ISSN – 1676-2800 ARGUMENTA REVISTA DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS CAMPUS DE JACAREZINHO - PARANÁ QUALIS B-2 INDEXADORES LATINDEX EBSCO HOST Diadorim BASE Catálogo Coletivo Nacional - CCN REVISTA ARGUMENTA Universidade Estadual do Norte do Paraná Campus de Jacarezinho Centro de Ciências Sociais Aplicadas Avenida Manoel Ribas, 711 – Centro – Caixa postal 103 Jacarezinho – PR – CEP 86400-000 – BRASIL Tel.: +55 (43) 3525-0862 e + 55 (43) 3525-8953 Site: http: www.uenp.edu.br www.uenp.edu.br/mestrado/direito – e-mail: [email protected] Revista Argumenta [email protected] EDITORES Eduardo Augusto Salomão Cambi Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Brasil Fernando de Brito Alves Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Brasil ASSESSORIA TÉCNICA Maria Natalina Costa Rogério Rodrigues CTP e Impressão Gráfica Infante FICHA CATALOGRÁFICA Argumenta: Revista do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica, da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. n. 18 (janeiro/julho) – Jacarezinho, 2013. Periodicidade: semestral ISSN 1676-2800 1. Direito – Periódicos. 1. Faculdade Estadual de Direito do Norte Pioneiro da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP CDU 34(05) CDDir 340 As idéias emitidas nos artigos são de inteira responsabilidade de seus autores. É permitida a reprodução dos artigos desde que seja citada a fonte. Pede-se permuta. Exchange is solicited. Piedese canje. Si prega l’ intercambio. IMPRESSA EM JULHO DE 2013 COORDENAÇÃO DO PROGRAMA DE MESTRADO EM CIÊNCIA JURÍDICA CCSA-CJ-UENP Vladimir Brega Filho Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Brasil LINHA EDITORIAL Estado e Responsabilidade: questões críticas Função Política do Direito CONSELHO EDITORIAL Celso Ludwig Universidade Federal do Paraná Curitiba – Paraná – Brasil Vladimir Brega Filho Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Paraná - Brasil Gilberto Giacoia Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho –Paraná – Brasil Zulmar Fachin Universidade Estadual de Londrina Londrina – Paraná - Brasil Mario Frota Universidade de Paris Paris - França Gregório Assagra de AlmeidaUniversidade de Itaúna Itaúna – Minas Gerais – Brasil Oswaldo Giacoia Júnior Universidade Estadual de Campinas Campinas – São Paulo – Brasil Jean Carlos Dias Centro Universitário do Estado do Pará Belém – Pará – Brasil Samia Saad Gallotti Bonavides Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Paraná - Brasil Gabriel Luis Bonora Vidrih Ferreira Universidade Estadual do Mato Grosso do Sul Paraíba – MS – Brasil Angel Cobacho Lopez Universidade de Murcia – Espanha CONSELHO TÉCNICO-CIENTÍFICO Alexandre de Castro Coura Faculdade de Direito de Vitória Vitória – Espírito Santo - Brasil Nicolau Eládio Bassalo Crispino – UNIFAP Universidade Federal do Amapá Macapá – Amapá - Brasil Alessandro Martins Prado Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Paranaíba – Mato Grosso do Sul - Brasil Paulo Tarso Brandão Universidade Federal de Santa Catarina Florianópolis – Santa Catarina - Brasil Álvaro dos Santos Maciel Faculdade de Balsas Balsas - Maranhão - Brasil Rogério Filippetto de Oliveira Pontifícia Univ. Católica de Minas Gerais Belo Horizonte – Minas Gerais - Brasil Antonio Sergio Cordeiro Piedade Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PUC/SP, Brasil Carla Bertoncini Faculdades Integradas de Ourinhos Ourinhos – São Paulo - Brasil Bruno Amaral Machado Centro Universitário de Brasília Brasília – Distrito Federal - Brasil Eliana Franco Neme Universidade de São Paulo Ribeirão Preto – São Paulo - Brasil Cassius Guimarães Chai Universidade Federal do Maranhão São Luis – Maranhão - Brasil Gelson Amaro de Souza Universidade Estadual do Norte do Paraná Jacarezinho – Paraná - Brasil Cláudia Karina Ladeira Batista Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Paranaíba – Mato Grosso do Sul – Brasil Ricardo Pinha Alonso Faculdades Integradas de Ourinhos Ourinhos – São Paulo - Brasil Humberto Dalla Bernardina de Pinho Universidade Estácio de Sá Rio de Janeiro – Rio de Janeiro - Brasil Renato Bernardi Centro Universitário Eurípedes de Marília Marília – São Paulo - Brasil Isael José Santana Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Paranaíba – Mato Grosso do Sul - Brasil Sergio Tibiriça Amaral Fac. Integradas Antônio Eufrásio de Toledo Presidente Prudente - São Paulo - Brasil Lucas Gonçalves da Silva Universidade Federsl de Sergipe São Cristóvão – Sergipe - Brasil Eliane Superti Universidade Federal do Amapá Macapá – Amapá - Brasil Luciana A. Machado Gonçalves da Silva Universidade Federsl de Sergipe São Cristóvão – Sergipe - Brasil Isabel Cristina Auler Pereira Fundação Universidade Federal de Tocantins Palmas – Tocantins - Brasil Mario Lucio Garcez Calil Universidade Estadual de Mato Grosso do Sul Paranaíba – Mato Grosso do Sul - Brasil Cláudia M. do S. C. F. Chelala Universidade Federal do Amapá Macapá – Amapá - Brasil Mauro Viveiros Ministério Público do Estado de Mato Grosso Cuiaba, MT - Brasil 4 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP SUMÁRIO RETÓRICA ANALÍTICA COMO METÓDICA JURÍDICA .................. João Maurício ADEODATO O DIREITO COMO UM PROCESSO EMANCIPATÓRIO: A EPISTEMOLOGIA DIALÉTICA NO BRASIL ................................. Leilane Serratine GRUBBA Horácio Wanderlei RODRIGUES 11 31 EL MATRIMONIO HOMOSEXUAL EN MÉXICO: HACIA UN PAULATINO RECONOCIMIENTO EN LAS ENTIDADES FEDERATIVAS .................................................................................. Rogelio López SÁNCHEZ Luis Fernando Zepeda GARCÍA 63 O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA CONSTITUCIONAL: UMA RELEITURA A PARTIR DA INTERDISCIPLINARIDADE ........ Thaïs Savedra de ANDRADE 77 A REALIZAÇÃO DE TESTES PSICOLÓGICOS NA ADMISSÃO DO TRABALHADOR ......................................................................... Rúbia Zanotelli de ALVARENGA 91 O art. 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal E O REGIME JURÍDICO do direito de ação ........................................................... Thadeu Augimeri de Goes LIMA 117 LA JUSTICIA AMBIENTAL CUBANA, RETOS EN EL SIGLO XXI .................................................................................... Alcides Antúnez SÁNCHEZ Carlos Justo Bruzon VILTRES Armando Guillermo Antunez SÁNCHEZ 135 A TIPICIDADE PENAL À LUZ DA MISSÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO ................................... Vinícius Barbosa SCOLANZI 173 PANORAMA JURÍDICO DA ESCRAVIDÃO INDÍGENA NO BRASIL ........................................................................................ Manuel Martin Pino ESTRADA 207 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 5 VITIMOLOGIA E DIREITOS HUMANOS .......................................... João Felipe da SILVA 223 DEMOCRACIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL .......................... Walter Claudius ROTHENBURG 251 BULLYING NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR ............. Edinês Maria Sormani GARCIA Paulo Roberto Iotti VECCHIATTI Tais Nader MARTA 261 EDUCAÇÃO E PARTICIPAÇÃO: ANÁLISE SOBRE O EXERCÍCIO DE DIREITOS E O DESENVOLVIMENTO ....................................... Mônica Teresa SOUSA João Carlos da Cunha MOURA 273 PRODUÇÃO CIENTÍFICA: DISSERTAÇÕES 2013 ( janeiro/julho) 295 AUTORES QUE PUBLICARAM NESTE NÚMERO ......................... 297 NORMAS PARA APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS ....................... 301 6 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP CONTENTS ANALYTICAL RHETORIC AS JURIDICAL METHODIC ................... João Maurício ADEODATO THE LAW AS AN EMANCIPATORY PROCESS: THE DIALECTIC EPISTEMOLOGY IN BRAZIL ............................... Leilane Serratine GRUBBA Horácio Wanderlei RODRIGUES HOMOSEXUAL MARRIAGE IN MEXICO: TOWARDS GRADUAL RECOGNITION IN FEDERAL STATES ............................................ Rogelio López SÁNCHEZ Luis Fernando Zepeda GARCÍA 11 31 63 CONSTITUTIONAL PRINCIPLES OF EFFICIENCY: A REREADING FROM INTERDISCIPLINARITY ............................. Thaïs Savedra DE ANDRADE 77 A PSYCHOLOGICAL TESTING IN ADMISSION WORKER ........................................................................................... Rúbia Zanotelli de ALVARENGA 91 FEDERAL CONSTITUTION’S ARTICLE 5, NUMBER XXXV, AND THE RIGHT OF ACTION’S LEGAL REGIME .......................... Thadeu Augimeri de Goes LIMA 117 CUBAN ENVIRONMENTAL JUSTICE CHALLENGES IN THE XXI CENTURY ......................................................................................... Alcides Antúnez SÁNCHEZ Carlos Justo Bruzon VILTRES Armando Guillermo Antunez SÁNCHEZ TYPICALITY CRIMINAL UNDER THE MISSION OF CRIMINAL LAW IN DEMOCRATIC STATE LAW ............................................... Vinícius Barbosa SCOLANZI 135 173 JURIDICAL OVERVIEW OF INDIGENOUS SLAVERY IN BRAZIL . Manuel Martin Pino ESTRADA 207 VICTIMOLOGY AND HUMAN RIGHTS ............................................ João Felipe da SILVA 223 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 7 DEMOCRACY LIKE FUNDAMENTAL RIGHT .................................. Walter Claudius ROTHENBURG 251 BULLYING IN HIGHER EDUCATION INSTITUTIONS .................... Edinês Maria Sormani GARCIA Paulo Roberto Iotti VECCHIATTI Tais Nader MARTA 261 EDUCATION AND PARTICIPATION: ANALYSIS ABOUT THE EXERCISE OF RIGHTS AND DEVELOPMENT .............................. Mônica Teresa SOUSA João Carlos da Cunha MOURA 273 SCIENTIFIC PRODUCTION: DISSERTATIONS 2013 (January/July 295 AUTHORS WHO PUBLISHED THIS ISSUE .................................... 297 GUIDELINES FOR SUBMISSION .................................................... 303 8 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP PREFÁCIO Com satisfação invulgar assumi o ônus de prefaciar a Revista Argumenta nº 18, do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná, especialmente em virtude da recente reclassificação da Argumenta para o estrato Qualis B2, da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes). Os periódicos são classificados por uma Comissão designada pela Coordenação das áreas, e realizada com rigor sob a supervisão da CAPES, de modo que são distribuídos nos seguintes estratos indicativos da qualidade: A1, o mais elevado e que exige grande impacto internacional do periódico; A2; B1; B2; B3; B4; B5; C - sem relevância científica. Tive a singular oportunidade de acompanhar, juntamente com a bel. Maria Natalina Costa, os trabalhos de organização da revista Argumenta desde o seu nº 4, quando prefigurava o estrato C, e não possuía qualquer relevância científica para a área do Direito. Com o apoio crescente da Direção da antiga Faculdade de Direito, nas gestões dos professores Jaime Domingues Brito, Nassif Miguel e Sérgio Vaz, e da Coordenação do Programa de Mestrado, a encargo num primeiro período do Prof. Dr. Gilberto Giacóia e atualmente do Prof. Dr. Vladimir Brega Filho, foi possível a primeira reclassificação da Revista Argumenta para o estrato B4 e agora a sua nova reclassificação para o estrato B2. No iter da reclassificação, destacamos, entre outros: 1) a recomposição do Conselho Editorial e do Conselho Técnico Científico da Revista que atualmente possui representantes de todas as regiões brasileiras, além de parceiros internacionais; 2) a inserção do periódico na plataforma do Open Journal System; 3) a indexação pela Bielefeld Academic Search Engine – BASE, pela EBSCOhost databases and discovery Technologies, pelo LATINDEX, e pelo DIADORIM, além da inscrição em inúmeros outros indexadores nacionais e estrangeiros, 4) a obtenção de licença Creative Commons. A revista Argumenta é a única revista científica publicada atualmente pela Universidade Estadual do Norte do Paraná, e figura entre os periódicos mais bem qualificados e respeitados no cenário jurídico nacional, tão bem classificada quanto muitas revistas tradicionais publicadas por conceituadas universidades públicas e privadas e outros periódicos renomados no meio acadêmico nacional e internacional. É nesse contexto de celebração, pelo reconhecimento do trabalho da equipe editorial da Revista Argumenta que agradeço a todos que de qualquer forma tenham contribuído para a melhoria da qualidade do periódico, e para a sua reclassificação para o estrato Qualis B2. Prof. Dr. Fernando de Brito Alves Pós-doutorando pelo IGC da Universidade de Coimbra Doutor em Direito Constitucional pela ITE – Bauru Editor da Revista Argumenta Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 9 10 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP RETÓRICA ANALÍTICA COMO METÓDICA JURÍDICA ANALYTICAL RHETORIC AS JURIDICAL METHODIC João Maurício ADEODATO * SUMÁRIO: 1. Retórica analítica sobre a dogmática jurídica: não há uma dogmática analítica. 2. Retórica analítica e ciência do direito: descrição da dogmática como método e metodologia. 3. Os postulados funcionais da atividade dogmática para tratar os dois problemas: do texto à norma concreta. Referências. RESUMO: Partindo da tripartição da perspectiva retórica em material, prática e analítica, sugerida por Ottmar Ballweg, o autor procura adicionar outra tripartição e estabelecer sua correspondência. As categorias aditivadas correspondem a método, metodologia e metódica. Tendo isso como pressuposto, aborda questões específicas do direito, assinalando, entre outras coisas a impossibilidade de uma dogmática analítica, aborda ainda a retórica analítica e a ciência do direito, descrevendo a dogmática jurídica como método e metodologia e por fim, apresenta os postulados funcionais da dogmática, e o movimento do texto à norma. ABSTRACT: Starting from the tripartite perspective rhetoric as material, practical and analytical, suggested by Ottmar Ballweg, the author seeks to add another tripartite and establish their correspondence. The additived categories correspond to method, methodology, and methodical. With that premise, addresses specific issues of law, noting, among other things the impossibility of a dogmatic analytical, also addresses the analytical rhetorical and the science of law, describing the juridical dogmatic as a method and methodology, and finally presents the postulates of the functional dogmatic, and move the text to the norm. PALAVRAS-CHAVE: Retórica analítica; Metódica jurídica; Dogmática jurídica. KEYWORDS: Analytical rhetorical; Juridical methodic; Juridical dogmatic. * Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Livre Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Pesquisador 1-A do CNPq. Coordenador da Área do Direito na CAPES no triênio 2013-2015. [email protected] Artigo submetido em 10/08/2012. Aprovado em 22/11/2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 11 1. RETÓRICA ANALÍTICA SOBRE A DOGMÁTICA JURÍDICA: NÃO HÁ UMA DOGMÁTICA ANALÍTICA O ponto de partida aqui é a tripartição da perspectiva retórica em material, prática e analítica, sugerida por Ottmar Ballweg, e a tese é procurar lhe adicionar outra tripartição correspondente, qual seja, a da retórica como método, metodologia e metódica. O mais difícil de fazer entender, talvez por não se encaixar no uso comum da palavra, é o primeiro sentido da retórica, o material, ou, como se prefere aqui, existencial. Significa considerar que tudo aquilo que se chama de “realidade”, a sucessão de eventos únicos e irrepetíveis no fluxo do tempo, consiste em um fenômeno linguístico cuja apreensão é retórica. A retórica material não quer dizer apenas que o conhecimento do mundo é intermediado pelo aparato cognoscitivo do ser humano, como sugeriu Kant, ou mesmo intermediado pela linguagem, como quer a linguística mais tradicional. Significa dizer que a própria realidade é constituída pela retórica, pois toda percepção se dá na linguagem. A retórica material constrói a relação do ser humano com o meio ambiente por meio de um conjunto de relatos que constitui a própria existência humana; o conceito quer expressar que a própria pergunta sobre alguma “realidade ôntica” por trás da linguagem não tem qualquer sentido, pois o ser humano é linguisticamente fechado em si mesmo, em um universo de signos, sem acesso a qualquer “objeto” para além dessa circunstância. Isso não implica que a realidade seja subjetiva, pelo menos no sentido do arbítrio de cada indivíduo, muito pelo contrário. O maior ou menor grau de “realidade” de um relato vai exatamente depender dos outros seres humanos, da possibilidade de controles públicos da linguagem. A linguagem tem uma função de controle e a exerce reduzindo complexidade; logo, não pode ser errante, ao talante de cada um, precisa apresentar regularidades; mas essas regularidades são muito variáveis, condicionadas, imprevisíveis, circunstanciais, construídas para as exigências do momento, e tanto mais mutáveis e ambíguas, quanto mais complexo e diferenciado seja o meio social. O estudo da retórica material procura descrever como a linguagem constitui a realidade, apesar de o senso comum levar a crer que essa realidade independe da linguagem. Para a filosofia retórica aqui defendida, a linguagem expressa o ambiente ensimesmado do ser humano, como que um autismo ou solipsismo mais ou menos coletivo que lhe fornece sua própria realidade. A linguagem transforma em “realidade” fantasmas, bruxas, previsões do futuro e meteorologia; faz de Plutão um planeta ou não, cria quasares pulsando e buracos negros, quarks e o mundo quântico. A tese é que a realidade é composta dos métodos, literalmente os caminhos tomados (ìîôÜ üäóò, sobre o caminho, pelo caminho). Em outras palavras, a retórica material é o conjunto dos métodos vencedores, os relatos escolhidos dentre os diversos caminhos possíveis e concorrentes em determinada situação. A retórica ARGUMENTA - UENP 12 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP material é normativa, também se pode dizer prescritiva, na medida em que é constituída de opções diante de alternativas, todas eivadas de valores e escolhas. O direito é importante na determinação desse relato vencedor que constrói a retórica material porque ele induz as pessoas a se comportarem de determinada maneira e lhes ameaça com consequências desagradáveis se persistirem afirmando relatos a ele contrários. Um fato jurídico é assim um relato que procura expressar determinada percepção de determinado contexto eventual. E o processo dogmático, como na brincadeira infantil do telefone sem fio, é um encadeamento de relatos sobre relatos. Assim o direito coopera fortemente para constituir a “realidade”. Aí se vê como o mundo real é ao mesmo tempo um fenômeno empírico e lingüístico ou, como se diz aqui, “retórico”. Nesse sentido, repita-se, a linguagem literalmente “faz” o mundo real e constitui o próprio ser humano. Imagine-se um acidente de trânsito com pessoas gravemente feridas, eventualmente vítimas fatais. O policial elabora um relato sobre o que encontrou ao chegar, o que o jargão chama boletim de ocorrência, no qual inclui relatos de diversas testemunhas que entrevistou, relatos esses todos diferentes entre si, posto que cada uma delas vê de perspectivas diversas e se deixa envolver diferentemente pelo evento. Entregue esse documento à delegada de polícia, esta redige seu próprio relato, o inquérito policial, para o qual pode quiçá ouvir novos relatos das mesmas testemunhas entrevistadas pelo agente, as quais, passados alguns meses da experiência vivida, contam histórias já diferentes daquelas expostas ao policial no local do acidente. O inquérito policial é assim enviado ao promotor, o qual procede a um novo relato, se for o caso, que a dogmática denomina denúncia, enriquecido de um sem-número de outros elementos, ausentes nos discursos anteriores. Ao fazer o relato da pronúncia no processo, talvez já muitos mais meses depois, a magistrada constitui outra retórica material e, se houver por bem ouvir novamente as testemunhas arroladas, estas já fazem relatos não apenas diversos entre si, porém, mais uma vez, diferentes de todos os que elas mesmas fizeram anteriormente. Mais diferenças ainda haverá em um eventual procedimento no tribunal do júri, talvez anos depois, quando as testemunhas tiverem que expor sua versão em público. O problema é a propensão atávica do ser humano em direção à verdade, a metáfora de todas as metáforas, aquela que eliminaria a distância e quiçá a diferença mesma entre as palavras e as coisas. Esse impulso viria dos instintos básicos próprios do ser humano, desde antes de a linguagem começar a afastá-lo de sua alma animal, com as “vantagens” e “desvantagens” desse processo. Daí o domínio das filosofias ontológicas, as quais propagam critérios externos, postos “à frente” do sujeito – daí “ob”-jetivos –, como padrão de referência para a ética e para o conhecimento. Daí o esquecimento (Vergesslichkeit) de que a linguagem é um filtro autorreferente cujo único ambiente é ela mesma: ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 13 Quando alguém esconde uma coisa atrás de um arbusto, vai procurá-la ali mesmo e a encontra, não há muito que enaltecer nesse procurar e encontrar: e é assim que ocorre com o procurar e encontrar da “verdade” no interior da circunscrição da razão. Se forjo a definição de animal mamífero e em seguida declaro, depois de inspecionar um camelo: vejam, um animal mamífero, com isso decerto uma verdade é trazida à luz, mas ela é de valor limitado, quero dizer, é inteiramente antropomórfica e não contém um único ponto que seja “verdadeiro em si”, efetivo e universalmente válido, independentemente do ser humano.1 A retórica prática ou estratégica, como se prefere aqui, trabalha com as metodologias, seu objetivo é conformar a retórica material, interferir sobre ela, fixar-lhe diretrizes, dizer como ela deve ser. A retórica estratégica é composta, literalmente, de metodo-logias, de “teorias sobre os métodos”, métodos esses que compõem a retórica material. As metodologias são orientações para conseguir objetivos, por isso são também normativas. A metodologia do direito, os ensinamentos dogmáticos para o sucesso das práticas jurídicas, não foge à regra. A metodologia consiste nas estratégias para construção de métodos. Essa dimensão retórica é normativa e reflexiva, no sentido de que tem a retórica material como alvo, compõe-se do conjunto de estratégias que visam interferir sobre aqueles métodos e modificá-los, influir sobre eles para ter sucesso em determinada direção escolhida. Por isso é pragmática e teleológica. Ela observa como funciona a retórica material e a partir daí constrói doutrinas, teorias (logias) que buscam conformar os métodos do primeiro nível retórico. A metodologia transforma esses métodos em objetos de estudo e faz com que determinadas concepções sobre o ambiente circundante apareçam como “o mundo”, relatos privilegiados, vencedores no sentido de obterem mais crença e adesão do que outros. A eficácia é seu critério, fruto da observação de que métodos melhor funcionam na práxis, diante de outras interpretações concorrentes sobre o ambiente circundante, a “realidade”. Essas metodologias podem ser ensinadas, delas fazem parte a tópica, a teoria da argumentação, as figuras de linguagem e de estilo e, no direito, as doutrinas dogmáticas. Elas tratam justamente de quais topoi aparecem mais freqüentemente em um discurso, quais métodos são empregados para esse ou aquele efeito, como os lugares-comuns retóricos são construídos e trabalhados, que táticas, palavras, gestos melhor produzem os efeitos desejados. 1 NIETZSCHE, Friedrich. Über Wahrheit und Lüge im außermoralischen Sinne, in NIETZSCHE, Friedrich. Nachgelas-sene Schriften 1870-1873. COLLI, Giorgio; MONTINARI, Mazzino (Hrsg.). Kritische Studienausgabe - in fünfzehn Bände, vol. I. Berlin: Walter de Gruyter, p. 873-890, p. 883: Wenn Jemand ein Ding hinter einem Busche versteckt, es eben dort wieder sucht und auch findet, so ist an diesem Suchen und finden nicht viel zu rühmen: so aber steht es mit dem Suchen und Finden der‚Wahrheit‘ innerhalb des Vernunft-Bezirkes. Wenn ich die Definition des Säugethiers mache und dann erkläre, nach Besichtigung eines Kameels: Siehe, ein Säugethier, so wird damit eine Wahrheit zwar an das Licht gebracht, aber sie ist von begränztem Werthe, ich meine, sie ist durch und durch anthropomorphisch und enthält keinen einzigen Punct, der ‚wahr an sich‘, wirklich und allgemeingültig, abgesehen von den Menschen, wäre.” ARGUMENTA - UENP 14 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A retórica analítica constitui o nível da metódica. Não se trata de métodos ou metodologias, justamente pela postura de tomar os métodos e as metodologias, com ênfase em suas interrelações, como objeto de estudo. É uma forma de abordagem que se presta à filosofia do direito e a muitos outros campos, inclusive no estudo dos paradigmas das ciências biológicas e matemáticas, pois descreve uma situação do próprio conhecimento humano e de sua linguagem, vez que também a ciência é um meta-acordo linguístico sobre um ambiente linguístico comum, o qual também é acordado. No campo do direito, a retórica material diz respeito aos eventos (métodos), à dogmática jurídica no sentido de linguagem-objeto, ou seja, como os problemas são efetivamente tratados, como os conflitos são efetivamente “resolvidos”; é aí que se observa, por exemplo, que o Executivo no Brasil atravanca o Judiciário com seus recursos protelatórios ou que existe um ordenamento coercitivo contra legem nas favelas dos excluídos. A retórica estratégica está nas diversas teorias que compõem o estudo do direito naquele primeiro sentido, na dogmática jurídica como ciência dogmática do direito e também nas sociologias, antropologias etc. (metodologias em geral), as quais explicitam como se deve compreender e lidar com o direito-evento, o direito material dos métodos, dos caminhos escolhidos. Finalmente, existe um estudo analítico do direito, sim, como aquele que propõe a retórica, mas não existe uma dogmática jurídica no sentido analítico e essa atitude pode ser dita zetética, em oposição à dogmática, na dicotomia sugerida por Theodor Viehweg. Isso porque a atitude dogmática tem como função precípua guiar ações e decisões a partir da formação de opiniões (doxa, daí dokein e dogma); ela coloca fora de discussão uma série de postulados, exatamente seus dogmas. Já a atitude zetética ou investigativa (zetein) visa descrever algo e todas as suas afirmações permanecem sendo questionáveis (zetemata). A denominação “analítica”, aqui, é para ressaltar a diferença para com os conceitos de Viehweg, que, por exemplo, afirma que a atitude científica sobre o direito compõe-se de um somatório das duas atitudes2. Para a retórica, a atitude dogmática não pode ser científica. Na medida em que procura estudar não apenas a retórica material, mas também as retóricas estratégicas que a ela se dirigem, o plano analítico cuida para que o retórico não confunda o primeiro com o segundo planos e fique enredado na convicção de que o mundo real “é” ou “deve ser” como o filósofo gostaria que fosse ou que esteja “evoluindo” na direção por ele prescrita, supostamente “detectada”, surpreendida em sua essência (metodologias prescritivas ou otimizadoras como as de Dworkin, Habermas ou Alexy). Em outras palavras, as relações entre o primeiro nível da retórica, o nível material dos métodos, e o segundo nível da retórica, o nível estratégico das 2 VIEHWEG, Theodor. Dogmática jurídica y cetética jurídica en Jhering, in VIEHWEG, Theodor. Topica y filosofia del derecho, trad. Jorge M. Seña. Barcelona: Gedisa, 1991, p. 141-149, p. 146. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 15 metodologias, é o objeto do terceiro nível da retórica, o nível analítico das metódicas. No caso do direito, a retórica metódica estuda as relações entre a prática jurídica, os diversos métodos pelos quais o direito se realiza, e a teoria dessa prática, a metodologia doutrinária que explica e molda esse primeiro nível retórico. Como também faz teoria, a metódica pode ser dita uma meta-teoria, uma descrição, tentativamente neutra a valores, das prescrições valorativas (normativas) por intermédio das quais a doutrina (metodologias) tenta influir sobre as opções da retórica material (métodos). A atitude metódica é portanto diferente da argumentação presente na retórica estratégica, a qual vai sempre se respaldar em condições circunstanciais de distribuição de poder, podendo ir do acordo sincero à persuasão pela autoridade e até à concordância devida a uma ameaça de violência. Vem dessa faceta estratégica da retórica sua velha fama de falaz e enganadora, pois seu objetivo não seria a verdade ou a justiça, mas sim levar o auditório ao comportamento desejado pelo orador. Esse desiderato sofístico é muito importante, mas a retórica não consiste apenas nisso. Ver a retórica analítica como uma metódica ajuda a sustentar a tese de que a retórica vai além de seus aspectos metodológicos e assim combate duas reduções tradicionais: de um lado, aquela apontada pelos adversários da retórica, para os quais ela serve para enfeitar a linguagem, seduzir e enganar os incautos; do outro lado, aquela defendida pela grande maioria dos próprios retóricos, no sentido de que ela se dirige exclusivamente à persuasão. Em suma, ambas as teses reduzem metonimicamente a retórica a seu nível estratégico, muito importante, sem dúvida, mas jamais único. Isso porque a retórica metódica tem exatamente como seu objeto imediato essas estratégias, dentre as quais se sobressaem o engodo e a persuasão, enfatizados pelos reducionismos mencionados. Claro que, como essas estratégias dirigem-se à retórica material, esta também é analisada pela retórica metódica. Trata-se assim de uma meta-metalinguagem, ou metalinguagem de segundo nível. Trata-se também de uma teoria, mas não sobre os métodos efetivamente aplicados, como faz a retórica metodológica, mas sim sobre o funcionamento das metodologias sobre os métodos. Essa tripartição vai além dela, mas pode ser compatibilizada com a bipartição entre linguagem e metalinguagem, pois esta relação ocorre entre a dogmática metódica ou analítica e a dogmática estratégica ou metodológica, assim como entre a dogmática metodológica e a dogmática material ou existencial. No primeiro caso, a implicação situa-se em nível de metalinguagem, isto é, num nível de linguagem sobre a linguagem do Direito positivo, falando acerca de algo que ocorre no Direito positivo. No segundo caso, a implicação é usada no Direito positivo, adquire a prescritividade sobre o comportamento do intérprete e aplicador do Direito, que não tinha como ARGUMENTA - UENP 16 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP estrutura lógica. Aqui, coloca-se no nível da linguagem-objeto; ali, no nível da metalinguagem.3 A retórica como metódica pode dar outra contribuição além de seu nível estratégico e ornamental, ou seja, além de sua ajuda para o sucesso da comunicação. A atitude metódica da retórica pode propiciar mais conhecimento das relações humanas, eventualmente legitimar suas regras, testando seu acordo com as regras do jogo, por exemplo (a lei e outras fontes de normas jurídicas, no caso do direito), além de fornecer apoio à aceitação de decisões. Essa postura é crítica quanto ao conhecimento dado e é cética sobre a correspondência autêntica entre as observações humanas e a realidade do mundo, aceitando a inacessibilidade da “coisa em si” que já está em Kant. Mas há elementos novos os quais Kant, ainda debitário do ontologismo, não investigou. Por exemplo, a idéia de que as maneiras pelas quais o ser humano compreende o mundo são histórica e culturalmente específicas e relativas, isto é, que o conhecimento é socialmente construído e que nossas maneiras atuais de compreender o mundo são determinadas não pela natureza do mundo em si mesmo, mas pelos processos sociais, ... o que implica questionar nossos próprios pressupostos e as maneiras como nós habitualmente damos sentido às coisas. Implica um espírito de ceticismo e o desenvolvimento de uma “mentalidade analítica”4. A atitude metódica é analítica, que não é mais dogmática. A retórica tem três níveis, mas a dogmática só tem dois porque, no terceiro nível, ela já se transforma em algo mais próximo do que se pode denominar uma ciência sobre o direito. Isso porque é descritiva e assume uma pretensão de neutralidade, exatamente por não ser normativa. Seu objeto material são os outros dois níveis retóricos, o material e o estratégico, assim como, sobretudo, as relações entre eles. Ao considerar a dogmática jurídica de uma perspectiva analítica, a postura retórica vai de encontro a duas posturas reducionistas: a um, contra as ontologias jurídicas, a redução da dogmática a seu âmbito metodológico, a suas estratégias de sedução a qualquer preço, como o engodo e a mentira; a dois, contra os próprios retóricos tradicionais, a redução da retórica dogmática a suas estratégias de persuasão. Tanto ontólogos quanto retóricos reduzem a dogmática a sua dimensão estratégica, esquecendo suas funções e aplicações materiais e analíticas. Esta é aqui denominada uma metódica da dogmática jurídica. A metódica é uma teoria, uma visão da dogmática, mas não uma teoria metodológica como as teorias 3 VILANOVA, Lourival. As estruturas lógicas e o sistema do direito positivo. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1977, p. 192-193. 4 GILL, Rosalind. Análise de discurso, in: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 244-270. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 17 dogmáticas, aquelas que objetivam interferir sobre os métodos que constituem o mundo real, já que o foco da metódica consiste nas relações entre essa dogmática metodológica e a material. É a análise metódica que vai mostrar a importância do engodo, ressaltado pelo reducionismo adversário da retórica, e da persuasão, ressaltada pelo reducionismo dos próprios retóricos. 2. RETÓRICA ANALÍTICA E CIÊNCIA DO DIREITO: DESCRIÇÃO DA DOGMÁTICA COMO MÉTODO E METODOLOGIA A análise de discurso realça então a metáfora da “construção”, no sentido de que o discurso é feito a partir de recursos que já existem previamente na linguagem jurídica e que a atividade dogmática implica uma escolha diante de um sem-número de possibilidades e que essa seleção depende do profissional que a faz. As pessoas lidam com o mundo de forma indireta, complexa, retardada, seletiva e, sobretudo, metafórica5 e os modelos tradicionais, concepções “realistas”, que vêem a linguagem como um meio para objetos dados, precisa ser abandonada para uma devida compreensão do fenômeno jurídico. Além disso, o discurso dogmático deve ser visto como um discurso orientado para a ação, ou seja, como uma prática social. Os juristas empregam sua linguagem para conseguir resultados, literalmente, para “fazer coisas”: condenar, perdoar, obter vantagens econômicas, guarda de filhos, menos impostos e assim por diante. Observa-se assim que não há, por definição, uma dogmatica analítica, o que configuraria uma contradictio in terminis, pois tanto a dogmática material quanto a dogmática estratégica têm caráter normativo e atitude analítica não admite isso. Se não observe-se. As diferentes versões que as pessoas apresentam para os “mesmos fatos” não provêm necessariamente de algumas serem mentirosas ou enganadoras, mas simplesmente dos contextos de experiência, da retórica material, pois todo discurso é circunstancial e determinado pelo contexto. Por exemplo: uma frase como “o testemunho foi falso”, se dita por alguém que acaba de testemunhar, a respeito do próprio testemunho, pode ser uma confissão; se dita pelo promotor à testemunha pode ser uma acusação; se o orador é um magistrado dentro de um processo, pode ser uma sentença. As definições de sentido dessas frases serão também contextuais. Isso porque o discurso procura sempre estabelecer uma versão vencedora sobre o ambiente, diante de versões contraditórias e muitas vezes conflitantes, sobretudo o discurso jurídico. Resta óbvio que generalizações e noções de verdade objetiva devem ser vistas com toda desconfiança. Sempre há pressupostos ocultos por trás delas e a análise retórica procura explicitá-los, desmascarando-as. Mais um motivo para que não faça sentido falar de uma dogmática analítica. 5 BLUMENBERG, Hans. Antropologische annäherung an die aktualität der rhetorik. Wirklichkeiten in denen wir leben - Aufsätze und eine Rede. Stuttgart: Philipp Reclam, 1986, p.104-136, p. 115. ARGUMENTA - UENP 18 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A análise de conteúdo é um dos tipos de análise de texto. Assim, analisam-se os textos produzidos em um determinado contexto para compreender a época em que foram produzidos. O direito faz parte desse contexto que constituiu aquela época que se pretende estudar. Essa técnica permite então uma inferência de um texto para seu contexto social. É curioso que juristas e faculdades de direito estejam ainda hoje apartados de uma metodologia tão eficaz para estudo do direito, para a práxis da defesa de posições em juízo, para a elaboração de pareceres, em suma, para o trabalho jurídico com textos e para a hermenêutica, tanto em termos de uma teoria e de uma prática eficazes. Os filósofos e juristas, como qualquer pessoa – ainda que se pretendam observadores mais privilegiados – utilizam-se da linguagem para representar e constituir o mundo, como conhecimento e como autoconhecimento6. Nesse tipo de análise, para a pesquisa qualitativa, as vias clássicas da persuasão retórica: ethos, pathos e logos são úteis para compreender, classificar e criticar a linguagem textual analisada. Depois é importante especificar o problema, ou seja, pelo menos dois caminhos antagônicos para chegar às teses. O problema é composto de hipo-teses, ou seja, teses fracas, que serão submetidas a discussão para se transformarem em teses propriamente ditas. Em terceiro lugar, a tese do autor do texto estudado, isto é, a afirmação que é apresentada por ele como resultado da argumentação. Isso no nível da retórica estratégica, que envolve o autor escolhido e seu contexto. A análise do discurso do autor escolhido deve tentar sintetizar suas afirmações e seus argumentos, tentando ver se ele apresenta fundamentações explícitas ou se pressupõe “verdades” ocultas na esfera do silêncio. A análise retórica procura desmascarar essas estratégias. Autores que tratam do tema sugerem a seguinte tripartição para a atitude da retórica analítica, a qual não deve ser confundida com aquela aqui defendida: retórica entendida como ato de persuadir, retórica como análise dos atos de persuasão e retórica como uma cosmovisão sobre o poder persuasivo do discurso7. Essa visão, logo se percebe, apóia-se na concepção tradicional da persuasão como objetivo de toda retórica. Por isso, em primeiro lugar, esquece a dimensão constitutiva da retórica material e a toma apenas como estratégia, esquece que a realidade é retórica, também a realidade jurídica. Depois, o sentido da retórica como ato de persuadir é o mais importante, mas apenas uma das estratégias da retórica metodológica. Como diferença final, retórica como análise e como cosmovisão não constituem dois níveis diferentes, como a tripartição acima faz parecer, mas fazem parte da retórica analítica ou metódica, o terceiro nível. 6 BAUER, Martin W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão, in: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 189-217. 7 LEACH, John. Análise retórica, in: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 293-318. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 19 Não é demais insistir que esses três níveis retóricos da dogmática jurídica se interpenetram, pois no final das contas até o discurso metódico vai ser comunicado e pode também vir a influir na dogmática dos métodos e assim se constituir em uma metodologia. Em que pese a notória preponderância da retórica estratégica e, dentro dela, da estratégia da persuasão, a análise retórica tem uma grande tradição, de 2500 anos. Sempre criticou discursos como os dos tribunais e dos políticos. Aí foi se estendendo a textos escritos e hoje vai até imagens e gestos, linguagens nãoverbais. Na tradição aristotélica a retórica identifica três tipos de retórica na chamada teoria da estase sobre os discursos, segundo a dimensão temporal a que se dirigem: o forense, o deliberativo e o epidítico. Os cânones de análise observam as partes componentes do discurso e são cinco: invenção, disposição, estilo, memória e apresentação. Aí tem-se quatro critérios para examiná-los: o objetivo, o auditório, a situação e o tempo. A retórica forense dirige-se a acontecimentos passados e o orador procura fazer o auditório crer que esses acontecimentos se deram segundo sua versão e com as conseqüências que a eles atribuem. Aristóteles pensava no discurso dos tribunais, composto de defesas e acusações. A retórica deliberativa tem o tempo futuro por horizonte e o orador procura mostrar que o rumo que sugere é o melhor, ela é apropriada ao discurso político e dele fazem parte o conselho e a persuasão. A retórica epidítica ou panegírica concentra-se no presente, serve para louvar ou censurar, adequada a discursos para conceder prêmios ou para orações fúnebres. Para decompor analiticamente o discurso, a retórica clássica separa a invenção (inventio), responsável por emprestar plausibilidade aos argumentos, investigando sua origem, como os oradores criam e utilizam esses argumentos diante de seus objetivos. É a parte mais geral, aquela que vai direcionar o discurso pelas vias de ethos, pathos e logos. A disposição (dispositio) explora como o discurso está organizado, a arrumação de suas formas, se ele parte de afirmações gerais ou específicas (dedutiva ou indutivamente), por exemplo, e como essa organização pode influir sobre o auditório, se argumentos considerados fortes devem vir antes dos fracos e viceversa. O estilo (elocutio) é a parte que procura adequar o pensamento a suas formas de expressão, ou seja, relaciona forma e conteúdo do discurso, como se pode ver na diferença entre o artigo jornalístico e a poesia, ou o discurso jurídico e o discurso científico, por exemplo. Se o discurso se dá na primeira ou na terceira pessoa é outro exemplo. Essa forma vai revelar conteúdos como o grau de intimidade ou distanciamento que o orador assume com o leitor, dentre muitos outros. A memória (memória) é um cânone que analisa em que extensão o orador retém as informações pertinentes, domina o conteúdo de sua fala, ou seja, dispõe ARGUMENTA - UENP 20 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP das informações relevantes que o tema suscita. Na retórica clássica o bom orador deveria ser capaz de repetir seu discurso de forma a mais igual possível em diferentes ocasiões8. A apresentação (pronunciatio) é cânone da análise retórica quando esta observa a forma do discurso a partir do seu meio de transmissão, isto é, se é escrito, oral, por carta, e-mail, numa mesa de bar ou em uma cerimônia formal, numa conversa a dois ou perante diferentes auditórios. Refere-se ao controle sobre contenção ou exuberância, postura da voz, sobriedade ou excesso, elegância no falar, no escrever9. Além dos cânones, detectar as figuras de linguagem tem importância crucial na análise retórica da dogmática jurídica. Não se trata apenas de uma questão de estilo, em que pese sua grande importância. De uma perspectiva pragmática, o efeito que provocam na conduta humana vai mostrar claramente a relação entre a dogmática material e a dogmática estratégica. A mais importante das figuras de linguagem, diz-se, é a metáfora. Para muitos autores, na linha de Nietzsche, ela reuniria todas as figuras de linguagem, em ultima instância, pois toda linguagem é metafórica10. A retórica analítica é a que mais se aproxima do que tradicionalmente se tem chamado a postura científica, na medida em que procura descrever, abstraindose de atitudes valorativas, como funcionam tanto a retórica material como a retórica estratégica, tanto tipificando-as isoladamente, quanto estudando-as em suas interrelações. Caracteriza-se assim pela atitude descritiva e pela correspondente tentativa de neutralidade. A metódica não pretende a atitude normativa, conforme reiterado. O problema desemboca no conceito de dogmática jurídica como ciência, um passado de muitas páginas sobre um problema hoje menos relevante. A retórica analítica aplicada ao direito é uma tentativa de concepção de ciência, ou melhor, de conhecimento, para falar mais modestamente. Talvez fique mais claro dizer que aqui se pretende uma atitude de pesquisa sobre o direito; no caso do direito nacional estatal, sobre a dogmática jurídica. A “ciência do direito” contemporânea corresponde, assim, ao estudo analítico das relações entre a metodologia dogmática e os métodos dogmáticos. Difere de Kelsen, por exemplo, para quem o que aqui se chama metodologia dogmática, o conjunto de conhecimentos para lidar e interferir com o direito “real”, 8 E muito se chama atenção para o papel do direito na preservação da memória: KIRSTE, Stephan. O direito como memória cultural. Revista do Mestrado em Direito – Direitos Humanos Fundamentais, ano 8, n° 2. São Paulo: Unifieo, 2008, p. 125-143. Tradução de João Maurício Adeodato a partir de KIRSTE, Stephan. Der Beitrag des Rechts zum kulturellen Gedächtnis. Archiv für Rechts- und Sozialphilosophie, 94 (2008), Heft 1, S. 47-69 9 Para isso conferir a obra clássica que continua sendo publicada integrando as de Marco Túlio Cícero, muito embora seja hoje considerada apócrifa: Retórica a Herennio. Obras Completas de Marco Tulio Cíceron (em 16 tomos). Madrid: Librería y Casa Editorial Hernando, 1928, tomo III. 10 CASTRO JR., Torquato. A pragmática das nulidades e a teoria do ato jurídico inexistente. São Paulo: Noeses, 2009, p. 67 s. WINTER, Steven L. Transcendental nonsense, metaphoric reasoning, and the cognitive stakes for Law. 137 University of Pennsylvania Law Review 11. Pittsburg: University of Pennsylvania, april 1989. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 21 consiste na própria ciência do direito, a ciência dogmática do direito. Claro que tudo depende do conceito de ciência, da hierarquia estabelecida para os diversos tipos de conhecimento, do grau de interferências bem sucedidas daquele tipo de conhecimento no ambiente. Ao “homem de letras” contemporâneo, acostumado ao domínio das ciências “exatas” e das tecnologias na academia e na ciência, pareceria bizarra a queixa de Francis Bacon contra as ciências retóricas como o direito (nullius in verba – nada de palavras). O sucesso da tecnologia é fenômeno recente e ainda restrito. Com o novo conceito tecnológico de ciência, os antigos temas dos humanistas precisaram se revestir das novas linguagens, novos métodos e estratégias a eles concernentes, metodologias. A grande maioria das pesquisas sociais se baseia na entrevista, que é um método estabelecido e bem definido. Mas mesmo os pesquisadores sociais, muito mais avançados metodologicamente do que os juristas, não dão a mesma importância aos textos. Como aqui se sugere a análise de texto como ferramenta para estudo da dogmática jurídica em seus dois níveis, os diversos métodos de entrevista são aqui deixados de lado por razões óbvias, pois trata-se de uma metodologia do tipo presencial que não cabe numa tese filosófica. Nesse sentido distancia-se a metódica retórica aqui proposta para as ciências sociais. Há problemas básicos a serem considerados na escolha dos textos e o primeiro deles é justamente o da amostragem, ou seja, a quantidade e a qualidade de textos a serem estudados como representativos dos métodos que a análise quer relevar, ou seja, como selecionar; pode haver uma quantidade de textos impossível de ser tratada no tempo da pesquisa, os textos metodológicos das estratégias doutrinárias podem ser de difícil acesso. Um segundo problema diz respeito à relação entre os conceitos e critérios de análise escolhidos pelo pesquisador e o período histórico a que eles se aplicam, ou seja: se os conceitos e critérios do analista são amplos demais – ampliar é a tendência para poder atingir unidade e coerência – ficam vagos; se são específicos demais tendem a valer apenas para determinados casos tratados pela dogmática; a mudança da sociedade brasileira pode se revelar tema amplo demais, enquanto que a análise de texto dos discursos de Ruy Barbosa contra a redação de Clóvis Bevilaqua pode não ter o significado inicialmente esperado pelo pesquisador do Código Civil de 1916. Em terceiro lugar, o pesquisador ou pesquisadora precisa meditar sobre em que medida os autores e textos escolhidos efetivamente refletem o ambiente, a retórica material mais consensual possível naquele momento, cuidando também para que a influência da doutrina não seja exacerbada ou minimizada na constituição da dogmática material. A retórica analítica não adota os critérios científicos das ciências sociais em geral, os quais enfatizam uniformidade e consistência, além de quantificação, no levantamento dos dados. Ela é mais flexível e reconhece expressamente a interferência do pesquisador sobre seu objeto, apesar da busca constante de neutralidade descritiva. A retórica analítica não reivindica senão umas poucas ARGUMENTA - UENP 22 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP afirmações de validade universal, diferentemente das ciências, pois seu discurso é relativo não apenas ao orador, mas também ao auditório. E também ao ambiente. Se a adequação das teses está condicionada pelo espaço, pelo tempo e pelos sujeitos envolvidos, então deve dar-se mais atenção ao particular e casuístico do que às afirmações de caráter geral. Atitudes normativas, que buscam otimizar o campo de estudo, dizendo, por exemplo, como o direito deve ser, são vistas com desconfiança. Mas mesmo a postura descritiva, mais adequada ao pesquisador, é tida como meramente tentativa, já que, em última análise, qualquer descrição é mesmo uma prescrição, na medida em que visa obter alguma conduta do auditório, alguma reação desejada pelo orador, em suma: visa sugerir-lhe algo. Daí insista-se que os três níveis se interpenetram. 3. OS POSTULADOS FUNCIONAIS DA ATIVIDADE DOGMÁTICA PARA TRATAR OS DOIS PROBLEMAS: DO TEXTO À NORMA CONCRETA Ubi societas ibi jus, reza o famoso brocardo. Cada comunidade humana constitui esse fenômeno que, um tanto imprecisamente, chama-se o direito positivo, o direito empiricamente perceptível. Embora seja observável em toda sociedade, o direito positivo, assim como as próprias sociedades em que se encontra, organizase dos mais diversos modos. Assim existe um direito positivo entre os indígenas da Amazônia hoje e existiu outro tipo de direito entre os indígenas norte-americanos de mil anos atrás; regras jurídicas identificáveis entre os iranianos de hoje não estavam presentes na Pérsia de Dario; e assim por diante. Cada uma dessas formas de direito positivo tem suas características. Pois bem. O direito dogmaticamente organizado é um fenômeno característico das sociedades complexas da modernidade, um direito construído para atender as necessidades desse tipo de sociedade. Ele apresenta várias peculiaridades, muitas das quais têm sido descritas pelos mais diversos autores aqui referidos e outros. A seguir serão brevemente expostas as fases pelas quais o direito dogmático trata os conflitos que lhe chegam, mostrando como lida com os dois grandes problemas filosóficos do direito, expostos na introdução desta tese, o problema das escolhas éticas do direito e o problema de relacionar as regras gerais prévias com os casos concretos individualizados. Para isso pode-se partir das descrições de Tercio Ferraz e Ottmar Ballweg. As formas de esses autores exporem o tratamento dogmático dos conflitos jurídicos não são excludentes, muito pelo contrário: complementam-se, posto que cada uma atenta para aspectos diferentes do mesmo fenômeno. Outra ressalva é que as fases são colocadas em série, mas apenas para efeitos de clareza na exposição. Parece óbvio que a interpretação e a argumentação, para dar um exemplo, interpenetramse e não podem ser rigorosamente separadas, assim como não se podem apartar a interpretação e a sugestão de decisão. Para descrever o direito dogmaticamente organizado, com base em Theodor Viehweg e Niklas Luhmann, Tercio Ferraz ressalta dois postulados ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 23 básicos11. Em primeiro lugar, a inegabilidade dos pontos de partida das séries argumentativas utilizadas ou o “princípio da proibição da negação”, isto é, a exigência de que toda e qualquer decisão e correspondente interpretação jurídica precisa se reportar expressamente a um ou mais “dogmas” do sistema, as habitualmente chamadas “normas jurídicas”; um argumento não vale por ter sua procedência sido cientificamente demonstrada em laboratório, ou por ser de acordo com determinados mandamentos religiosos ou morais. Ele vale somente na medida em que se reporta às regras do próprio sistema jurídico dogmático. Esse o dogma principal da dogmática. Em segundo lugar, a obrigatoriedade de decidir todo e qualquer conflito, ou seja, ou a situação é irrelevante ou o sistema lhe oferece uma solução. Esse dogma, que também constitui a espinha dorsal do sistema, é chamado a proibição do non liquet. Também inspirado em Viehweg, Ottmar Ballweg vai transformar esses dois postulados de base em quatro, os constrangimentos (Zwänge) dogmáticos12. Inicialmente o sistema dogmático precisa fazer o que o autor denomina “estabelecer” (positivar) “normas” (jurídicas), o Normsetzungszwang, pois a dogmática começa a se constituir a partir desse procedimento. É preciso antes de tudo fixar as regras de base, aquelas que definem quem vai e como vai fixar outras regras para decidir os casos individuais. Não pode haver dogmática sem um sistema de regras (supostamente) explícitas. Note-se que aqui a preocupação é com o primeiro problema da filosofia do direito, ou seja, fixar as regras máximas, iniciais, do direito positivo, enquanto a atenção de Tercio Ferraz desloca-se mais para o segundo problema, o apelo às regras diante do conflito concreto. O segundo constrangimento dogmático é o Deutungszwang, a obrigatoriedade de interpretar as regras positivadas na fase anterior, isto é, dizer o que significam. Imagina-se que esse constrangimento se dê diante do caso, mas o autor não explicita claramente o que entende por interpretação. De toda forma, aceita a distinção entre significante e significado e parte do princípio de que as regras positivadas não podem apresentar uma só interpretação. O terceiro é o constrangimento a decidir, Entscheidungszwang, e neste a ideia coincide com a de Tercio Ferraz sobre a proibição do non liquet. Com o quarto constrangimento Ballweg quer chamar atenção para o elemento axiológico da dogmática jurídica, que não pode simplesmente decidir assim ou assado, para o problema da legitimidade com que todo direito positivo precisa lidar. É a obrigatoriedade de fundamentar, Begründungszwang, a necessidade de justificar as regras e as decisões delas decorrentes. 11 FERRAZ Jr., Tercio. Função social da dogmática jurídica. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1980, p. 95 s.; e FERRAZ Jr., Tercio. Introdução ao estudo do direito – técnica, decisão, dominação. São Paulo: Atlas, 2008, p. 25 s. BALLWEG, Ottmar, Entwurf einer analytischen Rhetorik, in SCHANZE, Helmut (Hrsg.). Rhetorik und Philosophie. München: 1989, p. 229 e s.; VIEHWEG, Theodor, Notizen zu einer rhetorischen Argumentationstheorie der Rechtsdisziplin, in Rechtsphilosophie oder Rechtstheorie? Darmstadt: Wissenschaftliche Buchgesellschaft, p. 315-326. 12 ARGUMENTA - UENP 24 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Mais uma prova de que esses constrangimentos não podem ser a rigor separados é que na dogmática jurídica, adverte Ballweg, o constrangimento à fundamentação é exatamente resolvido pelo apelo aos outros três constrangimentos, o que equivale a dizer que uma decisão concreta será justa (devidamente fundamentada) quando embasada em uma norma jurídica posta pelo primeiro constrangimento a fixar regras, interpretada por meio do segundo constrangimento e criada pelo terceiro. Esta tese tenta também cooperar para o debate sobre o funcionamento da dogmática jurídica e parte da separação entre texto e norma, no rasto da metódica estruturante de Friedrich Müller13, tentando simplificá-la na direção de uma teoria da decisão, uma teoria da interpretação e uma teoria da argumentação, temas dos capítulos sétimo, oitavo e nono, respectivamente. Aqui sugerem-se quatro passos ou estágios, com as ressalvas acima mencionadas sobre seu caráter didático. O débito para com os constrangimentos de Ottmar Ballweg, Tercio Ferraz Junior e Theodor Viehweg também salta aos olhos. Uma comunicação entre dois ou mais indivíduos chega ao direito dogmático quando é relacionada com uma ou mais fontes do direito. Isso quer dizer que o primeiro constrangimento diante das divergências é selecionar, dentro de um universo de textos positivados que constituem o ordenamento jurídico, aqueles que vão servir de base à decisão dogmática sobre o caso. Esses textos precisam ser adequados ao caso, de acordo com mecanismos complexos de seleção: por exemplo, se o caso diz respeito a conflito de vizinhança, o Código Penal, as instruções normativas do Banco Central ou a Consolidação das Leis do Trabalho serão desde já excluídas desse processo seletivo de redução de complexidade. Os textos escolhidos precisam também ser válidos, isto é, elaborados de acordo com as regras de produção do sistema dogmático (autoridade e rito), e vigentes, ou seja, aptos a satisfazer esse primeiro constrangimento de servir de base ao prosseguimento do processo decisório dogmático. Esses textos devem ser escolhidos dentre um emaranhado de outros textos dotados de validade, os quais por isso mesmo compõem o ordenamento jurídico, textos produzidos por administradores públicos e privados, por legisladores, por magistrados, burocratas de uma maneira geral, e hierarquizados de acordo com metarregras que por sua vez demandam interpretação. Esses textos, invocados pelos participantes do discurso dogmático, serão dados de entrada para interpretações e argumentações que pretendem dar o significado deles diante do caso concreto, decidindo-o, isto é, constituindo-o no plano da retórica material. Para interpretar e argumentar contra essas fontes escolhidas é preciso escolher outras fontes do mesmo ordenamento, também qualificadas como adequadas ao caso e válidas. É assim procedente a expressão inegabilidade dos pontos de partida, os argumentos em confronto precisam pertencer a um mesmo 13 V. item 7.1. adiante. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 25 sistema de textos, este é o dogma básico da dogmática jurídica: para negar um ponto de partida é preciso apelar a outro ponto de partida. Exigir essas interpretações, o segundo passo na subdivisão aqui sugerida, quer dizer que a dogmática jurídica demanda que os participantes sugiram qual o sentido e o alcance dos textos aos quais apelam, tendo em vista o caso concreto, combatendo-lhes a ambigüidade e a vagueza. Não basta indicar os textos, é necessário dizer o que significam diante do caso concreto, pois o texto não “tem” um sentido “próprio” ou “adequado”, mas uma infinidade deles é possível. Só no final do processo de concretização a dogmática se constrange a fixar um sentido relativamente definitivo: até a coisa julgada, e por vezes depois dela, todos os operadores jurídicos, mesmo os magistrados, fornecem meras sugestões concorrentes pela decisão que lhes parece adequada. Vagueza e ambigüidade, além de outras formas de imprecisão lingüística, estratégicas ou não, constituem-se em características centrais do discurso na concepção retórica da linguagem, não são disfunções ou fruto da incompetência de mau oradores ou auditórios. As inconsistências, que resultam nas antinomias do sistema jurídico, e as incompletudes, que se mostram nas lacunas, decorrem dessa incompatibilidade entre significantes e significados. Isso será visto mais de perto no capítulo oitavo adiante. O direito dogmático trabalha essas imprecisões na medida em que distancia-se dos eventos que pretende controlar, qualificando-os, transformandoos em “conceitos normativos” com mais ou menos flexibilidade em termos de alcance e sentido. Os significantes hermenêuticos, os textos, permanecem aparentemente os mesmos e procuram garantir a continuidade do discurso, mas seu significado continua a variar ao longo dos procedimentos dogmáticos. O terceiro passo é a argumentação. Tem-se então, em primeiro lugar, o orador e o ouvinte ou audiência. Um orador (ou “ator”) é um partícipe do discurso que emite uma opinião fundamentada, isto é, argumentos14. Um aspecto importante é o argumento factual, pois os fatos são apresentados na linguagem como evidências e não como “meros” argumentos de tese, ainda que essa distinção não resista à análise retórica, conforme mencionado acima. Um exemplo de argumento de tese sobre a dogmática jurídica é “uma sociedade estará tanto mais apta a dogmatizar seu direito quanto mais autopoieticamente organizada esteja”. Um exemplo de argumento factual é “o direito brasileiro não é dogmaticamente organizado na medida em que o número de pobres condenados é várias vezes maior do que a proporção de pobres em liberdade”. Mas, como dito, a análise não vê distinção essencial entre esses dois tipos de argumentos. O fundamental é que os argumentos se reportem aos textos inicialmente apontados e constituam um produto aparentemente coerente com as significações hermenêuticas construídas. 14 LIAKOPOULOS, Miltos. Análise argumentativa, in: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2005, p. 218-243. ARGUMENTA - UENP 26 JACAREZINHO Nº 18 P. 11 – 29 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O discurso dogmático é um todo sistemático que pode ser decomposto (analisado) em várias unidades, tais como letras, palavras e fonemas, do mesmo modo como o discurso musical e o pictórico reúnem unidades específicas. Para a dogmática o elemento mais importante a ser isolado e estudado são os argumentos. Com a decisão definitiva o processo de determinar o significado das fontes alegadas chega ao seu termo e o caso concreto é juridicamente conhecido e avaliado, isto é, “normatizado”. Antes disso, todos os participantes do discurso, inclusive os magistrados nas sucessivas instâncias, apenas sugerem decisões que lhes parecem corretas e assim retroalimentam a discussão. Não se pense que “decisão definitiva” implica que a divergência tenha sido levada a juízo, basta que a relação jurídica esteja consolidada, como pode ser o caso de um contrato devidamente cumprido, do qual ninguém reclamou. Assim, enfatiza-se aqui o conflito e a lide judicial para melhor esclarecer a ação dogmática. Mas claro que todas as situações jurídicas definidas sem a intervenção dogmática do Estado, desde que de acordo com os cânones de seu sistema, consideram-se devidamente concretizadas, como ocorre nos casos em que a prestação normativa é cumprida espontaneamente e constitui um evento juridicamente relevante sobre o qual não há conflito. Não apenas coisas julgadas, mas também “atos jurídicos perfeitos” ou “direitos consumados” têm seus significados garantidos pelo sistema dogmático. Por isso têm razão Müller e Häberle ao dizer que a constituição se concretiza também ao largo dos tribunais15. Deixa-se aqui de lado o quinto passo do procedimento dogmático, tal como sugerido por Ballweg, a necessidade de fundamentação, por se entender que os passos antes da decisão definitiva constituem exatamente a fundamentação dogmática, sua resposta ao abismo axiológico e à questão da legitimidade. Separar a fundamentação como estágio ou constrangimento à parte parece admitir a separação entre legalidade e legitimidade afastada pelo positivismo e pela dogmática jurídica, assim como pela atitude retórica. O leitor poderia agora pensar que, diante de uma lide, cada parte envolvida no discurso dogmático escolhe fontes diversas e daí as interpreta e argumenta diferentemente, para daí sugerir cada qual uma decisão. Isso acontece muito, mas nem sempre é assim. Para isso é ilustrativo observar os votos dos magistrados do Supremo Tribunal Federal, por exemplo. Pode haver coincidência de algumas ou até de todas as fontes alegadas e a divergência começar na interpretação; e pode haver coincidência nas fontes e na interpretação, com divergência na argumentação. E pode haver acordo quanto aos três constrangimentos, mas na fase da decisão decisão surgir a divergência. O essencial é que haja conflito pelo menos no quarto passo, na hora de sugerir a decisão, caso contrário não se está numa lide dogmática, pois sem divergência não há lide. 15 MÜLLER, Friedrich. Juristische Methodik. Berlin: Duncker & Humblot, 1997. HÄBERLE, Peter. Die offene Gesellschaft der Verfassungsinterpreten, in Verfassung als öffentlicher Prozeß. Materialien zu einer Verfassungstheorie der offenen Gesellschaft. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 155-181. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 27 A análise retórica da dogmática jurídica mostra que ela constrói o direito caso a caso, vale dizer, que o direito não é previamente dado, mas também que essa construção não é “livre”, precisa respeitar “regularidades”, “constrangimentos” ou como se os queira denominar, métodos da retórica material e metodologias divergentes sobre como tratá-los. Como tem uma visão retórica do conceito, esta tese procura os significados mais importantes com que a expressão “norma jurídica” é utilizada. A expressão não faz parte do vocabulário comum, mas na dogmática jurídica aparece com três sentidos que serão explorados na presente tese: norma como significante ou expressão simbólica, a chamada fonte do direito, como quando se identificam os conceitos de norma e lei; norma como significado ideal, unidade de um tipo de comunicação racional que promete para controlar agora o futuro; e norma como significado “real” (eventual), o retorno ao mundo dos eventos propiciado pela decisão concreta efetivamente constitutiva da realidade. O direito parte do mundo dos eventos, com o conflito, e a ele volta, com a decisão. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALLWEG, Ottmar, Entwurf einer analytischen Rhetorik, in SCHANZE, Helmut (Hrsg.). Rhetorik und Philosophie. München: 1989. BAUER, Martin W. Análise de conteúdo clássica: uma revisão, in: BAUER, Martin W. e GASKELL, George. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som – um manual prático. Petrópolis: Vozes, 2005. BLUMENBERG, Hans. 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ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 11 – 29 2013 29 30 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O DIREITO COMO UM PROCESSO EMANCIPATÓRIO: A EPISTEMOLOGIA DIALÉTICA NO BRASIL* THE LAW AS AN EMANCIPATORY PROCESS: THE DIALECTIC EPISTEMOLOGY IN BRAZIL Horácio Wanderlei RODRIGUES** Leilane Serratine GRUBBA*** SUMÁRIO: Introdução; 1 Notas introdutórias sobre a dialética: de Hegel à Marx; 2 A epistemologia dialética de Lyra Filho; 3 Conhecer o direito: entre o jurídico e o social; Considerações finais; Referências. RESUMO: Este artigo tem por objeto a epistemologia dialética e objetiva investigar o que é Direito no pensamento de Lyra Filho, assim como se essa concepção de epistemologia pode contribuir para o progresso da ciência do direito. Este artigo centrou-se na análise do método dialético, do qual partiu Lyra Filho para a construção de sua metodologia dialética de compreensão do direito brasileiro. Sequencialmente, foi analisada a dialética na forma proposta por Lyra Filho. Por fim, investigou-se o que é o direito para esse pensador, em seu método dialético, e se essa concepção pode contribuir para o progresso da dimensão científica dessa área do conhecimento. ABSTRACT: This article focuses on dialectic epistemology and aims to investigate the notion of law for Lyra Filho’s dialectic epistemology, as well as if this notion can contribute for the advance of the Science of Law. We focused on the analysis * O presente trabalho foi realizado com apoio do CNPq, Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – Brasil, no âmbito do projeto de pesquisa “Conhecer Direito: os processos de produção do conhecimento na área do Direito - o conhecimento jurídico produzido através da pesquisa, do ensino e das práticas profissionais”. ** Doutor e Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio de Pós-doutorado em Filosofia na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS. Professor Titular do Departamento de Direito da UFSC, lecionando no Curso de Graduação e no Programa de Pós-graduação (PPGD - Mestrado e Doutorado). Sócio fundador do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP). Coordenador do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI). Pesquisador do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). [email protected]. *** Doutoranda em Direito e Mestre em Direito na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora Substituta do Curso de Graduação em Direito da UFSC. Pesquisadora do Núcleo de Estudos Conhecer Direito (NECODI) e do Grupo de Estudos Direito e Literatura (LITERATO). Bolsista do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). [email protected] Artigo submetido em 10/08/2012. Aprovado em 22/11/2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 31 of the dialectial method, because this what the thought Lyra Filho has used for the construction of his on notion of dialectic. In the second place, we analyzed the dialectic method for Lyra Filho. Finally, we investigate what is law for Lyra Filho, as well as if this conception can contribute to the advance of the scientific knowledge of Law. PALAVRAS-CHAVE: Conhecimento Jurídico. Metodologia Jurídica. Ciência do Direito. Dialética. Lyra Filho. KEYWORDS: Juridical Knowledge. Juridical Metodology. Science of Law. Dialectic. Lyra Filho. INTRODUÇÃO O jurista brasileiro Roberto Lyra Filho buscou na epistemologia dialética, especialmente a dialética marxista, a possibilidade de compreender o fenômeno jurídico – o direito –, de maneira científica e não ideológica. Com essa noção de direito, ele buscou promover o empoderamento da sociedade brasileira. A grande crítica de Lyra Filho se dirigiu ao monopólio Estatal na produção do direito ou, em outras palavras, na identificação do direito à lei. No pensamento dele, a lei é direito, mas o direito não se reduz à lei. O direito é muito mais amplo que a lei e a engloba; ele se confunde com a própria práxis social na busca de bens necessários para a vida digna – a Justiça social. É com essa práxis social ou com a própria sociedade que o Direito se confunde. A dialética de Lyra Filho implica uma visão social do direito – o direito humanizador. Por isso, o direito de Lyra é justiça (a justiça social), que é justamente a própria libertação alcançada por meio de um processo histórico. Nesse sentido é que o pensador constrói uma metodologia dialética para a apreensão do direito como um fenômeno da sociedade para a libertação e para a justiça social. Diante desse quadro, este artigo tem por objeto a epistemologia dialética de Lyra Filho e objetiva investigar o que é o fenômeno jurídico – o direito – em seu pensamento, assim como se sua concepção epistemológica pode contribuir para o progresso do conhecimento científico do direito. Em primeiro lugar, este artigo centrou-se na análise do método dialético, no intuito de averiguar os seus pressupostos, assim como de conhecer, em síntese, a dialética de Hegel e, principalmente, a de Marx, da qual partiu o método dialético de Lyra Filho para a compreensão do direito brasileiro. Por conseguinte, foi investigada a epistemologia baseada na maneira de conhecer o mundo fundamentada na seguinte concepção: a contraposição de dois polos de ideias detém o condão de gerar uma nova ideia. Sequencialmente, analisamos a dialética de Lyra Filho, que surgiu como uma releitura da dialética marxiana aplicada ao âmbito jurídico. Esse pensador ARGUMENTA - UENP 32 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP construiu uma metodologia dialética para a apreensão do direito como um fenômeno da sociedade para à libertação e à justiça social. Averiguamos, por conseguinte, que a base do pensamento deste autor, pode ser sintetizada na proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é direito: a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem. Por fim, investigamos o que é, dialeticamente, o Direito para esse pensador, assim como qual é a sua função. Em resumo, uma investigação do Direito enquanto um fenômeno da sociedade para à libertação e à justiça social. A partir disso, buscamos responder ao seguinte questionamento: se essa concepção de Direito pode contribuir para o progresso da dimensão científica dessa área do conhecimento. 1 NOTAS INTRODUTÓRIAS SOBRE A DIALÉTICA: DE HEGEL À MARX A dialética é uma maneira de conhecer o mundo baseada na seguinte concepção: a contraposição de dois polos de ideias detém o condão de gerar uma nova ideia. Nesse sentido, a dialética é uma vertente da filosofia que tem por objeto o conhecimento da realidade por meio de uma metodologia específica. Sob esse ponto de vista nos é permitido falar de uma epistemologia dialética. Originária da Grécia, ao menos para o conhecimento ocidental, a dialética representou um novo ordenamento do demos (a democracia) contra a aristocracia. Isso porque ela se apresentou como o início do “[...] discurso, da comunicação imposta pela necessidade de encontrar o consenso e o acordo geral nos debates.” (SICHIROLLO, 1973, p. 7) Daí o porquê de a cidade ser o autêntico local do surgimento da dialética. Ainda que a operação dialética já tivesse sido feita por Sócrates e por outros pensadores, foi Platão quem introduziu a palavra dialética na história da filosofia (SICHIROLLO, 1973, p. 11). Em resumo, podemos afirmar que, na antiguidade, entre os Sofistas e Aristóteles, a dialética esgota todas as possibilidades, presentes e futuras, pois ela foi considerada: [...] o diálogo e a sua técnica, a arte do discurso breve, da discussão, da persuasão; é a ciência, teoria ou teoresi em sentido grego, isto é, a visão do inteligível, mas é também o caminho, o tirocínio que conduz à ciência; o instrumento (mas só em Aristóteles) que permite chegar aos princípios das ciências e, eventualmente, discuti-los; a ciência-não-ciência sem um objecto seu, uma arte, uma técnica, em sentido grego, que põe o homem nas condições de poder falar de tudo, um tipo de educação, como se exprimia Aristóteles, que faz do homem comum um homem culto e do cientista, um especialista (isto é, em sentido aristotélico, do professor ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 33 que ensina) uma pessoa capaz de falar com os outros, com os não especialistas. Podemos fazer a mesma observação, ainda que nos exprimamos com uma terminologia moderna, estranha e desconhecida dos gregos. Entre os Sofistas e Aristóteles a dialéctica esgota ou – se quisermos ser mais prudentes – faz uma experiência irrepetível ou repetida só com o acréscimo de algum corolário, mesmo importante, das suas duas grandes possibilidades, de duas configurações suas, de que não mais de libertou: dialéctica objetiva, isto é, grosso modo, a dialéctica do diálogo como expressão ou efeito das contradições da realidade, em suma, a dialética onológica, e dialéctica subjectiva, digamos assim (ainda aqui grosso modo), a dialética lógica, em sentido aristotélico, onde lógico significa abstracto, ou melhor, vazio, isto é, sem um conteúdo determinado, a dialéctica do diálogo, em resumo, ou o diálogo como dialéctica para mostrar como um discurso ou uma argumentação débil pode tornar-se forte, ou seja, pode convencer o interlocutor Deste ponto de vista, Protágoras e Sócrates defendem teses diversas ou, pelo menos, muito distantes entre si. (SICHIROLLO, 1973, p. 85-86) Da antiguidade grega à modernidade ocidental, a palavra dialética comportou inúmeros significados distintos. No que tange à própria modernidade, em que pese sob a mesma nomenclatura, existem diversas metodologias dialéticas, as quais nem sempre se comunicam. O que é comum, ao menos na modernidade, é a busca de elementos conflitantes da realidade para a explicação de um terceiro elemento, decorrente do conflito. Na realidade, podemos afirmar que a dialética, em suas variadas vertentes1, a exemplo da hegeliana e da marxista, se configura num sistema dual. A dial-ética ou duas-éticas é a ética de duas vias, do diálogo ou de dois polos. O primeiro polo é a tese, que é uma afirmação ou um dado da realidade. O segundo, a antítese, que é o complemento da tese – o seu oposto. Do confronto gerado entre a tese e a antítese é que, de maneira sintética, surge um novo elemento e/ou uma nova situação que comporta a síntese. A síntese, por sua vez, se configurará numa nova tese, vez que a dialética não comporta fim. Daí porque essa nova tese (a síntese) será contraposta a uma nova antítese, gerando uma nova síntese, e assim por diante, pois tudo pertence a um processo de constante devir. Nesse sentido, também podemos afirmar que a dialética se apresenta como o início do esquema triádico, quer dizer, o método dialético possui três elementos base: a tese, a antítese e a síntese. Conforme Sant’anna (2008, p. 21), foi Engels, em seu livro Anti-Düring (1978), que sistematizou a dialética da seguinte maneira: 1 Apesar de sua importância, neste artigo, não iremos abordar a dialética kantiana. ARGUMENTA - UENP 34 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 1) Da passagem da quantidade à qualidade e da qualidade à quantidade: tudo muda, seja na natureza ou na cultura humana, mas em ritmos quantitativamente diferentes, embora o ritmo possa ser eventualmente acelerado e o movimento de transformação possa dar saltos qualitativos. 2) Da interpretação dos contrários: os opostos se atraem e se complementam mutuamente. A cosmovisão (seja materialista ou idealista) é uma cosmovisão sistêmica baseada na contradição/conexão dos contrários ou na unidade e luta dos contrários. 3) Da negação da negação: o movimento de contradição de duas engrenagens existe para garantir o movimento de transformação. O mais importante, então, não é a contradições pela contradição, mas a transformação gerada pelo movimento. A tese representa a afirmação, e a antítese sua negação. No processo de negação da afirmação também a negação deve ser negada. Da negação da negação é que surge a síntese. Ou seja, a superação dialética do conflito em prol da construção de uma nova realidade. Emerge como exemplo desse modelo, o pensamento de Hegel. Para esse pensador, segundo Chauí (2009, p. 80), os conflitos filosóficos são a história da própria razão, assim: [a própria razão], a qual afirma uma tese (por exemplo, a tese inatista), nega essa tese (por exemplo, a tese empirista nega a inatista) e chega a uma terceira posição que nega as das anteriores (por exemplo, a posição kantiana). Mas essa terceira tese, ao ser afirmada, torna-se uma primeira tese que será negada por uma outra (por exemplo, a Filosofia do chamado Romantismo alemão, que negou a Filosofia kantiana) até que uma terceira tese (no caso a Filosofia de Hegel) negue as duas anteriores numa verdade superior que as engloba e as compreende. Esse movimento da razão, explica Hegel, tem a peculiaridade de nunca destruir inteiramente o que ela afirmou antes, mas incorpora o caminho percorrido numa verdade superior. O caminho é feito de verdades parciais que vão sendo reunidas até que se chegue a uma verdade totalizadora que as engloba. Eia por que Hegel afirma que a história da razão ou a história da Filosofia é a memória dos caminhos percorridos, que foram conservados naquilo que tinham de verdadeiro. O idealismo histórico de Hegel (2000) faz o mundo obedecer a um processo autogerado que coincide com o desenvolvimento da dialética espiritual. Isso quer dizer que, em última instância, o real coincide com o racional. Trata-se, por conseguinte, de uma filosofia dialética que desce do céu para a terra. Filosófica e politicamente, Hegel foi influenciado pela tradição racionalista ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 35 ocidental, que tem fundamento no pensamento de Descartes, ou seja, a ideia de que um objeto do conhecimento pode ser conhecido pelo humano na medida em que foi produzido por ele próprio. Além disso, estabelece a universalidade abstrata desse conhecimento. O idealista Hegel percebeu que a universalidade essencial não poderia partir de qualquer base empírica, pois não era um fato. Deveria, pelo contrário, ser concebida por meio de uma razão humana autônoma. Daí porque podemos falar de um projeto hegeliano do homem total, que deveria se realizar em todas as dimensões da vida humana. Em sua obra Princípios da Filosofia do Direito, Hegel (1997) buscou compreender aquilo que é – a razão. Para ele, a filosofia é aquilo que se produz no mundo do espírito. Ao buscar a reconciliação entre a filosofia e a realidade, Hegel transpôs a problemática da experiência para o plano do pensamento abstrato e conceitual. Assim, quanto mais abstraído da realidade, mais verdadeiro e real pode ser considerado o conhecimento. Isso porque o mundo dos fatos, para ele, não se configura como racional. Para ser racional, deve ser abstraído pela razão. Hegel chama essa ideia de dialética: duas éticas, na qual existe um sistema que inclui um polo negativo e um polo positivo do objeto, e que vise reproduzir o processo mediante o qual o objeto se torna falso e, em seguida, volta a ser verdadeiro. Assim, o racional é real e o que é real é racional: existe uma identidade entre razão e realidade. Além disso, o mundo abriga a co-pertinência entre ser e nada. Isso significa que, o que é só é (pode ser) na medida em que do seu ser, surge o que não é, mas que venha a ser, e o que é e passa a não ser. Em suma, existe um caráter processual da realidade. Hegelianamente, a dialética é uma teoria que afirma que algo, tal como o pensamento humano, pode se desenvolver mediante três fases: a tese, a antítese e síntese. Sobre isso, Popper expõe: Em primeiro lugar existe uma idéia, teoria ou movimento, que se pode denominar tese. Esta tese muitas vezes suscitará oposição, porque, como a maioria das coisas deste mundo, terá um valor apenas restrito e apresentará pontos fracos. A oposição, ou o movimento contrário, será denominada antítese, pois se dirige contra a primeira afirmação, a tese. O conflito entre a tese e antítese durará até se conseguir encontrar uma solução que, em certo sentido, decorra da tese e da antítese, precisamente em razão do reconhecimento das suas desvantagens devido à tentativa de preservar os valores positivos de ambas e de evitar as deficiências. Esta solução – a terceira fase, portanto – será designada como síntese. Porém, logo que se alcançou esta síntese, ela pode por sua vez tornar-se o primeiro passa de um novo processo dialético ternário, o que acontecerá quando a síntese alcançada se revelar unilateral ou então insatisfatória. Pois neste caso suscitará de novo uma posição, o que significará que a síntese passará agora a ser designada como uma nova tese, que suscitará uma nova antítese. ARGUMENTA - UENP 36 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Assim o processo dialético ternário prosseguirá a um nível mais elevado e poderá existir um terceiro nível após ter-se realizado uma segunda antítese. (POPPER, 1981, p. 27) Segundo Sichirollo (1973, p. 155) podemos afirmar, sem violentar o pensamento de Hegel, que ele considera a dialética um dos momentos da logicidade – o movimento do pensamento, que reflete o movimento da realidade ao tomar consciência dela. Assim, num sentido hegeliano, a dialética é: “a autêntica natureza das coisas e do finito em geral”, uma “resolução imanente, na qual a unilateralidade e a limitação das determinações intelectuais se exprimem como o que ela é, ou seja, como a sua negação” - e não esqueçamos que por determinações intelectuais Hegel entende coisas, conceitos ou factos isoladamente considerados, isto é, abstractos. [...] Hegel fala da ciência, mas devemos recordar, como já sublinhámos, a ligação entre a realidade e a compreensão da realidade, que é o princípio fundamental da filosofia hegeliana. Nós falamos da realidade porque há uma realidade e porque podemos compreendê-la, e podemos compreendêla apenas através do pensamento e dos conceitos. Sem este princípio não há, para Hegel, nem realidade, nem conceitos, nem linguagem. (SICHIROLLO, 1973, p. 156) Pois bem, o que devemos considerar é que a dialética de Hegel reduz a tese e antítese a meros componentes da síntese. Segundo Popper, é certo que o processo ternário dialético descreveu passos bem determinados na história intelectual, principalmente no que concerne à evolução de certas teorias ou movimentos sociais baseados em ideias ou teorias. Contudo, ele salienta que “[temos] de lidar cuidadosamente com um grande número de metáforas que são usadas pelos dialéticos e muitas vezes tomadas muito a sério. É exemplo disso a expressão dialética de que a tese ‘cria’ a sua antítese” (POPPER, 1981, p. 29). É somente a atitude crítica que pode criar a antítese. Da mesma forma, Popper salienta que “[...] nos devemos acautelar com a opinião de que é do conflito, da ‘luta’ entre tese e antítese que resulta a síntese. É um conflito do pensamento; e é o pensamento, a procura, que cria, as novas ideias” (POPPER, 1981, p. 29). Mais do que isso, Popper aponta para a gravidade do equívoco ocasionado pela ausência de claridade com que os dialéticos se referem a contradições: [Os dialéticos] afirmam com absoluta exatidão que as contradições são da maior importância na história da filosofia – tão importantes quanto a crítica. Pois a crítica consiste em apresentar sempre uma contradição: ou uma contradição dentro da teoria criticada, ou uma contradição entre esta ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 37 teoria e uma outra que, por qualquer motivo, queremos aceitar, ou uma contradição entre a teoria e determinados fatos – ou, mais precisamente, entre uma teoria e determinadas afirmações de fatos. A crítica nunca pode fazer mais do que descobrir qualquer destas contradições ou simplesmente refutar a teoria (isto é, a crítica só pode ser a exposição da síntese). Porém, num sentido muito importante, a crítica constitui a verdadeira força motriz do desenvolvimento intelectual. Sem contradição, sem crítica, não existiria nenhum motivo razoável para modificarmos as nossas teorias: não haveria progresso intelectual. (POPPER, 1981, p. 29) Os dialéticos entendem que a síntese surge da contradição entre tese e antítese. Em virtude disso, percebem que a contradição é proveitosa e gera o processo de pensamento. Isso significa, para Popper (1981, p. 29-30), um ataque contra a proposição da contradição, que é a lei da contradição impossível da lógica tradicional. Segundo essa lei, de duas afirmações que se contradizem nunca podem ambas ser verdadeiras, sendo que uma afirmação que consiste numa conjunção de duas afirmações contraditórias deve ser rejeitada como falsa, assim como eliminada por motivos puramente lógicos. De maneira oposta, Cirne-Lima (2005, p. 101) critica essa ideia popperiana. Para esse autor, não existe contradição na dialética, visto que a tese é entendida como o dito e a antítese como o contradito. Assim, um é verdadeiro e o outro é falso: não são ambos verdadeiros. Mais do que isso, existe um sujeito lógico na dialética, que é o absoluto, Deus, o todo, todas as coisas (CIRNE-LIMA, 2005, p. 107). Diante disso, esse autor afirma que existe uma diferença entre contradição e contrariedade. Os dialéticos, segundo ele, falam de contradição, “[...] mas querem dizer contraditoriedade. Falam de contraditórios, mas querem dizer contrários. Os Dialéticos estão dizendo bobagem? Sim e não” (CIRNE-LIMA, 2005, p. 107). O grande problema, segundo esse pensador, reside no fato de que os Dialéticos normalmente não empregam um sujeito lógico expresso na sintaxe usada. Por isso, o quantificador também fica oculto, e então, nem mesmo os Dialéticos estão bem seguros, “[...] quando falam de dois pólos opostos, se estes são Contrários ou são Contraditórios.” (CIRNE-LIMA, 2005, p. 114) Para Cirne-Lima (2005, p. 114), os dialéticos não querem dizer contradição, mas sim contraditoriedade, muito embora o jogo dos opostos seja um jogo dos contrários e não da contraditoriedade. Daí porque, o argumento desse pensador, para dizer que os dialéticos não negam o princípio da nãocontraditoriedade, é que não se pode argumentar a racionalidade da argumentação. Ainda que Cirne-Lima (2005, p. 115) tenha afirmado que a dialética é contraditoriedade, ele afirma que o jogo dos opostos quer dizer que a tese e a antítese são falsas e, por isso mesmo, elas conduzem à síntese. Posteriormente, ao invés de se referir à tese e a antítese como contrários, mas não contraditórios, esse ARGUMENTA - UENP 38 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP pensador afirma “A soma de dois conceitos contraditórios [...] abrange a totalidade das coisas existentes e possíveis do futuro [...]” (CIRNE-LIMA, 2005, p. 119). Daí que o próprio argumento desse autor é contraditório. Além disso, para salvar seu argumento Cirne-Lima (2005, p. 135) ainda afirma que o Princípio da Coerência – o princípio da não-contradição – indica que a contradição deve ser evitada, mas não diz que ela é impossível ou que não deve existir. Daí que as contradições que, de fato, existem, devem ser superadas. Fica o questionamento: se tanto a tese quanto a antítese são falsas e conduzem à síntese, que se configura numa nova falsa tese, onde resta a tentativa de aproximação da verdade testa teoria científica? Como, então, pretende ela conhecer todos os fenômenos, quando, na realidade, se baseia somente em postulados falsos? De fato, como se percebe no próprio pensamento de Cirne-Lima, ainda que ele afirme o oposto, a contradição entre a tese e a antítese são fundamentos da dialética. Daí que Popper (1981, p. 29) afirmou que os dialéticos creem na contradição como o progresso sob a forma de síntese. Assim, concluem eles, de maneira equivocada, “[...] que não subsiste necessidade alguma de evitar essas proveitosas contradições. E até afirmam que não se devem evitar contradições, pois elas existem em toda a parte.” (POPPER, 1981, p. 29) Segundo Popper, quando os dialéticos creem na proficuidade das contradições, entendendo-as como o objetivo dessa lei lógica tradicional, eles afirmam que a dialética conduz a uma lógica, a lógica dialética. Com isso, a dialética – teoria da história – se torna uma teoria lógica e geral do universo. Para Popper, a consideração lógica da dialética é equivocada, vez que a evolução da dialética decorre de uma resolução, que é a não aceitação da contradição entre a tese e a antítese. A Ciência não pode aceitar contradições. Até porque, “[...] se acaso se admitirem duas afirmações que se contradigam uma à outra, então tem de se admitir toda e qualquer afirmação – pois de suas afirmações contraditória se pode logicamente deduzir qualquer uma afirmação válida.” (POPPER, 1981, p. 30) Quer dizer, popperianamente, devemos compreender que uma teoria que “[...] a qualquer informação que comunica, apresenta a negação dessa informação, não nos pode realmente transmitir nenhuma informação. Por conseguinte, uma teoria que contenha uma contradição é completamente inútil”. (POPPER, 1981, p. 33) A dialética não pode ser considerada em relação com a lógica, visto que esta deve ser entendida como a teoria da dedução, ao contrário da dialética, que não mantém relação com a dedução. Dessa forma Popper resume sua ideia: Então vamos resumir: o que a dialética é – dialética no sentido que podemos atribuir uma importância nítida ao processo dialético ternário – pode descrever-se assim: a dialética ou mais precisamente, a teoria dialética ternária, diz que determinadas evoluções ou determinados decursos da história se realizam de uma forma típica. Por isso mesmo ela é uma teoria ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 39 empírico-descritiva [...] a dialética não tem uma relação íntima especial com a lógica dedutiva. Um dos perigos da dialética consiste na sua ambiguidade. Essa ambiguidade facilita por demais não só a imposição de todos os tipos de desenvolvimento, mas também a sua interpretação dialética de diversas coisas físicas. (POPPER, 1981, p. 36) Ou seja, segundo a perspectiva popperiana, a dialética é utilizada para a explicação de toda e qualquer ideia, redundando em ambiguidades e num mero jogo de palavras. Aliás, a metodologia dialética de caráter idealista2 foi objeto da grande crítica de Marx a Hegel. Faltou, segundo Marx, a materialidade do mundo, isto é, a dialética deve ser materialista e historicista. Nesse sentido, a cosmovisão3 materialista de Marx opõe-se à idealista de Hegel. O princípio de identidade de razão e realidade de Hegel, segundo Popper, é caracterizado como idealismo absoluto em virtude de que afirma a identidade da realidade à sua essência. Marx inverteu a filosofia dialética, tornando-a uma espécie de materialismo. Tal como Marx, os defensores desse materialismo argumentam que a realidade, em sua essência, é material ou física, e com afirmação de que ela se identifica à razão ou ao espírito implica-se que ambos “[...] são igualmente fenômenos materiais ou físicos – ou, para ser menos radical, que, no caso do espírito se revelar, por qualquer forma, diverso da realidade material, esta diferença não pode ter grande importância” (POPPER, 1981, 44). Ora, segundo Sant’anna (2008, p. 12-13), foi a partir da dialética hegeliana, “[...] o determinismo de Demócrito desde a liberdade da consciência humana presente no epicurismo, para comprovar que o ser humano não é definitivamente refém da natureza, mas, ao contrário, pode transformá-la a seu favor”. Contudo, tendo abandonado a prioridade dos estudos sobre o sistema filosófico de Hegel, ao assumir o ateísmo, Marx não abandonou a dialética, mas acrescentou-lhe a noção materialista-antropológica 4 de Ludwig Feuerbach, que inclusive lhe 2 Na visão de Marx e Engels (2008, p. 36) a filosofia idealista se caracteriza pela noção de um mundo dominado pelas ideias, nas quais os conceitos são princípios determinantes. Hegel, nesse sentido, tornou pleno o idealismo positivo, pois em seu pensamento o mundo material tornou-se um mundo de ideias, assim como a história tornou-se uma história de ideias. 