagem dinâmica. Porto Alegre: Artes Médicas, 1981. ETCHEGOYEN, R. H. Fundamentos da técnica psicanalítica. Porto Alegre: Artmed, 2004. FREUD, S. (1912). A dinâmica da transferência”. In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. _____ (1914). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da psicaná- lise II). In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. _____ (1915[1914]). Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. _____ (1916-1917). Conferência XXVII: Transferência. In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. XVI. _____ (1937-1939). A técnica da psicanálise. In: Edição Eletrônica Brasileira das Obras Psicológicas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago, 1997. v. XXIII. HINSHELWOOD, R. D. Dicionário do pensamento kleiniano. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. JOSEPH, B. (1985). Transferência: a situação total. In: SPILLIUS, E. B. Melanie Klein hoje: desenvolvimento da teoria e técnica. Rio de Janeiro: Imago, 1990. LAPLANCHE, J. e PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1998. WINNICOTT , D. W. (1955). Formas clínicas da transferência. In: Da pediatria à psicanálise: obras escolhidas. Rio de Janeiro: Imago, 2000. ZIMERMAN, D. E. Fundamentos psicanalíticos: teoria, técnica e clínica – Uma abordagem didática. Porto Alegre: Artmed, 1999. Artigo recebido em novembro de 2004 Aprovado para publicação em março de 2005 pulsional > revista de psicanálise > artigos número especial, maio de 2005 Identificar a contratransferência é essencial para o bom andamento da análise, mas seu uso deve ser muito consciente, pois entender a contratransferência como uma reação específica ao paciente, tornando-se assim um importante instrumento de investigação, como Paula Heimann concebeu (Hinshelwood, 1992, p. 352), pode gerar um perigoso equívoco: responsabilizar o paciente por todos os estados mentais do analista. Dessa forma, evidencia-se mais uma vez que a exigência da análise pessoal ao analista se constitui uma importante necessidade. Entretanto, essa é uma das experiências mais recompensadoras e instrutivas que um aprendiz poderia experimentar com um de seus primeiros pacientes, deparando-se com questões muito construtivas, como o momento ideal de se interpretar a transferência. Para responder essa questão, penso que dependerá de uma elaboração da transferência envolvida, e da contratransferência, por parte do analista, mas sua utilização dependerá do paciente, sua evolução e quadro clínico, necessitando, dessa forma, uma congruência entre analista e paciente. >33