3 Cosmovisão é uma categoria que opera a junção entre a noção de cosmos, que é o universo, e a de visão, que é justamente a maneira de conhecer a realidade. (GREGORI, 1988, p. 18) 4 Ainda que Marx e Engels tenham adotado uma postura materialista, em muito ela se distanciou do materialismo de Feuerbach. Isso porque, segundo Marx e Engels (2008, p. 76), uma vez que “[...] Feuerbach é materialista, não aparece nele a história, e quando toma a história em consideração, deixa de ser materialista. O materialismo e a história aparecem nele de formas separados completamente, o que se explica pelo que já dissemos até aqui. A história não é outra coisa senão a sucessão das diferentes gerações, em que cada uma delas explora os materiais, os capitais e as forças de produção a ela transmitidas pelas gerações que antecederam [...]”. Além disso, para esses autores, Feuerbach parou no meio do caminho, ou seja, embaixo era materialista, mas em cima era idealista. Um pensamento que não “[...] liquidou criticamente com Hegel, mas limitou-se a pô-lo simplesmente de lado, como coisa inútil: enquanto, em confronto com a riqueza enciclopédica do sistema hegeliano, ele nada soube trazer de positivo, a não ser uma balofa religião do amor e uma moral pobre e impotente.” (MARX; ENGELS, 2008, p. 121-122) ARGUMENTA - UENP 40 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP possibilitou a crítica ao idealismo hegeliano5. Com isso, Marx pode oferecer sua cosmovisão dialética-materialista da história6. O materialismo desse pensamento reside justamente na noção de que a dialética se constrói a partir da materialidade da história, quer dizer: Os pressupostos dos quais partimos não são arbitrários nem dogmas. São bases reais das quais não é possível abstração a não ser na imaginação. Esses pressupostos são os indivíduos reais, sua ação e suas condições materiais de vida, tanto aquelas que eles já encontraram elaboradas quanto aquelas que são o resultado de sua própria ação. Esses pressupostos são, pois, verificáveis empiricamente (MARX; ENGELS, 2008, p. 44). Assim, diferentemente da filosofia alemã, de característica hegeliana, que “[...] desce do céu para terra, aqui se ascende da terra ao céu” (MARX; ENGELS, 2008, p. 51). Isso, em razão de que a base sobre a qual se constrói a filosofia não é a ideia, mas a realidade da vida humana em sociedade. Por conseguinte, não se trata de explicar a práxis a partir da ideia, mas de “[...] explicar as formações ideológicas a partir da práxis material” (MARX; ENGELS, 2008, p. 65). A dialética marxista é um método7 para a análise da realidade, que parte do concreto para ascender ao abstrato (o processo de abstração), que é a síntese entre os elementos conflitantes – a tese e a antítese. Mais do que isso, um método que tenta colocar a filosofia sobre seus próprios pés: a dialética de Marx é a dialética da “[...] luta do homem com as condições externas de sua existência, criadas pelo próprio homem, mas que lhe aparecem como entidades independentes” (SICHIROLLO, 1973, p. 169). Quer dizer, ela visa ao empoderamento: o homem alienado deve libertar-se da alienação, transformando a realidade da história. A dialética da “[...] história manifesta-se assim, como luta de classes, que não tem interesses particulares a defender, suprimir o sistema de classes e restituir o homem a si próprio num mundo humanizado.” (SICHIROLLO, 1973, p. 169) 5 Conforme Marx e Engels (2008, p. 37), o processo de decomposição do sistema hegeliano se iniciou com Strauss. Em síntese, segundo Sant’anna (2008, p. 29-30), a cosmovisão dialética-materialista de Marx e Engels pode ser entendida da seguinte maneira: “A cosmogonia é de que o cosmo é matéria eterna em movimento. Que a dinâmica das potencialidades evolutivas oscila do quantitativo para o qualitativo e vice-versa. Que não pode haver uma ontologia do ser que não o situe no tempo e no espaço concreto. Que a ontogênese humana é ‘atividade sensível’ em metabolismo com a natureza e em reciprocidade social. Que a filogênese é substituída pela consciência de classe a que se pertença. Que a gnosiologia deve constituir-se a partir da práxis e não por ideologias desconectadas da realidade. Que a dinâmica de grupo ocorre a partir da luta de classes. Que o trabalho na dinâmica ergonômica e nominal é eixo da história das sociedades de todos os tempos, mas que em uma nova sociedade sem classes seja também o gerador dos satisfatores plenos das necessidades humanas. Que os anseios de uma vida social plena de realizações é possível aqui na Terra [...]”. Conforme veremos mais adiante, foi justamente essa dialética materialista que influenciou o pensamento do jurista brasileiro filho para a formulação de sua metodologia dialética para conhecer o Direito. 7 Sichirollo (1973, p. 164-165) afirmou que o que “[...] distingue Marx e aqueles que de Marx procedem, inclusive Engels, é a concepção da dialética como método. [...] O método é, ou pelo menos anuncia-se como, o do movimento dos aposto e como método da relação ou contraposição de elementos que actuam entre si”. 6 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 41 O marxismo, no entender de Chauí (2009, p. 230), trouxe como grande contribuição para o conhecimento da realidade – portanto à sociologia, à história, etc. – a interpretação dos fenômenos humanos como expressão e resultado “[...] de contradições sociais, de lutas e conflitos sociopolíticos determinados pelas relações econômicas baseadas na exploração do trabalho da maioria pela minoria de uma sociedade”. Por conseguinte, cada momento da história produziu uma razão (uma tese sobre si), que foi contraposta sequencialmente por uma antítese, que é justamente uma tese contrária, ou seja, uma tese que explica o momento seguinte da história. Contudo, segundo Chauí (2009, p. 80), a razão não pode se limitar às teses e antíteses, mas deve ultrapassá-las numa síntese que una o que é antagônico e que mostre o resultado gerado pela luta entre os opostos. Nesse sentido é que o marxiano Michel Miaille afirmou a necessidade da investigação dialética, inclusive no âmbito universitário, no intuito de possibilitar uma análise complexa do mundo, ou seja, a dimensão social e materialista na qual o Direito está inserido. Segundo esse pensador: Com efeito, no conjunto bastante homogéneo dos professores que apresentam uma introdução ao direito, não deixam de encontrar-se tomadas de posição, juízos, em suma, críticas. Estas dizem respeito ou às opiniões de um autor – critica-se esta ou aquela explicação – ou às disposições das regras de direito – critica-se esta lei, aquela decisão judicial, aqueloutro decreto. O liberalismo universitário favorece uma situação destas: se as críticas são possíveis, o espírito crítico está salvo, garantia da liberdade de pensamento. E, no entanto, o conjunto do edifício não é verdadeiramente posto em questão; embora possamos distinguir diferentes correntes filosóficas e políticas nas cadeiras e nos manuais que tratam da introdução ao direito, estas surgem como variantes de uma melodia única: a filosofia idealista dos países ocidentais, industrializados. [...] o pensamento crítica é mais do que o pensamento abstracto: é preciso “acrescentar-se” a dialéctica. Que quer isto dizer? O pensamento dialéctico parte da experiência de que o mundo é complexo: o real não mantém as condições da sua existência senão numa luta, quer ela seja consciente quer inconsciente. A realidade que me surge num dado momento não é, pois, senão um momento, uma fase da sua realização: está é, de facto, um processo constante (MIAILLE, 1979, p. 17-18). Dessa forma, o pensamento dialético, especialmente a dialética de origem marxiana, na visão de Miaille (1979, p. 18), é justamente o pensamento que possibilita a compreensão da existência da contraditoriedade. Ele encara os fenômenos não por meio de um conhecimento parcelado ou unilateral, mas a partir da totalidade de suas existências, isto é, “[...] tanto naquilo que o produziu como ARGUMENTA - UENP 42 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP no seu futuro. Este pensamento pode, pois, fazer “aparecer” o que a realidade presente me esconde actualmente e que, no entanto, é igualmente importante”. Por consequência, a dialética é um pensamento crítico na medida em que satisfaz o seu postulado básico. Quer dizer, todo o pensamento que suscita o que não é visível para explicar o visível, se “[...] recusa a crer e a dizer que a realidade se limita ao visível” (MIAILLE, 1979, p. 18), merece o qualificativo crítico. Em suma, o pensamento crítico é o conhecimento do constante movimento da realidade, ou seja, de que todo o objeto de conhecimento deve ser apreendido e analisado em seu próprio movimento interno, além de não poder ser reduzido em apenas uma de suas manifestações, assim: [...] Vê-se que o campo se abre assim à análise a partir das suas fases. Vêse que o campo se abre assim à análise a partir do momento em que ela tome este caminho. E, especialmente, nas ciências que se propõe fazer o estudo dos homens que vivem em sociedade. Com efeito, o pensamento crítico torna-se então a lógica de uma teoria científica. Diversamente das teorias científicas habituais que se reduzem a uma técnica de investigação das coisas – aplicar a inteligência ao melhor recenseamento possível dos fenómenos – a teoria crítica nas ciências sociais traz uma reflexão de um género completamente diferente: ela reflecte, ao mesmo tempo, sobre as condições da sua existência, sobre a sua situação no seio da vida social. Funciona, pois, não só por si mesma, mas definindo as suas relações com o contexto em que surge (MIAILLE, 1979, p. 18-19). A explicação disso reside no fato de que um conhecimento crítico não pode se limitar em descrever um fenômeno da sociedade, mas deve também investigar seus fundamentos (o seu passado) e o seu futuro. Trata-se de uma análise de todas as dimensões do fenômeno, inserido na sociedade (no marco social) que lhe possibilitou surgimento. Somente dessa forma é que a crítica permite não apenas uma análise, mas a emancipação social (MIAILLE, 1979, p. 19). Em síntese, Miaille (1979, p. 63) retoma o pensamento de Marx e afirma que não basta sabermos que o direito está vinculado à existência de uma sociedade. É necessário, cientificamente, investigarmos qual o tipo de direito que produz um tipo específico de sociedade, em razão de que a ela corresponde. A partir dessa constatação, averiguaremos como o brasileiro Lyra Filho reinterpretou a dialética de Marx para transpô-la para o âmbito do Direito e da sociedade brasileira. 2 A EPISTEMOLOGIA DIALÉTICA DE LYRA FILHO O jurista brasileiro Roberto Lyra Filho8 entende que as questões jurídicas 8 Antônio Carlos Wolkmer (1991, p. 121) destaca que, em termos de penetração e repercussão, indiscutivelmente Lyra Filho é a principal expressão intelectual de todo o pensamento crítico-dialético no Brasil e classifica seu pensamento como humanismo dialético de raiz neo-hegeliano-marxista. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 43 não podem ser colocadas e/ou resolvidas sem a consciência de que estão ligadas à percepção da correta visão do direito. Para ele o direito “[...] admite várias abordagens e o erro está em imaginar que o discurso, feito sobre uma delas, abrange o fenômeno em sua totalidade” (LYRA FILHO, 1980, p. 8). Diante disso: O ponto em foco é que o significante – direito – representa um entrocamento de significados, que designam a realidade complexa, dialética e global do fenômeno jurídico. [...] Não basta reconhecer que vários aspectos do Direito existem; é preciso vê-los, no seu entrosamento, sendo esta a única maneira de identificar e esclarecer cada um deles, em especial. É preciso, portanto, manter em vista o direito em devir e sob todas as suas formas. (LYRA FILHO, 1980, p. 8-9) Para conhecer o direito, Lyra Filho (1980, p. 14) propõe uma epistemologia dialética. Para ele, somente esse modelo metodológico permite uma abordagem do direito que esquematize os pontos de integração do fenômeno jurídico na vida social e que verifique como transparecem os ângulos de entrosamento dos diferentes aspectos. Com isso, o pensador efetua uma releitura da dialética de Marx, que é a dialética materialista e histórica. No afã de compreendermos o que é o direito, importa a noção da dialética, mas devemos considerar a realidade material e história do ser humano, que é o local e o tempo no qual ele está contextualmente inserido. Nesse sentido, a metodologia e/ou modelo dialético de abordagem do fenômeno do direito deve ser aberta e com a constante preocupação de vislumbrar os fatos numa perspectiva de devir, que é a transformação constante (da sociedade e do direito) e a totalidade, que se apresenta como a ligação de todas as dimensões e segmentos da realidade humana, em razão de um conjunto (LYRA FILHO, 1980, p. 14). Sob a dimensão da realidade social, existe não apenas um pluralismo jurídico, mas igualmente uma dialética social do direito. No pensamento de Lyra Filho (1981a, p. 29), a abordagem dialética não é conclusiva, mas um estilo de pensamento que, para abordar a realidade, não busca suprimir as contradições. Ela é uma metodologia que absorve e reorganiza as contradições em sínteses. E estas são, ao mesmo tempo, parte integrante e elementos fundidos e transfigurados. Aliás, Lyra Filho vê a dialética como um método que tem na totalidade e no devir as suas mais importantes categorias. A sociedade é um sistema (uma totalidade dialética) em que tudo está interrelacionado. Apresentando-se como uma releitura de Marx, o método dialético por ele empregado busca apreender o objeto do conhecimento em todos os momentos das várias contradições existentes, tanto ao nível da infraestrutura como da superestrutura – ambas a nível nacional e internacional – em seu devir histórico, em sua transformação constante. (RODRIGUES, 1987, p. 157-158) ARGUMENTA - UENP 44 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nessa relação dialética de contradições, segundo Rodrigues (1987, p. 158), Lyra Filho não vê a infraestrutura como determinante, pois em parte, ela também é condicionada pela superestrutura, mas como condicionante. Há nesta concepção de dialética certa influência da Escola de Frankfurt, além das influências hegeliana e marxista. Diante disso, Lyra Filho defende a necessária destruição da visão positivista da ciência que, através do método lógico-formal da dogmática, se coloca numa posição de neutralidade e objetividade no ato de conhecimento do objeto de estudo. Segundo ele, atualmente já sabemos que inexiste a verdade científica como coisa absoluta e pura e que “[...] a ciência moderna já mostrou que não se ‘interpreta’, primeiro, para, depois, criticar, pois o elemento crítico, tanto quanto o conformista, já estão presentes na interpretação” (LYRA FILHO, 1984a, p. 34). Em outras palavras: Ideologia lá, ciência cá é um tipo de maniqueísmo que sacrifica a dialética e empobrece a ciência, pois esta nunca deixa de portar certas contradições ideológicas, tal como a ideologia não deixa de transmitir certas verdades deformadas. [...] Não existe ciência acabada e perfeita (LYRA FILHO, 1984b, p. 24-5). Mais ainda, Lyra Filho (1981b, p. 28) afirma que, enquanto predominar, na Ciência do Direito, a doutrina do positivismo, e enquanto os advogados perceberem-se como fiéis cumpridores da lei, assim como enquanto o ensino jurídico for uma mera navegação de “[...] de cabotagem ao longo dos códigos, estaremos paralisando, amesquinhando, reduzindo o Direito e o Jurista às funções subalternas de arquivo e moço de recados dos interesses classísticos e do voluntarismo estatal”. (LYRA FILHO, 1981b, p. 28) Para Raymundo Faoro (1982, p. 31), “[...] no cerne do estudo de Lyra Filho está a denúncia do direito natural e do positivismo que comandam as preferências teóricas nos dois últimos séculos”. Por sua vez, Marilena Chauí (1982, p. 21) afirma que “Roberto Lyra Filho trabalha no sentido de superar uma antinomia paralisante: a oposição abstrata entre o positivismo jurídico e o idealismo jusnaturalista”. O que ele faz é o “[...] resgate da dignidade política do Direito” (CHAUÍ, 1982, p. 22). Num esquema global, a visão dialética do fenômeno jurídico, de acordo com Lyra Filho, pode ser exposta através de um esquema. Este possui os algarismos romanos de I a IX, que assinalam os pontos nos quais, para o autor, surge o aspecto jurídico. Entende ele que, neste esquema, aparecerão todos os ângulos do direito e não somente este ou aquele ângulo privilegiado pelo preconceito duma ou de outra corrente e especialidade. Salienta o pensador, ademais, que muitos autores tomam ora um ora outro daqueles pontos como base e assim, produzem definições diversas e inconciliáveis, ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 45 pois lhes falta a abordagem global. Por isso não conseguem deduzir a essência do direito, enquanto parte da dialética social. O esquema apresentado por Lyra Filho (1982, p. 99) é o seguinte: 9 I. existe uma importância das instituições internacionais, pois o direito não está limitado ao “[...] aspecto interno do processo histórico. Ele tem raiz internacional, pois é nesta perspectiva que se definem os padrões de atualização jurídica, segundo os critérios mais avançados” (LYRA FILHO, 1982, p.100); II. aparece a expressão jurídica paralela, oriunda da dialética estabelecida pelos povos oprimidos e espoliados, já que o direito entre as nações luta para não ficar preso ao sistema de forças dominantes; III. IV. o direito situa a divisão de classes inaugurada no momento em que cada sociedade estabelece o seu modo de produção. Lyra Filho 9 LYRA FILHO. O que é Direito. p. 99. ARGUMENTA - UENP 46 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP entende que, com essa cisão inaugura-se também uma dialética jurídica. Além da questão classista, está colocada conjuntamente, neste ponto, a questão da opressão de grupos, cujos direitos humanos são postergados por toda espécie de normas; V. o direito apresenta a organização social, que padroniza o conjunto de instituições dominantes e adquire perfil jurídico na medida em que apresenta um arranjo legítimo ou ilegítimo da estrutura vigente; VI. existe um controle social global: o Estado e suas normas. Sobre ele diz Lyra Filho (1982, p. 105-106): O ponto VI, na sua teia de normas em ação, é o único focalizado pelo positivismo, como se ali estivesse todo o Direito [...]. Mas obviamente é preciso enfatizar, com muita energia, que o Direito não está aí: o Direito esta no processo e sua resultante. Localizar o Direito neste ponto VI, exclusivamente, equivale a transformar a sua positividade, a sua força de disciplinar a práxis jurídica, em positivismo (a concepção legalista do Direito), que é outra coisa. VII. neste ponto foi estabelecido o processo de desorganização social, a reação criada pela dialética de grupos e classes cindidos em dominantes e dominados, existente paralelamente à organização social, e que busca interferir nesta, mostrando a ineficácia e a ilegitimidade das normas dominantes e propondo outras, efetivamente vividas em setores da vida social; VIII. localiza-se aqui a atividade de contestação existente na medida em que grupos e classes dominantes procuram o reconhecimento de suas formações contra-institucionais, em desafio às normas dominantes, devido à coexistência conflitual de normas dentro da estrutura social. Diz Lyra Filho (1982, p. 107-108): Este projeto, entretanto, pode ser de dois tipos: ou se revela apenas reformista, enquanto visa a absorção de seus princípios e normas pela central do ramo centrípeto (ponto VI), sem atingir as bases da estrutura e os demais aspectos da normação dominadora; ou se mostra revolucionário, isto é, delineia o contraste fundamental, com uma série de princípios e normas que são proposta e prática reestruturadora, atingindo a infraestrutura e tudo o que sobre ela assenta. IX. com relação a este momento de síntese da dialética social do direito, Lyra Filho (1982, p. 108-109) afirma que neste ponto radica o critério de avaliação dos produtos jurídicos contrastantes, na competição dos ordenamentos, que são as diferentes séries de normas entrosadas. Em suma: É a síntese jurídica. Seus critérios, porém, não são cristalizações ideológicas de qualquer ‘essência’ metafísica, mas o vetor histórico-social, ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 47 resultante do estado do processo, indicando o que se pode ver, a cada instante, como direção do progresso da humanidade na sua caminhada histórica. Esta resultante final (final, não no sentido de eterna, mas de síntese abrangedora do aspecto jurídico naquele processo histórico-social, em sua totalidade e transformações) se reinsere, imediatamente, no processo mesmo, uma vez que a história não para. A síntese não está por cima ou por baixo, num esquema prévio ou posterior, mas dentro do processo, aqui e agora. Esse é o ponto da visão social dialética do direito. É justamente aquele em que a Justiça se identifica, enquanto substância do direito, que é na quota de libertação alcançada no processo histórico concreto e materialista10, visto que a Justiça não pode ser aferida em abstrato (LYRA FILHO, 1982, p. 122). Segundo Clèmerson Clève (1988), é eloquente o engajamento progressista da teoria dialética do direito, na versão de Lyra Filho, isto é: [...] o cuidado com a libertação das classes oprimidas; a revalorização da temática da justiça; a redefinição do direito ligando-o à libertação e identificando-o com a justiça historicamente alcançada, são fatores que só contribuem para o refazimento do universo da juridicidade. Entretanto, ela se afasta da temática da dominação através do direito; antes, inverte a problemática procurando construir novo direito a partir de nova ontologia, a qual necessita para sua construção do auxílio de alguns eixos teóricos questionáveis. São os seguintes: a) o problema da essência como conteúdo; b) concepção da ideologia como falsa consciência, implicando o problema da \deturpação\ da verdade essencial; c) subestimação do papel do estado, entendido ontologicamente como o estado das classes dominantes; e, d) também a ideologia da linearidade histórica, cujo conteúdo é a tese algo evolucionista do progresso permanente. A base do pensamento deste autor pode ser sintetizada, então, na proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é direito – como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem – a partir disto. Esse é o tópico que abordaremos sequencialmente, isto é, a partir da dialética, Lyra Filho 10 O termo materialista, em Marx, pode se traduzir da seguinte maneira: “[...] há, fora de mim, uma realidade que não esperou a minha acção ou a minha reflexão para de manifestar”. (MIAILLE, 1979, p. 75) ARGUMENTA - UENP 48 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP constrói uma metodologia dialética para a apreensão do direito como um fenômeno da sociedade para à libertação e à justiça social. Contudo, antes de prosseguirmos, devemos nos atentar para a característica holista11 da dialética, assim como para a possibilidade da apreensão da totalidade em seu devir. Em primeiro lugar, quanto ao historicismo12, foi Hegel, segundo Popper, um dos fundadores do método histórico: [...] fundador daquela escolha de pensadores que acreditam que se pode dar uma explicação causal de uma evolução através da sua descrição histórica. Esta escola era de opinião que se podem explicar, por exemplo, determinadas instituições sociais pelo fato de se mostrar como a humanidade gradualmente se desenvolveu. Hoje reconhece-se com frequência que a importância do método histórico foi sobrestimada quanto à teoria social; contudo não se extinguiu a crença neste método. [...] a sociologia marxista de Hegel não só aceitou a opinião de que o seu método tinha de ser um método histórico e que a Sociologia e a História tinham de ser terias do desenvolvimento social, como também que este desenvolvimento tinha de ser explicado dialeticamente. Para Hegel, a História era a história das idéias. Marx abandonou este idealismo, mantendo contudo a teoria de Hegel de que as ‘contradições’ dialéticas, ‘negações’ e ‘negações das negações’, representam a força dinâmica do processo histórico. [...] ‘O que é então a negação? Uma lei de desenvolvimento da natureza, da História e do pensamento... extremamente generalizada; uma lei...que é válida para o reino animal e vegetal, para a Geologia, Matemática, Filosofia e História’. (POPPER, 1981, p. 46-47). Nessa descrição enquadra-se uma dialética materialista, como a dialética de Marx e a releitura de Lyra Filho, que pretende a apreensão da totalidade. Além disso, uma epistemologia dogmática, cujo “[...] elemento materialista desta teoria 11 Nesse sentido, Cirne-Lima (2005, p. 122): “A vantagem específica da Dialética é que ela lida sempre com o Absoluto, com a Totalidade”. 12 Segundo Popper (1980, p. 2-3), o historicismo é refutado em razão da lógica: é impossível a determinação e predição do futuro. Quer dizer, em primeiro lugar, “[...] o curso da história é fortemente influenciado pelo crescer do conhecimento humano”. Em segundo lugar, é refutado em virtude da impossibilidade da predição da expansão futura do conhecimento científico por meio de métodos racionais ou científicos. Em terceiro lugar, em decorrência da impossibilidade da previsão do futuro da história humana. Em quarto lugar, “[...] devemos rejeitar a possibilidade de uma História teorética, isto é, de uma ciência social histórica em termos correspondentes aos de uma Física teorética. Não pode haver uma teoria científica do desenvolvimento histórico a servir de base para a predição histórica”. Por fim, em quinto lugar, em razão de que o objetivo fundamental dos métodos historicistas estão mal colocados. Isso não implica a impossibilidade de qualquer forma de predição social, visto que existe a possibilidade de se testar teorias sociais que apontem para os desenvolvimentos históricos sob condições determinadas. A refutação, por conseguinte, se refere somente a possibilidade da predição do desenvolvimento histórico quando influenciado pela expansão do conhecimento humano. Isso porque não existe um previsor científico para antecipar os resultados científicos futuros. Ou seja, é um argumento lógico: não se pode predizer, cientificamente, os futuros estágios do conhecimento. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 49 pode ser formulado com relativa facilidade de uma forma tal que se não podem levantar contra ele quaisquer objeções sérias.” (POPPER, 1981, p. 45). A dialética não é fundamentada em bases científicas para realizar previsões também científicas. É ela, ao contrário, vaga e elástica, capaz de “[...] interpretar e ainda esclarecer [uma situação de não realização da previsão], tal como interpretou e esclareceu a situação que previu e se realizou. Qualquer desenvolvimento serve ao esquema dialético: o dialético jamais precisa recear uma contradição devida à experiência futura”. (POPPER, 1981, p. 47). A dialética, assim, enquanto teoria da realidade, não é científica, mas metafísica. Quanto à atitude antidogmática da dialética, esta também é questionável. Os dialéticos, como Marx e Lyra Filho, pressupunham que a ciência não deveria ser interpretada como a existência de um conhecimento definitivo, fundado numa verdade eterna, mas sim, como algo que se desenvolve. Contudo, se os dialéticos consideram sua ciência crítica, a crítica a ela nunca lhes foi tolerada (POPPER, 1981, p. 48). Além disso, se os dialéticos consideram que a ciência evolui, mas que o seu sistema deve permanecer insuperável ante a própria evolução da ciência, assumem também uma atitude dogmática13. Segundo Popper esse dogmatismo resguarda um holismo dialético: uma tentativa de compreensão da totalidade em seu devir, ou seja: Os holistas historicistas asseveram, com frequência e por implicação, que o método histórico é adequado para o tratamento de todos no sentido de totalidades. Essa asserção apoia-se, contudo, em um mal-entendido. Resulta de combinar a correta crença, segundo a qual a História – contrariamente ao que acontece com as ciências teoréticas – se interessa por eventos individuais e por individuais personalidades, antes que por leis gerais abstratas, com a errada crença de que os indivíduos ‘concretos’, pelos quais a Hisória se interessa, podem ser identificados aos todos ‘concretos’, no sentido (a). Isso não é possível, pois a História, à semelhança de qualquer outra espécie de investigação, só pode manipular selecionados aspectos do objeto pelo qual se interessa. É errado acreditar que possa haver uma história no sentido holista, uma história dos ‘estágios da sociedade’, que representem ‘o todo do organismo social’ ou ‘todos os eventos sociais e históricos de uma época’. Essa ideia decorre de uma intuitiva concepção da história da humanidade como vasta e global corrente de desenvolvimento. Entretanto, história dessa espécie não pode ser feita. Cada história escrita é história de certo e limitado aspecto desse 13 Segundo Popper, não só a dialética foi utilizada pelos marxistas para a defesa do marxismo contra as críticas a ele dirigidas, com fins apologéticos, como teve por consequência a instauração de uma atitude dogmática devido ao uso da própria dialética para evitar ataques críticos. E, para ele, não existe obstáculo maior ao progresso da Ciência do que o dogmatismo. Sem a livre concorrência de pensamentos, não é possível existir o desenvolvimento do conhecimento científico. (POPPER, 1981, p. 48). ARGUMENTA - UENP 50 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP desenvolvimento ‘global’ e é sempre história muito incompleta, até mesmo com relação ao particular e incompleto aspecto selecionado. (POPPER, 1980, p. 64). Existe a tentativa dialética de estabelecer e dirigir o inteiro sistema social. Segundo Popper (1980, p. 65), é impossível sequer estabelecer, apreender ou dirigir um único aspecto do aparato físico em sua totalidade, quanto mais a totalidade da vida humana em sociedade. É logicamente impossível apreender ou dirigir o sistema inteiro da sociedade e regular toda da vida social. Entretanto, para Popper, o historicismo pode ser identificado como uma teoria holista, ou seja, intenta a abrangência, por meio de seu método, da própria totalidade. Não é possível a observação ou descrição da totalidade do mundo ou da natureza, visto de toda a descrição é necessariamente seletiva. Todas as crítica efetuadas por Popper à dialética, ao historicismo e ao holismo podem, em grande parte, serem aplicada à proposta de Lyra Filho. Entretanto é necessário destacar sempre a sua importância política no contexto do universo regra geral acrítico da área do direito, em especial no momento político em que construiu a sua obra. Lyra Filho e sua teoria dialética foram um forte contraponto ao regime militar brasileiro e seu direito ilegítimo. 3 CONHECER O DIREITO: ENTRE O JURÍDICO E O SOCIAL O pensamento de Lyra Filho se fundamenta na proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é direito – como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem – a partir disto. Conforme afirmamos, neste tópico que abordaremos o pensamento dialético de Lyra Filho para a apreensão do direito como um fenômeno da sociedade para à libertação e à justiça social. O conhecimento do direito somente pode ocorrer por meio de uma visão dialética. Essa é a síntese mais genérica do pensamento do jurista brasileiro Roberto Lyra Filho. Na percepção deste autor existe um equívoco generalizado e estrutural na própria concepção do que é o direito. E é daí que partem os problemas. Segundo ele, quando analisamos o fenômeno jurídico, precisamos chegar à fonte e não às consequências, quer dizer, se nós nos precipitarmos “[...] com a ideia redutora do Direito no chamado ordenamento jurídico – único hermético e estatal – já teremos estabelecido, neste primeiro passo, o engano que vai gerar tudo o mais.” (LYRA FILHO, 1980, p. 6) Tudo isso ressalta a questão fundamental: o que é direito?14 Em primeiro 14 Segundo Miaille (1979, p. 19), o estudo do Direito deve ser crítico e dialético, ou seja, deve ser um estudo no sentido que “[...] ultrapassa, então, o recenseamento, a classificação e o conhecimento do funcionamento das diversas noções jurídicas, das instituições e dos mecanismos do direito. O mundo jurídico não pode, então, ser verdadeiramente conhecido, isto é, compreendido, senão em relação a tudo o que permitiu a sua existência e no seu futuro possível. Este tipo de ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 51 lugar, se intentamos conhecer nosso objeto de estudo, devemos saber o que ele é e como se manifesta. Ademais, se buscamos problematizar algumas de suas consequências, de maneira prévia, devemos saber qual a sua estrutura interna. Por isso, conforme o pensamento de Lyra Filho, é necessário refletir sobre o que o direito é, sob pena de acabarmos preconizando visões sobre o jurídico que só apreendem o direito positivado pelo Estado, como se este fosse todo o direito. Sob essa ótica, nas observações que faz a respeito do direito, o autor deseja que resulte claro: a) que o direito é um fenômeno bem mais complexo do que se postula, ainda hoje, no debate sobre o seu estudo e ensino; b) que as condições, baseadas nessa camisa de força, desfiguram o Direito, não só em termos gerais, mas até na reta compreensão de cada um dos seus aspectos, sempre isolados, como se fossem compartimentos estanques. (LYRA FILHO, 1980, p. 14) Para Lyra Filho (1982, p. 110), é na própria dialética social e no processo histórico que surge o direito, quer dizer, o direito aparece como uma dimensão da sociedade. Justamente por isso, a “[...] ‘essência’ do jurídico há de abranger todo esse conjunto de dados, em movimento, sem amputar nenhum dos aspectos”. O direito não é percebido como um ente engessado e inerte, mas como um processo de libertação permanente (LYRA FILHO, 1982, p. 115). Em outras palavras, segundo Lyra Filho (1982, p. 119-120): O legalismo é sempre a ressaca social de um impulso criativo jurídico. Os princípios se acomodam em normas e envelhecem; e as normas esquecem que são meios de expressão do Direito móvel, em constante progresso, e não Direito em si. Contudo, conforme vimos, é impossível a apreensão da totalidade da dimensão social. Daí porque o projeto de Lyra Filho é logicamente impossível: cientificamente, é impossível uma apreensão holista do fenômeno social para uma síntese jurídica, conforme já abordado. Sob esse aspecto, Chauí destaca três importantes dimensões na abordagem dialética do direito feita por Lyra Filho. Em primeiro lugar, o direito não é um direito a-histórico, mas um direito temporalizado a partir de sua dimensão social e política. É essa temporalização que permite esclarecer a diferença entre o direito análise desbloqueia o estudo do direito do seu isolamento, projecta-o no mundo real onde ele encontra o seu lugar e a sua razão de ser, e, ligando-o a todos os outros fenómenos da sociedade, torna-o solidária da mesma história social. [...] Porque, em definitivo, trata-se de saber porque é que dada regra jurídica, e não dada outra, rege dada sociedade, em dado momento. Se a ciência jurídica apenas nos pode dizer como essa regra funciona, ela encontra-se reduzida a uma tecnologia jurídica perfeitamente insatisfatória. Temos direito de exigir mais dessa ciência, ou melhor, de exigir coisa diversa de uma simples descrição de mecanismos”. ARGUMENTA - UENP 52 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP e a lei. (CHAUÍ, 1982, p. 29) Em segundo lugar, o direito é apreendido em sua totalidade história – nacional e/ou internacional –, permitindo a revisão da clássica marxista de que o direito é parte da mera superestrutura. Diante disso é que foi possível para Lyra Filho perceber o direito que surge da práxis, além do fato de que a desigualdade, a injustiça, a dominação, etc., se efetuam na infraestrutura, graças ao próprio Direito. (CHAUÍ, 1982, p. 29) Por fim, Chauí (1982, p. 29) afirma que a apreensão do direito no campo das relações sociais e políticas entre classes, grupos e “[...] Estados diferentes permite melhor perceber as contradições entre as leis e a Justiça e abrir a consciência tanto quanto a prática para a superação dessas contradições”. Quer dizer, trata-se de inserir o direito na História, visando à política de transformação social. Nesse sentido, o direito é todo o processo e é a luta social constante que define o direito, em cada etapa, na busca das direções de sua superação. Daí porque a grande inversão “[...] que se produz no pensamento jurídico tradicional é tomar as normas como Direito e, depois, definir o Direito pelas normas, limitando estas às normas do Estado e da classe e grupos que o dominam” (LYRA FILHO, 1982, p. 118-9). Por consequência dessa dialética do direito as contradições15 não se dão apenas entre blocos de normas, mas também dentro desses blocos. Sob essa ótica, o direito e a justiça são indissociáveis. A lei e o direito é que se divorciam frequentemente. E a justiça real está no processo histórico, de que é resultante, pois é nele que se realiza progressivamente. Para Lyra Filho justiça é Justiça social, antes de tudo. Já o direito é a expressão dos princípios supremos da justiça social, enquanto modelo avançado de legítima organização social da liberdade: Direito é processo, dentro do processo histórico: não é uma coisa feita, perfeita e acabada; é aquele vir-a-ser que se enriquece nos movimentos de libertação das classes e grupos ascendentes e que definha nas explorações e opressões que o contradizem, mas de cujas próprias contradições brotarão as novas conquistas. (LYRA FILHO, 1982, p.121) Vinculado à Justiça social, em síntese, o direito se configura na positivação da liberdade conquistada por meio das lutas sociais. Trata-se de um direito que se formula pelos princípios da Justiça social. Daí o porquê de não podermos identificar o direito ao direito positivado: reduziríamos o direito a uma imagem parcial da totalidade do fenômeno jurídico. (LYRA FILHO, 1980, p. 19) Segundo Lyra Filho, é o pensamento positivista que concentra sua imagem do direito positivado, que vem assentado, fundamentalmente, no sistema de leis e 15 Essas contradições, epistemologicamente, não configuram a cientificidade de um modelo teórico. Pelo contrário, a cientificidade residiria na refutação e eliminação das contradições de uma teoria. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 53 princípios que os órgãos estatais recortam, formalizam, impõem ou pretenderão impor, já que nem sempre o conseguem. Para esse pensador, esse pensamento é reducionista da realidade do direito e apresenta um duplo corte mutilador. Em primeiro lugar, a confusão entre o direito e as normas que enunciam o direito. Em segundo lugar, a pretexto de assinalar o que é o jurídico, esse pensamento nega vários aspectos da dimensão do direito. (LYRA FILHO, 1980, p. 20) As teorias jurídicas, ao dizerem que o direito é as normas estatais, contraem, arbitrariamente, a dialética do fenômeno jurídico, deixando em aberto o que tais normas pretendem veicular. Isso traz como consequência a negação de positividade ao que não é direito estatal, que desta forma se coloca como dogma inquestionável. Conforme Lyra Filho, esta é a influência da ciência positivista (dogmática jurídica) sobre a práxis do direito. Além disso, esse tipo de concepção positivista nega dois fatos óbvios: o primeiro é a existência de normação jurídica nas sociedades em que não há Estado. O segundo é que fatos jurídicos, como, por exemplo, o poder constituinte, passam a ser algo não-jurídico. Procurando superar a antinomia entre direito positivo e direito natural, Lyra Filho (1980, p 131-132) fornece bases conceituais originais para outros rumos de pesquisa sociológico e filosófico-jurídicas, mas não explica o papel do direito positivo nas formações sociais capitalistas. Recusa-se a captar sua condição histórica e o toma como efeito de um tipo de saber ideológico, o positivismo. Por conseguinte, a sua proposta teórica rompe com o senso comum teórico dos juristas, afastando o direito dos positivismos reducionistas e dos jusnaturalismos idealistas, buscando colocá-lo dentro da história e a serviço da sociedade. Ou seja: o legalismo, o idealismo e a validade são substituídos, em sua obra, pela legitimidade, a história e a eficácia. Qual a solução, então, para a ciência do direito16? De acordo com o pensamento de Lyra Filho (1981a, p. 30), não é, obviamente, nenhum tipo de positivismo, pois este, em todos os seus matizes, de um ou de outro modo: [...] se concentra na visão do Direito como ordem e controle sociais; é estático, em qualquer de suas formas, pois, com toda flexibilidade que se atribuam a hermenêutica e aplicação das normas, ou por mais que corra no encalço de novas ordens, capta-as, sempre, quando já passaram à fase de estrutura implantada. O limite é o marco normativo, que o Estado, ou diretamente a ordem social que ele representa, instituem e refletem no espírito dos aplicadores do Direito. 16 Para Faoro (1982, p. 34), pelo menos duas vertentes no pensamento de Lyra Filho evitam que ele caia na armadilha positivista dominante: a) “[...] o alargamento do Direito para abranger as ‘normas não estatais de classes e grupos espoliados e oprimidos’[...]”; e b) “[...] de outro lado, [...] franqueia-se o bloqueio, com a descaracterização do Direito da qualidade de ideologia”. ARGUMENTA - UENP 54 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Contudo, para Lyra Filho, nem tampouco a solução se dá por meio dos matizes de jusnaturalismo. O direito natural, em todas as suas concepções, faz apelos de índole nitidamente idealista, não possuindo base social. Aliás, também não ocorre através da Teoria Crítica do Direito, entendida aqui a que tem origem no marxismo ortodoxo, que reduz o Direito a uma simples instância superestrutural determinada, fruto de uma leitura mal feita de Marx – o mecanicismo, e que também se configura numa forma de positivismo. O que Lyra Filho propõe é uma teoria dialética do direito, e ela parte da substituição do método de abordagem do fenômeno jurídico, para que se possa vê-lo em toda a sua complexidade. Nesta visão, método e objeto, na relação cognoscente, se complementam. Nesse contexto se coloca o grande problema da teoria de Lyra Filho. A dialética e a sua tentativa de apreensão da totalidade da sociedade e do direito conduzem a epistemologia de Lyra Filho a uma impossibilidade lógica. A tentativa de captar o direito em bloco, para Lyra Filho, deixando de lado as postulações idealistas e as reduções positivistas, aponta um caminho em três etapas: a) a abordagem do fenômeno jurídico em uma perspectiva sociológica, abrangendo todos os aspectos da sua manifestação; b) a procura de uma: “[...] síntese preliminar, através do reexame, quer da posição do Direito IX, como entrosamento de todo o material empírico, quer das particularidades de formalização e aplicação das normas jurídicas, em especial” (LYRA FILHO, 1980, p. 26); e c) a busca de um reenquadramento global, como tarefa da filosofia jurídica. Ou seja, a reelaboração dos dados empíricos em busca das categorias, como as formas da existência, através de uma ontologia dialética do Direito. Dialeticamente, quando o Direito é visto em globo, ele é tido tanto como a teoria quanto como a práxis das possibilidades da concretização da Justiça social. O direito, então, “[...] assume o aspecto geral de setor da práxis social de maior força vinculante, que visa à Justiça através de normas, indicando procedimentos e órgãos mais nitidamente demarcados do que em outros tipos de regulamentação da conduta.” (LYRA FILHO, 1980, p. 26) Nessa proposta, o direito é a síntese a cada momento, é o guia da práxis humana progressista. Práxis esta que envolve não somente o aproveitamento das contradições oriundas dos estabelecidos sistemas normativos, mas também a criação, dentro da pluralidade dos ordenamentos, de novos instrumentos jurídicos de intervenção. (LYRA FILHO, 1980, p. 27) As teorias que omitem ou negam essa visão do direito em movimento, fundado na práxis social, conforme Lyra Filho, operam uma paralisação dele na descrição do direito positivado pelo Estado, de modo a impossibilitar a vinculação do direito à dimensão da economia e à política social. Para esse pensador: ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 55 O que mais urgentemente necessita ganhar o primeiro plano do Direito, em sua doutrina, fundada na práxis retamente analisada, é precisamente a discriminação, na pluralidade de ordenamentos e legalidades, do que nelas aponta, encaminha e dirige a criação duma sociedade nova, sem mais discriminações e privilégios, sem minorias favorecidas, minorias oprimidas e classes, o povos e nações desamparados. (LYA FILHO, 1980, p. 27-8) Dialeticamente, o pensar o direito está ligado a um objetivo único, em nível histórico presente, para todas as nações, que é desobstruir os canais para a “[...] maior participação dos setores progressistas da sociedade civil, num modelo sócio-político e, portanto, jurídico também, de alargamento das bases democráticas, no controle do poder.” (LYRA FILHO, 1981a, p. 9) Diante disso, Lyra Filho entende que, de modo geral, os juristas estão pelo menos um século atrasados no que concerne à teoria e à prática da interpretação, quando pensam que o texto a ser interpretado é um documento unívoco, “[...] dentro de um sistema autônomo (o ordenamento jurídico dito pleno e hermético) e que só cabe determinar-lhe o sentido exato, seja pelo desentranhamento dos conceitos, seja pela busca da finalidade [...]”, que é o sentido teleológico – isto é, acertando o que ou para que diz a norma. Sob esse ponto de vista é que esse autor afirma que: Isto é ignorar totalmente que o discurso da norma, tanto quanto o discurso do intérprete e do aplicador, estão inseridos num contexto que os condiciona; que abrem feixes de função plurívoca e proporcionam leituras diversas. [...] o procedimento interpretativo é material e criativo, não simplesmente verificativo e substancialmente vinculado a um só modelo supostamente ínsito na dição da lei. (LYRA FILHO, 1984b, p. 18-9) Daí que enquanto não iniciarmos uma real mudança, para Lyra Filho (1981a, p. 28), “[...] continuaremos a girar no âmbito do positivismo, que ao Direito mata, para exibir a anatomia de seu cadáver”. Isto é, nada se fará para mudar se não repensarmos o direito, para, antes de tudo, livrá-lo das teorias dogmáticas e dos tecnicismos despistadores. É preciso começar por encararmos o direito em função da práxis sociopolítica atual e local. Ou seja, apenas “[...] ‘modernizar’ o mesmo veículo acrítico é contribuir para o reforço da dominação” (LYRA FILHO, 1981a, p. 41). Para Lyra Filho o direito em globo só pode ser apreendido, na sua dinâmica social, através da dialética. Apenas uma visão sociológico-dialética, que enfatize o devir e a totalidade, será capaz de apreender a síntese jurídica – a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais, expressão da Justiça Social atualizada. A base do pensamento deste autor pode, então, ser sintetizada na proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua ARGUMENTA - UENP 56 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é Direito – como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem – a partir disto. Isto é, partindo de uma visão dialética da sociedade e de suas contradições, e buscando aí os vários pontos onde o direito se realiza parcialmente, Lyra Filho busca a configuração do direito em sua totalidade. Direito este que não se reduz a nenhum dos pontos do processo, mas que é a síntese totalizadora de todos eles. A proposta teórica deste autor busca desvincular o direito da lei e colocálo a serviço da Justiça social, recuperando a sua dignidade política. Identificado com a práxis social, o direito pode ser colocado a serviço da democracia. O direito, por meio da metodologia dialética de Lyra Filho, é visto como a própria expressão dos princípios supremos da justiça social de um dado momento histórico. É entendido, por conseguinte, como a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem. Nesse sentido, Lyra Filho combate a visão vigente de ciência – baseada na neutralidade e na objetividade do ato cognoscente – e defende a posição de que só é possível captar o direito real através de uma metodologia dialética aberta e não conclusiva que possua a preocupação permanente de analisar os fatos dentro de uma perspectiva de transformação constante – em seu devir – e que leve em consideração a interdependência de todos os aspectos da realidade – a totalidade. Existe, por conseguinte, uma ruptura por ele estabelecida com relação aos princípios epistemológicos clássicos da ciência – como a neutralidade, a objetividade e a crença na verdade científica como coisa pura e absoluta – através da sua proposta da dialética como metodologia de análise do fenômeno jurídico. Isso é possível porque ele vê a dialética como um método aberto e não conclusivo, superando a visão determinista oriunda de certa leitura de Marx. Contudo, é igualmente possível questionar a concepção de ideologia como falsa consciência, subjacente à sua obra, e que implica na aceitação da existência de uma verdade real. Lyra Filho defende a destruição da visão positivista da ciência que, através do método lógico-formal da dogmática, se coloca numa posição de neutralidade e objetividade no ato de conhecimento do objeto de estudo. Segundo ele, inexiste a verdade científica como coisa absoluta e pura e que “[...] a ciência moderna já mostrou que não se ‘interpreta’, primeiro, para, depois, criticar, pois o elemento crítico, tanto quanto o conformista, já estão presentes na interpretação.” (LYRA FILHO, 1984a, p. 34). Em outras palavras, Lyra Filho (1984b, p. 24-25) não percebe a possibilidade de distanciamento da ciência e da ideologia, visto que a ciência não deixa de portar “[...] contradições ideológicas, tal como a ideologia não deixa de transmitir certas verdades deformadas. [...]. Não existe ciência acabada e perfeita”. O problema principal da proposta de Lyra Filho, como já destacado no item anterior, está em que sua epistemologia conserva todas as contradições ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 57 provindas da dialética historicista e materialista na qual se fundamenta, como a aceitação das contradições e o holismo: a visão que se pode apreender a totalidade da história em seu devir. O holismo dialético é impossível, visto que todo o conhecimento pressupõe uma escolha, uma opção. Além disso, pelo menos em parte a teoria dialética de Lyra Filho é baseada na ideia de que o método experimental é inaplicável às Ciências Sociais justamente em razão da impossibilidade da reprodução das condições experimentais no campo da sociedade. Assim, trata-se de uma epistemologia que descarta o teste empírico das afirmações da ciência do Direito e, consequentemente, dogmatiza seus pressupostos e impede o seu falseamento. Em síntese, o pensamento de Lyra Filho, epistemologicamente, não nos permite a adequada construção da Ciência do Direito, muito embora possa ser apropriado no campo da luta política pela efetividade do direito. Tem grandes méritos ao reconhecer que o cientista não é neutro, que a ciência dialoga com a ideologia e que não verdades científicas definitivas. Mas cai em um idealismo ao acreditar na possibilidade de conhecer a totalidade em devir. CONSIDERAÇÕES FINAIS Este artigo teve por objeto a epistemologia dialética de Lyra Filho e objetivou investigar o que é o Direito em seu pensamento, assim como se essa concepção da teoria do conhecimento pode contribuir para o progresso do conhecimento científico no campo da Ciência do Direito. Em primeiro lugar, centramo-nos na análise do método dialético, no intuito de averiguar os seus pressupostos, assim como de conhecer, em síntese, a dialética de Marx, da qual partiu o método dialético de Lyra Filho para a compreensão do direito brasileiro. Enquanto vertente da filosofia, a dialética é uma maneira de conhecer o mundo que se fundamenta na concepção da geração de novas ideias por meio da contraposição de dois polos. Trata-se, consequentemente, de uma metodologia específica – a dialética –, que possui diversas vertentes. Em comum, existe a busca de elementos conflitantes e contraditórios da realidade para a explicação de um terceiro elemento, decorrente do conflito. Nesse sentido, em suas variadas vertentes, inclusive no pensamento de Hegel e de Marx, a dialética se configura num sistema dual: o diálogo de dois polos, no qual o primeiro é a tese, e o segundo, a antítese. Desse diálogo surge o terceiro polo, a síntese, que por sua vez, é considerado o primeiro polo (tese) de um novo diálogo. Difere Hegel de Marx, na medida em que o filósofo alemão idealista Hegel percebe que a filosofia se produz no mundo do espírito: existe a transferência da problemática da experiência para o plano do pensamento abstrato e conceitual. A racionalidade do pensamento de Hegel implica a abstração da materialidade por via da razão. Marx, por sua vez, criticou o idealismo da metodologia dialética ARGUMENTA - UENP 58 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP hegeliana e afirmou que a dialética só pode existir enquanto materialista e historicista. Se a realidade é material, para Marx, importa a investigação dialética da materialidade do mundo e da história. O grande problema epistemológico da metodologia dialética decorre da necessária contradição entre a tese e a antítese para o surgimento da síntese. Esse fundamento dialético exerce um ataque ao princípio da não contradição, essencial no campo da lógica. Diferentemente do que propõe a metodologia dialética, logicamente de duas afirmações que se contradizem nunca podem ambas ser verdadeiras, sendo que uma afirmação que consiste numa conjunção de duas afirmações contraditórias deve ser rejeitada como falsa, assim como eliminada por motivos puramente lógicos. Soma-se a ele a visão holista inerente à dialética, método que acredita ser possível conhecer a totalidade ou, pelo menos, a totalidade de um objeto, no caso o direito. A partir dessa noção da metodologia dialética, averiguamos como o brasileiro Lyra Filho reinterpretou a dialética de Marx para transpô-la para o âmbito do Direito e da sociedade brasileira. Com esta investigação, afirmamos que, em síntese, para Lyra Filho, considerado um crítico marxista do Direito, a questão central de que partem todos os problemas jurídicos contemporâneos é o equívoco generalizado e estrutural existente sobre o que é o Direito, que tem sido reduzido unicamente ao direito positivado pelo Estado. O fenômeno jurídico, segundo ele, admite várias abordagens e não se pode crer que o discurso elaborado sobre uma delas possa abrangê-lo em sua totalidade. Em primeiro lugar, Lyra Filho entende que a questões jurídicas só podem ser resolvidas com a consciência da correta visão do direito. Para ele, somente uma epistemologia dialética permite compreender essa visão e compreender o direito em seu fenômeno global, ou seja, em sua integração com a vida social. Nesse sentido é que o autor efetua uma releitura da dialética de Marx, que é a dialética materialista e histórica. Para que possamos compreender o direito, por conseguinte, Lyra Filho afirma a necessidade de considerarmos a realidade material e história do ser humano, isto é, o seu contexto. Para tanto, importa a destruição da visão positivista da ciência que, através do método lógico-formal da dogmática, se coloca numa posição de neutralidade e objetividade no ato de conhecimento do objeto de estudo. A base do pensamento deste autor pode ser sintetizada, então, na proposição da dialética como método de apreensão do fenômeno jurídico em sua totalidade e devir, e na enunciação de uma nova visão do que é direito – como positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem – a partir disto. Esse pensador vê o direito como a expressão dos princípios supremos da justiça social de um dado momento histórico. É ele entendido, por conseguinte, como a positivação da liberdade conscientizada e conquistada nas lutas sociais e formulador dos princípios maiores da justiça social que nelas emergem. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 59 Nesse sentido, Lyra Filho combate a visão vigente de ciência – baseada na neutralidade e na objetividade do ato cognoscente – e defende a posição de que só é possível captar o direito real através de uma metodologia dialética aberta e não conclusiva que possua a preocupação permanente de analisar os fatos dentro de uma perspectiva de transformação constante – em seu devir – e que leve em consideração a interdependência de todos os aspectos da realidade – a totalidade. Fundamentado na proposição dialética de apreensão do direito em sua totalidade e em seu devir, Lyra Filho não percebe o fenômeno jurídico como um ente engessado, mas como um processo de libertação permanente. Para ele, o direito se divorcia da lei, mas é essencialmente vinculado à ideia de justiça social. A tentativa holista de Lyra Filho para a compreensão dialética do direito, contudo, merece ressalvas. Ao invés de compreender o todo – a totalidade do sistema social – na realidade, ela se apresenta como metafísica, vez que o todo é incognoscível. Além disso, é uma metodologia dogmática na medida em que considera que a ciência evolui, mas que o sistema dialético deve permanecer insuperável ante a própria evolução da ciência. Ponto altamente positivo presente na análise efetivada por Lyra Filho é a superação que ele consegue empreender com relação aos diversos positivismos – normativismo, realismo, sociologismo e marxismo ortodoxo – no momento em que caracteriza o fenômeno jurídico como polifônico e dinâmico. Também é interessante a ruptura por ele também estabelecida com relação aos princípios epistemológicos clássicos da ciência como a neutralidade, a objetividade e a crença na verdade científica como coisa pura e absoluta. Isso é possível porque ele vê a dialética como um método aberto e não conclusivo, superando a visão determinista oriunda de uma certa leitura de Marx. Subjacente à epistemologia dialética de Lyra Filho existe também um outro grande problema: crença na possibilidade de se conhecer a verdade por meio da dialética. Embora o autor afirme que não existem verdades definitivas na ciência, é inerente à dialética a crença de que através desse método é possível chegar à verdade. Problema que se torna ainda maior no que se refere ao próprio método, visto como o método, o único capaz de efetivamente permitir o conhecimento correto; portanto como o verdadeiro método. É a tentativa totalizante do historicismo dialético, em compreender, estabelecer e dirigir o inteiro sistema social e jurídico o principal problema da teoria de Lyra Filho. É logicamente impossível conhecer o sistema inteiro da sociedade ou mesmo o sistema inteiro do direito (o direito em globo como diz Lyra Filho). Não é possível a observação ou descrição da totalidade do mundo ou da natureza, visto de toda a descrição é necessariamente seletiva. Nesse sentido é que, embora possa ser apropriada para a dimensão da luta política e efetividade do direito e mesmo contribuir no processo de conhecimento do direito, a teoria epistemológica de Lyra Filho não permite a adequada construção da Ciência do Direito. ARGUMENTA - UENP 60 JACAREZINHO Nº 18 P. 31 – 62 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. 13. ed. São Paulo: Ática, 2009. ______. Roberto Lyra Filho ou da dignidade política do Direito. Direito e Avesso, Brasília, Nair, I(2): 21-30, jul./dez. 1982. CIRNE-LIMA, Carlos. Dialética para principiantes. 3. ed. São Leopoldo: Editora Unisinos, 2005. CLÈVE, Clèmerson Merlin. O Direito e os direitos. São Paulo, Acadêmica; Curitiba, Scientia et Labor; 1988. FAORO, Raymundo. O que é Direito, segundo Roberto Lyra Filho. Direito e Avesso, Brasília, Nair, I(2):31-5, jul./dez. 1982. GREGORI, Waldemar de. 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ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 31 – 62 2013 61 MIAILLE, Michel. Uma introdução crítica ao direito. Lisboa: Moraes, 1979. POPPER, Karl. A miséria do historicismo. Tradução de Octany S. da Mota e Leônidas Hegenberg. São Paulo: Cultrix; Editora da Universidade de São Paulo, 1980. ______. O racionalismo crítico na política. Tradução de Maria da Conceição CôrteReal. Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1981. ______. O mito do contexto: em defesa da ciência e da racionalidade. Tradução de Paula Taipas. Lisboa: Edições 70, 2009. RODRIGUES, Horácio Wanderlei. O ensino jurídico de graduação no Brasil contemporâneo: análise e perspectivas a partir da proposta alternativa de Roberto Lyra Filho. Florianópolis, CPGD/UFSC, 1987. (Dissertação de mestrado). ______. Ensino jurídico: saber e poder. São Paulo: Acadêmica, 1988. ______. Ensino jurídico e direito alternativo. São Paulo: Acadêmica, 1993. ______. 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Por este motivo, propomos uma interpretação pro homine baseada no princípio da igualdade e não discriminação dos homossexuais, relacionada com aquelas legislações locais que contêm o matrimônio heterossexual. ABSTRACT: This paper deals some development in federalism about human rights. We analyze one of the most recent decisions about homosexual rights concerning marriage as a right of this minority group. Therefore, we propose a pro homine interpretation based on equal protection clause against discrimination of Homosexuals related those state civil acts expressing heterosexual marriage. * Máster en Derechos Humanos con Especialidad en Tutela Jurisdiccional de los Derechos Fundamentales. Profesor Titular de Derechos Fundamentales en la Facultad de Derecho y Criminología en la Universidad Autónoma de Nuevo León. Becario del CONACyT y Exbecario de la Suprema Corte de Justicia de la Nación. Contacto: [email protected], [email protected] ** Abogado Postulante, Egresado de la Maestría en Ciencias Jurídicas con énfasis en Derecho Constitucional. Profesor Titular de Derecho Constitucional Local y Presidente de la Línea de Derecho Constitucional del Cuerpo Académico de la Escuela de Derecho de la Facultad de Ciencias Administrativas y Sociales de la Universidad Autónoma de Baja California. Contacto: [email protected] Artigo submetido em 15 de maio de 2013. Artigo aprovado em 20 de junho de 2013. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 63 PALAVRAS-CHAVE: Direitos humanos, federalismo, homosexual, princípio da igualdade, discriminação INTRODUCCIÓN Comenzaremos afirmando que el derecho a contraer matrimonio entre personas del mismo sexo deriva de un principio de derecho fundamental que debe ser protegido por el Estado mexicano, consistente en el libre desarrollo y dignidad de la persona humana, valores jurídicos supremos de ordenamiento jurídico. Es decir, el “reconocimiento del Estado sobre la facultad natural de toda persona a ser individualmente como quiere ser, sin coacción ni controles injustificados, con el fin de cumplir las metas u objetivos que se ha fijado, de acuerdo con sus valores, ideas, expectativas, gustos, etcétera.”1 El objeto del presente estudio es llevar a cabo un análisis crítico en torno al derecho de contraer matrimonio de las parejas del mismo sexo, así como los consiguientes derechos que conlleva la protección de aquélla institución. Centrándonos en el aspecto de fondo de la cuestión planteada, creemos que la problemática que subyace en aquellos Estados Federales donde no se reconoce el matrimonio entre personas del mismo sexo es una concepción formalista de los derechos y una interpretación legicentrista, letrista, gramatical, anticuada, caduca y trasnochada del concepto de familia, así como su concepción tradicional, y no procurando adecuar las nuevas necesidades de la sociedad contemporánea y de sus grupos minoritarios. En este sentido, creemos que la dignidad y el libre desarrollo de la persona humana deben ser los ejes rectores bajo los cuales se articulen estas decisiones fundamentales. Conforme a lo anterior, creemos que la Suprema Corte de Justicia de la Nación (SCJN) ha dado un paso fundamental al declarar como cláusula sospechosa el artículo del Código Civil del Estado de Oaxaca, por considerar que el matrimonio heterosexual por las autoridades administrativas, en relación con la solicitud de una pareja homosexual, vulneraba el principio de igualdad y no discriminación por razón de preferencia sexual. I. EL LIBRE DESARROLLO DE LA PERSONA Y EL MATRIMONIO HOMOSEXUAL En el mundo jurídico continental europeo, la dignidad humana se ha concebido como una fórmula rígida e inamovible, producto de un conjunto de filosofías valorativas liberales ilustradas, que dotan al ser humano de cualidades intrínsecas naturales o racionales, a partir de las cuales adquieren ciertos derechos inalienables. La doctrina jurisprudencial alemana, fecunda en la creación de 1 DERECHO AL LIBRE DESARROLLO DE LA PERSONALIDAD. ASPECTOS QUE COMPRENDE. Tesis: P. LXVI/ 2009; [TA]; 9a. Época; Pleno; S.J.F. y su Gaceta; Tomo XXX, Diciembre de 2009; Pág. 7. ARGUMENTA - UENP 64 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP precedentes judiciales sobre esa materia ha tenido una evolución asombrosa a los ojos de la justicia constitucional comparada. La creación de fórmulas específicas de no instrumentalización del ser humano en distintos ámbitos, ha permitido un cierto prestigio que ha sido inspirador para otros Tribunales en el mundo, incluso internacionales. Esta construcción de la doctrina jurisprudencial germana, fue elaborándose a partir de las interpretaciones realizadas en mayor medida, de las ideas ilustradas kantianas sobre no instrumentalización de la persona humana y el carácter universal que tienen los derechos naturales2, a través de la formulación de sus imperativos categóricos. De tal forma que para Kant, la racionalidad constituye uno de los fundamentos de los derechos y las instituciones jurídicas, basados en la propia libertad y autonomía de las personas. “… la dignidad implica, en la teoría kantiana, la dimensión moral de la personalidad, que tiene por fundamento la propia libertad y autonomía de la persona. De ahí la dignidad del hombre represente el principio legitimador de los derechos de la personalidad”3. De esta manera, la transformación de la cultura jurídica ocurrida con la Ilustración se dirigió hacia un sistema racional unificado, dependiente del soberano como única fuente del derecho positivo4. Desde su consagración por vez primera en la Ley Fundamental de Bonn en 1948, la dignidad ha sido interpretada como valor y principio fundamental en el mundo jurídico continental europeo 5, a partir de concepciones ya sean iusnaturalistas racionales o medievales6. Conforme a la tradición jurisprudencial alemana, la dignidad humana tiene dos vertientes: las que sí consideran que puede ser un derecho fundamental y los que piensan que únicamente es un principio del cual derivan el resto de los derechos del ordenamiento jurídico7. El libre desarrollo a la personalidad guarda íntima relación con la dignidad humana. Este principio ha servido de fundamento y soporte a otros derechos fundamentales8. Tal es el 2 KANT, Immanuel, Principios metafísicos del derecho, (trad. de G. Lizárraga), Librería de Victoriano Suárez, Madrid, 1873, p. 44. KANT, Immanuel, Fundamentación de la metafísica de las costumbres, (trad. de Manuel García Morente), El Cid Editor, Colección de Clásicos en español, Santa Fe, Argentina, 2003, pp. 75 y 79. KANT, Immanuel, Crítica de la razón práctica, (trad. Manuel García Morente y E. Miñana y Villasagra), Porrúa, México, 2003, p. 170. 3 PEREZ LUÑO, Antonio Enrique, “El papel de Kant en la formación histórica de los derechos humanos”, en La filosofía de los derechos humanos, Capítulo XIII, Volumen II, Tomo II, Siglo XVII, Historia de los derechos fundamentales, op. cit., p. 452; PÉREZ SÁNCHEZ, María Cristina, Crisis del principio de generalidad y del formalismo jurídico: J.J. Rousseau, I. Kant y la perspectiva teórica del institucionalismo jurídico en Maurice Hauriou, Tesis Doctoral de la Universidad Complutense de Madrid, Departamento de Derecho Constitucional, Madrid, 2004, 658 pp.; DOTTI, Jorge E., “Observaciones sobre Kant y el liberalismo”, en Araucaria, Universidad de Sevilla, Primer semestre, año/ vol. 6, número 013, Sevilla, España, 2005, pp. 4-12. 4 PECES BARBA, MARTINEZ, Gregorio, y DORADO PORRAS, Javier, “Derecho, sociedad y cultura”, en Tomo II, Vol. I, Historia de los Derechos Fundamentales: El contexto social y cultural de los derechos. (Rasgos generales de evolución), op. cit., p. 117. 5 FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco, “La dignidad de la persona como valor supremo” en Estudios jurídicoconstitucionales, IIJ, UNAM, México, 2003, pp. 3-38. 6 VON MÜNCH, Ingo, “La dignidad del hombre en el derecho constitucional” (trad. de Jaime Nicolás Muñiz) en Revista Española de Derecho Constitucional, Año 2. Núm. 5, Madrid, Mayo-Agosto 1982, pp. 9-34. 7 GUTIÉRREZ, Ignacio, Dignidad de la persona y derechos fundamentales, Marcial Pons, Madrid, 2005, p. 91. 8 DE ASÍS ROIG, Rafael, “El artículo 10.1 de la Constitución Española: la dignidad de la persona y el libre desarrollo de la personalidad como fundamentos del orden político y de la paz social” en MONEREO PÉREZ, J. L., MOLINA NAVARRETE, C. et. al. (coords.), Comentario a la Constitución socio-económica española, Comares, Granada, 2002, pp. 153-175. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 65 caso de los difíciles conflictos que se presentan por ejemplo con los derechos a la libertad sexual de la mujer, la libertad de expresión y sus manifestaciones más específicas (libertad artística, de cátedra, etc.). Cabe reiterar que este principio nos ayudará a dilucidar con mayor claridad la tesis acerca de que la interpretación y argumentación en materia de derechos fundamentales son necesarias e indispensables en el contexto de la sociedad moderna, ya que existen ciertos derechos que por la naturaleza y dinámica de los cambios sociales y tecnológicos no habían sido estipulados o consagrados por los textos constitucionales de manera expresa, esto sucede con los derechos a la imagen, al honor, a la intimidad y la protección de datos personales. Tal es el caso del concepto de familia, y su posterior evolución, como lo ha consagrado la SCJN en recientes decisiones, adoptando una postura garantista y acorde a las nuevas realidades sociales que surgen en la nación mexicana. Advirtiendo lo siguiente: “… en respeto a la dignidad humana resulta exigible el reconocimiento por parte del Estado no sólo de la orientación sexual de un individuo hacia personas de su mismo sexo, sino también de sus uniones, bajo las modalidades que, en un momento dado, decida adoptar (sociedades de convivencia, pactos de solidaridad, concubinatos o matrimonio), razón por la cual, la decisión tomada por la Asamblea Legislativa del Distrito Federal para ampliar la institución del matrimonio y comprender a las parejas del mismo sexo, lejos de contravenir los postulados fundamentales los refuerza, al igualar las uniones de las parejas, sean heterosexuales u homosexuales.”9 En materia de libre desarrollo de la personalidad, el Tribunal Europeo de Derechos Humanos (TEDH) ha dictado distintas resoluciones relacionadas con los derechos de personas homosexuales y transexuales. En un principio, se había pronunciado sobre el concepto de matrimonio tradicional como fundamento de la familia10, posteriormente, en el caso Christine Goodwin vs. Reino Unido, el Tribunal reconoció jurídicamente la necesidad de proteger los derechos de los transexuales. En especial resultó de gran relevancia el pronunciamiento relacionado con la noción de autonomía de la persona así como a establecer su identidad como un ser humano11. En contra del Consejo Constitucional Francés existe una resolución reciente, se trató del caso de E.B. contra Francia, resuelto por el TEDH, en donde la solicitante alegó que en cada una de las etapas para la autorización de adoptar, tuvo un trato discriminatorio basado en su orientación sexual y que esto mismo había interferido en su derecho al respeto de su vida privada. De acuerdo con la 9 MATRIMONIO ENTRE PERSONAS DEL MISMO SEXO. LA REFORMA AL ARTÍCULO 146 DEL CÓDIGO CIVIL PARA EL DISTRITO FEDERAL, PUBLICADA EN LA GACETA OFICIAL DE LA ENTIDAD EL 29 DE DICIEMBRE DE 2009, NO CONTRAVIENE EL CONTENIDO DE LA CONSTITUCIÓN POLÍTICA DE LOS ESTADOS UNIDOS MEXICANOS. Tesis: P. XXVIII/2011; [TA]; 9a. Época; Pleno; S.J.F. y su Gaceta; Tomo XXXIV, Agosto de 2011; Pág. 877. 10 Sheffield y Horsham c. Reino Unido, párr. 76. 11 Christine Goodwin c. Reino Unido, párr. 90. ARGUMENTA - UENP 66 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP fase judicial, la decisión fue basada en dos motivos: ausencia de la referencia paternal y la ambivalencia del compromiso de cada uno de los miembros del hogar. Después de examinar la solicitud se demostró que el estilo de vida de la solicitante no proporcionaba las garantías necesarias para adoptar a un menor, pero la negación del presidente del consejo hacia dicha autorización en base a la posición del principio con respecto a su estilo de vida al cual podríamos llamar su homosexualidad. Por este motivo, se determinó finalmente que la demandada había sufrido una diferencia de trato discriminatoria que carecía de una justificación objetiva y razonable. Siguiendo esta línea argumentativa, el juez mexicano ha decidido darle la importancia debida al derecho de familia. La reforma constitucional en materia de Derechos Humanos aprobada el 8 de marzo de 2011 y publicada en el Diario Oficial de la Federación el 10 de junio del mismo año, marcó un hito importante en la consagración y reivindicación de los Derechos Fundamentales en el sistema jurídico mexicano. Esta reforma, es quizá una de las más ambiciosas desde la misma Constitución de 1917 y anteriores. En ésta se contempla poner al día a la CPEUM en materia de principios interpretativos de los derechos humanos. Lo cual implicará, sin duda alguna, un reto bastante significativo para todos los jueces, e incluso cualquier autoridad (jurisdiccional). Permite la apertura del derecho internacional a las cuestiones de derecho interno. En esta medida, los Tratados Internacionales que amplíen derechos fundamentales deben formar parte del derecho interno, acorde a una interpretación sistemática de los numerales 1 y 133 de la Constitución Federal. Así, tenemos que la protección de la familia se encuentra consagrada de manera expresa en la mayor parte de los Tratados Internacionales que ha firmado el Estado Mexicano. Al respecto, el artículo 17, de la Convención Americana sobre Derechos Humanos sostiene lo siguiente. Artículo 17. Protección a la Familia 1. La familia es el elemento natural y fundamental de la sociedad y debe ser protegida por la sociedad y el Estado. 2. Se reconoce el derecho del hombre y la mujer a contraer matrimonio y a fundar una familia si tienen la edad y las condiciones requeridas para ello por las leyes internas, en la medida en que éstas no afecten al principio de no discriminación establecido en esta Convención. …” La Declaración Universal de Derechos Humanos, sostiene en su artículo 16, lo siguiente. 1. Los hombres y las mujeres, a partir de la edad núbil, tienen derecho, ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 67 sin restricción alguna por motivos de raza, nacionalidad o religión, a casarse y fundar una familia; y disfrutarán de iguales derechos en cuanto al matrimonio, durante el matrimonio y en caso de disolución del matrimonio. 2. Sólo mediante libre y pleno consentimiento de los futuros esposos podrá contraerse el matrimonio. 3. La familia es el elemento natural y fundamental de la sociedad y tiene derecho a la protección de la sociedad y del Estado. Por su parte, el Artículo 23 del Pacto Internacional de Derechos Civiles y Políticos dispone: 1. La familia es el elemento natural y fundamental de la sociedad y tiene derecho a la protección de la sociedad y del Estado. 2. Se reconoce el derecho del hombre y de la mujer a contraer matrimonio y a fundar una familia si tienen edad para ello. Acorde con lo anterior, podemos concluir que la protección de la institución de la familia, a través de la garantía de contraer matrimonio constituye un derecho humano, por medio del cual tiene realización en una de sus manifestaciones, la dignidad y el libre desarrollo de la persona humana. Asimismo, forma parte de un consenso regional dentro del Sistema Interamericano de Derechos Humanos, el cual debe ser respetado y protegido por el Estado mexicano, toda vez que el mismo se ha comprometido a raíz de la reforma constitucional más reciente, al otorgar apertura al derecho internacional de los derechos humanos. II. EL RECONOCIMIENTO DEL MATRIMONIO HOMOSEXUAL EN MÉXICO EN EL INCIPIENTE FEDERALISMO MEXICANO El máximo reto de la Constitución General dentro del Estado Federal, es aportar las bases para que una serie de pequeñas soberanías logren una verdadera integración. Aunque la naturaleza del Federalismo tiende a la descentralización progresiva12, distribución de competencias y capacidad de autodeterminación de las entidades federativas, siempre debe procurar la integración de sociedades plurales de acuerdo al pacto federal celebrado, es aquí donde radica el éxito o el fracaso de un estado que pregone esta forma de gobierno. En un federalismo formal y material13, las entidades federativas siempre tendrán capacidad de autodeterminación, respecto de las competencias que la 12 Aguilera Portales, Rafael Enrique. Teoría política del Estado Constitucional, Porrúa, S.A. de C.V., México, 2011. p. 245. Cfr. Pegoraro, Lucio. “Federalismo, Regionalismo, Descentralización: Una Aproximación Semántica a las Definiciones Constitucionales y Doctrinales.” En Ensayos Sobre Justicia Constitucional, La Descentralización y Las Libertades., Editorial Porrúa, S.A. de C.V., Instituto Mexicano de Derecho Procesal Constitucional, México, 2006. p.p. 233-268. 13 ARGUMENTA - UENP 68 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Constitución General les ha conferido, en el caso de nuestro país, los estados son libres y soberanos, en todo lo que concierne a su régimen interior,14 pero también es claro que siempre el límite de la autonomía de los estados básicamente se restringe a no contravenir el pacto federal. Mucho se ha discutido si México es un verdadero federalismo, si nació y opero esta forma de gobierno. En 1830, Alexis Tocqueville, cuestionaba que el estado mexicano funcionara con un verdadero federalismo: .. los habitantes de México, queriendo establecer el sistema federal, tomaron por modelo y copiaron casi enteramente la Constitución federal de los angloamericanos, sus vecinos. Pero al trasladar a su patria la letra de la ley, no pudieron transportar al mismo tiempo el espíritu que la vivifica.15 Sin duda, las peculiaridades del federalismo mexicano, hacen que se tengan que tomar en cuenta las cuestiones político-sociales que le dieron origen como forma de gobierno del estado mexicano, sin embargo la realidad de cada Estado federal es muy dispar16 y se encuentra en permanente evolución. La historia de México es caótica durante el siglo XIX, ésta trajo consigo inestabilidad política y mayor independencia, sin embargo, los autoritarismos fue la característica más común de la forma del gobierno del estado mexicano17. La característica del Estado mexicano ha sido el acompañamiento de nuestro federalismo formal18 a un centralismo material. La actividad de los entes locales que empezaron a utilizar las facultades de autodeterminación de su régimen interno, tocando inclusive fibras sociales sensibles, ya que se introdujeron al debate jurídico, temas sensibles, como lo son la despenalización del aborto19 y matrimonios entre personas del mismo sexo. Esto es un ejemplo claro del auténtico federalismo judicial, ejercido a través de las Entidades Federativas. Si bien, se trata de reformas a los ordenamientos jurídicos locales, es importante advertir que nos encontramos ante un fenómeno denominado 14 Artículo 40 de la Constitución Federal de los Estados Unidos Mexicanos aporta las bases para la autodeterminación de las entidades federativas, del 42 al 114, básicamente se establecen las bases de organización, facultades y forma de funcionamiento de los poderes Federales y de los numerales 115 al 122, primeramente se establecen las atribuciones constitucionales a los municipios que se delegan a los municipios y posteriormente las prohibiciones, facultades y forma de organización de las entidades federativas. 15 Tocqueville, A. En Ballbé, Manuel, and Roser Martínez. Soberanía Dual y Constitución Integradora, La Reciente Doctrina Federal de La Corte Suprema Norteamericana. Primera. Ariel Derecho, España, 2003. p. 21. 16 Segado Fernández, Francisco. Reflexiones Críticas en Torno al Federalismo en América Latina. op cit. nota. 4, p. 106. 17 García Ricci, Diego. “La soberanía estatal, la Constitución local y la justicia constitucional en los estados de la República Mexicana.” Revista Iberoamericana de Derecho Procesal Constitucional, Enero-Junio 2006. p.131. 18 Estrada Michel, Rafael. Orden Constitucional y Sistema Federal. En Cienfuegos Salgado, David, Coordinador, Universidad Autónoma de Coahuila, Comisión de Fiscalización Electoral, México, 2008. p.156. 19 Pleno: Suprema Corte de Justicia de la Nación, Acción de Inconstitucionalidad 146/2007 y su Acumulada 147/ 2007, discutidas el 28 de agosto de 2008, Promoventes: Comisión Nacional De Los Derechos Humanos y Procuraduría General De La República, Ponente: Sergio Salvador Aguirre Anguiano. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 69 constitucionalización del ordenamiento jurídico. Es decir, el anticuado y formal concepto donde las relaciones de derecho constitucional eran dedicadas exclusivamente a los textos formalmente como tales, se encuentra agotada. Hoy en día, la mayor parte de los ordenamientos (Códigos, Leyes, Reglamentos) guardan una relación intrínseca con la Constitución y sus principios fundamentales. Dentro de un federalismo las entidades federativas vienen siendo laboratorios jurídicos que pueden darse el lujo de innovar, para dar cobertura a las necesidades que la población va generando, esto puesto el ciudadano siempre contara con las protecciones mínimas que le otorga la Constitución general.20 Si contamos con entidades federativas activas constantemente se está revolucionando el ordenamiento jurídico y exportan una producción jurídica, a otras entidades o que incluso en algunos casos termina siendo adoptada por la federación como conjunto. Como parte de este reclamo de autonomía, la Asamblea Legislativa del Distrito Federal empieza a intentar regular la situación de las parejas del mismo sexo, con la creación de las Sociedades de Convivencia21 y posteriormente, en el año dos mil nueve, se incorpora la figura del matrimonio de personas entren el mismo sexo, situación sumamente cuestionada, llegando a nuestro máximo tribunal en el que se declaró la constitucionalidad de la figura22, primeramente por que la asamblea legislativa tenía facultades para realizar las modificaciones denunciadas, argumentando fundamentalmente, la potencialización y maximización del derecho a formar una familia, así como la evolución de esta institución a lo largo de décadas. Ahora bien, desde el momento que son reconocidos como matrimonio, institución que por siglos se ha plasmado como la institución rectora de la familia por excelencia, de ahí que las personas del mismo sexo puedan acceder de manera natural a conformar una familia, teniendo opciones, como la inseminación artificial, in vitro o cualquier otra tecnología reproductiva en el supuesto de las personas del sexo femenino que les permita salir embarazadas, el caso del sexo masculino es un poco más complejo, ya que por obvias razones nunca podrán procrear un bebe de manera directa, así estas personas básicamente pueden aspirar a la adopción. Tema que ha traído bastante polémica dentro de la sociedad general mexicana. Analicemos el comportamiento de los ordenamientos locales dentro de un federalismo, como se mencionó la capacidad de autodeterminación solamente tiene como restricción el no contravenir el pacto federal, por lo que; de manera genérica, una entidad federativa no puede obligar a otra a modificar su legislación 20 Althouse, Ann. “Howtobuil a separatesphere: Federal Courts and Statepower.” HardvardLawReview 100, No. 4 (1987): 1485–1538. 21 Publicada en la gaceta oficial del Distrito Federal el 16 de noviembre de 2006. 22 Pleno: Suprema Corte de Justicia de la Nación, Acción de Inconstitucionalidad 2/2010, discutida el 5 de Agosto de 2008, Promovente:Procurador General de la República contra actos de la Asamblea Legislativa y del Jefe de Gobierno del Distrito Federal, demandando la invalidez de los artículos 146 y 391 del Código Civil del Distrito Federal, publicados en la Gaceta Oficial del Distrito Federal de 29 de diciembre de 2009, Ponente: Sergio A. Valls Hernández. ARGUMENTA - UENP 70 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP con el objeto de que se incluyan actividades no deseadas, por la sociedad de la entidad federativa que se trate, pero ¿Que ocurre con las figuras jurídicas creadas en una entidad federativa y que se tengan que exportar al resto de las entidades federativas ?, entendiendo por exportación y situándonos específicamente al matrimonio de personas del mismo sexo, a aquellas parejas de esa condición que contraen el vínculo nupcial en el Distrito Federal y emigran a otra parte del país. Es decir, si es jurídicamente correcto obligar a implementar dicha figura, a las entidades federativas que no reconozcan el matrimonio entre personas del mismo sexo, sin embargo como mínimo, con el objeto de honrar el pacto federal se deben de respectar los efectos de ese matrimonio, en el resto de las entidades federativas. De esta manera, la SCJN ha señalado que a pesar de la existencia del federalismo y de que las Entidades Federativas son libres y soberanas en todo lo concerniente a su régimen interior, al tener la capacidad de gozar de legislar sobre la institución civil del matrimonio, también lo es, que el numeral 121, fracción IV, de la Carta Magna contiene una regla: la obligación para los Estados de reconocer los actos civiles celebrados en otros, aun cuando no guarde correspondencia con su propia legislación. Concluyendo lo siguiente: “es el propio artículo que ¨[…] en aras de salvaguardar el federalismo y la seguridad jurídica de los gobernados, prevé el deber constitucional para los demás Estados de otorgar dicho reconocimiento.”23 Ahora bien, tratándose de Derechos Fundamentales y la importancia e irrenunciabilidad de los mismos, analizaremos si deben de romper las reglas del pacto federal de respeto a la autodeterminación en su régimen interior, y si se puede obligar judicialmente a una entidad federativa, a que admita la celebración de un matrimonio de personas del mismo sexo, no obstante que en su Código no lo tenga contemplado. En tal sentido, la cuestión fundamental a dilucidar es si, los Códigos Civiles que contienen la institución del matrimonio heterosexual, contienen una medida potencialmente discriminatoria para aquellas parejas homosexuales que desean contraer matrimonio y los derechos inherentes a esta institución. Al respecto, la Primera Sala de la SCJN ha analizado la concesión del matrimonio homosexual por un Juez Segundo de Distrito en el Estado de Oaxaca, llevando a cabo un análisis, en base a metodología comparada del derecho norteamericano, con fundamento en el análisis de la figura normativa del matrimonio heterosexual contenido en el Código Civil de aquella Entidad en razón de la violación del principio de igualdad y no discriminación contenido en el artículo primero, último párrafo. La razón es bastante sencilla, aunque con efectos bastante complejos para los amantes del legalismo a ultranza de la correcta técnica del juicio de amparo, ya 23 MATRIMONIO ENTRE PERSONAS DEL MISMO SEXO EN EL DISTRITO FEDERAL. TIENE VALIDEZ EN OTRAS ENTIDADES FEDERATIVAS CONFORME AL ARTÍCULO 121 DE LA CONSTITUCIÓN GENERAL DE LA REPÚBLICA (ARTÍCULO 146 DEL CÓDIGO CIVIL PARA EL DISTRITO FEDERAL, REFORMADO MEDIANTE DECRETO PUBLICADO EN LA GACETA OFICIAL DE LA ENTIDAD EL 29 DE DICIEMBRE DE 2009). Tesis: P./J. 12/2011; [J]; 9a. Época; Pleno; S.J.F. y su Gaceta; Tomo XXXIV, Agosto de 2011; Pág. 875. Criterio reiterado en las Controversias Constitucionales 13/2010 y 14/2010, resueltas por la SCJN. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 71 que implica un ejercicio de interpretación conforme de la norma en cuestión y una ampliación del concepto de “mujer y hombre”, por el de “persona”. En esencia, se trata que la figura del matrimonio contenida en el artículo 143 del Estado de Oaxaca que señala que el matrimonio “es un contrato celebrado entre un solo hombre y una sola mujer” resulta excluyente de las parejas del mismo sexo que deseen contraer matrimonio. Es decir, acorde a la teoría y dogmática de los derechos fundamentales moderna, nos encontramos ante una exclusión tácita de una categoría de personas de un determinado régimen jurídico, como lo son las personas del mismo sexo, toda vez que esta exclusión se basa en una distinción realizada en sus preferencias sexuales.24 Es decir, una violación al principio de igualdad, lo que amerita lleva a cabo un test de escrutinio estricto o de mayor intensidad, toda vez que se trata de una norma que contiene una cláusula sospechosa y discriminatoria por razón de preferencia sexual.25 Al respecto, es importante mencionar la aplicación del test de proporcionalidad y razonabilidad de la medida impugnada. En primer término, determinar si la norma del Código Civil del Estado de Oaxaca, persigue una 24 Amparo en revisión 581/2012 (Derivado de la Facultad de Atracción 202/2012). Primera Sala de la Suprema Corte de Justicia de la Nación, correspondiente al día cinco de diciembre de dos mil doce, p. 41. 25 IGUALDAD. CRITERIOS QUE DEBEN OBSERVARSE EN EL CONTROL DE LA CONSTITUCIONALIDAD DE NORMAS QUE SE ESTIMAN VIOLATORIAS DE DICHA GARANTÍA.” [Novena Época. Instancia: Segunda Sala. Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, XXVII, Junio de 2008, Página: 440 Tesis: 2a. LXXXIV/ 2008 Tesis Aislada Materia(s): Constitucional]; “IGUALDAD. CASOS EN LOS QUE EL JUZGADOR CONSTITUCIONAL DEBE ANALIZAR EL RESPETO A DICHA GARANTÍA CON MAYOR INTENSIDAD.” [Novena Época. Instancia: Segunda Sala Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, XXVII, Junio de 2008, Página: 439, Tesis: 2a. LXXXV/2008, Tesis Aislada Materia(s): Constitucional]; “MOTIVACIÓN LEGISLATIVA. CLASES, CONCEPTO Y CARACTERÍSTICAS.” [Novena Época. Instancia: Pleno. Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, XXX, Diciembre de 2009 Página: 1255, Tesis: P./J. 120/2009 Jurisprudencia Materia(s): Constitucional]; PRINCIPIO DE IGUALDAD. INTERPRETACIÓN DE LA CONSTITUCIÓN A EFECTOS DE DETERMINAR LA INTENSIDAD DEL ESCRUTINIO. [Novena Época. Instancia: Primera Sala. Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta XXXII, Septiembre de 2010 Página: 185, Tesis Aislada Materia(s): Constitucional]; “PRINCIPIO DE IGUALDAD. INTERPRETACIÓN CONSTITUCIONAL PARA DETERMINAR SI EN UN CASO PROCEDE APLICAR ESCRUTINIO INTENSO POR ESTAR INVOLUCRADAS CATEGORÍAS SOSPECHOSAS.” [Novena Época. Instancia: Primera Sala. Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, XXXII, Septiembre de 2010, Página: 183, Tesis: 1a. CIV/2010 Tesis Aislada Materia(s): Constitucional]; “IGUALDAD. CRITERIOS QUE DEBEN OBSERVARSE EN EL CONTROL DE LA CONSTITUCIONALIDAD DE NORMAS QUE SE ESTIMAN VIOLATORIAS DE DICHA GARANTÍA.” [Novena Época. Instancia: Segunda Sala Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta XXXI, Abril de 2010 Página: 427, Tesis: 2a./J. 42/2010 Jurisprudencia Materia(s): Constitucional ]; “MATRIMONIO ENTRE PERSONAS DEL MISMO SEXO. AL TRATARSE DE UNA MEDIDA LEGISLATIVA QUE REDEFINE UNA INSTITUCIÓN CIVIL, SU CONSTITUCIONALIDAD DEBE VERIFICARSE EXCLUSIVAMENTE BAJO UN PARÁMETRO DE RAZONABILIDAD DE LA NORMA (ARTÍCULO 146 DEL CÓDIGO CIVIL PARA EL DISTRITO FEDERAL, REFORMADO MEDIANTE DECRETO PUBLICADO EN LA GACETA OFICIAL DE LA ENTIDAD EL 29 DE DICIEMBRE DE 2009)”. [Novena Época. Instancia: Pleno Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta XXXIV, Agosto de 2011 Página: 873, Tesis: P. XXIV/2011. Tesis Aislada Materia(s): Constitucional] “CONTROL DEL TABACO. EL ARTÍCULO 16, FRACCIÓN II, DE LA LEY GENERAL RELATIVA NO DEBE SER SOMETIDO A UN ESCRUTINIO DE IGUALDAD INTENSO.” [Novena Época. Instancia: Pleno. Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta XXXIV, Agosto de 2011 Página: 24, Tesis: P. VII/2011. Tesis Aislada Materia(s): Constitucional]; “ESCRUTINIO DE IGUALDAD Y ANÁLISIS CONSTITUCIONAL ORIENTADO A DETERMINAR LA LEGITIMIDAD DE LAS LIMITACIONES A LOS DERECHOS FUNDAMENTALES. SU RELACIÓN.” [Novena Época. Instancia: Pleno Fuente: Semanario Judicial de la Federación y su Gaceta, XXXIV, Agosto de 2011 Página: 5, Tesis: P./J. 28/2011, Jurisprudencia, Materia(s): Constitucional]. ARGUMENTA - UENP 72 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP finalidad u objetivo constitucionalmente admisible. Y buscar, en la medida de lo posible, la medida menos gravosa en razón del principio o derecho fundamental que se pretende proteger. En tal sentido, la protección de la familia, está incluida en el artículo 4 de la Carta Federal mexicana, así como en los diversos instrumentos de derecho internacional, tales como el numeral 17 de la Convención Americana sobre Derechos Humanos. Ahora bien, para llevar a cabo una correcta ponderación de la medida enjuiciada y tildada de sospechosa (artículo 143 del Código Civil de Oaxaca), debe procederse a determinar en concreto quienes son las personas que se encuentran comprendidas en la categoría utilizada, así como el mandato de la protección de la familia. La SCJN ha reconocido en la Acción de Inconstitucionalidad 2/2010, la existencia de diversos tipos de familia, cuya finalidad principal no significa necesariamente la procreación, incluso en matrimonios heterosexuales.26 En este sentido, el artículo 143 del citado ordenamiento, resulta no idóneo para cumplir con la finalidad de la protección de la familia como realidad social, debido a que la norma impugnada “pretende vincular los requisitos en cuanto a las preferencias sexuales de quienes pueden acceder a la institución matrimonial de procreación”27 Al respecto, la SCJN determinó que, en la actualidad “la institución matrimonial se sostiene primordialmente “en los lazos afectivos, sexuales, de identidad, solidaridad y de compromiso mutuos de quienes desean tener una vida en común.” Cabe señalar que esta interpretación retoma aspectos sociológicos y evolutivos de una institución y actualiza la protección de la familia, consagrada en distintos instrumentos internacionales como en la propia Constitución Federal. Es decir, toma en cuenta las desventajas históricas que ha sufrido este grupo minoritario en la vida pública, así como lo perjuicios materiales que podrían sufrir como consecuencia de un no reconocimiento de su unión, tales como los beneficios fiscales, de solidaridad, por causa de muerte de uno de los cónyuges, de propiedad, de la toma subrogada de decisiones médicas, así como migratorios, laborales, los gastos médicos, así como de seguridad social. Cabe advertir que, la SCJN sostuvo en esta decisión que consagrar una figura similar a la del matrimonio, pero dirigida exclusivamente a las parejas homosexuales, sería tanto como defender la doctrina de la Corte Suprema Norteamericana de “separados pero iguales”, que sostuvo durante el periodo de la segregación racial, durante los años cincuenta. Ahora bien, el hecho de que los Congresos Locales se encuentren en absoluta libertad de configuración legal para consagrar de manera expresa las figuras jurídicas, también lo es que estas libertades encuentran sus límites en los derechos fundamentales, concernientes al principio de igualdad y no discriminación por razón de preferencia sexual. Motivo por el cual, la máxima institución judicial del país decidió ordenar 26 MATRIMONIO. LA “POTENCIALIDAD” DE LA REPRODUCCIÓN NO ES UNA FINALIDAD ESENCIAL DE AQUELLA INSTITUCIÓN. Tesis: P. XXII/2011; [TA]; 9a. Época; Pleno; S.J.F. y su Gaceta; Tomo XXXIV, Agosto de 2011; Pág. 879 27 Amparo en revisión 581/2012 (Derivado de la Facultad de Atracción 202/2012). Cit., p. 53. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 73 a las autoridades administrativas una interpretación conforme de las normas impugnadas, para entender sobre la expresión “un solo hombre y una sola mujer”, que ese acuerdo de voluntades se celebra entre “dos personas”. CONCLUSIONES La resolución aquí analizada permite y da protección a la institución de la familia, a través de la institución del matrimonio a las parejas homosexuales. La resolución nos parece acorde a las nuevas necesidades y realidades sociales, ya que no se agota en el simple análisis legalista y formalista, donde la mera letra de la ley dejaría sin materia el asunto en cuestión, sino que acude a distintos planos de análisis, sociológicos, filosóficos, políticos y jurídicos, para integrar una visión real de la gran problemática que representa el no tutelar la unión familiar. Es precisamente ese estatus jurídico, es decir, ese reconocimiento social lo que brinda a una persona el pleno reconocimiento de su dignidad como persona y de su libre desarrollo a la personalidad. Defensores a ultranza de la institución clásica del matrimonio reducida a aspectos netamente reproductivos, han afirmado que esta decisión debe dejarse al ámbito de las mayorías. Pero quizá la pregunta más controversial de todas sería: ¿deberíamos de someter este tipo de decisiones a las mayorías? ¿y si las mayorías en un intento frenético por conservar el status quo de las parejas heterosexuales se negaran (incluso a través de un referéndum) a reconocer la calidad de matrimonio a las uniones homosexuales? ¿obligaríamos a las minorías a respetar dicha decisión “democrática” y a conservar sus uniones a través de figuras similares que no protegen a su familia de la misma forma que las uniones heterosexuales? ¿podría un juez en un intento por proteger eficientemente la dignidad humana, el libre desarrollo de la persona, y la igualdad, reconocer un derecho que no se encuentra a primera vista consagrado? ¿sería legítima dicha decisión en contravención al principio democrático? La SCJN en su calidad de Tribunal Constitucional ha contestado afirmativamente a dicha cuestión, resta a los demás Estados Federales seguir este camino de efectiva y plena consagración de derechos fundamentales. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFÍCAS BENDA, Ernst, “Dignidad humana y derechos de la personalidad” en VV. AA. Manual de Derecho Constitucional (Presentación de Konrad Hesse, edición, prolegómeno y traducción de Antonio López Piña), Marcial Pons-Instituto Vasco de Administración Pública, Madrid, 2006. DE ASÍS ROIG, Rafael, “El artículo 10.1 de la Constitución Española: la dignidad de la persona y el libre desarrollo de la personalidad como fundamentos del orden político y de la paz social” en MONEREO PÉREZ, J. L., MOLINA NAVARRETE, C. et. al. (coords.), Comentario a la Constitución socio-económica española, Comares, Granada, 2002, pp. 153-175. ARGUMENTA - UENP 74 JACAREZINHO Nº 18 P. 63 – 75 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP FERNÁNDEZ SEGADO, Francisco, “La dignidad de la persona como valor supremo” en Estudios jurídico-constitucionales, IIJ, UNAM, México, 2003, pp. 3-38. GUTIÉRREZ GUTIÉRREZ, Ignacio, Dignidad de la persona y derechos fundamentales, Marcial Pons, Madrid, 2005. VON MÜNCH, Ingo, “La dignidad del hombre en el derecho constitucional” (trad. de Jaime Nicolás Muñiz) en Revista Española de Derecho Constitucional, Año 2. Núm. 5, Madrid, Mayo-Agosto 1982, pp. 9-34. JURISPRUDENCIA Sentencias del Tribunal Europeo de Derechos Humanos - Sheffield y Horsham c. Reino Unido. - Christine Goodwin c. Reino Unido. - Schalk and Kopf c. Austria, 24 de junio de 2010. Sentencia del Consejo Constitucional Francés - No. 2010-92 Cuestión Prioritaria de Inconstitucionalidad, 28 de enero de 2011. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 63 – 75 2013 75 76 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O PRINCÍPIO DA EFICIÊNCIA CONSTITUCIONAL: UMA RELEITURA A PARTIR DA INTERDISCIPLINARIDADE* CONSTITUTIONAL PRINCIPLES OF EFFICIENCY: A REREADING FROM INTERDISCIPLINARITY Thaïs Savedra de ANDRADE** SUMÁRIO: Introdução. 1 A Eficiência e o Direito Administrativo, um princípio implícito e explicitamente em edificação. 2 Emprestando conceitos para a Administração Pública. 3 Em busca de soluções. Considerações Finais. Referências Bibliográficas. RESUMO: Este artigo científico estuda o Princípio da Eficiência como tema interdisciplinar, cujo conceito é emprestado ao direito por outras ciências. A administração pública tem o dever de agir não de acordo com a lei, mas, também, com o dever de atingir metas e resultados. A maior parte da doutrina entende ser a eficiência o máximo de resultado obtido na aplicação de algum ato administrativo, gastando-se o mínimo de recursos do aparato público. Utilizando conceitos comparados da eficiência, a administração científica demonstra que a boa gestão está na eliminação do desperdício do trabalho e tal conceito pode ser utilizado para a gerência da coisa pública. Da mesma forma, as técnicas da teoria clássica propõe que administrar é prever, organizar, comandar, coordenar e controlar. Ambas teorias priorizam a eficiência administrativa, por isto enfocadas no hodierno esboço. Se a administração pública for pensada como uma máquina que deve ter o maior índice de rendimento, aquela deve trabalhar o máximo com a energia que lhe é oferecida. A partir destas observações é possível retirar da eficiência três ideias nodulares a serem buscadas pela administração: economia, presteza e resultados. Com base nas ciências comparadas a dar novas perspectivas para o dever de gestar resultados, defende-se a tese que se dada política pública de plano não apresentar aptidão a gerar resultados eficientes jamais deverá ser implementada. Caso certa política pública implementada não seja eficiente porque não tem duração razoável, ou não cumpre com sua finalidade, ou o resultado é desproporcional ao trabalho e * Artigo Científico elaborado no Curso de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP) para a disciplina: “Políticas Públicas e Efetivação dos Direitos Sociais” por meio da orientação do Professor Dr. Valter Foleto Santin. ** Mestranda do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Bolsista da CAPES. E-mail: [email protected]. Artigo submetido em 10/08/2012. Aprovado em 22/11/2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 77 valor investidos, estes atos devem ser controlados assim como se faz na legalidade. ABSTRACT: This article studies the scientific principle as Efficiency interdisciplinary topic, whose concept is borrowed from the right by other sciences. The government has a duty not to act in accordance with the law, but also the duty to achieve goals and results. Most of the doctrine considers to be the maximum efficiency result in the application of any administrative act, by spending minimal resources of public apparatus. Compared using concepts of efficiency, scientific management demonstrates that good management is the elimination of the waste of labor and this concept can be used for the management of public affairs. Likewise, the techniques of the classical theory proposes that managing is predicting, organizing, commanding, coordinating and controlling. Both theories prioritize administrative efficiency, so focused on today’s sketch. If the government is thought of as a machine that should have the highest rate of return, that should work with the maximum energy that is offered. From these observations it is possible to remove the nodule efficiency three ideas to be pursued by the administration: economy, responsiveness and results. Based in science compared to give new perspectives to the duty to gestate results, defends the thesis that given public policy plan does not provide the ability to generate efficient outcomes should never be implemented. If implemented right public policy is not efficient because it has no reasonable length, or does not fulfill its purpose, or the result is disproportionate to the amount invested and work, these acts must be controlled so as is done legally. PALAVRAS-CHAVE: Princípio da Eficiência. Interdisciplinaridade. Controle do ato administrativo. Políticas Públicas. KEYWORDS: Principle of Efficiency. Interdisciplinarity. Control of the administrative act. Public Policy. INTRODUÇÃO O trabalho, objeto deste estudo, pretende explorar o Princípio da Eficiência como mecanismo de controle de atos administrativos e da efetivação de políticas públicas. Sendo um assunto relativamente tratado pela doutrina do direito administrativo, principalmente a italiana, o presente esboço ambiciona enfocar a eficiência sob outras óticas, especificamente da administração e da física, para demonstrar que o tema em análise trata-se de conceito importado de outras ciências. O tema da eficiência foi escolhido por revelar-se extremamente atual, porquanto serve de limites ao poder estatal administrativo, seja no bojo da própria administração, seja, conforme se propõe neste estudo, pelo judiciário. ARGUMENTA - UENP 78 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Outrossim, o princípio em comento tem o condão de revelar o fim último das metas para a atuação do Estado, que deve atender a razoabilidade, presteza e comprometimento com o resultado planejado. Os objetivos do presente trabalho são de trazer à luz uma nova perspectiva ao Princípio da Eficiência, demonstrando a necessidade de se observar os elementos deste valor na órbita dos atos administrativos, gestão da coisa pública e aplicação em políticas públicas. O referencial teórico partiu da análise da existência implícita do aludido princípio e da necessidade da administração oferecer resultados concretos na sua atuação, não ficando adstrita apenas à legalidade. A técnica para se chegar à problematizarão do tema foi o sistemático e comparativo, enfocando o assunto dentro de outros campos do conhecimento e comparando com a ciência do direito. Também foram utilizados o método histórico e dedutivo, analisando a eficiência desde seu surgimento enquanto princípio implícito até a delimitação do assunto para estudá-lo como forma de mecanismo de controle. A pesquisa focou a análise bibliográfica, documental (análise de leis, jurisprudência e da Constituição Federal). 1 A EFICIÊNCIA E O DIREITO ADMINISTRATIVO, UM PRINCÍPIO IMPLÍCITO E EXPLICITAMENTE EM EDIFICAÇÃO A eficiência sempre foi dever do administrador. Entretanto, somente quando tal elemento foi elevado a categoria de Princípio Constitucional é que ficou explícito que a administração deveria, além de agir com legalidade, ser eficiente. Da mesma forma, após a eficiência como princípio motor da administração pública, não pode o gestor administrativo limitar-se a não infringir a lei, devendo gerir a coisa pública de forma que ela alcance metas e resultados.1 Segundo Enrique Groisman (1993, p.894) [...] a mera juridicidade da atuação estatal como elemento de legitimação, se tornou insatisfatória a partir do momento em que começou a também ser exigida a obtenção de resultados. Não se considera mais suficiente que os governantes não violem a lei: exige-se deles a redução do desemprego, o crescimento econômico, o combate à pobreza, solução para os problemas de habitação e saúde. A discussão sempre se coloca em relação a quais são as políticas mais adequadas para atingir estes fins, mas não há dúvidas de que a lei deixou de ser apenas um meio para impedir a arbitrariedade para se converter em ponto de partida para uma série de 1 Art. 37 da Constituição Federal: A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 79 atividades nas quais há uma maior margem de delegação e de discricionariedade e um crescente espaço para a técnica. (Grifei) Mas, o que é eficiência? Antes de tentar qualquer definição jurídica, cumpre apontar que a classe gramatical deste princípio é a dos adjetivos. Enquanto que a legalidade, a impessoalidade, a moralidade e a publicidade são substantivos femininos, a eficiência é o único adjetivo - ou a grande qualidade - que deve possuir a administração pública. Se a supremacia do interesse público sobre o particular, enquanto interesse primário, é a manifestação da melhor qualidade na gestão administrativa, então a eficiência passa a ser o parâmetro para avaliar os resultados desta gerência.2 O princípio em análise é moderno e de vanguarda, tem a vocação de instrumentalizar o desempenho público sob a ótica da desburocratização da prestação administrativa. É um princípio mínimo que foi inserido de forma expressa no caput do art. 37 pela Emenda Constitucional 19 e ganha roupagem de princípio expresso na Constituição Federal. Antes da EC 19 a administração já tinha o dever de eficiência de forma implícita na Constituição. Esta obrigação, inclusive, já existia de maneira expressa na lei 8987/95, art. 6° (que contempla o conceito de serviço adequado e serviço eficiente). Vários juristas vêm tentando dar uma roupagem conceitual para o princípio em foco, convergindo todos para o aspecto de ser a eficiência o máximo de resultado obtido na aplicação de algum ato administrativo, gastando-se o mínimo de recursos do aparato público. Veja-se: [...] a eficiência administrativa, como corolário da economicidade, tem uma vertente de maximização do recurso público a ser despendido pela Administração Pública, pelo que, para ser eficiente, a atividade administrativa empreendida deverá trazer benefícios para a coletividade compatíveis com o montante de recursos públicos despendidos. (SILVA, 2002, p. 651). O Ministro Gilmar Ferreira Mendes (2008, p. 834) também aponta para a questão do maior proveito com o menor emprego de recursos, ressaltando a importância da contribuição da doutrina italiana no estudo do princípio da eficiência: 2 Explica Uadi Lammêgo Bulos (2008, p. 644) que a “Eficiência, ‘voz’ que adjetiva o princípio em análise, traduz ideia de presteza, rendimento funcional, responsabilidade no cumprimento de deveres impostos a todo e qualquer agente público. Seu objetivo é claro: a obtenção de resultados positivos dos serviços púbicos, satisfazendo as necessidades básicas dos administrados.” ARGUMENTA - UENP 80 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP [...] o princípio da eficiência [...] orienta a atividade administrativa no sentido de conseguir os melhores resultados com os meios escassos de que se dispõe e a menor custo. Rege-se, pois, pela regra da consecução do maior benefício com o menor custo possível. Esse princípio consubstancia a exigência de que os gestores da coisa pública não economizem esforços no desempenho dos seus encargos, de modo a otimizar o emprego dos recursos que a sociedade destina para a satisfação das suas múltiplas necessidades; numa palavra, que pratiquem a ‘boa administração’, de que falam os publicistas italianos. Feitas estas considerações, pode-se pontuar que a eficiência é uma qualidade da administração quando, na prática de atos administrativos (administrando e aplicando as políticas públicas a que se propõe), obtém os melhores resultados possíveis com o menor emprego aceitável de recursos públicos (ou apenas com aqueles que dispõe). Verifica-se que esta “conta” em nada difere do conceito de eficiência de outras ciências como a física e a economia. Embora conceituado juridicamente com certa facilidade, nada mais difícil do que definir eficiência na administração pública num sentido prático. Uma administração eficiente é algo imaginável. Contudo, a concretização deste princípio e os mecanismos para tanto é que são o verdadeiro problema a ser resolvido pela ciência do direito. Não por outro motivo foi que Celso Antônio Bandeira de Melo (2012, p. 92) afirmou que a eficiência, enquanto princípio constitucional, não passou de mero “desabafo” do legislador, conforme apontado nesta passagem: Quanto ao princípio da eficiência, não há nada a dizer sobre ele. Trata-se, evidentemente, de algo mais do que desejável. Contudo, é juridicamente tão fluido e de tão difícil controle ao lume do Direito, que mais parece um simples adorno agregado ao art. 37 ou o extravasamento de uma aspiração dos que burilam no texto. De toda sorte, o fato é que tal princípio não pode ser concebido (entre nós nunca é demais fazer ressalvas óbvias) senão na intimidade do princípio da legalidade, pois jamais suma suposta busca de eficiência justificaria postergação daquele que é o dever administrativo por excelência. Finalmente, anote-se que este princípio da eficiência é uma faceta de um princípio mais amplo já superiormente tratado, de há muito, no Direito italiano: o princípio da ‘boa administração’. Para ser possível compreender a eficiência como modalidade a instruir todo a Ordem Jurídica a ponto de servir de “substrato para a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo contrário à plenitude de seus efeitos.” (BULUS, 2008, p. 646), far-se-á uma sabatina interdisciplinar propondo uma forma ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 81 racional de aplicar os peculiares efeitos de tal princípio. 2 EMPRESTANDO CONCEITOS PARA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA Primeiramente pontue-se que a eficiência sempre foi dever do administrador pátrio e, para o ato de administrar, principalmente a coisa pública, a ponderação de interesses tem importância capital. Além disso, pontuar elementos que realmente sirvam como norteadores da eficiência na administração parece algo muito complicado e distante da administração privada ou das ciências exatas. São muitos os interesses em jogo no trato da coisa pública, nem sempre preocupados com a satisfação dos interesses públicos como expressão da vontade geral. Por tal panorama, elencar-se-á tão somente os elementos julgados aptos a serem utilizados no aparelho público como forma de concretização do princípio da eficiência, coforme se verá. A moderna Administração Científica de Frederick Winslow Taylor (1990) elenca que a boa administração é muito mais relevante que os homens excepcionais ou extraordinários, porque aquela é permanente enquanto que estes são transitórios. A grosso modo, na teoria de Taylor, há todo um processo de modelagem do aparelho administrativo para que ele produza com a máxima eficiência e gere benefícios e riqueza para todos. A base para esta boa administração encontra-se na premiação pela produtividade com um plano de cargos e salários para os funcionários que melhor produzem e se especializam (aqueles que se divorciam da “vadiagem”). Afora isto, a teoria da administração científica incita ao desenvolvimento de técnicas para que os esforços usados com mão de obra sejam aproveitados ao máximo e não desperdiçados, levando a eliminação de todo trabalho lento, falho ou inútil. Embora a Administração Científica seja um sistema que tem como foco a iniciativa privada e tenha recebido ao longo dos anos diversas críticas, muitos dos elementos desta teoria podem ser plenamente aproveitados para a administração pública, como, por exemplo, criar mecanismos de controle de atividades inúteis e que não apresentem resultado útil; incentivar a especialização entre os agentes públicos para um melhor desempenho funcional; buscar o melhor resultado dentro do menor tempo possível (TAYLOR, 1990, p. 45-86). O viés desta proposição reside na busca pela eficiência de qualquer sistema, seja ele de uma fábrica, ou de modo aplicado, na implementação de políticas públicas, que, para Taylor, está na eliminação do desperdício do trabalho. Tudo que for economizado desta riqueza pode ser convertido em melhora nas condições e expectativas de todos os trabalhadores. Na administração privada o modelo de Taylor é criticado por “coisificar” as pessoas, tratando tudo e todos de um sistema como se fossem máquinas. De ARGUMENTA - UENP 82 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP outra sorte, tais críticas devem ser relativizadas no trato da coisa pública, porquanto a gestão administrativa deve ser vista como uma máquina, cuja ação deve ser a melhor possível. Assim, entende-se viável a adoção de alguns conceitos para a máxima eficiência da coisa pública advindos desta teoria, que prioriza as tarefas em execução. Outra tese interessante é a de Henri Fayol (1990), fundador da Teoria Clássica da Administração, que propõe que administrar é prever, organizar, comandar, coordenar e controlar. Embora também seja objeto de muitas criticas, os elementos desta teoria (e planejamento, organização, direção controle) são muito aceitos e praticados nas administrações de vários segmentos atualmente. Também por buscar a máxima eficiência, todavia, com foco na estrutura do corpo administrável, os elementos da Teoria Clássica da Administração são extensíveis no trato da coisa pública e na implementação de suas políticas, pois a disposição dos órgãos componentes do corpo estatal e a forma como eles se interrelacionam, prevê aumento da ação do aparelho político. Ambas as teorias administrativas elencadas são objeto de julgamentos e em muitos pontos estão superadas, entretanto, por suas peculiaridades em buscarem a eficiência foram aqui objeto de análise sob uma perspectiva do direito administrativo. Há outras formas muito interessantes de conceber a eficiência e implementá-la, como, por exemplo a da física. Nesta ordem, eficiência seria a relação inversamente proporcional entre o trabalho favorável realmente produzido e diretamente proporcional a energia aplicada em um sistema fechado: K= W/energia (K = eficiência; w = trabalho em jaules e energia em jaules). Tal proporção é muito utilizada na mecânica como mensuradora do rendimento de máquinas, sendo a fórmula matemática assim disposta: K= Pu/Pt (K = ao rendimento da máquina, Pu = potência utilizada pela máquina e Pt= potência total recebida pela máquina). Se a administração pública for pensada como uma máquina que deve ter o maior índice de rendimento (eficiência), ela deve trabalhar o máximo com a menor potência possível. Esta seria uma forma Cartesiana de enxergar a gestão estatal. O tema trazido comparativamente para a seara do Direito Administrativo é matéria bastante contemporânea, porque visa a economicidade da utilização dos bens naturais quando se trata de eletrodomésticos, por exemplo. Um equipamento desta natureza, para ser eficiente, deve produzir o máximo de energia (frio, calor, rotação de motor etc.), recebendo o mínimo de energia elétrica. Embora possa parecer para alguns ser extremante reducionista a ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 83 explanação comparativa à física, não restam dúvidas que não há outro modo de se esperar que assim a administração funcione. 3 EM BUSCA DE SOLUÇÕES Tendo em mente a interdisciplinaridade que se estabelece no trato da eficiência (que sem dúvida é conceito emprestado de outras tantas ciências para o Direito), bem como os mecanismos de outros campos do conhecimento para implementar tal efeito, passar-se-á para a análise de possíveis mecanismos hábeis a opor tal princípio como sistema de controle dos atos administrativos, como os decorrentes da implementação das políticas públicas. Evidentemente que, sendo uma máquina muito mais complexa, é de se notar outros engenhos no que tange à eficiência administrativa. Observe-se: Do exposto até aqui, indentifica-se no princípio constitucional da eficiência três idéias: prestabilidade, presteza e economicidade. Prestabilidade, pois o atendimento prestado pela Administração Pública deve ser útil ao cidadão. Presteza porque os agentes públicos devem atender o cidadão com rapidez. Economicidade porquanto a satisfação do cidadão deve ser alcançada do modo menos oneroso possível ao Erário público. Tais características dizem respeito quer aos procedimentos (presteza, economicidade), quer aos resultados (prestabilidade), centrados na relação Administração Pública/cidadão. Ocorre que há também outra espécie de situação a ser considerada quanto à Administração e que não engloba diretamente os cidadãos. Trata-se das relações funcionais internas mantidas entre os agentes administrativos, sob o regime hierárquico. Nesses casos, é fundamental que os agentes que exerçam posições de chefia estabeleçam programas de qualidade de gestão, definição de metas e resultados, enfim, critérios objetivos para cobrar de seus subordinados eficiência nas relações funcionais internas da qual dependerá a eficiência no relacionamento Administração Pública/cidadão. Observando esses dois aspectos (interno e externo) da eficiência na Administração Pública, então, poder-se-ia enunciar o conteúdo jurídico do princípio da eficiência nos seguintes termos: a Administração Pública deve atender o cidadão na exata medida da necessidade deste com agilidade, mediante adequada organização interna e ótimo aproveitamento dos recursos disponíveis. (COSTODIO FILHO, 1999, p. 214) (Grifou-se) Assim, a administração será eficiente quanto primar pela supremacia do interesse público, implementando políticas tais que atendam aos administrados na medida exata de suas precisões, de forma desburocratizada e com uma utilização ARGUMENTA - UENP 84 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP excelente dos recursos que possui. Atender aos administrados de forma máxima não significa gastar o mínimo, pode, inclusive ser necessário despender-se muito recurso do erário para tanto. A questão da eficiência administrativa reside no fato de que, com o montante empregado, deve ser atendido de forma integral e perfeita aquela dada necessidade, sem desperdícios e de forma ágil. Uma máquina mecânica poderá gastar uma quantidade elevada de energia caso o elemento por ela produzido valha a energia empreendida. Ou seja, o resultado é apto, integral, “razoável” e “proporcional” ao que foi investido. A partir destas observações é possível retirar da eficiência três ideias nodulares a serem buscadas pela administração: economia, presteza e resultados (MARINELA, 2012, p. 42-43). Portanto, as leis que tenham como premissa implementar programas (políticas públicas) de prestação de serviços ou de execução de quaisquer objetivos sociais, além de todo ato administrativo de gestão pura, deve ter duração razoável para oferecer resultados efetivos, utilizando-se dos recursos empreendidos de forma proporcional para a consecução de seus objetivos. Caso haja desvio destas premissas, o ato administrativo será passível de controle, inclusive do judiciário. Destarte, a eficiência alia-se à legalidade como uma medida a mais no controle dos atos administrativos. Aponte-se entendimento neste sentido: O Princípio da Eficiência de forma alguma visa a mitigar ou a ponderar o Princípio da Legalidade, mas sim a embeber a legalidade de uma nova lógica, determinando a insurgência de uma legalidade finalística e material – dos resultados práticos alcançados –, e não mais uma legalidade meramente formal e abstrata.É desta maneira que a aplicação tout court das regras legais deve ser temperada, não apenas pela outrora propugnada eqüidade, mas pela realização das finalidades constitucionais e legais aplicáveis à espécie.O Princípio Constitucional da Eficiência (art. 37, caput, CF) não legitima a aplicação cega de regras legais (ou de outro grau hierárquico), que leve a uma consecução ineficiente ou menos eficiente dos objetivos legais primários. As normas jurídicas “passam a ter o seu critério de validade aferido não apenas em virtude da higidez do seu procedimento criador, como da sua aptidão para atender aos objetivos da política pública, além da sua capacidade de resolver os males que esta pretende combater”. (ARAGÃO, 2006, p. 4) (Grifou-se) Se dada política pública de plano não apresentar aptidão a gerar resultados eficientes (razoáveis na seara da economicidade e presteza) jamais deverá ser implementada. Caso certa política pública implementada não seja eficiente porque não tem duração razoável, ou não cumpre com sua finalidade, ou o resultado é ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 85 desproporcional ao trabalho e valor investidos, estes atos devem ser controlados assim como se faz na legalidade. Inclusive este trabalho tende a defender que um ato, mesmo que amplamente amparado pela legalidade, deve ceder se não atingir o fim a que se propõe no peculiar aspecto da eficiência. Luciano Iannota (2000, p. 44-45) defende que a finalidade de lei se sobrepõe a sua forma, da seguinte maneira: [...] a interpretação da norma é obviamente finalizada à aplicação a uma realidade delimitada e circunscrita. Quem decide, sobretudo na fase de emissão da decisão, deve colher na norma, prioritariamente, os objetivos das leis, os fins, a vontade do legislador. Os bens que a norma quis proteger e, portanto, o resultado que quis alcançar; devendo-se distinguir, portanto, no interior da norma, aquilo que é verdadeiramente finalístico (bens a serem protegidos, males a serem evitados) dos outros componentes (meios, instrumentos, formas) correspondentes aos vários planos da realidade reproduzida e sintetizada pela norma [...] (Grifou-se) O direito deve se prestar à consecução de bens maiores e o princípio da eficiência é o espaço preferencial para uma nova compreensão das leis com vista à finalidade e à utilidade do que elas defendem. Importante frisar que o Judiciário Brasileiro está se dirigindo no sentido de compreender que a eficiência é elemento passível de controle por aquele poder.3 Reitere-se este pensar com importante lição de Alexandre Santos Aragão (2006, p. 2): Os resultados práticos da aplicação das normas jurídicas não constituem preocupação apenas sociológica,³ mas, muito pelo contrário, são elementos 3 APELAÇÃOES CÍVEIS. CONSTITUCIONAL, ADMINISTRATIVO E CIVIL. REALIZAÇÃO DE CIRURGIA. TEMPO DE ESPERA PELO PROCEDIMENTO. DANOS MORAIS. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA DA UNIÃO, ESTADO E MUNICÍPIO. ART. 198 DA CRFB/88. RECURSOS IMPROVIDOS.[...] 4. A atuação da administração pública é pautada pelo princípio da eficiência, baseando-se na desburocratização e na melhor utilização possível dos recursos públicos, visando à satisfação ampla do bem comum. 5. Em oposição a esta tese da “reserva do possível”, temos a adoção pelo supremo tribunal federal da preservação do núcleo consubstanciador do “mínimo existencial”. A corte vem aceitando a denominada “dimensão política de jurisdição constitucional”, que permite o exercício do controle judicial em tema de implementação de políticas públicas para garantir o “mínimo existencial”. 6. O stf só vem aceitando a aplicação da cláusula da “reserva do possível” quando a administração pública comprovar, de forma objetiva, no caso concreto, sua incapacidade econômica para implementação de determinada política pública. [...] 12. “não obstante, não caiba ao poder judiciário se imiscuir nas escolhas do administrador no que concerne à gestão dos recursos públicos e, portanto, no que concerne aos critérios por ele eleitos à prestação da saúde, não se pode entender condizente com o atendimento digno a garantia constitucional do direito à saúde uma espera de mais de 3 (três) anos para realização por procedimento cirúrgico pelo estado (em sentido lato). [...] 13. Apelaçoes improvidas. Sentença mantida. (TRF 2ª R.; Proc. 2011.51.68.003085-9; Sexta Turma Especializada; Rel. Des. Fed. Guilherme Calmon Nogueira da Gama; Julg. 09/07/2012; DEJF 18/07/2012; Pág. 295) ARGUMENTA - UENP 86 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP essenciais para determinar como, a partir destes dados empíricos, devam ser interpretadas (ou reinterpretadas), legitimando a sua aplicação.O Direito deixa de ser aquela ciência preocupada apenas com a realização lógica dos seus preceitos; desce do seu pedestal para aferir se esta realização lógica esta sendo apta a realizar os seus desígnios na realidade da vida em sociedade. Uma interpretação/aplicação da lei que não esteja sendo capaz de atingir concreta e materialmente os seus objetivos, não pode ser considerada como a interpretação mais correta. Note-se que estas mudanças metodológicas evidenciam a queda do mito da interpretação como atividade meramente declaratória do que já estava na lei, da única interpretação possível, já que os resultados práticos desta ou daquela forma de aplicação da norma terão relevante papel na determinação de qual, entre as diversas interpretações plausíveis existentes, deverá ser adotada, opção que, posteriormente, pode inclusive vir a ser alterada diante da comprovada mudança dos dados da realidade, que devam ser acompanhados de uma nova estratégia regulatória. (Grifos no original) O valor em foco deve antes de tudo traduzir que a administração tem o dever de apresentar resultados. Caso contrário, os atos do administrador e as leis que os amparam devem ceder espaço para o verdadeiro espírito da supremacia do interesse público. CONSIDERAÇÕES FINAIS O Princípio da Eficiência remete ao administrador o dever não só de agir conforme a lei, mas também, de atuar com presteza, agilidade e com objetivo de concretizar resultados. O valor em questão implica que a administração pública necessita procurar implementar políticas que produzam os melhores resultados possíveis com os recursos que disponibiliza. A eficiência é conceito interdisciplinar emprestado para o direito e acaba sendo um elemento a colorizar e adjetivar a atuação estatal. Sob a ótica das teorias administrativas, buscar a eficiência pode ser racionalizar o trabalho humano, levando a eliminação de todo trabalho lento, falho ou inútil. Ainda nesta seara, esta qualidade administrativa possui o feitio de organizar, comandar, coordenar e controlar os atos para se atingir a máxima eficiência. Ambos os aspectos devem ser dirigido no trato da coisa pública, porque tem o condão de buscar a máxima eficiência de sistemas dirigíveis. A administração também pode ser equiparada a uma máquina que obedece a leis da física numa proporção matemática, sendo a eficiência o máximo rendimento obtido pelo sistema de forma diretamente proporcional à energia total ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 77 – 89 2013 87 a ele oferecida. A partir destas observações é razoável retirar da eficiência três ideias nodulares a serem buscadas pela administração: economia, presteza e resultados. Quando um ato administrativo não atinge a eficiência a que se destina deve ser objeto de controle pela própria administração e, também, pelo judiciário. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALESSI, Renato. Principi di Dirito Amministrativo. Milano: Giuffrè, 2000. ARAGÃO, Alexandre Santos. O Princípio da Eficiência. Revista Eletrônica de Direito Administrativo Econômico. Salvador: Instituto de Direito Público da Bahia, n. 4, nov/dez 2005, jan 2006. Disponível em: < http://www.direitodoestado.com>. 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Buenos Aires: Depalma, 1993. IANNOTTA, Lucio. Princípio di Legalità e Amministrazione di Risultato, in Amministrazione e Legalità – Fonti Normativi e Ordinamenti (Atti del Convegno, Macerata, 21 e 22 maggio 1999). Milano: Giuffrè Editore, 2000. ARGUMENTA - UENP 88 JACAREZINHO Nº 18 P. 77 – 89 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP JUSTEN FILHO, Marçal. Curso de Direito Administrativo. São Paulo: Saraiva, 2006. MARINELA, Fernanda. Direito Administrativo. 6.ed. Rio de Janeiro: Impetus, 2012. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro: a Atividade Administrativa: Moralidade e Eficiência. 34. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. MORAES, Alexandre de. Reforma Administrativa: Emenda Constitucional nº 19/ 98. 3. ed., São Paulo : Atlas, 1999. SANTIN, Valter Foleto. Controle judicial da segurança pública: eficiência na prevenção e repressão ao crime. 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Procura ainda enfrentar temas específicos, relacionados com os testes de conhecimento, os testes psicológicos, as dinâmicas de grupo, os testes grafotécnicos, bem como os direitos dos investigados. ABSTRACT: This article aims to analyze the need for psychological testing in the admission of the worker, comparing these requirements with the fundamental rights of workers. It also seeks to address specific issues related to the knowledge tests, psychological tests, group dynamics, graphological tests, as well as the rights of those investigated. PALAVRAS-CHAVE: Testes pscológicos; Exames admissionais; Trabalho. KEYWORDS: Psychological testing; Admission exams; Work. 1.OS TESTES DE CONHECIMENTO O teste de conhecimento compreende uma espécie de técnica de seleção de pessoal utilizada pelas empresas com a finalidade de avaliar o nível de conhecimento profissional do candidato ao emprego para o desempenho do cargo a ser exercido pelo mesmo no âmbito empresarial. Pontes (2008, p. 157) assevera que os testes de conhecimento “visam a analisar o grau de conhecimento e as habilidades do candidato adquiridos por * Mestre e Doutoranda em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da Casa do Estudante de Aracruz/ES e de Cursos de Pós Graduação. Advogada. E-mail: Artigo submetido em 10/ 08/2012. Aprovado em 22/11/2012. [email protected] ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 91 intermédio do estudo ou da prática”. Segundo Chiavenato (1983, p. 56), os testes de conhecimento “são instrumentos para avaliar objetivamente os conhecimentos e as habilidades adquiridos através do estudo, da prática ou do exercício”. Para este autor, as provas podem ser orais, escritas e de realização. As provas orais e escritas são aquelas que buscam respostas específicas. As provas de realização visam à execução de algum trabalho ou tarefa. Chiavenato (1983, p. 56) também classifica os testes quanto à área de conhecimento. Nesta última classificação, as provas podem ser gerais e específicas. As provas gerais se destinam à averiguação de cultura geral e generalidades de conhecimento, ao passo que as específicas se destinam à aferição de conhecimentos técnicos, diretamente relacionados ao cargo que será ocupado pelo candidado ao emprego. Por último, e ainda no que se refere à classificação dos testes, o mesmo autor apresenta a classificação quanto à forma. Nesta classificação, as provas podem ser elaboradas de forma tradicional e objetiva. As provas tradicionais são do tipo expositivo, que não exigem planejamento, porém respostas longas e elaboradas. As provas objetivas, por sua vez, são aquelas estruturadas na forma de testes objetivos, com aplicação rápida e fácil, por exigirem um minucioso planejamento (CHIAVENATO, 1983, p. 57). Pontes (2008, p. 76) também entende que as provas de conhecimento podem ser aplicadas de forma escrita ou oral. Para ele, os testes de conhecimento podem ocorrer por meio dissertativo ou através de testes objetivos do tipo alternativas verdadeiras ou falsas, múltipla escolha, preenchimento de lacunas, associações de pares e ordenação. No que se refere às provas dissertativas, elas podem trazer, na visão do autor em análise, “uma ou mais perguntas sobre assuntos específicos ou gerais, como, por exemplo: discorra sobre as etapas de uma entrevista de seleção ou discorra sobre o processo de recrutamento e seleção de pessoal” (PONTES, 2008, p. 77). Pontes (2008, p. 76) ainda instrui acerca dos cuidados que devem ser tomados na elaboração dos testes de conhecimento. Para ele, as frases devem ser preferialmente curtas e não devem ter duplo sentido; deve ser evitado um número grande de testes; cada pergunta deve abranger um campo específico do conhecimento a ser medido. O teste de desempenho, por sua vez, visa a avaliar a capacidade ou a habilidade do candidato ao emprego para o desempenho de certas tarefas, como, por exemplo: noções de informática; testes de datilografia, de desenho, de inglês, de montagem e desmontagem de equipamentos, de redação e de direção de veículos. Tanto os testes de conhecimento quanto os de desempenho somente serão considerados procedimentos lícitos de averiguação durante a seleção de pessoal, se o princípio da boa fé objetiva, que se reveste nos deveres de cuidado, lealdade, ARGUMENTA - UENP 92 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP clareza de linguagem, não indução a erro e sigilo quanto às informações prestadas imperar na fase prévia do contrato de trabalho. 2.OS TESTES PSICOLÓGICOS A realização de testes psicológicos decorre do exercício do poder empregatício conferido ao empregador. Assim, em princípio, não se podem considerar inválidos os testes psicológicos na fase pré-contratual, uma vez que o contratante tem o direito de conhecer minimamente as características e os atributos de seu contratado que sejam relevantes ao bom cumprimento do pactuado. O empregador, como titular do poder diretivo empresarial, não pode explorar amplamente o aspecto íntimo do trabalhador, seja na sua admissão, seja quando de sua promoção hierárquica, visto que, como bem assegura Barros (2009, p. 56), o empregador deve “limitar-se a obter dados sobre a capacidade profissional do empregado sem macular os direitos fundamentais inscritos no texto constitucional e preservando o respeito à dignidade da pessoa”. Apesar de o objeto de estudo da psicologia, segundo Santos e Silva Neto (2000, p. 112) consistir na sua grande maioria, e talvez em sua totalidade, na identificação e na revelação do desconhecido, ou seja, nas categorias invisíveis que envolvem a multiplicidade do universo humano, a aplicação dos testes psicológicos somente será amparada pela Constituição Federal de 1988, se o empregador limitar-se a obter informações apenas sobre a capacidade profissional do empregado. Até porque, em estudo realizado por Cogo (2006, p. 90), acerca dos testes psicológicos existentes no mercado, é possível considerá-los todos invasivos, mesmo que sejam observados todos os cuidados protocolares. Segundo a autora, todos os testes psicológicos são suscetíveis a erros de diagnósticos. Cogo (2006, p. 93) ainda assevera que a precisão e a fidedignidade dos instrumentos aplicadores dos testes psicológicos estão intimamente ligadas à possibilidade de erro de diagnóstico. Este também é o pensamento de Santos, ao estatuir que “os testes hoje disponíveis, em sua maioria, apresentam dificuldades para fins diagnósticos”; enfatizando que “[...] não podemos ter medo de criticar os testes psicológicos, à sombra da descaracterização da identidade profissional, uma vez que eles são, por lei, exclusivamente da nossa profissão” (SILVA NETO e SANTOS, 2000, p. 72). Conforme Coelho (2004, p. 21), todos os dias, milhares de candidatos são submetidos a testes psicológicos, entrevistas, dinâmicas de grupo e outras técnicas variadas, visando ao preenchimento de uma vaga para emprego. Ela adverte que os referidos testes devem ser operados por psicólogos, os quais deverão possuir a qualificação necessária. Outras técnicas são aplicadas por profissionais dos mais diversos ramos, inclusive psicólogos, pedagogos e administradores. No tocante especificamente aos testes psicológicos, como os mesmos devem ser revalidados pelo Conselho Federal de Psicologia, um teste aplicado a um candidato hoje pode ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 93 ser considerado não válido posteriormente. Na última avaliação realizada pelo Conselho Federal de Psicologia, muitos dos testes avaliados foram reprovados. Em razão disso, o Conselho Federal de Psicologia demonstrou preocupação com a precisão e validade dos testes psicológicos existentes no mercado ao editar a Resolução nº. 02/2003, que define e regulamenta o uso, a elaboração e a comercialização dos testes psicológicos, bem como a necessidade de validação e de revalidação dos mesmos. Art. 4 - Para efeito do disposto no artigo anterior, são requisitos mínimos e obrigatórios para os instrumentos de avaliação psicológica que utilizam questões de múltipla escolha e outros similares, tais como “acerto e erro”, “inventários” e “escalas”: I - apresentação da fundamentação teórica do instrumento, com especial ênfase na definição do construto, sendo o instrumento descrito em seu aspecto constitutivo e operacional, incluindo a definição dos seus possíveis propósitos e os contextos principais para os quais ele foi desenvolvido; II - apresentação de evidências empíricas de validade e precisão das interpretações propostas para os escores do teste, justificando os procedimentos específicos adotados na investigação; III - apresentação de dados empíricos sobre as propriedades psicométricas dos itens do instrumento; IV - apresentação do sistema de correção e interpretação dos escores, explicitando a lógica que fundamenta o procedimento, em função do sistema de interpretação adotado, que pode ser: a) referenciada à norma, devendo, nesse caso, relatar as características da amostra de padronização de maneira clara e exaustiva, referencialmente comparando com estimativas nacionais, possibilitando o julgamento do nível de representatividade do grupo de referência usado para a transformação dos escores; b) diferente da interpretação referenciada à norma, devendo, nesse caso, explicar o embasamento teórico e justificar a lógica do procedimento de interpretação utilizado. V - apresentação clara dos procedimentos de aplicação e correção, bem como as condições nas quais o teste deve ser aplicado, para que haja a garantia da uniformidade dos procedimentos envolvidos na sua aplicação; VI - compilação das informações indicadas acima, bem como outras que forem importantes, em um manual contendo, pelo menos, informações sobre: a) o aspecto técnico-científico, relatando a fundamentação e os estudos empíricos sobre o instrumento; b) o aspecto prático, explicando a aplicação, correção e interpretação dos resultados do teste; ARGUMENTA - UENP 94 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP c) a literatura científica relacionada ao instrumento, indicando os meios para a sua obtenção. De acordo a Resolução nº. 02/2003 do Conselho Federal de Psicologia, os dados empíricos dos testes psicológicos devem ser revisados quanto à sua validade e precisão pelo Conselho Federal de Psicologia a cada vinte anos. É o que estatui o art. 14 da referida resolução, veja-se: Art. 14. Os dados empíricos das propriedades de um teste psicológico devem ser revisados periodicamente, não podendo o intervalo entre um estudo e outro ultrapassar: 10 (dez) anos, para os dados referentes à padronização, e 20 (vinte) anos, para os dados referentes à validade e à precisão. Além disso, vale descrever os dados estatísticos apresentados por Cogo (2006, p. 94): [...] dos mais de 100 testes psicológicos que circulam no mercado, apenas 52,4% foram validados pelo Conselho. Isso quer dizer que muitos dos testes aplicados pelas empresas não se prestam para o fim a que se destinam, apresentam problemas de validade e precisão dos diagnósticos. De acordo com Coelho (2004, p. 20), em informação de 07 de novembro de 2003 no Jornal Folha de São Paulo, 52,4% dos 103 testes verificados foram reprovados, ou seja, mais da metade; o que, segundo o mesmo jornal, acabou acarretando uma investigação por parte do Ministério Público Federal. Desse modo, quando o teste psicológico tiver o objetivo de revelar o patrimônio moral dos interessados à vaga de emprego sob o pretexto de averiguar se os mesmos se enquadram no “perfil” da política econômica de gestão de pessoal adotada pela empresa, o direito fundamental à intimidade inscrito no art. 5, inciso X, restará violado. Mesmo porque, como bem assevera Cogo (2006, p. 85), no âmbito da administração de empresas, “estar envolvido emocionalmente com os objetivos da organização tornou-se a pedra de toque para os candidatos ao emprego”. Convém destacar que, durante o processo de recrutamento e de técnicas de seleção de pessoal, os empregadores irão contar com a participação dos psicólogos do trabalho especializados em comportamento humano para efetuar a aplicação de testes. Como os testes psicológicos revelam aspectos de natureza pessoal acerca da intimidade do candidato ao emprego, devem ser aplicados somente na situação de não haver outro meio para aferição de determinada característica e sempre com base no critério da proporcionalidade, pois descortinam os traços da intimidade do ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 95 candidato, como a sua inteligência, a sua capacidade de raciocínio e de concentração, as suas características emocionais, as suas frustrações, interesses e motivações. E, como lembra Urabayen (apud GIANNOTTI, 1987, p. 08): “a intimidade é um sentimento que brota do mais profundo do ser humano, um sentimento essencialmente espiritual”. Não resta dúvida, como bem destaca Nascimento (2009, p. 115), de que “o que se pretende através dessas avaliações é investigar a personalidade do candidato e aferir se está de acordo com o perfil buscado pela empresa”. Cogo (2006, p. 80) ensina que o psicólogo, a serviço do empregador, desempenha importante papel no controle do comportamento do trabalho. Mas, por outro, através do resultado da aplicação dos testes psicológicos, desnuda-se o íntimo do subordinado. Para a autora, o perfil psicológico do empregado denuncia atributos que irão interferir no desenvolvimento de suas tarefas quotidianas, como a negociação, a comunicação, a empatia e a motivação. Trata-se de atributos que são visíveis e que se exteriorizam através do comportamento corporal e do poder de raciocínio do empregado (COGO, 2006, p. 73). Chiavenato (1999, p. 83) enfatiza que todos os testes psicológicos ou psicodiagnósticos se prestam a indicar as aptidões dos candidatos. Portanto, descortinam os traços da intimidade do candidato, como as emoções, as frustrações; os interesses; as motivações. Segundo ele, para haja um bom resultado, é necessário que o aplicador seja um psicólogo especialista na área trabalhista. Consoante ensina Nascimento (2009, p. 115): [...] o resultado desses exames permite aferir não somente se o candidato tem aptidão para realizar as tarefas exigidas para o cargo, mas também, e principalmente, todas as suas características psíquicas, abrindo margem para a invasão da esfera de intimidade e da privacidade do candidato. Para Pontes (2008, p. 86), os testes psicológicos são aqueles que visam a analisar os aspectos individuais do candidato ao emprego em relação aos requisitos do cargo, como a sua personalidade (caráter, temperamento, equilíbrio emocional, frustrações, ansiedades), a sua inteligência e as suas aptidões pessoais (capacidade de concentração e memorização, memória visual e aptidão mecânica) para o desempenho do cargo. O referido autor estipula que os testes psicológicos possuem a finalidade de mensurar “a possibilidade de adaptação do candidato ao cargo e empresa” (PONTES, 2008, p. 86). Como bem ensina Cogo (2006, p. 74): “além do acúmulo de conhecimentos técnicos ou do quanto se é inteligente (QI), igualmente interessa ao empregador o quanto pode usufruir da inteligência emocinal (IE) do empregado”. Nos ensinamentos de Goleman (1999, p. 45), a inteligência emocional compreende ARGUMENTA - UENP 96 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP [...] a capacidade de perceber os próprios sentimentos e emoções, manipulá-los de forma positiva, motivar a si próprio para melhor executar tarefas laborativas. Da mesma sorte, implica saber entender o outro mesmo em seus sentimentos não verbalizados e lidar com reações emocionais dos outros. Em síntese: autoconhecimento; administração das emoções; automotivação; empatia e aptidões sociais. Para Gardner (apud COGO, 2006, p. 74), a inteligência representa a capacidade de resolver problemas. Para este educador e professor de neurologia, existem 8 (oito) tipos de inteligência: a) musical (capacidade de interpretar sons); b) corporal-cinestésica (usar o corpo para expressar emoção); c) lógico-matemática (capacidade de raciocínio lógico); d) linguística (facilidade em idiomas e oratória); e) espacial (percepção de espaço); f) interpressoal (fácil relacionamento); g) intrapessoal (controle sobre os humores); h) naturalista (interação com o meio ambiente). Segundo o psicólogo americano MacClellad (apud COGO, 2006, p. 75), o empregado precisa saciar três necessidades sociais: a de realização (busca de desafios e resolução de problemas); b) a de poder (influenciar os outros); c) a de afiliação (estabelecer e manter amizades). Daubler (apud ARAÚJO, 1996, p. 249) estabelece alguns critérios baseados na jurisprudência alemã para que seja permitida a aplicação dos testes psicológicos: a) que o candidato concorde com a sua realização; b) que se indique ao candidato a forma de realização do teste e quais são os dados que se desejem obter a respeito de sua pessoa; c) que se trate de conhecer os dados relativos ao posto de trabalho; d) que os dados em questão não se possam obter por outro procedimento (ex.: por um certificado); e) que a prova seja realizada por um psicólogo com a devida habilitação. Pachés (apud LEITE e RIOS, 2008, p. 182) também apresenta alguns critérios para que seja realizado o teste psicológico. Para ele, o candidato deve manifestar sua conformidade a submeter-se à sua realização; deve ser cientificado sobre a forma de realização do teste; deve conhecer quais são as qualidades psicofísicas necessárias e requeridas para o cargo pleiteado. Por fim, ele também assevera que o teste psicológico deve ser realizado por pessoas especializadas a fim de garantir que os resultados sejam analisados com base em critérios estritamente profissionais. De acordo com Leite e Rios (2008, p. 180), o teste psicológico está sendo ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 97 cada vez mais utilizado pelas empresas, quer diretamente, quer por empresas especializadas nesse tipo de testes. Através deles, o empregador pode conhecer não apenas a capacidade do candidato para o posto do trabalho, mas também características da sua personalidade, atingindo, assim, a esfera da vida privada. Em razão disso, é preciso ter muita cautela em sua aplicação, pois, como aponta Viana, os testes utilizados para revelar com profundidade o “perfil” ou mesmo a personalidade do trabalhador podem ter o objetivo oculto de avaliar até que ponto o empregado é cooptável, ou seja, se está efetivamente pronto para vestir a camisa da empresa – requisito indispensável para o empregado se ajustar às novas técnicas de gestão de mão-de-obra, como os programas de “Qualidade Total”.1 Cogo (2006, p. 81) instrui que As organizações, diante da dinâmica do mercado, necessitam, cada vez mais, de empregados e colaboradores comprometidos com a filosofia da empresa, além do compromisso moral de que esteja disponível ao trabalho em qualquer hora do dia ou da noite. Para Charan (2001, p. 126), doutor em administração com MBA pela Harvard Business School: Todo presidente de empresa já sabe que no mundo dos negócios não existe linha de chegada. Os líderes devem apresentar bons resultados dia após dia, de forma incansável, ao longo de um grande período. A apresentação de resultados é o que dá energia a uma empresa, enche as pessoas de confiança e gera e atrai os recursos para se ir além. [...] Um líder de negócio sabe o que fazer, um líder de pessoas sabe o que fazer para que as coisas aconteçam: estimular os esforços de outras pessoas, expandir a capacidade delas e sincronizar para que esses esforços atinjam os resultados. [...] Ao longo dos anos, tenho perguntado a um grande número deles qual foi o maior erro que eles cometeram com pessoas. A resposta mais frequente? Demorar muito para remover um subordinado que não se encaixa nas suas funções. Em relação, ainda, ao controle dos empregados, o mestre em planejamento estratégico e defensor da eficiência total no mundo da administração Welch Jr. (apud COGO, 2006, p. 86) dita que “na gestão de empresas, as pessoas são avaliadas todos os dias, de maneira tácita e informal – nos refeitórios, nos corredores e em todas as reuniões”. 1 Essa é a opinião do professor Márcio Tulio Viana, in: Acesso ao Emprego e Atestado de Bons Antecedentes. Texto disponível na página da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 23ª Região, no link artigos jurídicos. ARGUMENTA - UENP 98 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Em pensamento contrário ao de Charan e Welch Jr, Coelho (2004, p. 20) expõe com exatidão: Basta, assim, uma mera consulta a revistas de administração ou livros de auto-ajuda que preenchem as prateleiras de bancas e livrarias para encontrar conselhos ao desempregado: “recicle-se”, “seja eficaz”, “concentre-se”, “seja dinâmico”... são alguns dos chavões de sempre, que geralmente só funcionam para enriquecer gurus, consultores e outras figuras que surfam nas ondas do mercado perverso e que de vez em quando são engolidos por elas, sem conseguir utilizar para si mesmos os próprios conselhos. Na realidade, nada disso resolve, é tudo falácia. O desemprego vai desde o que nada estudou e nada faz até aquele que sempre procura seguir os ditames da modernização. Pouco importa o que se faça. O mercado é um animal irracional sem lógica e sem emoção. Complementando o pensamento do autor acima referenciado, assevera Sader et al. (2000) que vivenciamos, sob o lado econômico, uma época de desregulamentação e, sob o lado político, uma época de regressão da civilização e de expropriação de direitos. A política econômica, por sua vez intocável, produz e reproduz a todo instante a hegemonia do capital financeiro e a desregulamentação econômica do capital financeiro, incluindo todas as consequências sociais e subjetivas que isso possa trazer.2 De acordo com Cogo (2006, p. 92), até o computador tornou-se uma instrumental ferramenta de recolhimento de informações do investigado na aplicação e na execução dos testes psicológicos, especialmente na psicometria. Com o auxílio do computador, ficou mais fácil a realização dos cálculos estatísticos necessários nos testes de inteligência. Na realidade, o computador, como ferramenta de aplicação dos testes, substitui o folheto do teste e a folha de resposta. Para Pasquali (2003, p. 56), o computador apresenta as seguintes vantagens: “maior uso de gráficos, medida exata do tempo de resposta e uso de multimídia (vídeos, sons e realidade virtual)”. Cogo (2006, p. 92) enfatiza, ainda, que “com o uso do computador como executor de testes psicológicos, tem-se a possibilidade de otimizar e de adaptar a testagem para cada indivíduo em especial”. Desse modo, Case (2004, p. 24) diz que empresas especializaram-se nesse tipo de serviços e, através da rede mundial de computadores, é possível levar os 2 Este autor, inclusive, assevera que o maior atentado à capacidade das pessoas de reproduzir com a mínima dignidade sua vida é a expropriação do direito ao trabalho. No Brasil, a maior parte das pessoas não tem mais carteira de trabalho assinada. Esta é uma questão essencial, porque se expropria das pessoas um contrato de direitos e deveres com a sociedade. Portanto, está havendo uma regressão ao mercado formal de trabalho, pois existem pessoas que não têm mais acesso ao direito formal de um contrato de direitos e deveres com a sociedade, e isso é extremamente grave. Veja-se, assim, a obra de ARANTES, Ester Maria de M.; COIMBRA, Cecília M. B.; DELGADO, Pedro Gabriel; PELBART, Peter P.; SADER, Emir; SAIDON; Osvaldo. Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental. São Paulo: Casa do Psiocólogo, 2000, p. 30. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 99 testes psicológicos até a casa dos investigados. Segundo Fontana (apud COGO, 2006, p. 23), empresas armazenam dados dos investigados e, através do perfil, procuram, mediante pagamento, colocação dos clientes testados no mercado de trabalho. Cogo (2006, p. 93) complementa, exemplificando o caso da empresa CATHO, em São Paulo, com escritório central na Avenida Paulista, onde é possível localizar, “on line”, inúmeros testes à disposição dos interessados, a fim de avaliar a inteligência emocional, as habilidades numéricas e verbais, o perfil de competências, o alinhamento de competências 360 graus e o feedback. Segundo Coelho (2004), os testes online da Catho foram criados para facilitar e otimizar o processo de pré-seleção de seus candidatos. Desenvolvidos por doutores em Psicologia, os 35 diferentes testes online da Catho avaliam: Inteligência Geral, Personalidade e Adequação Executiva, Conhecimentos de Informática e Conhecimentos Específicos (Idiomas, Marketing e Matemática Financeira). É possível, ainda, a empresa, selecionar os testes a serem ministrados ou utilizar as recomendações que costam no site da CATHO. Essas recomendações são de acordo com o nível hierárquico e a área de atuação do candidato. Os testes poderão ser aplicados nas dependências da empresa ou enviados para o e-mail do candidato, proporcionando comodidade para a sua realização. Os relatórios e laudos ficam disponíveis imediatamente após a realização e são divulgados de três formas distintas: tabela comparativa de candidatos; tabela/ laudo resumo dos testes de cada candidato; laudo individual de cada teste aplicado. São exemplos de indagações realizadas aos candidatos: “Você, em geral, recebe de boa vontade a censura de seus amigos? Você acha que um grande amor seria a melhor compensação para os sofrimentos da vida? Você, às vezes, tem a impressão de que suas fantasias, esperanças e sonhos acabarão por realizar-se? Você já pensou que, às vezes, é impulsionado em seus atos e atitudes por um mal disfarçado desejo de mandar?” (COELHO, 2004, p. 26). Como se vê, ensina Cogo (2006, p. 87): [...] o poder de direção do empregador está camuflado na bem elaborada sedução dos trabalhadores. A manipulação da intimidade dos empregados é a melhor das ferramentas para o efetivo controle dos indivíduos. Coelho (2004, p.20), em estudo aprofundado sobre a realização de testes psicológicos na fase pré-contratual, descreve alguns dos “sintomas” decorrentes dos critérios adotados durante a seleção de pessoal. Segundo o autor, o aumento na procura por empregos e a saturação do mercado de trabalho fizeram com que as grandes empresas brasileiras exigissem um perfil especial de profissionais. Os critérios de seleção foram mudando, e hoje não basta ter um ótimo currículo, experiência, diploma, curso de informática e conhecer uma língua estrangeira. Como boa parte dos candidatos já atende a esses requisitos, os funcionários de recrutamento avaliam outras qualidades. Contam pontos a capacidade de ARGUMENTA - UENP 100 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP comunicação, a iniciativa e até mesmo a autoestima do candidato, atributos que estão sendo bastante valorizados no mercado profissional. Alguns critérios subjetivos também podem definir a contratação. Na avaliação da equipe de seleção de algumas grandes empresas, o espírito de iniciativa revela a capacidade de adaptação e de trabalho em grupo. Valoriza-se, também, a segurança com que o candidato se expressa nas dinâmicas de grupo. A psicóloga Bianca Massucci (apud COELHO, 2004, p. 20), que trabalha como analista de recursos humanos da empresa Ford New Holland, afirma ser o profissional mais procurado o que é ‘pró-ativo’, em suas palavras, define que: “É muito grande a procura por pessoas que busquem o seu próprio desenvolvimento profissional e sua maturidade dentro da empresa. Além disso, devem ter dinamismo, vontade de crescer e de desenvolver novos projetos”. Já o diretor de produção da Copel Geração Ricardo Goldani (apud COELHO, 2004, p. 20) diz que a pessoa tem de ter um bom relacionamento interpessoal, pensamento crítico, ousadia e auto-estima. Nesse sentido, não se pode perder de vista, conforme assegura Coelho (2004, p. 20), a visão de que a proteção da personalidade, como já mencionado, é fundada na dignidade da pessoa humana. Com efeito, a dignidade alcança um amplo leque de direitos, dentre os quais decorre o respeito à integridade física e psíquica, a qual, neste aspecto, não pode ser ameaçada na composição entre desenvolvimento tecnológico e poder econômico. Como muito bem orienta o autor em destaque, apesar de não existir no Brasil uma legislação que proteja o candidato contra o vazamento de informações sobre a personalidade, a não contratação pode ensejar a prática de atos discriminatórios pelo empregador, mais precisamente a chamada “discriminação por personalidade”. Coelho (2004, p. 20) cita como exemplo o caso de uma empresa que só contrate pessoas expansivas, de outra que só contrate pessoas com “espírito de liderança” elevado, e de outra que afaste candidatos com estima em baixa. Destaca, a propósito, de forma curiosa, que o mercado quer empregados com estima elevada, mas, como é notório, o desemprego geralmente acarreta uma baixa justamente nesse aspecto. Convém destacar, entretanto, que, em alguns casos, a seleção de pessoal poderá ser realizada de forma mais rigorosa com o trabalhador, de tal sorte que o referido teste poderá ser aplicado de modo mais detalhado, quando certos fatores psicológicos forem fundamentais para a execução do trabalho. É o que se passa, por exemplo, com pilotos de avião, cujo teste psicológico poderá avaliar com mais minúcia a estabilidade emocional desse trabalhador, eis que ele poderá passar por situações em que a sua inteligência emocional seja colocada em causa. Tem-se, também como exemplo, a contratação na função de vigilância, visto que, nos termos do art. 19, II, da Lei nº. 7.102/83, os empregados para tal atividade têm direito a porte de arma quando em serviço. O art. 16, V, da Lei nº. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 101 7.102/83 ainda estabelece como um dos requisitos obrigatórios para ingressar na empresa de vigilância como vigilante a aprovação em exame de saúde física, mental e psicotécnica. O propósito, alerta Neto (Revista de Direito do Trabalho, n. 116, p. 155), é “impedir que trabalhador com nível de agressividade acima do normal seja admitido para execução de trabalho de vigilância ostensiva na medida em que se reserva àquele o direito ao porte de arma em serviço”. Quando a contratação de pessoal for criteriosa ou revelar rigorosidade em relação a determinado trabalhador é porque, na contraposição entre a intimidade e o poder diretivo empresarial, o “critério de ponderação”3 utilizado foi o interesse de todos em prol ao de um trabalhador singularmante considerado, visto que, em determinadas categorias profissionais (motoristas, vigilantes, aeronautas), a atividade desenvolvida pelo empregador pode ensejar risco à vida de muitos seres humanos. Cogo (2006, p. 75) destaca que a vantagem de conhecer as necessidades e o perfil do trabalhador é a de que informação é poder. Para a autora, quem consegue reconhecer e entender as necessidades dos outros está habilitado a perceber o que está além das questões declaradas. Em razão disso, poderá prever de forma mais acertada quais serão as ações e reações dos subordinados. Como bem expressa mais uma vez a autora: “o empregador, ao reconhecer e dominar o perfil do empregado, torna-se favorecido para a manipulação psicológica do subalterno” (COGO, 2006, p. 75). Diante das considerações acima traçadas, é preciso rememorar sempre os ensinamentos de Coelho (2004, p. 20), ao enfatizar que “os testes de personalidade ou projetivos invadem a esfera psíquica do indivíduo”. Assim, “se existe um direito psíquico, derivado da personalidade, que é irrenunciável, não se justifica, juridicamente, hoje, em todas as situações, a aplicação de testes aos candidatos a emprego, mesmo que por profissional qualificado” (COELHO, 2004, p. 25). Portanto, “inexiste o direito absoluto de não contratar com base em um resultado de teste” (COELHO, 2004, p. 26). No que se refere à obtenção dos dados obtidos por intermédio da realização do teste psicológico, é importante destacar o pensamento de Moreira (2004, p. 134): “em não havendo contratação, os dados obtidos devem ser destruídos sob pena de realização de um armazenamento ilícito de dados que só dizem respeito à pessoa do trabalhador”. 3 Segundo Daniel Sarmento, na ponderação de interesses, “o julgador deve buscar um ponto de equilíbrio entre os interesses em jogo que atenda aos seguintes imperativos: a) a restrição a cada um dos interesses deve ser idônea para garantir a sobrevivência do outro; b) tal restrição deve ser a menor possível para a proteção do interesse contraposto; e c) o benefício logrado com a restrição a um interesse tem de compensar o grau de sacrifício imposto ao interesse antagônico. Além disso, a ponderação deve sempre se orientar no sentido da proteção e da promoção da dignidade da pessoa humana, que condensa e sintetiza os valores fundamentais que esteiam a ordem constitucional vigente”. Consultar: SARMENTO, Daniel. A ponderação de interesses na Constituição Federal de 1988. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2009, p. 145. ARGUMENTA - UENP 102 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 2.1 Os direitos dos investigados Durante a realização dos testes, é necessário que o candidato ao posto de trabalho seja esclarecido sobre as técnicas a serem utilizadas durante a aplicação dos testes que visam a averiguar as suas características psicológicas. Como afirma Cogo (2006, p. 86): “o trabalhador possui o direito de não responder a perguntas indiscretas, ou mesmo o de ocultar fatos que não apresentem relevância para a tarefa que for executar”. Entretanto, a autora em destaque assevera que, na prática, não existe o exercício do direito de recusar pelo candidato ao emprego. Veja-se: A recusa seria legitimada pelo ordenamento jurídico e apresentada ao mundo real, que fará do trabalhador, seguramente, mais um desempregado na multidão. Na prática, não existe o exercício do direito de recusar. O trabalhador se submete às leis do mercado. A sobrevivênvia resta condicionada na submissão da dignidade da pessoa humana (COGO, 2006, p. 97). Por isso, ensina a autora: “o desemprego e o medo de perder o emprego geram inúmeros conflitos para o trabalhador. O medo é um poderoso estímulo, capaz de viciar qualquer tomada de decisão”(IDEM, IBIDEM). Apesar disso, nem o consentimento expresso do candidaro ao emprego na aplicação dos testes psicológicos autorizando a intromissão do empregador em sua esfera íntima e privada poderá ser considerado válido em decorrência de os direitos de personalidade serem irrenunciáveis. Gediel (2003, p. 163), em sentido contrário, entende ser possível o trabalhador vencer a ciação psicológica e expressar consentimento livre de vício. Para o autor: A imagem, a vida privada e o trabalho são elementos ou aspectos indissociáveis do trabalhador. [...] Na vida privada, está incluída a intimidade [...] e só mediante consentimento esclarecido e expresso podese admitir a intromissão justificada e não abusiva do empregador. Em que pese o pensamento supra mencionado, inclinamo-nos às palavras elucidativas de Cogo (2006, p. 100), que assim se manifesta: Com o devido respeito, não há como admitir que um trabalhador possa vencer as barreiras da coação moral e da necessidade física e emitir consentimento esclarecido autorizador da devassa de sua intimidade. Mesmo porque expressa Coelho (2004, p. 20): ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 103 Um teste levanta muito mais do que fatores correlacionados com a função, assim, se o chamado “perfil profissiográfico” da função deve levar em conta aspectos subjetivos e situações circunstanciais, é possível identificar os limites da invasão na esfera privada em um caso específico, e, portanto, aí, há um direito violado. Cogo (2006, p. 98), ao se afastar o consentimento expresso do candidato ao emprego quanto à realização dos testes psicológicos, destaca que: [...] o empregador saberá mais sobre os registros contidos no universo moral (intimidade) do trabalhador do que ele próprio. Além do que, ocorre ataque ao princípio da dignidade da pessoa humana; esta não pode ser negociada, diminuída ou segregada. Moraes (2008, p. 21) assevera que a República Federativa do Brasil tem como fundamento: A dignidade da pessoa humana: concede unidade aos direitos e garantias fundamentais, sendo inerente às personalidades humanas. Esse fundamento afasta a ideia de predomínio das concepções transpessoalistas de Estado e Nação, em detrimento da liberdade individual. A dignidade é um valor espiritual e moral inerente à pessoa, que se manifesta singularmente na autodeterminação consciente e responsável pela própria vida e que traz consigo a pretensão ao respeito por parte das demais pessoas, constituindose um mínimo invulnerável que todo estatuto jurídico deve assegurar, de modo que, somente excepcionalmente, possam ser feitas limitações ao exercício dos direitos fundamentais, mas sempre sem menosprezar a necessária estima que merecem as pessoas enquanto seres humanos. Seguindo a linha de pensamento de Moraes (2008) que consagra a dignidade como fundamento, Branco (2007, pág. 59) corrobora do entendimento que ele é um princípio que: No Princípio Constitucional da Dignidade da Pessoa Humana que, agregando em si a qualidade de princípio constitucional e de fundamento da República, não há de tolerar qualquer descaso ou desrespeito cometido contra ele, exprimindo a adoção de uma postura de insubordinação a este valor fundamental e, via de consequência, um comportamento tendente à corrosão da estrutura da própria Ordem firmada. Desse modo, como bem assevera Cogo (2006, p. 100): ARGUMENTA - UENP 104 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Não haverá, para o trabalhador, esclarecimento capaz de retirá-lo do manto da coação moral; toda a manifestação de vontade será turbada, consequentemente, nulo será o negócio jurídico a partir dessa manifestação. Além do que: O bem-estar dos investigados que sofrem o ataque dos testes psicológicos é resguardado como direito fundamental pelo texto constitucional, a depender de um intérprete capacitado e comprometido na defesa da dignidade humana (IDEM, IBIDEM). 2.2 O projeto de Lei nº. 5.566/91 e as dinâmicas de grupo Convém ressaltar que, em 2001, tramitou no Congresso Nacional o Projeto de Lei sob o número 5.566/914, dispondo sobre a proibição do uso de métodos de recrutamento de pessoal que possam causar danos à honra e à dignidade do trabalhador. O autor do projeto, atual senador federal e ex-deputado federal do Partido dos Trabalhadores (PT), Paulo Paim, sugeriu a alteração do art. 442 da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT), quando dispôs acerca da proibição do uso de métodos de recrutamento de pessoal que possam causar danos à honra e à dignidade do trabalhadir. De acordo com o art. 2 do Projeto de Lei nº.5.566/91, o art. 442 da CLT passaria a vigorar com a seguinte redação. Veja-se: Art. 442 [...] § 1. Fica proibida a utilização de métodos de recrutamento de pessoal que possam causar dano à honra e à dignidade do trabalhador. § 2. Pelo efetivo dano à honra e à dignidade do trabalhador candidato a uma vaga no quadro de pessoal da empresa, nos termos do § 1 deste artigo, é devida uma indenização no valor de dez a cem vezes o salário estabelecido para o cargo a ser pago pelo empregador ou pelo recrutador. Como bem orienta o senador Paulo Paim, as novas formas de administração empresarial, focadas na alta competitividade e exigidas hoje para os empreendimentos no contexto da interdependência socioeconômica mundial, ou mesmo globalização, estão implementando novos métodos de recrutamento de pessoal. Dentre os novos mecanismos advindos do processo de globalização da economia, há as dinâmicas de grupo, por meio das quais muitos candidatos a uma vaga de emprego são avaliados ao mesmo tempo pela empresa.5 4 5 Infelizmente tal projeto foi retirado de pauta para arquivamento em 04 de dezembro de 2002. PAIM, Paulo. Projeto de Lei nº. 5.566/91. Disponível em: <www.senadorpaim.com.br>. Acesso em 20 abr. 2011. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 105 Para Gil (2001, p. 67), a técnica de dinâmica de grupo busca reunir todos os candidatos e confrontá-los entre si e, com situações hipotéticas (jogos psicológicos), retirar-lhes informações relativas à capacidade de liderança, à sociabilidade, à iniciativa, à espontaneidade e à capacidade de análise. Minicucci (1987, p. 89) destaca: “as dinâmicas procuram identificar posicionamentos diante de situações adversas: retraimento, racionalidade nas decisões, agressividade, verborragia, obsessividade, viscosidade”. Robbins (2004, p. 78) assevera que a simulação de desempenho representa uma eficaz ferramenta para se avaliar o desempenho do candidato, submetido a forte pressão no cumprimento de ordens e na aplicação de técnicas de negociação. Segundo Paulo Paim, as dinâmicas de grupo são atividades eficazes “para se medir a capacidade de autocontrole, de criatividade, de iniciativa, de comando, etc., características indispensáveis aos gerentes e aos executivos de empresas inseridas em mercado altamente competitivo”.6 Explana, ainda, o referido senador pelo PT, ao justificar as razões da edição do projeto de Lei nº. 5.566/91: O trabalhador candidato a uma vaga no quadro de pessoal da empresa, nessas dinâmicas de grupo, é tratado com desprezo e incúria ao ser submetido, por exemplo, a testes nos quais é obrigado a imitar o comportamento e a atitude de animais ou a realizar atividades infantis por meio de jogos conhecidos popularmente como cabra-cega, brincadeira de roda, etc.7 Como bem atesta ainda o senador: Essas atividades não levam em conta a idade, a religião, o sexo e a formação moral e intelectual das pessoas avaliadas, compelindo-as e arrastando-as ao desconforto e à humilhação perante os demais candidatos.8 Ademais, ele também assevera: É inconcebível que numa sociedade voltada para a valorização dos direitos e garantias individuais se permita tal afronta à honra e à dignidade de um trabalhador que se candidate a uma vaga em uma empresa.9 Dessa forma, Paulo Paim instrui, destacando que os direitos e as garantias fundamentais estabelecidos aos trabalhadores não podem ser submetidos à lógica 6 PAIM, Paulo. Projeto de Lei nº. 5.566/91. Disponível em: <www.senadorpaim.com.br>. Acesso em: 20 abr. 2011. Ibidem. Ibid. 9 Ibid. 7 8 ARGUMENTA - UENP 106 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP do mercado que comanda a tudo e a todos, passando por cima da ética e da dignidade dos trabalhadores, a ponto de os mesmos serem tratados como simples peças de uma engrenagem empresarial como se desprovidos de sentimentos e de emoções.10 A deputada federal Vanessa Grazziotin, em parecer favorável ao Projeto de Lei nº. 5.566/2001, também se manifestou de forma contrária à aplicação das dinâmicas de grupo na fase pré-contratual: São averiguadas por meio das chamadas dinâmicas de grupo (encenação de psicodramas), que objetivam também analisar se o candidato deve estar harmonizado com os valores da empresa. São intermináveis entrevistas e tarefas que, muitas vezes, abalam psicologicamente o candidato, principalmente se são realizadas em grupo, expondo-o ao ridículo perante os demais participantes da dinâmica. Ou seja, um verdadeiro exagero. A seleção de pessoal, em alguns casos, é tão apurada que se chega ao absurdo de a empresa ficar com vagas ociosas, como aconteceu com a Natura em 2000. Segundo reportagem da Revista Isto é, do dia 23 de maio de 2001, a referida empresa dispunha de 21 vagas, mas somente 14 foram preenchidas, apesar dos 8.088 candidatos. Dessa forma, entendemos que o trabalhador, já humilhado pela falta de emprego, obrigado a aceitar as mais variadas ofensas aos seus direitos trabalhistas para conseguir uma colocação no mercado de trabalho, não precisa ainda passar por mais atos atentatórios de sua dignidade ao realizar atividades vexatórias, constantes dos processos de seleção de pessoal das grandes empresas.11 A propósito, Sônia das Dores Dionísio, Juíza do Tribunal Regional do Trabalho da 17ª Região, numa brilhante decisão proferida em novembro de 2005, já condenou a prática das chamadas técnicas de dinâmica de grupo. Para a referida juíza, a sua aplicação desvirtuada ou inconsequente pode caracterizar a prática de assédio moral. Veja-se: ASSÉDIO MORAL DINÂMICA GRUPAL. DESVIRTUAMENTO. VIOLAÇÃO AO PATRIMÔNIO MORAL DO EMPREGADO. ASSÉDIO MORAL. INDENIZAÇÃO. A dinâmica grupal, na área de recursos humanos, objetiva testar a capacidade do indivíduo, a compreensão das normas do empregador e gerar a sua socialização. Entretanto, sua aplicação inconsequente produz efeitos danosos ao equilíbrio emocional do empregado. Ao manipular tanto a emoção, como o íntimo do indivíduo, a dinâmica pode levá-lo a se sentir humilhado e menos capaz que os demais. Impor pagamentos de prendas publicamente, tais como dançar a dança da 10 11 PAIM, Paulo. Projeto de Lei n. 5.566/91. Disponível em: <www.senadorpaim.com.br>. Acesso em: 20 abr. 2011. Ibidem. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 107 boquinha da garrafa, àquele que não cumpre sua tarefa a tempo, configura assédio moral, pois o objetivo passa a ser o de inferiorizá-lo e torná-lo diferente do grupo. Por isso golpeia a sua autoestima e fere o seu decoro e prestígio profissional. A relação de emprego cuja matriz filosófica está assentada no respeito e na confiança mútua das partes contratantes impõe ao empregador o dever de zelar pela dignidade do trabalhador. A CLT, maior fonte estatal dos direitos e dos deveres do empregador e do empregado impõe a obrigação de o empregador abster-se de praticar lesão à honra e à boa fama do seu empregado (art. 483). Se o empregador age contrário à norma, deve responder pelo ato antijurídico que praticou, nos termos do art. 5, X da CF/88. (Recurso Proviso) TRT 17 Região RO 01689. 2004. 008. 17. 00-0. Relatora Juíza Sônia das Dores Dionisio. DJU 18/ 11/2005 AC 08693/2005. Como se vê, as dinâmicas de grupo, quando realizadas na fase précontratual, representam uma técnica investigativa da personalidade do trabalhador, capazes de acarretar violação à sua dignidade e à sua intimidade. Como o ordenamento jurídico brasileiro continua não emitindo leis ordinárias capazes de assegurar as situações que podem acarretar violação ao patrimônio moral do trabalhador, é necessária a aplicação de mecanismos com a finalidade de possibilitar a neutralização da coação moral sofrida pelo trabalhador, a fim de possibilitar a manifestação de vontade deste sem qualquer vício. Portanto, é necessário ser regulamentada uma lei vigendo sobre o caso do trabalhador que não tem acesso ao emprego devido à sua reprovação em um teste psicológico cujo padrão não seja validado posteriormente pelo Conselho Federal de Psicologia. Na mesma linha, deve também ser editada uma lei para a situação do trabalhador que se recusa a fazer o teste psicológico e que, por isso, não tem acesso ao emprego; caso contrário, esse trabalhador terá direito a danos morais por motivo de discriminação e de violação à sua intimidade. Além disso, assevera Cogo (2006, p. 100) que é necessária a estipulação de sanções tributárias e comerciais para empresas que violam o sigilo dos resultados obtidos a partir da aplicação da testagem psicológica, pois a autora, sabiamente, estatui que deveria ser prevista a regulamentação e a fiscalização dos testes psicológicos por intermédio do Ministério da Saúde, mediante a colaboração do Conselho Federal de Psicologia, como muito bem já adota o Ministério da Saúde em suas regras sobre medicina e segurança do trabalho. 3. O TESTE GRAFOTÉCNICO OU GRAFOLÓGICO Com as mudanças advindas do final do século XIX, em decorrência das novas exigências derivadas dos novos programas de gestão empresarial, o modelo econômico de produção, a saber – a globalização econômica – exige dos candidatos ao posto de trabalho um perfil que se adeque aos programas de eficiência e de ARGUMENTA - UENP 108 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP qualidade total. Em razão disso, as empresas vêm se utilizando de processos os mais variados para encontrar, no mercado de trabalho, os trabalhadores mais eficientes para o desempenho de determinada função. De acordo com os ensinamentos de Cogo (2006, p. 91), a testagem através da grafologia remonta aos gregos desde o ano 300 a.C., quando Demétrio dizia “estar seguro de que a escrita refletia a alma do indivíduo”. No século XIV, na Espanha, o rabino Samuel Hangid também estudava a forma como os fieis escreviam bilhetes no confessionário. Segundo Robbins (2004, p. 83), O grafológico consegue reunir informações acerca da personalidade, capacidade, aptidões, interesse e integridade moral do candidato. É possível a verificação do quociente de inteligência, bem como das competências em relação à inteligência emocional. O exame grafotécnico e grafológico, sem dúvida alguma, como bem lembra Cogo (2006, p. 82), possui a finalidade de revelar as características da personalidade do candidato ao emprego por intermédio da verificação da sua escrita. Para a referida autora, até mesmo o preenchimento de uma ficha contendo os dados biográficos, culturais e familiares do candidato é capaz de revelar o seu perfil histórico e ser usada, por consequência, como forma inicial de eliminação dos interessados. Barros (apud NETO, n. 116, p. 150), ao discorrer sobre o assunto, esclarece: A grafologia é a ciência que se ocupa em estudar o comportamento através da letra. Esta ciência apresenta sinais de sua existência há mais de 500 anos. Para este autor, a grafologia compreende “o estudo das características da caligrafia do indivíduo relacionadas com as respectivas atitudes comportamentais”. A grafologia, portanto, para o mesmo, representa: Uma ciência completamente amparada pela psicologia, não cabendo a si nenhuma interpretação peculiar se não a da própria interpretação compreendida pelos padrões científicos já oficializados (NETO, n. 116, p. 150). Lembra, por sinal, a psicóloga Valéria Propato que “a letra ‘a’ em forma de triângulo indica um temperamento agressivo e autoritário; um ‘c’ enrolado é sinal de egoísmo; o ‘j’ com a perna sinuosa mostra uma pessoa traumatizada e rancorosa”.12 12 PROPATO, Valéria. As letras não mentem. Disponível em: <http://www.grafologia-sp.com.br>. Acesso: 20 abr. 2011. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 109 Complementando, Swartzman (1996, p. 14) diz que “a grafia dos gays apresenta sinais inconfundíveis como floreios, coqueterias e excesso de curvas. Já as lésbicas exigem ângulos pontiagudos nas letras”. Em razão disso, Neto (n. 116, p. 150) assevera que a grafologia se funda em bases nitidamente científicas e com o propósito de auxiliar a empresa na contratação daquele trabalhador que ela considerar ser o mais apto para o exercício da atividade empresarial. Para Oliveira (2001, p. 129), a “análise gráfica já é adotada como cirtério de seleção de pessoal por uma entre cada três companhias instaladas no Brasil”. Como as empresas estão buscando cada vez mais a contratação não apenas de trabalhadores mais capazes para o exercício da função, mas também a contratação daqueles que se encontram subjetivamente mais adequados ao desempenho do cargo, Neto (n. 116, p. 150) assevera que: [...] na condição de processo destinado à inserção de novos trabalhadores na empresa, a grafologia comparece com o espantoso percentual atinente a índice de acerto à ordem de 85%. Significa o seguinte: os trabalhadores que realizam o exame têm desvendada a sua personalidade na esmagadora maioria das hipóteses em que se submetem a tais exames. Não resta dúvida: a dinâmica de grupo representa uma avaliação efetivada pelo empregador demolidora da tutela da intimidade do trabalhador, pois revela de forma detalhada os traços pessoais e íntimos do candidato ao emprego (VÁLIO, 2006 p. 76). Até porque o direito à intimidade, segundo Neto (n. 116, p. 150), tem “conteúdo próprio. A sua proteção se identifica à tutela da porção mais recôndita do indivíduo. Vícios, hábitos, aventuras amorosas, tudo isso se insere na salvaguarda à intimidade”. Consoante ensina Sussekind (1995, p. 597): A prova grafológica é, em tese, demolidora da tutela à intimidade. Partindo da escrita do candidato, visa desnudar seus recados, revelar, por uma fórmulamatriz, o caráter, a personalidade da pessoa. Sua invasividade é evidente. E a lesão ao direito não está no vazamento do resultado da prova, mas na aplicação do teste em si, já que a recusa do pretendente a emprego de submeter-se aos desígnios da grafologia tolherá a possibilidade de sua contratação. De acordo com Medeiros (apud LEITE e RIOS, 2008, p. 182), o grafoanalista pode diagnosticar mais de trezentas características da pessoa investigada, se assim a grafia permitir. A autora referenciada (apud LEITE e RIOS, 2008, p. 182) ainda apresenta os aspectos que podem ser investigados quando da realização do teste grafológico: ARGUMENTA - UENP 110 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP a) Quanto aos aspectos intelectuais - mentalidade criadora, perspicácia, métodos e processos, tipo de raciocínio (lógico, concreto, intuitivo, abstrato, teórico), imaginação, memória, atenção, curiosidade intelectual, razão, tempo de resposta ao meio, mente ativa e passiva, capacidade de análise e síntese; b) Quanto aos aspectos interpessoais e capacidade de interação em equipe - inteligência emocional, equilíbrio, clareza de ideias e de julgamento, introversão, extroversão, comunicação, eloquência, persuasão, discrição, energia para se impor, agressividade, diplomacia, timidez, necessidade de popularidade, pessoa profunda ou superficial, pensamento e sentimento em harmonia, prudência ou ousadia nos contatos, habilidades sociais; c) Quanto à energia - atuação sob pressão, fadiga física ou mental, perseverança; d) Quanto aos aspectos de liderança - autoridade, sensatez em suas decisões, assertividade, autonomia, iniciativa, proatividade, capacidade de criar um clima saudável, sinérgico e que tenha qualidade ao mesmo tempo, motivador, focado em resultados efetivos que gerem receita para a empresa, persuasão, ousadia profissional, competência para lidar com pessoas de personalidades diferentes, relação entre causa e efeito, visão de conjunto, planejamento; e) Quanto aos aspectos intrapsíquicos - autoimagem, autoconceito, marketing pessoal, vaidade, ambição, perfeccionismo, comunicação, clareza e objetividade ao expor as suas ideias, eloquência, fluência, diplomacia, agressividade, firmeza nos contatos, capacidade de se impor com moderação, flexibilidade, tolerância a pontos de vista diferentes; f) Quanto à confiabilidade senso de justiça, retidão moral, ética, transparência em seus atos, lealdade. Nesse raciocínio, Leite e Rios (2008, p. 183) asseveram que a grafologia oferece a análise de muitas características de personalidade que, muitas vezes, não são fornecidas por outros testes. Assim, por meio da interpretação e do cruzamento de diversas informações, o grafólogo pode projetar quarenta tipos de personalidade. Dentre as informações, estão: a forma, a dimensão e a inclinação das letras, bem como a pressão e a velocidade da escrita. Cabe ressaltar que o art. 11 do Código Civil estabelece: “com exceção dos casos previstos em lei, os direitos da personalidade são intransmissíveis e irrenunciáveis, não podendo o seu exercício sofrer limitação voluntária”. Significa dizer que o direito à intimidade, assim como os demais direitos da personalidade estão fora do comércio jurídico, não podendo ser objeto de contrato, salvo as hipóteses taxativamente previstas na legislação (como é o caso do atleta profissional de futebol, pois a Lei nº. 9.615/98 permite a celebração de contrato de licença de uso da imagem do atleta por parte da agremiação esportiva). Sendo assim, mesmo que haja espontânea manifestação de vontade do candidato ao emprego quanto à sua submissão ao referido exame, ficará constatado abuso de direito e violação ao caráter irrenunciável do direito de personalidade do empregador, se tal exame for realizado no sentido de denegrir a sua intimidade, visto que certamente será descoberta a sua personalidade. Conforme assegura Válio (2006, p. 32), “atribue-se, ainda, aos direitos ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 111 de personalidade, a característica de irrenunciáveis, por impossibilidade jurídica de reconhecimento de manifestação volitiva de abondono do direito”.13 Infelizmente, Neto (n. 116, p. 152) noticia que: Milhões de desempregados são submetidos a diversos processos seletivos, mas sequer têm qualquer inclinação ou gosto pela atividade posta à disposição pela unidade empresarial, quer porque a função não é atraente, quer porque não o é o salário oferecido; pouco importa, fazem os exames apenas porque os ditames da sobrevivência os impelem a tanto. Pergunta: se soubessem que o exame grafológico que fizeram promoverá o desnudamento de sua personalidade, consentiriam, ainda assim, com a manipulação dos resultados pela empresa ou pelos consultores de recursos humanos que o aplicaram? Certamente. Isso se dá em decorrência da necessidade econômica e do aumento do desemprego que assolam muitos seres humanos desprovidos dos bens necessários básicos de sobrevivência digna e respeitosa. Como bem assevera Neto (n. 116, p. 152), é fato notório a dificuldade com que os pretendentes a postos de trabalho se envolvem para conseguir uma colocação no mercado de trabalho. E é tal dificuldade que torna o trabalhador vulnerável à ofensa de sua condição humana, já que a recusa de realizar o exame acaba acarretando, por consequência, renúncia à vaga de emprego. Nesse sentido, caso o empregador venha a submeter o trabalhador a testes grafológicos ou grafotécnicos como condição de admissão no emprego, ele incidirá em intromissão indevida da intimidade do candidato ao emprego e na sua incompatibilidade com o princípio constitucionail da dignidade da pessoa humana. E é também com lastro na dignidade da pessoa humana que deve haver a proteção para todo exame a ser feito pelos trabalhadores. Em qualquer tipo de avaliação psicotécnica, impõe-se à empresa cientificar os trabalhadores a respeito da natureza do teste a que serão submetidos, pois a dignidade da pessoa humana, princípio fundamental inserido na Constituição Federal de 1988, representa a base de proteção dos direitos de personalidade de todo trabalhador, impossibilitando, assim, qualquer supressão pelo titular desses direitos. Logo, a submissão do trabalhador a testes grafológicos ou grafotécnicos ensejará a violação aos direitos constitucionais e fundamentais estampados no inciso X do art. 5 da Constituição Federal que consagra a proteção aos direitos de personalidade do trabalhador, em especial à sua intimidade e à sua dignidade. Nesse desiderato, cabe registrar os ensinamentos de Nascimento (2009, p. 117), ao estatuir com razão que 13 Convém destacar, entretanto, que esse não é o pensamento de Manoel Jorge e Silva Neto. Para ele: “ainda que o direito à intimidade deva ser objeto de tutela específica nas relações de trabalho, nada impede que o trabalhador, desde que ciente da natureza do exame e da destinação que se dará ao respectivo resultado, opte pela sua realização sem que o comportamento possa induzir à existência de renúncia”. p. 154. ARGUMENTA - UENP 112 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O dispositivo constitucional em comento proíbe o empregador de submeter o trabalhador a testes grafológicos ou grafotécnicos, assegurando-lhe o direito à inviolabilidade da intimidade e da vida privada e à não discriminação, colocando-os fora dos limites de alcance de atuação do poder diretivo. Desse modo, o exame grafológico se mostra incompatível com os princípios constitucionais do trabalho, dentre os quais a dignidade da pessoa humana, além de vulnerar direitos individuais do candidato ao posto de trabalho, como o pertinente à intimidade. Como bem expressa Manoel Jorge e Silva Neto: A margem de acerto da metodologia utilizada em casos tais, além de construir para a contratação do empregado certo para a função certa, termina por desenvolver uma série de consequências ofensivas a princípios constitucionais, de modo específico ao da dignidade da pessoa humana (NETO, n. 116, p. 150). Como bem entende Coelho (2004, p. 20), técnicas abusivas, como a chamada “avaliação 360 graus”, sistemas de “testes on line”, dinâmicas de grupo aleatórias, ampliam sobremaneira a possibilidade de divulgação indevida e violação de intimidade. Tais questões precisam ser pensadas e repensadas pelo direito e pela sociedade para que não se repita a frase de Ripert: “Quando o Direito ignora a realidade, esta se vinga e ignora o Direito”. No mesmo raciocínio, segue Coelho (2004, p. 26), ao relatar histórias reais de violação aos direitos de personalidade do trabalhador: Francisco de Souza (o nome é fictício), 27 anos, é executivo de uma empresa multinacional. Ele não quis revelar sua identidade por medo de sofrer represálias, mas nos contou a experiência de ser submetido a uma das chamadas “avaliações 360 graus”. “Tive que responder a 5 mil perguntas, durante o período de quatro dias, para ser avaliado”, disse. Eis algumas das questões que ele teve de responder: Sua mulher já se masturbou? Se a resposta for ‘sim’, quantas vezes por semana? O que você acha disso? Você já brincou de enterro? A Constituição Federal de 1988 plasmou à guisa de fundamento da República Federativa do Brasil como Estado Democrático de Direito a dignidade da pessoa humana, retratando o reconhecimento de que o ser humano há de constituir o objetivo primacial da ordem jurídica, cuja função de diretriz hermêutica lhe é irrecusável, posto que, como bem assevera Neto (n. 116, p. 150): Não se pode pensar em interpretação constitucional ou, de resto, interpretação de qualquer dispositivo do ordenamento jurídico nacional à revelia do valor dignidade da pessoa humana, fundamentalmente porque ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 91 – 116 2013 113 se põe como inexcedível teleológico a partir do qual devem ser extraídas todas as proposições do aplicador do direito. A nossa atual Constituição Federal de 1988 arrola como direitos e garantias fundamentais, entre outros, a inviolabilidade da intimidade, a vida privada, a honra e a imagem da pessoa. E a proteção à dignidade da pessoa humana representa o fundamento maior de todos os demais direitos fundamentais expressos na Constituição Federal de 1988. Com a vigência da Constituição Federal de 1988, o núcleo basilar do ordenamento jurídico passou a ser a dignidade da pessoa humana. Nesse enleio, Gambá (2010, p. 144) dispõe: É necessário entender a dignidade humana como um “superprincípio”, ou seja, um instrumento para a interpretação e aplicação das normas que regem as relações jurídicas, sendo fundamental para permitir a completude do ordenamento jurídico e proceder à incessante busca por um país mais democrático e participativo. Portanto, é necessário que sejam utilizadas técnicas de seleção de pessoal no sentido de afastar qualquer conduta do empregador que venha a agredir a intimidade e a dignidade dos interessados ao posto de trabalho. Bem assevera Cogo (2006, p. 82) em relação a uma leitura detalhada do currículo já ser suficiente para apresentar sinais como: [...] indicadores de competência profissional; experiência prática; adequação ao futuro grupo de trabalho; desejo de permanência no emprego; vontade de trabalhar e de aceitar novos desafios; e disponibilidade em melhorar o desempenho profissional [...]. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARANTES, Ester Maria de M; COIMBRA, Cecília M. B; DELGADO, Pedro Gabriel; PELBART, Peter Pál; SADER, Emir; SAIDON; Osvaldo. Psicologia, direitos humanos e sofrimento mental. São Paulo: Casa do Psiocólogo, 2000. ARAÚJO, Francisco Rossal. A boa fé no contrato de emprego. São Paulo: LTr, 1996. BARROS, Alice Monteiro de. Proteção à intimidade do empregado. São Paulo: LTr, 2009. BRANCO, Ana Paulo Tauceda. A colisão de princípios constitucionais no direito do trabalho. São Paulo: LTr, 2007. 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ARGUMENTA - UENP 116 JACAREZINHO Nº 18 P. 91 – 116 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O ART. 5º, INCISO XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL E O REGIME JURÍDICO DO DIREITO DE AÇÃO FEDERAL CONSTITUTION’S ARTICLE 5, NUMBER XXXV, AND THE RIGHT OF ACTION’S LEGAL REGIME Thadeu Augimeri de Goes LIMA* SUMÁRIO: Introdução; 2. Notas sobre o direito de ação, ontem e hoje, e seus significados jurídico e político; 3. Analisando a normatividade do art. 5º., inciso XXXV, da Constituição Federal; Conclusão; Referências. RESUMO: O artigo estuda o alcance normativo do art. 5º., XXXV, da Constituição Federal, partindo de marcos teóricos inseridos na concepção instrumentalista do sistema processual. Inicia pela abordagem da evolução do conceito de ação e de seus atuais significados jurídico e político. Prossegue com a análise da normatividade do art. 5º., XXXV, da Constituição Federal e de como ele estabelece a disciplina e as garantias do direito de ação. A conclusão confirma a hipótese trazida na Introdução, verificando que o dispositivo caracteriza o ponto fulcral de um verdadeiro regime jurídico do direito de ação. ABSTRACT: The paper studies the normative comprehensiveness of the Federal Constitution’s article 5, XXXV, starting from theoretical frameworks inserted in the procedural system’s instrumentalist conception. It begins with an approach to the evolution of the conception of action and to its current legal and political meanings. It advances by examining the normativity of the Federal Constitution’s article 5, XXXV, and how it establishes the right of action’s discipline and guarantees. The conclusion confirms the hypothesis brought in the Introduction, verifying that the disposition characterizes the central point of a true legal regime to the right of action. PALAVRAS-CHAVE: art. 5º., inciso XXXV, da Constituição Federal Brasileira; direito de ação; regime jurídico; disciplina e garantias. * Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Promotor de Justiça no Estado do Paraná. E-mail: [email protected] ou [email protected]. Artigo submetido em 10/08/2012. Aprovado em 22/11/2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 117 KEYWORDS: Brazilian Federal Constitution’s article 5, number XXXV; right of action; legal regime; discipline and guarantees. INTRODUÇÃO O objetivo do presente trabalho é analisar o alcance normativo do art. 5o., inciso XXXV, da Constituição Federal, sob o prisma da disciplina e das garantias que o preceito estabelece para o direito de ação, caracterizando o ponto fulcral de um verdadeiro regime jurídico concernente a este instituto fundamental do Direito Processual. São preferencialmente empregados, na consecução da tarefa proposta, os métodos hipotético-dedutivo, dialético e histórico-evolutivo. Com efeito, a hipótese levantada logo acima, posicionando-se no sentido da posição nuclear do enunciado normativo em dito regime jurídico, é submetida a falseamento mediante o confronto das normas extraíveis do dispositivo com outros institutos processuais conexos. Antes, porém, não pode ser olvidado o exame das origens históricas do conceito de ação e de seu desenvolvimento ao longo do tempo, bem como devem ser confrontados e criticamente avaliados os diferentes entendimentos de respeitados juristas que se debruçaram sobre o tema, procurando organizá-los em uma síntese superadora de suas possíveis contradições. Outrossim, o presente estudo parte de referenciais teóricos que se inserem na concepção doutrinária conhecida por instrumentalismo, notadamente as correntes que preconizam a força normativa dos princípios e regras processuais insculpidos na Constituição, a irradiação de seus efeitos sobre todo o Direito infraconstitucional e a necessidade de dotar o sistema processual de mecanismos que lhe confiram efetividade prática. Primeiramente se examinam a evolução do conceito de ação, desde o Direito Romano até hodiernamente, e seus atuais significados jurídico e político. Em seguida, abordam-se a normatividade do art. 5º., inciso XXXV, da Constituição Federal e o modo como ele estabelece a disciplina e as garantias do direito de ação, caracterizando o ponto fulcral de um verdadeiro regime jurídico, encerrandose com a conclusão obtida no trato do assunto. 1. NOTAS SOBRE O DIREITO DE AÇÃO, ONTEM E HOJE, E SEUS SIGNIFICADOS JURÍDICO E POLÍTICO A ideia de ação não tem sido uniforme ao longo do curso histórico do Direito Processual. Com efeito, constata-se extrema diferença entre a percepção que se havia da actio do Direito Romano e o atual conceito de ação. Pode ser traçado, pois, um quadro evolutivo, de suas origens até hoje, passando sucintamente em revista as principais teorias construídas para explicar o instituto. Desde o Direito Romano, e até por volta do começo do século passado, ARGUMENTA - UENP 118 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP era a ação considerada simples aspecto, acessório ou elemento integrante do direito material, ou mesmo a reação deste contra a sua violação. Tal doutrina ficou conhecida como teoria clássica, civilista ou imanentista da ação e apregoava, em linhas gerais, que não haveria ação sem direito e nem direito sem ação, nos moldes asseverados por SAVIGNY e como constava do art. 75 do Código Civil pátrio de 1916 (CÂMARA, 2008, p. 107-108; FREIRE, 2001, p. 47-48; GRINOVER, 1973b, p. 25-26; TESHEINER, 1993, p. 85-88). Na segunda metade do século XIX, contudo, a conhecida polêmica entre os romanistas alemães BERNHARD WINDSCHEID e THEODOR MÜTHER lançou as bases para o desfazimento da confusão conceitual entre o direito de ação e o direito substancial, culminando por demonstrar serem eles realidades distintas, porquanto a ação se desdobra em dois direitos, ambos de natureza pública: um deles reconhecido ao suposto prejudicado, de pleitear a prestação jurisdicional, voltado contra o Estado; e o outro para o próprio ente público, de corrigir a lesão jurídica, dirigido contra a parte que a causou (CÂMARA, 2008, p. 108; FREIRE, 2001, p. 48; GRINOVER, 1973b, p. 26; TESHEINER, 1993, p. 92-93). Surgiu assim a tese da autonomia do direito de ação, que passou a contar com enorme adesão dos juristas europeus da época e sobre a qual se firmaram dois posicionamentos: o que considerava a ação um direito autônomo e concreto e o que a compreendia como um direito autônomo e abstrato ao provimento jurisdicional. Para os defensores da primeira teoria, criada pelo jurista germânico ADOLPH WACH a partir do estudo da ação declaratória negativa e publicada inicialmente em 1885, no seu Manual de direito processual civil alemão (Handbuch des deutschen Zivilprozessrechts), o direito de ação, embora distinto do direito material lesado, somente existiria quando houvesse uma decisão favorável ao autor. Tratarse-ia da pretensão à tutela jurídica (Rechtsschutz-Anspruch) do Estado, direcionada simultaneamente contra este e contra o réu, dotada de natureza pública e dependente da concorrência de requisitos oriundos do ordenamento processual (os pressupostos processuais) e do ordenamento substancial (as condições da ação, tal como eram então percebidas) (FREIRE, 2001, p. 49; GRINOVER, 1978b, p. 26; NEVES, 1997, p. 93; TESHEINER, 1993, p. 93-94). GIUSEPPE CHIOVENDA (1998, p. 37-42) prestou adesão a essa doutrina, com sua ideia da ação como direito potestativo, não obstante entendesse que se voltaria apenas contra o demandado e que tenderia a produzir efeitos na esfera jurídica dele pela só vontade de seu titular. Conforme o mestre italiano (1998, p. 42), a ação se define como o “poder jurídico de dar vida à condição para a atuação da vontade da lei” (grifo no original). A segunda vertente, ao seu turno, preconizava que a ação consistiria no direito à resolução do conflito de interesses pelo Estado-juiz, independentemente da efetiva existência do direito material postulado. Bastaria ao demandante, para o exercício da ação, estar de boa-fé, acreditando verdadeiramente ter razão quanto à pretensão deduzida. Em feliz coincidência, posto que não se tem registro de prévios contatos entre seus artífices, foi desenvolvida por HEINRICH DEGENKOLB, ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 119 na Alemanha, e por ALEXANDER PLÓSZ, na Hungria, no fim da década de 1870, vindo a conquistar a preferência de autorizadas vozes (CÂMARA, 2008, p. 110; GRINOVER, 1978b, p. 27-28; MARINONI, 2008, p. 177-178; TESHEINER, 1993, p. 88-89). Em 1949, na Itália, expôs E NRICO T ULLIO L IEBMAN aquela que se convencionou chamar teoria eclética da ação, procurando em certa medida conciliar as opiniões precedentes. Distinguindo entre o poder ou direito de agir em juízo, de índole constitucional e consubstanciado na garantia genérica e incondicionada de irrestrito acesso ao Poder Judiciário, vera emanação do status civitatis, e a ação propriamente dita, de índole processual e apta a invocar e mover a atividade jurisdicional em busca do pronunciamento sobre ou a satisfação de uma pretensão, conferiu nova roupagem à categoria das condições da ação. Em sua lição, seriam elas requisitos para que, no plano concreto, a ação realmente existisse, possibilitando um juízo de mérito, porém não influindo na procedência ou improcedência do pedido, no processo de conhecimento, ou na satisfação do direito material, no processo executivo (DINAMARCO, 2002a, p. 379-392; LIEBMAN, 1980, p. 131-136; MARINONI, 2008, p. 170-173; MONIZ DE ARAGÃO, 2002, p. 42; TESHEINER, 1993, p. 102). Pode-se afirmar ser mais aceita em nosso país, na atualidade, a teoria do direito autônomo e abstrato, temperada pela concepção liebmaniana das condições da ação, que lhe apara os exageros e confere à ação um nexo de instrumentalidade com o direito substancial (BUENO, 2010, p. 373-384; GRINOVER, 1973b, p. 31; MONIZ DE ARAGÃO, 2002, p. 41-44). Hodiernamente, pois, a ação é tida pela imensa maioria dos estudiosos brasileiros como um direito subjetivo público de exigir do Estado a prestação jurisdicional, pouco importando se de acolhimento ou rejeição da pretensão de quem o exerce, sendo assim abstrato; é ainda autônomo, porquanto desvinculado da existência do direito material pleiteado; e instrumental, por se relacionar a uma situação concreta regulada pelo ordenamento jurídicosubstancial, seja objetivando a formulação da norma jurídica de regência (atividade jurisdicional voltada à tutela cognitiva), seja intentando a atuação prática desta (atividade jurisdicional dirigida à tutela executiva em sentido amplo). Tecidas as observações acima, convém trazer à colação o magistério de CINTRA, DINAMARCO e GRINOVER, para quem a ação é “o direito ao exercício da atividade jurisdicional (ou o poder de exigir esse exercício)” (2010, p. 271). Tratase do chamado conceito sintético de ação. O conceito analítico, por sua vez, é colocado por CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (2002a, p. 367) como “a soma das posições jurídicas ativas do autor no processo”, abarcando os poderes de romper a inércia da função jurisdicional, de efetiva participação no procedimento, mediante as mais variadas atuações cabíveis, tais as de argumentar, provar, recorrer e instaurar incidentes, e de exigir a tutela efetiva de suas situações de vantagem (processuais e materiais). COMOGLIO, FERRI e TARUFFO (2011, p. 63-64), baseados em leitura do art. ARGUMENTA - UENP 120 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 24, primeiro parágrafo, da Constituição da República Italiana, mas em tudo aplicável à nossa realidade, veem na ação três elementos constitutivos: 1) o poder de propor ao juiz uma demanda, com a qual o autor pede a tutela de um seu direito subjetivo ou interesse legítimo; 2) o poder, derivado do primeiro e exercitável nas formas permitidas durante o trâmite procedimental, de fazer valer as próprias razões, isto é, de cumprir no processo todas aquelas atividades necessárias ou úteis à obtenção da tutela pleiteada; e 3) o direito, subordinado ao sucesso das atividades mencionadas no número anterior, de conseguir do juiz um provimento tecnicamente idôneo a assegurar tutela adequada e efetiva à situação substancial levada a julgamento. O direito de ação, por conseguinte, em uma acepção sintética e conglobante de seus aspectos elementares antes citados, pode ser conceituado como o direito de obter a prestação jurisdicional integral, integralidade esta cujo conteúdo é variável e se submete a condicionamentos processuais e materiais. É corrente apontar a sede constitucional do direito de ação no art. 5º., inciso XXXV, da Carta Magna, o qual preconiza que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”. Trata-se, pois, de direito dotado de fundamentalidade formal e material (ALEXY, 2008, p. 520-523; SARLET, 2009, p. 74-78) e que ostenta, além de um significado jurídico, um importantíssimo significado político. Sob o ponto de vista jurídico, a ação é consectário da proibição da autotutela e da assunção da administração da justiça pelo Estado, bem como da opção jurídico-política deste pela inércia da função jurisdicional (ne procedat judex ex officio), mostrando-se o meio técnico apto a provocar e conduzir o seu exercício (GRINOVER, 1973b, p. 24; LIEBMAN, 1980, p. 135). Impedida a justiça de mão própria e excluída a atuação espontânea dos órgãos incumbidos de prestar a jurisdição, mas existente o dever destes de o fazer, o ente público há que oferecer aos jurisdicionados, em contrapartida, um mecanismo para ativá-la e para influir no seu resultado (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 271; MARINONI, 2008, p. 206; MONIZ DE ARAGÃO, 1978, p. 70-71). Reconhecese a eles, por conseguinte, o direito de ação, composto de poderes e faculdades de iniciativa e de participação processual. Erigida ao patamar constitucional, e ganhando assim status de direito fundamental, a ação se insere na categoria dogmática dos direitos a prestações ou a ações estatais positivas, mais especificamente no grupo dos direitos a organização e procedimentos (ALEXY, 2008, p. 488-490; CAMBI, 2009, p. 218219; SARLET, 2009, p. 180, 196), como direito a procedimento em sentido estrito, embora também possa ser visualizada no âmbito dos direitos a proteção (ALEXY, 2008, p. 490). No quadro empírico-positivo dos direitos fundamentais, a ação cobre a multifuncionalidade deles, isto é, pode ser utilizada conforme as suas necessidades funcionais. Coloca-se sobre todas essas funções e, na verdade, sobre todos os direitos fundamentais materiais, pois eles dependem, em termos de ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 121 efetividade, do direito de ação. É a ação um direito fundamental processual, e não material, porém pode ser dita o mais fundamental dos direitos, porquanto imprescindível à efetiva concreção de todos eles (MARINONI, 2008, p. 205). Por outro ângulo, é direito cívico (LIEBMAN, 1980, p. 132; NERY JR., 2002, p. 103) de primeira geração ou dimensão, cujo liame com o conteúdo essencial do Estado de Direito é evidente (DINAMARCO, 2002b, p. 331-332; MONIZ DE ARAGÃO, 1978, p. 69). Não obstante, viu-se enriquecido com novas tonalidades face ao advento do Estado Democrático de Direito. Sobressai, a partir de tais observações, o seu significado político. Com a Revolução Francesa de 1789, uma radical mudança nos contextos social, político e econômico veio a lume. Os ideais burgueses de igualdade, liberdade e fraternidade transformaram a visão de mundo então arraigada, o que refletiu no campo jurídico mormente pela consagração do princípio da tripartição das funções estatais, fortalecendo ainda mais a garantia do due process of law. Foi com a divisão do exercício do poder entre órgãos distintos que o Estado passou a ser obrigado a obedecer as leis por ele mesmo ditadas. Instituído o sistema de freios e contrapesos, nasce um Estado em que ninguém mais detém, na organização política, poder incontrastável. Tal realidade é o Estado de Direito, cuja principal conquista se consubstancia no reconhecimento de direitos do particular em relação ao próprio Estado (direitos públicos subjetivos). O súdito se torna cidadão e o processo deixa de ser mero instrumento de controle social para se converter, também, em garantia do indivíduo frente ao Estado, em direito público subjetivo à proteção estatal do direito subjetivo material (GIDI, 1990, p. 199-200). O direito de ação, assim, identifica-se com a ideia do processo como garantia ativa, pois, diante de alguma ilicitude, mesmo oriunda dos Poderes Públicos, pode o prejudicado dele se utilizar para buscar preveni-la ou remediá-la (GRECO FILHO, 1998, p. 46). Portanto, em primeiro lugar, o jus actionis, politicamente, é visto como instrumento de controle do poder. Ademais, é por intermédio da ação e da constante extensão de sua admissibilidade que se obtêm os bons resultados da abertura do acesso ao processo e à ordem jurídica justa, indispensáveis a um regime que aspire ser substancialmente democrático (DINAMARCO, 2002b, p. 332). Com efeito, a ampliação do conceito de cidadania para além de singela titularidade de direitos políticos stricto sensu enseja uma nova e imediata relação entre a legitimidade para agir e a democracia participativa. O alargamento da legitimação pode ser compreendido como corolário do Estado Democrático de Direito, que deve abrir “caminhos” para a participação popular na gestão do bem comum (MARINONI, 1996, p. 110). O regime de democracia participativa permite (e até incentiva) que a própria comunidade controle o Estado, seja pelos indivíduos mesmos, seja por segmentos organizados, agindo neste último caso em legitimação concorrente-disjuntiva com órgãos e entidades do setor público (MANCUSO, 2011, p. 88). Nessa perspectiva, as ações coletivas compõem instrumental capaz de trazer poderosa influência modernizadora ARGUMENTA - UENP 122 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP ao sistema processual, uma vez que, superando a concepção da ação processual como expressão de um conflito individual, inauguram campo extraordinariamente prolífico para o exercício político da solidariedade, autorizando uma visão comunitária do Direito (SILVA, 2006, p. 319). Como bem destaca ADA PELLEGRINI GRINOVER, o reconhecimento e a necessidade de tutela jurisdicional dos interesses supraindividuais [...] puseram de relevo sua configuração política. Deles emergiram novas formas de gestão da coisa pública, em que se afirmaram os grupos intermediários. Uma gestão participativa, como instrumento de racionalização do poder, que inaugura um novo tipo de descentralização, não mais limitada ao plano estatal (como descentralização políticoadministrativa), mas estendida ao plano social, com tarefas atribuídas aos corpos intermediários e às formações sociais, dotados de autonomia e de funções específicas. Trata-se de uma nova forma de limitação ao poder do Estado, em que o conceito unitário de soberania, entendida como soberania absoluta do povo, delegada ao Estado, é limitado pela soberania social atribuída aos grupos naturais e históricos que compõem a nação. (2000, p. 10) Destarte, o direito de ação também se firma politicamente como instrumento de participação direta no exercício do poder. Frisadas a natureza jurídica e as características do direito fundamental de ação e expostos os seus significados jurídico e político, cabe passar ao exame do alcance normativo do art. 5o., inciso XXXV, da Lei Maior. 2. ANALISANDO A NORMATIVIDADE DO ART. 5º., INCISO XXXV, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL O art. 5o., inciso XXXV, da Constituição da República traz preceito para o qual os estudiosos costumam apresentar variados nomes, todos eles, via de regra, encarados como sinônimos: princípio ou garantia da inafastabilidade do controle jurisdicional ou da inafastabilidade do Poder Judiciário (CÂMARA, 2008, p. 46; DINAMARCO, 2002a, p. 356; MARINONI, 1996, p. 110-111; NERY JR., 2002, p. 98; TESHEINER, 1993, p. 31), garantia do acesso à justiça (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 88), princípio da proteção judiciária (GRINOVER, 1973a, p. 133), garantia da proteção judicial efetiva (MENDES, 2010, p. 591), dentre outros. O enunciado, outrossim, encontra seu primeiro antecedente constitucional expresso no art. 141, § 4o., da Constituição Brasileira de 1946, cuja redação foi reproduzida no art. 150, § 4o., da Constituição de 1967 (posteriormente renumerado para art. 153, § 4o., pela Emenda Constitucional n. 1/ 1969), não obstante haja quem o vislumbre, de forma embrionária, já no art. 179, inciso XII, da Constituição Imperial de 1824 (MENDES, 2010, p. 587; MONIZ ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 123 DE ARAGÃO, 1978, p. 72). Impende notar que o vigente dispositivo se mostra semanticamente mais amplo que seus predecessores: a uma, porque estendida a sua dicção à via preventiva, para englobar a ameaça a direito; a duas, porque suprimida a referência a direitos individuais, presente naqueles (CINTRA; DINAMARCO; GRINOVER, 2010, p. 87). Cumpre, então, fixar-lhe o alcance normativo e verificar em que moldes atualmente disciplina e garante o direito fundamental de ação no ordenamento jurídico pátrio. No ensejo dessas indagações, é de total pertinência a observação de CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO, para quem Os resultados dos modernos estudos de direito processual impõem que se confira à ação uma configuração marcadamente teleológica, não mais restrita aos tradicionais aspectos técnico-jurídicos do instituto e agora voltada à definição dos meios postos à disposição das pessoas para o efetivo acesso à ordem jurídica justa. A garantia constitucional da ação (Const., art. 5o., inc. XXXV), modernamente explorada pelo prisma da inafastabilidade do controle jurisdicional, espelha a tendência expansiva em direção à universalidade da jurisdição, no duplo significado de ampla abertura da Justiça, eliminando resíduos não-jurisdicionáveis, e de busca de soluções capazes de conduzir à efetividade da tutela jurisdicional. Vista assim, a ação é hoje encarada como instituto intimamente ligado aos postulados do Estado-social-de-direito e à ampla garantia do devido processo legal, na extraordinária dimensão com que esta passou a ser considerada. (2002a, p. 356) Nessa mirada teleológica, identificamos no art. 5o., inciso XXXV, da Lei Maior o centro de gravidade ou ponto fulcral de um verdadeiro regime jurídico do direito de ação, estruturado por normas que instituem posições jurídicas subjetivas para os jurisdicionados e para o Estado. Como anota ELIO FAZZALARI (2006, p. 81-82), a norma, além de padrão de valoração de uma conduta, pode e deve ser contemplada sob outros ângulos. Assim, mediante operação lógica, é possível e útil destacar o sujeito a quem a norma se dirige, seguindo o modelo de comportamento pela mesma traçado, e fazer emergir a posição do sujeito em relação à norma, imputando-se a ele a valoração normativa. Tal posição jurídica subjetiva é indicada com os termos faculdade e poder, se a norma valora a conduta como lícita (permitida), e com o termo dever, se a valora como obrigatória. Faculdade e poder se distinguem por consistir a primeira em autorização para a prática de um ato de cunho eminentemente material (por exemplo, usar um bem), ao passo que, no último, à autorização para a prática do ato se soma a atribuição de efeitos jurídicos ao aludido ato, decorrentes da vontade do sujeito (por exemplo, alienar um bem). Faculdade, ARGUMENTA - UENP 124 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP poder e dever são chamados posições jurídicas primárias, em razão de se caracterizarem como básicas ou elementares no relacionamento lógico sujeitonorma, e se combinam para formar outras mais complexas. Ainda de acordo com o mestre italiano (2006, p. 81, 83-86), por intermédio de outra passagem lógica, pode-se ligar o objeto do comportamento regulado pela norma ao sujeito a quem esta assegura situação de proeminência relativamente ao dito objeto, revelando uma posição jurídica de segundo grau: o direito subjetivo. Ao seu turno, o dever, quando correlato a um direito subjetivo, ou seja, quando posto em função da concretização daquela situação de proeminência, é tecnicamente denominado obrigação. A partir do binômio direito subjetivo-obrigação se compõe o esquema da relação jurídica. Por derradeiro, um direito subjetivo pode resultar do agregado de várias normas e, por conseguinte, de várias posições jurídicas. É o que ocorre, entre outros, com o direito de propriedade, composto de faculdades e poderes de uso, fruição e disposição de um dado bem, outorgados ao proprietário deste, e de deveres gerais de abstenção (não-turbação) impostos erga omnes. É também o caso do direito de ação, como passamos a analisar. Transportando os conceitos fundamentais acima elencados com vistas à interpretação mais usual que a doutrina confere ao texto do art. 5o., inciso XXXV, da Carta Magna, constata-se que dele é viável extrair um conjunto de normas, especificamente regras de comportamento, que estabelecem situação de proeminência dos jurisdicionados em geral e impõem deveres ao Estado em função dela, tendo como objeto referencial a prestação jurisdicional. Destarte, reconhecese que esse agregado de normas e de posições jurídicas subjetivas delas derivado configura em favor dos jurisdicionados, sejam pessoas físicas ou jurídicas ou mesmo entes dotados tão-somente de personalidade judiciária (MENDES, 2010, p. 606), um direito subjetivo tocante à exigência da prestação jurisdicional, de natureza pública, porquanto voltado contra o Estado, a quem se imputam os deveres correlatos ou, mais apropriadamente, as obrigações que se conectam àquele e cujo cumprimento fica a cargo de seus órgãos judiciais. Tal direito público subjetivo, formado pelo complexo de normas e de posições jurídicas subjetivas decorrentes, é exatamente o direito de ação, guindado pela Constituição ao patamar de direito fundamental. Confirmada a previsão da ação já no estrato jusfundamental, cabe especificar, ainda em conformidade com a ordem constitucional em vigor, o seu conteúdo enquanto direito subjetivo, inclusive de modo a melhor delimitar as obrigações estatais em função dela e os contornos do próprio objeto que assegura aos seus titulares, repita-se, a prestação jurisdicional. Nesse passo, salienta-se que a orientação teórica mais avançada e afinada com a dogmática dos direitos fundamentais tem conferido ao direito de ação feição bastante ampla e generosa (SARLET, 2009, p. 197), abrangendo posições de vantagem concernentes não só ao fim a que se predispõe, como ainda aos meios necessários a atingi-lo e, quando julgada procedente a pretensão que através de ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 125 seu exercício se deduz, aos resultados prático-jurídicos que desse fim se esperam. Emblemática é a lição de LUIZ GUILHERME MARINONI, concluindo que o preceito insculpido no art. 5o., inciso XXXV, da Constituição Federal significa, a um só tempo, que: […] i) o autor tem o direito de afirmar lesão ou ameaça a direito; ii) o autor tem o direito de ver essa afirmação apreciada pelo juiz quando presentes os requisitos chamados de condições da ação pelo art. 267, VI, do CPC; iii) o autor tem o direito de pedir a apreciação dessa afirmação, ainda que um desses requisitos esteja ausente; iv) a sentença que declara a ausência de uma condição da ação não nega que o direito de pedir a apreciação da afirmação de lesão ou de ameaça foi exercido ou que a ação foi proposta e se desenvolveu ou foi exercitada; v) o autor tem o direito de influir sobre o convencimento do juízo mediante alegações, provas e, se for o caso, recurso; vi) o autor tem o direito à sentença e ao meio executivo capaz de dar plena efetividade à tutela jurisdicional por ela concedida; vii) o autor tem o direito à antecipação e à segurança da tutela jurisdicional; e viii) o autor tem o direito ao procedimento adequado à situação de direito substancial carente de proteção. (2008, p. 221) A respeito da tutela jurisdicional efetiva, e de maneira semelhante, acentuam COMOGLIO, FERRI e TARUFFO (2011, p. 33) que a existência dela representa variável dependente da disponibilidade de remédios processuais construídos realisticamente em função das necessidades que emergem dos diversos tipos de situações substanciais, bem como da eficiência destes remédios em termos de acessibilidade e funcionalidade, o que, reconhecem, afigura-se como hipótese ideal bastante difícil de se realizar em concreto, mas que constitui um sistema de referência pelo qual se devem orientar os ordenamentos processuais. Segundo o trio de mestres italianos (2011, p. 67), a tutela em sentido constitucional, a que tende a ação, vem a implicar: a) a possibilidade séria e efetiva de obter do juiz um provimento que seja compatível e homogêneo com a natureza das situações subjetivas tuteláveis, satisfazendo plenamente a necessidade da tutela para elas invocada; b) a elasticidade e a diferenciação das formas de tutela, em relação às características variáveis dos direitos ou interesses pretendidos com o exercício da ação; c) a relevância garantista das formas de tutela admissíveis, posto que homogêneas com as situações tuteláveis e adequadas ao ponto de lhes conceder o máximo possível de proteção concreta. Assim, conforme frisa EDUARDO CAMBI (2009, p. 218-219), é importante ficar clara, na formulação de técnicas idôneas, a inserção da ação no contexto dos direitos a organização e procedimentos, vistos como direitos tanto ao estabelecimento de determinados institutos processuais ou de certos ritos quanto a uma dada interpretação ou aplicação concreta das normas processuais, vinculando ARGUMENTA - UENP 126 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP simultaneamente o legislador e os órgãos judiciais. Para ele, o art. 5o., inciso XXXV, da Lei Maior não assegura apenas o direito de acesso à justiça, que de nada adiantaria se o processo judicial deixasse de garantir meios e resultados, devendo ser interpretado como um direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva. Fazendo coro a esses ensinamentos, porém de modo ligeiramente diverso, entendemos que do enunciado em apreço, conjugado com os incisos LIV (garantia do devido processo legal), LV (garantias do contraditório e da ampla defesa) e LXXVIII (garantias da duração razoável e da celeridade do processo), todos do mesmo art. 5o., extrai-se, por via interpretativa, uma norma principiológica, dirigida ao legislador e ao Poder Judiciário, que institui o direito público subjetivo fundamental à tutela jurisdicional qualificada pelos predicados de adequação, tempestividade e efetividade. Trata-se de princípio jurídico, eis que sobrelevam o seu caráter imediatamente finalístico e primariamente prospectivo e a pretensão de complementaridade e de parcialidade, demandando, para sua aplicação, a avaliação da correlação entre o estado de coisas a ser promovido e os efeitos decorrentes da conduta havida como necessária à sua promoção (ÁVILA, 2009, p. 78-79). No caso, o estado de coisas a ser promovido é a aspiração axiológica do acesso à ordem jurídica justa, o que evidencia o íntimo liame da aludida tutela jurisdicional qualificada com a garantia do devido processo legal, contemporaneamente traduzida como direito ao processo justo (NERY JR., 2002, p. 32). Ademais, tal princípio se impõe ao legislador, exigindo dele a construção e o desenvolvimento de formas procedimentais e de técnicas processuais aderentes às necessidades do direito material (adequadas, céleres e efetivas), e aos órgãos jurisdicionais, exigindo que, nas situações concretas sob sua apreciação, valhamse daquelas que se mostrarem melhores e mais indicadas para conferir cabal proteção ao interesse ou direito substancial em tese ameaçado ou lesionado, inclusive fazendo as pertinentes adaptações, bem como que, na ausência de lei expressa, supram a omissão impeditiva dessa proteção (CAMBI, 2009, p. 222; MARINONI, 2008, p. 206-207). Do exposto, verifica-se que, no atual panorama constitucional, a expressão tutela jurisdicional não pode mais ser conceituada restritivamente como proteção dada somente a quem tem razão no plano do direito material, tal qual sustentam ENRICO TULLIO LIEBMAN (1980, p. 129), CÂNDIDO RANGEL DINAMARCO (1996, p. 29) e JOSÉ ROBERTO DOS SANTOS BEDAQUE (1997, p. 24), devendo ser compreendida em sentido extensivo, que abarque todas as modalidades e espécies de tutela passíveis de serem concedidas pelo Estado-juiz, sejam elas preventivas ou repressivas, satisfativas ou cautelares, provisórias ou definitivas. LUIZ GUILHERME MARINONI (1996, p. 123) adverte que quem parte da premissa de que só possui direito à adequada tutela jurisdicional aquele que tem razão perante o ordenamento substancial não consegue dar a abrangência necessária à inafastabilidade do controle jurisdicional, que garante a todos, estejam ou não amparados no plano ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 127 material, a adequada tutela jurisdicional. O direito de ação, completa, tem como corolário o direito ao procedimento adequado e à tutela do direito afirmado, pouco importando se aquele que propõe a demanda ostenta, verdadeiramente, o direito material. Nessa linha de raciocínio, entendemos que tutela jurisdicional, em acepção compatível com a promessa constitucional de proteção judicial efetiva (MENDES, 2010, p. 591), há que ser concebida como a proteção real e concreta outorgada por meio da atividade jurisdicional a situações jurídicas subjetivas consideradas relevantes pelo ordenamento jurídico, seja por estarem sujeitas a palpável risco, seja por corresponderem, ainda que prima facie, ao conteúdo de comandos normativos, e independentemente de guardarem natureza substancial ou processual. Ela não se limita ao plano lógico-jurídico, antes e com maior ênfase atuando no mundo empírico, no propósito de ensejar resultados práticos idênticos ou aproximados ao máximo dos que seriam obtidos com a voluntária observância da norma. Outrossim, não faz distinção entre meras pretensões, interesses jurídicos ou direitos definitivamente reconhecidos, de feição material ou instrumental, pondo-se a resguardá-los sempre que dotados de relevância jurídica e carentes de proteção. Tem-se destarte uma conceituação ampla do fenômeno, capaz de colocar sob sua égide toda a tipologia apresentada nas classificações doutrinárias (tutelas preventiva e repressiva; tutelas satisfativa – cognitiva e executiva – e cautelar; tutelas interinal ou provisional e definitiva etc.). Embora alguns juristas preconizem o estudo da tutela jurisdicional como instituto processual autônomo (BUENO, 2010, p. 309; DINAMARCO, 1996, p. 19-20), preferimos enxergar o direito público subjetivo fundamental a ela (qualificada pela adequação, pela tempestividade e pela efetividade) como elemento, aspecto, extensão, modalidade ou prolongamento dos próprios direitos fundamentais de ação e de defesa, nos exatos moldes dos direitos processuais à prova e ao recurso. De fato, a proteção pelo Poder Judiciário pode ser dada tanto ao autor quanto ao réu, o que se explica por conta do paralelismo usualmente visto entre a ação e a defesa, unidas pelo processo, definido como procedimento (adequado) em contraditório. Todavia, como tal paralelismo não significa plena identidade e nem tem caráter absoluto, a tutela jurisdicional apresenta mais intensidade e maior variabilidade quando ligada às posições ativas inerentes ao direito de ação, razão por que, inclusive, em perspectiva que destaca o nexo instrumental da ação, serve-lhe de critério classificatório. Note-se que a tutela jurisdicional, quando conferida ao réu que se manteve em postura exclusivamente defensiva no curso procedimental, resume-se ao juízo de inadmissibilidade, com a extinção do processo sem resolução do mérito, ou a uma sentença de improcedência que muitas vezes sequer declara a inexistência da relação jurídica aventada pelo autor como fundamento de sua pretensão, limitando-se ao non liquet (por exemplo, no julgamento de improcedência por insuficiência probatória da parte do demandante). Diferentes, ao seu turno, são as hipóteses nas quais o ARGUMENTA - UENP 128 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP demandado assume postura ativa e exerce também o direito de ação no mesmo processo, manejando reconvenção ou pedido contraposto, ou das chamadas ações dúplices, em todas elas podendo, desde que obtenha êxito, beneficiar-se das acrescidas intensidade e variabilidade adrede ressaltadas. Esclarecido o vínculo que vislumbramos entre o direito fundamental de ação e o direito fundamental à tutela jurisdicional adequada, célere e efetiva, justifica-se o motivo pelo qual anteriormente conceituamos o primeiro, em uma acepção sintética, como o direito de obter a prestação jurisdicional integral, integralidade esta que tem conteúdo variável e se submete a condicionamentos processuais e materiais. A tutela jurisdicional é um elemento, aspecto, extensão, modalidade ou prolongamento tanto da ação quanto da defesa, e portanto também uma eventualidade relativamente a uma e outra. Isto é, pode ou não ser outorgada ao autor, assim como pode ou não ser outorgada ao réu. Porém, ainda que não seja contemplado com a tutela jurisdicional, o demandante sempre obterá a prestação jurisdicional, que é a resposta devida pelo Estado-juiz ao exercício do direito de ação, inobstante o seu teor. Conforme registra ANTONIO GIDI, […] o direito de ação é o direito subjetivo público do cidadão à prestação jurisdicional devida pelo Estado, vale dizer, o direito a uma sentença. Não a uma sentença favorável, como querem os concretistas; nem a uma sentença de mérito, como propôs, diplomaticamente, Liebman. O direito de ação é um direito a uma sentença de qualquer conteúdo, seja pela procedência do pedido, seja pela improcedência, seja pela extinção do processo sem julgamento do mérito, seja até mesmo pelo indeferimento da inicial. (1990, p. 202) Logo, essa resposta estatal pode ou não vir acompanhada de qualquer uma das modalidades de tutela jurisdicional enumeradas pela doutrina. Dizer que a prestação jurisdicional há que ser integral e que esta integralidade é processual e materialmente condicionada, por outro lado, equivale a afirmar que o autor tem o direito de obter tudo e exatamente aquilo que sua situação concreta lhe garante perante os planos processual e substancial. Assim, se não reúne as condições da ação, a integralidade se dará com a prolação de sentença terminativa. Ainda, se as reúne, porém não ostenta o direito material alegado, a integralidade estará satisfeita com a prolação de sentença de mérito que julgue improcedente sua pretensão. Por derradeiro, se, além de preencher as condições da ação, o demandante vem a demonstrar a existência de seu direito substancial, a integralidade somente se perfará com a entrega da efetiva tutela jurisdicional. Sem prejuízo, em qualquer dessas hipóteses, poderá ele também fazer jus, por exemplo, à tutela provisional ou à tutela cautelar, as quais então deverão compor a aludida integralidade. A previsão das normas que conferem supedâneo ao direito fundamental ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 129 de ação e (em parte, como frisado) ao direito fundamental à tutela jurisdicional qualificada, entretanto, não esgota a normatividade do art. 5o., inciso XXXV, da Constituição da República. Completando o que chamamos de regime jurídico do direito de ação, a partir dele também se estruturam regras de competência que estabelecem verdadeiras garantias institucionais em prol daqueles direitos fundamentais contra investidas dos Poderes Públicos tendentes a tolhê-los indevidamente. Com efeito, trata-se de dispositivo que traz simultaneamente delimitação material, reserva e delimitação substancial (conteudística ou objetiva) de competência. Ao consignar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (grifos nossos), o enunciado delimita materialmente (diz quem pode exercê-la) ao legislador e reserva (diz por meio de que ato jurídico deve exercê-la) à lei a competência para intervenções nos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais de ação e à tutela jurisdicional qualificada. Para exata intelecção acerca de qual órgão legiferante e qual fonte normativa são constitucionalmente aptos a promover tais intervenções, o inciso XXXV do art. 5o. precisa ser conjugado com o art. 22, caput, inciso I, e parágrafo único, com o art. 62, § 1º., alínea b, e com o art. 68, § 1º., inciso II, da Carta Magna, resultando que o legislador há que ser o Poder Legislativo da União e que a lei pode adotar a forma de emenda constitucional, lei complementar ou lei ordinária. As intervenções nos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais em tela, portanto, estão sujeitas a reserva legal simples, isto é, despida de pressupostos ou objetivos específicos a serem observados (SARLET, 2009, p. 392). Significa, por conseguinte, que ao Poder Executivo e ao Poder Judiciário é vedado interferir originariamente sobre eles, impondo-lhes condicionamentos, exigências ou restrições não previstos em lei. Em acréscimo, ao preconizar que “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (grifos nossos), o enunciado delimita substancial, conteudística ou objetivamente, de maneira negativa (diz o que não pode ser feito no seu exercício), a competência para intervenções nos âmbitos de proteção dos direitos fundamentais de ação e à tutela jurisdicional qualificada, proibindo que a lei venha a afastar irremediavelmente do crivo jurisdicional as afirmações de lesão ou ameaça a direito, inclusive no que tange às medidas provisionais e cautelares de que se mostrem carentes (CÂMARA, 2008, p. 4749). Sob outro ângulo, contrario sensu, autoriza-lhe a conformação, a regulamentação e a limitação dos mencionados direitos fundamentais, que no entanto sempre se mostrarão passíveis de controle com base na proporcionalidade e na razoabilidade. Nesse sentido, convém destacar que o exercício da ação, conforme cediço entendimento, não é ilimitado, podendo ser submetido a uma sorte de exigências, cuja ausência caracterizará sua abusividade e inadmissibilidade (COMOGLIO; FERRI; TARUFFO, 2011, p. 278; TORNAGHI, 1953, p. 8). São as adrede ARGUMENTA - UENP 130 JACAREZINHO Nº 18 P. 117 – 134 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP mencionadas condições da ação, que encontram seu fundamento de validade justamente na sobredita possibilidade do legislador federal de balizar o âmbito de proteção do jus actionis. CONCLUSÃO O direito de ação é tido por ampla parcela da doutrina brasileira como um direito subjetivo público, autônomo, abstrato e instrumental, cuja previsão normativa se encontra no art. 5º., inciso XXXV, da Constituição Federal. Trata-se, portanto, de direito dotado de fundamentalidade formal e material que, no quadro empírico-positivo dos direitos fundamentais, cobre a multifuncionalidade deles, e que se insere na categoria dogmática dos direitos a prestações ou a ações estatais positivas, mais especificamente no grupo dos direitos a organização e procedimentos, como direito a procedimento em sentido estrito, embora também possa ser visualizado no âmbito dos direitos a proteção. Sob o ponto de vista jurídico, a ação é consectário da proibição da autotutela e da assunção da administração da justiça pelo Estado, bem como da opção jurídico-política deste pela inércia da função jurisdicional, caracterizando um direito cívico de primeira geração ou dimensão, cujo liame com o conteúdo essencial do Estado de Direito é evidente, e que se viu enriquecido com novas tonalidades face ao advento do Estado Democrático de Direito. Sob a perspectiva política, o direito de ação primeiramente se identifica com a ideia do processo como garantia ativa, mostrando-se um instrumento de controle do poder. Outrossim, a extensão de sua admissibilidade e a ampliação da legitimidade para o seu manejo guardam conexão com a abertura para a democracia participativa e com o fomento do exercício político da solidariedade, fazendo com que a ação também se firme como instrumento de participação direta no exercício do poder. O art. 5o., inciso XXXV, da Lei Maior consubstancia o centro de gravidade ou ponto fulcral de um verdadeiro regime jurídico do direito de ação, estruturado por normas que instituem posições jurídicas subjetivas para os jurisdicionados e para o Estado. Dele é viável extrair, de ínício, regras de comportamento que configuram em favor dos jurisdicionados um direito subjetivo tocante à exigência da prestação jurisdicional, voltado contra o Estado, a quem se imputam as obrigações que se conectam àquele e cujo cumprimento fica a cargo de seus órgãos judiciais. É exatamente o direito de ação, cuja feição, conforme a orientação teórica mais avançada e afinada com a dogmática dos direitos fundamentais, mostra-se bastante ampla e generosa, abrangendo posições de vantagem concernentes não só ao fim a que se predispõe, como ainda aos meios necessários a atingi-lo e, quando julgada procedente a pretensão que através de seu exercício se deduz, aos resultados práticojurídicos que desse fim se esperam. Sobressai, assim, o vínculo do direito fundamental de ação com o direito fundamental à tutela jurisdicional qualificada ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 117 – 134 2013 131 pelos predicados da adequação, da tempestividade e da efetividade, reflexo de norma principiológica construída a partir da conjugação dos incisos XXXV, LIV, LV e LXXVIII, todos do art. 5o. da CF. A previsão das normas que conferem supedâneo ao direito fundamental de ação e (em parte) ao direito fundamental à tutela jurisdicional qualificada, entretanto, não esgota a normatividade do art. 5o., inciso XXXV, da Constituição da República, a partir do qual também se estruturam regras de delimitação material, de reserva e de delimitação substancial (conteudística ou objetiva) negativa e positiva de competência, que estabelecem verdadeiras garantias institucionais em prol daqueles direitos fundamentais contra investidas dos Poderes Públicos tendentes a tolhê-los indevidamente, completando-se o regime jurídico em apreço. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALEXY, Robert. Teoria dos direitos fundamentais. Tradução de Virgílio Afonso da Silva. São Paulo: Malheiros, 2008. ÁVILA, Humberto. Teoria dos princípios: da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 10. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. BEDAQUE, José Roberto dos Santos. 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RESUMO: O trabalho é resultado de investigações sobre a temática do dirieto de proteção dos animais, a responsabilidade ambiental, e com ela a problemática ambiental, tomando como amostra a inação na solução dos conflitos ambientais como resultado de ações de controle executadas no território da prinvíncia de Granma, em Cuba. O problema espécifico consiste em demonstrar a inação por parte dos entes e agentes cm jurisdição e competência para aplicar a legislação em matéria ambiental. Para a verificação dos resultados da pesquisa, os autores buscaram diversos trabalhos sobre o tema da pesquisa, o que permitui abordar a amostra a partir dos anos 2006 até o ano 2010, denotanto que a inação na conflitividade ambiental ainda persiste. Utilizamos como métodos para realizar a investigação o exegético-jurídico, o jurídico-comparado, o histórico-lógico, o de análise-síntese, e o indutivo-dedutivo, que nos tem permitido chegar as conclusões deste texto, afim de demonstrar anecessidade de reformar a atual legislação ambiental, na matéria de responsabilidade ambiental. * Especialista en Derecho de empresas y Derecho Internacional Humanitario. Profesor principal de derecho ambiental y mercantil. Departamento de Derecho. Facultad de Ciencias Sociales y Humanísticas. Universidad de Granma. Cuba. Profesor asistente. Carrera de derecho. Facultad de Ciencias Sociales y Humanísticas. Universidad de Granma. República de Cuba. E-mail: [email protected] ** Máster en derecho internacional. Profesor principal en derecho internacional y teoría del Estado y del Derecho. Vicedecano de investigaciones. Facultad de Ciencias Sociales y Humanísticas. Universidad de Granma. Cuba. Profesor MSc. asistente. Carrera de derecho. Universidad de Granma. República de Cuba. E-mail: [email protected] *** Doctor en Medicina Veterinaria y Máster en tecnologías de la informática. Profesor de medicina veterinaria. Universidad de Granma. Cuba.Profesor MSc. asistente. Médico veterinario. Universidad de Granma. E-mail: [email protected] Artigo submetido em 10 de abril de 2013 Aprovado em 20 de maio de 2013 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 135 RESUMEN: El trabajo es el resultado de investigaciones sobre la temática por parte de los autores, en relación con la protección de los animales, la responsabilidad ambiental, y con ella la problemática ambiental, tomando como muestra el resultado de la inacción en la solución de los conflictos ambientales como resultados de acciones de control ejecutadas en el territorio de la provincia Granma, el problema científico se enfoca en demostrar la inacción por parte de los entes y agentes que con jurisdicción y competencia están facultados para aplicar la legislación en materia de medio ambiente. Para la conformación del artículo nos auxiliamos de diversos trabajos de investigación sobre la temática con una visión epistemológica sobre el tema objeto de investigación, lo que nos permitió abordar la muestra a partir de los años 2006 hasta el 2010, dándole continuidad en permitirnos demostrar que la inacción de la conflictividad ambiental aún persiste. Utilizamos como métodos para realizar la investigación el exegético-jurídico, el jurídico-comparado, el histórico-lógico, el análisis-síntesis, y el inductivo-deductivo, que nos han permitido llegar a las conclusiones en este informe, para poder demostrar la necesidad de reformar la actual legislación ambiental en materia de responsabilidad ambiental. PALAVRAS-CHAVE: Meio ambiente; Conflitos ambientais; Tribunal ambiental; Responsabilidade ambiental. PALABRAS CLAVES: Medio ambiente; Conflictos ambientales; Tribunal ambiental, responsabilidad ambiental. INTRODUCCIÓN Hace algunos miles de años ya, antes de que el hombre imprimiese su propia huella, el paisaje de la tierra se caracterizaba por la presencia de grandes masas de vegetación, no existía la contaminación y el agua era abundante y limpia, en la actualidad esta historia dista mucho de lo real, existe una estrecha relación entre las cuestiones económicas y medioambientales que se condicionan de manera muy notable, ya que el desarrollo de las sociedades y su adaptación evolutiva dependen en gran medida de la utilización de los recursos que existen en la naturaleza, por tanto la protección del medio ambiente ya no resulta un lujo o un capricho, sino que es una de las claves para el desarrollo futuro y la permanencia de la sociedad; ya no se trata solo de proteger al medio ambiente en si sino la supervivencia y el desarrollo sostenible de la humanidad a medio y largo plazo, además de una demanda social en cuanto a los derechos de la salud y determinados estándares de calidad de vida.1 1 Manual para la formación del medio ambiente, pág. 42. Editorial Lex Nova. España. El cual hace referencialmente una explicación pormenorizada en la formación medioambiental, y en particular la auditoria ambiental, como auditoría tipo en la protección medioambiental. ARGUMENTA - UENP 136 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Va quedando lejana en el tiempo la discusión, carente a mi juicio de mucho sentido práctico, acerca de sí la conjunción de los vocablos “medio” y “ambiente” da origen o no a un termino redundante en sí mismo2. Lo cierto es que este concepto ya ha adquirido plenos créditos y por tanto en este trabajo lo emplearemos continuamente, lo cual demanda la necesidad de brindar al respecto una definición integral y coherente. El medio ambiente puede ser conceptualizado de muy diversos modos. Una primera aproximación nos lleva a pensar en los elementos básicos de la vida en la tierra, es decir, el suelo, el agua, la atmósfera y las formas vivas que estos elementos albergan. Esta concepción, si bien no es errónea, no resulta completa, en tanto no incluye las interacciones de estos elementos entre sí y con el hombre en particular. Pero es que hay más, en este proceso de accionar recíproco, donde el hombre desempeña un rol protagónico, surgen nuevos componentes del ambiente, de carácter histórico, cultural, social y estético. Se trata de lo que se ha dado en llamar el “medio ambiente construido”. De este modo, el medio ambiente resulta el “mundo exterior”, pero no un mundo independiente del sujeto a partir del cual se analiza, sino en constante interrelación con el mismo, formando un todo sistemático. Desde que el hombre existe sobre la faz de la tierra, ha estado interactuando con el medio ambiente, modificándolo de muy diversos modos. Se considera que con el uso del fuego el hombre produjo el primer cambio ambiental de importancia, al exterminar plantas locales de insuficiente resistencia y estimular el crecimiento de otras. La agricultura y la ganadería constituyeron también una importante fuente de cambios en el medio ambiente. Empero, como con razón se apunta3 “...no habría cuestión ambiental alguna, si los recursos del Planeta fueren infinitos o si, en tal caso, no se dependiera de ellos para la subsisten-cia; lamentable-mente no es esa la situación y es por ello que devienen los conflictos con el ambiente.” La Ley 33 de 10 de enero de 1981, “De Protección del Medio Ambiente y del Uso Racional de los Recursos Naturales”, Ley Marco del medio ambiente en Cuba, definió el medio ambiente como: “...el sistema de elementos abióticos, bióticos y socioeconó-micos con el que interactúa el hombre, a la vez que se adapta al mismo, lo transforma y lo utiliza para satisfacer sus necesidades.” (Artículo 2) Consideramos 2 Brañes Ballesteros, Dr. Raúl, Manual de Derecho Ambiental Mexicano. Fondo de Cultura Económica. México. 1994, explica (pág. 18)”...la expresión “medio ambiente” presentaba una cierta redundancia interna, cuando ella fue difundida a partir de 1972 y como una secuela idiomática de la ya histórica Conferencia de las Naciones Unidas sobre el Medio Humano (celebrada ese año en la ciudad de Estocolmo). En efecto, el centro de interés de esa Conferencia se fue desplazando del “medio humano” (human environment o environnement humain) al “medio” en general (environment o environnement) por lo que se estimó necesario sustituir la expresión española “medio humano” por otra más apropiada. Pero, en vez de sustituirla por “medio” o “ambiente”, se prefirió acuñar por razones que desconocemos la nueva expresión “medio ambiente”, que en nada contribuía a hacer explícita la idea de “medio” o “ambiente” en general y que, en cambio, se prestaba para las numerosas críticas que se le han hecho...” Sin embargo, reconoce el propio autor que el termino ha adquirido “una cierta legitimidad”, que la Real Academia Española le reconoce, y al efecto cita su 20a Edición (1984) en la que “medio ambiente” aparece incorporado como una expresión de la lengua española que denota “el conjunto de circunstancias físicas que rodean a los seres vivos” y, por extensión, el “conjunto de circunstancias físicas, culturales, económicas, sociales, etc, que rodean a las personas” 3 JAQUENOD DE ZSOGON, Silvia. En “El Derecho Ambiental y sus Principios Rectores” MOPU. España 1989. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 137 este concepto básicamente acertado, en tanto cumple los prerrequisitos que mentamos, al propio tiempo apuntamos que el mismo ha sido desarrollado en la Resolución número 130 de primero de junio de 1995, del Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente, contenti-va del “Reglamento para la inspección ambiental estatal.” la cual, respetando el inicio de la expresión, añade, lo transforma y lo utiliza de manera sosteni-ble para satisfacer sus necesidades” (Artículo 2, quinta pleca)4. La Ley número 81 de 11 de julio de 1997, “Del Medio Ambiente”, que derogara la Ley número 33 y constituye la actual norma marco en esta esfera, reitera, con algún ligero cambio gramatical, el concepto de la Ley número 33. La exclusión de la referencia a la utilización “desarrollo sostenible”, obedece a una enconada discusión que tuviera lugar durante el proceso de elaboración y conciliación de la Ley, cuyo fundamento radicaba en cuestionar si era posible referirse a un uso sostenible de los recursos naturales no renovables. En los intercambio prevaleció el criterio - a mi juicio discuti-ble - de que no era aceptable hablar de sostenibilidad en este contexto. Es por esa razón que salvo alguna excepción, el concepto de sostenibilidad en la Ley se ve constreñido a conjugarse con la idea del desarrollo. La soberanía del Estado abarca a plenitud el medio ambiente y los recur-sos naturales, tanto vivos como no vivos, sobre todo el territo-rio nacional y así lo expresa el artículo 11 de la Constitución el cual dispone el ejercicio de estos derechos soberanos: “a) Sobre todo el territorio nacional, integrado por la isla de Cuba, la Isla de la Juventud, las demás islas y cayos adyacentes, las aguas territoriales y el mar territorial en la extensión que fija la ley y el espacio aéreo que sobre estos se extiende; b) sobre el medio ambiente y los recursos naturales del país; c) Sobre los recursos naturales, tanto vivos como no vivos, de las aguas, el lecho y el subsuelo de la zona económica marítima de la República, en la extensión que fija la Ley conforme a la práctica internacional.”5. Por su parte, el Artículo 2 de la Ley número 81 dispone que “el medio ambiente es patrimonio e interés fundamental de la nación. El Estado ejerce su soberanía sobre el medio ambiente en todo el territorio nacional y en tal sentido tiene el derecho de aprovechar los recursos que lo componen según su política ambiental y de desarrollo.” Y continua afirmando por su Artículo 3 que: “Es deber del Estado, los ciudadanos y la sociedad en general proteger el medio ambiente mediante: a) Su conservación y uso racional; b) La lucha sistemática contra las causas que originan su deterioro; c) Las acciones de rehabilitación correspondientes; d) El constante incremento de los conocimientos de los ciudadanos acerca de las interrelaciones del ser humano, la naturaleza y la sociedad. e) La reducción y eliminación de las modalidades de producción y consumo ambientalmente insostenibles; f) El fomento de políticas demográficas adecuadas a las condicio-nes territoriales”. Hasta el presente Siglo, 4 Sin embargo, y con error, dicha Resolución refiere que esta definición se hace “según se establece en la Ley No.33...”, lo cual, como hemos visto, no es así. 5 DECRETO LEY NO.1 de 24/02/1977, (Gaceta Oficial Ordinaria No.6 de 26/02/1977), establece la extensión del Mar Territorial Por su parte el Decreto Ley No.2 de 24/02/1977, (Gaceta Oficial Ordinaria No.6 de 26/02/1977), define la Zona Económica de la República de Cuba. ARGUMENTA - UENP 138 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP las normas jurídicas dirigidas a la protección de algún componente de lo que hoy entendemos como medio ambiente, se caracterizaban por ser exiguas, dispersas y marcadas por un fuerte carácter utilitario. Si bien las leyes, que son hechas por y para los hombres, no pueden escapar de una tendencia antropocentrista, sí tenemos que ser capaces de comprender que esta óptica, en cuanto a los componentes del medio ambiente se refiere, debe ser supeditado al reconocimiento de sus valores intrínsecos y por tanto, al deber inalienable a ser conservado y utilizado de forma sostenible6 independientemente de la utilidad que el hombre vea en algunos de ellos. Como han reconocido otros autores, aún en los felices casos en que una especie era protegida, no lo era siempre su hábitat y se excluían de la tutela jurídica el resto de los reinos de la diversidad biológica no comprendidos en los de Animalia y Plantae7 y que conforme al momento se caracterizaban como útil, lo que constituía un contrasentido. Esto demostraba la ausencia de un enfoque sistémico al abordar la conservación de algún componente del medio ambiente, lo que no puede atribuirse solo a la falta de conocimientos científicos más profundos y acabados, sino a la existencia de fuertes intereses mercantilistas en las relaciones sociales y que marcaron su impronta en el vínculo, hombre-naturaleza. La idea prevaleciente en las ciencias naturales en la primera mitad del Siglo XVIII, era la de la inmutabilidad de la Naturaleza. La historia de la civilización era vista con un pasado, un presente y un futuro, en que los acontecimientos se sucedían en el tiempo, sin embargo la naturaleza era observada como un ente imperturbable, y estático8. Reflejo de los conocimientos elementales de las ciencias de la época, que no permitían un análisis holístico de la naturaleza.¨ La tarea principal… de las ciencias naturales... consistía en dominar el material que se tenía a mano. En la mayor parte de las ramas hubo que empezar por lo más elemental. La química acababa de liberarse de la alquimia… La geología aún no había salido del estado embrionario que representaba la mineralogía y por ello la paleontología no existía aun. Finalmente en… la biología la preocupación era… la acumulación y clasificación de un inmenso acervo de datos no solo botánicos y zoológicos, sino también anatómicos. Casi no podía hablarse aun de la comparación de las distintas 6 GLOWKA, Lile y otros autores: Persiguiendo el objetivo de destacar el uso sostenible dentro de la conservación, es frecuente utilizar la expresión “conservación y uso sostenible “ de forma tal que ha adquirido vida propia, más no debemos perder de vista que la utilización sostenible de los componentes de la diversidad biológica es un elemento esencial cuando a conservación de los mismos nos estamos refiriendo. La conservación ha dejado de ser una actitud contemplativa, pasiva, idílica para convertirse en un concepto que expresa la interrelación constante dinámica, armónica entre el hombre y el medio natural en el cual esta insertado. Si algún motivo podemos ver en el distingo que se ha hecho entre conservación y sus sostenible, lo podemos encontrar en el argumento expuesto por la UICN en su Guía de Convenio sobre la Diversidad Biológica elaborado cuando nos dice “La separación de los conceptos tiene su origen en los deseos de los países en desarrollo que pretendían enfatizar la importancia de utilizar los componentes de la diversidad biológica de una manera sostenible..... estaban particularmente preocupados que el término conservación si se utilizaba en forma independiente podría poner el énfasis en los aspectos vinculados con la preservación “. “Guía de Convenios sobre la Diversidad Biológica”, Centro de Derecho Ambiental de la UICN, Programa de la Biodiversidad de la UICN, UICN, 1996, pág. 10. 7 MARTINEZ, Eleuterio .Los reinos son moneras, protistas, fungi, plantae y animalia, “Biodiversidad. Suma total de vida “, tomo 1, 1997, pág. 35. 8 ENGELS, F.: “Introducción a la dialéctica de la naturaleza”. Obras Escogidas en dos tomos, Tomo 2, págs. 57-58. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 139 formas de vida, ni de los estudios de su distribución geográfica, condiciones climatológicas y demás condiciones de existencia9. Otra era la posición de la filosofía, ¨ que se esforzó tenazmente para explicar el mundo partiendo del mundo mismo un ejemplo fue Holbach, (17231789) enciclopedista francés, el que en su obra “Sistema de la Naturaleza” alertaba: “El hombre ha sido la obra de la naturaleza, no existe más que en ella y es regido por sus leyes,... Para un ser creado por la naturaleza y sometido a ella, nada existe fuera del conjunto o todo, del que forma parte, y que recibe toda especie de influencias.” Estas palabras de Holbach fueron dichas en un momento en que el desarrollo alcanzado por las ciencias y los conocimientos acumulado por el hombre no habían permitido elaborar un concepto más abarcador del entorno en que se desenvolvía la vida del mismo, que no fuera Naturaleza expresión que define el conjunto de los seres vivos, y hacia la cual el hombre ha mantenido una relación, rodeada a veces de una aureola mística, ideal o de franco respeto, como es el caso del filósofo francés, hacia este Todo, no totalmente entendido ni conocido del que viene la vida10. Debemos apreciar que la esencia de ese planteamiento tiene plena vigencia, es la estrecha interrelación que guarda el hombre con el medio que lo rodea, con su entorno, con el sistema de organismos bióticos, abióticos y emocionales en que esta insertado. En el DRAE11 se expresa esta definición como: se entienden por medio ambiente el conjunto de circunstancias físicas, culturales, económicas y sociales que rodean a las personas y a los seres vivos. Por otra parte si analizamos las Normas técnicas ambientales ISO 14 001, se establece la definición que el medio ambiente es el entorno en el cual una organización opera, incluyendo el aire, el agua, la tierra, los recursos naturales, la flora, la fauna, los seres humanos y sus interrelaciones.12 Por lo que podemos a modo de una primera conclusión que todas estas definiciones implican directamente al hombre, su actividad, su interacción con el medio, y presentan al medio ambiente como el entorno necesario para la vida o el conjunto de factores que interaccionan entre si y con el factor tiempo. 9 ENGELS, F.: obra citada, p. 58. Editora Ciencias Sociales. La Habana. Cuba. MARTÍNEZ, Eleuterio. No existe una clara definición de lo que es la vida. obra citada, pág.60. Diccionario de la Real Academia de la Lengua. España. 2011 12 NORMAS TECNICAS AMBIENTALES ISO 14 001. Sistemas de gestión medioambiental. Oficina Nacional de Normalización. República de Cuba. La Habana. 10 11 ARGUMENTA - UENP 140 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Fuente de recursos naturales Ya que proporcional al ser humano las materias primas y la energía necesaria para la vida y su desarrollo Soporte de actividades Ya que acoge el conjunto de actividades desarrolladas Receptor de efluentes Porque recibe todas las emisiones, vertidos y residuos procedentes de las actividades desarrolladas por el hombre Tipos de recursos Recursos renovables Aquellos que se reproducen o regeneran y son por tanto inagotables Recursos no renovables Aquellos que tienen una existencia limitada, es decir se agotan Fuente utilizada y consultada: Manual para la formación en medio ambiente. España. En el Siglo XIX la Geología nos mostró no sólo las edades geológicas de la tierra sino aquellos huéspedes no parecidos a los que nos acompañan hoy y que demostraron al hombre que la naturaleza esta sujeta a cambio, a un constante nacer y morir13. El Derecho como elemento de la superestructura como rasgo del Estado y el derecho, no estuvo ajeno a estas realidades, no podía ser de otra forma, el desarrollo económico del siglo XIX, marcado por una burguesía en ascenso, ávida de recursos naturales, las limitaciones de las ciencias naturales que no permitían un estudio sistémico de la naturaleza y el hecho real de que la misma era capaz de enfrentar y restablecerse de los daños o impactos ambientales, marco el hecho de que la legislación del momento estuviera dirigida a asegurar la explotación de la flora y la fauna y su protección se mantuviera dentro de los límites de las utilidades, ejemplo significativo del enfoque utilitario en nuestro país lo fue la “Ley de Caza” de 1884, puesta en vigor por Real Decreto de 31 de junio del propio año, la que se parte de lo útil que era para la agricultura una especie para disponer su protección. Ilustraban esta posición dos Apéndices contenidos en la propia ley, uno donde se relacionaban los animales útiles y que debían de ser protegidos, como eran por ejemplo el Cernícalo y la Lechuza y otro referido a animales dañinos como la Cotorra, el Guacamayo y el sinsonte. Similares derroteros mantiene nuestra legislación en la primera mitad del actual siglo y de lo cual es un ejemplo entre otros la “Ley de Caza y Pesca” de 1909 que derogó la de 1884; esta mantuvo su filosofía utilitaria y el lugar que ocupaban estas mismas 13 ENGELS, F: obra citada, págs. 60 y 63. Editora Ciencias Sociales. La Habana. Cuba. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 141 especies en los Apéndices, era bien diferentes, la lechuza y el cernícalo eran dañinos y la cotorra el guacamayo y el sinsonte eran útiles. La Ley de Caza de 1909, fue modificada en 1928, sin aportar nada significativo. Hubo normar jurídicas que de alguna forma estuvieron dirigidas a la protección de determinada especie en peligro de extinción o amenazada, como fueron los casos por ejemplo del Decreto numero 1164 de 14 de junio de 1928 que suspendió por un período de dos años la caza de la paloma rabiche, el Decreto número 844 de 24 de junio de 1930 que declaró la veda permanente de la paloma torcaza y el guacamayo, entre otras aves, y el Decreto número 203 de 1ro de junio de 1928 que establece el Refugio Nacional para Flamingos. Pero la falta de voluntad política y conciencia ciudadana para su cumplimiento hicieron que se convirtieran en muchos casos en letra muerta. Lo útil que le podamos encontrar a un componente del medio ambiente, como consecuencia del nivel de los conocimientos científicos acertados o no, completos o no y del nivel de desarrollo económico logrado, no pueden ser el indicador a tener en cuenta al momento de trazar políticas ambientales y legislar. Analizando nuestra actitud frente al medio ambiente, nos percatamos que la toma de conciencia que de forma creciente se advierte hoy en el mundo sobre este tema, no es más que la respuesta a la que nos hemos visto enfrentado, por el olvido centenario que hicimos de nuestra condición de integrantes de este Todo, al que se refería Holbach. ¨ Lo particular no existe más que en la relación que lleva a lo genera. Lo general existe únicamente en lo particular, mediante lo particular¨14.Ninguna especie, incluida la nuestra el Homo Sapiens, tiene sentido, tiene posibilidad de existencia, sino es insertada dentro de la naturaleza, sino es en una relación con lo general, con la naturaleza, la que a su vez se expresa de una forma u otra, en las características propias, esenciales, particulares de cada especie de cada individuo, en ello tenemos una razón para respetar y conservar la diversidad biológica independientemente de la visión esquemática, superficial y pragmática de su utilidad, todos somos, independientemente de nuestra voluntad un expresión palpitante de lo general, de la naturaleza. El primer mundo ha impuesto un esquema de desarrollo, marcado por el desprecio a todo aquello que no sea multiplicador de ganancias y un abuso desmedido en el uso y disfrute de los recursos naturales, lo que hoy se denomina brecha económica, en todos los casos, sea por autoría intelectual de las tecnologías o los esquemas de desarrollo o por provocarlos objetivamente, los daños a la naturaleza y al medio ambiente, como concepto más abarcador, comenzó por ellos, y cuando los daños llegaron a sus territorios fue cuando comenzaron a preocuparse. Se dieron cuenta que no importa que seas rico o pobre, las afectaciones al medio pone en peligro la vida de todos por igual no nos dejemos llevar del entusiasmo ante nuestras victorias sobre la naturaleza, después de cada una de estas victorias la naturaleza toma sus ventajas. Bien es verdad que la primera consecuencia de 14 LENIN, V.I.: “En torno a la dialéctica”, Obras Escogidas”, Tomo IV, pp. 368-369. ARGUMENTA - UENP 142 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP esta victoria son las previstas por nosotros, pero en segundo lugar y en tercer lugar aparecen unas consecuencias muy distintas, totalmente imprevistas15. Atenta a la necesidad de unos criterios y unos principios comunes que ofrecieran a los pueblos del mundo la inspiración y guía necesaria para preservar y mejorar el medio humano, se reunió en Estocolmo del 5 al 16 de junio 1972, la Conferencia de las N.N.U.U. sobre Medio Humano”. Somos del criterio de que el nombre de dicho evento ¨Medio Humano¨, no es fortuito. Si leemos con detenimiento la Declaración de Estocolmo vemos una fuerte tendencia antropocéntrica, De los 26 principios, solo tres (los principios 4, 6 y 7) se refieren de una forma tímida a los ecosistemas, a la flora y la fauna. En particular, el principio No. 4 expone: ¨El hombre tiene la responsabilidad especial de preservar y administrar juiciosamente el patrimonio de la flora y la fauna,…¨. En otro momento dicho principio se refiere a la planificación racional, ambos términos adolecen de una gran dosis de subjetivismo. Racional y juicioso fue para Felipe II en 1577 su disposición de que le fueran enviados los mejores ejemplares de cedro, ébano y caoba, que hoy lucen transformados por el arte en el monumental retablo del Coro del Escorial16; racional y juiciosa fue para los terratenientes criollos la comunicación enviada por el Real Consulado de La Habana al Soberano en 1798, en que expresaban que los montes cubanos eran inagotables por mucho que se talasen y que era materialmente imposible que el desmonte ejecutado por los particulares pudiese acabar con ellos, a raíz de una disposición del gobierno que prohibió la explotación de los mismos por los particulares para que fueran aprovechadas sus maderas por la marina17, ya a mediado del Siglo XIX Alejandro de Humboldt, apuntaba que la isla se había despoblado de arboles por la excesiva cantidad de terreno que se han desmontado18. La racionalidad y el juicio, en este terreno, responden a condiciones objetivas y subjetivas, cambiantes en extremo, y que por tanto no pueden ser el rasero que imponga la medida de hasta donde se puede utilizar por el hombre un recurso natural, los hechos posteriores a Estocolmo, demostraron no solo la poca efectividad de estos conceptos al momento de legislar trazar políticas y educar, sino además la ausencia de acciones reales y concreta por parte de los gobiernos para enfrentar y solucionar, por encima de interés egoístas los problemas ambientales que ponían en peligro la vida sobre el planeta. Aunque significó sin lugar a dudas, un paso de avance en la lucha por el logro de una conciencia ambientalista en el mundo, sin embargo los hechos posteriores demostraron que lo analizado en Estocolmo no fue suficiente y el medio ambiente continuo siendo agredido. En 1984, un grupo de científicos alemanes detecto signos de deterioro en los bosques y aunque ya era ampliamente conocido el hecho de que la lluvia ácida podía llegar a dejar lagos de agua pura sin rastros de vida, la idea de que también 15 ENGELS, F.: obra citada, p. 58. La Habana. Cuba. COSCULLUELA, J.A. “Cuatro años en la Ciénaga de Zapata”, p. 212. Ibídem, p. 205. 18 Ibídem, p. 212. 16 17 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 143 podía causar un daño generalizado a los bosques era nueva. La tierra perdía 11 millones de hectáreas de bosque cada año en 1983 la cifra es de 17 millones, el territorio de la India en el decenio En 1985, dos científicos británicos informaban de hallazgo de un agujero de ozono sobre la Antártida19. En 1987 la preocupación del mundo ante el deterioro del medio ambiente llevo a la Asamblea General de las Naciones Unidas a acoger por Resolución el establecimiento de una Comisión que elaboraría un informe sobre el Medio ambiente hasta el año 2000. El 16 de junio de 1987 el consejo de administración del Programa de Naciones Unidas para el Medio Ambiente y el Desarrollo (PNUD) adopto la decisión de remitir a la asamblea general de las NN. UU el Informe de la Comisión Mundial sobre el Medio Ambiente y el Desarrollo, conocido como Nuestro Futuro Común20, conocido también como Informe Brundtland por haber sido presentado por la Sra. Gro Harlem Brundtland, Primera Ministra Noruega en aquel entonces21, el que en su preámbulo nos expresa que el medio ambiente no existe como una esfera separada de las acciones humanas, las ambiciones y demás necesidades y las tentativas para definirlas aisladamente de las preocupaciones humanas, han hecho que la palabra propia de “medio ambiente” adquiera una connotación de ingenuidad en algunos círculos políticos. La palabra “desarrollo’ también ha sido reducida por algunos a una expresión muy limitada, algo así como “que las naciones pobres deberían hacer para convertirse en rica”. Pero el medio ambiente es donde vivimos todos, y el desarrollo es lo que todos hacemos al tratar de mejorar nuestra suerte en el entorno en que vivimos. A mediados del siglo XX, vemos nuestro planeta por primera vez desde el espacio.... “Desde el espacio vemos una esfera pequeña y frágil, dominada no por la actividad y las obras humanas, sino por un conjunto de tierra, océano y espacios verdes, la incapacidad humana de encuadrar su actividad en ese conjunto esta modificando, fundamentalmente el sistema planetario. Casi a doscientos años del alerta de Holbach, el Informe Brundtland nos recordaba que no debemos perder de vista el lugar que ocupamos, como un componente más del medio ambiente, si bien fundamental por los impactos significativos que estamos en capacidad de efectuar sobre él. Dentro de sus objetivos se encontraba el proponer una estrategia medio ambiental a largo plazo para alcanzar un desarrollo sostenible, o sea, el ¨ asegurar que se satisfagan las necesidades del presente sin comprometer la capacidad de la futuras generaciones para satisfacer las propias¨ oportunidad que el Informe expresa que debe alcanzar a todos los seres humanos ¨…la satisfacción de la necesidades esenciales exige no solo una nueva era de crecimiento económico para las naciones donde los pobres constituyen la mayoría, sino la garantía de que estos pobres recibirá, las partes que le corresponden de los recursos necesarios 19 BROWN, Lester, R. “La situación en el mundo”, Wordwatch Institute, 1993. BRUNDTLAND, G. H. y otros: Nuestro futuro común. Comisión Mundial sobre Medio Ambiente y Desarrollo, 1987, Londres, Oxford University Press, 1990. 21 Desde 1998, la Sra. Brundtland es Directora de la UNICEF. Sistema de Naciones Unidas. 20 ARGUMENTA - UENP 144 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP para satisfacer este crecimiento… el desarrollo duradero no es un estado de armonía sino un proceso de cambio por el que la explotación de los recurso la dirección de las inversiones, la orientación de los progresos tecnológicos y las modificaciones de las instituciones se vuelven acorde con las necesidades presentes también como futuras22.La definición de desarrollo sostenible expuesta en el Informe no da lugar a dudas, explica en contenido, las metas y el cómo lograrlo. No son los accidentes puntuales que han afectado gravemente ecosistemas específicos, como puede ser el derrame de petróleo en el mar por la colisión de un buque o de fallas en instalaciones petroleras, las que han marcado el signo de alarma para la existencia de vida en el planeta, sino los efectos acumulativos de varios procesos globales, consecuencia fundamentalmente de modelos de desarrollo económicos, marcados por un desprecio hacia todo aquello que no reporte riqueza material y utilitarismo. Cuatro grandes factores globales están poniendo en peligro la vida sobre el planeta y han sido la llamada de atención, sobre otros que son menos evidentes o dramáticos, pero que marcan la necesidad de un enfoque sintético en el análisis del medio ambiente: Disminución de la capa de ozono y la incidencia directa de los rayos ultravioletas en la salud humana, lo que ocasiona la perdida del equilibrio inmunológico, el aumento del cancel, la ceguera y otras aflicciones cutáneas Las causas hay que buscarla en los gases compuestos por cloro, flúor y carbonato, que se utilizan como refrigerantes, aerosoles y solventes, para fabricar plásticos. Efecto invernadero, se vaticina un aumento del clima entre 1.5 y 4.5. Grados centígrados, en los comienzos del próximo milenio. De no controlarse la emisión de gases contaminantes provenientes de los combustibles fósiles, la “boina de plástico” producida por la contaminación del bióxido de carbono amenaza con propiciar el derretimiento de los casquetes polares, el hundimiento de las costas de bajo nivel del mar y la multiplicación de los desiertos improductivos. Deforestación de las selvas tropicales y la pérdida de medio ambiente, si bien aquellos cubren solo el 6 % de la superficie terrestre, contiene por lo menos la mitad de las especies de la flora y la fauna terrestre. La deforestación contribuye a agravar el deterioro de los recursos de agua dulce. Desecho, las industrias no saben que hacer con la basura y en especial las toxinas están acudiendo a los países pobres para que les sirva de basura atómica o residuales peligrosos. Los desechos industriales han destruido la vida acuática en gran parte de los lagos y ríos y el agua contaminada afecta las especies de fauna y flora. Se calcula que ¼ parte de las enfermedades provenientes de esta 22 Ibídem no. 21. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 145 fuente. Por lo tanto, “dos factores han caracterizado la irrupción de la problemática ambiental en el discurso social y político actual; el deterioro objetivo y creciente del medio ambiente y la extensión de la conciencia social de dicha degradación y los procesos que origina para la existencia misma del hombre23. Como otros juristas, entendemos que el Derecho Ambiental, cobra vida a partir de la Conferencia Mundial sobre Medio Humano llevado a cabo en Estocolmo (1972), a partir de allí la comunidad internacional y el particular los que tenemos la difícil tarea de legislar, comenzamos apreciar que la eficacia de la norma jurídica que aborde la problemática ambiental esta determinada fundamentalmente, por la capacidad que tenga la misma de abordar con carácter sintético cada recurso o componente que pretenda conservar. Ser eficaz depende, “ de una adecuada percepción del ambiente, esto es, de que opere sobre la base de que el ambiente constituye un acoplamiento organizado de subsistemas ecológicos funcionalmente interdependientes, constituidos, a su turno, por factores dinámicamente interrelacionados¨24 Veinte años después de Estocolmo y cumpliendo un mandato de la Conferencia se reúnen en Río de Janeiro el 4 de junio de 1992 la “Conferencia de NNUU sobre el Medio Ambiente y el Desarrollo”. Cumbre que dio lugar a una serie de instrumentos jurídicos de carácter internacional como son: La Declaración de Río sobre Medio Ambiente y Desarrollo. Programa 21 Establecimiento de un marco jurídico y Reglamento Eficaz. Convención sobre la Diversidad Biológica. Convenio Marco de la NNUU sobre Cambio Climático.- Declaración de Principio sobre los Bosques de todo tipo. La Declaración de Río con sus 27 principios retoma conceptos y posiciones ya enunciados tanto en Estocolmo como en el Informe Nuestro Futuro Común. El Principio No. Uno, reconoce el papel protagónico del hombre en el desarrollo sostenible, no puede ser de otra forma. El desarrollo sostenible es una categoría creada por el hombre para regular el alcance de su derecho al uso y disfrute de los recursos naturales, partiendo que es la única especie que interactúa con el resto de la diversidad biológica, no solo para sobrevivir sino para desarrollarse individual y colectivamente de forma consciente y no movido por instintos primarios. El Principio Tres, define el marco de este derecho de forma tal que responda equitativamente a las necesidades de desarrollo y ambientales de las generaciones presentes y futuras. Se introduce el elemento necesidades ambientales no contenidos en el Informe Brundtland y Principio Nueve, hace un llamado a la solidaridad para el logro del desarrollo sostenible. Entendemos que este lugar primado que ocupa el concepto de Sostenibilidad es un reconocimiento al papel y la responsabilidad que tiene el hombre en la conservación del medio ambiente. Y aquí se imbrican dos elementos que a los efectos del Tema que estamos tratando, queremos destacar de la Cumbre de Río. ¨La Conservación de la Vida, no es ninguna acción romántica o de compasión por una especie cualquiera que se encuentra el 23 24 RODAS MONSALVE, Julio César: “Fundamentos constitucionales del Derecho Ambiental Colombiano”, págs.5 y 6. Serie de Documentos Legislativos sobre Derecho Ambiental, PNUMA, 1995, pág. 11. Sistema de Naciones Unidas. ARGUMENTA - UENP 146 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP peligro de extinción. La Conservación es algo sumamente superior. Es reconocer que cada especie, tiene un valor intrínseco superior a cualquier valoración o estimación humana. Cada organismo tiene una dignidad y un derecho a la vida que ningún ser humano puede regatearle y mucho menos arrebatarle¨25 Al analizar la Convención sobre Diversidad Biológica, vemos como uno de los planteamientos más significativos, el reconocimiento que hace en su Preámbulo al valor intrínseco de la diversidad biológica. Este pronunciamiento si bien va dirigido al componente ¨ Vida de lo que entendemos como medio ambiente, extiende su imperio al mismo como un todo, partiendo de que la diversidad biológica se sustenta, en un constante flujo y reflujo con otras formas de existencia de la materia y el espacio que la rodea. Es justo señalar que con anterioridad, el Informe Brundtland, había hecho igual pronunciamiento al expresar; “El material genético de las especies silvestres reporta miles de millones de dólares anuales a la economía mundial, en forma de especies mejoradas en vegetales comestibles, nuevos fármacos, medicamentos y materia prima para la industria. Pero aun prescindiendo de la utilidad, hay motivos de orden moral, éticos, cultural, estéticos y puramente científico para conservar las especies silvestres”. La existencia ¨…de los organismos y especies vegetales y animales que pueblan la tierra, surgieron como resultado de un proceso largo y complejo en que la contingencia desempeño un papel capital¨26. Esta singularidad en su surgimiento, que trasciende al hecho mismo, de que todavía hoy la ciencia no logra una definición exacta de su esencia acentúa nuestro deber, como un componente más que somos del Todo del que hablo Holbach, o de lo General a que se refería Lenin, a adecuar nuestra acción como criaturas conscientes, al respeto y conservación del medio ambiente, depositario de este tesoro que es la vida. Aquí retomamos a Holbach “el hombre no tiene ningún motivo para creerse un ser privilegiado por la naturaleza puesto que está sujeto a las mismas vicisitudes que sus demás producciones,...Así como el árbol produce los frutos peculiares de su especie, así el hombre según su energía particular produce sus frutos, que son sus acciones y sus obras igualmente necesarias, se convencería de que en la ilusión que le da tan buena idea del mismo, proviene de que es al mismo tiempo espectador y porción del universo y, al final llegará a conocer que la idea de la excelencia de su ser no tiene un fundamento que el de su propio interés y la producción natural que guarda para consigo mismo”27 Evolución de actuaciones ambientales a nivel mundial:28 25 MARTÍNEZ, Eleuterio: obra citada, pág. 170. PILIPENKO, N: “Dialéctica de lo contingente y lo necesario “, Editorial Progreso, Moscú, 1986, pág. 179. 27 HOLBACH, obra citada, pág. 79. Enciclopedista francés que se anticipo a su tiempo, al señalar la problemática ambiental si el hombre no cumplía las reglas de equilibrio al interactuar con el medio ambiente, donde sus señalamientos están presentes hoy día más que nunca. 28 Ibídem no. 1 págs. 47-49. 26 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 147 1972 Primer informe al Club de Roma Este informe también se denominó los límites del crecimiento, el cual reconoce por vez primera que no puede haber crecimiento económico ilimitado con recursos ilimitados.Se debía actuar de inmediato con el objetivo de frenar el crecimiento demográfico, limitar el consumo de alimentos y materias primas y reducir la contaminación y la producción industrial. 1972 Conferencia de Estocolmo Primera conferencia de la ONU sobre medio ambiente a escala mundial, estuvieron 113 naciones, se crea el PNUMA, que diez años mas tarde se denominaría estrategia mundial de conservación de la naturaleza. 1987 Informe Brundtland Este concepto de desarrollo sostenible se acuña en este informe, publicado con el nombre de Nuestro futuro común, realizado por encargo de la ONU. 1987 Protocolo de Montreal Se asentaron las bases para la progresiva reducción de las sustancias contaminantes que aun hoy agotan la capa de ozono. Las metas para reducir los gases CFC, halones y bromuro de metilo. 1992 Cumbre de la Tierra Su objetivo principal, fue reafirmar la declaración o conferencia de Rio de la ONU ( Estocolmo de 1972) y adoptar un enfoque de desarrollo que protegiera el medio ambiente, mientras se aseguraba el desarrollo económico y social, de la misma surgieron cinco documentos, suscritos por los países participantes: • Declaración de Rio, sobre medio ambiente y desarrollo, se definen derechos y deberes de los Estados. • Convenio sobre la diversidad biológica. • Declaración de principios sobre el manejo, la conservación y el desarrollo sustentable de los bosques. • Convenio marco sobre el cambio Climático. • Agenda 21 o programa 21, su finalidad definir las metas ambientales y el desarrollo en el siglo XXI.Se crearon comités y organizaciones ARGUMENTA - UENP 148 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP como: • El convenio marco de la ONU sobre el cambio climático. • Comisión de las Naciones Unidas para el desarrollo sostenible. 1996 Conferencia Hábitat II Se ejecuta en Estambul, Turquía; sirvió para determinar las bases del programa Hábitat, el cual esta vigente actualmente, caracterizado por un modelo de ciudad encaminado a mejorar las condiciones de vida del hombre, desde la política del desarrollo sostenible y la problemática de la humanidad. 1997 Segunda Cumbre de la Tierra Se celebra en Nueva York, con el objetivo de revisar y determinar los objetivos del estado de compromiso que había sido asumido en la anterior cumbre de la tierra de Rio de Janeiro.Se define un plan de trabajo al constarse lo lejos que aun se estaba de este cumplimiento, definiendo un plan de trabajo para los próximos cinco años ( 1997-2002), definiendo las estrategias nacionales por cada país para un desarrollo sostenible. 1997 Conferencia de Kyoto Este se realiza en Kyoto, Japón se intento llegar a un acuerdo para la protección de clima, definidos en la cumbre de la tierra de 1992. Se pudo comprobar que estábamos muy lejos del cumplimiento de estos. Su mayor logro fue la elaboración, firma y ratificación de una mayoría de los países firmantes (de los no firmantes se destaca los EUA). Documento que recoge medidas para la progresiva reducción de los gases de efecto invernadero. 1998 Protocolo de la protección de la Antártida Se reconoce a la Antártida el interés para toda la humanidad, pues desde 1959 se había firmado el Tratado Antártico, aceptado por 45 países. Fueron acordados: • Se utilizará solo para fines pacíficos. • Promover la cooperación internacional para la investigación científica. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 149 • No se harán nuevas reclamaciones sobre soberanía territorial en la Antártida. • Se prohíbe la eliminación de desechos radioactivos y explosiones nucleares. Finalmente producto de los fuertes movimientos ecologistas mundiales, este tratado se completo recogiéndose en el Protocolo al Tratado de la Antártida sobre la protección al medio ambiente o protocolo de Madrid. 1998 Conferencia de Buenos Aires Su objetivo fue superar los problemas que habían surgido en la cumbre anterior (Kyoto) y revisar estos objetivos. 2001 Acuerdo de Bonn El protocolo de Kyoto establece tres mecanismos de flexibilidad, para facilitar a los países del anexo 1 de esta convención ( países desarrollados y con economías de transición de mercado) la consecución de sus objetivos de reducción y limitación de emisiones de gases de efecto invernadero: • Comercio de emisiones. • Mecanismo de desarrollo limpio. • Mecanismo de aplicación conjunta. Con este acuerdo se busco además estipular los principios y las líneas generales en la utilización de los mecanismos de flexibilidad. 2001 Acuerdo de Marrakech Los principios rectores de los mecanismos de flexibilidad se definieron en el acuerdo de Bonn de 2001, y se recogen en los textos legales de Marrakech 2002 Cumbre de Johannesburgo Cumbre mundial sobre el desarrollo sostenible, su principal objetivo fueron la adopción de compromisos concretos con relación a la agenda 21, así como el logro del desarrollo sostenible 2004 Decima conferencia de Paris Se celebra en Buenos Aires, Argentina. Tiene como objetivo evaluar lo alcanzado hasta ese momento en la Convención y los desafíos futuros teniendo en cuenta la entrada en vigor del protocolo de Kyoto el 16 de febrero de 2005. ARGUMENTA - UENP 150 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 2005 Cumbre Mundial Compromisos y obligaciones de los países en un convenio marco de la ONU sobre el Cambio Climático y el protocolo de Kyoto, para tratar los números desafíos encarados para combatir el cambio climático, promover energías limpias, resolver las necesidades energéticas y lograr el desarrollo sostenible. 2005 Undécima Entre los acuerdos firmados, los mas destacados conferencia de Paris son: • Aprobar los acuerdos de Marrakech • Comenzar el proceso de negociación para el periodo posterior a 2012, 2do compromiso de compromisos del protocolo de Kyoto. El tema como continuidad de artículos escritos por el autor principal y ahora en coautoría en relación con la temática medioambiental, es el resultado de mis experiencias cuando ejercité la función de auditor gubernamental y ahora en el ejercicio de la docencia, tiene como objetivo demostrar la pertinencia de la solución de los conflictos medioambientales como resultado de la responsabilidad ambiental en relación con la protección del medio ambiente y en particular la relacionada con la protección de los animales, hacemos una revisión histórica en relación con la institución jurídica, la base legal que la sustenta en diversas etapas que han sido objeto de análisis, los organismos implicados, haciendo una mirada a la legislación medioambiental y otra a los órganos de control con competencia y jurisdicción, como al resto de los organismos de la Administración Pública que tributan con su legislación a acciones dirigidas a la protección medioambiental. El problema científico de la investigación radica en la inacción en la solución de los conflictos en materia medioambiental. Nos permitirá continuar nuestra labor de investigación en relación con el tema, al abordar en investigaciones posteriores, o si se hará cumplir lo que dispone por la Ley del Medio Ambiente y su trascendencia a la vía jurisdiccional. Como métodos de investigación utilizamos la revisión bibliográfica, tanto de normativas jurídicas nacionales y en torno al derecho comparado, las entrevistas con expertos que ejercitan la auditoría y la inspección ambiental indistintamente en el CITMA, OACEs y en la Contraloría General de la República, los criterios de juristas vinculados a la labor medioambiental, juristas en su labor profesional como fiscales y jueces; hicimos uso del método heurístico, el axiológico, que nos permitieron formarnos un criterio respecto a la institución jurídica analizada, en una dimensión social-jurídica valorativa, que en plano económico nos permitió conocer las aristas del problema científico tratado. Las consecuencias en relación con los actores dentro del contexto ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 151 social, las acciones relacionadas con la modificación del entorno, que tributan a incrementar la cultura jurídica en materia medioambiental, incidiendo de esta forma en las decisiones políticas por parte del Estado y su estrecha relación con la toma de decisiones en el orden económico puedan incidir, en torno a la cultura del impacto. 1. CONSIDERACIONES ACERCA DE LA HISTORIA AMBIENTAL La historia ambiental, como término de uso reciente compartido en ocasiones con los de historia, ecología y eco historia, no constituye una perspectiva interesante nueva de mirar al pasado. Desde siempre, el ser humano se ha preocupado por su relación con el medio natural.29 Es posible decir, sin embargo que la forma en que comienza a verse esta relación en el tiempo por parte de la historia ambiental sí representa un cambio de perspectiva. En lugar de dirigirse de manera predominante a destacar las determinaciones que el medio físico ha imputado a la sociedad, aparece ahora en un lugar preponderante la indagación sobre como la cultura material y espiritual del ser humano ha moldeado y modificado su entorno natural y cuales son sus consecuencias. La historia ambiental se ocupa de las interacciones mutuas del ser humano con el resto de la naturaleza, tal y como expresó un destacado historiador ambiental norteamericano John R. McNeill30, o como indican dos autores primero de España, se trata de “entender la historia como un proceso de evolución entre los humanos y su medio partiendo del carácter inseparable de los sistemas sociales y ecológicos”31. Se considera que el nacimiento formal de la historia ambiental se produjo en círculos académicos norteamericanos y europeos como reacción de los estudios del pasado a la profunda crisis medioambiental de la sociedad contemporánea. No quiere decir que sea este un movimiento exclusivo de historiadores, por el contrario, tiene como novedad el incorporar especialistas de diversas disciplinas bajo el fin común de estudiar los orígenes y antecedentes de muchas de las problemáticas actuales en la relación de los seres humanos con el resto de la naturaleza. La historia ambiental representa un esfuerzo por conectar los resultados de diferentes disciplinas de las ciencias naturales y las ciencias sociales, que no deja de tener el ser humano como protagonista principal, pero que a la vez lo inserte en una red de interacciones sociales, económicas, políticas, biológicas, geofísicas y ecológicas.32 29 MCNEILL, John R. “Historia y Teoría” 2003. págs. 5- 43 Ibídem no. 28. 31 CUNILL, Pedro. “Variables geo históricas sociales en los procesos de degradación del uso rural de la tierra en América Latina”. 32 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. 30 ARGUMENTA - UENP 152 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A lo largo de los últimos veinte años, la persistente combinación de crecimiento económico mediocre e incierto, el deterioro social y la degradación ambiental que aquejan a la América Latina, han estimulado un creciente interés por las formas de interacción entre nuestras sociedades y su medio natural, a lo largo del tiempo, y por las consecuencias que se han derivado de esa interacción para ambas partes. Así ha empezado a tomar forma en nuestra cultura una historia ambiental que, si por un lado se nutre de los desarrollos de esta disciplina en su mundo noratlántico de origen, por el otro va adquiriendo ya perfil y tareas propias en su propio mundo. El punto de origen de este proceso puede ser ubicado a fines de la década de 1970, cuando empezó a manifestarse un creciente interés en los problemas ambientales de la región por parte de organismos internacionales y de algunas instituciones académicas. Y en 1978 el geógrafo Chileno Pedro Cunill33 señaló la necesidad de establecer un horizonte histórico para el análisis de los problemas ambientales, y en 1980 Nicolo Gligo34 y Jorge Morillo35 publicaron un artículo “Notas sobre la historia ecológica de América Latina”, que sintetizaba el estado de la discusión sobre el tema en el marco de la teoría del desarrollo. Tres años después el sociólogo chileno Luis Vitale36 publicó un ensayo concedido, en lo fundamental, como una réplica de izquierda al planteamiento del tema desde la Comisión Económica para América Latina37, que enfatizaba las limitaciones de la teoría del desarrollo para dar cuenta de los costos ambientales del crecimiento económico en la Región. Ese primer momento de Conformación, sin embargo, desembocó en un interregno que se prolonga hasta principio de la década de 1990, cuando las perspectivas de la Conferencia Mundial sobre Medio Ambiente y Desarrollo38, celebrada en Río de Janeiro en 1992 proporcionaron una renovación del interés por el tema en la región. Por contraste, a partir de aquí se inicia un momento nuevo en la evolución de esta historia, en el que las preocupaciones por la llamada “variable ambiental” del desarrollo van cediendo lugar a la reflexión sobre las consecuencias ambientales de lo que había venido acaeciendo realmente en la región39. Para la segunda mitad de la década, este segundo momento había desembocado en una fase nueva de madurez, marcado por aportes como los del colombiano Alberto Flores Malagon y nuevos textos del chileno Pedro Cunill40 Lo fundamental, sin embargo, es que la historia ambiental ya forma parte de la cultura latinoamericana y muy especial en Cuba, desde donde nos ayuda a 33 Ibídem no. 31. Ibídem no. 31. 35 Ibídem no. 31. 36 Ibídem no. 31. 37 Ver dentro del sistema de Naciones Unidas. CEPAL: Comisión Económica para conocer los asuntos de la América Latina, así como el crecimiento en esta materia en esta región del planeta. 38 Consultar texto del informe aprobado en la Cumbre de Rio de Janeiro. 1995. Brasil. 39 Ibídem no. 31. 40 Ibídem no. 31. 34 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 153 comprender de qué manera nuestros problemas ambientales de hoy son la consecuencia de las formas en que han venido siendo organizados nuestras relaciones en el mundo natural a lo largo de los últimos cinco siglos y, en particular, de los últimos cincuenta años. Empezamos a entender así, que cuando se estudia “un acto histórico, o un acto individual”, se ve que la intervención humana en la naturaleza acelera, cambia o detiene la obra de este, y que toda la historia es solamente la narración del trabajo de ajuste, y los combates entre naturaleza extrahumana y la naturaleza humana. Cuba al igual que toda nuestra América se suma en voz propia a la creación de la cultura nueva que, desde todos los rincones del planeta, reclama un desarrollo sostenible por humano que sea y se comprenda una vez más, que solo seremos universales en la medida que seamos auténticos. 2.LA INACCIÓN EN LOS CONFLICTOS AMBIENTALES EN TORNO A LA JUSTICIA AMBIENTAL, PANORAMA CUBANO La Constitución de la República de Cuba41 en su artículo 27 que: El estado protege el medio ambiente y los recursos naturales del país, reconoce su estrecha vinculación con el desarrollo económico y social sostenible para hacer más racional la vida humana y asegurar la supervivencia, el bienestar y la seguridad de las generaciones actuales y futuras. Corresponde a los órganos competentes aplicar esta política. Es deber de la ciudadanía contribuir a la protección del agua, la atmósfera, la conservación del suelo, la flora, la fauna y todo el rico potencial de la naturaleza. Consecuentemente en la práctica trazada por el Partido y el precepto constitucional citado; la Asamblea Nacional del Poder Popular aprobó la Ley número 33 del 10 de enero de 1981 “de protección del medio ambiente y el uso racional de recursos naturales”42, en la que se establecen los principios básicos para la conservación, protección, y mejoramiento del medio ambiente y el uso racional de los recursos naturales conforme con la política integral del país, la Disposición Especial Segunda de esta Ley dispuso que los conflictos de carácter económico que se susciten sobre esta materia los conozca y decida el Órgano de Arbitraje Estatal competente43 y por el Decreto número 119 del 29 de septiembre de 1983 que establece las reglas para determinar la competencia de los órganos de Arbitraje Estatal” facultó a los Órganos de Arbitraje Estatal Territorial y a los adscritos a los organismos de la Administración Central del Estado para conocer y decidir los conflictos ambientales; definiendo que el objeto de la jurisdicción son los conflictos ambientales. La regla Segunda del citado Decreto número 119, al pretender definir el concepto de conflicto ambiental determina su alcance, al expresar que son aquellas cuestiones de carácter económico, contractuales y 41 CONSTITUCIÓN DE LA REPÚBLICA DE CUBA. 1976. Disponible en la página web del Ministerio de Justicia. www.gacetaoficial.cu 42 Ley no. 33, del medio ambiente, derogada por la Ley No. 81, Ley del Medio Ambiente de la República de Cuba. Disponible en el sitio web del Ministerio de Justicia: www.gacetaoficial.cu 43 Consultar normas que establecieron el Sistema de Arbitraje Estatal en Cuba, precedente de la actual sala de los delitos económicos, del Tribunal Popular. ARGUMENTA - UENP 154 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP extracontractuales que se originen en materia de Protección del Medio Ambiente o uso racional de los recursos naturales, por lo que esta regla no se circunscribe estrechamente a las relaciones interempresariales, sino al ámbito económico en general, lo que implica que el arbitraje estatal pudo entrar a conocer cualquier actividad infractora de la protección del medio ambiente o uso irracional de los recursos naturales que tuviera connotación económica, aún en el caso de no poder precisar la agresión, ni poder cuantificar exactamente los daños. En cuanto a las medidas a imponer, el artículo 127 de la Ley número 33 Establece: “Las acciones u omisiones no constitutivas de delito que infrinjan lo preceptuado en la presente Ley u otras disposiciones legales referidas a la protección del medio ambiente y el uso racional de los recursos naturales, son sancionadas con multas administrativas y, en su caso, con medidas de retención, sacrificio, destrucción, decomiso, reembarques, prohibición de descargar, reparación de los daños u otras”. La autoridad administrativa competente en cada caso ordena el cese de la actividad infractora, así como cuando proceda, dicta las medidas necesarias para la restauración, subsanación o rehabilitación de los objetos del medio ambiente o de los recursos naturales dañados, contaminados o perjudicados. Sin embargo el artículo 130 limita estas facultades, y la condicionó a una legislación futura. “El Consejo de Ministros reguló los procedimientos o normas para la protección del medio ambiente y el uso racional de los recursos naturales y define las autoridades administrativas facultadas para ello dentro del Sistema de la Administración del Estado. También reguló el procedimiento para disponer las medidas de rehabilitación o subsanación de la contaminación, daños o perjuicios causados, cuando procediera”44. Analizando que la Ley 33 reguló la competencia del Arbitraje Estatal para los conflictos en esta materia, el Decreto No. 2345 señaló los objetivos del Sistema de Arbitraje Estatal y que éstos fueron órganos especiales de la Administración Central del Estado con funciones de dirección estatal, así como se definió desde el Primer Congreso del Partido Comunista de Cuba la política para la protección y mejoramiento del medio ambiente y el aprovechamiento racional de los recursos naturales y en el Informe Central al Tercer Congreso del Partido Comunista de Cuba46, Fidel analizó que, aunque se ha elevado la conciencia en este sentido el avance en la lucha contra la contaminación ha sido lento y sólo se aprovechan los residuales en un reducido número de instalaciones, los sistemas de tratamiento son deficientes o no funcionan, de los que se colige la posibilidad del Arbitraje de actuar activamente pues si un Órgano de Arbitraje Estatal le dicta 44 Ibídem no. 46 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. 46 Ibídem no. 48. 45 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 155 un plan de medidas a una empresa para que restaure, subsane o rehabilite el medio que afectó, actuaba consecuentemente, no sólo con el espíritu de la Ley, sino al fortalecimiento de la política del Partido; también fue consecuente si dispuso el cese o la interrupción de una actividad infractora que afecte o pueda afectar la economía del país y cuando decide, la reanudación de la actividad una vez eliminada su infracción. Es importante destacar que dentro de las decisiones de la actual política del proyecto social cubano, los lineamientos47 acordados en el sexto congreso del Partido Comunista de Cuba, en el año 2011 y 201248, donde hay disposiciones relacionadas con el tema medio ambiental, que permitirá a la Administración Pública dirigir acciones encaminadas a potenciar la cultura del impacto ambiental, con acciones dirigidas a proteger el medio ambiente por los actores involucrados. El Arbitraje Estatal en este momento histórico conoció de oficio, casos de contaminación ambiental a partir de lo siguiente: Que la contaminación afecte cualquier objetivo económico que el Estado debe tutelar. Que la contaminación se produzca por el uso irracional de los recursos económicos mediante vertimiento o expulsión a la atmósfera de materia primas secundarias, consideradas erróneamente como desechos residuales. Ejemplo: el mosto de los centrales azucareros o los gases sulfurados que expulsan a la atmósfera las industrias que queman petróleo, partiendo de la concepción científica de que no existen residuales industriales inútiles. Que no es necesario que esté precisado o se pueda precisar el damnificado, ni se pueda cuantificar los daños, si es evidente la afectación económica. En los ejemplos expuestos no siempre es medible la afectación económica y sin embargo, es evidente que existió. Los Órganos de Arbitraje Estatal Territorial49 pudieron conocer de los focos de contaminación ambiental que afectan cualquier objetivo económico, dictar planes de medidas que se atemperen a los planes de inversiones que sobre medio ambiente tengan las empresas, o las medidas recomendadas por la Comisión Provincial del medio ambiente. En todos los casos el Arbitraje pudo exigir y controlar, autoritariamente, el cumplimiento de los referidos planes de inversiones o las medidas recomendadas por la citada Comisión Provincial. La interpretación de esta legislación le dio al Sistema de Arbitraje 47 Lineamientos del Partido Comunista de Cuba. 6to congreso 2011. Publicado por el órgano de prensa del propio partido. 2011 48 Conferencia del Partido Comunista de Cuba, publicado por el órgano de prensa cubana del propio partido. 2012. 49 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. ARGUMENTA - UENP 156 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Estatal la posibilidad de pasar a una posición ofensiva en lo concerniente a los “conflictos ambientales”. 3. LA SOLUCIÓN DE LOS CONFLICTOS AMBIENTALES, A LA LUZ DE LA JURISDICCIÓN ECONÓMICA Y CIVIL En principio la Ley número 81 sobre el Medio Ambiente50, no excluye jurisdicción alguna en clara alusión a las diversas responsabilidades que pueden suscitarse; la penal, administrativa contenciosa, civil o económica. La tutela de esos derechos por vía jurisdiccional con preeminencia como se conoce dado el tratamiento penal de nuestro Código que sólo recoge hechos donde se manifiestan conductas que traen impacto negativo en el medio ambiente; pero no está presente el Delito Ecológico ni existe organización de un titulo especial de esa regulación y que su alcance en la norma y la finalidad están muy lejos de la principal tarea de prevención; como tampoco se conoce en las perspectivas de modificaciones inserción alguna de figuras típicas medio ambientales en el Derecho Penal.51 Por lo que al desaparecer y extinguirse el Sistema de Arbitraje Estatal y crearse las Sala de lo Económico en los Tribunales Populares, mediante el Decreto Ley número 129 del año 199152, estas salas de Justicia continuaron aplicando como reglas las de Procedimiento previstas en el Decreto número 89 del 1981, hasta tanto surgieran las futuras modificaciones, con las adecuaciones de la Instrucción número 141 de fecha 27 de septiembre de 199153 del Consejo de Gobierno del Tribunal Supremo Popular. Los conflictos del medio ambiente en la mayoría de los casos se han conocido en las Salas de lo Económico, ratificando el conocimiento de los mismos al Decreto número 223 del 15 de Agosto del 200154, por lo que uno de los puntos controvertidos para determinar la jurisdicción y competencia entre lo Civil y lo Económico, sobre este particular fue el Dictamen número 35055 del Consejo de Gobierno. Sí una u otra jurisdicción era competente para conocer los daños permanentes o eventuales al medio ambiente, el citado Dictamen se manifiesta planteando el principio de unidad de competencia, por lo que cualquier reclamación por conflictos de esa razón será de conocimiento de las Salas de lo Económico. Es criterio que para determinar una u otra jurisdicción se deberá atender a los sujetos que intervienen en el daño acontecido por el impacto negativo medio ambiental y si la causa se origina por la actividad comercial o productiva de los sujetos que intervienen; pero en la práctica forense son casi inexistente reclamos por la vía jurisdiccional de lo Civil. 50 Ley No. 81, Ley del Medio Ambiente. Disponible en el sitio web www.gacetaoficial.cu, Ministerio de Justicia, República de Cuba. 51 Ibídem no. 52 52 Ibídem no. 52 53 Ibídem no. 52 54 Ibídem no. 52 55 Ibídem no. 52 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 157 Al promulgarse el Decreto-Ley número 24156, modificativo de la Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral de 26 de Septiembre del 2006, fue ratificado la competencia de la jurisdicción de las Salas de lo Económico de los Tribunales Populares, cuando expresa que corresponde a éstas Salas el conocimiento y solución de los litigios o conflictos que surjan con motivo del incumplimiento de las regulaciones sobre la protección al medio ambiente y los recursos naturales, o relacionados con daños ambientales, resultante de actividades económicas desarrolladas por personas jurídicas o naturales cubanas o extranjeras, en el territorio nacional, comprendidas las aguas interiores, el mar territorial, la zona económica exclusiva y la plataforma continental; de lo que se colige que cuando existe alguna afectación ambiental entre las familias naturales, es del conocimiento de la jurisdicción civil en un proceso que se caracteriza por las relaciones de vecindad. Indudablemente los jueces deben conocer en principio los instrumentos legales para enfrentar los hechos discurridos a la norma en dichos conflicto; sin lugar a duda de primera importancia debe recurrirse a la Constitución de la República en el conocido artículo 27 que recoge las modificativas de ese texto en el año de 1992 atemperado a los nuevos conceptos de la Cumbre de Río sobre el medio ambiente, el desarrollo sostenible y sustentable57. En el derecho sustantivo tiene una significativa aplicación el Código Civil Cubano, Ley número 59 de 198758, pues es conocido que la mayoría de los asuntos se refieren a la responsabilidad por actos ilícitos que se enmarcan en la responsabilidad civil objetiva conocida como responsabilidad aquiliana o extracontractual ver los artículos 81, 82, 83, 84, 85 inciso (f) , y 86 los que se relacionan con otros de ese propio texto como el artículo 95 y siguiente, la prescripción y caducidad de los derechos que en reclamaciones de la naturaleza apuntada se remite a la Instrucción número 161 de fecha 19 de septiembre del 200059 del Consejo de Gobierno del Tribunal Supremo Popular se establece que el derecho para tales acciones caduca al año y lo relaciona con la prescripción de la acción del inciso d) del artículo 116 del texto legal precitado. Sin lugar a dudas se utiliza como norma fundamental la Ley número 81 sobre el medio ambiente60, cuya preceptiva general permite situar al operador del derecho, los principios, conceptos básicos y objetivos, los instrumentos de la política y la gestión ambiental, planificación, el ordenamiento ambiental, planificación, la licencia ambiental, responsabilidad en que se incurre por daño medio ambiental, entre otras y los recursos naturales objeto de protección, por ser 56 Ibídem no. 52 Ibídem no. 52 58 Ley No. 59, Código civil, el mismo establece la responsabilidad civil en relación con la exigencia de la responsabilidad medioambiental a los actores involucrados dentro del ordenamiento jurídico cubano. 59 Ibídem no. 52 60 Ley número 81, Ley del medio ambiente, donde se establece que el órgano de la Administración Pública con competencia y jurisdicción en materia medioambiental es el Ministerio de Ciencias, Tecnología y medio ambiente, sustituyendo a las disposiciones de la derogada Ley número 33. 57 ARGUMENTA - UENP 158 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP un Derecho Horizontal que deviene en una relación directa con otro cuerpo legales normativos que según el conflicto se debe utilizar, ejemplo: la Ley número 76, de Minas61; la Ley número 85, Forestal62; el Decreto-Ley número 13863, sobre la aguas terrestres, los tratados y acuerdos de esta materia donde Cuba es parte de obligatorio cumplimiento al ser ratificados por la Asamblea Nacional. Actualmente el conocimiento de las Sala de lo Económico de los Tribunales Populares en materia económica se espera alcance en un importante avance al conocerse la Ley de Procedimiento Civil, Administrativo, Laboral y Económico, Decreto-Ley número 241 antes referido, en cuyo tenor se pronuncia en materia medioambiental, en aras de alcanzar el principio de unidad de jurisdicción, que dichas Salas conozcan las demandas que pueden establecer los ciudadanos contra las Entidades Infractoras, a la que posibilita el ejercicio de acciones resarcitorias como de cumplimento, para prevenir el daño ambiental, las que igualmente pudieran ser ejercidas por el Ministerio de Ciencia Tecnología y Medio Ambiente64 o por la Fiscalía General de la República y el Ministerio de la Agricultura en materia de Patrimonio Forestal que refleja que las sentencias dictadas en procesos medio-ambientales referida al daño, no causa estado de cosa juzgada, quedando legitimado el perjudicado para ejercitar nuevas acciones reclamatoria por la continuidad de los efectos del evento daños que haya dado lugar a la misma. En virtud de la Ley número 81 del 11 de julio de 1997 “De Medio Ambiente”, se encomienda a las Sala de lo Económico de los Tribunales Populares, la solución de los conflictos originados por la aplicación de lo que en la misma se dispone, conforme se establezca por el Consejo de Gobierno del Tribunal Supremo Popular sin perjuicio de que sean conocidos y resueltos en sus propias jurisdicciones las materias civiles, penales, contenciosasadministrativo y administrativos-contravencionales que correspondan. 65 Al promulgarse por el Consejo de Estado el día 15 de agosto del 2001, el Decreto Ley número 223 “De la Jurisdicción y Competencia de las Salas de lo Económico de los Tribunales Populares”, en su disposición segunda del Artículo 1, estableció que serán del conocimiento de la Sala de lo Económico, las demandas que promuevan contra las personas naturales o jurídicas descrita en el apartado primero es decir todas las entidades estatales, las sociedades mercantiles y demás entidades privadas, instituciones financieras y organizaciones sociales y de masa, asociaciones y fundaciones, cooperativa, unidades básicas de producción, pequeños agricultores y otras poseedores de tierra, con motivo del incumplimiento de las regulaciones 61 Disposición jurídica que entra a proteger el bien jurídico ambiental, establecidas por la Administración Pública del estado cubano, complementando las regulaciones dispuestas en la Ley marco, Ley no. 81, Ley del medio ambiente. 62 Ibídem no. 64. 63 Ibídem no. 64. 64 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. 65 Ibídem no. 67. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 159 sobre la protección al medio ambiente y el uso racional de los recursos naturales en el desarrollo de sus actividades productivas o de comercio, ya sean promovidas las misma por algunas de éstas personas o por la Fiscalía General de la República o el Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente, de conformidad con la legislación vigente. En tal sentido es donde podemos abordar el tema de la inacción de los organismos competentes en la solución de los conflictos medioambientales desde esa fecha, por cuanto en todo el período de vigencia del Decreto 223 de la “Jurisdicción y Competencia de las Salas de lo Económico”66, no han presentado demanda ante la Sala ni el Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente ni la Fiscalía General de la República67, a pesar de conocerse de muchas infracciones de las regulaciones de la Ley 81 y de otras Leyes que complementan el sistema y que vienen afectando la economía del País y en otros casos también afectan la salud ambiental; conociéndose que por estos organismo se dictan medidas, se imponen multas o se realizan dictámenes para su solución administrativa la que no en todos los casos son materializadas por la necesidad de la proyección de inversiones para la solución del problema planteado, lo que implica la continuidad de la afectación al medio ambiente y a los recursos naturales. El actual órgano de control y fiscalización, la Contraloría de la República y el posterior acuerdo del Consejo de Estado que reglamenta su actuar, le abrogan la función constitucional como órgano supremo del Estado cubano, en materia de fiscalización y control, sobre los órganos del Estado y del gobierno, con subordinación jerárquica al Consejo de Estado, amparados en el artículo 75 de la Constitución cubana. 4. LA SOLUCIÓN DE LOS CONFLICTOS MEDIOAMBIENTALES EN LA SALA DE LO ECONÓMICO DEL TRIBUNAL PROVINCIAL POPULAR EN GRANMA En la provincia Granma la Delegación del Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente desde el año 2002 al 2005, sancionó a sesenta entidades e impuso como medida en la obligación de hacer a cuarenta y un casos y como clausura temporal a tres entidades; asimismo impuso veintinueve multas institucionales y una multa personal, lo que demuestra también una inacción en cuanto al procedimiento administrativo contravencional como parte del derecho administrativo sancionador68, si se tiene en cuenta el nivel de violaciones que en este sentido medioambiental se conoce. Las principales violaciones en este periodo están dada en el incumplimiento de las inspecciones ambientales estatales reguladas por la Resolución número 130 de 199569; el 66 Ibídem número 67. Ibídem no. 69 68 Ibídem no. 69 69 Norma jurídico administrativa que dispone dentro del territorio nacional en el órgano con encargo estatal (CITMA), la inspección estatal en materia medioambiental. La que se ejecuta según cronograma de trabajo anual en relación con la problemática ambiental existente. 67 ARGUMENTA - UENP 160 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP vertimiento de residuales líquidos a la zona costera; el inicio obras sin licencias ambientales y la inadecuada disposición de desechos peligrosos, lo que es de colegir que independientemente a la multa o medida impuesta, debieron haber promovido la demanda judicial a los efectos de obligar a la eliminación del efecto dañoso, a la paralización de la obra o a la indemnización de los perjuicios económicos ocasionados, pues muchos de estos incumplimientos de medidas tuvieron o tienen un impacto negativo sobre el medio ambiente y por consiguiente económico sobre otras entidades que utilizan el recurso natural como es el agua, las costas, los suelos, etc. para el desarrollo de su economía o actividad productiva. Es de apreciar que muchas de estas violaciones no fueron resueltas por la vía administrativa; aunque las sancionadas alegan que no cuentan con inversiones para ejecutar la solución del problema, lo que evidencia que la vía contravencional no resuelve la situación presentada y que utilizando como debía ser, la vía judicial, se hubieran obtenido otros resultados y otras soluciones; de lo que deviene la importancia de la acción de los organismos competentes en los conflictos medio-ambientales. Para demostrar tal apreciación haremos referencias a tres entidades en la provincia que han tenido una influencia en el impacto ambiental negativo con consecuencias plenamente peligrosas sin solución siendo estas las siguientes, de la muestra tomada en ese período; de los procesos presentados ante la vía jurisdiccional en la sala de lo económico del Tribunal Provincial Popular de Granma, analizada la etapa del 2003 al 2006, la Sala de lo Económico hubo de conocer 18 procesos de infracciones al medio ambiente, donde se presentaron demandas por actos ilícitos en los que se incluyen procesos de quema de caña por imprudencia; penetración del ganado a las plantaciones (vianderas, frutales y cañeras) y poda indiscriminada. También se conocieron las demandas por contaminación de las aguas y los suelos pero es de destacar que todas fueran presentada a instancia de la parte afectada, notándose la ausencia de los organismos competentes como es el Ministerio de Ciencia y Tecnología, la Fiscalía General de la República y el Ministerio de la Agricultura, a pesar de las facultades otorgadas primero por el Decreto-Ley 223 del 15 de Agosto del 2001 sobre jurisdicción y competencia de las Salas de lo Económico y luego por el Decreto-Ley 241 del 26 de septiembre del 2006 en franca inobservancia de la voluntad estatal, estando presente la cantidad de infracciones de las regulaciones ambientales. Para mayor conocimiento, hay que destacar que en el año 2001 se aplicaron medidas contravencionales a diferentes instituciones del Estado, y que fue la mayor aplicación que se realizó en esta etapa, pues en el 2002 se redujo, en el 2003 se mantuvo en el rango de quince aplicaciones ; observándose una disminución en el 2004 en que solo se aplicaron siete, y el 2005 que se caracterizó por ser el año más bajo con cinco medidas o sanciones; lo que no se corresponde con la cantidad de infracciones que día a día se vienen cometiendo por las instituciones estatales, lo que demuestra una decadencia en cuanto al actuar administrativo-contravencional que el organismo facultado como el CITMA viene ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 161 obligado a realizar.70 Otro tanto se observa en las entidades que mayor incidencia tienen en la provincia, que sus efectos dañinos o contaminantes están por encima de los niveles de admisión establecidos por las convenciones de que Cuba es firmante; como son los vertimientos de residuales y líquidos agresivos de origen industrial que afectan a las zonas costeras y dañan las especies de plantas y animales presentes en el ecosistema marino y no marino; la no caracterización de los residuales que se vierten, incumpliendo con las normas cubanas de vertimientos lo que ocasiona la contaminación de los ríos de la zona y de los suelos; falta de monitoreo con sistematicidad de los residuales líquidos y falta de un plan para los desechos peligrosos. Analizando todas las entidades sancionadas por las violaciones de la política ambiental en el período 2001-2005, podemos comentar que en su mayoría están fundamentadas en la obligación de hacer, cosa que como ya he explicado no se resuelven tales problemas de afectación al medio ambiente, pues muchas de estas medidas que aplicó el CITMA, están en vías de solución porque requieren de un plan o proyecto de presupuesto para poderse materializar; de lo que se colige, como es nuestra intención, que debían de haberle promovido procesos económicos y que mediante una sentencia todo esto se hubiera resuelto, ya que por la lógica y razón ninguna resolución del Tribunal en estos casos siendo firme, puede ser cuestionada y amerita en la técnica jurídica el cumplimiento por cada uno de los implicados en el proceso o de lo contrario estaríamos en presencia de un delito de desobediencia ante el órgano jurisdiccional competente. El otro periodo analizado recoge la problemática en torno a la política ambiental dentro del tracto del 2006 al 2010, donde el comentario versa sobre las principales contravenciones en la provincia Granma en el período 2005-2010 reguladas por el CITMA y controladas a través de la inspección estatal, las que han sido: • Extracción de arena: este incidente es cuestionable en la empresa constructora al presentarse fundamentalmente devastaciones mineras. • Contaminación ambiental de los residuales de las industrias y por el trabajo manual. Este es un punto fundamental en cuanto a estas incidencias. Es preciso tener en cuenta que cuando se habla de contaminación, de esta se desprende diversas aristas ya sea agua, suelo, aire, ruido. En el período reconocido este ha sido el punto más vulnerable incluyendo la contaminación por ruido, está dado fundamentalmente por la falta de sonómetro en la provincia, una vez que se realicen actividades públicas o particulares, no se pueden tomar otras medidas que las de un llamado de atención o sugerencias. • Contaminación por humo y mal olor. • Planes de manejo: antes de que se llevara a cabo las remodificaciones 70 Ibídem número 73. ARGUMENTA - UENP 162 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP de todos los policlínicos, este era un tema de mucho tratamiento por vertimientos y salida de desechos peligrosos hacia la sociedad. • Deforestación: la actividad de la forestación fue menos común en este período, solo se dio a conocer un solo caso, y fue dado precisamente con el bosquecito de las Caobas situado aquí mismo en Bayamo, pero con solución de carácter inmediato. La actuación del CITMA con respecto a tales incidencias, teniéndose en cuenta que esta institución de la Administración Pública tiene como función principal exigir a las administraciones lo que está establecido aún y cuando existan contravenciones que no estén tipificadas. Para mejores resultados en el cuidado y protección del Medio Ambiente, sobre la base de la Ley número 81, haciéndola aplicar el gobierno y el CITMA exige para su cumplimiento en cada territorio. Tomando medidas administrativas, en relación con la aplicación del derecho administrativo sancionador, a tenor del Decreto Ley 200: en las llamadas paralizaciones definitivas o temporales, también conocidas como clausuras. (Basándose en el retiro de licencias ambientales por extralimitación en determinados impactos ambientales). Del año 2005 al 2009 no hubo ninguna clausura. A diferencia del año 2010, en este si se pronunció una paralización temporal, emitida por la resolución 11 del 2010, dado en el municipio de Pilón por extracción de áridos. En el período estudiado como medidas principales se aplicaron la amonestación, retiro de licencia en correspondencia con este último caso, y como medida accesoria y frecuentada la aplicación de la multa71. Los mecanismos para el conocimiento de estas contravenciones por parte de este organismo de la Administración Central del estado han sido a través de la queja de la población y de los programas nacionales y territoriales de impacto ambiental, según planificación de trabajo. Hay otro aspecto que debemos resaltar, y es que se han puesto muchas multas institucionales y pocas personales, teniendo la carga de su pago el propio Estado a través de sus instituciones, lo que demuestra pasividad por los funcionarios de estas en la solución del daño ambiental.72 Con este artículo no presumimos criticar a los organismos de la administración pública estatal, como el CITMA, la Fiscalía y el MINAGRI; aunque como organismos rectores en el desarrollo de su actividad tienen una responsabilidad por Ley, lo cual no ejercitan de manera adecuada según criterio de los autores, tal vez por desconocimiento o por falta de reglamentación de los organismos superiores donde puedan discernir y decidir con racionalidad y eficacia que acciones pueden realizar en cada momento; si aplicar una contravención, una medida o establecer una demanda ante el órgano jurisdiccional competente. 71 Datos obtenidos en la Delegación Territorial del CITMA Granma, en fecha 3 de noviembre de 2011. Por parte de la oficina de gestión ambiental, donde se ejecutan las inspecciones ambientales territoriales. 72 Ibídem no. 76 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 163 En Cuba este movimiento de la historia ambiental fue casi desconocido; apenas un pequeño grupo de historiadores comenzó a preocuparse por incorporar en sus temáticas la problemática ambiental, pocos geógrafos y científicos naturales se interesan por incorporar la perspectiva histórica en sus investigaciones. Por otra parte se puede mencionar la creciente preocupación por la problemática medioambiental en el país, sobre todo a nivel estatal, pero cada vez más como factor presente en la conciencia colectiva. Amen de que muchas personalidades como Alejandro de Humbolt73, y Antonio Núñez Jiménez74, siempre estuvieron una visión en materia de protección ambiental. Esta justicia económica, como comúnmente se le conoce entre nosotros, era impartida, de manera unipersonal, por árbitros estatales que actuaban no solo a requerimiento de parte afectada, sino también de oficio, pudiendo dar inicio a procesos arbitrales a partir del conocimiento fundado de determinados incumplimientos contractuales o de una afectación medioambiental. Estos órganos, más allá de su clara vocación jurisdiccional, participaban a la vez de la naturaleza y funciones propias de un órgano de control estatal, gozando de plenas facultades para convocar a cualquier entidad y realizar visitas de inspección a las mismas. Esta circunstancia última le imprimía un sello particular a la solución de litigios económicos relacionados con el medio ambiente y el uso racional de los recursos naturales, concediéndole un espacio importante y un protagonismo a los órganos de arbitraje estatal para su conocimiento y solución. La experiencia del funcionamiento de estos órganos de arbitraje estatal en esta esfera contribuyó sensiblemente a la formación de una conciencia ambiental en el sector empresarial, tanto estatal como privado, fundamentalmente en el sector agropecuario, cuya actividad era y en gran medida continúa siendo, mayoritariamente, fuente u objeto de las violaciones de nuestro ordenamiento medio ambiental. Es así que a pesar de la natural inhibición de determinadas funciones anteriormente reconocidas al arbitraje estatal, las Salas de lo Económico han podido en éstos últimos diecisiete años dar continuidad a la labor de solución de litigios relacionados con el medio ambiente, con determinada efectividad, procurando en todos los casos, por todos los medios a su alcance, el desarraigo de las causas que dan lugar a los mismos; lo cual se ha visto sensiblemente favorecido por la especial atención que a la problemática ambiental le han venido dispensando los órganos superiores del Estado y el Gobierno en nuestro país. Ello no obstante, pese a la expresada flexibilidad de las reglas de procedimiento arbitral, los jueces de lo económico han podido constatar la necesidad de contemplar en el nuevo ordenamiento procesal normas expresamente diseñadas para la justicia ambiental y claramente orientadas a dar respuesta a las situaciones de legitimación, práctica de pruebas, medidas cautelares y ejecución de fallos, que adolecieron de falta de 73 Científico de origen alemán, quien realizara estudios en materia medioambiental en Cuba, quien por sus resultados fue catalogado como el segundo descubridor de Cuba. 74 Científico cubano de prestigio internacional, dedicado en su vida a la investigación y protección del medio ambiente, quien trabajó en el CITMA, organismo de la Administración Pública cubana dedicado a la protección del medio ambiente. ARGUMENTA - UENP 164 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP precisión y obligaron a recurrir a construcciones integradoras. Este natural reclamo de la práctica judicial, a su vez, se ve reforzado con la recién adoptada Ley número. 81 “Del Medio Ambiente”, de 11 de julio de 199775, en virtud de la cual el conocimiento de los conflictos que surgen de su aplicación corresponde a las Salas de lo Económico de los tribunales populares, conforme lo establezca el Consejo de Gobierno del Tribunal Supremo Popular, sin perjuicio de que sean resueltas en sus propias jurisdicciones las materias civiles, penales, contencioso-administrativas y administrativo-contravencional. En este sentido se impone tomar en cuenta que, de conformidad con la expresada Ley del Medio Ambiente76, es forzoso considerar legitimados para ejercitar las acciones correspondientes ante los tribunales no solo a las personas o entidades perjudicadas, sino adicionalmente a la Fiscalía General de la República y al propio Ministerio de Ciencia, Tecnología y Medio Ambiente; supuestos estos en los que no se hace coincidir el titular del derecho sustantivo ejercitado y la parte procesal que lo hace actuar, nueva forma de legitimación introducida por la ley medio-ambiental al establecer, taxativamente, quien es el que puede deducir la correspondiente pretensión procesal. Es así que, con arreglo a lo establecido en la Ley número 83, también de 11 de julio de 1997, “De la Fiscalía General de la República”77, le corresponde a ésta ejercer en representación del Estado las acciones judiciales que correspondan conforme a la legislación vigente, en función del interés social, sin perjuicio de las facultades que la propia ley le reconoce para realizar verificaciones fiscales para comprobar el cumplimiento de la Constitución y demás disposiciones legales, con un carácter eminentemente preventivo y asegurador de la observancia de la legalidad, de incuestionable trascendencia al ordenamiento medio-ambiental. Esto aun cuando no deja de estar por resolver de forma concordante en la preceptiva procesal de las expresadas salas de justicia, no deja de conectar, sin embargo, con la experiencia asumida de los procesos de oficio en los marcos del arbitraje estatal, en estado de latencia en la vigente norma procesal. Otro tanto cabría afirmar, con sus matices, respecto a las acciones ejercitables por el CITMA, en tanto organismo rector del sistema de protección medio-ambiental. Estas dos puertas de acceso, a su vez, pudieran ser igualmente portadoras de intereses directos de otros actores individuales o colectivos, no reconocidos de forma expresa en la ley, y que pudieran hacer representar sus intereses por éstas instituciones en los procesos ante las Salas de lo Económico de los Tribunales. No es este el caso aún de las medidas cautelares o asegurativas, las que se encontraban fuera del alcance de los órganos de arbitraje estatal y, consiguientemente, de las Salas de lo 75 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. 76 Ibídem no. 89 77 Ibídem no. 89 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 165 Económico, aspecto éste de marcada relevancia instrumental en el proceso y de especial significación por la diversidad y alcance de las medidas a adoptar con este carácter en el conflicto ambiental. Es de advertir, si embargo, que de conformidad con el artículo 72 de la propia Ley número 8178 “…para asegurar los resultados del proceso o para evitar que se siga causando un daño, se podrán solicitar y adoptar las medidas que franqueen la legislación procesal vigente”, lo cual es posible conectar con el hecho de que en su Disposición Especial Primera; al encomendar a estas salas de justicia el conocimiento de dichos conflictos, indicó que ello habrá de ser de conformidad con lo que establezca el Consejo de Gobierno del Tribunal Supremo Popular, a quién le estaría dado abrir la posibilidad a esta jurisdicción para acudir, para ello, a las normas procesales contenidas en la Ley número 7 de 1977, “Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral”79, como solución transitoria hasta tanto se adoptara la Ley Procesal de las Salas de lo Económico; lo que quedó resuelto mediante el Decreto-Ley número 241 de 26 de Septiembre de 2006, modificativo de la Ley de Procedimiento Civil, Administrativo y Laboral, el cual se denominó Ley de Procedimiento Civil, Administrativo, Laboral y Económico80. En cuanto a los medios de prueba, las reglas de procedimiento arbitral en ese entonces, de aplicación por estas Salas, le confirieron un protagonismo importante al Tribunal, sin límites o encerramientos temporales y con amplias facultades para requerir su presentación por las partes o terceros y plena libertad de apreciación, pudiendo analizarlas globalmente, con toda objetividad y criterio racional, teniendo en cuenta el conjunto de las circunstancias del caso, sin que quepa atribuir a ninguna prueba valor preestablecido alguno. La carga de la prueba, sin embargo parece requerir un tratamiento especial que, en algunos supuestos, pudieran llevar a su inversión. En lo esencial ello es congruente con el objetivo último, anteriormente de los procesos ante los órganos de arbitraje estatal y actualmente de las Salas de lo económico, que lo era y lo continúa siendo el desarraigo de las verdaderas causas que pudieran haber dado lugar al conflicto, lo cual, en nuestra opinión, ha de ser teleológicamente un objetivo cardinal y orientador de todo proceso medio-ambiental. En el proceso, igualmente, el tribunal tiene la posibilidad de adoptar o disponer determinadas actuaciones preparatorias de la comparecencia comprendida a la de decidir le inclusión de terceros, devolver la demanda en caso de acumulación de acciones para su presentación por separado cuando así resulte aconsejable, citar a las partes para precisar aspectos concretos del caso o exigir de las mismas declaraciones, escritos y documentos suplementarios y otras pruebas, así como decidir si se cita o no a 78 Ibídem no. 88 PITA JIMENEZ, Néstor, Informe de tesis de especialidad en derecho civil y familia. “La inacción en la solución de los conflictos ambientales”. Disponible en la Facultad de Derecho. Universidad de Oriente. La Habana. Cuba. Destacado jurista que dedicó muchos años a trabajar en el Tribunal Popular Provincial de Granma, y quien ejerció como Presidente de la sala de lo económico, experto conocedor de la solución de los problemas ambientales a la luz del derecho procesal económico de Cuba y de otros temas relacionados con el trabajo. 80 Ibídem no. 93. 79 ARGUMENTA - UENP 166 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP que declaren en su día funcionarios de entidades que no sean parte en el proceso, o exigir documentos o dictámenes de la misma. Son éstas, actuaciones que a nuestro juicio pueden ser reasumidas en nuestro ordenamiento procesal de lo económico y atemperadas a los requerimientos y particularidades del los procesos del medio ambiente. En un sentido u otro, es lo cierto que las derogadas reglas de procedimiento de aplicación por las Salas de lo Económico en nuestro país, no fueron diseñadas ni concebidas tomando en consideración las exigencias de un proceso medio-ambiental, por lo que, estando justamente inmersos en el procedimiento ordenado mediante el Decreto-Ley 24181, tenemos el claro propósito de que puedan contribuir a elevar la ductibilidad, seguridad y eficacia de sus preceptivas en éstos procesos. Es criterio de los autores que se debe pensar que cuando sea constituida la sala que conocerá los conflictos agrarios, será un escenario ideal para insertar los delitos como resultado de la conflitualidad medioambiental. CONCLUSIONES La problemática en el incumplimiento de la política en materia de protección al medio ambiente persiste, al no existir una cultura del impacto por los actores principales dentro de la Administración Pública cubana en la macro, meso y micro estructuras de la Administración Pública en relación con la dimensión social del problema. Dentro del ordenamiento jurídico cubano no existe una normativa sobre la responsabilidad ambiental. El nuevo órgano de control que se ha encargado para exigir y hacer cumplir lo relacionado con la inacción de los problemas ambientales, es inconstitucional, al no aparecer en la Constitución cubana. Persiste la falta de una adecuada cultura ambiental respecto al impacto, a pesar de que aun se trabaja por los actores con competencia y jurisdicción en crear una conciencia jurídica ambiental, aun a criterio de los autores no lograda, pues no hay percepción del riesgo. Es criterio de los autores que la justicia ambiental debe ventilarse en la vía jurisdiccional en los tribunales ambientales, y no en la actual sala de lo económico, de aprobarse esta en la vía judicial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS BOLAÑOS, Federico. Impacto biológico, problema ambiental contemporáneo. Instituto de Biología. 1990. La Habana. Cuba. 81 Modificación realizada a la actual Ley de trámites cubana, Ley número 7, de procedimiento civil, administrativo y laboral, incluyéndosele el 5to libro, que trata la solución de los conflictos económicos por parte del Tribunal Popular en provincias, a través de la sala de lo económico, quien conoce de los conflictos en materia de medio ambiente. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 135 – 172 2013 167 BRAÑES. Raúl. Memorias del Seminario/Taller: Solución de conflictos ambientales en la vía judicial. Edición CITMA- Universidad de Tulano. México D. F. Mayo 9-11 2000. 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ARGUMENTA - UENP 172 JACAREZINHO Nº 18 P. 135 – 172 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A TIPICIDADE PENAL À LUZ DA MISSÃO DO DIREITO PENAL NO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO CRIMINAL TYPICALITY UNDER THE MISSION OF CRIMINAL LAW IN DEMOCRATIC STATE OF LAW Vinícius Barbosa SCOLANZI* SUMÁRIO: Introdução. 1 Conceitos e características do direito penal. 2 Alguns princípios limitadores do ius puniendi. 2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana. 2.2 Princípio da intervenção mínima. 2.3 Princípio da legalidade. 3 Crítica à aplicação do direito penal. 4 O Estado Democrático de Direito. 5 A missão do direito penal. 6 O conceito analítico de crime. 7 A tipicidade penal inserida no (clássico) conceito analítico de crime. 8 A tipicidade penal sob o enfoque do princípio da ofensividade: o conceito material de delito. Considerações finais. Referências bibliográficas. RESUMO: Este ensaio almeja apresentar um estudo da tipicidade penal sob o enfoque da função primordial que o Direito Penal desempenha em um Estado Democrático de Direito: a proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade. Desenvolvido por meio de revisão bibliográfica, foi possível concluir que o sistema penal somente possui incidência legítima no seio social quando direcionado a condutas que causem lesão, ou perigo concreto de lesão, a bens jurídicos penalmente tutelados. A tipicidade penal oriunda da teoria constitucional do Direito Penal não pode se subsumir apenas à adequação formal da conduta ao tipo penal incriminador, sendo imprescindível, para a proteção dos direitos humanos fundamentais consagrados pelo Estado Democrático de Direito, a adoção de um conceito material de delito. ABSTRACT: This paper aims to present a study about the criminal typicality based on the main function that the Criminal Law develops in a Democratic State of Law: the protection of society’s most important juridical assets. Developed by bibliographic review, the study allowed reaching the conclusion that criminal * Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Ciências Sociais Aplicadas – campus de Jacarezinho/PR. Pós-graduando em Direito de Estado nas Faculdades Integradas de Ourinhos, FIO. Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. E-mail: [email protected]. Artigo submetido em 05 de dezembro de 2012. Aprovado em 25 de março de 2013. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 173 system only can be legitimized when its incidence in the social environment is pointed to conducts that cause damage, or at least a real risk of damage, to juridical assets protected by the Criminal Law. The criminal typicality oriented by the Criminal Law’s constitutional theory can’t subsume only to the formal adequacy of the conduct to the legal dispositive that describes a crime. It is indispensable to protect the human fundamental rights in the Democratic State of Law the adoption of a material concept of crime. PALAVRAS-CHAVE: Direito constitucional penal; Estado Democrático de Direito; tipicidade material; bem jurídico-penal; princípio da ofensividade. KEYWORDS: Constitutional criminal Law; Democratic State of Law; criminal typicality, criminal juridical assets; principle of offensiveness. INTRODUÇÃO É imprescindível à sociedade a existência de normas jurídicas que disciplinem regras indispensáveis à convivência entre os sujeitos que a compõem. Dentre as diversas formas de controle social que visam a esse fim, há aquela que impõe aos indivíduos a proibição à prática de determinadas condutas, em relação às quais se prevê a aplicação de sanções de natureza penal, e cujo conjunto denomina-se Direito Penal. Destarte, o Direito Penal – como instrumento de controle social – exerce função ímpar na sociedade. Busca possibilitar meios para a convivência social pacífica, através do estabelecimento de tipos penais incriminadores e da aplicação de sanções de caráter penal àqueles que, por meio de seus atos, causem lesão ou exponham a risco concreto bem jurídico de outrem, tutelado penalmente. O jus puniendi, no entanto, não pode ser exercido por seu titular (o Estado) de maneira arbitrária. Em razão da gravidade das sanções impostas por seu intermédio – as quais atingem um dos mais valiosos bens individuais existentes: a liberdade – e dos efeitos drásticos que sua aplicação acarreta para a sociedade e para o indivíduo rotulado como “criminoso”, é indispensável que a incidência do Direito Penal se realize em consonância com os princípios constitucionais que o norteiam e, em igual relevância, com a função por ele exercida em um Estado Democrático de Direito: a proteção de bens jurídicos relevantes à convivência social pacífica. Só assim pode-se falar em um sistema penal legítimo e capaz de equilibrar a relação ius puniendi versus ius libertatis. Nesse contexto é que se torna de extrema relevância o tema proposto neste estudo. O Direito Penal, uma vez inserido no contexto de um Estado Democrático de Direito, e tendo em vista que suas sanções, consoante asseverado alhures, recaem sobre um dos bens individuais mais valiosos do ser humano, devese voltar única e exclusivamente à consecução dos fins que legitimam sua ARGUMENTA - UENP 174 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP existência: a proteção de bens jurídicos e a pacificação social. Assim, a única forma de garantir a o devido respeito aos direitos fundamentais e à dignidade da pessoa humana é limitar a incidência das normas penais, condicionando-a aos casos em que haja ocorrido efetiva lesão ou risco concreto a bens jurídicos penalmente tutelados, em efetiva obediência ao princípio da ofensividade. É evidente que a simples submissão de determinada conduta ao tipo penal descrito em lei não autoriza a aplicação do Direito Penal. Deve ele, pois, somente se insurgir contra as condutas efetivamente lesivas à sociedade e, nessa esteira, uma das formas de garantir a correta utilização dos mecanismos penais é analisar o conceito de crime também sob a ótica material, condicionando a sua existência à efetiva lesão (ou risco concreto de lesão) a bens jurídicos tutelados pela norma penal, devendo-se inserir a tipicidade material no conceito analítico de crime, linha de entendimento da qual não pode fugir o estudo do Direito Penal do ius libertatis. A delimitação do alcance da tipicidade penal por meio da adoção do conceito material de delito é absolutamente necessária à proteção dos direitos fundamentais garantidos àqueles que sofrem a sua incidência, ao possibilitar que as condutas que não sejam capazes de causar lesão a bens jurídicos sejam excluídas do âmbito de aplicação do Direito Penal em sua primeira análise, quando da constatação da tipicidade penal. 1 CONCEITO E CARACTERÍSTICAS DO DIREITO PENAL Ao conjunto de normas jurídicas destinadas a possibilitar uma convivência social pacífica dá-se o nome Direito. Trata-se, pois, do arcabouço de princípios e regras jurídicas, caracterizadas pela sua coercibilidade, que denotam uma ordem de conduta humana1 destinada a delimitar o espaço de atuação dos agentes de determinada sociedade, possibilitando uma convivência conjunta. Nas palavras de Reale (2005, p. 1). (…) o Direito é lei e ordem, isto é, um conjunto de regras obrigatórias que garante a convivência social graças ao estabelecimento de limites à ação de cada um dos seus membros. Assim sendo, quem age de conformidade com essas regras comporta-se direito; que não o faz, age torto. Aliada à conceituação predominantemente objetiva, em um aspecto social, o Direito é visto como instrumento de controle social, em relação ao qual asseveram Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 58): O homem sempre aparece em sociedade interagindo de maneira muito estreita com outros homens. Reúnem-se dentro da sociedade em grupos 1 KELSEN, Hans. Teoria pura do direito. Trad. João Baptista Machado. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p. 33-37. Coleção Justiça e Direito. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 175 permanentes, alternativa ou eventualmente coincidentes ou antagônicos em seus interesses e expectativas. Os conflitos entre grupos se resolvem de forma que, embora sempre dinâmica, logra uma certa estabilização que vai configurando a estrutura de poder de uma sociedade, que é em parte institucionalizada e em parte é difusa. O certo é que toda sociedade apresenta uma estrutura de poder, com grupos que dominam e grupos que são dominados, com setores mais próximos ou mais afastados dos centros de decisão. De acordo com essa estrutura, se “controla” socialmente a conduta dos homens, controle que não só se exerce sobre os grupos mais distantes do centro do poder, como também sobre s grupos mais próximos a ele, aos quais se impõe controlar sua própria conduta para não debilitar-se (mesmo na sociedade de castas, os membros das mais privilegiadas não podem casar-se com aquelas pertencentes a castas inferiores). Para possibilitar, portanto, a convivência social pacífica, o Estado se utiliza de instrumentos de controle social, por meio dos quais exerce efetiva tutela dos interesses sociais e resolve os conflitos oriundos da convivência comum. Tais instrumentos variam desde controles propriamente informais e não institucionalizados (alheios à estrutura estatal e decorrentes da própria sociedade) até instrumentos formais, plenamente estruturados e explícitos, como o Direito. Isto posto, o Direito Penal também se apresenta sob dois aspectos. Em um enfoque estático e formal, disserta Bitencourt (2010, p. 32): O Direito penal apresenta-se como um conjunto de normas jurídicas que tem por objeto a determinação de infrações de natureza penal e suas sanções correspondentes – penas e medidas de segurança. Esse conjunto de normas e princípios, devidamente sistematizados, tem a finalidade de tornar possível a convivência humana, ganhando aplicação prática nos casos ocorrentes, observando rigorosos princípios de justiça. Com esse sentido, recebe também a denominação de Ciência Penal, desempenhando igualmente uma função criadora, liberando-se das amarras do texto legal ou da dita vontade estática do legislador, assumindo seu verdadeiro papel, reconhecidamente valorativo e essencialmente crítico, no contexto da modernidade jurídica. Em sua faceta dinâmica, o Direito Penal consiste em um instrumento de controle social. Evidentemente não o único, mas o mais radical de todos, aspecto sobre o qual lecionam Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 24): pode-se definir o Direito penal, do ponto de vista dinâmico e social, como um dos instrumentos do controle social formal por meio do qual o Estado, ARGUMENTA - UENP 176 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP mediante um determinado sistema normativo (leia-se: mediante normas penais), castiga com sanções de particular gravidade (penas e outras conseqüências afins) as condutas desviadas (crimes e contravenções) mais nocivas para a convivência, visando a assegurar, dessa maneira, a necessária disciplina social bem como a convivência harmônica dos membros do grupo. Esse controle social é dinâmico porque está vinculado a cada momento cultural da sociedade. Acompanha as alterações sociais (ou, pelo menos, deveria acompanhá-las). Sob esse aspecto, o Direito Penal confunde-se com o sistema penal2 propriamente dito, conceituado por Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 65) como “controle social punitivo institucionalizado”, e por meio do qual o Estado busca exercer efetivo controle sobre a sociedade, indicando e sancionando condutas inaceitáveis e lesivas aos valores sociais, constituindo, em última análise, meio de criação, efetivação e reafirmação de valores socialmente aceitos. Portanto, denota-se que o Direito Penal comporta, a rigor, duas concepções que se interligam intimamente. Em primeiro lugar, destina-se a permitir a ingerência do Estado na sociedade, a fim de resolver conflitos de natureza penal e promover a pacificação social. Em segundo, consubstancia-se no conjunto de normas e princípios jurídicos que objetivam prever infrações penais e cominar sanções, também de natureza penal, àqueles que as praticam, conferindo, destarte, ao sistema penal, um âmbito plenamente delimitado de atuação. Em relação às características do Direito Penal, sobrepõe-se a subsidiariedade e fragmentariedade. Conforme salientado, embora não seja o único instrumento de controle social existente, o Direito Penal é o mais severo deles, pois impõe sanções que atingem a pessoa humana em um de seus mais importantes direitos: a liberdade. Assim, é forçoso considerar que sua incidência é subsidiária à utilização dos demais sistemas de controle social, estes de aplicação mais branda e benéfica, de maneira que deve o Direito Penal se preocupar apenas com as condutas que, por serem assaz lesivas à sociedade, não foram capazes de ser absorvidas pelos outros instrumentos de controle, o que determina a essência de ultima ratio do controle penal. A esse respeito, novamente nas palavras de Bianchini, Molina e Gomes (2009, p. 27): A pesada máquina estatal da Justiça criminal deve ser reservada para os conflitos mais agudos (ataques intoleráveis a bens jurídicos relevantes) 2 Apesar de ter sido apresentada, nesse ponto, uma estreita ligação entre o Direito Penal sob sua conceituação dinâmica e social e o “sistema penal”, faz-se mister trazer à baila as lições de Nilo Batista (2007), o qual, seguindo o entendimento sustentado por Zaffaroni e Pierangeli, defende a distinção entre “Direito Penal” e “sistema penal”, ao sustentar que o primeiro deve ser entendido apenas sob seu aspecto estático (embora não utilize esta expressão), enquanto o segundo constitui propriamente um instrumento de controle social. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 177 que requeiram um forte “tratamento cirúrgico”. Os conflitos de de menor entidade podem e devem ser solucionados com instrumentos mais ágeis e socialmente menos gravosos. O Direito penal, em suma, é a ultima ratio, isto é, é o último instrumento que deve ter incidência para sancionar o fato desviado (em outras palavras: só deve atuar subsidiariamente). A fragmentariedade, intimamente ligada à subsidiariedade, apregoa que não deve o Direito Penal se ater a todas as lesões a bens jurídicos, mas tão somente àquelas mais graves, direcionadas aos interesses mais relevantes da sociedade e que, por não terem sido absorvidas pelos outros instrumentos de controle social, são capazes de instaurar certa insegurança à convivência comum. De acordo com o entendimento de Munõs Conde (apud, GRECO, 2009, p. 4), (…) nem todas as ações que atacam bens jurídicos são proibidas pelo Direito Penal, nem tampouco todos os bens jurídicos são protegidos por ele. O Direito penal, repito mais uma vez, se limita somente a castigar as ações mais graves contra os bens jurídicos mais importantes, daí seu caráter ‘fragmentário’, pois que de toda a gama de ações proibidas e bens jurídicos protegidos pelo ordenamento jurídico, o Direito penal só se ocupa de uma parte, fragmentos, se bem que da maior importância. Desta feita, em um Estado Democrático de Direito é imprescindível o reconhecimento de que o Direito Penal somente deve atuar no meio social como a última instância do sistema de resolução de conflitos e, ainda assim, desde que estes possuam gravidade ímpar e envolvam bens jurídicos extremamente relevantes à sociedade, dotados de dignidade penal. 2 ALGUNS PRINCÍPIOS LIMITADORES DO IUS PUNIENDI 2.1 Princípio da dignidade da pessoa humana O Princípio da dignidade da pessoa humana encontra-se em posição de destaque no Estado Democrático de Direito e no estudo do Direito Penal do ius libertatis. Mais do que garantia fundamental, a dignidade da pessoa humana está inserida no contexto jurídico como fundamento do Estado brasileiro, consoante se depreende pelo comando inserido no artigo 1º, inciso III, da Constituição Federal, in verbis: Art. 1.º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: I – a soberania; II – a cidadania; III – a dignidade da pessoa humana; IV – os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; V – o pluralismo político (destaque não original). ARGUMENTA - UENP 178 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A busca por um conceito de dignidade não é tarefa fácil3, embora haja, em âmbito doutrinário, diversas definições a seu respeito. Conceituando o termo, Sarlet (2007, p. 62) aduz: (…) temos por dignidade da pessoa humana a qualidade intrínseca e distintiva reconhecida em cada ser humano que o faz merecedor do mesmo respeito e consideração por parte do Estado e da comunidade, implicando, neste sentido, um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos. A importância desse princípio é claramente destacada por Greco (2008, p. 58), ao ponderar que: (…) de todos os princípios fundamentais que foram sendo conquistados ao longo dos anos, sem dúvida alguma, se destaca, entre eles, o princípio da dignidade da pessoa humana. Trata-se, entretanto, como já dissemos anteriormente, de um dos princípios mais fluidos, mais amplos, mais abertos, que podem ser trabalhados não somente pelo Direito Penal, como também pelos outros ramos do ordenamento jurídico. Considerando que a dignidade da pessoa humana se apresenta como fundamento do próprio Estado Democrático de Direito, é inegável que ela condicione também toda produção e aplicação do Direito Penal. Com efeito, erigida como um dos princípios estruturantes (art. 1º, III), a dignidade humana é o fundamento máximo constitucional em matéria penal e, quando da elaboração do ordenamento penal, deixa de ser apenas um imperativo axiológico-normativo-constitucional para se tornar também um imperativo axiológico-normativo-penal. (TAIAR, 2008, p. 76) Aliás, a influência do princípio da dignidade da pessoa humana no âmbito penal é tamanha a ponto de se reconhecer que todos os outros princípios e garantias fundamentais dele derivam. Assim, a dignidade constitui a base na qual todos os 3 “(...) mesmo reconhecendo a sua existência, conceituar dignidade da pessoa humana continua a ser um enorme desafio. Isto porque tal conceito encontra-se no rol daqueles considerados como vagos e imprecisos. É um conceito, na verdade, que, desde a sua origem, encontra-se em um processo contínuo de construção. Não podemos, de modo algum, edificar um muro com a finalidade de dar contornos precisos a ele, justamente por ser um conceito aberto” (GRECO, 2008, p. 55). ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 179 outros princípios limitadores do Direito Penal se assentam. Por essa razão, é inadmissível que se conceba qualquer afronta ao princípio da dignidade da pessoa humana, e esta condição só será garantida na medida em que todos os outros direitos fundamentais também o sejam, pois, novamente consoante salienta Sarlet (2007, p. 87), (…) o que se pretende sustentar de modo mais enfático é que a dignidade da pessoa humana, na condição de valor (e princípio normativo) fundamental que “atrai o conteúdo de todos os direitos fundamentais”, exige e pressupõe o reconhecimento e proteção dos direitos de todas as dimensões (ou gerações, se assim preferirmos). Assim, sem que se reconheçam à pessoa humana os direitos fundamentais que lhe são inerentes, em verdade estar-se-á lhe negando a própria dignidade. Eis, portanto, o valor máximo do Estado Democrático de Direito e do Direito Penal do ius libertatis. 2.2 Princípio da intervenção mínima Em razão do rigor de suas sanções e dos efeitos maléficos oriundos da incidência do Direito Penal, não se pode conferir a ele a tarefa de regular e punir todas e quaisquer condutas capazes de causar lesão a direito alheio. Deve o Direito Penal se insurgir apenas contra as condutas que atinjam a sociedade em seus valores mais caros e, assim, que sejam capazes de causar grande instabilidade e insegurança, abalando a convivência social pacífica. É nesse sentido que se apresenta o princípio da intervenção mínima. Na medida em que o caráter fragmentário do Direito Penal veda a sua incidência sobre toda e qualquer conduta considerada ilícita, senão apenas sobre aquelas que, além de ilícitas, possam causar demasiada instabilidade e insegurança social, o princípio da intervenção mínima, ligado à subsidiariedade do sistema penal4, apregoa que o Direito Penal deve ser considerado a última via de controle social, somente acionado quando a violação à ordem social não puder ser contida pelos outros ramos da Ciência Jurídica, tais como o Direito Civil ou o Direito Administrativo. Orienta, ainda, a construção de um Direito Penal enxuto, no sentido de que deve apresentar normatização restrita e suficiente à consecução dos fins almejados por esse sistema de controle social. Nas palavras de Bitencourt (2010, p. 43), 4 Na linha do entendimento ora esposado, Capez apresenta uma intima ligação entre o princípio da intervenção mínima e o caráter subsidiário do Direito Penal, estudado em outro momento. Observe a passagem: “Da intervenção mínima decorre, como corolário indestacável, a característica de subsidiariedade. Com efeito, o ramo penal só deve atuar quando os demais campos do Direito, os controles formais e sociais tenham perdido a eficácia e não sejam capazes de exercer essa tutela” (CAPEZ, 2007, p. 19). ARGUMENTA - UENP 180 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O princípio da intervenção mínima, também conhecido como ultima ratio, orienta e limita o poder incriminador do Estado, preconizando que a criminalização de uma conduta só se legitima se constituir meio necessário para a proteção de determinado bem jurídico. Se outras formas de sanção ou outros meios de controle social revelarem-se suficientes para a tutela desse bem, a sua criminalização é inadequada e não recomendável. Se para o restabelecimento da ordem jurídica violada forem suficientes medidas civis ou administrativas, são estas que devem ser empregadas e não as penais. Por isso, o Direito Penal deve ser a ultima ratio, isto é, deve atuar somente quando os demais ramos do Direito revelarem-se incapazes de dar a tutela devida a bens relevantes na vida do indivíduo e da própria sociedade. Batista (2007, p. 85) assevera que: O princípio da intervenção mínima não está expressamente inscrito no texto constitucional (de onde permitira o controle judicial das iniciativas legislativas penais) nem no código penal, integrando a política criminal; não obstante, impõe-se ele ao legislador e ao intérprete da lei, como um daqueles princípios imanentes a que se referia Cunha Luna, por sua compatibilidade e conexões lógicas com outros princípios jurídicos-penais, dotados de positividade, e com pressupostos políticos do estado de direito democrático. Além de apresentar uma importante limitação ao ius puniendi estatal, no sentido de reservar ao Direito Penal um caráter de último meio de controle social, preocupado apenas com os fragmentos de ilicitudes incapazes de serem absorvidos pelos outros ramos do Direito, o princípio da intervenção mínima possui atuação impar também no processo de descriminalização5 e despenalização6 do Direito Penal. 2.3 Princípio da ofensividade Visto que o Direito Penal se consubstancia no instrumento de controle social mais drástico e grave dentre todos os existentes, é evidente que sua atuação não pode prescindir da existência de grave lesão, ou da ameaça concreta de lesão, a bens juridicamente relevantes à sociedade, dotados de dignidade penal. Eis, pois, 5 “O processo de descriminalização significa dizer que a conduta deixa de constituir um ilícito penal, quer no âmbito do Poder Legislativo, quando então estamos nos referindo à descriminalização formal, quer no seio social, hipótese em que será uma descriminalização de fato” (ROBERTI, 2001, p. 138-139). 6 “(...) despenalizar significa adotar institutos ou penas e medidas substitutivas ou alternativas, de natureza penal ou processual, que visam a, sem rejeitar o caráter ilícito da conduta, dificultar ou evitar ou restringir a aplicação da pena de prisão ou sua execução ou, ainda, pelo menos, sua redução” (GOMES, apud, ROBERTI, 2001, p. 144). ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 181 o princípio da ofensividade do fato, por meio do qual se suscita a necessidade de grave ofensa a tais bens jurídicos, ou ao menos de ameaça concreta de grave lesão, para que se possa cogitar a existência de crime capaz de impulsionar a aplicação do sistema penal. Consoante preleciona Gomes (2002, p. 29), O princípio da ofensividade – nullum crimen sine iniuria –, como postulado político-criminal nuclear que emana do conjunto axiológico-normativo do Estado Constitucional de Direito, ancorado nos direitos fundamentais, e ainda tendo em consideração o princípio da exclusiva proteção de bens jurídicos, passa a constituir a essência do modelo de delito (injusto) compreendido como fato (típico) “objetivamente” ofensivo, é dizer, fato merecedor da sanção penal porque causou uma lesão ou perigo de lesão ao bem tutelado. Em um Estado Democrático de Direito, amplamente comprometido com a proteção e efetivação dos direitos fundamentais da pessoa humana, não se pode conceber a existência de um Direito Penal desvinculado do princípio da ofensividade. Este, aliás, mais do que mera diretriz destinada a limitar o exercício do ius puniendi, consubstancia-se, em última análise, em um dos pilares de todo o sistema penal. O axioma nullum crimen sine iniuria – que conta com uma inequívoca inspiração liberal e que hic et nunc é admitido como eixo de todo o sistema penal – encontra ressonância constitucional e legal, isto é, encontra eco tanto nos modernos modelos de Estado, que se caracterizam por ser constitucionais e democráticos de direito, como nos códigos e leis penais (BIANCHINI, MOLINA e GOMES, p. 314). A respeito das limitações impostas pelo princípio em comento, verificase que dele decorrem efeitos relacionados tanto à função legiferante criminal (função político-criminal) quanto à própria atividade de interpretação e aplicação da lei penal (função dogmática). Nesse ponto, aduz Bitencourt (2010, p. 52): O princípio da ofensividade no Direito Penal tem a pretensão de que seus efeitos tenham reflexos em dois planos: no primeiro, servir de orientação à atividade legiferante, fornecendo substratos político-jurídicos para que o legislador adote, na elaboração do tipo penal, a exigência indeclinável de que a conduta proibida represente ou contenha verdadeiro conteúdo ofensivo a bens jurídicos socialmente relevantes; no segundo plano, servir de critério interpretativo, constrangendo o intérprete legal a encontrar em cada caso concreto indispensável lesividade ao bem jurídico protegido ARGUMENTA - UENP 182 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP É possível cogitar, ainda, mais um efeito decorrente do princípio da ofensividade. Trata-se da alteridade ou transcendentalidade inerente ao Direito Penal, a qual, para Capez (2007, p. 13), (…) proíbe a incriminação de atitude meramente interna, subjetiva do agente e que, por essa razão, revela-se incapaz de lesionar o bem jurídico. O fato típico pressupõe um comportamento que transcenda a esfera individual do autor e seja capaz de atingir o interesse de outro (altero). Em síntese, considerando a gravidade das sanções impostas pelo instrumento de controle social denominado Direito Penal, bem como tendo em vista a sua primordial função em um Estado Democrático de Direito (qual seja, como se verá adiante, a proteção de bens jurídicos relevantes à convivência social), não há como se sustentar a existência de infração penal sem que dela decorra lesão, ou ameaça concreta de lesão, ao bem jurídico penalmente tutelado, do que se denota que o princípio da ofensividade constitui, ao lado da dignidade da pessoa humana, verdadeiro alicerce de todo o sistema penal comprometido com o ius libertatis. 3 CRÍTICA À APLICAÇÃO DO DIREITO PENAL Consoante ventilado alhures, o Direito Penal apresenta-se como instrumento de controle social, destinado a aferir quais os valores mais caros à sociedade e a protegê-los de condutas capazes de lhes causar grave lesão ou grave exposição a risco concreto de lesão. Essa proteção, sabe-se, é realizada por meio da previsão de sanções penais, as quais possuem alto nível de lesividade e dirigemse à restrição dos direitos mais sagrados da pessoa humana, em especial, a liberdade. É por essa razão que se aduz que o Direito Penal promove a tutela de bens jurídicos através da violação de bens jurídicos. Assim, embora não se possa negar a importância desse meio de controle social para a pacificação de conflitos e para a promoção de uma convivência social pacífica, não se pode deixar de perceber, também, a violência decorrente de sua aplicação, porquanto, consoante preleciona Queiroz (2008, p. 109), Falar em direito penal é falar inevitavelmente de violência, mas não apenas da violência que é caracterizada pelos fatos considerados delituosos (homicídio, latrocínio, estupro), como é falar também da violência que é o próprio direito penal e seus modos de atuação, pois ele é em si mesmo violência, seletiva, desigual, e de discutível utilizada, de sorte que tão grave e importante quanto o controle da violência é a violência do controle. Mas não é apenas em sua sanção que se verifica o malefício do Direito Penal, a legitimar o discurso por uma intervenção mínima e amplamente limitada ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 183 pelos princípios constitucionais penais que o orientam. Também da incidência do controle penal no meio social decorrem efeitos secundários tão danosos, se não mais, quanto a reprimenda aplicada. Da análise crítica e política do Direito Penal depreende-se que a primeira característica que lhe é peculiar diz respeito à seletividade, que ocorre nas duas fases de sua incidência, denominadas criminalização primária e criminalização secundária. Por meio da criminalização primária, segundo aduz Greco (2008, p. 137), “(...) o Estado seleciona determinados comportamentos existentes em nosso meio social, em tese ofensivos a bens jurídicos, proibindo-os ou impondo-os sob a ameaça de uma sanção de natureza penal, mediante uma lei por ele formalmente editada”. Assim, no momento da elaboração dos tipos penais, preocupa-se o Estado em selecionar quais valores deverão ser protegidos e erigidos à posição de bens jurídico-penais. Nesse momento, ocorre a prevalência dos valores mais afetos às classes dominantes, que possuem em suas mãos o poder de legislar, em detrimento daqueles mais caros aos dominados. Já na fase secundária de criminalização, o Estado, antes de direcionar o ius puniendi à repressão de condutas lesivas à sociedade, inicia uma atividade de seleção dos destinatários que receberão a reprimenda penal, os quais, de maneira geral, estão posicionados nas camadas sociais menos favorecidas, quase sempre desprovidas de tutela estatal e de condições dignas de vida. Nesse sentido, Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 56) apontam que: (…) chama também a atenção o fato de que na grande maioria dos casos os que são chamados de “delinqüentes” pertencem aos setores sociais de menores recursos. Em geral, é bastante óbvio que quase todas as prisões do mundo estão povoadas por pobres. Isto indica que há um processo de seleção das pessoas às quais se qualifica como “delinqüentes” e não, como se pretende, um mero processo de seleção das condutas ou ações qualificadas como tais. Acerca desse ponto, apresentando números perturbadores acerca do sistema prisional brasileiro, Sica (2002, p. 51) alerta que: A seletividade é uma marca histórica e indissociável do sistema penal. O ius puniendi, longe de sua conformação contratual, tem sido exercido em função dos interesses de grupos dominantes ou de Estado (se é que ambos estão distantes). Dados do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária apontam que: 2-3 da população carcerária são negros e mulatos; 76% são analfabetos ou semi-alfabetizados; 95% são absolutamente pobres, 98% não têm condições de contratar um advogado e 72% dos processos criminais são ARGUMENTA - UENP 184 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP por roubo e furto. Em razão dessa seletividade, verifica-se que a noção de um Direito Penal igualitário, capaz de se fazer incidir sobre todos os que cometam delitos, por mais penoso que seja, não passa de mero ideal. O controle punitivo institucionalizado dirige-se, quase que em sua totalidade, aos membros das camadas sociais mais pobres, os quais, por sua condição, são muitas vezes compelidos a delinquir (notese, consoante passagem acima colacionada, que a grande maioria dos delitos perpetrados contemplam como objeto jurídico o patrimônio). Os delitos “de colarinho branco” passam, em geral, despercebidos pelo sistema penal, não por serem inofensivos à sociedade (diga-se de passagem, o mal oriundo desses delitos é tão grave, se não mais, quanto de quaisquer outros), mas sim porque seus agentes, pessoas dotadas de boa condição financeira, status social e com aparência de bem sucedidas, não foram selecionados pelo Direito Penal como “delinquentes”. Nessa perspectiva, operam outras duas características do controle social penal: o etiquetamento e as chamadas cifras ocultas. As cifras ocultas se referem ao fato de que o Direito Penal não se insurge contra todas as condutas lesivas aos valores sagrados da sociedade, agindo em um ínfimo número delas, quais sejam, aquelas condutas que afetam os bens tidos como importantes para a classe dominante e que tenham sido praticadas por agentes selecionados para sofrer a incidência do controle punitivo institucionalizado. A teoria do etiquetamento (labeling approach), desenvolvida pelo sociólogo Emile Durkhein, aponta que o Direito Penal, ao selecionar e punir os destinatários de suas normas, rotula-os como criminosos, fazendo com que toda a sociedade, a partir desse momento, passe a considerá-los como tal, presumindo, em muitos casos, a sua periculosidade. Nas palavras de Greco (2008, p. 43-44), O processo de etiquetamento induz que, a partir do momento em que o sujeito delinqüe, a sociedade já passa a estigmatizá-lo como delinqüente. Aquele que praticou o delito já começa a ser reconhecido por ele próprio como marginal. Uma vez adquirido o status de desviado ou de delinqüente, é muito difícil modificá-lo, por duas razões: a) pela dificuldade da comunidade aceitar novamente o indivíduo etiquetado; b) porque a experiência de ser considerado delinqüente, e a publicidade que isso comporta, culminam em um processo no qual o próprio sujeito se concebe como tal. Ademais, é nítido o fato de que o processo de seleção e rotulação dos ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 185 delinquentes lhes confere, justamente pela ausência de perspectivas de reabilitação e de melhoria de suas condições, incentivo para a prática reiterada de crimes, o que culmina com a criação de uma verdadeira carreira delituosa. Sobre esse aspecto, prelecionam Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 71): O sistema penal, em um significativo número de casos, especialmente em relação aos delitos patrimoniais – que são a maioria –, promove condições para a criação de uma carreira criminal. Particularmente, dentre as pessoas originárias das camadas mais humildes da sociedade, o sistema seleciona aqueles que, tendo caído em uma primeira condenação, surgem como bons candidados a uma segunda criminalização, levando-os ao ingresso no rol dos desviados, como resultado do conhecido fenômeno psicológico do “bode expiatório”. Induvidosamente, isto constituiu uma inqualificável violação dos Direito Humanos, e o sistema penal, ao insistir com a pena, nada mais faz do que engrossar esse rol, e até leva o indivíduo à destruição. Conclui-se, portanto, que o Direito Penal, por meio da seleção dos valores a serem protegidos e da escolha daqueles que serão tratados como “delinquentes”, contribui para a chamada verticalização da sociedade, aumentando a repressão das classes menos favorecidas e trabalhando, em última análise, como meio de perpetuação do poder e de promoção das desigualdades sociais. Nesse ponto, a corroborar o entendimento sustentado por esse singelo ensaio, é que se emprega ao Direito Penal do ius libertatis, intimamente ligado aos princípios limitadores do ius puniendi (em especial, ao princípio da ofensividade e da intervenção mínima) e aos valores da dignidade da pessoa humana, a função de limitar o âmbito de atuação criminal e de diminuir os efeitos nefastos que dela derivam. 4 O ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO O estudo científico acerca de um sistema punitivo suscita a análise do modelo teórico de Estado no qual se pretende vê-lo inserido, porquanto, de acordo com os ensinamentos de Queiroz (2008, p. 113), Definir os fins e os limites do direito de punir pressupõe, por conseguinte, conhecer os fins e os limites do próprio Estado. E o faz a Constituição Federal, explícita ou implicitamente, fixando as bases e os limites do direito penal, que é o braço armado da Constituição Nacional. Os limites do direito penal são os limites do Estado. Nessa toada, não se pode conceber o estudo do modelo punitivo em testilha, consubstanciado em um Direito Penal minimalista e intimamente ligado aos valores da dignidade da pessoa humana e aos princípios dela decorrentes, sem que esteja ele inserto no modelo teórico ditado pelo Estado Democrático de Direito. Afinal, ARGUMENTA - UENP 186 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP A solução ou a supressão dos conflitos acontece de acordo com o modelo preponderante (Estado de Polícia ou Estado de Direito). No primeiro, a supressão dos conflitos ocorrerá com base na disciplina hierarquicamente estabelecida. Parte-se da ideia de que, se cada indivíduo se mantiver em seu nível hierárquico, não haverá conflitos. (…) Já no segundo, buscarse-á, sempre, a resolução dos conflitos, possibilitando, desta forma, a manutenção da paz social. A solução almejada visa satisfazer ambas as partes, tendo como pressupostos as normas já estabelecidas. Verifica-se, no Estado de Direito, uma preocupação com todos os envolvidos no conflito e com o respeito às normas preexistentes, independentemente de quem venha a favorece, visto que todos são considerados igualmente dignos. Está claramente presente nesta perspectiva de Estado o respeito ao princípio da igualdade. (CANTERJI, 2008, p. 64/65). Diante desse contexto, passa-se agora à análise dos fins e fundamentos do Estado Democrático de Direito, modelo teórico de Estado no qual se pressupõe inserido o Direito Penal do ius libertatis7. Apontando suas origens, Dallari (2009, p. 145) leciona que: A idéia moderna de um Estado Democrático tem suas raízes no século XVIII, implicando a afirmação de certos valores fundamentais da pessoa humana, bem como a exigência de organização e funcionamento do Estado tendo em vista a proteção daqueles valores. E segundo salienta Cunha Júnior (2010, p. 512): A origem do Estado de Direito está vinculada à luta da burguesia contra o absolutismo que dominava até a metade do século XVIII. Tinha por bandeira, basicamente, a submissão de todos, sobretudo do Estado, ao império da lei; a separação de poderes e a declaração de direitos individuais. O Estado Democrático de Direito, então, surge como resposta aos abusos perpetrados pelo regime absolutista (Estado de Polícia), no qual o rei era visto como figura soberana e acima de qualquer questionamento, sendo que a ordem jurídica e as instituições estatais possuíam apenas uma única razão de ser: conferir perpetuidade e o aumento dos poderes do detentor do trono. O Estado Democrático de Direito nasce, pois, do clamor social à construção de um Estado de todos, capaz de se submeter ao regime das leis e de conferir efetividade aos valores 7 Ressalta-se: a Constituição da República Federativa do Brasil, promulgada pela Assembleia Nacional Constituinte em 5 de outubro de 1988, em seu artigo 1º, caput, dispõe que a República Federativa do Brasil constitui-se em Estado Democrático de Direito, e apresenta como um de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 187 inerentes à pessoa humana. Em relação aos seus alicerces, baseia-se o Estado Democrático de Direito no ideal de participação popular direta ou indireta, na afirmação, proteção e efetivação dos direitos fundamentais e dos valores da dignidade da pessoa humana, e no fundamento de que todos estão submetidos ao primado da lei. Possui como alicerce o governo do povo e para o povo, e a existência de uma ordem jurídicolegal que prima pela legalidade e pela efetivação dos direitos humanos fundamentais. Novamente nas palavras de Cunha Júnior (2010, p. 511-512), Evidentemente, o Estado Democrático de Direito é princípio fundamental que reúne os princípios do Estado de Direito e do Estado Democrático, não como simples reunião formal de seus respectivos elementos, tendo em vista que revela um conceito novo que os supera, mas como providência de transformação do status quo e garantia de uma sociedade pluralista, livre, justa e solidária, em que todo o poder emane do povo e seja exercido em benefício do povo, com o reconhecimento e a afirmação dos direitos humanos fundamentais que possam realizar, na sua plenitude, a dignidade da pessoa humana. (...) O Estado Democrático de Direito, portanto, é Estado Constitucional submetido à Constituição e aos valores humanos nela consagrados. Nessa baila, em eloquente passagem, Bulos (2009, p. 390) salienta que o Estado Democrático de Direito (...) reconhece a República Federativa do Brasil como uma ordem estatal justa, mantenedora das liberdades públicas e do regime democrático. A força e intensidade desse princípio projeta-se em todos os escaninhos da vida constitucional brasileira. Transmite a mensagem de que Estado de Direito e Democracia bem como Democracia e Estado de Direito não são ideias redundantes ou pleonásticas, porque inexistem dissociadas. Como princípio fundamental, a voz Estado Democrático de Direito veicula a ideia de que o Brasil não é um Estado de Polícia, autoritário e avesso aos direitos e garantias fundamentais. Em suma, a República Federativa do Brasil é um Estado Democrático de Direito, porque assegura direitos inalienáveis, sem os quais não haveria democracia nem liberdades públicas. Da concepção de Estado Democrático de Direito exsurge interessante rol de princípios que atuam como seu alicerce, e que apresentam intima ligação com aqueles destinados a limitar a atuação punitiva estatal. Pode-se perceber, desta feita, que o Estado Democrático de Direito fundamenta-se nos valores da dignidade ARGUMENTA - UENP 188 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP da pessoa humana e objetiva promover o desenvolvimento social com a afirmação e proteção dos direitos humanos fundamentais. A liberdade individual, direito humano fundamental mais atingido pelas sanções penais, também conta com especial proteção nesse modelo teórico de Estado, somente se concebendo como legítima a sua afronta quando dela sobressair o caráter de ultima ratio de proteção social. Verifica-se que o ideal de um Estado Democrático de Direito, porquanto se coloca como óbice à arbitrariedade estatal, condicionando a legitimidade de sua atuação à participação social democrática do povo e ao respeito aos valores da dignidade da pessoa humana, também se apresenta como freio à existência de um sistema penal descomedido e arbitrário. Esse é o motivo pelo qual a correta delineação do ideal de Estado Democrático de Direito é importante para a compreensão do Direito Penal do ius libertatis. 5 A MISSÃO DO DIREITO PENAL Sabe-se que a sociedade não está imune ao desenvolvimento de conflitos e, por essa razão, faz-se imprescindível a institucionalização pelo Estado de sistemas de controle social formais, pois: Através dos sistemas de controle social é que se impõe os limites ao comportamento dos integrantes do grupo social, de forma a permitir o bom funcionamento das relações sociais e manter suas formas de vida e cultura (SMANIO e FABRETTI, 2010, p. 95). O Direito Penal, consoante fixado alhures, consiste no mais drástico sistema de controle social institucionalizado. Trata-se, portanto, de uma das formas pelas quais o Estado busca proteger as instituições sociais, proporcionando meios para uma convivência pacífica e equilibrada e dando aos agentes sociais a segurança de que eventuais conflitos oriundos desse relacionamento não deixarão de ser por ele absorvidos. Pode-se esboçar, destarte, uma primeira função do Direito Penal, qual seja, a de proteção da própria sociedade e das relações humanas nela desenvolvidas. Nas palavras de Roxin (2006, p. 16-17), (...) das fronteiras da autorização de intervenção jurídico-penal devem resultar de uma função social do Direito Penal. O que está além desta função não deve ser logicamente objeto do Direito Penal. A função do Direito Penal consiste em garantir a seus cidadãos uma existência pacífica, livre e socialmente segura, sempre e quando estas metas não possam ser alcançadas com outras medidas político-sociais que afetem em menor medida a liberdade dos cidadãos. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 189 No entanto, conquanto almeje a proteção social, considerando a inserção do sistema penal em um Estado Democrático de Direito, balizado pelos valores da dignidade da pessoa humana e comprometido com a efetivação dos direitos fundamentais – dentre os quais, a liberdade –, tem-se que incidência do Direito Penal só encontra legitimidade quando desenvolvida em estrita obediência a seu caráter fragmentário e subsidiário, o que se alcança apenas quando a atuação penal estatal é dirigida exclusivamente à proteção dos bens jurídicos mais importantes ao seio social. Aliás, conforme lição de Queiroz (2008, p. 114), Em uma teoria que pretenda refundar o papel do direito penal, relegitimando-o a partir dos valores e princípios constitucionais, não pode desconhecer as funções reais que ele cumpre. Vale dizer, para redefinir os fins que se deve creditar ao direito penal é preciso ter seriamente em conta as suas limitações estruturais: seletividade, localidade, excepcionalidade, contingencialidade, conseqüencialidade etc. Há de se convir, portanto, que o Direito Penal visa garantir o convívio e o desenvolvimento social pleno, por meio da proteção dos bens jurídicos mais importantes à sociedade, e consoante disserta Gomes (2002, p. 18), Exclusivamente quando esse bem existencial (consubstanciado numa relação social e valorado positiva e juridicamente) resulta significativamente afetado, perturbando a convivência em sociedade, é que a (drástica) sanção penal cobra sentido. Se a norma penal (para além de impor coativamente uma determinada pauta de conduta) existe sobretudo para salvaguarda de um bem jurídico, não basta a mera intenção do autor (sua “vontade má”) ou que a conduta apenas se exteriorize (princípio da materialidade da ação ou fato) ou tampouco que se realize a descrição “formalista” da lei (subsunção formal do fato à descrição típica). No modelo teórico de estado no qual se funda toda essa investigação científica, qual seja, o Estado Democrático de Direito, e novamente consoante salienta Queiroz (2008, p. 116-117), evidencia-se, (…) em face do princípio da inviolabilidade da liberdade (CF, art. 5º), que a liberdade é neste regime a regra; a não-liberdade, a exceção. Disso resulta que toda restrição jurídico-penal no particular há de pressupor a absoluta necessidade e adequação desse modo cirúrgico de intervenção estatal, vale dizer, violações autorizadas da liberdade pelo direito penal somente podem ser toleradas quando necessárias à afirmação da liberdade mesma, razão pela qual crime só pode consistir numa lesão grave à ARGUMENTA - UENP 190 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP liberdade de alguém, isto é, lesão a um bem jurídico definido (…). De fato, a violação da liberdade como forma punitiva só encontra guarida no Estado Democrático de Direito quando dotada de caráter absolutamente excepcional, e desde que exercitada como resposta à lesão a bens jurídicos fundamentais de igual ou maior status. Somente diante de grave violação a bem jurídico fundamental é que há espaço para a atuação coercitiva estatal. Em outras palavras, o Estado Constitucional e Democrático de Direito, que tem lastro nos direitos humanos fundamentais, baseia-se estruturalmente na idéia de liberdade, que se consubstancia sempre em um bem ou interesse que vai permitir seu exercício. Uma das missões primordiais do Direito penal, conseqüentemente, outra não pode ser senão a de proteção (fragmentária e subsidiária) de bens existenciais que nada mais significam singularmente que uma liberdade. A essência da infração penal, é dizer, da teoria do injusto penal, destarte, “desde a perspectiva constitucional, caracteriza-se como um ataque à liberdade alheia (à coexistência das liberdades); ao mesmo tempo, e precisamente por isso, como lesão ou perigo concreto de lesão ao bem jurídico protegido”. (GOMES, 2002, p. 26-27). Em outra perspectiva, é também por meio da proteção de bens jurídicos que o sistema penal atinge outra finalidade, consubstanciada na reafirmação dos valores sociais de maior apreço e prestígio, porquanto o processo de seleção daqueles bens jurídicos, agora dotados da qualidade de bens jurídicos-penais, constitui reflexo do que a sociedade considera primordial para a sua proteção. Segundo preleciona Batista (2007, p. 111), (…) a missão do direito penal defende (a sociedade), protegendo (bens, ou valores, ou interesses), garantindo (a segurança jurídica, ou a confiabilidade nela) ou confirmando (a validade das normas); ser-lhe-á percebido um cunho propulsor, e a mais modesta de suas virtualidades estará em resolver casos. Há, ainda, uma terceira função do Direito Penal a que se deve fazer referência: ele atua, também, como instrumento de garantia dos cidadãos contra eventuais arbitrariedades estatais decorrentes do exercício do direito de punir, fixando pressupostos e limitando a sua própria incidência no meio social. Não se pode ignorar ainda que o direito penal tem um papel importante de garantidor dos direitos fundamentais frente ao arbítrio realizável pelo Estado ou pelo indivíduo, já que lhe cabe delimitar os pressupostos e ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 191 limites da intervenção penal e processual, assim como os direitos e deveres da vítima e do próprio réu. O direito e processo penais trançam os lindes do jus puniendi, seja quanto aos poderes, deveres e direitos do Estado, seja quanto aos do réu, seja quanto aos da vítima. Por meio do direito penal previnem-se também eventuais reações públicas ou privadas arbitrárias, mesmo que em caráter precário (QUEIROZ, 2008, p. 119). Denota-se, então, que o Direito Penal visa, primordialmente, garantir o desenvolvimento pleno das relações e do convívio social, por meio da seleção e proteção de bens jurídicos fundamentais. De modo reflexo, atua ele também como meio de afirmação dos valores sociais mais caros, porquanto são a estes valores que ele dirige a sua proteção. E finalmente, exerce função eminentemente garantidora, apresentando pressupostos, limites e regramentos para o exercício do ius puniendi estatal. De tudo se chega ao entendimento de que, uma vez inserto em um Estado Democrático de Direito, o Direito Penal não pode se afastar da função primordial que o legitima, qual seja, a de proteger os bens jurídicos mais caros à sociedade, proporcionando, dessa forma, condições para a coexistência pacífica e equilibrada entre os cidadãos, sob o primado dos valores da dignidade da pessoa humana e dos direitos humanos fundamentais, fixando e reafirmando os valores sociais mais importantes, e atuando como limite ao exercício do ius puniendi. A concepção de um sistema punitivo inserido em um Estado Democrático de Direito não pode prescindir do respeito aos princípios constitucionais que o norteia e dos valores da dignidade da pessoa humana, os quais só são observados na medida em que o sistema penal é concebido em sua forma minimalista, fragmentária e voltada apenas a um objetivo: a proteção de bens jurídicos fundamentais. E a atuação sua na sociedade só é legitima diante da ocorrência de lesão – ou ameaça concreta de lesão – aos bens jurídicos por ele tutelados. 6 O CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME O conceito analítico de crime destina-se a apresentar os requisitos (ou pressupostos) necessários à existência da infração penal. Esta forma de conceituação, logo, é de grande valia para o estudo da teoria geral do delito, uma vez que permite a separação e a investigação isolada dos elementos que constituem a infração penal. O conceito analítico de crime é basicamente desenvolvido em duas concepções: a bipartida e a tripartida. De acordo com a primeira delas – a bipartida –, crime é fato típico e antijurídico, sendo que a culpabilidade (juízo de reprovabilidade da conduta do agente) não figura entre os elementos deste conceito, mas sim, constitui pressuposto para a aplicação da pena. Essa concepção bipartida, consoante disserta Santos (apud, GOMES e ARGUMENTA - UENP 192 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP MOLINA, 2009, p. 141), (...) afirma a unidade conceitual entre a tipicidade e a antijuridicidade, como dados integrantes do tipo de injusto, que admitem operacionalização analítica separada, mas não constituem categorias diferentes do injusto penal. O tipo legal é a descrição da lesão de bens jurídicos e a antijuridicidade é um juízo de valoração do comportamento descrito no tipo legal, formando o conceito de tipo de injusto. Acerca do fato típico, primeiro elemento integrante da constituição da infração penal, dissertam Zaffaroni e Pierangeli (2007, p. 337): Tecnicamente, chamamos tipos a estes elementos da lei penal que servem para individualizar a conduta que se proíbe com relevância penal. Assim, por exemplo, “matar alguém” (tipo de homicídio – art. 121, caput); “subtrair, para si ou para outrem, coisa alheia móvel” (tipo de furto – art. 155, caput); “constranger mulher à conjunção carnal, mediante violência ou grave ameaça” (tipo de estupro – art. 213) etc. Quando uma conduta se ajusta a algum dos tipos legais, dizemos que se trata de uma conduta típica ou, o que é o mesmo, que a conduta apresenta a característica de tipicidade. Já a respeito do segundo elemento do conceito analítico de delito, ensinam os precitados autores: A antijuridicidade é, pois, o choque da conduta com a ordem jurídica, entendida não só como uma ordem normativa (antinormatividade), mas como uma ordem normativa e de preceitos permissivos. O método, segundo o qual se comprova a presença da antijuridicidade, consiste na constatação de que a conduta típica (antinormativa) não está permitida por qualquer causa de justificação (preceito permissivo), em parte alguma da ordem jurídica (não somente no direito penal, mas tampouco no civil, comercial, administrativo, trabalhista etc.) (ZAFFARONI e PIERANGELI, 2007, p. 490). Para a formulação bipartida, então, a infração penal é composta pelo fato típico, compreendido como a existência de uma conduta que se amolda à descrição típica incluída em uma norma penal incriminadora, e pela antijuridicidade, a qual revela que a conduta – ou seja, o fato típico – é também contrário ao Direito. De outra parte, de acordo com a segunda acepção – a tripartida –, o elemento culpabilidade encontra-se incluída no conceito de crime, o que leva a concluir que crime é fato típico, antijurídico e culpável. Para Gomes e Molina (2009, p. 142), ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 193 O sistema tripartido clássico (amplamente majoritário na doutrina penal atual) não só sustenta que são três as categorias que compõem o delito (tipicidade, antijuridicidade e culpabilidade) como admite a plena autonomia de cada uma delas. Crime, portanto, seria o fato típico, antijurídico e culpável (exigindo-se três estágios autônomos de valoração. Portanto, para o sistema tripartido, só haverá crime caso a conduta praticada corresponda a uma descrição típica (fato típico), seja contrária ao Direito (antijurídica) e, ainda, se sobre ela recair um juízo de reprovabilidade, revelado pela existência de culpabilidade em relação ao agente que a praticou. Embora seja a concepção tripartida majoritariamente adotada entre os doutrinadores, deve-se destacar que é a concepção bipartida a que mais se coaduna com a dogmática penal brasileira. Isso porque, com o advento da reforma penal veiculada pela Lei nº 7.209, de 11 de julho de 1984, a teoria geral do crime, no Código Penal brasileiro, passou a ser orientada pela teoria finalista (que substituiu a teoria causalista anteriormente adotada), segundo a qual o dolo e a culpa, antes inseridos no plano da culpabilidade, passaram a integrar a conduta (um dos elementos do fato típico). Assim, a culpabilidade, diante do finalismo, perdeu os únicos elementos que interessavam para a existência do crime, passando ela, portanto, a reger apenas a possibilidade de aplicação da pena stricto senso. Com o finalismo de Welzel (cujo apogeu, na doutrina européia, se deu entre 1945 e a década de sessenta do século passado) o tipo penal passou a ser composto de duas dimensões: a objetiva e a subjetiva. Esta última era integrada pelo dolo ou culpa (que foram deslocados da culpabilidade para a tipicidade). No temo do causalismo (e do neokantismo) o dolo e a culpa constituíam formas de culpabilidade. Pertenciam à culpabilidade. O deslocamento para a tipicidade veio a acontecer com o finalismo de Welzel (GOMES e MOLINA, 2009, p. 158). A culpabilidade, então, não figura como elemento do crime, mas sim revela um dos pressupostos para a aplicação da pena. A adoção de entendimento contrário traria consequências de ordem técnica e prática impossíveis de serem contornadas pela dogmática penal brasileira.8 8 Um exemplo ajuda a sustentar a adoção pela concepção bipartida do conceito analítico de crime, em detrimento da tripartida. O artigo 180, caput, do Código Penal, que descreve o delito de receptação, pune a conduta daquele que adquiri, em proveito próprio ou alheio, coisa que sabia ser produto de crime. De acordo com a teoria tripartida, crime é fato típico, antijurídico e culpável. Assim, caso um adolescente (inimputável) furtasse um bem e posteriormente o vendesse a outrem, referido bem não poderia ser considerado produto de crime, uma vez que a ausência do juízo de reprovabilidade de sua conduta (culpabilidade), em razão da inimputabilidade, acarretaria a atipicidade do fato e, consequentemente, a inexistência de crime. E diante dessa circunstância, o terceiro adquirente, mesmo que soubesse da procedência ilícita do produto, não poderia sem punido pela prática de receptação, em razão da ausência de uma das elementares do tipo penal. ARGUMENTA - UENP 194 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Portanto, conclui-se que, sob o prisma analítico, na dogmática brasileira a infração penal é conceituada como fato típico e antijurídico. 7 A TIPICIDADE PENAL INSERIDA NO (CLÁSSICO) CONCEITO ANALÍTICO DE CRIME Os elementos que compõem a infração penal, segundo acima demonstrado, são o fato típico e a antijuridicidade. Para se verificar a existência de um fato típico, e assim iniciar a perquirição acerca de sua antijuridicidade, é necessário proceder a um juízo de compatibilização entre a conduta investigada e o ordenamento jurídico penal. Uma vez constatado que a conduta se subsume perfeitamente a um tipo penal incriminador, diz-se tratar de uma conduta típica, ou seja, revestida de tipicidade9. Nas palavras de Bitencourt (2010, p. 304), Há uma operação intelectual de conexão entre a infinita variedade de fatos possíveis na vida real e o modelo típico descrito na lei, Essa operação consiste em analisar se determinada conduta apresenta os requisitos que a lei exige, para qualificá-la como infração penal, chama-se “juízo de tipicidade” (...). Quando o resultado desse juízo for positivo significa que a conduta analisada reveste-se de tipicidade. No entanto, a contrario sensu, quando o juízo de tipicidade for negativo estaremos diante da atipicidade da conduta. Assim, para se cogitar a existência de um fato típico, exige-se, em primeiro lugar, a existência de uma conduta humana voluntária e dirigida a um determinado fim. Esta conduta, em segundo lugar, deve ser a causa de um resultado naturalístico ou, ao menos, jurídico. Por fim, deve a conduta passar por um juízo positivo de tipicidade (ou adequação típica), a qual, segundo Greco (2009, p. 25), significa a “subsunção perfeita da conduta praticada pelo agente ao modelo abstrato previsto na lei penal, isto é, a um tipo penal incriminador”. Mas para a teoria bipartida clássica do conceito analítico de crime, o juízo de tipicidade necessário para a existência de um fato típico se satisfaz apenas com a adequação formal da conduta ao tipo penal, não havendo necessidade de se proceder qualquer juízo material referente a sua ofensividade. Assim, a mera subsunção da conduta à norma penal incriminadora satisfaz o juízo de tipicidade formal requerido pela doutrina clássica. A tipicidade é uma decorrência natural do princípio da reserva legal: nullum crimen nulla poena signe praevia lege. Tipicidade é a conformidade do 9 Diz-se que o fato típico (ou a tipicidade) possui um caráter indiciário de ilicitude. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 195 fato praticado pelo agente com a moldura abstratamente descrita na lei penal. (...) Um fato para ser adjetivado de típico precisa adequar-se a um modelo descrito na lei penal, isto é, a conduta praticada pelo agente deve subsumir-se na moldura descrita na lei (BITENCOURT, 2010, p. 305). No entanto, sob os ditames da teoria constitucionalista do delito, e considerando, ainda, os valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito, a tipicidade penal não pode ser compreendida sob o aspecto meramente formal, mas deve, sobretudo, ser analisada sob o aspecto material. A tipicidade penal, segundo se dissertará a seguir, é constituída pela tipicidade formal e pela tipicidade material. 8 A TIPICIDADE PENAL SOB O ENFOQUE DO PRINCÍPIO DA OFENSIVIDADE: O CONCEITO MATERIAL DE DELITO O Direito Penal é considerado o meio de controle social mais drástico dentre todos os existentes. Além de suas sanções incidirem sobre um dos valores mais caros aos cidadãos (a liberdade), a sua atuação no meio social provoca efeitos indiretos nefastos, que contribuem para o aumento das desigualdades sociais e para a repressão das classes menos favorecidas. Assim, no Estado Democrático de Direito, o qual, consoante sustentado alhures, está ancorado nos valores da dignidade da pessoa humana e no respeito aos direitos fundamentais, dentre os quais se destaca a liberdade, valor diretamente atacado pelas sanções penais, não se pode conceber a existência de um sistema de penal sem que ele esteja, de igual forma, regido pelo respeito aos direitos e garantias individuais e aos valores oriundos da dignidade da pessoa humana, e orientado pelos princípios constitucionais penais. Essa compatibilização pode ser alcançada com a limitação do âmbito de atuação do Direito Penal, dirigindo-o apenas à consecução de sua missão primordial na sociedade. Conforme argui D’Avia (2009, p. 53): Pode-se observar, mesmo que de forma muito breve, a absoluta falta de sentido em se falar de liberdade como direito constitucional fundamental e, simultaneamente, permitir a criminalização irrestrita do seu exercício. Ora, se toda incriminação resulta em uma forte limitação à liberdade de agir – a tipificação pode ser vista como um processo de ponderação de bens, no qual a liberdade cede em prol da tutela de um outro valor como a vida, no homicídio; o patrimônio, no furto, etc. –, essa limitação, de modo a respeitar a condição de direito constitucional fundamental do bem jurídico liberdade, deve atender a pressupostos mínimos, entre eles, a tutela exclusiva de valores dotados de nível constitucional – isto é, de valores que se encontram em uma relação de harmonia com a ordem axiológica jurídico-constitucional – e detentores de um tal conteúdo ARGUMENTA - UENP 196 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP axiológico, que justifique a forte restrição à liberdade ocasionada pela incriminação. Logo, uma restrição que se faz possível somente quando indispensável para a tutela de particulares bens jurídicos, de bens jurídicos providos de uma significativa e suficiente consistência axiológica, enfim, de bens dotados de dignidade jurídico-penal. Ou, de forma ainda mais clara: a liberdade, enquanto valor constitucional fundamental, somente pode ser restringida quando o seu exercício implicar a ofensa de outro bem em harmonia com a ordem axiológico-constitucional. A missão do Direito Penal no Estado Democrático de Direito consiste na exclusiva proteção, fragmentária e subsidiária, dos bens jurídicos mais importantes para a sociedade. A atividade de criminalização, destarte, não pode incidir sobre valores de menor importância ou irrelevantes para a convivência social, da mesma forma que estão excluídas de seu âmbito de incidência questões eminentemente morais ou ideais vinculados apenas a um segmento social. De igual forma, o exercício do ius puniendi também deve operar nesse sentido, de maneira que a infração penal não constitui mera transgressão à norma incriminadora, mas sim, deve constituir uma transgressão aos valores por ela protegidos. Segundo aduz Roxin (2006, p. 39), “(…) Consistindo a missão do Direito Penal na proteção de bens jurídicos, então o injusto penal deve manifestar-se como o menoscabo de um bem jurídico, isto é, como lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico”. Para a teoria constitucional do delito, portanto, é inegável a importância dos princípios constitucionais limitadores do Direito Penal, que se apresentam como meio para estreitar o âmbito de incidência desse sistema de controle social e garantir que a sua atuação na sociedade seja sempre legítima e compatível com os valores inerentes ao Estado Democrático de Direito. E ainda em posição de maior destaque se encontra o princípio da ofensividade, que condiciona a atuação do Direito Penal no meio social à criminalização de condutas capazes de lesionar bens jurídicos dotados de dignidade penal. Assim é que a concepção analítica de crime até aqui apresentada, em quaisquer de suas construções (bipartida ou tripartida), não contempla em sua estrutura o elemento necessário para compatibilizá-la aos fins do Direito Penal no Estado Democrático de Direito. Isso porque, a mera subsunção formal de uma conduta, ainda que antijurídica, a um tipo penal não é suficiente para fazer surgir a figura de um delito. A análise constitucional da teoria geral do delito, portanto, deve-se iniciar pela construção de um conceito material de delito. Nesse mesmo sentido, Gomes (2002, p. 15) ensina que: Para fundamentar as premissas que acabam de ser referidas, impende considerar que no Estado Constitucional de Democrático de Direito, fundado nos direitos fundamentais, o Direito penal (particularmente o ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 197 Direito penal que envolve o ius libertatis), em razão dos custos e da violência que significa, somente se justifica quando presentes algumas exigências ético-políticas (externas), e uma delas consiste em que o agente unicamente pode ser responsabilizado pelo fato cometido quando tenha causado uma concreta ofensa, ou seja, uma lesão ou ao menos um efetivo perigo de lesão para o bem jurídico que constitui o centro de interesse da norma penal. Com efeito, o estudo do delito sob os ditames da teoria constitucional do Direito Penal está condicionado à adoção, pela dogmática penal, de um conceito material de delito, o qual, no entendimento de D’Avila (2009, p. 51), (...) corresponde, em um primeiro momento, a uma compreensão políticoideológica estabelecida nos ideais de um Estado laico, liberal, tolerante, pluralista e multicultural, comprometido com a dignidade humana e com o reconhecimento de direitos fundamentais, em clara e assumida oposição a Modelos de Estado autoritários, erigidos na persecução de objetivos éticos, na punição de inclinações anti-sociais e na mera infração ao dever. Afinal, como a própria história demonstra, não só a compreensão do ilícito sempre disse muito sobre o modelo de Estado em que é implementada, como o Modelo de Estado sobre a acepção de ilicitude que recepciona. Aliás, para o precitado autor, no sistema penal brasileiro a ofensividade encontra guarida na própria Constituição Federal. Em suas palavras, A ofensividade é, sem dúvida, por inúmeras razões, uma exigência constitucional. Aliás, parece-nos possível encontrar elementos ara justificar uma tal exigência, tanto em âmbito puramente principiológico como, e principalmente, à luz das regras constitucionais. Partindo de um ordenamento constitucional fundado na inter-relação de regras e princípios, podemos, mediante a admissão de uma proposição de ordem e paz a cargo do Estado de Direito, reconhecer um princípio geral fundamental de tutela de bens jurídicos, densificador do princípio estruturante do Estado de Direito. Pois é exatamente desse princípio geral de tutela de bens jurídicos que decorre tanto o princípio geral de garantia representado pela necessária ofensa, como o princípio constitucional impositivo, representado pela intervenção penal necessária, o que significa dizer que ambos estão submetidos ao âmbito normativo do princípio originário, não admitindo uma conflitualidade que extrapole os limites da tutela de bens jurídicos, ou seja, que toda incriminação que vá além dos limites da ofensividade não corresponde a um interesse político-criminal legítimo, eis que estaria fora do âmbito de proteção do seu princípio confirmador ARGUMENTA - UENP 198 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP (D’AVILA, 2009, p. 69/70) Para que se possa cogitar a intervenção penal na sociedade é imprescindível, destarte, a prática de uma conduta antijurídica que se subsuma formalmente à descrição contida em um tipo penal incriminador (tipicidade formal) e que ela, sobretudo, seja hábil a lesionar ou ao menos a expor a risco concreto de lesão determinado bem jurídico penalmente tutelado (tipicidade material). Assim é que o conceito analítico de crime ditado pela teoria constitucional do Direito Penal não pode prescindir de nenhum desses elementos, pelo que se conclui que crime consiste em um fato formal e materialmente típico e antijurídico. Atualmente, a tipicidade: (...) deve ser admitida como formal e também material. Já não se pode menosprezar o lado material da tipicidade. A locução “fato típico” é exageradamente reducionista: doravante devemos falar sempre em “fato formal e materialmente típico” (GOMES e MOLINA, 2009, p. 137). É o que consiste, na visão de Rogério Greco, a tipicidade conglobante. Para que ocorra a chamada tipicidade conglobante, devemos verificar se o comportamento formalmente típico praticado pelo agente é: a) antinormativo; b) materialmente típico. A tipicidade conglobante surge quando comprovado, no caso concreto, que a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material) (GRECO, 2009, p. 25/26). Deste modo, é perfeitamente possível concluir que, sob o prisma da teoria constitucionalista do delito, a tipicidade penal não se realiza apenas com a adequação formal da conduta ao tipo penal incriminador, pois, para além da tipicidade formal (mera adequação típica), é imprescindível a existência de ofensa ao bem jurídico tutelado pela norma penal, isto é, a tipicidade material. E ainda, é preciso que a ofensa oriunda da conduta seja grave o bastante a legitimar a incidência do Direito Penal como última forma de controle social, pois, Para justificar a intervenção penal (que é a mais severa das intervenções), será imprescindível, em conseqüência, que a conduta externa praticada (formalmente típica e subjetiva ou normativamente imputável ao agente) não só concretize a descrição legal (típica), senão também que ofenda concretamente (lesão ou perigo) o bem jurídico protegido, que, no caso, é a vida, sob determinadas condições ou circunstâncias (i.e., consubstanciada numa relação social) (GOMES, 2002, p. 24). ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 199 A infração penal, por conseguinte, não é apenas infração à norma proibitiva, mas acima de tudo é infração aos valores por ela tutelados, de forma que não se pode mais cogitar o estudo do conceito analítico de crime, dentro da perspectiva do Direito Penal do uis libertatis, apenas sob a estruturação fato formalmente típico e antijurídico. É forçosa a adoção, pela dogmática penal brasileira, do conceito material de delito, pelo qual este se verifica apenas diante de uma conduta formal e materialmente típica e, ao mesmo tempo, antijurídica. A incidência do Direito Penal, então, só encontra legitimidade quando estritamente direcionada à realização da sua missão no Estado Democrático de Direito, qual seja, a pacificação social por meio da exclusiva proteção de bens jurídicos primordiais para a convivência coletiva. Essa proteção, deve-se acrescentar, desenvolve-se de forma subsidiária e fragmentária, uma vez que o Direito Penal do ius libertatis é concebido como a ultima ratio entre todos os sistemas de controle social. Uma tal concepção onto-antropológica do direito penal, percebida e recepcionada juridicamente através do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos-penais, não só, vale reiterar, atribui ao ilícito uma posição privilegiada na estrutura da dogmática do crime, eis que portador, por excelência, do juízo de desvalor da infração enquanto elemento capaz de traduzir para além da intencionalidade normativa, também a própria função do direito penal, como propõe a noção de ofensa a bens jurídicos, a noção de resultado jurídico como a pedra angular do ilícito-típico. De forma sintética: não há crime (legítimo) sem ofensa a um bem jurídico-penal. Proposição que pretende, para além de expressar um inequívoco ideário político-ideológico, assumir-se como formulação principalmente constitucional (D’AVILA, 2009, p. 50/51). Na perspectiva da teoria constitucional do Direito Penal, e diante dos valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito, o delito passa a ser compreendido, novamente nas palavras de Gomes e Molina (2009, p. 126), “como fato formal e materialmente típico. (...) a tipicidade penal, doravante, nos crimes dolosos, é a soma da tipicidade formal + tipicidade material (ou valorativa) + tipicidade subjetiva”. Portanto: Para o juízo (positivo) de tipicidade penal, em sentido material e constitucional, já não bastará, destarte, a mera realização formal da conduta descrita na fattispecie. O fato concreto, para ser típico, requer: (1) a realização da conduta descrita (subsunção formal da conduta ao tipo), (2) a imputação objetiva e subjetiva ou normativa da conduta (dolo ou culpa) e (3) a necessária produção de um resultado jurídico (afetação – lesão ou ARGUMENTA - UENP 200 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP perigo concreto de lesão – do bem jurídico protegido). (GOMES, 2002, p. 40). A análise ontológica do injusto penal, realizada segundo a concepção material do delito, contribui também para a satisfação da missão social positiva do sistema penal no Estado Democrático de Direito, já que o Direito Penal, segundo se salientou alhures, ao exercer uma função protetora de bens jurídicos, auxilia na criação do conjunto de valores sociais tidos como mais importantes para a convivência comum pacífica. A esse respeito, consoante aduz Capez (2007, p. 2), Ao prescrever e castigar qualquer lesão aos deveres ético-sociais, o Direito Penal acaba por exercer uma função de formação do juízo ético dos cidadãos, que passam a ter bem delineados quais os valores essenciais para o convívio do homem em sociedade. Assim, na medida em que esses valores são absorvidos da própria sociedade, segundo uma atividade perceptiva constante das mutações sociais, é possível inferir que o Direito Penal legítimo e democrático constitui reflexo do próprio seio social, e constitui meio para a promoção e confirmação de seus valores. Portanto, o Direito Penal não pode ser utilizado pelas classes dominantes como instrumento de controle destinado à manutenção e perpetuação do poder, por meio da confecção de um sistema punitivo opressor e discriminativo, voltado à punição apenas das classes menos favorecidas10. Esse pensamento utilitarista não deve se sobrepor aos fins sociais do Direito Penal, porquanto, novamente segundo leciona Capez (2007, p. 4), (...) o Direito Penal deve ser compreendido no contexto de uma formação social, como matéria social e política, resultado de um processo de elaboração legislativa com representatividade popular e sensibilidade capaz de captar tensões, conflitos e anseios sociais. Ainda nesta perspectiva, ao destacar a função primordial do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, o conceito material de delito colabora com a realização de um juízo de compatibilização vertical de todo o ordenamento jurídico penal com os preceitos consagrados pela Constituição Federal, porquanto somente permite erigir à posição de bens jurídicos-penais aqueles valores sociais derivados ou compatíveis com o texto magno. 10 Um exemplo dessa inaceitável visão utilitarista do Direito Penal é apresentado por Capez (2007, p. 3), ao mencionar um histórico episódio ocorrido durante o Nazismo, no qual por meio da “(...) Ordenança de 9 de março de 1943, expedida pelo Ministro da Justiça do Reich visando reduzir o número de pessoas não pertencentes à raça ariana na Alemanha, descriminalizou-se o aborto praticado por estrangeiras, punindo-se apenas o cometido por Alemãs”. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 201 De todo o exposto, conclui-se que o Direito Penal do ius libertatis, orientado pela teoria constitucional do delito, pelos valores da dignidade da pessoa humana e pelo respeito aos direitos fundamentais, não pode se conformar com a concepção analítica de delito em sua faceta puramente formal. É imprescindível, por conseguinte, que o delito seja estudado sob o prisma das funções do Direito Penal no Estado Democrático de Direito, de maneira a determinar a inclusão no conceito analítico de crime a chamada tipicidade material, consubstanciada pela existência de grave lesão (ou, ao menos, efetivo risco de lesão) ao bem jurídico tutelado pela norma penal. Só assim se pode considerar legítima a incidência do Direito Penal na sociedade e, acima de tudo, pode-se reputar justificados os efeitos drásticos dela oriundos. Portanto, todo o estudo da dogmática penal deve – e é evidente que assim o seja – ser pautado pela concepção material do delito.11 A compatibilização da relação ius puniendi versus ius libertatis, definitivamente, só se faz possível mediante a adoção de um sistema penal orientado pelo princípio da ofensividade e restrito à proteção de bens jurídicos dotados de dignidade penal, porquanto apenas diante de uma grave lesão a esses valores é que se pode cogitar a restrição da liberdade. CONSIDERAÇÕES FINAIS Tendo em vista todas as ideias concatenadas neste estudo, faz-se possível sustentar, à guisa de conclusão, que o Direito constitui um instrumento de controle social. Desta feita, o Direito Penal – entendido como o arcabouço de normas jurídicas que estipulam proibições de natureza penal e as sanções correspondentes – também se apresenta, dinamicamente, como um sistema de controle social institucionalizado. E, ainda que não seja o único, é o mais radical de todos, pois as sanções dele oriundas atingem os cidadãos em um de seus valores mais caros, qual seja, a liberdade, direito fundamental a todos garantido e que constitui reflexo da dignidade da pessoa humana. Além disso, sua atuação no meio social causa efeitos secundários nefastos, tais como a seletividade que lhe é inerente, observada nas fases de criminalização primária e secundária, o etiquetamento, e a cifras ocultas. Logo, ainda que não se possa negar a importância do Direito Penal para a existência social pacífica, um olhar crítico acerca desse instrumento de controle social não permite deixar de apontar as mazelas que o circundam, pelo que sua incidência, para ser legitimada, deve ser mínima e estritamente voltada à consecução de seus fins sociais. Nessa perspectiva, uma vez inserto em um Estado Democrático de Direito, modelo teórico de Estado fundado nos valores da dignidade da pessoa humana e intimamente comprometido com a proteção e a realização dos direitos fundamentais, o Direito Penal só conta com uma atuação legítima se sua incidência 11 “Contudo, em que pesem os inúmeros estudos já produzidos e a significativa retomada da literatura penal contemporânea, a recepção do modelo de crime como ofensa a bens jurídicos está longe de obter consenso, mesmo entre seus defensores, sobre a sua compreensão e ressonância na ordem jurídico-penal” (D’AVILA, 2009, p. 59). ARGUMENTA - UENP 202 JACAREZINHO Nº 18 P. 173 – 206 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP no seio social, além de se caracterizar como fragmentária e subsidiária, estiver compatibilizada com os princípios penais constitucionais que o limitam e orientada à realização de sua missão primordial: a proteção dos bens jurídicos fundamentais para a sociedade. Somente assim é possível compatibilizar a aparente antinomia existente entre o ius puniendi e o ius libertatis, na medida em que a restrição da liberdade individual ditada pelas sanções penais só encontra espaço em razão da necessidade de proteção, contra grave lesão ou sua ameaça, de valores de igual relevância social. Desta feita, tem-se que o conceito analítico de delito ditado pela dogmática penal clássica, seja em sua estrutura bipartida (crime = fato típico + antijurídico), seja em sua estrutura tripartida (crime = fato típico + antijurídico + culpável), não contempla em sua essência a ofensividade necessária à legitimação do Direito Penal inserido no âmbito do Estado Democrático de Direito, uma vez que, para essa concepção formalista, para a existência de uma infração penal seria suficiente a constatação de um juízo positivo de tipicidade formal, concebida apenas como a perfeita subsunção da conduta praticada a um tipo penal incriminador, aspecto que, por si só, constituiria a tipicidade penal. Essa perspectiva formalista, no entanto, não se coaduna com os valores consagrados pelo Estado Democrático de Direito e pela teoria constitucionalista do delito, que suplicam a formulação de um Direito Penal minimalista em sua essência, intimamente comprometido com os direitos humanos fundamentais e com os valores da dignidade da pessoa humana, capaz, de maneira subsidiária e fragmentária, de proteger de lesão, ou da ameaça concreta de lesão, os bens jurídicos dotados de dignidade penal. E a busca pelo Direito Penal do ius libertatis não pode prescindir da análise da ofensividade inerente a esse instrumento de controle social. De todos os princípios constitucionais penais, ao lado da dignidade da pessoa humana, valor fundamental do Estado Democrático de Direito e da República Federativa do Brasil, e do qual derivam todos os outros princípios e garantias fundamentais, encontra-se em posição de destaque o princípio da ofensividade, exigência constitucional e legítima em um Estado Democrático de Direito a determinar a imprescindibilidade da existência de grave lesão ou, ao menos, de risco concreto de lesão, para a existência da infração penal, de forma a limitar a incidência do Direito Penal na sociedade. Destarte, em razão da ofensividade, não se pode considerar infração penal a mera transgressão à norma incriminadora, senão quando esteja a transgressão dotada de indiscutível aspecto ofensivo, estando apta a lesionar ou, ao menos, a expor a risco concreto de lesão, o bem jurídico penalmente tutelado. O juízo de tipicidade penal necessário à configuração de um crime, por conseguinte, não constitui apenas a subsunção da conduta ao tipo penal incriminador (tipicidade formal), mas, sobretudo, não pode prescindir da ocorrência de lesão (ou perigo concreto de lesão) ao bem objeto da proteção penal (tipicidade material). ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 173 – 206 2013 203 A orientação conferida pelo Estado Democrático de Direito, desta feita, determina que só pode ser reputada legítima e justificável a incidência do Direito Penal no seio social quando estiver ela voltada ao desempenho de sua missão primordial, revelada pela proteção, fragmentária e subsidiária, dos valores mais importantes para a convivência comum pacífica, os quais são, por essa razão, dotados de dignidade penal e, portanto, merecedores da tutela penal. Essa proteção é realizada por meio da previsão de sanções penais, que só podem ser justificadas quando direcionadas à repressão de condutas aptas a causar grave lesão (ou ameaça concreta) aos bens jurídicos tutelados pela norma penal. Portanto, não se pode olvidar que o mero desrespeito à norma penal não satisfaz a exigência da ofensividade para possibilitar a utilização do Direito Penal como forma de controle social. A tipicidade penal, desta feita, deve ser analisada sob o aspecto formal e material, determinando a necessidade, para a existência do crime, além da antijuridicidade, da ocorrência de um juízo positivo de subsunção da conduta ao tipo penal incriminador e, acima de tudo, da indiscutível ofensividade da conduta, observada quando esta for capaz de lesionar, ou colocar em risco concreto de lesão, o bem jurídico tutelado pela norma penal. A inclusão da tipicidade material no conceito analítico de crime é exigência oriunda do próprio Estado Democrático de Direito e dos princípios que o orientam, uma vez que, para se conferir respeito aos valores da dignidade da pessoa humana e aos direitos fundamentais, frontalmente atacados pelas sanções penais e pelos efeitos secundários por elas determinados, não se pode desvincular o Direito Penal da primordial missão social que o legitima e o justifica: a proteção de bens jurídicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BATISTA, Nilo. Introdução crítica ao direito penal brasileiro. 11. ed. Rio de Janeiro: Revan, 2007. BIANCHINI, Alice; MOLINA, Antonio García-Pablos de; GOMES, Luiz Flávio. Direito penal. Introdução e princípios fundamentais. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009. Coleção Ciência Criminais, v.1. BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de direito penal: parte geral, vol. 1. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2010. BRASIL. 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ABSTRACT: The present paper shows that in the Law exists not many researches in the Indian Law and that the indianslavery was considered legal to impose the catholic religion, but actually continues illegally. PALAVRAS – CHAVE: Direito Indígena; Escravidão Indígena; Trabalho Escravo. KEYWORDS: Indian Law; Indian Slavery; Slave Work. INTRODUÇÃO O presente trabalho traz à tona aquilo que está acontecendo desde a chegada dos colonizadores europeus, não só no Brasil como na América toda, obviamente, incluindo a América do Sul, Central, do Norte e do Caribe, ou seja, assassinato de pessoas tratadas como coisas simplesmente por não ter características europeias, os indígenas, tanto que, como é muito conhecido, a própria Igreja Católica questionava se eram seres humanos ou não, a mesma que mandou destruiu templos indígenas para construírem igrejas católicas e foi cúmplice de uma escravatura * Formado em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Direito na Faculdade de Direito de Alta Floresta - MT (FADAF). E-mail: [email protected] Artigo submetido em 10/08/2012. Aprovado em 22/11/2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 207 com poucos precedentes no mundo, afinal, a mesma não fez absolutamente nada quando os portugueses e espanhóis estupravam índias, matavame escravizavam de forma muito cruel às famílias destas, afinal, em 150 anos, 65 milhões de autóctones foram mortos e ainda estes europeus têm a coragem de quererem chamálos de selvagens, quando justamente a receptividade do latino-americano em geral vem da cultura autóctone. Sabe-se muito bem que não houve uma “descoberta” do Brasil e sim uma invasão e genocídio, cujos criminosos não foram julgados nem condenados, ao contrário, foram premiados com muitas terras, afinal, o índio brasileiro não é bicho para haver sido “descoberto”, este foi saqueado e morto com crueldade, e pelo jeito, continua sendo assim, como será visto no presente trabalho. 1. IMPORTÂNCIA DO ESTUDO DO DIREITO INDÍGENA Os estudos jurídicos voltados exclusivamente para os índios e sua realidade são muito poucos na literatura especializada. Raras são as obras jurídicas voltadas para o exame legal das questões indigenistas. Infelizmente, esta lacuna no universo jurídico brasileiro ainda está longe de ser superada e, em realidade, os cursos jurídicos e os estudiosos do Direito não têm demonstrado muito interesse, seja pela vida dos indígenas, seja pelo Direito Indigenista; é lamentável, pois as questões indígenas vêm crescendo em relevância inclusive na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. A importância do estudo do Direito Indigenista é fundamental, pois, no estudo da condição jurídica dos povos indígenas, diversas e candentes questões têm sido suscitadas ao longo de séculos. Em primeiro lugar, parece-me que o reconhecimento à diferença e à identidade são os pontos cruciais de todo o Direito Indigenista. Os obstáculos ao exercício do direito à diferença têm diversas origens. Existem os obstáculos de natureza ideológica, que se fundamentam em um forte componente racista. Existem, ainda, obstáculos de natureza econômica, pois não é segredo para ninguém que a localização geográfica e espacial dos povos indígenas está em áreas potencialmente ricas em minérios e outras riquezas naturais. Acrescente-se, ademais, a fortíssima vinculação dos temas indigenistas com a geração de energia elétrica através da construção de usinas hidrelétricas e outras formas de utilização de recursos naturais. Os graves problemas fundiários existentes no Brasil, igualmente, não podem ser solucionados sem que se resolvam os problemas relativos às terras indígenas. Assim é, na medida em que a expansão da fronteira agrícola verificada na década de 70 do século XX e a construção de diversas rodovias, tais como a Transamazónica, implicaram o deslocamento de inúmeros povos indígenas das terras que tradicionalmente ocupavam, ou mesmo a invasão das terras indígenas originários das mais diferentes regiões do país. Outro aspecto extremamente importante a ser observado é o da íntima relação entre os povos indígenas e a conservação do meio ambiente e a ecologia. Os povos ARGUMENTA - UENP 208 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP indígenas são, dentre todos, aqueles cujas formas de vida guardam maior proximidade com a natureza e o meio ambiente. A conservação do meio ambiente é uma condição fundamental para a reprodução da vida, nos moldes tradicionais, nas comunidades indígenas. Em um país como o Brasil, no qual a presença de imensas áreas florestais é significativa, não se pode deixar de eliminar a repercussão que o Direito possui na vida dos povos e gentes que encontram na floresta o seu habitat. Os povos indígenas e os demais povos que habitam as florestas brasileiras, desde que compreendidos em suas diferenças em relação à sociedade envolvente, têm um papel fundamental a desempenhar em toda a complexa marcha para o perfeito conhecimento da biodiversidade existente nas florestas, em especial na Floresta Amazônica. É de se observar que a própria Constituição do Brasil reconhece a importância dos índios para a conservação do meio ambiente, assim como reconhece a importância do meio ambiente para a conservação e sobrevivência dos índios (art. 231, §).1 2. CONCEITO DE ÍNDIO Segundo Darcy Ribeiro, “indígena” é, no Brasil de hoje, essencialmente, aquela parcela da população que apresenta problemas de inadaptação à sociedade brasileira, em suas diversas variantes, motivados pela conservação de costumes, hábitos ou meras lealdades que a vinculam a uma tradição pré-colombiana. Assim, o índio é aquele que pertence a uma etnia diferente da nacional, identifica-se como índio e é assim reconhecido pelos demais segmentos da sociedade.2 Tanto no passado como no presente, é uma expressão depreciativa, sendo muitas vezes etnocentricamente substituída por “selvagem” “pagão” (no sentido de não cristianizado). Nas primeiras décadas do século XVI, eram tidos pelos colonizadores como seres subumanos, desprovidos de alma, estando mais próximos dos animais. Sua dignidade humana só foi restabelecida após 1537, quando a bula do Papa Paulo III os reconheceu como “verdadeiros homens livres”.3 Analisando as Constituições brasileiras, percebe-se que foi somente na de 1934 que apareceu pela primeira vez a proteção aos índios, sendo, naquele texto, denominados “silvícolas”. A Constituição de 1934 inaugura a ideia de “Constituição Social”, sofrendo forte influência da Constituição de Weimar da Alemanha, de 1919, evidenciando-se, assim, os direitos de segunda dimensão sob a perspectiva do Estado Social de Direito (democracia social). A proteção aos silvícolas foi mantida nos textos que seguiram (1937, 1946, 1967, EC n. 1/69), atingindo ampla previsão na CF/88, que substituiu a expressão “silvícola” (“aquele que nasce ou vive na selva: selvagem” – Dicionário Aurélio) por “índios”.4 1 ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 14ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2012, p. 1081-1082. RIBEIRO, Darcy. As Américas e a civilização. Petrópolis: Vozes, 1977.p. 254. MARCONI, Marina de Andrade. Antropologia: uma introdução. 6ª. ed. 3ª reimpr. São Paulo: Atlas, 2007. p.216-217. 4 LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 874-875. 2 3 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 209 O significado do substantivo “índios” na Constituição Federal. O substantivo “índios” é usado pela Carta Magna de 1988 por um modo invariavelmente plural, para exprimir a diferenciação dos aborígenes por numerosas etnias. Propósito constitucional de retratar uma diversidade indígena tanto interétnica quanto intraétnica. Índios em processo de aculturação permanecem índios para o fim de proteção constitucional. Proteção constitucional que não se limita aos silvícolas, estes, sim, índios ainda em primitivo estádio de habitantes da selva.5 O Estatuto do Índio (Lei 6001/73), no parágrafo único do seu artigo 1º menciona: “Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei”. Importante destacar que as leis brasileiras são aplicadas de forma igualitárias tanto aos índios como para os que não são índios, mas ressalvando sua cultura para que esta seja protegida e não extinta, que é o desejo de muita gente para que desta forma a terra ocupada por estes seja explorada ilegalmente por garimpeiros e fazendeiros. Interessante salientar que o art. 4º do mesmo Estatuto faz uma classificação dos índios, isso pode levar-nos a interpretações em benefícios dos empresários, afinal, pois são estes interessados em lucro a qualquer custo e no caso dos indígenas e sabendo que estes não possuem uma assessoria jurídica decente, a vantagem fica em prol da outra parte (econômica), apesar do grande esforço do Ministério Público Federal em defender uma civilização que mora no Brasil há dezenas de milhares de anos, muito diferente dos portugueses que chegaram há 500 (quinhentos) e ainda querem expulsá-los. Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura. Na Constituição Federal de 1988, os índios estão quase em último lugar, 5 Pet. 3.388 do Supremo Tribunal Federal, publicado em 25 de setembro de 2009 no DJe nº 181. ARGUMENTA - UENP 210 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP tanto que estes são tratados nos artigos 231 e 232 como seguem: Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. Art. 232. Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo. No caso do primeiro artigo em questão, a sociedade consciente e madura reconhece os direitos indígenas mencionados, porém, empresários dos setores rural, madeireiro e garimpeiro não desejam saber disso, mais ainda de direitos humanos. No caso do segundo artigo supracitado, o Ministério Público pode intervir como parte em defesa dos índios, como em muitos casos já o fez, respeitando a cultura milenar destes. A Constituição fala em “populações indígenas” (art. 22, XIV) e “comunidades indígenas” ou dos “índios”, certamente como comunidades culturais, que se revelam na identidade étnica, não propriamente como “comunidade de origem” que se vincula ao conceito de raça cultural, fundado no valor biológico, hoje superado, dada a “impossibilidade prática de achar um critério que defina a pureza da raça”. Nem é “comunidade nacional” que não é redutível a fatores particulares ou parciais, porque se integra de todos, enquanto realizado do princípio do Estado nacional, traduzindo, no nosso caso, a unidade comunitária dos brasileiros que envolve a todos. A Constituição recusou o emprego da expressão “nações indígenas”, baseada na falta premissa e no preconceito de que nação singulariza o elemento humano do Estado ou se confunde com o próprio Estado, ideia há muito superada, quer porque se verificou que existem Estados multinacionais ou multiétnicos, que dá na mesma, quer porque existe Estado sem nação (o Vaticano) e até porque pode existir nação sem Estado, como os judeus até a fundação do Estado de Israel, e ao que hoje tudo isso é muito discutível.6 No campo da proteção constitucional aos indígenas, a Ordem Social destaca o “princípio da identidade”, como preocupação do Constituinte. Para tanto, faz-se extremamente necessária à proteção das terras por eles “tradicionalmente” ocupadas, bem como da sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições. Tais terras são aquelas pelos índios habitadas em caráter de permanência, sendo utilizadas para suas atividades produtivas e imprescindíveis para a manutenção do seu bem-estar e reprodução física e cultural.7 6 DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo:Malheiros, 2012. p. 855-856. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris. 2011. p. 1053. 7 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 211 A Constituição de 1988, talvez como uma tardia homenagem aos povos indígenas, consagrou o reconhecimento aos índios de sua organização social, costumes, línguas e tradições. Note-se que, mesmo a ausência dessa previsão, nos termos dos Direitos e Garantias Fundamentais previstos no Título II do texto constitucional, garantiria, implicitamente, aos índios a explícita previsão no art. 231. A finalidade maior é disciplina a proteção das terras indígenas, sob constante ameaça. Assim, são terras tradicionalmente ocupadas pelos índios as por eles habitadas em caráter permanente, as utilizadas para suas atividades produtivas, as imprescritíveis à preservação dos recursos ambientais necessários a seu bem-estar e as necessárias a sua reprodução física e cultural, segundo seus usos, costumes e tradições.8 A OIT (Organização Internacional do Trabalho) em sua Convenção 169 sobre povos indígenas e tribais trata sobre a proteção dos índios em vários de seus artigos: Art. 9º 1. Desde que sejam compatíveis com o sistema jurídico nacional e com direitos humanos internacionalmente reconhecidos, os métodos tradicionalmente adotados por esses povos para lidar com delitos cometidos por seus membros deverão ser respeitados. 2. Os costumes desses povos, sobre matérias penais, deverão ser levados em consideração pelas autoridades e tribunais no processo de julgarem esses casos. Art. 10 1. No processo de impor sanções penais previstas na legislação geral a membros desses povos, suas características econômicas, sociais e culturais deverão ser levadas em consideração. 2. Deverá ser dada preferência a outros métodos de punição que não o encarceramento. Interessante esta Convenção da OIT, que além de tratar de direitos trabalhistas indígenas, trata também sobre a área penal e da proteção e do respeito à cultura indígena não do Brasil como no mundo todo, apesar de não sobrarem muitas aldeias indígenas, produto de um genocídio legalizado, pois os governos muito pouco estão fazendo para que esta situação seja diminuída. 3. PANORAMA HISTÓRICO DA LEGISLAÇÃO ESCRAVAGISTA INDÍGENA NO BRASIL Uma das primeiras manifestações do colonizador para com os índios foi 8 MORAES, Alexandre de. Constituição do Brasil Interpretada. 6ª ed., São Paulo: Atlas. 2006.p. 2242. ARGUMENTA - UENP 212 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP a tentativa de escraviza-los. Já no ano de 1511, cerca de 30 índios cativos foram levados para Lisboa. Os Senhores e Donatários das capitanias hereditárias recebiam, através das próprias Cartas de Doação e Forais, o direito de escravizar indígenas. Os senhores tinham o direito de escravizar quantos índios quisessem e podiam levar até 39 para a capital da colônia. Buscava o colonizador, assegurar o suprimento de mão de obra barata e abundante, sem que precisasse, para tanto, comprar negros no mercado africano. O início oficial e legal de cativeiro indígena, contudo, ocorreu no ano de 1537, quando foi expedida uma Carta Régia pela qual foi permitida a escravização dos caetés. Ao longo do período colonial foram feitas inúmeras leis e outros documentos legais que tinham por finalidade tratar da “liberdade” dos povos indígenas. Esse era o eufemismo utilizado para estabelecer as condições mediante as quais era permitida a escravização dos indígenas. Em que pese à alegada fé cristã e católica da Coroa Portuguesa, a Corte jamais deu muita importância aos mandamentos da Igreja quanto ao delicado problema da escravização dos índios. Sendo certo, igualmente, que a própria concepção eclesiástica acerca do problema da escravização dos indígenas, por muito tempo, foi vacilante e contraditória. Observe-se que, no ano de 1537, isto é, no mesmo ano que foi permitida a escravização dos caetés, o papa Paulo III expediu uma Bula pela qual eram excomungados todos aqueles que mantivessem índios em cativeiro. Segundo Eduardo Galeano, uma nova Bula sai do Vaticano. Se chama “Sublimis Deus” e descobre que os índios são seres humanos, dotados de plena razão. Tal Bula foi confirmada, em 1639, por Urbano VIII.9 A legislação acerca dos direitos, deveres e escravização dos indígenas sempre foi muito confusa, embora tivesse um núcleo comum que era o de, no mínimo, submeter os índios à religião católica. Tanto é assim que no Regimento de Tomé de Souza constava que o principal fim por que se povoava o Brasil era o de reduzir “o gentio à fé católica”. Reduzir o gentio à fé católica, evidentemente, significava impor a religião católica aos índios. Pela lei de 30 de julho de 1609, os índios foram declarados livres conforme o Direito e seu nascimento natural. Por força dessa nova legislação, os índios tiveram restabelecidos os seus direitos de liberdade. Tal liberdade, contudo, não teve maior duração, pois a lei de 10 de setembro de 1611 restabeleceu o regime de escravidão indígena. Pela referida lei “será reputado legítimo o cativeiro não só dos aprisionados em guerra justa, mas, também, dos índios resgatados quando cativos de outros índios”.10 Embora seja indiscutível a forte influência da Igreja Católica em todo o processo de colonização do território brasileiro, ela não conseguiu impedir a legislação que permitia a escravidão indígena. Somente em 1647 é que foi revogada 9 GALEANO, Eduardo. Nascimentos – Memória do Fogo (1). Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. p. 155. MARTINS JR. Izidoro. História do Direito Nacional. Brasília: Ministério da Justiça, 1979.p. 137. 10 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 213 a lei de 13 de outubro de 1611, a qual estabeleceu condições para a “liberdade dos gentios”. Com efeito, os Alvarás de 10 de novembro de 1647 e dos dias 5 e 29 de setembro de 1649 restabeleceram o regime dos povos nativos. É de se observar, contudo, que, pela provisão de 17 de outubro de 1653, voltada especialmente para o Pará e para o Maranhão, foram restabelecidos os antigos casos de cativeiro e instituídos outros novos. Já aos 9 de abril de 1655 foram abolidos os novos casos de escravidão. A incoerência e vacilação da legislação, contudo, levaram a que leis dos anos 1663, 1667 e 1673 voltassem a determinar hipóteses de escravidão indígena. A escravidão indígena foi abolida pela lei de 1º de abril de 1680, que repristinou a lei de 30 de julho de 1609; pela lei em tela foi determinado: Se não pudesse cativar índio algum em nenhum caso, nem ainda nos executados nas leis anteriores, sendo livres os que fossem prisioneiros nas guerras ofensivas ou defensivas que com os colonos fizessem, com se usa nas da Europa; podendo somente ser entregues nas aldeias de índios livres católicos, para que se pudessem reduzir à fé e servir ao Estado.11 Em 1684, pela lei de 2 de setembro, novamente foi restabelecida a escravidão indígena. Para o grande estudioso da escravidão no Brasil, Perdigão Malheiros, a lei de 2 de setembro, contudo, não passava de uma “escravidão disfarçada”. A revogação definitiva da escravidão indígena no Brasil só veio a ocorrer com a carta Régia de 27 de outubro de 1831. J.F. Lisboa, citado por Izidoro Martins Jr., fez uma síntese extremamente feliz de todas as ambiguidades e contradições que marcaram a escravização dos povos indígenas: Em relação aos índios a dominação portuguesa foi uma séria nunca interrompida de hesitações e contradições até o ministério do marquês de Pombal. Decretava-se hoje o cativeiro sem restrições, amanhã a liberdade absoluta, depois de um meio-termo entre os dois extremos. Promulgavase, revogava-se, transigia-se, ao sabor das paixões e interesses em voga, e, quando enfim se supunham as ideias assentadas por uma vez, recomeçava-se com novo ardor a teia interminável. Foi aquele ministro enérgico e poderoso quem rompeu sem regresso com o princípio funesto da escravidão. Os índios, é certo, ainda depois das famosas leis de 1755, foram não poucas vezes vítimas da opressão; porém o mal nestes casos um caráter meramente acidental e transitório e nunca mais adquiriu os foros de doutrina corrente, que legitimado os seus resultados, os tornava por isso mesmo mais intensos e duradouros. As experiências que em 11 Ibidem, p. 138. ARGUMENTA - UENP 214 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP sentido contrário tentou o governo do príncipe regente em 1808 nem foram bem aceitas pela opinião pública, nem vingaram contra o princípio da liberdade já radicado. Um curioso espécime dessa legislação casuística e vacilante é a provisão de 9 de março de 1718, que, ela só, resume em poucas linhas quanto se encontra disperso em difusas páginas durante mais de dois séculos. É fácil conceber todo o partido que executores ávidos e cruéis podiam tirar dessas leis contraditórias e confusas que multiplicando-os casos e as exceções davam estímulos poderosos à cavilação e ao arbítrio. Uma vez reduzidos ao cativeiro, índios e africanos eram em tudo igualados em condição e miséria. As leis portuguesas, equiparando-os frequentemente às bestas e a animais, e considerando-os antes coisas que pessoas, tratavam-nos consequentemente de um modo estranho a todos os sentimentos de humanidade. Os escravos chamavamse peças. Como fôlegos vivos e bem perituros, acautelava-se o perigo da sua perda. Como gado ou mercadoria, marcavam-se e carimbaram-se para se não confundirem uns com os outros, em prejuízo dos respectivos senhores. Se cometiam crimes, e um dos mais graves era tentarem fugir do cativeiro, julgavam-se em voz, sem forma nem estrépito de juízo, e a mutilação e a marca de ferro em brasa, já instrumentos de boa arrumação mercantil e sinais distintivos da propriedade, passavam a figurar entre as disposições da política e justiça real. Nem os seus folguedos rudes e simples, nem os ornatos das suas mulheres escapavam a implacável regulamentação da Corte. A exploração destas peças desvalidas nunca ficou circunscrita dentro dos limites da escravidão, aliás, tão fáceis de transpor e sempre tão pouco respeitados pela cobiça infrene os exploradores. Quando aos remorsos ou à hipocrisia da Corte forçaram-na a decretar o princípio da liberdade, fica-lhe o recurso dos descimentos dos índios livres para prover os colonos ociosos de braços para o trabalho. Com o suor de seu rosto, e a força de seus braços, edificavam-se as igrejas, os conventos, os hospitais, os palácios, as fortalezas e os armazéns reais. Eles abriram as estradas, lavraram a terra, colhiam os frutos, beneficiavam os engenhos, tripulavam as canoas, ia à pesca e à caça, apanhavam o gado, e eram nos açougues as ajudas dos açougueiros. Os índios finalmente faziam a guerra ofensiva e defensiva no interesse dos seus opressores, e iam com eles às expedições do sertão para matarem, cativarem e desceram por seu turno outros índios.12 A primeira junta convocada por Mem de Sá para discutir a produção delegislação para a escravidão indígena reuniu-se em 1566, logo após a vitóriacontra Villegaignon e os franceses no Rio de Janeiro. Composta pelo 12 Ibidem, p. 139. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 215 governador-geral, pelo ouvidor Brás Fragoso e pelo bispo Pedro Leitão, a juntapromulgou o primeiro conjunto sistemático de legislação sobre os índios doBrasil em 30 de Julho daquele ano. Pela primeira vez no Brasil a lei regulamentava a escravização voluntária dos nativos. Essa lei determinava que osíndios só poderiam vender-se a si mesmos em caso de extrema necessidade,sendo que todos os casos deveriam ser obrigatoriamente submetidos à autoridade central para exame. A legislação criada pela junta teve, contudo, uma vida curta. Enquanto Memde Sá a reunia, o rei de Portugal enviou-lhe uma carta ordenando a convocaçãode outra junta para deliberar sobre assuntos indígenas. Contudo, devido aolongo tempo de transporte da correspondência, essa carta só chegou quandoa legislação já estava sendo promulgada. A nova junta, composta pelo governador, pelo ouvidor, pelo bispo e por mais três jesuítas (o provincial Luís deGrã, Manuel da Nóbrega e o visitador de Portugal, Inácio de Azevedo),anulou a legislação da junta anterior e reuniu-se. As deliberações dessa segunda junta resultaram num conjunto de leis querecebeu o nome de monitoria. A monitoria seguia o princípio da teoriatomista do direito natural e, portanto, restringia a escravidão indígena aoscasos de cativeiro numa guerra justa promulgada por uma autoridade legale aos casos de extrema necessidade, quando um pai poderia vender o filhoe um índio maior de 21 anos poderia vender a sua própria liberdade. Essedocumento foi perdido, chegando aos nossos dias apenas as opiniões jurídicas produzidas por Caxa e Nóbrega em 1567. No seu debate, Caxa e Nóbrega exploram as principais ambiguidades dainterpretação tomista das noções de liberdade e dominium. Nóbrega opta porevitar as ambiguidades escolásticas e argumenta que a escravidão dos índiosé injusta porque eles são sempre capturados ilegalmente. Caxa, entretanto,usa das ambiguidades para sustentar uma opinião que estava a tornar-sedifundida entre os irmãos jesuítas que trabalhavam nos colégios da colónia:se os índios das problemáticas aldeias queriam vender a sua liberdade aoscolonos, que o fizessem.13 4. DEFINIÇÃO DE TRABALHO ESCRAVO E A SUA DELIMITAÇÃO JURÍDICA No Brasil há várias formas e práticas de trabalho escravo. O conceito de trabalho escravo utilizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT) é o seguinte: Toda forma de trabalho escravo é trabalho degradante, mas o recíproco nem sempre é verdadeiro. O que diferencia um conceito do outro é a liberdade. Quando falamos de trabalho escravo, falamos de um crime que 13 EISENBERG, José. A escravidão voluntária dos índios do Brasil e o pensamento político moderno. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/1218704648R7vGO3gi9Rk66BF2.pdf. Acessado em 23 de janeiro de 2013. ARGUMENTA - UENP 216 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP cerceia a liberdade dos trabalhadores. Essa falta de liberdade se dá por meio de quatro fatores: apreensão de documentos, presença de guardas armados e “gatos” de comportamento ameaçados, por dívidas ilegalmente impostas ou pelas características geográficas do local, que impedem a fuga. Todas as formas de escravidão no Brasil são clandestinas, mas muito difíceis de combater, tendo em vista a dimensão do país, as dificuldades de acesso, a precariedade de comunicação, as limitações de inspeção e as questões legais e institucionais. O conceito de trabalho escravo no imaginário comum parece estar restrito à existência de trabalhos forçados com cerceamento do direito de ir e vir em virtude da existência de capangas armados. Muito longe disso é o que estabelece a nossa legislação. A lei 10.803, de 11 de dezembro de 2003, alterou o art. 149 do Código Penal para estabelecer penas ao crime de redução à condição análoga à de escravo: Art. 149. Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exaustiva, quer sujeitandoo a condições degradantes de trabalho, quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em razão de dívida contraída com o empregador ou preposto: Pena - reclusão, de dois a oito anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1o Nas mesmas penas incorre quem: I – cerceia o uso de qualquer meio de transporte por parte do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho; II – mantém vigilância ostensiva no local de trabalho ou se apodera de documentos ou objetos pessoais do trabalhador, com o fim de retê-lo no local de trabalho. § 2o A pena é aumentada de metade, se o crime é cometido: I – contra criança ou adolescente; II – por motivo de preconceito de raça, cor, etnia, religião ou origem. Frustração de direito assegurado por lei trabalhista Art. 203 - Frustrar, mediante fraude ou violência, direito assegurado pela legislação do trabalho: Pena - detenção de um ano a dois anos, e multa, além da pena correspondente à violência. § 1º Na mesma pena incorre quem: I - obriga ou coage alguém a usar mercadorias de determinado estabelecimento, para impossibilitar o desligamento do serviço em virtude de dívida; II - impede alguém de se desligar de serviços de qualquer natureza, ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 217 mediante coação ou por meio da retenção de seus documentos pessoais ou contratuais. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. Aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional Art. 207 - Aliciar trabalhadores, com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena - detenção de um a três anos, e multa. § 1º Incorre na mesma pena quem recrutar trabalhadores fora da localidade de execução do trabalho, dentro do território nacional, mediante fraude ou cobrança de qualquer quantia do trabalhador, ou, ainda, não assegurar condições do seu retorno ao local de origem. § 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço se a vítima é menor de dezoito anos, idosa, gestante, indígena ou portadora de deficiência física ou mental. A Constituição Federativa do Brasil menciona o seguinte: Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Art. 4º A República Federativa do Brasil rege-se nas suas relações internacionais pelos seguintes princípios: II - prevalência dos direitos humanos; Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: III - ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante; XXIII - a propriedade atenderá a sua função social; XXXV - a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito; Art. 114. Compete à Justiça do Trabalho processar e julgar: I as ações oriundas da relação de trabalho, abrangidos os entes de direito público externo e da administração pública direta e indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios; VI as ações de indenização por dano moral ou patrimonial, decorrentes da relação de trabalho; ARGUMENTA - UENP 218 JACAREZINHO Nº 18 P. 207 – 221 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Art. 127. O Ministério Público é instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis. Existem as Convenções da OIT nº 29 e 105 ratificadas pelo Brasil que tratam sobre o trabalho escravo, sendo as seguintes: Convenção nº 29 sobre Trabalho Forçado (1930): dispõe sobre a eliminação do trabalho forçado ou obrigatório em todas as suas formas. Admitem-se algumas exceções, tais como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos etc. Convenção nº 105 sobre a Abolição do Trabalho Forçado (1957): proíbe o uso de toda forma de trabalho forçado ou obrigatório como meio de coerção ou de educação política; como castigo por expressão de opiniões políticas ou ideológicas; a mobilização de mão-de-obra; como medida disciplinar no trabalho, punição por participação em greves, ou como medida de discriminação.14 5. CARACTERÍSTICAS DO TRABALHO ESCRAVO Ser escravo é estar sujeito a um senhor como uma mercadoria, é uma situação social do indivíduo ou grupo, obrigado sob coação a servir outro indivíduo ou grupo, que tem sobre ele direito de propriedade, inclusive de atribuir-lhe valor de mercadoria. O senhor pode apropriar-se, na sua totalidade, do produtor do trabalho do escravo. Jacob Gorender menciona que ser escravo reside na condição de ser propriedade de outro ser humano. Montesquieu disse que é o estabelecimento de um direito de sua vida e de seus bens. O típico escravo pode ser comprado e vendido, independentemente de querer ou não. Ele é uma mercadoria com qualquer outra, destituído de vontade própria, como um par de sapatos, uma camisa, um carro, um boi. No caso brasileiro, a escravidão atual não se manifesta direta e principalmente em más convenções de vida ou em salários baixos ou insuficientes. O núcleo dessa relação escravista está na violência em que se baseia, nos mecanismos de coerção física e às vezes nos mecanismos de coerção moral utilizados por fazendeiros e capatazes para subjugar o trabalhador. Adicionalmente, ela surge quando o trabalhador em local que representa confinamento (caso da mata nas extensas fazendas da Amazônia), fica materialmente subjugado ao patrão e impossibilitado de exercer seu direito de homem livre e igual, que está no direito de ir e vir, direito de sair de um emprego e ir para outro.15 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 219 CONSIDERAÇÕES FINAIS A escravidão indígena existe desde a chegada dos europeus no Brasil, infelizmente, ainda continua já pelos brasileiros descendentes destes, incluindo políticos, e o pior, com um pensamento de mais de 500 (quinhentos) anos atrás, ou seja, de que os índios não são gente, não são seres humanos, mas não é só isso, estrangeiros no Brasil, especificamente americanos e europeus que também estão sendo cúmplices disso pelas inúmeras riquezas que a Amazônia possui ouro, diamante, flora, fauna riquíssima, não se importando com a morte de línguas e culturas indígenas apesar de o Estado do Brasil ter demarcado o território destes. Ministério Público faz a sua parte, porém, sem alguém com uma força física para inibir a escravidão indígena ficará difícil impor uma ordem para que a vida e a cultura indígena não morram como já está acontecendo, nas mãos de fazendeiros e garimpeiros que não querem saber de vidas de índios, pois para eles, estes não são pessoas, dando continuidade a uma história que vem da época da colonização com a anuência da Igreja Católica. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental. 14ª. Ed. São Paulo: Atlas, 2012. DA SILVA, José Afonso. Curso de Direito Constitucional Positivo. 35ª ed. São Paulo:Malheiros, 2012. EISENBERG, José. A escravidão voluntária dos índios do Brasil e o pensamento político moderno. Disponível em: http://analisesocial.ics.ul.pt/documentos/ 1218704648R7vGO3gi9Rk66BF2.pdf. ESTRADA, Manuel Martin Pino. O trabalho rural escravo no oeste da Bahia. In Revista de Direito Social, ano VI, abril/jun. 2006, nº 22. FERNANDES, Bernardo Gonçalves. 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ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 207 – 221 2013 221 222 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP VITIMOLOGIA E DIREITOS HUMANOS VICTIMOLOGY AND HUMAN RIGHTS João Felipe da SILVA* SUMÁRIO: Introdução. 1. Breve Apanhado Histórico Sobre o Surgimento e o Desenvolvimento da Vitimologia. 2. Vitimologia e Direitos Humanos. 2.1. A Consagração dos Direitos Humanos. 2.2. A Proteção Jurídica dos Direitos Humanos das Vítimas. 3. Novas Formas de Proteção à Vítima. 3.1. O Programa Nacional de Proteção à Vítima. Considerações Finais. Referências Bibliográficas. RESUMO: As questões atinentes à situação da vítima e seu comportamento frente ao algoz e as formas como se dá a vitimização em seus diversos graus apresentase de forma inquietante desde o período imediatamente posterior à Segunda Guerra Mundial. O surgimento da Vitimologia como área do conhecimento, cujo principal objetivo é o resguardo dos Direitos Humanos da vítima concretiza e afirma de forma categórica o quão importante para as ciências penais e criminológicas é a percepção dos aspectos biológicos, psicológicos e sociais que circundam a ocorrência do crime e sobremaneira como a vítima se comporta frente a tais acontecimentos. ABSTRACT: Issues relating to the situation of the victim and the victimizer its behavior and the ways in which victimization occurs in its various degrees presents the alarming since the period immediately following the Second World War. The emergence of victimology as a field of knowledge, whose main objective is the safeguarding of human rights of the victim realizes and states categorically how important for criminal and criminological sciences is the perception of biological, psychological and social issues that surround the occurrence of crime and greatly as the victim behaves against such events. PALAVRAS-CHAVE: crime; Direitos Humanos; processo penal; vitimização; vitimologia. KEYWORDS: crime; criminal proceedings; Human Rights; victimization; victimology. * Pós-Graduando em Direito do Estado; Professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, Direito Civil e Direito Internacional do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos/SP. E-mail: [email protected]. Artigo submetido em 06 de junho. Aprovado em 19 de julho de 2013. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 223 INTRODUÇÃO Dentre as ciências que orbitam o Direito Penal e, por conseguinte auxiliam sua prática e desenvolvimento, a Vitimologia dedica-se a estudar os diversos aspectos envolvendo os crimes e suas causas e consequências em planos diversos. Esse ramo do conhecimento se apresentou a partir do ano de 1.947 como ciência autônoma, cujo escopo é a busca pela compreensão do comportamento da vítima, a relação existente entre esta e o criminoso bem como o impacto do crime em sua vida, tudo isso sob um prisma biopsicossocial, ou seja, busca compreender a vítima nos planos biológico, psicológico e social. A Vitimologia, que nos primórdios foi considerada parte intrínseca da Criminologia, foi concebida e encontra-se em constante aperfeiçoamento para buscar antes e, sobretudo dar suporte às vítimas de todos os gêneros e entendê-las. Além disso, visa proclamar-se como uma ciência para liberdade e a liberação moral e material de todos os tipos de vítimas, sejam aquelas que sofrem diretamente as consequências do crime, sejam aquelas a quem o Estado relegou ao segundo plano de suas prioridades, tornando-as algozes e vitimizadoras. Logo, é de salutar importância para as ciências voltadas ao estudo dos delitos e suas consequências compreender os motivos que levam determinadas pessoas a serem vítimas em potencial, enquanto outras são classificadas como infratoras em potencial. De enorme relevância também é descobrir maneiras de minorar a ocorrência de crimes e, em última instância, tornar menos traumáticas as experiências daqueles que se vêm na condição de impotência frente à ocorrência de situações delituosas. Frise-se que os dados coletados ao longo de anos de pesquisa na área específica da Vitimologia encontram farto campo de aplicação prática, seja na área da prevenção à ocorrência de crimes, incluindo-se a política criminal em seu sentido preventivo, seja na busca pela reparação dos danos causados às vítimas, prejuízos estes que vão muito além da seara patrimonial e atingem o indivíduo em sua parte mais sublime e nobre, pois maculam sua dignidade enquanto ser humano. No que se refere aos Direitos Humanos e sua defesa, a Vitimologia apresenta-se como importante instrumento, de emprego voltado tanto para o delinquente, que em sua grande maioria se apresentam como vítimas da própria sociedade, quanto para as vítimas propriamente ditas, ou seja, as pessoas que experimentam os prejuízos advindos das condutas criminosas contra elas praticadas. Busca-se, portanto, a real dimensão do desrespeito à dignidade da vítima, bem como demonstrar que o processo de vitimização não termina com a consumação do crime, pois este é o início de uma caminhada longa e tormentosa que atravessa as portas do Poder Judiciário e, em muitos casos permanece gravado no íntimo do indivíduo de maneira indelével. Com efeito, a questão que se apresenta como foco principal do presente estudo é a maneira como a ciência da Vitimologia pode ser utilizada como forma ARGUMENTA - UENP 224 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP de resguardo dos Direitos Humanos e como instrumento de diminuição dos traumas causados pelas mais diversas situações delituosas verificadas na sociedade hodierna do Brasil. 1. APANHADO HISTÓRICO SOBRE O SURGIMENTO E O DESENVOLVIMENTO DA VITIMOLOGIA Inicialmente, para a melhor compreensão do presente trabalho e os objetivos à que se propõe, necessário discorrer sobre a etimologia da palavra vítima. Quando nos tempos mais remotos ofertavam-se animais aos deuses, como forma ritualística de adoração e para aplacar sua fúria, tais oferendas eram amarradas por uma corda e tal amarre era chamado de vincire. “No sentido denotativo do termo, Vítima deriva de vincere-vencer, ou de vincire – corda que amarra os animais que serão sacrificados aos deuses. De todo modo, penalmente, a vítima é aquele que sofre a ação ou omissão do autor do delito” (KOSOVSKI, 2.007, p.1). Na Antiguidade, durante a vigência da vingança privada e da sua aceitação pelo próprio aparato estatal, cuja expressão maior é o Código de Hamurabi que vigorou na Mesopotâmia, mais precisamente no Império da Babilônia no período de 1.800 a.c. à 1.500 a.c., a vítima ocupava lugar de destaque nas relações jurídicas, principalmente porque o referido compêndio de Leis em determinados artigos prescrevia a aplicação de sanções de cunho indenizatório que recaíam sobre o patrimônio do réu, referentes ao pagamento de valores pecuniários à vítima. Além disso, a Lei de Talião como ficou mais conhecida, previa também a aplicação de castigos corporais e inclusive a morte ao réu que, devido ao cometimento de algum ilícito, era forçado a experimentar a mesma dor e sofrimento que veio causar na vítima. Tal situação tinha o condão de conferir à vítima o direito de ver seu algoz punido com o mesmo sofrimento que havia lhe causado. “Nos povos primitivos, à infração respondem - direta e exclusivamente – os sujeitos passivos do delito e/ou seus familiares. Esse sistema leva a múltiplos abusos de vinganças exageradas. Para limitar esses excessos, vai intervindo, cada dia, mais e mais, o poder político, para desbancar as vítimas e monopolizar a resposta mediante a coerção soberana.” (BERISTAIN, 2.000, p.74). A rigidez da punição infligida ao criminoso apresentava-se perante o corpo social do Império Babilônico com característica dúplice: satisfazia o desejo de vingança da vítima ou de seus entes e também servia de exemplo para os demais habitantes da comunidade, servindo como meio de intimidação e garantia de um ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 225 convívio minimamente sadio no seio da sociedade. Dada a natural evolução dos costumes, peculiar à espécie humana, tal abominável regra que privilegiava a vingança e incentivava a violência foi aos poucos substituída, verificando-se o abrandamento do furor punitivo do Estado que passou a empregar maior proporcionalidade no que tange à gravidade da pena aplicada aos infratores das normas de conduta. Ao mesmo tempo em que o Estado evoluiu, paulatinamente assumiu o controle da aplicação da violência, bem como de todo e qualquer meio punitivo previsto na legislação, a fim de justificar, dogmatizar e institucionalizar tal monopólio punitivo. “Praticamente, a política criminal durante este longo período estrutura a resposta ao delito como uma virtude/obrigação do poder absoluto que aplica as penas com crueldade arbitrária, sem participação alguma da vítima. O reflexo desta política criminal abarcará depois (também por reação) uma filosofia política liberal burguesa preocupada, especialmente, em proteger o delinquente.” (BERISTAIN, 2.000, p.75). No que tange ao campo histórico, pode-se notar que a mencionada evolução no direito trouxe à vítima três momentos distintos referentes ao tratamento a ela dispensado pelos sistemas penal e processual penal postos e impostos pelo Estado. Primeiramente, a vítima possuía relevante participação nos estudos dedicados à ciência penal. Tal período vigorou até o fim da Alta Idade Média. Em um segundo período há o fortalecimento da ideia de Monopólio Estatal na aplicação das sanções penais, o que relega a vítima a outros planos muito distantes dos até então vislumbrados. “O tratamento histórico dispensado à vítima dentro dos estudos penais passou por três grandes momentos, sendo o primeiro, descrito como idade de ouro e vigorou até o fim da Alta Idade Média, com relevante participação no sistema; num segundo momento, há uma “neutralização do poder da vítima”, e o Estado, por meio dos poderes públicos, monopoliza a reação; finalmente, numa terceira fase, “revaloriza-se o papel da vítima no processo penal”. (SALIBA, 2.009, p.109). Ocorre nesta fase o surgimento das teorias humanistas da Escola Clássica, aplicadas às ciências penais, e o desenvolvimento da tríade: delinquente – pena – crime. Situação esta que exclui a vítima do foco dos estudos penais da época. Portanto, no Processo Penal passam a imperar duas figuras, quais sejam a do Estado no exercício do seu Poder-Dever de punir o infrator e a do réu exercendo suas prerrogativas de defesa, a ele conferidas pela própria ordem jurídica. ARGUMENTA - UENP 226 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP “Desde a Escola Clássica impulsionada por Becaria e Fuerbach à Escola Eclética de Impalomeni e Alimena, passando pela Escola Positivista de Lambroso, Ferri e Garofalo, o Direito Penal praticamente teve como meta a tríade delito-delinquente-pena. O outro componente do contexto criminal, a vítima, jamais foi levado em consideração. Isto apenas passou a ocorrer quando outras ciências, e principalmente a Criminologia, tiveram que vir em auxílio do Direito Penal para a análise aprofundada do crime, do criminoso e da pena.” (FERNANDES, 1.995, p.455). De forma que em tal período histórico, verifica-se, segundo as palavras de Eugenio Raúl Zaffaroni1 a “usurpação do lugar de quem sofre o dano ou é vítima por parte do senhor (poder público)”. Portanto, torna-se a vítima mero dado estatístico e subtraída de sua condição de pessoa humana lesada. O terceiro momento da vítima frente aos estudos penais é marcado pela revalorização e resgate do seu papel frente ao processo penal, buscando trazê-la de volta à luz dos acontecimentos, sobretudo pelas possibilidades de composição civil e transações previstas pelo direito penal moderno, o que de certa forma se mostra ainda em fase de maturação e desenvolvimento, que poderá no futuro servir de receptáculo para novas formas de atuação da vítima frente ao processo penal. Tal especialização na Legislação Pátria se faz evidente com a Lei nº 9.099/ 95, a chamada Lei dos Juizados Especiais que busca mover o enfoque do processo para a vítima, oferecendo-lhe a oportunidade de aceitar acordos e composições civis dos danos. “Não se pode desconsiderar que atualmente uma tendência revitalizadora da vontade da vítima tomou conta de algumas legislações, e no Brasil, a Lei 9.099/95 é o maior exemplo. Contudo à exceção da conciliação civil prevista na lei como causa extintiva da punibilidade pela renúncia, os demais dispositivos legais não apresentam alternativas ao sistema punitivo”. (SALIBA, 2.009, p.113). Ainda sobre a tendência revitalizadora da recente legislação pátria verificada com o advento da Lei dos Juizados Especiais Criminais e Cíveis, leciona Sandro Lobato de Carvalho: “É bem verdade que com a Lei 9.099/95 a vítima foi “redescoberta” no processo penal nacional, dando maior ênfase à reparação do dano às vítimas. Mas a referida lei só tem incidência no âmbito da criminalidade pequena e média, ficando as vítimas de graves delitos no esquecimento, sobretudo quanto a reparação de danos”. (2.008, p.02). 1 ZAFFARONI, Eugenio Raúl, 1.927 – O Inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão. Rio de Janeiro: Revan, 2007. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 227 As origens da Vitimologia, como um estudo organizado e com finalidade específica, encontram-se no período do pós Segunda Guerra Mundial, tempos nos quais o mundo testemunhou o horror do holocausto judeu promovido pelo Reich Nazista entre os anos de 1.933 e 1.945, sendo que a sociedade global da época vivenciou e compadeceu-se da macro-vitimização ocorrida naquele período, assim entendendo-se a vitimização em larga escala, que atinge um número elevado de pessoas. “Pode-se dizer que a atual vitimologia nasceu como reação à macrovitimização da II Guerra Mundial e, em particular como resposta dos judeus ao holocausto hitleriano/germano, ajudados pela reparação positivista do povo alemão, a partir de 1945”. (BERISTAIN, 2.000, p.83). Dos inúmeros trabalhos acerca do tema publicados entre os anos de 1.947 e de 1.979, época de grande efervescência vitimológica, merece destaque o professor alemão Hans Von Henti, com a obra The Criminal and the victim2 do ano de 1.948. Segundo tal estudo, deve-se levar em conta 03 noções fundamentais acerca dos estudos sobre a vítima: a) A possibilidade de que o criminoso, de acordo com determinadas circunstâncias, possa vir a se tornar também vítima, ou vice-versa; b) Deve-se levar em conta que existe a chamada ‘vítima latente”, ou seja, pessoas que possuem uma pré disposição para serem vítimas, que despertam uma certa atração para o criminoso; c) Não se pode olvidar da relação existente entre vítima e delinquente, relação esta que pode inclusive inverter os papéis ou criar um vínculo muitas vezes afetivo entre vítima e algoz, os denominados casos de Síndrome de Estocolmo. Assim, de acordo com o estudo publicado por Von Henti: “Primeiramente, a possibilidade de que uma mesma pessoa possa ser delinqüente ou criminoso segundo as circunstâncias, de maneira que comece no papel de criminoso e siga no de vítima ou ao contrário. A segunda noção é a “vítima latente”, que inclui aquelas mulheres e aqueles homens que têm uma predisposição a chegar a ser vítimas, ou seja, uma certa atração para o criminal. Por fim, a terceira noção básica refere-se à relação da vítima com o delinqüente, relação que pode provocar uma inversão dos papéis do protagonismo. A vítima pode ser o sujeito, mais ou menos desencadeante, do delito” (BERISTAIN, 2.000, p.84). Considera-se, no entanto, como o fundador da doutrina da vitimologia o 2 HENTI, Hans Von - O criminoso e a vítima -1948. ARGUMENTA - UENP 228 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP advogado israelita e também vítima dos horrores nazistas Benjamin Mendelsohn que militava em Jerusalém. Ele utilizou a expressão Vitimologia pela primeira vez em uma palestra ministrada no ano de 1.947, entitulada:The origins of the Doctrine of Victmimology.3 Posteriormente Benjamin Mendelshon publicou suas obras Etudes Internacionales de Psycho-Siciologie Criminelle de 1.9564 e La Victimologie, Science Actuaelle de 1.9575, que reafirmaram o quão conveniente e proveitoso para os estudos voltados às áreas do Direito Penal e da Criminologia é compreender a vítima em seus mais diversos aspectos, desde o psicológico até o econômico, para que se possa traçar um perfil amplo que nos conduz ao entendimento da participação da vítima na ocorrência do delito, do impacto sofrido pela vítima, no instante imediato ao que a mesma é apanhada pela ocorrência do crime e, posteriormente passando pelos diversos graus de vitimização. “A vitimologia surgiu exatamente do martírio sofrido pelos judeus nos campos de concentração comandados por Adolf Hitler, sendo reconhecido como fundador da doutrina Vitimológica o notável advogado israelita Binyamin Mendelsohn, Professor Emérito da Universidade Hebraica de Jerusalém. Como marco Histórico, Mendelsohn pronunciou na Universidade de Bucareste, em 1947, sua famosa conferência Um Horizonte Novo na Ciência Biopsicossocial: A Vitimologia” (OLIVEIRA, 2.003, p.9). A Vitimologia, após sua concepção e ingresso no panorama científicojurídico mantém-se em constante aperfeiçoamento e desenvolvimento na busca pela compreensão das vítimas e na luta por melhores condições no trato dos indivíduos vitimizados pelas mais variadas formas de violações dos Direitos Humanos. “Desde os primeiros trabalhos em vitimologia a partir de Mendelsohn, que nomeou a ciência, e de Von Hentig no final dos anos 40, houve um avanço fantástico a ponto de hoje a vitimologia e os movimentos pelos direitos das vítimas constituírem possivelmente a força existente mais dinamizadora para a transformação dos sistemas de Justiça Penal. Isto, sobretudo, a partir do forte impulso nos anos 60, em que se abriam novos horizontes de investigação e de ação em matéria criminológica e vitimológica”. (KOSOVSKI, 2.000, p.22). Diante de tantos e inquietantes questionamentos e insuficiência de 3 MENDELSOHN, Benjamin - As Origens da Doutrina da Vitimologia – 1947. MENDELSOHN, Benjamin - Estudos Internacionais de Psicossociologia Criminal – 1956. MENDELSOHN, Benjamin – A Ciência Atual da Vitimologia – 1957. 4 5 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 229 respostas, após a publicação das supra mencionadas obras do Advogado Benjamin Mendelshon, bem como das obras de tantos outros teóricos da Vitimologia, na cidade de Jerusalém no ano de 1.973 celebrou-se o primeiro Simpósio Internacional de Vitimologia. Tal Simpósio veio a se repetir nos anos seguintes em diversas cidades do mundo, sendo que no ano de 1.979, na cidade de Münster na Alemanha, foi fundada a Sociedade Internacional de Vitimologia. “Do desenvolvimento teórico da vitimologia dão provas os numerosos estudos apresentados no 7º Simpósio Internacional de Vitimologia, celebrado no Rio de Janeiro, em agosto de 1991.” (BERISTAIN, 2.000, p.84). Há que se ressaltar que, através da Resolução nº 40/34 da Assembléia Geral das Nações Unidas, de 29 de Novembro de 1.985 foi aprovada a Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder. Tal documento visa determinar conceitos básicos como quem pode ser considerado vítima, a forma como a vítima deve ser tratada perante a Justiça, mecanismos para o ressarcimento das vítimas e indenização a serem pagas pelos ofensores de sua dignidade.6 No que tange à atividade legiferante voltada ao auxílio das vítimas, ao longo dos anos em vários países tem-se criado Fundos de Compensação Estatal a fim de minorar o impacto econômico-financeiro causado pela ação do criminoso contra a vítima, além de alterações legais no sentido de garantir à vítima o resguardo de sua dignidade durante o decorrer do processo penal. No Brasil, a SBV - Sociedade Brasileira de Vitimologia foi fundada no ano de 1.984, tendo em vista a necessidade de estabelecer em solo pátrio um grupo de estudos voltado à consolidação dos conhecimentos multidisciplinares relacionados com a ciência da Vitimologia, bem como sua aplicação prática. “A Sociedade Brasileira de Vitimologia (SBV) foi fundada em 28 de julho de 1.984, quando especialistas das áreas de Direito, Medicina, Psiquiatria, Psicanálise, Psicologia, Sociologia e Serviço Social, além de estudiosos das ciências sociais, uniram-se para consolidar, no Brasil, os conhecimentos relacionados com a ciência da Vitimologia, que, anteriormente era apenas um capítulo da Criminologia.” (KOSOVSKI, ano 2.000, p.5). 6 Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder - 1985 ARGUMENTA - UENP 230 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Dessa forma, evidencia-se que o Brasil acompanhou a tendência mundial referente aos estudos da vítima e das circunstâncias que a trazem ao cenário do delito e, à exemplo de países da Europa e da América do Norte também fundou sua Sociedade Nacional de Vitimologia, dedicada a enriquecer os conhecimentos acerca dessa estimulante ciência. 2.VITIMOLOGIA E DIREITOS HUMANOS 2.1 A Consagração dos Direitos Humanos De grande relevância para o presente estudo, que busca relacionar a vítima e os diretos humanos é transcorrer, ainda que de forma abreviada sobre a consagração, o desenvolvimento e a proteção jurídica dos Direitos Humanos. Contudo, antes da abordagem do tema, é necessário frisar que os Direitos Humanos, nas palavras de Hannah Arendt “não são um dado, mas um construído, uma invenção humana em constante processo de construção e de reconstrução.”7 De forma que cabe ao Direito, no exercício de sua função política criar mecanismos aptos ao resguardo dos Direitos Humanos, sobretudo das pessoas que, de uma forma ou de outra são vitimizadas. “A doutrina dos direitos fundamentais surgiu da fusão de várias fontes, mas tem como base o cristianismo, com a ideia de que “criados à imagem e semelhança de Deus, todos os homens têm uma liberdade irrenunciável que nenhuma sujeição política ou social pode destruir”, o direito natural e o constitucionalismo.” (BREGA FILHO, 2.002, p.3). A conscientização e a luta pela realização dos Direitos Humanos data do período do Absolutismo Francês, no qual a monarquia dominava a população e sufocava as pessoas com altos impostos, cobrados para a manutenção do luxo e dos gastos excessivos praticados pelo monarca. Por tal razão, a revolução surgiu como única alternativa para combater tamanha opressão que se impunha às camadas mais baixas da sociedade francesa, também chamadas de terceiro estado. Assim, no ano de 1.789, eclodiu a Revolução Francesa, inspirada na Guerra de Independência Norte-Americana e nos ideais de Liberdade, Fraternidade e Igualdade. “O Estado contemporâneo nasce, no final do século XVIII, de um propósito claro, qual seja o de evitar o arbítrio dos governantes. A reação de colonos ingleses na América do Norte e a insurreição do terceiro estado na França tiveram a mesma motivação: o descontentamento contra um poder que – 7 Hannah Arendt, As Origens do Totalitarismo, trad. Roberto Raposo, Rio de Janeiro, 1979. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 231 ao menos lhes parecia – atuava sem lei nem regras.” (BREGA FILHO, 2.002, p.3). Os revoltosos buscavam o afastamento do Estado e de sua desmedida intromissão na liberdade dos cidadãos, surgindo assim os Direitos Humanos de primeira geração, calcados em premissas básicas, como liberdade, não intervenção estatal na vida privada dos indivíduos, caracterizada pela limitação do Estado no que tange ao seu campo de atuação e direcionamento das atitudes das pessoas. Para Vladimir Brega Filho “os princípios fundamentais constituíam uma limitação ao poder estatal, pois buscavam delimitar a ação do Estado”.8 Concluí-se, portanto, que primeiramente foram resguardados, à pessoa individualmente considerada, os direitos mais elementares e indispensáveis à existência com o mínimo de dignidade, que até então jamais foram levados em consideração pelos regimes monárquicos absolutistas, nos quais as vontades do governante deveriam ser obedecidas sem questionamentos, por mais abusivas e autoritárias que se apresentassem. A segunda geração de Direitos Humanos apresenta-se no período pósrevolução, quando se torna nítida a concepção de que o Estado deve abster-se de determinadas intervenções, mas é essencialmente importante em outras tarefas, no sentido de criar e manter mecanismos aptos a garantir o exercício das liberdades individuais e demais direitos consagrados na primeira geração. De tal modo que, os Direitos Humanos de segunda geração, ou direitos sociais, surgiram como uma reação ao caráter formal das liberdades individuais e pregava ser de vital importância a maior atuação estatal, estabelecendo limites bem definidos para tal intervenção, calcados principalmente no texto constitucional. Nesse sentido, surgiu a compreensão de que cabe ao Estado de fornecer aos indivíduos assistência social, realizada através de prestações sociais, direito à saúde, bem estar, educação, melhores condições de trabalho, entre outros encontrados hodiernamente nas Cartas Políticas da imensa maioria dos Estados democráticos. Contudo, não se pode incorrer no equívoco de considerar esta Segunda Geração como de direitos difusos ou coletivos, pois aqui o foco dos direitos fundamentais ainda é a pessoa individualmente considerada. “Esses direitos foram chamados de direitos fundamentais de segunda geração e caracterizam-se, ainda hoje, por outorgarem ao indivíduo direitos a prestações sociais estatais, como assistência social, saúde, educação, trabalho, etc revelando uma transição das liberdades formais abstratas para as liberdades materiais concretas.” (BREGA FILHO, 2.002, p.23). 8 Vladimir Brega Filho, Direitos Fundamentais na Constituição de 1988, p. 22. ARGUMENTA - UENP 232 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Por derradeiro, necessária se faz a explanação sobre os Direitos Humanos de terceira geração, que apresentam caráter mais abrangente e também são denominados direitos de solidariedade. Tais direitos foram concebidos no período posterior à Segunda Guerra Mundial. A destruição generalizada ocasionada pelo maior conflito armado da história recente da humanidade ocasionou a reflexão acerca da necessidade de garantir-se a todas as pessoas direitos que transcendem a figura do indivíduo e atingem a coletividade, através do resguardo do meio ambiente, da paz mundial, da soberania dos Estados, entre outros. “A nota distintiva destes direitos de terceira dimensão reside basicamente na sua titularidade coletiva, muitas vezes indefinida e indeterminável, o que se revela, a título de exemplo, especialmente no direito ao meio ambiente e qualidade de vida, o qual, em que pese ficar preservada sua dimensão individual, reclama novas técnicas de garantia e proteção.” (SARLET, 1.998, p.53). No ano de 1.789, na data de 26 de agosto, a Assembléia Nacional Francesa editou a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão. “A declaração reconheceu, em dezessete artigos, direitos fundamentais, entre eles os da igualdade, liberdade, propriedade, segurança, resistência à opressão, associação política, princípio de legalidade, princípio de reserva legal e anterioridade da lei penal, princípio da presunção de inocência, liberdade religiosa e a livre manifestação do pensamento. Ela era um ato de reconhecimento de direitos naturais e por isso não criava e nem rememorava direitos.” (BREGA FILHO, 2.002, p.11). Na mesma esteira, porém dois séculos depois, no ano de 1.985 ocorre a Declaração Universal dos Direitos da Vítima. Tanto uma quanto a outra não são geradoras de direitos, mas declarações consagradoras de tais prerrogativas. “As Nações Unidas têm se preocupado com a questão das vítimas, tendo aprovado, com o voto do Brasil, a Declaração dos Direitos das Vítimas de Crimes e Abuso de Poder, em Assembléia Geral no Congresso de Prevenção de Crime e Tratamento de Delinqüente em Milão, na Itália em 1985, ratificado em 1986.” (KOSOVSKI, 2.011, p.4). Ambas apresentam-se como instrumentos norteadores do tratamento que deve ser dispensado aos indivíduos enquanto pessoas e vítimas de delitos ou abuso de poder, sendo reconhecidas internacionalmente, seu conteúdo não pode ser objeto de apropriação já que é inerente, intrínseco às pessoas e estas os conquistam a ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 233 cada dia em que a espécie humana perpetua-se pela face do planeta Terra. “A Declaração Universal dos Direitos Humanos e a Declaração Universal dos Direitos da Vítima contém, ambas, postulados intimamente identificados por uma finalidade comum e direcionados a um projeto de ação, pois não seria possível clamar por mudanças no comportamento dos povos se cada um dos indivíduos não estivesse disposto a rever sua própria maneira de ser, de pensar e de agir.” (KOSOVISKI, 2.000, p.4). Cumpre ainda estabelecer que, para determinados estudiosos, há a distinção puramente terminológica entre Direitos Humanos e Direitos Fundamentais, uma vez que ambas as expressões referem-se ao mesmo grupamento de direitos. No entanto, sua aplicação difere de acordo com sua positivação em determinada ordem jurídica. Sobre o tema destaca-se a lição do professor José Afonso da Silva: “Direitos Humanos é a expressão preferida nos documentos internacionais. Contra ela, assim como contra a terminologia direitos do homem,objetase que não há direito que não seja humano ou do homem, afirmando-se que só o ser humano pode ser titular de direitos.” E continua: “Direitos fundamentais do homem constitui a expressão mais adequada a este estudo, porque, além de referir-se a princípios que resumem a concepção do mundo e informa a ideologia política de cada ordenamento jurídico, é reservada para designar, no nível do direito positivo, aquelas prerrogativas e instituições que ele concretiza em garantias de uma convivência digna, livre e igual de todas as pessoas”.9 De tal forma, resta claro que as terminologias são aplicadas de acordo com a circunstância que se apresenta, levando-se em conta que tanto uma quanto a outra tratam dos mesmos direitos inerentes ao ser humano, devendo-se apenas atentar para sua positivação em determinado ordenamento jurídico. 2.2 A Proteção Jurídica dos Direitos Humanos das Vítimas Há que se limitar que para o presente estudo o cerne das pesquisas é o ordenamento jurídico brasileiro e a sua forma de lidar com os Direitos Humanos, especialmente no período histórico situado após a Constituição Federal de 1.988, 9 SILVA, 2009, p.176. ARGUMENTA - UENP 234 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP promulgada em 05 de Outubro daquele ano. Contudo, é de salutar importância abordar, ainda que brevemente o momento histórico que antecedeu a promulgação do texto constitucional vigente. O árduo esforço pela redemocratização do país culminou com o fim da ditadura militar, período em que verificou-se a supressão de diversos direitos e garantias individuais e coletivas, inclusive marcado pela prisão imotivada, pela tortura, pelo assassinato e pelo desaparecimento de grande número de pessoas consideradas responsáveis pela prática de atos de cunho subversivo à ordem pública e à Política de Segurança Nacional implementada pelos militares. Após o fim de tal período turbulento na história do Brasil, o processo de redemocratização é coroado com a promulgação da Constituição Cidadã, que traz em seu texto extenso rol de direitos e garantias fundamentais, de forma prolixa, segundo muitos doutrinadores, mas necessária, com vistas a afirmar a condição de limitação aos arbítrios estatais recentemente experimentados pelo povo brasileiro. “A constituição de 1988 apresenta algumas variações em relação ao modelo tradicional, seguido pelas anteriores. Em primeiro lugar, ela enumera os direitos e garantias fundamentais logo num Título II, antecipando-os, portanto, à estruturação do Estado. Quis com isso marcar a preeminência que lhes reconhece.” (FERREIRA FILHO, 2.006, p.99). Destarte, no Brasil a tendência à proteção dos direitos e garantias fundamentais é retomada com considerável força após 05 de Outubro de 1988, com a promulgação da Constituição Federal, inspirada nos textos constitucionais das Democracias mais desenvolvidas e mais bem assentadas. A Vitimologia e o resguardo dos Direitos Humanos têm estreita ligação no sentido de que o objetivo de ambas as áreas do conhecimento é a concretização das bases para o resgate ao respeito pelo ser humano e seus direitos fundamentais, oportunizando assim, a mitigação dos danos causados àqueles indivíduos que sofreram violações e abusos de seus direitos. Saliente-se que a Vitimologia, bem como as Comissões de Direitos Humanos, desde o seu surgimento, sempre buscaram a realização da paz social e efetivação dos direitos fundamentais garantidos constitucionalmente e na ordem jurídica internacional, através de Declarações e Tratados. “Vitimologia e Direitos Humanos são expressões e atores sociais que caminham na mesma direção, em busca dos mesmos objetivos,a dizer, do resgate da dignidade dos princípios fundamentais da pessoa humana, a lapidar a defesa de pessoas ou comunidades, aquelas que convivem com a marginalização e a exclusão de seis direitos fundamentais.” (KOSOVISKI, 2.000, p.01). ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 235 Não há que se falar em tratamento digno para a vítima, ou mesmo em diminuição nas causas que ensejam a vitimização sem abordar os Direitos Humanos e sua incidência na vida do indivíduo e nas das pessoas que compõem determinado grupo social. “É nesse contexto que importa realçar outra dimensão importante da tradição que ensejou o tema dos Direitos Humanos, a saber, o individualismo na sua acepção mais ampla, ou seja, todas as tendências vêm do indivíduo, na sua subjetividade, o dado fundamental da realidade. O individualismo é parte integrante da lógica da modernidade, que reconhece a liberdade como a faculdade de autodeterminação de todo ser humano.” (LAFER, 2.006, p.120). A estreita relação entre a Vitimologia e os Direitos Humanos encontra razão de ser em virtude da complementaridade que tais áreas do conhecimento apresentam, pois a Vitimologia oferece dados concretos advindos de suas pesquisas que ampliam os horizontes dos estudos voltados aos Direitos Humanos e sua efetivação. “Como uma ciência mais estratificada, a vitimologia pode oferecer aos Direitos Humanos a metodologia e um conjunto de teorias vitimológicas e questões, sem contar com dados comparativos e outra categoria de vítimas, como vítimas de crimes. Com ênfase no crime, a vitimologia pode auxiliar os Direitos Humanos a teorizar mais claramente a respeito dos “crimes contra a humanidade” ainda parcialmente operacionalizado.” (KOSOVSKI, 2.011, p.5). Por seu turno, o conhecimento acerca dos Direitos Humanos amplia o enfoque sobre violações de direitos, fontes e causas de vitimização. “O campo dos Direitos Humanos pode oferecer à vitimologia uma concepção mais ampla de vitimização e direito das vítimas. Pode também ajudar a melhor conceituar a vitimização definida como criminal, comparativamente às não consideradas criminais, apesar de seus efeitos danosos. O enfoque de Direitos Humanos pode ajudar a examinar as fontes de vitimização e a relação entre causas do crime e causas da opressão. Podemos ver, por exemplo, que a opressão produz as condições primordiais para os crimes contra a pessoa e contra a propriedade. Uma análise do ponto de vista dos Direitos Humanos é detectar as condições adversas, políticas, sociais e econômicas provocadas da vitimização.” (KOSOVSKI, 2.011, p.5). ARGUMENTA - UENP 236 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP De fundamental importância para o presente estudo é a análise da definição acerca de quem pode ser considerado vítima, partindo-se primeiramente da conceituação apresentada no ano de 1.985, no texto da Declaração sobre os Princípios Fundamentais de Justiça para as Vítimas de Delitos e de Abuso de Poder, nos itens 1 e 18 do mencionado documento. “1. Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que violem a legislação penal vigente nos Estados-Membros, incluída a que proscreve o abuso de poder. 18. Serão consideradas “vítimas” as pessoas que, individual ou coletivamente, tenham sofrido danos, inclusive lesões físicas ou mentais, sofrimento emocional, perda financeira ou diminuição substancial de seus direitos fundamentais, como consequências de ações ou omissões que não cheguem a constituir violações do direito penal nacional, mas violem normas internacionalmente reconhecidas relativas aos Direitos Humanos (Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder – 1.985).” Percebe-se que a Declaração dos Princípios Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder traça um conceito amplo acerca da vítima, pois possui a finalidade de abarcar, de modo abrangente, os indivíduos que de alguma forma vêm sua dignidade e seus direitos fundamentais ofendidos. De grande relevância para o presente estudo é destacar que o conceito de vítima, conforme já asseverado, vai muito além das pessoas que são alvos de crimes propriamente ditos. “Ainda que resulte difícil, evitaremos a identificação da vítima como sujeito passivo do delito. Dentre o conceito das vítimas, há que se incluir não somente os sujeitos passivos do delito, pois aquelas superam muito frequentemente a estes. Por exemplo, nos delitos de terrorismo, os sujeitos passivos de um delito são cinco, dez ou cinqüenta pessoas; em lugar disso, as vítimas podem ser cem ou, ainda, mil pessoas. Em alguns casos, podem ser mil os militares ou jornalistas que, diante do assassinato de um militar ou um jornalista por grupo terrorista se sintam diretamente ameaçados, vítimados, se antes sofreram também ameaças dos terroristas.” (BERISTAIN, 2.000, p.84). Portanto, o conceito originalmente traçado no ano de 1.985 é deveras abrangente e não por acaso, pois a posição de vítima muitas vezes suplanta a ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 237 pessoa do sujeito passivo do delito e atinge testemunhas, familiares e de forma mais extensa todos aqueles que sofrem o impacto resultante do ato criminoso. Contudo, para o direito penal, o conceito se mostra um tanto quanto restrito, em virtude principalmente da impossibilidade legal de interpretações por demais extensivas. “Deve-se entender que “vítima” para o direito penal é o sujeito passivo de um crime. Ele se identifica com o titular do interesse atingido pelo crime, de forma mediata ou imediata, mas desde que seja aquele que a norma tutela. Em todo crime há dois sujeitos passivos: um sujeito passivo constante que é o Estado-Administração, pois todo crime viola um interesse público, e um sujeito passivo eventual, que é o titular do interesse concreto.” (GRECO, 2.002, p. 17). Assim, embora haja certa restrição do conceito de vítima frente ao direito penal, nos demais campos, a conceituação apresenta-se de forma extensiva, sendo certo que sempre será plenamente cabível a proteção aos Direitos Humanos das vítimas. O maior amparo às vítimas, com a dedicação de maior atenção institucional aos seus anseios e angústias não pode, por outro lado, resultar na excessiva intensificação das sanções penais a serem aplicadas ao criminoso, sendo indispensável que os estudos vitimológicos sejam empregados com parcimônia. “Certas investigações vitimológicas, em alguns países, sobretudo nos EUA, têm servido, paradoxalmente, para reforçar as tendências favoráveis a sancionar com mais dureza o delinquente, como mostra Kaiser. Entre nós na Espanha, estamos ainda em véspera desse excessivo abuso da vitimologia. Mas, de todas as maneiras, convém ter presente que também a vitimologia deve reconhecer suas fronteiras.” (BERISTAIN, 2.000, p.92). A delimitação do campo de atuação e a prevenção, com vistas a não permitir que o afã pela proteção da vítima induza a abusos, principalmente em relação à figura do infrator da norma são questões que devem sempre estar presentes na mente daqueles que se dedicam ao estudo da Vitimologia, sob pena de se incorrer em equívocos que desviam a ciência de seu escopo primeiro, qual seja, o resguardo aos Direitos Humanos. Significa afirmar que não se pode resguardar adequadamente a vítima quando se busca, ainda que de forma bem-intencionada, a violação excessiva dos direitos do delinquente. É necessária a razoável aplicação dos institutos previstos na constituição federal e na legislação penal, a fim de que sejam evitados os abusos e a degradação dos indivíduos, sejam vítimas ou criminosos. ARGUMENTA - UENP 238 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 3. NOVAS FORMAS DE PROTEÇÃO À VÍTIMA 3.1 O Programa Nacional de Direitos Humanos Antes de adentrar-se na temática específica acerca da forma como as vítimas recebem a proteção jurídica pelo Estado brasileiro, necessária se faz a análise do modo pelo qual o ordenamento jurídico pátrio dedica-se à proteção dos Direitos Humanos como alicerce sobre o qual se erige o Estado Democrático de Direito. Com a publicação o Decreto nº 7.037 de 21 de Dezembro de 2.009, que aprova o Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, o Brasil dá importante passo na atualização de suas políticas públicas voltadas à concretização da proteção estatal aos Direitos Humanos, assim como dedica Diretriz específica no referido diploma voltada para o trato para com as vítimas e a proteção de pessoas ameaçadas. Destaca-se o seguinte trecho da apresentação do Programa Nacional de Direitos Humanos: “A cada ano, crescem e são aperfeiçoados os programas de proteção aos defensores dos Direitos Humanos, às vítimas e testemunhas ameaçadas e aos adolescentes sob risco de morte. O combate à tortura e o enfrentamento das modalidades recentes de trabalho escravo, assim como o empenho para erradicar o sub-registro civil de nascimento também se ampliaram de modo palpável nos últimos anos.”(PNDH-3, 2.010, p.12). Resta evidente que a melhoria em setores como o da Segurança Pública em muito contribuem para a diminuição do número de pessoas vitimizadas, assim como reflete na melhor qualidade dos serviços prestados às vítimas minorando o sentimento de nova violação de sua dignidade, agora realizada por parte do Estado, o que os estudiosos denominam vitimização secundária. “Por muito tempo, alguns segmentos da militância em Direitos Humanos mantiveram-se distantes do debate sobre as políticas públicas de segurança no Brasil. No processo de consolidação da democracia, por diferentes razões, movimentos sociais e entidades manifestaram dificuldade no tratamento do tema. Na base dessa dificuldade estavam a memória dos enfrentamentos com o aparato repressivo ao longo de duas décadas de regime ditatorial, a postura violenta vigente, muitas vezes, em órgãos de segurança pública, a percepção do crime e da violência como meros subprodutos de uma ordem social injusta a ser transformada em seus próprios fundamentos.” (PNDH-3, 2.010, p.104). Embora os debates sobre o implemento dos Direitos Humanos a partir de ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 239 uma ótica voltada também para a Segurança Pública e suas implicações estivesse um tanto quanto acomodado, não é possível buscar-se ampla visão do assunto sem que se toque em tal ponto. De forma que as vítimas somente podem ver seus direitos resguardados quando a atuação estatal é ampla, mas sem perder de vista a profundidade e a peculiaridade dos assuntos que lhes são inerentes. Da análise da Diretriz nº 15, Objetivo Estratégico II, pertencente ao Eixo IV do Programa Nacional de Direitos Humanos percebe-se que há a preocupação do Poder Público no sentido de garantir-se à vítima e à testemunha ameaçadas de morte o amplo suporte para que as mesmas vejam seus Direitos Humanos respeitados, com o resguardo de sua dignidade enquanto seres humanos. Tal iniciativa se coloca em consonância com a tendência internacional, acima mencionada, de dedicar-se maior atenção às vicissitudes vivenciadas pelas vítimas de delitos e de abuso de poder. Em tal sentido são as letras “a” e “b” da Ação Programática do referido Objetivo Estratégico II da Diretriz nº 15 do Decreto nº 7.037/2.009: “a) Propor projeto de lei para aperfeiçoar o marco legal do Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas, ampliando a proteção de escolta policial para as equipes técnicas do programa, e criar sistema de apoio à reinserção social dos usuários do programa. b) Regulamentar procedimentos e competências para a execução do Programa Federal de Assistência a Vítimas e Testemunhas Ameaçadas (PROVITA), em especial para a realização de escolta de seus usuários. (PNDH-3, 2.010, p.131/132). No que concerne à prevenção de abusos de autoridade, fato comum nas estatísticas de violações de Direitos Humanos, também há preocupação com a sua ocorrência e a tentativa de minoração do número de casos ocorridos no Brasil. Conforme o estabelecido nas Ações Programáticas letras “a”, “e” e “i” do Objetivo Estratégico I da Diretriz nº 14 do Decreto nº 7.037/2.009, há que se salientar que busca o Estado brasileiro coibir as más condutas ao mesmo tempo em que visa a modernizar as forças policiais, com a padronização de procedimentos, criação de Ouvidorias para o exercício de controle externo das atividades policiais, assim como o aumento do material humano à disposição das polícias. “Com ênfase na erradicação da tortura e na redução da letalidade policial e carcerária, confere atenção especial ao estabelecimento de procedimentos operacionais padronizados, que previnam as ocorrências de abuso de autoridade e de violência institucional, e confiram maior segurança a policiais e agentes penitenciários. Reafirma a necessidade de criação de ouvidorias independentes em âmbito federal e, inspirado em tendências ARGUMENTA - UENP 240 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP mais modernas de policiamento, estimula as iniciativas orientadas por resultados, o desenvolvimento do policiamento comunitário e voltado para a solução de problemas, elencando medidas que promovam a valorização dos trabalhadores em segurança pública. Contempla, ainda, a criação de sistema federal que integre os atuais sistemas de proteção a vítimas e testemunhas, defensores de Direitos Humanos e crianças e adolescentes ameaçados de morte.” (PNDH-3, 2.010, p.120). Tais reformas tem por objetivo principalmente a melhoria nas condições de trabalho do corpo profissional que opera nas forças policiais, bem como preparar melhor os referidos policiais para que o número de violações dos Direitos Humanos advindos da má conduta das forças de segurança pública seja reduzido. Aliadas às Ações Programáticas acima descritas, o PNDH-3 prevê ainda a proteção aos defensores dos Direitos Humanos no exercício de suas atividades, a erradicação da tortura e de outros tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, o enfrentamento ao tráfico de pessoas, além da redução da violência motivada por diferenças de gênero, raça ou etnia, idade, orientação sexual e situação de vulnerabilidade. Ressalte-se que todas as situações descritas no parágrafo acima são ensejadoras de vitimização e, conforme o mencionado no texto do Decreto ora sob análise merecedoras de especial atenção do Estado na busca pela efetivação do resguardo dos Direitos Humanos, de forma a concretizar a proteção já consagrada em textos normativos internacionais e na Constituição Federal de 1.988. “O PNDH-3 incorpora, portanto, resoluções da 11ª Conferência Nacional de Direitos Humanos e propostas aprovadas nas mais de 50 conferências nacionais temáticas, promovidas desde 2003 – segurança alimentar, educação, saúde, habitação, igualdade racial, direitos da mulher, juventude, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência, idosos, meio ambiente etc –, refletindo um amplo debate democrático sobre as políticas públicas dessa área.” (PNDH-3, 2.010, p.11). Os instrumentos jurídicos delineados pelo PNDH-3 em muito contribuem para melhores resultados na área da Vitimologia, assim como de forma bastante clara servem-se dos resultados obtidos através das pesquisas vitimológicas, fato este que reafirma a interligação existente entre os estudos acerca dos Direitos Humanos e a pesquisa sobre o comportamento da vítima e os impactos nela causados pela ocorrência das situações violadoras de sua dignidade e de seus direitos. Acerca da proteção dedicada especificamente à vítima de delitos e abuso de poder pelo texto do Programa Nacional de Direitos Humanos – PNDH-3, destaca-se o Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha – PROVITA que será ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 241 analisado mais detidamente abaixo. 3.2 O Programa Nacional de Proteção à Vítima Após a afirmação no sentido de que a Vitimologia constitui-se em um campo multidisciplinar, voltado à análise da vítima no seu aspecto biopsicossocial, é possível perceber que sua atuação está calcada no estudo, pesquisa e nas alterações da Lei, com o fito de fornecer assistência e proteção à vítima. A Vitimologia mostra-se como caminho para a mudança na forma de se desenvolver o processo penal, bem como na abordagem do problema da criminalidade Estado. “A vitimologia é um campo multidisciplinar por excelência e abrange vários níveis de atuação em diferentes contextos. Podemos dizer que repousa em um tripé: estudo e pesquisa, mudança na legislação e assistência e proteção à vítima. Cada um desses segmentos é de importância fundamental para uma nova visão do crime e de todo o sistema penal.” (KOSOVSKI, 2.000, p.21). É fato que as conclusões atingidas pelos estudos vitimológicos tem sido utilizados como base para a criação de programas especiais de proteção e amparo às vítimas, sendo que o objetivo último de tais ações governamentais é o resguardo dos Direitos Humanos dos sujeitos vitimizados. “A visão vitimológica tem contribuído para modificar este contexto, inclusive apontando medidas extrajudiciais quando cabíveis, que geram diminuição da hostilidade e melhor resolução de conflitos Muitos países de várias partes do mundo, inclusive no Continente Americano já estão adiantados na prática da aplicação conceitual, na modificação de leis e principalmente na criação de centros de proteção e atendimento às vítimas.” (KOSOVSKI, 2.000, p.22). Importante ainda ressalvar que a melhor compreensão da vítima, além de ampliar o foco das atenções no decorrer do processo penal, já engessado e préconcebido para a perseguição ao criminoso, auxilia na consolidação e na consagração dos Direitos Humanos que devem ser exercidos também e principalmente pela pessoa que vê sua dignidade violada pela conduta do autor do crime. “Enquanto vítimas de crime freqüentemente têm preocupação referente à sua participação no processo, na lei, nas conseqüências e efetividade, vítimas de opressão e abuso de poder, necessitam e querem proteção e assistência antes de mais nada. A parceria entre Vitimologia, Movimentos ARGUMENTA - UENP 242 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP de Assistência às Vítimas e Direitos Humanos ensejam mais perspectivas e fortalece ambas as partes.” (KOSOVSKI, 2.011, p.1). Busca-se então, incluir nas preocupações do Estado o amparo à vítima, sem olvidar-se da aplicação da devida reprimenda ao delinquente. “Todo o arcabouço do sistema penal, a começar com a polícia, passando pelo Ministério Público, a Defensoria Pública, o Judiciário e finalmente a Execução da Pena é calcado quase que sempre exclusivamente na perseguição ao criminoso (nem sempre bem sucedida) e na sua punição (quase sempre falha) deixando fora das preocupações do Estado a vítima, o lesado, o agredido, aquele que sofreu a ofensa e que deve requerer mais atenção. O condenado, cumprindo pena de prisão, recebe do INSS o auxílio reclusão. E a vítima, como é amparada no seu prejuízo às vezes incalculável?”(KOSOVSKI, 2.000, p.21). No que diz respeito à efetiva proteção estatal à vítima e à testemunha, no Brasil foi criado em meados da década de 1.990, através da Subsecretaria de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, o Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha - PROVITA, que posteriormente foi positivado no ordenamento pátrio por intermédio da edição da Lei nº 9.807/99. Como principal objeto, o mencionado diploma legal visa estabelecer definições e regras procedimentais acerca da proteção, assistência e reinserção social de vítimas e testemunhas que se encontrem ameaçadas e estão a auxiliar o Estado durante a investigação ou o processo criminal: “Capítulo I Da Proteção Especial para as vítimas e testemunhas Art. 1º - As Medidas de Proteção requeridas por vítimas ou por testemunhas de crimes que estejam coagidas ou expostas a grave ameaça em razão de colaborarem com a investigação ou o processo criminal serão prestadas pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, no âmbito das respectivas competências, na forma de programas especiais organizados com base nas disposições desta Lei (Lei nº 9.807 de 13 de Julho de 1.999).” Importante destacar que o mencionado Programa de Proteção à Vítima e à Testemunha atingiu resultados satisfatórios segundo os patamares da Secretaria de Direitos Humanos que o instituiu e atualmente tal programa compõe a lista de políticas públicas do Governo Federal, inclusive alastrando-se para mais de dez Estados da Federação. “O Programa tem status de política pública prioritária no âmbito do ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 243 Governo Federal, haja vista integrar o Programa Nacional de Direitos Humanos, estar contemplado no Plano Plurianual 2000-2003 (Avança Brasil) e ser um dos compromissos do recém lançado Plano Nacional de Segurança Pública.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2.011). Dado o sucesso atingido pelo Programa, foi criado pela União o Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas, sendo que sua regulamentação deu-se através do Decreto nº 3.518/00. “O Sistema Nacional de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas é composto pelo Programa Federal de Assistência a Vítimas e a Testemunhas Ameaçadas, regulamentado pelo Decreto nº 3.518/00 e gerenciado pela Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, e pelos programas estaduais de proteção. Atualmente já são 10 (dez) os Estados que integram o Sistema: Bahia, Espírito Santo, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo. Esses programas, implementados por meio de convênio celebrado entre a respectiva Secretaria de Justiça e/ou Segurança Pública e a Secretaria de Estado dos Direitos Humanos, possuem capacidade média de atendimento de 30 (trinta) beneficiários, entre testemunhas, vítimas e seus familiares ou dependentes. As situações de proteção registradas em Estados que ainda não se incorporaram ao Sistema são atendidas pelo Programa Federal.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2.011). Para que a vítima ou testemunha que se encontra sob grave ameaça seja incluída no programa é necessário o preenchimento de requisitos estabelecidos pela Lei nº 9.807/99, entre eles a compatibilidade com as regras do programa de proteção, uma vez que diversas são as privações as quais a vítima é submetida, tudo objetivando a preservação de sua integridade física e moral, bem como de seus familiares. Da análise do texto legal, vislumbram-se cinco requisitos e circunstâncias a serem observadas quando da deliberação acerca da inclusão da vítima no sistema nacional de proteção. “a) Situação de risco. A pessoa deve estar “coagida ou exposta a grave ameaça” (art. 1º, caput). Obviamente não é necessário que a coação ou ameaça tenha já se tenham consumado, sendo bastante a existência de elementos que demonstrem a probabilidade de que tal possa vir a ocorrer. A situação de risco, entretanto, deve ser atual. b) Relação de causalidade. A situação de risco em que se encontra a pessoa deve decorrer da colaboração por ela prestada a procedimento criminal em que figura como ARGUMENTA - UENP 244 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP vítima ou testemunha (art. 1º, caput). Assim, pessoas sob ameaça ou coação motivadas por quaisquer outros fatores não comportam ingresso nos programas. c) Personalidade e conduta compatíveis. As pessoas a serem incluídas nos programas devem ter personalidade e conduta compatíveis com as restrições de comportamento a eles inerentes (art. 2º, § 2º), sob pena de por em risco as demais pessoas protegidas, as equipes técnicas e a rede de proteção como um todo. Daí porque a decisão de ingresso só é tomada após a realização de uma entrevista conduzida por uma equipe multidisciplinar, incluindo um psicólogo, e os protegidos podem ser excluídos quando revelarem conduta incompatível (art. 10, II, “b”). d) Inexistência de limitações à liberdade. É necessário que a pessoa esteja no gozo de sua liberdade, razão pela qual estão excluídos os “condenados que estejam cumprindo pena e os indiciados ou acusados sob prisão cautelar em qualquer de suas modalidades” (art. 2º, § 2º), cidadãos que já se encontram sob custódia do Estado. e) Anuência do protegido. O ingresso no programas, as restrições de segurança e demais medidas por eles adotadas terão sempre a ciência e concordância da pessoa a ser protegida, ou de seu representante legal (art. 2º, § 3º), que serão expressas em Termo de Compromisso assinado no momento da inclusão.” (MINISTÉRIO DA JUSTIÇA, 2.011). Há que se lembrar, contudo, que o caminho rumo ao melhor atendimento às vítimas não se atém somente è edição de textos legais voltados ao tema, mas depende amplamente de modificações orçamentárias estatais para que o contido na lei possa vir a realizar-se concretamente. “Essa cosmovisão reclama amplas modificações nos orçamentos dos estados para poder arcar com os gastos da mais completa atenção médica, psicológica, sociológica, policial, etc. às vítimas da criminalidade e das estruturas sociais injustas. Ainda não foi alcançada a mentalização desejável da comunidade.” (BERISTAIN, 2.000, p.77). Além disso, o mencionado caminho atravessa também uma transformação na mentalidade daqueles que operacionalizam o Direito, desviando-a, ainda que de forma modesta, para a figura da vítima. “Este deve esquecer-se de sua mentalidade tradicional e atual que tende exclusiva ou quase exclusivamente para o delinquente, e que desconhece, esquece e marginaliza (ou pior ainda, estigmatiza pela segunda vez) as vítimas. Embora seja estranho a muitos juízes e não-juízes, quem administra a justiça penal deve, principalmente, conhecer, ver, escutar e atender as vítimas; a todas as vítimas, e não somente às diretas em sentido ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 245 restrito,isto é, não somente aos sujeitos passivos da infração.” (BERISTAIN, 2.000, p.193) A título de ilustração e a fim de reforçar o argumento de que a preocupação com os direitos das vítimas é tendência que gradativamente ganha força, inclusive no exterior, destaca-se o programa norte-americano de proteção às vítimas e testemunhas. “Programa de Assistência ATF ‘s Victim (Vítima) / Witness (Testemunha) foi implementado em 1999. Atualmente existem 23 Victim (Vítima) / Witness (Testemunha) coordenações localizadas em cada uma das divisões do nosso campo em todo o país. Como uma agência de aplicação da lei federal ATF, está preocupada com os problemas frequentemente experimentados por vítimas e testemunhas de crimes federais. Como a vítima ou a testemunha poderá passar por períodos de raiva, confusão, frustração ou medo. ATF está empenhada em garantir que as vítimas e testemunhas recebam os direitos a que têm direito e assistência para ajudálos a lidar com o impacto do crime. Tratamento das vítimas e testemunhas com respeito e fornecendo-lhes referências e benefícios de assistência prática.” (ATF, 2.010, p.1). Ressalte-se que embora haja registros de resultados positivos no desenvolvimento dos programas especiais federais de proteção à vítima e às testemunhas no Brasil, ainda há muito que ser feito em termos de melhor aplicação da lei penal e maior assistência às vítimas, principalmente aquelas que não preenchem as exigências legais para serem inseridas nos programas especializados, que constituem a grande maioria de vítimas de delitos verificada no país. CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme o exposto no presente estudo, há que se ter em mente que a ciência autônoma da Vitimologia presta-se à busca pela compreensão da vítima em seus mais diversos aspectos, como o biológico, o psicológico e o social, a fim de que seja possível determinar sua maior ou menor participação na ocorrência dos delitos. Além disso, a Vitimologia tem por escopo lançar as bases, através dos resultados de suas pesquisas, para que haja a maior proteção aos Direitos Humanos das vítimas de delitos de todas as naturezas. Dessa forma, é nítida a relação complementar que se estabelece entre ambas as áreas do conhecimento, sendo indissociável ao estudo da Vitimologia a compreensão do que é considerado pelos estudiosos das ciências jurídicas como Direitos Humanos, assim como de fundamental importância o aprofundamento das questões apresentadas pela Vitimologia, a fim de que o resguardo dos Direitos ARGUMENTA - UENP 246 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Humanos se faça de maneira cada vez mais ampla. Não se pode olvidar do Sistema Nacional de Proteção à Vítima e Testemunha - PROVITA que, embora apresente resultados ainda incipientes representa a preocupação do Estado no que concerne à proteção de vítimas e testemunhas dispostas a colaborar com as investigações criminais. Em virtude de tais considerações, resta evidente a importância da compreensão da vítima de modo mais amplo possível, pois a partir de tal entendimento, é possível traçar políticas públicas voltadas para a seara criminal em seus mais diversos aspectos, desde a efetiva prevenção à ocorrência dos crimes até a forma como deve se portar o Estado, através de seus agentes, durante a persecução penal, frente ao indivíduo vitimizado, a fim de que sua situação de vítima não se agrave ainda mais. A ciência da Vitimologia apresenta-se como instrumento indispensável ao Estado Democrático de Direito hoje em vigor, uma vez que auxilia sobremaneira a realização dos direitos fundamentais, bem como reafirma os preceitos de igualdade e dignidade insculpidos na Lei Maior de 05 de Outubro de 1.988. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo – tradução de Roberto Raposo, São Paulo: Companhia das Letras, 1.989. ATF, Victim and Witness Protection. Documento Eletrônico. {on line}. 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ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 247 CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL, promulgada pela Assembléia Nacional Constituinte em 05 de Outubro de 1.988. FERNANDES, Newton; Valter Fernandes. Criminologia integrada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1.995. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Direitos Humanos Fundamentais. São Paulo: Saraiva, 2.006. GRECO, Alessandra Orcesi Pedro. A autocolocação da vítima em risco. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2.004. KOSOVSKI, Ester. Fundamentos da Vitimologia. Documento eletrônico. {on line}. Disponível na Internet via WWW.URL: <http://âmbito-jurídico.com.br/site/ índex.php?n_link=revista_arti>. Acesso em 15 de Abril de 2.011. KOSOVSKI, Ester. Vitimologia e Direitos Humanos: Uma boa parceria. Documento eletrônico. {on line}. Disponível na Internet via WWW.URL:< http:/ /www.sbvitimologia.org/artigos4.html>. Acesso em 01 de Novembro de 2011. 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PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH-3). Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República – rev. e atual. Brasília: SDH/ PR, 2.010. ARGUMENTA - UENP 248 JACAREZINHO Nº 18 P. 223 – 249 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP SALIBA, Marcelo Gonçalves. Justiça restaurativa e paradigma punitivo. Curitiba: Juruá, 2.009. SARLET, Ingo Wolfgang. A eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado. 1.998. SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. São Paulo: Malheiros, 2.009. ZAFFARONI, Eugenio Raúl, O Inimigo no Direito Penal. Tradução de Sérgio Lamarão – Rio de Janeiro: Revan, 2007, 2ª edição junho de 2.007. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 223 – 249 2013 249 250 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP DEMOCRACIA COMO DIREITO FUNDAMENTAL DEMOCRACY LIKE FUNDAMENTAL RIGHT Walter Claudius ROTHENBURG* SUMÁRIO: 1. Narrativa: a democracia é a condição política do Direito na contemporaneidade; 2. Crônica; 3. Ficção; Referências. RESUMO: Este texto foi originariamente publicado como prefácio à obra Constituição e Participação Popular, publicada em meados de 2013, pela editora Juruá. Procuramos neste artigo além de apresentar o texto, demarcando os principais aspectos percorridos pelo autor, estabelecer o diálogo com outras fontes, e eventualmente apresentar contrapontos, ainda que sucintos, mas que são lançados como marcos para um diálogo futuro. ABSTRACT: This text was originally published as a preface to the book Constitution and Popular Participation, published in mid-2013, by Juruá Editions. In this manuscript besides presenting the text, marking the main aspects covered by the author, establish dialogue with other sources, and eventually present counterpoints, albeit succinct, but are released as milestones for future dialogue. PALAVRAS-CHAVE: Democracia; Direitos Fundamentais; Constituição e Participação Popular KEYWORD: Democracy; Fundamental rights; Constitutions and Popular Participation. Será este tema – democracia – um daqueles que nunca se acaba, pois o governo é um desafio de cada tempo e a legitimidade é uma expectativa de cada comunidade. O que vale igualmente para o Direito: “Um direito que não consegue regulamentar as relações sociais de forma que corresponda aos anseios da população não encontra aceitação e perde sua legitimidade” (Dimitri Dimoulis1). Mas é preciso * Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II. Professor da Instituição Toledo de Ensino (ITE) e Procurador Regional da República. Autor Convidado. [email protected] - Texto originalmente publicado como prefácio à obra: ALVES, Fernando Brito. Constituição e Participação Popular - A Construção Histórico-Discursiva do Conteúdo Jurídico-Político da Democracia como Direito Fundamental. 1. ed. Curitiba: Juruá, 2013. 362p . 1 Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 255. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 251 – 260 2013 251 fugir do lugar-comum. O discurso trivial e superficial sobre democracia, repetido irritantemente e sem rendimento nos trabalhos acadêmicos, serve apenas para desvalorizá-los. FERNANDO DE BRITO ALVES sabe disso, assume o risco do chavão, mas não se perde. Porque não é banal sua abordagem, pretendidamente jurídica, da democracia. 1.NARRATIVA a democracia é a condição política do Direito na contemporaneidade O itinerário proposto na presente obra para percorrer o tema da democracia é convidativo. A rápida prospecção do sumário revela uma abordagem interessante, que provoca dois efeitos. Demonstra desde logo um conhecimento da situação contemporânea do assunto “democracia” e de seus fundamentos teóricos. Apresenta isso de modo atrativo e sofisticado. De início, é preciso justificar o tema sob a perspectiva jurídica, pois o livro é produto da tese de doutorado2 do programa de pós-graduação da Instituição Toledo de Ensino (ITE), cuja área de concentração é “sistema constitucional de garantia de direitos”. A tarefa, aqui, não é difícil, embora também não seja evidente. Ocorre que a democracia é a condição política do Direito na contemporaneidade. Já não é possível conceber o fenômeno jurídico e a positividade de um ordenamento jurídico em vigor sem que seja no ambiente democrático.3 Foi-se o tempo em que se aceitava um ordenamento jurídico essencialmente injusto e se apresentava o Direito como a institucionalização da força independentemente de quem a empregasse e para quais fins. É de rechaçar, portanto, a afirmação de que “um Estado de direito é também possível sem democracia” (F. Schneider)4. Regimes ilegítimos e opressivos institucionalizam, sim, a violência, e utilizam normas cogentes para organizar a sociedade, mas não se justifica chamar isso de “Direito”. Sendo a Constituição um fundamento normativo privilegiado, onde os direitos são assegurados, o espaço que a democracia aí ocupa serve de forte índice de legitimidade. Compreende-se então que um tema aparentemente (mas só aparentemente) político insira-se perfeitamente na produção acadêmica do “sistema constitucional de garantia de direitos”. Esse importante tom da narrativa – que deve ser jurídica antes de tudo – é dado desde os prolegômenos, vez que “o conteúdo jurídico da democracia” é apresentado “como direito fundamental”. Dupla face (reflexiva) da democracia, como condição dos direitos fundamentais e ela mesma um direito fundamental: “contemporaneamente, a democracia demarca os limites institucionais nos quais é possível a ocorrência dos direitos fundamentais, constituindo-se, ela própria, um direito fundamental”, pontua FERNANDO. 2 3 4 A orientação coube à Professora ELIANA FRANCO NEME. WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG, Direito constitucional. São Paulo: Verbtim, 2010, p. 35. Citado por J. J. GOMES CANOTILHO, Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 458. ARGUMENTA - UENP 252 JACAREZINHO Nº 18 P. 251 – 260 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Voltemos ao mapa do percurso. Nosso autor mostra pendores literários e brinca com a linguagem ao apresentar sua tese em duas grandes partes: a gramática da democracia, para que saibamos compreendê-la; a pragmática da democracia, para que saibamos aplicá-la. Na primeira parte (gramatical), narram-se os espaços do Direito e da democracia no primeiro capítulo, com destaque para o “retorno do político”: a política não é uma lógica paralela ou contrastante em relação à lógica do Direito. Política e Direito são sistemas que se comunicam, interdependentes, mas cada qual com sua autonomia (relativa). Não é possível, na sociedade, que eles se ignorem. É nesse sentido que a política retorna ao Direito. Se a política tem a capacidade de construção do mundo (FERNANDO DE BRITO ALVES, em referência a Roland Barthes), “a prioridade do direito existe porque as sociedades democráticas são constituídas por instituições que definem os sujeitos políticos como sujeitos de direito que lhe são atribuídos, em boa medida, por essas mesmas sociedades, e que constroem algum consenso sobre a própria ideia de bem e de justiça” (FERNANDO DE BRITO ALVES, agora em referência a uma de suas favoritas: Chantal Mouffe). Se democracia e Direito implicam-se, convém dizer, afinal, o que é democracia. Surge o gênio provocativo do autor, que oferece a seguinte interrogação de Ulrich Beck: “se a democracia é a resposta, qual é a pergunta?”. Duas são as propostas: teorias substantivas da democracia (capítulo segundo), para responder à indagação “o quê”; teorias adjetivas da democracia (capítulo terceiro), para responder à indagação “como”. No plano da linguagem, FERNANDO, com maestria, designa estas teorias adjetivas como “meta-teorias da democracia”. Para explicar o conteúdo da democracia segundo as teorias que dominam a ciência política contemporânea, são utilizadas as categorias do liberalismo e do igualitarismo (com suas variações). FERNANDO prefere incluir no igualitarismo a teoria comunitarista, que eu talvez tratasse em separado. O liberalismo constrói a democracia (e tudo o mais) a partir da “liberdade como principal vetor moral da vida pública” e – segundo o autor – o liberalismo “inaugura a ideia de democracia formal, como forma de tornar possível a coexistência da igualdade política com a desigualdade socioeconômica”. Veremos que as coisas não são tão simples assim e que também o igualitarismo, em sua vertente “liberal” (ou seria o liberalismo em uma vertente “igualitária”?), preocupase fundamentalmente com as “diferenças sociais e desigualdades econômicas”, com vistas a minimizá-las. Trata-se, nomeadamente, das contribuições de John Rawls e de Ronald Dworkin. O igualitarismo constrói a democracia sob uma perspectiva menos individualista, ao ressaltar a importância do grupo e de sua cultura. FERNANDO inclui aqui pontos-de-vista diversos como são o comunitarismo, o socialismo e o pluralismo. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 251 – 260 2013 253 O comunitarismo merece destaque. Para definir o comunitarismo, assevera Wayne Morrisson: “Os comunitaristas afirmam que não se pode definir o direito antes do bem, uma vez que é só por meio de nossa participação numa comunidade que define o bem que podemos ter uma concepção do que é justo e chegar a uma concepção de justiça. Fora da comunidade o bem e o justo não existem.”5 Para distinguir o comunitarismo, Cláudio Pereira de Souza Neto e Daniel Sarmento assentam que “os liberais priorizam os direitos do indivíduo, enquanto os comunitaristas se inclinam em favor dos valores e interesses da comunidade”.6 Posso estar enganado, mas acredito que FERNANDO , ao aproveitar a apresentação das diversas “possibilidades” de igualitarismo, fabrica um pretexto intelectualmente legítimo para a crítica ao capitalismo. O autor revela assim um pendor “de esquerda” e tem a minha simpatia. Os conteúdos possíveis da democracia, segundo tal figurino (que se estabelece como assente no pensamento contemporâneo), carecem, todavia, de uma forma, ou melhor dizendo, de um modo instrumental. Seriam as teorias adjetivas, que “aplicam” as teorias materiais da democracia, e que FERNANDO apresenta sob as espécies da democracia agregadora e da democracia deliberativa. A democracia agregadora é uma concepção minimalista, procedimentalista, individualista e utilitarista, que cobra apenas “um envolvimento político mínimo” (Schumpeter) e precisa contar com políticos qualificados, consenso relativo e convergência política (competição política restrita), eficiência burocrática, autocontrole (para “evitar um excesso de críticas ao governo”) e “uma cultura das diferenças de opinião”. A democracia deliberativa tem como características a participação de cidadãos livres e iguais; a justificação das decisões “em um processo no qual apresentam uns aos outros motivos que são mutuamente aceitos e geralmente acessíveis” (Amy Gutmann e Dennis Thompson); decisões vinculantes, mas passíveis de rediscussão futura. Advirta-se, contudo, que tal classificação – como qualquer outra – é um tanto artificial, pois todas as teorias da democracia têm muito de conteúdo, ou seja, distinguem-se substancialmente, e fazem-se todas acompanhar de um modo de aplicação relativamente próprio, ou seja, distinguem-se também adjetivamente. Teria sido possível, portanto, agrupar todas as teorias da democracia em um único elenco e abandonar a apresentação delas em dois grupos, um sobre as teorias e outros sobre as meta-teorias. Seria, contudo, desconsiderar uma opção do autor que, sobre ser justificável, revela uma escolha estética. FERNANDO tem exata consciência disso, pois afirma que as “meta-teorias” não são “epistemologicamente ou metodologicamente neutras” e “expressam compromissos intrínsecos com teorias substantivas da democracia”. Uma relação que pode ser estabelecida, 5 6 Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 492. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 238. ARGUMENTA - UENP 254 JACAREZINHO Nº 18 P. 251 – 260 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP segundo o autor, está em que “as teorias agregadoras da democracia funcionariam melhor em contextos liberais, enquanto as teorias deliberativas são mais adequadas ao igualitarismo ou ao igualitarismo liberal”. Chegados ao ômega da narração gramatical da democracia, somos lembrados, no capítulo quatro, de que a democracia é um direito fundamental. Preocupa-se nosso autor com uma enxurrada de direitos fundamentais, que vulgarizariam a própria fundamentalidade. Dá como exemplos de excesso (“[c]omo se fôramos carentes de histórias curiosas”: Walter Benjamin), entre outros, categorias jurídicas como a exceção de pré-executividade, o amor, a honra coletiva, o porte de armas, o closed caption e a legenda animada. É certo que, se tudo é fundamental, nada é fundamental, sendo preciso encontrar algum critério e realizar alguma seleção. Falta, contudo, tratar um pouco melhor desse critério. Ademais, muitos pretensos direitos fundamentais não têm autonomia, mas são expressões de direitos fundamentais “matriciais” e, assim, guardam uma fundamentalidade “derivada”. Ao falar do exagero, FERNANDO tenha talvez se empolgado e... exagerado ao incluir na lista do excesso o esporte, o direito do consumidor, o fornecimento estatal de medicamentos, o patrimônio cultural linguístico, enfim, direitos que eu não hesitaria em reconhecer como fundamentais, especialmente diante da Constituição brasileira de 1988. O “risco do excesso” é mesmo um problema, como adverte José Adércio Leite Sampaio; “[o]corre que os direitos são resultado do encontro de duas premissas: as necessidades humanas e o consenso em torno das prioridades de sua satisfação. Aquelas são ambiciosas por natureza; este tem um quê de universalidade própria da moral materializada em decisões contingentes que, a pretexto de atender, refreiam o ímpeto de reprodução lepusgênica das necessidades”.7 (Nota: “lepus” é lebre em latim, de onde “lepusgênico” deve referirse à multiplicação, à reprodução intensa.) A democracia converte-se em um direito fundamental e integra o Estado de Direito Social. O Estado de Direito é, necessariamente, um Estado Democrático de Direito, como, aliás, dispõe expressamente a Constituição brasileira no artigo 1º.8 Na qualidade de direito fundamental, a democracia precisa estar conforme ao contexto histórico-social, daí a necessidade de “uma teoria da democracia adequada aos países de modernidade tardia”. Não é, nem nunca foi, uma concepção anódina de democracia, visto que há uma direção claramente emancipatória. Para tanto, ou seja, para “[a] construção de uma dogmática potencializadora dos valores libertários e igualitários condensados no corpo constitucional”, são colocadas algumas exigências, segundo Clèmerson Merlin Clève: “(i) uma ética da responsabilidade; (ii) de uma política da criatividade; (iii) de um compromisso ideológico definido (crítica da neutralidade)”.9 7 8 9 Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004, p. 309. J. J. GOMES CANOTILHO, Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993, p. 460. Para uma dogmática constitucional emancipatória. Belo Horizonte: Fórum, 2012, p. 44. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 251 – 260 2013 255 FERNANDO conclui que “democracias substantivas são aquelas formas de vida dos povos que asseguram a existência de espaços coletivos em que o “político” acontece, tanto pela ação dos movimentos sociais quanto pela articulação do Estado enquanto novíssimo movimento social, garantindo a inclusão das minorias e a proteção dos grupos vulneráveis, como uma imposição das demandas de igualdade inerentes à própria democracia”. Destaco que o foco na inclusão social das pessoas e grupos vulneráveis (“minorias”) vem exatamente do eixo temático da pós-graduação em Direito da Instituição Toledo de Ensino (ITE), que foi cunhado com sucesso pelo coordenador original do programa, Professor LUIZ ALBERTO DAVID ARAUJO. Fundamentação teórica adquirida no percurso, é chegada a hora de aplicar a democracia, pois à gramática segue-se a pragmática, na sugestão linguística de FERNANDO. A primeira aplicação é dada, no quinto capítulo, com muita pertinência e atualidade, em relação aos direitos políticos, ao acesso à informação e à transparência pública. Desenvolvem-se tecnologias da democracia. A participação efetiva dos “cidadãos” requer conhecimento informado, é dizer, que as informações estejam disponíveis e possam ser compreendidas, utilizadas, contestadas, aperfeiçoadas. Como observa Sandra Kishi, “[o] acesso ás informações detidas pelo Poder Público deve pautar-se na promoção de sua transparência, na facilitação do acesso e na ampla divulgação das questões de interesse público, com responsabilidade do Estado pela ação ou omissão dissonantes a esse dever garantido pela Constituição Federal brasileira”.10 A respeito, veja-se que, no Brasil, foi editada a Lei 12.527, de 18 de novembro de 2011, para regular o acesso a informações dos órgãos públicos. A questão da informação assume uma proporção imensa na contemporaneidade em razão dos meios de comunicação de massa e, muito especialmente, da informática, que resgata as clássicas possibilidades de participação da comunidade, não mais no espaço restrito da praça pública e com um público limitado de manifestações presenciais por gestos e aclamações, mas no universo da Internet e em tempo real. Uma ágora cibernética. Os recursos tecnológicos da informática servem não apenas à democracia (e-democracy), mas ao governo (e-government). No campo dos direitos fundamentais, o banho de luz provocado pelo acesso à informação encontra um contraponto no direito à privacidade. FERNANDO tem, sobre o problema, uma posição sóbria: “A cultura da transparência, quando voltada para ao exercício de poder biopolítico, ao invés de emancipar e incluir, pode produzir o seu contrário. Assim ao invés de ampliar os mecanismos de controle e responsabilização, o ‘excesso de transparência’ induziria a um ‘panopticismo’ 10 Direito à informação e à participação na Justiça de Transição. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 274. ARGUMENTA - UENP 256 JACAREZINHO Nº 18 P. 251 – 260 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP paralisante, que reduz a responsabilidade das instâncias ordinárias de controle, e que desestimula a participação na vida pública.” A segunda aplicação prática da democracia é dada no capítulo seis, onde são abordadas técnicas que viabilizam a participação democrática (que democratizam a democracia, na expressão do autor), tais como o orçamento participativo, as audiências públicas, a iniciativa legislativa popular, o plebiscito, o referendo e os conselhos de políticas públicas. FERNANDO não se restringe a descrever esses mecanismos – o que se contém na perspectiva de uma narração descritiva –, senão que sugere alargamentos e otimizações – o que desborda para uma narração propositiva. Para “a ampliação das formas de exercício da soberania popular”, poderiam ser adotados institutos tais que o “referendo revogatório de mandato”, a “iniciativa popular para a convocação de plebiscitos e referendos”, a “iniciativa popular para convocar Assembléia Constituinte”, a “instituição de referendo obrigatório para deliberar sobre os atos do poder constituinte reformador”, “seções abertas dos órgãos legislativos especialmente convocadas para proporcionar a participação popular” e a “adoção de forma mais sistemática e abrangente da consulta popular não vinculativa em temas de consistente relevância pública, que poderia ser realizada pelos meios tecnológicos e eletrônicos disponíveis”. Em relação à atuação dos conselhos de políticas públicas, o autor, com uma preocupação eminentemente jurídico-processual, pugna pela atribuição de “legitimidade processual ativa para ingressar com Ação Civil Pública para reclamar ao poder judiciário a tutela objetiva e específica das políticas públicas” estabelecidas pelos conselhos. O penúltimo capítulo é consagrado às implicações da democracia com os direitos sociais, na direção da igualdade. Tenho uma posição teórica de crítica em relação a ambos os conceitos. Os direitos sociais não se justificam como categoria jurídica autônoma, pois acabam por receber um tratamento jurídico menos protetivo que os demais direitos fundamentais, quando, a rigor, são direitos fundamentais como qualquer outro, tão importantes quanto os demais. A igualdade não suporta a clássica distinção entre igualdade formal e igualdade material: ambas compõem uma única categoria jurídica.11 FERNANDO, sem referir essa problemática, posicionase entre os comunitaristas para “reconhecer que a igualdade é valor substantivo, e reserva de justiça política, característicos das comunidades políticas democráticas, e se articula com os direitos fundamentais (liberdades – em sentido amplíssimo), na instituição de um novo republicanismo, em que deliberação e dissenso convivem”. Por fim, o capítulo oito dedica-se à discussão acerca da capacidade de implementação judicial dos direitos fundamentais no contexto da democracia. 11 WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG, Igualdade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra, 2009, p. 359-368. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 251 – 260 2013 257 Discute-se, a partir da questão sempre polêmica e tão atual acerca do papel do Poder Judiciário na determinação dos direitos fundamentais, a própria relação entre Direito e política. Veja-se como é hábil e coerente nosso autor ao retomar, no desfecho, as considerações do primeiro capítulo. O título do capítulo é claramente inspirado em John Hart Ely12. Discutese o ativismo judicial, com ênfase na jurisdição constitucional (controle de constitucionalidade) e seu papel contramajoritário. Pois pode acontecer de os canais institucionais de representação democrática atuarem em contradição com as balizas que o Direito lhes traça, sendo que “alguns desvios devem ser considerados tão graves que, embora gerem igualmente o fenômeno da inconstitucionalidade, provocam a deslegitimação do Parlamento e a desconfiança como forte sentimento de repúdio e desconforto, atingindo as bases da própria democracia” (André Ramos Tavares)13. A opinião de FERNANDO – a estas alturas previsível – é de que, respeitada a importante intervenção dos operadores jurídicos em assegurar os direitos, não se deve afastar a participação democrática, haja vista a “reserva de poder do povo”: “para a realização de projetos contemporâneos de democracia é mister que haja uma reserva clara de poder do povo. Se todo ele é alienado nas dinâmicas dos processos de representação, ou se o povo/multidão/bando dele é alijado pelas perversas dinâmicas de exploração do capitalismo, a aporia da democracia desnatura-se em devaneios metafísicos mais abstratos que o reino dos céus ou o Estado comunista”. 2. CRÔNICA O trabalho de FERNANDO DE BRITO ALVES definitivamente não é uma descrição e nem poderia sê-lo. Por dois motivos, um de ordem formal e outro de ordem subjetiva. Trata-se de uma tese de doutoramento, em que se requer algo mais do que um apanhado da doutrina. Exige-se originalidade seja quanto ao conteúdo das ideias apresentadas, seja quanto ao modo de apresentá-las. FERNANDO faz uma apresentação crítica e estabelece ilações que não estão no material pesquisado: são fruto do labor intelectual do próprio autor. Essa é a razão de ordem formal. FERNANDO é Professor de Filosofia do Direito na tradicional e acolhedora Faculdade de Direito de Jacarezinho, da Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Pude perceber seu preparo, sua capacidade de reflexão e sua tranquilidade quando da honra de tê-lo no grupo de doutorandos da Instituição Toledo de Ensino (ITE) em Bauru (SP). E percebo melhor agora sua visão de mundo comprometida com uma perspectiva jurídica de desalienação (emancipação) e redistribuição (justiça social). Essa é a razão de ordem subjetiva. 12 Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. 13 Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28. ARGUMENTA - UENP 258 JACAREZINHO Nº 18 P. 251 – 260 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 3. FICÇÃO Eis o meu gênero literário favorito. É quase impossível adotá-lo no discurso jurídico, especialmente no plano acadêmico, fortemente enquadrado por rigores formais. Não que o Direito deixe de flertar com a ficção, embora seja isso ruim na maior parte das vezes. Mas o apanhado da doutrina, o agitar da teoria, requerem muito mais realidade (descrição) do que fantasia. Restam, assim, reduzidas as opções narrativas e, no âmbito da estética, as possibilidades de encantamento. FERNANDO pretendeu transgredir um pouco, como tenho feito, sabedores que haverá resistência, incredulidade e decepção. Transgressões de conteúdo e de forma, na academia, nem sempre são adequadas e nem sempre são eficientes (úteis). Mas têm a favor de si o enfrentamento do conservadorismo e da chatice, que têm facilidade de instalar-se nesse ambiente. A tentativa de FERNANDO estava na proposta original de apresentar sua tese sob a forma do ensaio, que, segundo Adorno, “não almeja uma construção fechada, dedutiva ou indutiva” e se sente “esmagado entre uma ciência organizada, na qual todos se arrogam o direito de controlar a tudo e a todos, e onde o que não é talhado segundo o padrão do consenso é excluído ao ser elogiado hipocritamente como ‘intuitivo’ ou ‘estimulante’”. O ensaio é semelhante à arte e revolta-se “sobretudo contra a doutrina, arraigada desde Platão, segundo a qual o mutável e o efêmero não seriam dignos da filosofia; revolta-se contra essa antiga injustiça cometida contra o transitório, pela qual este é novamente condenado ao conceito”. Diversas percepções da realidade, diversas opções de narrá-la, inclusive sob forma ficcional: isso é democracia. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito constitucional. 6. ed. Coimbra: Almedina, 1993. DIMOULIS, Dimitri. Manual de introdução ao estudo do Direito. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. ELY, John Hart. Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2010. KISHI, Sandra. Direito à informação e à participação na Justiça de Transição. In: SOARES, Inês Virgínia Prado; KISHI, Sandra Akemi Shimada (Coord.). Memória e verdade: a justiça de transição no Estado Democrático brasileiro. Belo Horizonte: Fórum, 2009, p. 274. MORRISSON, Wayne. Filosofia do direito: dos gregos ao pós-modernismo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. Para uma dogmática constitucional emancipatória. Belo Horizonte: Fórum, 2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 251 – 260 2013 259 ROTHENBURG, Walter Claudius. Direito constitucional. São Paulo: Verbtim, 2010. ______. Igualdade. In: LEITE, George Salomão; SARLET, Ingo Wolfgang (Coord.). Direitos fundamentais e estado constitucional. Estudos em homenagem a J. J. Gomes Canotilho. São Paulo: Revista dos Tribunais; Coimbra: Coimbra, 2009, p. 359-368. SAMPAIO, José Adércio Leite. Direitos fundamentais: retórica e historicidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2004. SOUZA NETO, Cláudio Pereira de. SARMENTO, Daniel. Direito constitucional: teoria, história e métodos de trabalho. Belo Horizonte: Fórum, 2012. TAVARES, André Ramos. Paradigmas do judicialismo constitucional. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 28. ARGUMENTA - UENP 260 JACAREZINHO Nº 18 P. 251 – 260 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP BULLYING NAS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR BULLYING IN HIGHER EDUCATION INSTITUTIONS Edinês Maria Sormani GARCIA* Paulo Roberto Iotti VECCHIATTI** Taís Nader MARTA*** SUMÁRIO: 1. Noções constitucionais preliminares à correta compreensão do tema; 2. O respeito à diversidade no ambiente de ensino; 3. O Bullying; 4. Bullying e as Instituições de Ensino Superior; Considerações finais; Referências. RESUMO: O bullying é uma prática que afronta a dignidade humana de suas vítimas, ante a discriminação, violência, crueldade e opressão a ele inerentes. Muitos acreditam que a única incidência deste fenômeno ocorre em Instituições Educacionais de crianças. Todavia, verifica-se um grande assolamento também no ensino superior. A mudança de cenário que começa a ocorrer no Brasil no que tange ao respeito às diferenças é algo muito positivo, mas ainda é pouco, pois é necessário se consiga a plena educação inclusiva já que não podemos aceitar que pessoas sejam discriminadas nas próprias instituições de ensino superior. ABSTRACT: Bullying is a practice that affront to human dignity of its victims, against discrimination, violence, cruelty and oppression inherent to it. Many believe that the only incidence of this phenomenon occurs in educational institutions for children. However, there is a great havoc of this phenomenon also higher education. Change of scene that begins to occur in Brazil in regard to respect for differences is something very positive, but is still low, it is necessary to get the full inclusive as we can not accept that people are discriminated in their own educational institutions higher. PALAVRAS-CHAVE: Educação inclusiva; Bullying; Dignidade humana. Ensino superior. * Mestre em Direito Constitucional. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Bauru. Endereço eletrônico: [email protected]. ** Mestre em Direito Constitucional. Autor do livro Manual da Homoafetividade. da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (2. ed. São Paulo: Editora Método, 2012). Advogado. Endereço eletrônico: [email protected]. *** Mestre em Direito Constitucional. Advogada. Professora de Graduação em Direito e de Cursos de Pós Graduação. Endereço eletrônico: [email protected]. Artigo submetido em 06 de junho. Aprovado em 19 de julho de 2013 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 261 KEYWORDS: Education; Bullying; Human dignity; Educational institutions higher. 1. NOÇÕES CONSTITUCIONAIS PRELIMINARES À CORRETA COMPREENSÃO DO TEMA A República Federativa do Brasil em seu art. 1º, inciso III, estabelece como objetivo fundamental à dignidade da pessoa humana, tal princípio enseja outros princípios como o da igualdade, liberdade, não-discriminação, não exclusão, dentre outros. E aí passamos a refletir com a seguinte indagação: Será possível ser feliz sem dignidade? A dignidade humana constitucionalmente consagrada garante a todos o direito à felicidade, na medida em que a realidade empírica demonstra que a própria existência humana destina-se a evitar o sofrimento e a buscar aquilo que acreditamos que nos trará a felicidade. Assim, a proteção especial do ser humano em relação aos demais seres vivos é justificada pelo fato do ser humano diferenciar-se positivamente daqueles, o que lhe garante o reconhecimento de uma maior dignidade daquela reconhecida aos demais seres vivos. Todavia, é absolutamente irrelevante saber quais seriam estas características específicas que diferenciam o ser humano dos demais seres vivos (embora a doutrina majoritária pareça seguir a concepção kantiana, positivada no art. 1o da Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, ao dizer que o ser humano se diferencia dos demais seres vivos por força de sua racionalidade – por agir conforme a razão, a autonomia da vontade e a liberdade e não necessariamente em função de seus puros instintos): afinal, qualquer um sabe diferenciar um ser humano de outro animal. Deste modo o princípio da dignidade da pessoa humana garante a todos o mesmo respeito e a mesma dignidade pelo simples fato de serem pessoas humanas, sendo absolutamente irrelevantes quaisquer condições externas nesse contexto. Destarte, os princípios da igualdade e da proporcionalidade devem ser os nortes utilizados quando da decisão sobre qual dignidade humana deve prevalecer no caso de confronto direto que as lides concretas podem trazer ao juiz. Como se vê, a questão remete ao aspecto material da isonomia, que é o único critério válido que pode ser usado para se relativizar a dignidade de uns em relação à de outros, tendo em vista que a arbitrariedade de tratamento não é só vedada pela isonomia, mas também pela dignidade da pessoa humana. Afinal, não há como se cogitar de uma vida digna quando a pessoa é discriminada negativamente de forma arbitrária (preconceituosa). De valor supremo, o princípio da dignidade da pessoa humana consolida a força dos direitos fundamentais e a proteção do homem desde o direito à vida. Este princípio não se encontra apenas entre os direitos fundamentais, inseridos no ARGUMENTA - UENP 262 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP extenso rol do Art. 5º da Constituição Federal de 1988, mas é ideal perseguido em todas as disposições constitucionais, pois o objetivo do constituinte foi de considerálo, não somente como um direito fundamental do ser humano, mas expressá-lo como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil, conforme o Art. 1º, inc. III da Constituição Federal de 1988. Tal princípio é a pedra de toque de todo sistema jurídico constitucional, não podendo ser infringido por quem quer que seja, principalmente pelo Poder Público, que tem a obrigação precípua de proteger e fazer cumprir os ditames da Constituição Federal vigente. 2. O RESPEITO À DIVERSIDADE NO AMBIENTE DE ENSINO A instituição de ensino superior é um ambiente destinado ao aprendizado onde existir ensinamentos técnicos destinados a fornecer cultura sobre os conceitos básicos das diversas disciplinas. Mas as faculdades e universidades não se resumem a lições das disciplinas constantes do currículo escolar. O respeito à igualdade e, ao mesmo tempo, à diversidade existente entre os seres e os grupos humanos é indispensável para assegurar a igualdade sem extinguir as barreiras, respeitando-se as diferenças. O ambiente de ensino precisa ser inclusivo para ensinar a convivência em sociedade, o respeito ao próximo, o respeito aos limites inerentes à vida social. A palavra inclusão tem dois significados distintos na educação: um quando possibilitamos iguais oportunidades de aprendizado, e outro quando se pensa no conceito de educação inclusiva: Na inclusão, é a escola que se modifica e passa a se adaptar às necessidades de cada aluno ... Incluir requer pensar sempre em novas estratégias. É um processo dinâmico, no qual acontecem erros e acertos, e não uma fórmula engessada que a escola impõe aos alunos, mandando embora quem não se adapta a ela.1 Isso ocorre, pois a escola é por excelência, um ambiente destinado à convivência com o outro, com aquele que é diferente de si, criado com base em valores distintos, possuidor de características distintas da nossa. A inclusão se inspira sob novos princípios: a celebração de diferenças, o direito de pertencer, a valorização da diversidade humana, a solidariedade humanitária, igual importância das minorias e cidadania,2 além da pluralidade. Disse Hannah Arendt que “a pluralidade é a condição da ação humana pelo fato de sermos todos os mesmos, isto é, humanos, sem que ninguém seja exatamente igual a qualquer pessoa que tenha existido, exista ou venha a existir”.3 1 2 3 PERRI, Adriana. Aprendendo a Aprender. Sentidos, São Paulo, v. 4, n. 24, p. 22-29, ago./set. 2004. SASSAKI, Romeu Kazumi. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. 3. ed. Rio de Janeiro: WVA, 1997, p. 17. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2001, p.16. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 263 O preconceito no ambiente educacional deve ser combatido, pois cada pessoa é um pacote indivisível de talentos e de limitações combinados em proporções variáveis em função das oportunidades que a vida traz desde a concepção. Jovens, adultos e idosos são mais ou menos talentosos, ou limitados, dependendo dos recursos que o meio ambiente oferece.4 No Brasil Pontes de Miranda, ao comentar a Constituição de 1946, já alertava que a educação é um direito de todos e que ninguém pode ser excluído dela: A educação somente pode ser considerada direito de todos se há escolas em número suficiente e se ninguém é excluído delas, portanto se há direito público subjetivo à educação e o Estado pode e tem de entregar a prestação educacional. Fora daí, é iludir o povo com artigos de Constituição ou de leis.5 (grifos no original) Como desenvolver a tolerância? Como fazer com que as pessoas aprendam a conviver com as diferenças para se tornarem menos preconceituosas? Será que as pessoas discriminam sempre por opção e consciência ou muitas das vezes o fazem por desconhecimento e por não saberem como agir diante do diferente? A resposta a essas questões podem ser dadas pela educação inclusiva, que, partindo-se do entendimento de Luiz Alberto David de Araujo, 6 será apresentada como um mecanismo eficaz para a formação de pessoas tolerantes e que respeitem as diferenças, desde que possam ter vivido e convivido com as diferenças. Ou seja, o ambiente de ensino é por excelência o ambiente destinado à pluralidade, à diversidade, ao convívio com o diferente, um local que se destina a ensinar TODOS que, portanto, devem respeitar o próximo para que possam respeitar a si mesmos. Abrir espaço para esse tipo de discussão e convivência é essencial para a formação de sujeitos conscientes, críticos, questionadores e sensíveis à diversidade. 4 WERNECK, Claudia. Aqui está o melhor da raça humana! Artigo publicado no Jornal do Brasil em setembro de 2000. Disponível em: h t t p : / / w w w . e s c o l a d e g e n t e . o r g . b r / m y p u b l i s h 3 / VisualizarPublicacao.asp?CodigoDaPublicacao=111&visualizar=1&CodigoDoTemplate=1. Acesso: 18/08/2008. 5 PONTES DE MIRANDA, Francisco. Comentários à Constituição de 1946. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1960 v. 6, p. 210. 6 Luiz Alberto David Araujo enfatiza a concepção de igualdade nas escolas afirmando que: A criança e o adolescente têm o direito de ser incluído socialmente. Não se quer mais a criança e o adolescente segregados, em escolas próprias, onde o convívio será sempre o mesmo. É preciso pensar-se em uma escola inclusiva, onde as crianças brinquem juntas e convivam, sem preconceitos ou quaisquer discriminações (ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da pessoa portadora de deficiência e os obstáculos para efetivação da inclusão social: tentativa de diagnostico do período 1988-2003. In: Constitucionalizando Direito. 15 anos da Constituição Brasileira de 1988. Fernando Facury Scaff (Org). Rio de janeiro: 2003, p. 422). ARGUMENTA - UENP 264 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Para um desenvolvimento completo do ser humano é necessário que a escola reflita solidariedade e tolerância, pois a diferença compõe justamente a base necessária da educação. Essa é a finalidade das instituições de ensino superior e disso não se tem a menor dúvida. Ocorre que, lamentavelmente, elas acabam sendo palco de flagrantes desrespeitos à honra e à dignidade por força da arrogância e prepotência de outras pessoas, que se dão o direito de agredir física e principalmente psicologicamente a outras, geralmente aquelas mais tímidas e introvertidas. É o fenômeno do bullying, sobre o qual se passa a discorrer. 3. O BULLYING O bullying é uma das mais cruéis manifestações da violência no ambiente de ensino, pela qual o agressor vai paulatinamente destruindo a auto-estima do agredido mediante uma série de ofensas e humilhações públicas perante os outros colegas de classe e perante a escola. Por não existir uma palavra na língua portuguesa capaz de expressar todas as situações de bullying possíveis, o quadro, a seguir, relaciona algumas ações que podem estar presentes: colocar apelidos, ofender, zoar, gozar, encarnar, sacanear, humilhar, fazer sofrer, discriminar, excluir, isolar, ignorar, intimidar, perseguir, assediar, aterrorizar, amedrontar, tiranizar, dominar, agredir, bater, empurrar, ferir, roubar, quebrar pertences.7 Esse assunto começa a ser discutido pela mídia. Filmes8 retratam situações de bullying e programas de televisão9 controverter esse tema. Seja mediante a atribuição de apelidos pejorativos, através de exposições da vítima ao ridículo perante os demais alunos, pela destruição ou apropriação de materiais escolares da vítima ou quaisquer outras atitudes desrespeitosas à dignidade desta, o agressor parece sentir enorme prazer e/ou satisfação ao impiedosamente humilhar a vítima. Nas palavras de Gabriel Chalita:10 O bullying é a negação da amizade, do cuidado, do respeito. O agente agressor impiedosamente expõe o agredido às piores humilhações. Dos apelidos perversos às atitudes covardes de quem tem mais força física ou mais poder. O agredido dificilmente encontra coragem para se defender e permite que se fechem as cortinas. E quantos há que, com as cortinas fechadas, dão cabo à própria história. 7 ABRAPIA. Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes. Disponível em: www.bullying.com.br/BConceituacao21.htm. Acesso: 24/06/2010. http:// 8 Como por exemplo o filme “Bang bang você está morto” baseado na peça “Bang, Bang You’re Dead”, de William Mastrosimone que retrata um professor de teatro. Neste filme vemos problemas como falta de diálogo, incompreensão, hostilidade, hipocrisia. 9 Por exemplo, o Programa da Rede Globo “ALTAS HORAS”, do apresentador Serginho Groisman. CHALITA, Gabriel. Pedagogia da Amizade. Bullying: o sofrimento das vítimas e dos agressores. 1. ed. São Paulo: Gente, 2008, p. 14. 10 ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 265 Não são poucos os relatos recentes de alunos que desistem de viver e que, antes disso, decidem se vingar da instituição que permitiu que as cortinas lhes fossem fechadas. De acordo com Luiz Flávio Gomes: Bullying, por seu turno, no âmbito escolar, significa a ação dos estudantes que se colocam em posição de superioridade a outro estudante para lhe agredir, de forma reiterada, verbal, física ou psicologicamente. Trata-se de prática vislumbrada no âmbito infantil ou juvenil, ou seja, entre crianças e adolescentes estudantes que se comportam reiteradamente dessa maneira diante de outras crianças ou adolescentes, também estudantes, que são expostos a situações constrangedoras, quando não a agressões físicas.11 Dificilmente haverá alguém que não tenha presenciado as mais diversas formas de perseguições perpetradas por alunos populares e/ou de personalidade forte contra alunos tímidos e/ou introvertidos, normalmente aqueles mais isolados e de poucos amigos. Contudo, o grande problema do bullying é a inacreditável aceitação em relação a tais xingamentos e ofensas, tidos como “normais”, no máximo tidos como brincadeiras de mau gosto, sem se atentar para as graves seqüelas psicológicas provocadas contra as vítimas. Ao que parece, educadores tendem a pensar que a vítima deveria aprender por conta própria a lidar com essas situações, como se fosse obrigação da mesma superar essas verdadeiras agressões psicológicas com naturalidade e como se isso fosse extremamente fácil. Mas essa postura acrítica ignora o profundo sofrimento subjetivo causado às vítimas por tal postura agressiva, que caracteriza verdadeira afronta à honra e à dignidade das mesmas, um verdadeiro assédio moral contra tais pessoas. Ou seja, não cabe confundir o bullying com as brincadeiras de mau gosto tidas como “naturais”. Brincadeira é tudo aquilo que diverte sem causar sofrimento. Nesse sentido, humilhações e ofensas jamais poderão ser tidas como meras brincadeiras inofensivas, ainda que de mau gosto. Nesse sentido, para se ter uma noção mais precisa sobre o fenômeno do bullying, socorremo-nos novamente da lição de Gabriel Chalita12, segundo o qual: A palavra bullying é um verbo derivado do adjetivo inglês bully, que significa valentão, tirano. É o termo que designa o hábito de usar a superioridade física para intimidar, tiranizar, amedrontar e humilhar outra 11 GOMES, Luiz Flávio Bullying: a Violência que Bulina a Juventude. Editora Magister - Porto Alegre. Data de inserção: 30/06/2010. Disponível em: www.editoramagister.com/doutrina_ler.php?id=762. Data de acesso: 05/07/2010. Ibidem, p. 81-82 e 85. Sem destaques no original. 12 ARGUMENTA - UENP 266 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP pessoa. A terminologia é adotada por educadores de vários países, para definir o uso de apelidos maldosos e toda forma de atos desumanos empregados para atemorizar, excluir, humilhar, desprezar, ignorar e perseguir os outros. O fenômeno bullying não escolhe classe social ou econômica, escola pública ou privada, ensino fundamental ou médio, área rural ou urbana. Está presente em grupos de crianças e de jovens, em escolas de países e culturas diferentes. Sem equivalência na língua portuguesa, adotamos, no Brasil, o termo inglês bullying (...). Muitos pesquisadores definem o fenômeno bullying como violência moral (uma adaptação do francês assédio moral). (...) Na escola, quem nunca foi ‘zoado’ ou ‘zoou’ alguém? Risadinhas, piadinhas, fofocas, apelidos. Todos nós, em algum momento de nossas vidas, testemunhamos essas brincadeiras de mau gosto, ou fomos autores ou vítimas. Contudo, essa rotina de xingamentos e ofensas, considerada normal por muitos pais, alunos e até educadores, está longe de ser inocente. O bullying é um comportamento ofensivo, aviltante, humilhante, que desmoraliza de maneira repetida, com ataques violentos, cruéis e maliciosos, sejam físicos, sejam psicológicos. (...) O mundo das crianças e dos jovens não é tão risonho quanto se pensa. A escola pode, sim, tornar-se um lugar constrangedor. Sob a roupagem de brincadeira de mau gosto, o fenômeno bullying invade silenciosamente os espaços escolares, furtando de crianças e jovens a possibilidade de sonhar. As experiências de dor, de angústia e de humilhação, vivdas solitariamente, deixam cicatrizes e podem trazer graves conseqüências para os adultos que essas crianças serão. Bom humor e brincadeiras são comuns na infância e na juventude e devem estar presentes em nossas vidas, mas a linha divisória entre as atitudes dessa natureza e o bullying por vezes é tênue. Um costume infeliz, ao ser ignorado e desvalorizado, torna-se um hábito desastroso. Obstar esse hábito exige conhecimento do fenômeno e do perfil dos personagens envolvidos. Mas a mudança principia com o profundo desejo e esforço ético revelados na ação de acolher sonhos, angústias e medos para proteger e transformar, amorosa e corajosamente, tantas vidas e reescrever um novo final para essa história. Daí a necessidade de discussões e debates nos quais seja possível contextualizar a educação e fazer a partir dela, vínculos com a realidade social na qual ele foi estruturado, “[...] o ensino inclusivo ajudaria a mesclar, a agregar, a ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 267 entender por convívio e afeto”.13 É necessário que a educação promova o respeito às diferenças e evite a ocorrência das diversas formas de bullying. 4. BULLYING E AS INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR A palavra educação refere-se aos processos de formação escolar, dentro e fora dos estabelecimentos de ensino, e não tem conceito restrito à educação escolar que se dá unicamente nos estabelecimentos de ensino. Daí, a falar-se, em diversos tipos de educação e diversos processos de formação que se dão não apenas nos estabelecimentos de ensino como também em outras ambiências culturais como a família, razão pela qual em ocorrendo o bullying os pais também poderão ser responsabilizados e é o que começa a se verificar no Brasil.14 A educação deve ser vista como um processo de renovação e efetivação da sociedade inclusiva. Isso é necessário por ser um atributo da pessoa humana, o direito à felicidade e respeito à diversidade. Ocorre que é utópico acreditar que estudantes universitários apresentam maior capacidade de defesa, eles sofrem abusos por parte de colegas e também da Equipe Docente, mas também agridem, ignoram, discriminam e em alguns casos, até matam por não suportarem mais serem humilhados. Em ambientes universitários 13 RAGAZZI, José Luiz; ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional das pessoas portadoras de deficiência. Revista do Advogado, São Paulo, v. 27, n. 95, p. 43-44, dez. 2007. 14 Recentemente o juiz Luiz Artur Rocha Hilário, da 27ª Vara Cível de Belo Horizonte, condenou um estudante de 7ª série a indenizar a sua colega de classe em R$ 8 mil pela prática de bullying. O magistrado julgou razoável o valor arbitrado. Foi cauteloso na sua fixação, para não estimular a propositura de ações por discussões ou brigas de escola. Para ele, o ambiente escolar, “tradicionalmente alegre, prazeroso e liberal”, não pode se tornar um “rigoroso internato, onde crianças e adolescentes devem pensar e ter a prudência de um adulto antes de brincar, ou mesmo brigar com seus colegas”, ponderou. A estudante relatou que, em pouco tempo de convivência escolar, o menino já começou a lhe colocar apelidos e fazer insinuações. Declarou que as “incursões inconvenientes” passaram a ser mais freqüentes com o passar do tempo. Disse que ela e seus pais chegaram a conversar na escola, mas não obtiveram resultados satisfatórios. Além de indenização por danos morais, a estudante requereu a prestação, pela escola, de uma orientação pedagógica ao adolescente. Para o magistrado, não se deve impor ao colégio a orientação pedagógica de aluno. “O exercício do poder familiar, do qual decorre a obrigação de educar, segundo o artigo 1.634, inciso I, do Código Civil, é atribuição dos pais ou tutores”, ressaltou. O representante do colégio declarou que todas as medidas consideradas pedagogicamente essenciais foram providenciadas. Os responsáveis pelo estudante afirmaram que há uma “conotação exagerada e fantasiosa” à relação existente entre os menores. Salientaram que brincadeiras entre adolescentes não podem ser confundidas com a prática do bullying. Afirmaram que o menor, após o ajuizamento da ação, começou a ser chamado de “réu” e “processado”, com a pior conotação possível. O magistrado salientou que a discussão envolvendo o bullying é peculiar e nova no âmbito judicial, com poucos litígios no Judiciário. Considerou que a prática é “sintoma inerente ao próprio desenvolvimento e amadurecimento da sociedade pós-moderna”. De acordo com todo o conjunto de provas, o juiz considerou comprovada a existência do bullying. “O dano moral decorreu diretamente das atitudes inconvenientes do menor estudante, no intento de desprestigiar a estudante no ambiente colegial, com potencialidade de alcançar até mesmo o ambiente extra-colegial”, observou. Analisando as atitudes do estudante, o juiz destacou que, apesar de ser uma criança/adolescente e estar na fase de formação física e moral, há um limite que não deve ser excedido. Para ele, as atitudes do estudante “parecem não ter limite”, considerando que, mesmo após ser repreendido na escola, prosseguiu em suas atitudes inconvenientes com a estudante e com outras. “As brincadeiras de mau gosto do estudante, se assim podemos chamar, geraram problemas à colega e, consequentemente, seus pais devem ser responsabilizados, nos termos da lei civil”, concluiu. O magistrado ainda avaliou que as conseqüências de se trazer uma questão escolar para a Justiça, envolvendo menores de idade, podem não ser boas. “Em primeiro lugar, expõe os próprios adolescentes a situações potencialmente constrangedoras e desnecessárias em sua idade. Em segundo lugar, enseja o efeito nefasto apontado pelos pais do menor, concernente à alcunha de “réu” e “processado” com que vem convivendo o adolescente’, preveniu. Fonte TJMG. Disponível em: http:/ /www.ibdfam.org.br/?noticias&noticia=3574. Acesso 06/07/2010. ARGUMENTA - UENP 268 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP governados por pessoas insensíveis à violência, o bullying é visto como processo natural e comumente descartado. Atitudes abusivas por parte de professores, que utilizam o recurso avaliação para punir aqueles que pensam de forma diferente da imposta, são ignoradas - talvez por hierarquias ou por questões políticas. O trote universitário não deixa de ser uma forma de bullying em que a vítima muitas vezes o tolera para não ficar antipatizado pelo grupo. No Brasil os primeiros trotes violentos aconteceram no século XIX. Em 1831, um estudante foi morto a golpes de bengala durante trote na Universidade de Recife. Em 1850, os alunos da Faculdade de Direito do Largo São Franscisco reagiram ao trote e a intervenção da polícia foi necessária para controlar a situação. Ao longo dos anos as Universidades vem tentando alterar as práticas receptivas de novos alunos, porém os jornais e anais destas instituições, ainda retratam situações de grande violência envolvendo trotes. Em 1999, um estudante morreu afogado durante trote realizado na piscina do campus da Faculdade de Medicina da USP. Em alguns casos, estudantes de Cursos de Medicina, Direito, Odontologia e Engenharia discriminam cursistas de outra áreas e desvalorizam suas produções. Estas atitudes tem gerado, ao longo dos anos, certa revolta por parte dos demais alunos - vítimas do Bullying - que acabam protagonizando sérias tragédias. Em 2007, um jovem sul-coreano de 23 anos, aluno do último ano do curso de Letras, invadiu a Universidade Virgínia Tech, nos EUA. No campus, ele se dirigiu à West Ambler Jonhston, residência estudantil que abriga pelo menos 895 pessoas e abriu fogo, matando 2 estudantes. Depois, caminhou até o prédio da Faculdade de Engenharia, trancou as portas com correntes, atirou na cabeça de um professor, partindo depois para os alunos, matando 32 e ferindo 29 pessoas- entre alunos e professores- suicidando em seguida. Antes deste, o maior ataque a Universidade no EUA aconteceu em 1966, quando um estudante subiu na torre de observação de 27 andares e começou a atirar, matando 16 pessoas, até ser baleado e morto. Casos envolvendo racismo também levam os universitários a praticarem Bullying. No Brasil, em 2007, supostos vândalos atearam fogo à porta do alojamento de quatro alunos africanos na Casa do Estudante Universitário (CEU), na Universidade de Brasília (UnB). Universitários bolsistas também são vítimas de constantes discriminações em Universidades.15 Ainda no âmbito universitário não são raros os casos de mestrandos e doutorandos, no decorrer de sua pesquisa, serem vítimas de várias formas de pressão psicológica, normais, como os prazos de entrega dos trabalhos, falta de dinheiro para continuar a pesquisa, falta de apoio do orientador, familiares, colegas e amigos. E, anormais, como o assédio moral, bullying, etc. O bullying tem o poder levar o pesquisador ao travamento de sua produção intelectual, além de causar danos à sua existência cotidiana.16 15 LIMA, Angela Adriana de Almeida. Fenômeno Bullying na universidade. Disponível em: http://www.artigonal.com/ ensino-superior-artigos/fenomeno-bullying-na-universidade-688751.html. Acesso em: 01.12.2010. 16 LIMA, Angela Adriana de Almeida. Bullying: uma violência psicológica não só contra crianças. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/043/43lima.htm. Acesso em: 12.10.2010. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 269 Por fim, podemos citar um lamentável acontecimento ocorrido no começo do mês de outubro desse ano, durante os jogos universitários denominado “InterUnesp” (da Universidade Estadual Paulista), onde os estudantes organizaram uma “competição” chamada “Rodeio das Gordas”, em que o objetivo era “montar” sobre as alunas, de preferências obesas, e permanecer o maior tempo possível, assim como nos rodeios. O “Rodeio das Gordas”, que contava com cerca de 50 participantes, aconteceu da seguinte forma: o rapaz se aproximava da garota, para “paquerar”. Em seguida, agarrava a vítima e “montava” em cima dela, enquanto outros cronometravam para saber quem ficava mais tempo. O episódio aconteceu em Araraquara (SP), entre os dias 10 e 13 de outubro de 2010, em que mais de 15 mil pessoas participam de jogos, festas e eventos culturais. Até uma comunidade foi criada no Orkut para que os garotos contassem seus feitos. Considerações Finais O bullying é uma conduta desumana, arbitrária e intolerável, causadora de profundo sofrimento subjetivo nas suas vítimas. Afronta ele o princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1o, inc. III, da CF/88), na medida em que se caracteriza como uma ferramenta que instrumentaliza a vítima para a consecução de um fim desumano e arbitrário do agressor, qual seja: a sua satisfação pessoal, o seu prazer com o sofrimento da vítima, em atitude caracterizadora de verdadeira patologia social (o prazer na humilhação do outro). Dessa forma, o bullying caracteriza dano moral indenizável, sendo que inclusive a instituição de ensino superior poder ser civilmente responsável por este dano moral quando ele é cometido dentro de suas dependências ou de áreas de sua responsabilidade. As pessoas não podem ser privadas do convívio com a diferença e devem conviver num ambiente de naturalidade com a diversidade. A educação é decisiva para fornecer elementos de construção do pensamento humano e, por conseguinte contribuir para a capacidade de autodeterminação. Infelizmente a discriminação e o preconceito estão presentes em nosso cotidiano (até mais do que conseguimos perceber), mas devem ser combatidos e existem aparatos na legislação brasileira (tanto constitucional quanto infraconstitucional) para que se busque uma tutela jurisdicional quando de uma situação discriminatória e o mesmo deve incidir quando essas questões acontecem em ambientes relacionados à educação. Mais de vinte e dois anos se passaram desde a promulgação da nossa “Constituição Cidadã” e podemos notar uma pequena evolução no cenário brasileiro, onde a aceitação de minorias e grupos vulneráveis começa a ser uma necessidade de preocupação não só de um pequeno grupo, mas do Estado como um todo. Temos algumas decisões dos tribunais brasileiros que corrobaram esse ARGUMENTA - UENP 270 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP entendimento, e algumas leis começam a ser feitas para promover bem comum17. O Ministério Público também começa a atuar18, mas ainda há muito a ser feito e o combate ao bullying deve ser intensificado. A prática do bullying prejudica a produção do aluno, impedindo-o de pensar por si mesmo e agrava sua condição de vítima, razão pela qual é indispensável que todos os envolvidos com a educação se conscientizem sobre a gravidade desse problema e elaborem planos de ações a serem desenvolvidos nas instituições educacionais já que as consequências da marginalização social no ensino superior são gravíssimas e se estendem para toda a sociedade. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRAPIA. Programa de redução do comportamento agressivo entre estudantes. Disponível em: http://www.bullying.com.br/BConceituacao21.htm. Acesso: 24/06/ 2010. ARAUJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional da pessoa portadora de deficiência e os obstáculos para efetivação da inclusão social: tentativa de diagnostico do período 1988-2003. In: Constitucionalizando Direito. 15 anos da Constituição Brasileira de 1988. Fernando Facury Scaff (Org). Rio de janeiro: 2003. ARENDT, Hannah. A condição humana. 10. ed. 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A iniciativa é da deputada estadual Eliziane Gama (PPS), que ainda fará reuniões com órgãos e representantes do governo para definir como a lei será aplicada na prática. 18 O Ministério Público do Estado de São Paulo está investindo na campanha “Bullying Não é Legal”. Com o objetivo de informar promotores de justiça e educadores sobre os males desse tipo de violência, lança também uma cartilha anti-bullying. O material explica como reconhecer e tratar o problema nas escolas, famílias e também na justiça. Afinal, o bullying muitas vezes pode ser configurado como um crime de agressão, calúnia ou ameaça. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 261 – 272 2013 271 LIMA, Angela Adriana de Almeida. Bullying: uma violência psicológica não só contra crianças. Disponível em: http://www.espacoacademico.com.br/043/43lima.htm. Acesso em: 12.10.2010. PERRI, Adriana. Aprendendo a Aprender. Sentidos, São Paulo, v. 4, n. 24, p. 22-29, ago./set. 2004. 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ARGUMENTA - UENP 272 JACAREZINHO Nº 18 P. 261 – 272 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP EDUCAÇÃO E PARTICIPAÇÃO: ANÁLISE SOBRE O EXERCÍCIO DE DIREITOS E O DESENVOLVIMENTO EDUCATION AND PARTICIPATION: ANALYSIS ABOUT THE EXERCISE OF RIGHTS AND DEVELOPMENT Mônica Teresa SOUSA* João Carlos da Cunha MOURA** SUMÁRIO: Introdução; 1. Desenvolvimento para além da Economia; 2. Educação: um direito a ser exercido; 3. Assumindo os compromissos: sociedade civil participativa; Considerações finais; Referências. RESUMO: O presente texto mira analisar o direito à educação e o direito político da participação de forma conjunta, promovendo a si mesmos como instrumentos e fins pela sua prática efetiva, conduzindo um modelo de desenvolvimento. O artigo se baseia nas análises desenvolvimentistas promovidas por Amartya Sen, na trilha do desenvolvimento como liberdade e também nas análises de direitos à educação e à participação política como direito político, bem como sua função educativa que fomenta debates. Analisa os direitos à educação e participação de maneira ampla, como relacionais devendo ser abertas as vias que oportunizem tal exercício. Busca uma breve investigação no sentido de trazer à tona que os caminhos proporcionados para e pelo(a) debate, função educativa e organização na sociedade fomentando a si próprios em um círculo virtuoso. ABSTRACT: This paper aims the analysis of right to education and the right of political participation in a joint, both promoting themselves by exercising a development model. The article is based on analyzes of developmental models promoted by Amartya Sen in the path of development as freedom and also in the analysis of rights to education and political participation as political rights as well as educational function that fosters discussions. Analyzes the rights to education and participation broadly as relational should be adequate ways that gives * Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão , Brasil ** Mestrando em Direito e Instituições do Sistema de Justiça – Universidade Federal do Maranhão. Artigo submetido em 06 de junho de 2013. Aprovado em 19 de junho de 2013. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 273 opportunity to such an exercise. Search a brief investigation in bringing to light the ways provided for discussion, educative funccion and organization in society to promote themselves in a virtuous circle. PALAVRAS-CHAVE: Educação, Participação, Direito, Desenvolvimento. KEYWORDS: Education, Participation, Law, Development. INTRODUÇÃO O presente texto surge da importância de se avaliar uma atualização no modelo atua de gestão governamental da sociedade. Com o atravessamento das eras econômicas e modelos que falharam ao longo dos anos, guiados por sujeitos alocados em situação de delegados das decisões das pessoas que acabaram por promover uma série exclusões sociais e quebra de direitos que impactaram fortemente a economia dos países. Dentro desse contexto, este artigo busca analisar formas atuais de desenvolvimento que superam a mera arrecadação de renda e bens materiais, comprometidas com as liberdades que as pessoas podem desfrutar e tem razões para valorizar. Tal análise será feita com uso em uma metodologia dialética, basicamente utilizando os conceitos de desenvolvimento como liberdade consagrados por Amartya Sen para quem o desenvolvimento se dá a partir de um instrumental de liberdades que são proporcionadas por elementos que se interrelacionam e se autocomplementam. O desenvolvimento analisado pelo autor indiano é analisado como a quebra de todas as barreiras possíveis que restrinjam a tomada de decisão própria dos indivíduos. O segundo momento é dedicado a educação como direito. Busca-se nesse ponto alavancar uma ideia que supere paradigmas jurídicos de direitos como bens dispostos externamente de fora para dentro. Entende-se que um direito como o direito à educação (além de ser consagrado, conquistado ou dado) só se concretiza pelo seu exercício e não apenas pela mera instituição educacional, mas para isso é preciso dar as oportunidades necessárias para tal exercício. Por fim, faz-se uma investigação entre enunciados acerca da função educativa da participação, de forma a entender de que maneira isso pode fomentar o direito à educação e este por sua vez fomenta a própria participação. Necessário informar que tal qual o direito à educação, a consagração de um direito político (como a participação política ativa) também é efetivada pela sua prática. 1 DESENVOLVIMENTO PARA ALÉM DA ECONOMIA A expressão “desenvolvimento” tem sido há tempos utilizada para denominar a situação na qual uma sociedade é percebida como ganhos materiais ARGUMENTA - UENP 274 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP produtivos e também que exige de seus indivíduos certo acúmulo de capital para praticar atos que julguem valorizados. Em outras palavras, desenvolver-se era (e em alguns casos ainda é) até certo ponto visto como projeto de eliminação de qualquer restrição ao incremento pessoal dos indivíduos, um fim em si mesmo. Alguns pontos relacionados ao desenvolvimento são extremamente relacionados a um conceito de evolução, no sentido de elevação de uma característica. Por exemplo, o desenvolvimento tecnológico é facilmente perceptível pela ampliação dos artífices computacionais, maquinários etc. Porém, o termo “desenvolvimento” em sentido amplo ainda é nebuloso. Amartya Sen, economista indiano, busca desdobrar esse entendimento de modo a desenrolar uma ideia de desenvolvimento pautado na liberdade de ações. Para isso, um Estado e suas instituições necessitam não prever o desenvolvimento como um fim em si mesmo, mas em um duplo sentido: como meio e fim, isto é, como instrumento e projeto para a sociedade. Entende o autor que se a liberdade pode ser entendida como a eliminação do maior número possível de restrições, esta característica não se desvincula daquele conceito clássico de desenvolvimento como exercício de liberdades. Para isso, então, nada mais lógico que para a liberdade ser alcançada como um fim deve ser também o instrumento de prática. (SEN, 2010a, p. 16) Essa nova concepção dos modelos de análise de performance econômica superam aquela ideia de que o desenvolvimento está estritamente ligado apenas a finanças. De acordo com Silva (2006. p. 349), é necessário também observar uma gama de características que devem ser levadas em consideração para tal análise. Como o mercado está organizado, como os agentes se relacionam entre si, como direitos e oportunidades influenciam na atividade econômica, entre outras variáveis são indispensáveis para analisar o desenvolvimento. Entretanto, é necessário perceber quais são esses outros meios necessários para a efetiva produção de liberdade de ações dos sujeitos envolvidos nas relações. Segundo Jütting (2003, p. 21-22) as instituições tem papel fundamental na análise e na pauta da ideia de desenvolvimento. Assim, deve-se ter em mente que tipo de esforço deve ser feito para atingir o máximo de qualidade de vida na sociedade, a qual deve perceber que as instituições não são exógenas ao desenvolvimento e sim parte integrante do processo. Não existe uma questão, nesse sentido, de se é a instituição firme que gera o desenvolvimento ou vice-versa, mas ambos devem estar coadunados com o procedimento de elevação das suas qualidades. Interessante é o ponto que nota David Landes (2002, p. 252) ao contar um pouco da história da colonização inglesa na Índia: por conta de instituições fortemente arraigadas, as técnicas industriais e tecnológicas foram de certa forma rechaçadas pela população nativa. O trabalho manual era visto como o destino dos trabalhadores, o que levava os peões indianos a subir com os “carrinhos de mão à cabeça, em vez de os empurrar”. (LANDES, 2002, p. 255) Tal concepção, no entanto, induz a pensar o desenvolvimento como uma ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 275 visão meramente etapista, esquadrinhada por várias fases sucessivas. Celso Furtado (2000, p. 155 ss), ao traçar o perfil histórico do desenvolvimento, analisa que tal característica parte em geral de composições de comércio e mercado. Dessa maneira, a lógica de acumulação de excedentes visa a exercer um papel fundamental na vida econômica. Tal projeto desenvolvimentista acaba por limitar a ação e a distribuição da renda entre as pessoas de dada sociedade. O fator principal é a acumulação dessas riquezas em mãos de grupos hegemônicos, que terminam por regular toda a atividade econômica baseada em seus próprios interesses. O enfoque faseológico do desenvolvimento constitui, desde o início, um esforço interpretativo da história moderna, com base em certos elementos da análise econômica. Dada a complexidade dos processos históricos, torna-se necessário elevar extremamente o nível de abstração, o que evidentemente reduz a eficácia explicativa dos modelos construídos. A despeitos dessas limitações, esse tipo de análise tem produzido frutos valiosos: graças a ela temos hoje melhor compreensão do papel dos fatores não econômicos que interferem nos processos de desenvolvimento e das características específicas das atuais economias subdesenvolvidas. (FURTADO, 2000, p. 152) É perceptível e até lógico que a má distribuição de riquezas e renda gera privação de capacidades básicas dos cidadãos. Dentro dessas considerações, ser pobre em determinado país rico é uma extrema desvantagem. Porém, não deve-se ater à mera renda baixa como elemento indicador da qualidade de vida e da economia de uma sociedade. Existem outros fatores que influenciam na marcha dos sujeitos em suas respectivas histórias. Nesse sentido, Amartya Sen recupera que muitos países caem na limitação e confusão entre meios e fins da redução da pobreza, pois “é perigoso ver a pobreza segundo a perspectiva limitada de privação de renda e a partir daí justificar investimentos em educação, serviços de saúde etc. com o argumento de que são bons meios para atingir o fim da redução da pobreza e renda”. (SEN, 2010, p. 126). Jüting (2003, p. 13-14) compartilha desse entendimento e avalia que devem existir alguns níveis de enfrentamento na prática do desenvolvimento. As instituições econômicas, políticas, legais e sociais devem estar em constante coadunância para o aspecto da maximização das qualidades sociais e pessoais. Assim, a identidade nacional ou social, influenciam diretamente nesse aspecto, em um primeiro nível (como na história descrita por David Landes acima). Os direitos consagrados aos cidadãos, não necessariamente escritos (na acepção de Jütting, principalmente o direito de propriedade) também tem extrema importância nessa trilha para a melhor qualidade de vida, devem ser respeitados por um arcabouço jurídico firme. O terceiro nível, estipulado pelas políticas governamentais (não necessariamente estatais), são influenciados pelo dois níveis ARGUMENTA - UENP 276 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP anteriores e devem estar em constante contato com o processo que as esferas anteriores desencadeiam, não pode sofrer apropriação, devendo ser visto como espaço de debate e construção de estruturas da sociedade e para a sociedade. O último nível é uma espécie de consequência da ação dos outros três níveis e trabalha com a implantação de políticas públicas que gerem capacidades e mecanismos de alocação de recursos para os indivíduos. Quando uma instituição se sobrepõe às outras, é perceptível que o modelo enfraquece e o equilíbrio é desfeito. A ideia de progresso vinculada ao desenvolvimento, eclipsa o modelo de possibilidade de alocação capacidades individuais. Progresso, nesse sentido, pode ter um viés mais de involução do que propriamente evolutivo. Por essa ideia, a técnica “progressiva” de desenvolvimento é a mesma aplicação do sistema produtivo para um único tipo de conhecimento: o conhecimento empírico científico. Nesse sentido, não adianta se colocar dentro do modelo um tipo de conhecimento se os indivíduos não terão acesso às informações sobre este conhecimento. O sistema de progresso por um único meio de conhecimento torna-se apenas o progresso desse conhecimento. (FURTADO, 2000, p. 176) Na concepção de desenvolvimento de David Landes (2002, p. 241) e também de Amartya Sen (2010a, p. 123) uma sociedade necessita de uma série de corolários que superam a mera indicação de acumulação de renda. O sentido que as instituições devem tomar, parte de uma série de considerações acerca das diferenças dos indivíduos insertos no espaço social. Similarmente aos níveis descritos acima por Johannes Jütting, os autores explicam que a sociedade necessita de instituições que se intercomuniquem, permitindo a utilização dos instrumentos para gerar outros recursos. As instituições (formais e informais) necessitam ser avaliadas de forma extremamente profunda, pois elas, como se pode perceber, afetam a eficiência da ordem econômica e esta última deve ser vista também de forma para além da mera ciência de finanças e rendas. Além disso, devem ser vistas de forma coadunada e comunicativa, não apenas como sendo fim, mas como variáveis do seu próprio uso. (SILVA, 2007, p. 112-113) A significação de um sujeito dotado plenamente de racionalidade e dado a priori como definidor de suas próprias vontades limita em certo sentido a normativa econômica de um dado espaço. Os valores definidos pelas instituições tem extrema importância na formação dos indivíduos e devem ser levados em consideração quando da sua tomada de decisão sobre determinados aspectos da vida. (LANDES, 2002; SILVA, 2007; SEN, 2010a) Portanto, não pode haver basicamente uma única forma de desenvolvimento para todos as sociedades, por plurais que são. É evidente que por ter concepções institucionais diferentes, diferem também a própria instrumentalização do desenvolvimento. O sentido que se deve tomar, contudo, não é o da uniformização mas a da adequação dos mecanismos para cada sociedade. Uma sociedade deve ser formada por indivíduos que traçam seus próprios ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 277 caminhos, sem nenhuma autoridade centralizadora que lhes estabeleça prioridades, mas que lhes conceda os meios necessários para tanto (SOUSA, 2011, p. 54). Em sociedades nas quais um elemento desponta mais forte (Estado ou Mercado), tendese a perceber que as demandas apenas deslocam o seu meio de resolução, sem no entanto efetivamente serem dirimidas. Dessa maneira, o que se deve observar segundo Amartya Sen (2010a, p. 331) é mais a consequência econômica de uma reforma social do que a consequência social de uma reforma econômica. Baseado em modelos de desenvolvimento comparados, o desenvolvimento econômico é fruto do desenvolvimento social (pautado pela mobilidade social entre outros aspectos). Em outras palavras, os delineamentos social e político são a forma endógena da possibilidade das mudanças sociais baseadas em oportunidades aos indivíduos, porém sem que a eles seja da uma única prioridade no decurso de sua vida. De tal fato, depreende-se também que a noção de desenvolvimento não deve partir apenas de instituições externas, mas também dos próprios indivíduos em um processo participativo e cooperativo, com o intuito de fomentar sua capacidade produtiva de acordo com suas próprias atitudes, essas últimas possibilitadas por meios de organização social baseados em ética e desempenho da civilidade. (SOUSA, 2007, p. 66) Amartya Sen, nesse sentido, assinala que: Não é necessário criar artificialmente um espaço na mente humana para a ideia de justiça ou equidade – com bombardeio moral ou arenga ética. O espaço já existe, e é uma questão de fazer uso sistemático, convincente e eficaz das preocupações gerais que as pessoas efetivamente tem. (SEN, 2010, p. 333) Isto significa que as práticas para o desenvolvimento entendido como liberdade de ação é possibilitado por meio do exercício sistemático da própria liberdade, oportunizado por modelos práticos que aumentam a capacidade humana para ter a vida que vale a pena viver. Com a idealização de um mundo globalizado com performances em uníssono, os mercados e nações tentaram promover um projeto que se emanava multicultural, igualitário e inclusivo, todavia tal discurso termina por obscurecer e negligenciar as diferenças. Logo, países economicamente hegemônicos punham termo a políticas econômicas e sociais com o intuito de manutenção do status quo, no dizer de Celso Furtado (2000, p. 152). Tal política agregadora, porém excludente, determinava que em âmbito nacional, nações mais pobres continuassem a ser pobres, algo se refletia em seu próprio espaço: as pessoas mais pobres e com menos capacidade continuavam no mesmo patamar, senão abaixo. É necessário entender que valores sociais desempenham um papel fundamental no êxito de políticas públicas e sociais. Cada particularidade de cada ARGUMENTA - UENP 278 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP sociedade é objeto intrínseco da ampliação das capacidades dos indivíduos inseridos nas relações. Welber Barral ao caracterizar o mérito da obra de Amartya Sen, analisa que é realmente necessário existir um modelo de desenvolvimento pautado na liberdade garantida por valores sociais e jurídicos de respeito às minorias e direitos humanos. Entretanto, ainda existem em países como o Brasil, por exemplo, problemas concretos de aplicação do desenvolvimento como liberdade. Isso porque políticas públicas sofrem um tremendo bloqueio no momento de sua implantação (BARRAL, 2005, p. 40) Discorre Welber Barral que esse modelo de desenvolvimento apoiado à liberdade, necessita de uma enorme mudança no meio institucional. Não é diferente o pensamento de Amartya Sen. O autor indiano afirma que é necessário uma adequação institucional, ou melhor, um nível de firmeza e confiabilidade nas relações institucionais da sociedade em questão, para que a eficiência seja percebida. Uma sociedade determina certos valores que são repetidos pelo todo. Dessa maneira “a presença de comportamento corrupto, encoraja outros comportamentos corruptos” (SEN, 2010, p. 354). A força das instituições deve agir de modo a transformar os círculos viciosos em círculos virtuosos, bastando para isso chamar os indivíduos a reverterem certas práticas. Tal ideia Amartya Sen parece retirar da concepção de sujeitos pertencentes às sociedades que Marx (2004, p. 106-107) analisa. Segundo o autor alemão, não se deve analisar a sociedade como algo extrínseco (bem como suas instituições e fenômenos). Os sujeitos fazem parte desse processo e se existem os fenômenos e instituições que de certa forma as pessoas julgam nefastos, é porque tal fenômeno ou instituição são relacionais e não porque existam por si sós. Marx dá como exemplo a prostituição (figurativamente como a exploração do trabalho do homem por outro homem), afirmando que se existe um prostituído é porque também existe um prostituidor. Pode-se ampliar tal afirmação para concluir que se existe a corrupção é porque existe uma relação entre sujeitos corruptos; se existe compra é porque existe uma relação com um sujeito que venda, e assim por diante. Premente deve ser o entendimento de que as instituições são parte de um todo relacional e não dadas a priori. As instituições são criadas pela interação vívida entre os agentes: “por um lado não podemos tomar as preferências literalmente; por outro lado não podemos abandonar o individualismo metodológico, posto que preferências e valores bem como as instituições são o resultado da interação entre indivíduos” (SILVA, 2006, p. 351) Para a efetiva mudança de características de determinadas instituições é necessário, então, que as próprias pessoas primeiramente mudem seu comportamento e para isso é necessário uma efetiva transmissão de práticas que transformem as relações viciosas em virtuosas. Segundo Barral (2005) e também Amartya Sen em obra conjunta a Bernardo Kliksberg (2010) é o direito à educação, principalmente, que pode fomentar tal desempenho, criando inclusive novas possibilidades de consagração de outros direitos. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 279 2 EDUCAÇÃO: UM DIREITO A SER EXERCIDO Segundo Welber Barral (2005, p. 40) a ideia de desenvolvimento, seja de que tipo for, precisa primeiramente da garantia de acesso à educação: deve ser a primeira “escolha racional” dentre as opções para implantação de políticas públicas. David Landes (2002, p. 241) afirma que uma sociedade ideal é aquela que, além de outros elementos, “fosse capaz de transmitir esses conhecimentos e know-how aos jovens, que por educação formal, quer por treinamento de formação.” A educação é um direito garantido em diversas declarações de direitos humanos e por via de consequência também se agregou à Constituição Federal de 1988 no Brasil. Está inserta tanto nas consagrações dos direitos sociais quanto nas competências dos entes federados, tendo especial atenção nos artigos 205 a 214 da Carta Magna. Importante ressaltar que não se deve levar em consideração a educação apenas no sentido escolar, mas também unido a isso, os sistemas de bases de informação disponíveis aos indivíduos, tais como a mídia em forma de tecnologia, impressos, televisão etc. Amartya Sen (p. 58, 2010) chama a esse aspecto de “oportunidades sociais”, uma liberdade instrumental que proporciona outras formas de liberdade. Tais oportunidades são arranjos sociais estabelecidos em sede de educação, saúde etc. que influenciam a liberdade. À medida que disponibilizadas essas oportunidades maximizam a tomada de posição em outras atividades da própria sociedade (SEN, 2010, p. 58-59). Um analfabeto, por exemplo, não tem acesso às bases informacionais, pois não pode ler um jornal, um livro ou mesmo acessar internet e por via de consequência não adquire a capacidade para exigir melhor qualidade inclusive das próprias bases de informação.1 A possibilidade de acesso às bases de informação e escolares não pode ser feita por meio de monopólios. A concentração das oportunidades sociais para e por um grupo hegemônico acaba atrofiando o sentido próprio dessa liberdade instrumental. Nessa trilha, a própria sociedade não se prepara devidamente para as mudanças que ocorrem ao redor de suas fronteiras. Para o efetivo implemento do exercício de um direito à educação, é necessário levar em conta todas as vivências com as quais as pessoas tem relação. Uma educação enviesada e segregada importa em aumento de desconfiança. O acesso às instituições educacionais é deveras importante, mas não é o único modelo que supera a noção jurídica e mesmo social da educação. É necessária que as experiências vividas por cada pessoa seja levada em consideração, aliada às instituições formais de garantia de educação. (FISCHMAN; HASS, 2012, p. 441) 1 Dentro desse contexto, Amartya Sen (p.58-60) afirma que existem cinco tipos de liberdades básicas instrumentais que possibilitam o aumento da capacidade das pessoas: 1) liberdades políticas; 2) facilidades econômicas; 3) oportunidades sociais; 4) garantias de transparência; e 5) segurança protetora. Segundo o autor “essas liberdades instrumentais tendem a contribuir para a capacidade geral de a pessoa viver mais livremente, mas também tem o efeito de complementar umas às outras”. (SEN, 2010, p. 58) ARGUMENTA - UENP 280 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Garantias de direitos devem ser entendidas para além da mera consagração em códigos ou constituições. Segundo Lukács (2003, p. 467) uma lei, código ou mera escritura de um direito não muda a realidade fática, é necessária uma série de implicações e aplicações necessárias para que esse direito seja efetivamente concretizado. Como um fenômeno social que é (MARX, 2004) um direito não pode ser simplesmente apropriado por algumas pessoas e distribuído: por social que é, deve também ser visto como relacional. Nesse sentido, um direito só é exercido se exercitado. O paradigma do direito enquanto posse para distribuição é um erro do paradigma jurídico liberal, segundo Habermas (1997, p. 159). Ainda, é importante ressaltar que direitos não são bem coletivos passíveis de consumo, mas um arcabouço preparado para que as próprias pessoas tenham senso de autoderminação e possibilidade de gozar desses direitos. Iris Young (1990, p.25) também critica este modelo do Estado social e também do Estado liberal de maneira a questionar sobre as possibilidades de distribuição de um direito, sendo necessária a redefinição de sintagmas e significações. O que se distribui são bens e não direitos. Ao falar em distribuição de direitos concebem-se estes como posses e não se faz valer um direito se este é visto como coisa, pois “direitos são relações e não coisas; são papéis institucionalmente definidos especificando o que as pessoas podem fazer em relação umas às outras” (YOUNG, 1990, 25-26). No que diz respeito à educação, a garantia desse direito reflete instantaneamente em outras instituições e direitos (seu cumprimento ou não). Destarte, a oportunidade de sua fruição se mostra mais ampla que a mera distribuição do direito. Kliksberg (2010, p. 148-189) discorre que a educação implica na vida futura dos indivíduos afetados. Segundo o autor, crianças e jovens pobres que entram na escola não conseguem concluir seus estudos por falta de políticas públicas de inserção e permanência. Logo, precisam começar a trabalhar mais cedo, aumentando as chances de desenvolverem problemas de saúdes relativos ao trabalho. Ao analisar o grau superior de educação o economista argentino percebe a disparidade flagrante na distribuição das oportunidades sociais na qual as pessoas mais ricas são mais beneficiadas com a oportunidade social proporcionada pela educação. Informa que com menos escolaridade as famílias mais pobres é que arcam com os custos da desigualdade social. A inscrição da educação enquanto direito a ser exercido e exercitado depende de outros recursos e alocações de materiais específicos, tais como livros, instalações, computadores etc. Não apenas estes, mas também uma série de oportunidades mais amplas que façam crianças e jovens (e adultos, por que não?) terem a capacidade de pensar por si próprios. Nessa perspectiva, é preciso superar todas as restrições impostas aos indivíduos, um significado de liberdade consagrado por Adam Smith. Assim, políticas de implementação de direitos devem ser analisadas e implantadas de ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 281 forma a libertar os sujeitos de todas as restrições (ou o máximo possível delas – uma vez que algumas dessas liberdades podem influenciar na liberdade alheia), pois uma pessoa constrangida em seus direitos implica que a própria sociedade está limitada em igualdade. (SOUSA, 2010, p. 39) Outro aspecto impactado pela baixa escolaridade segundo Kliksberg (2010, p. 229) é a saúde. Baixa escolaridade tem referencia imediata dentro dos indicadores de saúde. tanto no cuidado pessoal quanto nos aspectos mais avançados de tecnologias a falta de educação permeia a saúde de forma ampla. Amartya Sen (2010b, p. 121) recorre a uma explicação que liga a educação a esse sentido sobre a saúde como percepção da seguinte maneira: As pessoas tem percepções variadas sobre as doenças conforme seus hábitos e seu conhecimento médico. Nos lugares onde o atendimento médico é bom e amplamente disseminado, as pessoas tem uma percepção maior da morbidade, embora possam estar em bom estado de saúde. o acesso ao diagnóstico e ao atendimento médico tende a reduzir a morbidade real, mas ao mesmo tempo, a aumentar a compressão que as pessoas tem da doença (inclusive o próprio conhecimento das próprias enfermidades). Em contrate, uma população com pouca experiência de atendimento médico e amplos problemas de saúde como condição padrão de existência pode ter uma percepção muito baixa do seu estado doentio. (SEN, 2010b, p. 121) Isso propõe que a garantia de um direito não passa só pela implementação de acessos, mas também passa pela percepção subjetiva dos indivíduos. É a consciência que se percebe do mundo e de si próprio que faz com que os sujeitos percebam o mundo de forma diferente. Distintas posições educacionais, perceptivas etc. levam os sujeitos a identificarem pontos de vista a partir de tal posição. (LUKÁCS, 2003; SEN, 2010b) A falta da educação que gera a pobreza está inscrita no círculo vicioso de uma sociedade que se abstem de promover políticas básicas de implantação e concretização de direitos. Segundo Kliksberg (2010, p. 245) famílias cujos pais e mães não completam os estudos ou tem menos de nove anos de estudos, que quase em sua totalidade são fruto de famílias nas mesmas condições. O círculo se instala conforme visto acima: a pobreza familiar leva a trabalho precoce que desvirtua o sentido da educação e que por via de conseqüência mantem a mesma condição familiar, não havendo mobilidade social para tais pessoas. A concretização do direito à educação, nesse sentido de esclarecimento sobre os diversos aspectos da sociedade, é também uma forma de amadurecer o compartilhamento de instituições formais e informais. Jütting (2003, p. 36) assevera, no contexto da falta de políticas de assimilação e concretização de direitos, que isso dificulta a mudança institucional das sociedades e argumenta que inclusive essa mudança pode não ser necessariamente desejável por determinados grupos. ARGUMENTA - UENP 282 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Como dito acima a falta de uma oportunidade social como a educação promove uma série de constrangimentos e desarticulações dos sujeitos. Isso se inscreve no fato de que uma sociedade sem educação perde apoio nas dimensões do capital social. Este último pode ser definido como expressões extraeconômicas, mas com grande impacto no desenvolvimento econômico e também no progresso tecnológico de uma sociedade. (KLIKSBERG, 2010, p. 304-305)2 A atenção dada à educação como direto e oportunidade é levada em conta em análises dos impactos econômicos e políticos dentro de um país. Segundo o cientista político Joseph Klesner (2007), em estudo sobre repercussão da educação na atividade política de países latinoamericanos, a educação reflete na vida política do país. De acordo com suas estatísticas pessoas que recebem educação apenas primária são menos frequentemente participativas enquanto pessoas com educação secundária tem mais participação. A frequência da participação política aumenta com o aumento do nível educacional. Contudo, ainda conforme o autor, não é apenas a mera educação escolar, mas uma educação que encoraje tal participação. (KLESNER, 2007, p. 20-21) Dentro desse contexto e conforme visto acima, sem o mínimo de voz uma sociedade não pode administrar-se a si própria, dependendo sempre de tecnocratas ligados a cargos de direção e que de certa forma guiam as escolhas dos indivíduos. Amartya Sen afirma que: Por exemplo, o analfabetismo pode ser uma barreira formidável à participação em atividades econômicas que requeiram produção segundo especificações ou que exijam rigoroso controle de qualidade (uma exigência sempre crescente no comércio globalizado). De modo semelhante, participação política pode ser tolhida pela incapacidade de ler jornais ou de capacidade de comunicar-se por escrito com outros indivíduos envolvidos em atividades políticas. (SEN, 2010a, p. 56) Mais do que exigir direitos, a participação com bases educacionais sólidas e igualitárias fomenta também a noção de desenvolvimento humano, que não pode se basear apenas no acúmulo de renda para dispêndio. O capital social3 tem enormes 2 Bernardo Kliksberg (2010, p. 305) identifica quatro tipos de capital: “o capital natural, constituído pela dotação de recursos naturais; o capital construído pela sociedade, como as infraestruturas, a tecnologia; o capital financeiro, o comercial e outros; o capital humano, integrado pelos níveis de saúde e educação da população; e o capital social. Dentro das expressões do capital social Kliksberg (2010, p. 305-306) afirma existem quatro dimensões a serem observadas: “confiança nas relações interpessoais; [...] capacidade de associatividade; [...] consciência cívica, o ‘civismo’. Como as pessoas agem perante tudo aquilo que é de interesse coletivo; [...] valores éticos predominantes numa determinada sociedade”. 3 Segundo Klesner (2007, p. 2) foi Robert Putnam quem desenvolveu uma nova ideia ampla de capital social. Na obra Bowling Alone (2000), Putnam descreve de que forma as várias esferas participativas em que se engaja uma sociedade pode desenvolver o capital social, entendido como uma espécie de aumento do esforço colaborativo entre os sujeitos presentes na sociedade (PUTNAM, 2000, p. 45). Esse novo sentido, de acordo com Motta (2009, p. 550 ss.), supera a ideia do acúmulo de capital humano individualista, baseado no e para o trabalho por meio da educação transformando essa noção em algo mais coletivo baseado nas dimensões cooperativas e cívicas. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 283 implicâncias nas esferas institucionais de uma sociedade e entre eles está principalmente a participação e atividade política dos indivíduos. (KLESNER, 2007, p. 2-3) Uma cultura institucional não precisa ser seguida se ela desvirtua algumas práticas. Kliksberg (2010, p. 309) ao exemplificar a negação da corrupção em alguns países, como a Finlândia, por exemplo, afirma que não é a mera edição de uma lei que muda a realidade e determina a pouca incidência da corrupção, mas o exercício cultural e institucional que não legitima tal prática. Tal mudança comportamental, também discutida por Amartya Sen (2010a, p. 366), é proporcionada por uma assunção de responsabilidades das pessoas dessa sociedade e tais capacidades dependem da natureza das oportunidades sociais (no caso aqui estudado, o direito à educação) que são cruciais para o desenvolvimento da pessoa e sua percepção de si e das suas responsabilidades. Uma sociedade educada é uma sociedade presente politicamente, pois os indivíduos sentem-se mais capazes e confiantes para saber o que é melhor e o que vale a pena para si. Sólidas estruturas educacionais permitem que os integrantes da sociedade formem grupos de pressão frente às instituições. 3 ASSUMINDO OS COMPROMISSOS: SOCIEDADE CIVIL PARTICIPATIVA Dentro dessa perspectiva da educação como direito e oportunidade, levando em conta um direcionamento dessa educação para a mobilização social e política é possível fazer uma aproximação de conteúdos que se interrelacionam no debate na esfera pública e a ideia do desenvolvimento social como oportunidade de liberdade. Conforme dito acima, as instituições e oportunidades são relacionais e, deste modo, necessitam de canais comunicativos. Fluxos informacionais carentes não proporcionam o elemento necessário para o desenvolvimento democrático de uma sociedade. Monopólios educacionais ou de poderio político cerceiam a atividade política da própria sociedade. Para Habermas (1997, p. 115) “as estruturas comunicacionais da esfera pública estão muito ligadas aos domínios da vida privada, fazendo com que a periferia, ou seja, a sociedade civil, possua uma sensibilidade maior para os novos problemas, conseguindo captá-los e identificálos antes que os centros da política”. O capital social baseado em modelos educacionais de participação e consciência coletiva deve ser definido segundo a ótica de desenvolvimento do capital social. Para Silva (2006, p. 354) o desenvolvimento do indivíduo depende também do desenvolvimento da própria sociedade e também o inverso. Para isso, a mudança do pensamento institucional deve permear a vida educacional do cidadão de forma a unir bens privados e públicos na construção social. É necessário acima de tudo evitar ater a sociedade como ente exógeno por cima ou perante o indivíduo. Conforme Marx (2004, p. 107): ARGUMENTA - UENP 284 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP O indivíduo é o ser social. Sua manifestação de vida – mesmo que ela também não apareça na forma imediata de uma manifestação comunitária de vida, realizada simultaneamente com outro – é, por isso, uma externação e confirmação da vida social. A vida individual e a vida genérica do homem não são diversas, por mais que também – e isto necessariamente – o modo de existência da vida individual seja um modo mais particular ou mais universal da vida genérica, ou quanto mais a vida genérica seja uma vida individual mais partícula ou universal. Klesner (2007, p. 11) segue o mesmo caminho ao analisar que não é necessariamente um modo de vida político tecnocrata que desenvolve o senso de cooperação e confiança entre as pessoas. Outras atividades integracionais podem fazer parte desse modelo educacional participativo. Conforme o autor existem três diferentes dimensões de atitudes políticas que formam um comportamento político: i) dimensão política fundamental (orientação ideológica, por exemplo); ii) eficácia polítca e; iii) engajamento político. Tais dimensões formam uma importante teia de envolvimento com demandas políticas e a falta de uma educação como direito firme faz com que as pessoas não percebam que seus interesses estão ligados ao de outras pessoas (KLESNER, 2007, p. 30) Uma sociedade participativa é uma sociedade que tem a sua noção de pertencimento vinculado às práticas das pessoas que se interrelacionam. Segundo Fischman e Hass (2012, p. 444) é uma sociedade participativa, agregada a um padrão não fixador de modelos educacionais que politiza as ações e as demandas da sociedade. A educação unida à participação contribui para a produção de identidades dos cidadãos, mas tal contribuição não pode ser mediada por sujeitos que se percebam acima de outros sujeitos, é necessária uma articulação horizontal dessas tomadas de consciência. Habermas aproxima essa definição comunicativa e participativa entendendo que o modelo de mudança institucional não é um mero processo de adaptação, mas o resultado de construção de opiniões e vontades. Expõe ainda que governo e administração não formam o modelo único de organização, pois isso apenas garante a reprodução de demandas políticas e de sujeitos no poder político. Representativa ao extremo que se tornou a democracia, pessoas não representadas acabam perdendo voz, o que gerou uma maneira mítica de perceber a esfera da política como uma luta de poder por parte da elite. Não que ela não exista, contudo a teoria elitista resumiu toda a democracia a uma crítica da escolha dos condutores e gestores públicos, tornando o complexo processo democrático em uma dimensão meramente eleitoral. (HABERMAS, 1997, p. 60-62) Para Fischman e Hass (2012, p. 447), participação e direitos políticos apenas fomentam-se quando praticados, assim como qualquer direito. Tais direitos são incorporados aos indivíduos, porém coletivamente desenvolvidos. Disso podese concluir que a mera participação da sociedade apenas em festas de sufrágio ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 285 deslocam a atenção durante outros tempos para assuntos que não necessariamente não tem a ver com política, mas que de certa forma entregam aos tecnocratas das instituições formais as escolhas que as próprias pessoas deveriam tomar. O jurista Guillermo O’Donnel (1994, p. 56), denomina esse tipo de entrega de decisões por parte dos cidadãos para outras pessoas eleitas em sufrágio de “democracia delegativa”. No caso específico do Brasil (além de outros países do Cone Sul) o autor identifica que esse processo delegativo se dá por causa da herança ditatorial a qual as instalações das novas democracias receberam. Essas heranças de governos autoritários reforçam práticas políticas e de atividade participativa autoritária, isto é, apropriam-se da liderança dos grupos ou das pessoas em geral e terminam por guiar suas tomadas de decisão. Também ao analisar alguns países latinoamericanos, Klesner (2007, p. 5) afirma que a participação não deve ser apenas para o âmbito eleitoral e que a mobilização de pessoas pobres e oprimidas é capaz de criar modos eficazes de participação política, mesmo que marginalizados por discursos difamadores de seus movimentos. Deseducada e alienada a democracia tornou-se meramente “delegativa” com pessoas atomizadas, trancadas dentro de um universo particular que confunde o público, o privado e o político. Isso significa que a população desestruturada educacionalmente e politicamente vê nos tecnocratas da política seres iluminados capazes não de representá-los, mas antes de tomar as decisões certas nos momentos certos. (O’DONNELL, 1994, p. 56) Nessas condições, Habermas (1997, p. 71) explica que existe uma espécie de “camuflagem de interesses”. Isto significa que algumas demandas são totalizadas como um assunto pertencente a todos. De acordo com o filósofo alemão, nem todos os interesses estão alavancados publicamente e é justamente por isso que os indivíduos necessitam de um esforço empreendedor educacional, participativo e democrático. Mais à frente o autor comenta que “a política coloca à disposição dos sistemas regulados ‘formas’ que lhes permitem estabelecer suas próprias prioridades” (HABERMAS, 1997, p. 76). Amartya Sen (2010a, p. 358) percorre o mesmo sentido político participativo estipulado por Habermas de ampliação da significação desse sistema. Conforme o autor indiano, a política não tem apenas papel de procurar programar prioridades emergentes dos valores e instituições sociais, mas de inclusive promover o crescimento da própria participação. De acordo com o pensamento de Sen, a participação é fim e instrumento, no sentido de se autocomplementar é por meio de implantações de políticas públicas que o debate torna-se mais completo. Aportado nesse modelo participativo, Iris Marion Young (1990, p. 37) avalia que todos os valores interrelacionados dentro de uma sociedade livre são definidos com base em dois sentidos gerais. O primeiro é o desenvolvimento e o exercício de sua capacidade e expressão de suas próprias vivências. Já o segundo se pauta na participação em determinadas ações e nas condições de sua própria ARGUMENTA - UENP 286 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP ação. Ambos se juntam para eliminar as restrições da vida impostas por agentes institucionais opressivos (que constrangem o autodesenvolvimento) e dominadores (que constrangem a autodeterminação). Nesse contexto, devem-se abrir vias participativas para que as pessoas sejam capazes de perceber esses modelos de implantação de políticas como cessão de bens públicos aos indivíduos. Essencialmente, a participação deve contar com um modelo integrativo de que os indivíduos são parte ativa da mudança política e institucional e não meros receptores de uma série de instruções e auxílios. (SEN, 2010a, p. 358) Habermas (1997, p. 68-69), para quem o processo político deve ser utilizado pelas pessoas para que se transmute o termo negocial dos debates e se atinja um termo argumentativo, afirma que ao se determinar um direito ou uma garantia como um bem negociável ela torna-se apenas um objeto de troca e de barganha. Isso se explica porque um direito que emerge de uma discussão pública repercute nas esferas da vida podendo ter efeitos contrários aos desejados. Pelo debate participativo a implantação de um direito é apenas o primeiro passo para que a discussão sobre a concretização desse direito. Os instrumentais proporcionados pela participação ativa fortalecem outras instituições e estas fortalecem a própria noção participativa, em um círculo virtuoso. Essa dimensão integrativa e cooperativa entre os sujeitos, desde as mais simples e familiares até as mais complexas, proporciona o senso comunitário, um senso de percepção de que as ações próprias do indivíduo repercutem na esfera maior (a sociedade). (KLIKSBERG, 2010, p. 305) Mais importante é a experiência da participação na própria tomada de decisões, e a complexa totalidade de resultados a que parece conduzir, tanto para o indivíduo quanto para o sistema político como um todo; tal experiência integra o indivíduo a sua sociedade e constitui o instrumental para transformá-la numa verdadeira comunidade. (PATEMAN, 1992, p. 42) A participação só pode ser acrescida pelo seu exercício. Compartilhada com o acréscimo do capital social, a participação política evita que as pessoas sujeitem suas decisões a agentes estranhos às suas demandas. Tais interferências aceitas pelos indivíduos legitimam a expansão dessas práticas delegatórias. Silva (2006, p. 358-359) chama a atenção para a atividade de caçadores-de-renda (rentseeking activities), uma série de práticas delegatórias legais ou ilegais (como a corrupção) que demandam altos custos que não acrescentam nenhum fator de crescimento econômico. Esse tipo de atividade é apenas uma forma de mascarar problemas sociais que dizem respeitos às pessoas, que por comodidade ou por desinformação acabam por legitimá-las institucionalmente, repercutindo drasticamente na economia, pois segundo o autor, “o resultado de uma generalizada caça à renda criada por qualquer infraestrutura institucional pode levar a uma redução da produtividade econômica”. (SILVA, 2006, p. 359) ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 287 No dizer de Amartya Sem (2010a, p. 370) se a liberdade é meio e fim do desenvolvimento, também as práticas que elevam a liberdade devem ser consideradas como tal. Dessa maneira a própria participação em decisões políticas não é apenas um meio para desenvolver uma sociedade, mas também um fim a ser buscado. Tais práticas são instrumentais e constitutivas do desenvolvimento social. Para chegar a esse ponto é necessário oportunizar às pessoas esse tipo de ação participativa. Habermas (1997, p. 113-114) explica que a sociedade precisa de aparatos políticos internos para que supere as barreiras em situações críticas, isso significa, segundo o autor, que é necessário desvendar o sujeito capaz de colocar os temas na ordem do dia e de originar a orientação dos fluxos da comunicação e a própria agenda pública. É por esse modelo da iniciativa por parte da sociedade civil, que Habermas entende a construção das estruturas de comunicação e oportunidade de participação que faz os cidadãos assumirem suas responsabilidades (em termos de tomadas de decisão). Para Habermas (1997, 115) “basta tornar plausível que os atores da sociedade civil, até agora negligenciados, podem assumir um papel surpreendentemente ativo e pleno de consequências, quando tomam consciência da situação de crise”. Assim, mesmo que exista uma incapacidade inicial de superar determinada crise, o fluxo proporcionado por essa via pública de troca de informações pode inverter o caminho tradicional da comunicação dentro da esfera pública, o que geraria a própria transformação do sistema político. Conforme Carole Pateman (1992, p. 62), o modelo de participação ativa dos indivíduos, e por via de consequência da própria sociedade, se caracteriza pela exigência de um input (participação) na qual o output supera a política no sentido de decisões e inclui também o desenvolvimento das capacidades sociais e políticas de cada indivíduo, havendo ao final do ciclo um feedback do output para o input. Isto significa que a participação necessariamente desenvolve a noção e a demanda por mais participação, um círculo virtuoso desenvolvendo o sentido da participação política. Avaliando esse sistema participativo em comparação ao delegativo, O’Donnell (1995, p. 59) afirma que a participação democrática aumenta o nível de mediação e agregação entre os fatores estruturais dos diversos grupos sob os quais a sociedade organiza seus múltiplos interesses. Por isso, uma instituição democrática forte, mesmo informal, que não se institucionalize perde força para outras instituições não formais que tomam espaços funcionais de bastante praticidade operativa (por exemplo, a corrupção). Importante lembrar que a representatividade eleita pelos cidadãos de certa forma possui elementos de delegação (O’DONNEL, 1995, p. 61) e de fato a representatividade deve criar responsabilidades aos representantes, mas também àqueles que escolheram, posto que sua decisão elegeu aquele representante. Um modelo puramente delegativo e não participativo, elevando outros sujeitos aos postos de tomadas de decisão sem debate entre quem realmente é ARGUMENTA - UENP 288 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP afetado não toma lugar, é um campo aberto para a dominação. O espaço de debate é uma forma que deve ser possibilitada pela via comunicativa da esfera pública, algo que faz as pessoas participarem de decisões que influenciam na sua própria vida e também reflete na sociedade como um todo. (HABERMAS, 1997, p. 160), Iris Young (1990, p. 76), sobre essa dominação, é taxativa. Para ela a dominação consiste nas condições inibidoras de participar das próprias ações ou na definição das condições nas quais tais ações acontecem. Para isso, continua a autora, o modelo capitalista do bem estar cria formas novas de dominação: criando modelos burocráticos e aumentando a racionalização de atividades da vida e do trabalho, sujeitando as pessoas à autoridade de tecnocratas e especialistas. Amartya Sen, ao tratar desse aspecto dominador por parte de agentes institucionais critica o modelo de justiça distributiva que impede a liberdade dos indivíduos. Sujeitos responsáveis tem de ser encarregados da sua própria vida e devem ser garantidas as vias necessárias para, com o perdão da redundância, o desfrute dessa capacidade de decidir sobre suas capacidades. E essa é a responsabilidade do Estado e dos agentes institucionais. (SEN, 2010, p. 366) Da mesma maneira pensa Habermas: Não é o aparelho do Estado, nem as grandes organizações ou sistemas funcionais da sociedade que tomam a iniciativa de levantar esses problemas. Quem os lança são intelectuais, pessoas envolvidas, profissionais radicais, “advogados” autoproclamados etc. Partindo dessa periferia, os temas dão entrada em revistas e associações interessadas, clubes, academias, grupos profissionais, universidades etc. onde encontram tribunas, iniciativas de cidadãos e outros tipos de plataformas; em vários casos transformam-se em núcleos de cristalização de movimentos sociais e de novas subculturas. (HABERMAS, 1997, p. 115) Reprodução educativa pela vida participativa é modelo gerado pelo círculo virtuoso que esse tipo de ação gera. Segundo O’Donnell (1995, p. 65-66) com participação desestruturada e/ou não estimulada a própria sociedade vê nos seus delegados os salvores de la pátria e isso gera “um mágico estilo de fazer política: o mandato delegativo supostamente nomeado pela maioria, forte vontade política e conhecimento técnico deveriam ser suficientes para cumprir a missão do salvador”. De acordo com O’Donnell este foi o motivo de várias crises institucionais gerados por esse modelo de entrega de responsabilidades. A principal função da participação em sociedade é, portanto, educativa. Porém tal noção de educação deve ser vista de modo amplo, sendo observados seus aspectos psicológicos e no de aquisição de prática de habilidades e procedimentos democráticos. “Quanto mais os indivíduos participam, melhor capacitados eles se tornam para fazê-lo. As hipóteses subsidiárias a respeito da participação são de que ela tem um efeito integrativo e de que auxilia a aceitação ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 289 de decisões coletivas” (PATEMAN, 1992, p. 61) O’Donnell afirma que padrão participativo é criticado por ser lento em deliberar os assuntos. “Porém, uma vez que as decisões são tomadas, elas são relativamente mais aptas de serem implementadas” (O’DONNELL, 1995, p. 66). Nesse sentido Amartya Sen, afirma que o papel da discussão pública sobre os aspectos da vida em sociedade toma proporções indispensáveis para a exigência de determinados direitos e para que alguns valores sejam elevados. O aspecto livre de questionamento e valoração deve ser atribuído pelas próprias pessoas que compõem o corpo social e o debate participativo, aliado à reprodução educativa que este forma, deve ser pela sociedade como um todo e não “meramente pelos pronunciamentos daqueles que se encontram em posições de mando e controlam as alavancas do governo”. (SEN, 2010a, p.365-366) É preciso uma nova concepção de participação que exija do cidadão mais do que sua participação política vincula a processos eleitorais para escolhas de pessoas. Uma sociedade que não se responsabiliza, ou mesmo que não busca se responsabilizar por certas demandas, se transforma em uma sociedade dominada por instituições que fazem imperar a desconfiança e o individualismo. CONSIDERAÇÕES FINAIS O papel do desenvolvimento em uma dada sociedade tomou proporções após as suas vinculações a progressos meramente tecnológicos e de captação e concentração de rendas. Com as novas teorias econômicas que superam a atividade meramente negocial e partem para uma visão ampliada do desenvolvimento, surgem novas formas também de avaliar de que forma alguns direitos humanos básicos dos cidadãos dos países podem fazer a diferença e fomentar as instituições da sociedade. O desenvolvimento não deve mais ser entendido como a alocação de recursos em um único e idealizado ente de controle, mas em uma forma cooperada que leve em consideração as pessoas do corpo social que fazem parte. As instituições formais e informais tem papel fundamental nessa perspectiva: a força de certas instituições determinam como a sociedade vai se portar diante de determinadas relações. O que está em jogo é que nem Estado e nem o Mercado tem o poder universal de determinar uma forma única de desenvolvimento, mas podem fornecer os instrumentos necessários para a efetiva capacitação das pessoas. O papel crucial desses elementos não é se ampliar e tornar o outro insignificante, mas antes devem estar aliados e alinhados no exercício de práticas que fomentem as capacidades humanas. A educação encontra um papel fundamental quando estipulada como direito. Por ser indicada como tal não pode ser tratada como um bem dispensado aos sujeitos presentes na sociedade, mas deve ser praticada. Um direito, conforme visto, não se garante pela sua mera aplicação, mas antes pelo seu exercício, posto ARGUMENTA - UENP 290 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP que seja um fenômeno relacional. Deste modo, o direito à educação deve superar o paradigma jurídico e social de simples acesso a instituições educacionais, devendo estar aliado a outras garantias que gerem a oportunidade de que as pessoas tendam a ampliar seu conhecimento de variadas maneiras (formais e informais). A educação enquanto fenômeno relacional, então, junta-se a este modelo amplo de ressignificação de desenvolvimento, que busca atrair a possibilidade das pessoas de enfrentar com suas próprias decisões. Nessa direção, a educação deve ser tanto instrumento quanto fim almejado e assim reproduzir-se a si mesma, aumentando sua demanda. Esta demanda então é oportunizada ao debate emergindo a sociedade em sua figura participativa. Tal qual o direito à educação, os direitos políticos são garantidos constitucionalmente e devem ser exercidos por meio do seu exercício (por mais redundante que possa parecer). Não podem ser cedidos ou trocados como uma mercadoria qualquer, não podem ser terceirizados. A existência de um direito político por si só implica que outros direitos como por exemplo, o direito à educação, são necessários para o seu efetivo gozo. Ou seja, uma série de oportunidades sociais oferecidas para a população faz com que esta própria faça valer um direito não como mero bem que possui, mas como um exercício efetivo deste, não relegando sua prática às eleições para escolha de representantes que, em verdade, tornam-se delegados do povo designados para tomadas de decisão em nome da própria população. Assim, a sociedade se abstem de um direito e o delega para determinadas pessoas que se veem acima inclusive daqueles que o elegeram como representante. De ambas as partes a responsabilidade são entregues: o cidadão entrega suas responsabilidades aos sujeitos burocratas e tecnocratas da máquina estatal e estes por sua vez encerram sua atividade empurrando tais demandas a outros meios que possam promovê-las, porém esterilizando o debate político. Para uma sociedade entrar em curso de desenvolvimento individual e social, é necessário que as pessoas assumam suas responsabilidades e para isso devem ser oportunizados os canais de debate e também a capacitação para tal debate, elementos que se reproduzem a si mesmos, não entregando as decisões das próprias vidas nas mãos de outras pessoas. Em sociedade com participação ativa, as responsabilidades são divididas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BARRAL, Welber. Direito e desenvolvimento: análise da ordem jurídica brasileira sob a ótica do desenvolvimento. São Paulo: Singular, 2005. FISCHMAN, Gustavo E.; HASS, Eric. Cidadania. In: Educação e Realidade, Porto Alegre, v. 37, n. 2, pp. 439-466, maio/ago 2012. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 291 FURTADO, Celso. Teoria e política do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2000. HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia: entre facticidade e validade, volume II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997. JÜTTING, Johannes. Institutions and development: a critical review. In: DEV/ DOC (2003)08. Working Paper No. 210. KLESNER, Joseph L. Social capital and political participation in Latin America. In: Latin American Research Review, vol. 42, n. 2, 2007, Texas Press, pp. 1-32. KLIKSBERG, Bernardo; SEN, Amartya. As pessoas em primeiro lugar. São Paulo: Companhia das Letras, 2010(b). LANDES, David. A riqueza e a pobreza das nações. 6 ed. Lisboa: Gradiva, 2002. LUKÁCS, Gyorgy. História e consciência de classe: estudos sobre a dialética marxista. São Paulo: Martins Fontes, 2003. MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004. MOTTA, Vânia Cardoso da. Ideologias do capital humano e do capital social: da integração à inserção e ao conformismo. In: Trabalho, educação e saúde, Rio de Janeiro, v. 6, n. 3, 2008. pp. 549-571. O’DONNELL, Guillermo. Delegative Democracy. In: Journal of Democracy, vol. 5, n. 1, January, 1994, pp. 55-69. PATEMAN, Carole. Participação e teoria democrática. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1992. PUTNAM, Robert.Bowling alone: the collapse and revival of American community. New York: Simon & Schuster, 2000. SILVA, Marcos Fernandes Gonçalves da Silva. Cooperation, social capital and economic performance. In: Brazilian Journal of Political Economy, vol. 26, n. 3 (103), pp. 345-363, jul-sep 2006. ______. Ética e economia. Rio de Janeiro: Elsevier, 2007. SEN, Amartya. Desenvolvimento como liberdade. São Paulo: Companhia das Letras, 2010a. ARGUMENTA - UENP 292 JACAREZINHO Nº 18 P. 273 – 293 2013 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP SOUSA, Mônica Tereza Costa. Direito e desenvolvimento: uma abordagem a partir das perspectivas de liberdade e capacitação. Curitiba: Juruá. 2011. YOUNG, Iris Marion. Justice and politics of difference. New Jersey: Princeton University Press, 1990. ARGUMENTA - UENP JACAREZINHO Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP Nº 18 P. 273 – 293 2013 293 294 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP DISSERTAÇÕES DEFENDIDAS 2013 (janeiro/julho) ÁREA DE CONCENTRAÇÃO TEORIAS DA JUSTIÇA: JUSTIÇA E EXCLUSÃO LINHAS DE PESQUISA FUNÇÃO POLÍTICA DO DIREITO ESTADO E RESPONSABILIDADE: QUESTÕES CRITICAS A responsabilização do assédio moral como fator de humanização do ambiente de trabalho: uma análise doutrinária e jurisprudencial Mestranda: Flavia Caroline Marsola Data: 06/03/2013 Banca: Dr. Mauricio Gonçalves Saliba - Orientador Dr. Vladimir Brega Filho Dra. Raquel Cristina Ferraroni Sanches Acesso à justiça: A democratização de um direito fundamental Mestrando: Rogério José da Silva Data: 29/04/2013 Banca: Dr. Reinéro Antonio Lérias - Orientador Dr. Fernando de Brito Alves Dr. Zulmar Fachin Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 295 296 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP AUTORES QUE PUBLICARAM NESTE NÚMERO JOÃO MAURÍCIO ADEODATO Professor Titular da Faculdade de Direito do Recife, Livre Docente da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo e Pesquisador 1-A do CNPq.Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/8269423647045727 LEILANE SERRATINE GRUBBA Doutoranda em Direito na UFSC. Mestre em Direito pela UFSC. Bolsista de doutorado CNPq. É aluna pesquisadora dos projetos NECODI (Núcleo de Estudos Conhecer Direito) e Direito e Literatura, todos vinculados à UFSC. Professora substituta do Departamento de Direito da Universidade Federal de Santa Catarina. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2294306082879574 HORÁCIO WANDERLEI RODRIGUES Estágio de Pós-Doutorado em Filosofia na UNISINOS. Doutor em Direito pela UFSC. Mestre Direito pela UFSC. Professor Titular de Teoria do Processo no Departamento de Direito e Professor Permanente do Programa de Pós-Graduação em Direito da UFSC. Membro do Instituto Iberomericano de Derecho Procesal (IIDP), do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito (CONPEDI) e da Associação Brasileira de Ensino do Direito (ABEDi). Pequisador do CNPq. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1611197174483443 ROGELIO LÓPEZ SÁNCHEZ Máster en Derechos Humanos con Especialidad en Tutela Jurisdiccional de los Derechos Fundamentales. Profesor Titular de Derechos Fundamentales en la Facultad de Derecho y Criminología en la Universidad Autónoma de Nuevo León. Becario del CONACyT y Exbecario de la Suprema Corte de Justicia de la Nación. Contacto: [email protected], [email protected] LUIS FERNANDO ZEPEDA GARCÍA Abogado Postulante, Egresado de la Maestría en Ciencias Jurídicas con énfasis en Derecho Constitucional. Profesor Titular de Derecho Constitucional Local y Presidente de la Línea de Derecho Constitucional del Cuerpo Académico de la Escuela de Derecho de la Facultad de Ciencias Administrativas y Sociales de la Universidad Autónoma de Baja California. Contacto: [email protected] Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 297 THAÏS SAVEDRA DE ANDRADE Mestranda do Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná - UENP. Bolsista do CAPES. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/3445267676106928 RÚBIA ZANOTELLI DE ALVARENGA Mestre e Doutora em Direito do Trabalho pela PUC Minas. Professora de Direito do Trabalho e Previdenciário da Casa do Estudante de Aracruz/ES e de Cursos de Pós Graduação. Advogada. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2783143446913838 THADEU AUGIMERI DE GOES LIMA Mestre em Ciência Jurídica pela Universidade Estadual do Norte do Paraná (UENP). Especialista em Direito e Processo Penal pela Universidade Estadual de Londrina (UEL). Promotor de Justiça no Estado do Paraná. Endereço eletrônico: [email protected] ou [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/6293710870204063 ALCIDES ANTÚNEZ SÁNCHEZ Profesor asistente. Carrera de derecho. Facultad de Ciencias Sociales y Humanísticas. Universidad de Granma. República de Cuba. Endereço eletrônico: [email protected] CARLOS JUSTO BRUZON VILTRES Profesor MSc. asistente. Carrera de derecho. Universidad de Granma. República de Cuba. Endereço eletrônico: [email protected] ARMANDO GUILLERMO ANTUNEZ SÁNCHEZ Profesor MSc. asistente. Médico veterinario. Universidad de Granma. Endereço eletrônico: [email protected] VINÍCIUS BARBOSA SCOLANZI Bacharel em Direito pela Universidade Estadual do Norte do Paraná – Centro de Ciências Sociais Aplicadas – campus de Jacarezinho/PR. Pós-graduando em Direito de Estado nas Faculdades Integradas de Ourinhos, FIO. Delegado de Polícia no Estado de São Paulo. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2771249543390628 298 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP MANUEL MARTIN PINO ESTRADA Formado em Direito na Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Professor de Direito na Faculdade de Direito de Alta Floresta - MT (FADAF). Endereço eletrônico: [email protected] Lattes http://lattes.cnpq.br/1544467115109084 JOÃO FELIPE DA SILVA Advogado; Graduado em 2011; Professor de Ciência Política e teoria geral do Estado do Curso de Direito das Faculdades Integradas de Ourinhos/SP, Pós-Graduando em Direito do Estado. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/7106603994273621 WALTER CLAUDIUS ROTHENBURG Mestre e Doutor em Direito pela UFPR. Pós-graduado em Direito Constitucional pela Universidade de Paris II. Professor da Instituição Toledo de Ensino (ITE) e Procurador Regional da República. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1487955106809748 EDINÊS MARIA SORMANI GARCIA Mestre em Direito Constitucional. Professora e Coordenadora do Curso de Direito da Faculdade Anhanguera de Bauru. Endereço eletrônico: [email protected]. Lattes: http://lattes.cnpq.br/4670949619800391 PAULO ROBERTO IOTTI VECCHIATTI Mestre em Direito Constitucional. Autor do livro Manual da Homoafetividade. da Possibilidade Jurídica do Casamento Civil, da União Estável e da Adoção por Casais Homoafetivos (2. ed. São Paulo: Editora Método, 2012). Advogado. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/1407051640478106 TAÍS NADER MARTA Mestre em Direito Constitucional. Advogada. Professora de Graduação em Direito e de Cursos de Pós Graduação. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/0777694220400839 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 299 MÔNICA TERESA SOUSA Doutorado em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina, Brasil. Professora Adjunta da Universidade Federal do Maranhão, Brasil. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/2651036312847509 JOÃO CARLOS DA CUNHA MOURA Mestrando em Direito e Instituições do Sistema de Justiça – Universidade Federal do Maranhão. Endereço eletrônico: [email protected] Lattes: http://lattes.cnpq.br/9237512857575587 300 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP NORMAS PARA A APRESENTAÇÃO DE ORIGINAIS 1) Informações gerais: A revista Argumenta, de periodicidade semestral, destina-se à publicação de textos originais de Ciência Jurídica, Ciências Sociais Aplicadas, e Ciências Humanas, que estejam dentro de suas linhas editoriais, com o propósito de difundir, em nível nacional e internacional, as reflexões dos pesquisadores de temas relacionados com a Justiça e a Exclusão Social. O Conselho Editorial recomenda que os trabalhos que lhe forem encaminhados sejam inéditos ou apresentados em eventos científicos, como seminários, congressos, encontros, simpósios. Preferencialmente serão publicados artigos, resenhas de obras recentes (publicadas nos dois últimos anos), e resumos de dissertações e teses. Os autores cedem os direitos autorais dos artigos publicados para o Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da Universidade Estadual do Norte do Paraná. Os dados e conceitos emitidos, bem como a exatidão das referências são de inteira responsabilidade dos autores. As colaborações deverão seguir rigorosamente as normas abaixo. São publicados textos em Português, Inglês e Espanhol. Os autores receberão dois exemplares da revista, a título de direitos autorais. As submissões devem ser feitas exclusivamente por via eletrônica, pelo e-mail: [email protected]. 2) Preparação dos originais: Os trabalhos, que não devem exceder a 30 laudas, redigidos em papel formato A4 (21 cm por 29,7 cm), redigido preferencialmente em MS-Word 7.0 (95), MS-Word 97 ou versão superior para Windows (PC), com fonte Times New Roman, tamanho 12, espaçamento simples, alinhamento justificado, e margens de 1,5 cm (superior e inferior) e de 2,0 cm (esquerda e direita). O cabeçalho deverá ter 1,5 cm e o rodapé 1,0 cm, os parágrafos devem ser de 1,25 cm, bem como as citações com recuo especial. Os trabalhos devem obedecer à seguinte seqüência: título (caixa alta, em negrito, centralizado); autor (em itálico, alinhado à direita, apenas o sobrenome em maiúscula, seguido da primeira nota que se referirá à qualificação acadêmica e profissional do autor, colocada em nota de rodapé; resumo seguido de abstract (em fonte 10, com no máximo 100 palavras, versão em inglês ou espanhol); palavras-chave seguidas de keywords (em fonte 10, com até 5 palavras, versão em inglês ou espanhol, os títulos dos tópicos devem ser em negrito); texto (subtítulos sem adentramento, distinguidos por números arábicos, em negrito, apenas a Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 301 primeira letra maiúscula); Referências bibliográficas (sem adentramento, em negrito). Evitar o uso de negrito no corpo do texto, utilizando-o apenas nos tópicos indicados. Evitar também excesso de notas de rodapé, priorizando a identificação parentética das fontes no próprio texto (Ex.: PASOLD, 1999, p. 23). Observar as normas da ABNT (NBR-6023). 3) Normas específicas: Citação no texto: de preferência, parentética (entre parênteses, citar sobrenome do autor, ano de publicação e número da página transcrita); se tiver mais de três linhas, redigi-la com o mesmo recuo dos parágrafos; Referências bibliográficas: apresentar em ordem alfabética, iniciando pelo sobrenome do autor, com destaque gráfico (em caixa alta), Nome do autor. O título principal em itálico. Número da edição. Cidade: Editora, ano de publicação. As linhas seguintes à primeira não devem ser redigidas com deslocamento. Obedecer normas da ABNT para todo tipo de fonte bibliográfica. 4) Processo de Seleção dos Artigos Todo artigo será submetido a dois pareceristas por meio do sistema duble blind per revew, sendo um Conselheiro Editorial, e outro Conselheiro TécnicoCientífico. Os pareceristas não conheceram a autoria dos artigos submetidos. Caso o texto obtenha dois pareceres favoráveis será encaminhado para o banco de artigos aprovados e publicado nas edições subseqüentes da revista. Caso haja pareceres divergentes, ou sugestões de modificação do texto, caberá recurso ao Conselho Editorial, sendo que o Editor Chefe designará relator, que fará parecer definitivo sobre o mérito acadêmico científico do artigo. Os originais não serão devolvidos em nenhuma hipótese. UNIVERSIDADE ESTADUAL DO NORTE DO PARANÁ – UENP CAMPUS DE JACAREZINHO CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS APLICADAS Programa de Mestrado em Ciência Jurídica Avenida Manoel Ribas, 711 – Centro – Caixa postal 103 Jacarezinho – PR – CEP 86400-000 – BRASIL Tel.: +55 (43) 3525-0862 e + 55 (43) 3525-8953 Site: http: www.uenp.edu.br www.uenp.edu.br/mestrado/direito – e-mail: [email protected] Revista Argumenta [email protected] 302 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP RULES FOR SUBMISSION 1) General Information: The Journal Argumenta is intended to publish the original texts of Juridical Science, Applied Social Sciences and Humanities, which are within their editorial lines, with the purpose to disseminate, at national and international reflections by researchers of issues related to Justice and Social Exclusion. The Editorial Board recommends that the texts that have been sent be unpublished or presented at scientific meetings, seminars, congresses, conferences, symposia. Preferably publish articles, reviews of recent works (published in the last two years), and abstracts of dissertations and theses. The authors transferring copyright of published articles for the Masters Program in Juridical Science at the State University of Northern Paraná. The data and concepts presented, as well as the accuracy of the references are the sole responsibility of the authors. The collaborations should strictly follow the rules below. Texts are submitted in portuguese, english and spanish. Authors will receive two copies of the magazine, under copyright. Manuscripts may be submitted electronically or via regular mail, though electronic submissions are strongly encouraged and greatly appreciated. Manuscripts submitted via e-mail should take the form of attachments formatted in Microsoft Word and should be e-mailed to Journal Argumenta, at [email protected]. 2) Preparation of documents: The work, which should not exceed 30 pages, written on paper format A4, preferably written in MS-Word 7.0 (95), MS-Word 97 or later for Windows (PC) in Times New Roman, size 12, single spaced, justified, and 1.5 cm margins (top and bottom) and 2.0 cm (left and right). The header should be 1.5 cm and 1.0 cm bottom, paragraphs should be 1.25 cm, and quotes with special retreat. Entries must have the following sequence: title (all caps, bold, centered), author (in italics, left aligned, just a last name in capital letters, followed by the first note will refer to the academic and professional qualifications of the author, placed in a footnote, summary followed by abstract (in font 10, with a maximum of 100 words in English or Spanish version) keywords followed by keywords (in font 10, with up to five words, in English or Spanish version, the Titles should be in bold) text (captions without getting through, distinguished by Arabic numerals, bold, only first letter capitalized) References (without getting through, in bold). Avoid the use of bold in the text, using it only in the subjects shown. Also avoid excessive footnotes, parenthetical prioritizing the identification of the sources in the text (eg PASOLD, 1999, p. 23). Observe the ABNT (NBR6023). Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP 303 3) Specific rules: Citation in text: preferably parenthetical (in parentheses, cite the author’s surname, year of publication and page number of transcript), if more than three lines, I wrote it with the same indentation of paragraphs; References: in alphabetical order, starting with the author’s name, especially graphic (in capitals), author’s name. The main title in italics. Issue number. City: Publisher, year of publication. The following lines should not be the first written with displacement. Obey ABNT for all types of source. 4) Selection Process for Articles Every article will have two referees through the system per revew duble blind, and an Editorial Board, and other Scientific-Technical Advisor. The referees did not know the authorship of articles submitted. If the text gets two favorable opinions will be forwarded to the bank of articles adopted and published in subsequent editions of the magazine. If there are divergent opinions or suggestions for modification of the text may be appealed to the Editorial Board, and appoint the Chief Editor rapporteur, who will make final opinion on the academic merit of the scientific article. The originals will not be returned under any circumstances. STATE UNIVERSITY OF NORTHERN PARANA - UENP Campus Jacarezinho CENTRE OF APPLIED SOCIAL SCIENCES Master’s Program in Juridical Science Avenida Manoel Ribas, 711 – Centro – Caixa postal 103 Jacarezinho – PR – CEP 86400-000 – BRASIL Tel.: +55 (43) 3525-0862 e + 55 (43) 3525-8953 Site: http: www.uenp.edu.br www.uenp.edu.br/mestrado/direito – e-mail: [email protected] Revista Argumenta [email protected] 304 Programa de Mestrado em Ciência Jurídica da UENP