O que é um objecto quântico? - Repositório da Universidade de

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Universidade de Lisboa
Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
O que é um objecto quântico?
Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e
ontológicas desta questão.
João Luís Cordovil
Doutoramento em História e Filosofia das Ciências
2011
Universidade de Lisboa
Faculdade de Ciências
Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências
O que é um objecto quântico?
Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e
ontológicas desta questão.
João Luís Cordovil
Doutoramento em História e Filosofia das Ciências orientado
pelos professores doutores Olga Maria Pombo Martins e José
Nunes Ramalho Croca
2011
PREFÁCIO
A presente Tese, apresentada para cumprimento dos
requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em
História e Filosofia das Ciências, é o resultado de um
trabalho de investigação iniciado em 2006, sob a orientação
da Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins e do
Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.
À Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins gostaria
de deixar um agradecimento especial. Em primeiro lugar,
agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento
das diversas fases da minha investigação, pelos seus
atentos e agudos conselhos, sugestões e pistas, pela sua
dedicada prática de comunhão de saberes, bem como pela sua
generosidade, exigência e disponibilidade. Em segundo
lugar, agradeço-lhe o imenso trabalho que tem desenvolvido
no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de
Lisboa. Trabalho onde radicam as condições materiais desta
dissertação. Em terceiro lugar, agradeço-lhe ter-me dado a
ver o que é a Filosofia. Por fim, agradeço-lhe ter-me
apresentado ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca.
Ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca agradeçolhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das
diversas fases da minha investigação, agradeço-lhe a sua
generosidade, paciência e disponibilidade, agradeço-lhe a
sua vontade de partilhar saberes e as ideias que tão
corajosamente defende. Agradeço-lhe, igualmente, o trabalho
que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da
Universidade de Lisboa, que tem permitido a existência de
um grupo dedicado à Filosofia da Física.
Ao Doutor Gil Costa Santos agradeço-lhe os inúmeros
diálogos que tivemos, bem como o seu trabalho de revisão e
melhoramento deste texto.
Em todo o caso, devo sublinhar que tudo quanto se
escreve e defende no texto deste trabalho é, evidentemente,
da minha exclusiva responsabilidade.
À ‘Fundação para a Ciência e a Tecnologia’ agradeço a
atribuição
de
uma
bolsa
de
investigação
(SFRH/BD/21790/2005), sem a qual teria sido
levar a cabo este trabalho de investigação.
A todos, agradeço.
impossível
Ao meu Pai
À Sara
Índice
Introdução ..................................................... 1
1.Sobre a questão da Natureza dos Objectos Quânticos .......... 3
2.A Constituição da Mecânica Quântica ......................... 13
2.1. O Princípio da Correspondência ........................... 19
2.2.A hipótese de De Broglie .................................. 43
2.3.Doutrina da Indispensabilidade dos conceitos clássicos ... 48
2.4. As duas partículas puras da Física Clássica .............. 84
2.5.A Pentadoxia .............................................. 92
2.6.O Princípio da Correspondência: nível conceptual ......... 100
2.7. O “Princípio” da complementaridade ...................... 103
2.8.Os postulados da Mecânica Quântica ....................... 132
2.8.1,Léxico: Função de onda, Observáveis e Operadores ... 137
2.8.2.A Mecânica Quântica como uma generalização racional
das teorias clássicas da Física .......................... 141
2.9.O Problema da Medição .................................... 156
2.9.1. O Problema da Completude .......................... 158
2.9.2.O Problema da Caracterização ....................... 163
2.10. Conclusão .............................................. 168
3. O que é um Objecto Físico ................................. 179
3.1. O conceito de objecto físico em Descartes ............... 181
3.1.1. Movimento ......................................... 207
3.1.2 conclusão .......................................... 216
3.2. O conceito de objecto físico em Newton .................. 218
3.2.1. Corpo ............................................. 219
3.2.2. Quantidade de Movimento ........................... 224
3.2.3. Os três tipos de força ............................ 227
3.2.4. Os conceitos de espaço, tempo, lugar e movimento .. 234
3.2.5. o conceito de tempo ............................... 235
3.2.6. o conceito de espaço
............................ 240
3.2.7. o conceito de movimento ........................... 244
3.2.8. conclusão ......................................... 249
3.3. O conceito de objecto físico em Kant .................... 254
3.3.1. Foronomia ......................................... 267
3.3.2. Dinâmica .......................................... 271
3.3.3. Mecânica .......................................... 276
3.3.4. Fenomenologia ..................................... 278
3.3.5. Conclusão ......................................... 279
3.4. Conclusão geral do capítulo ............................. 284
4. Elementos para uma concepção dinâmica e relacional de objecto
físico ....................................................... 293
4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos .......... 295
4.2. Objectos Físicos como nós de relações ................... 314
5. Conclusão ................................................. 325
Bibliografia ................................................. 331
Introdução
O trabalho que aqui se apresenta pode-se afirmar que é
constituído
por
três
partes:
uma
reconstrutiva,
outra
descritiva, uma terceira interpretativa (ou especulativa).
Estas
três
partes
não
são,
naturalmente,
estanques.
A
reconstrução do pensamento de um autor passa, também, pela
descrição e interpretação desse
pensamento. A
descrição
igualmente não é realizável sem a interpretação e sem ser,
em certo grau, uma reconstrução. E o mesmo se aplicará à
interpretação. Portanto, esta partição é mais tónica do que
categórica.
(Como
talvez
seja
o
parte,
faz-se
caso
para
todas
as
reconstrução
do
partições.)
Na
primeira
pensamento
de
Bohr
sobre
a
uma
constituição
da
Mecânica
Quântica. Nesta tentar-se-á mostrar, através do movimento
interior ao pensamento de Bohr, a forma como a Mecânica
Quântica se constituiu como uma solução de compromisso da
tensão entre o que em termos deleuzianos pode ser designado
por uma imagem-pensamento sobre os objectos físicos e a
descoberta do domínio quântico. Ou seja, do confronto entre
um conjunto de pressupostos ontológicos implícitos onde a
Física
sempre
se
fundou
e
a
descoberta
dos
objectos
quânticos. A solução de Bohr, sobre a qual se edificou a
Mecânica
Quântica,
clássicas
da
permitiu
foi
Física,
ocultar
o
a
num
de
generalizar
exercício
problema
da
de
as
teorias
ilusionista,
natureza
dos
que
objectos
quânticos. Problema que, como se tentará mostrar, ficou na
raiz
das
chamadas
implicações
filosóficas
da
Mecânica
Quântica.
Na
segunda
principais
parte,
conceitos
de
far-se-á
objecto
uma
descrição
físico,
em
dos
particular
aqueles que presidiram à constituição da Física. Ou seja,
os conceitos de objecto físico em Descartes, Newton e Kant.
Em particular, mostrar-se-á que, embora a Física seja a
ciência do movimento, não decorre do conceito de objecto
físico
que
este
se
movimente.
Algo
que
se
torna
problemático quando se tenta pensar os objectos quânticos.
Por
fim,
na
última
parte,
a
partir
de
uma
interpretação de alguns elementos da metafísica de Leibniz
e de Deleuze, ensaiar-se-ão os primeiros passos para uma
concepção de objecto quântico.
Antes do mais, será feita uma apresentação da questão
“O que é um Objecto Quântico?”, determinando-se o seu lugar
no que se tem designado por Filosofia da Mecânica Quântica.
1.
Sobre a questão da Natureza dos objectos
quânticos.
O que é um objecto quântico?
A questão surge-nos, sem demora ou dificuldade, logo que
entramos do labiríntico domínio quântico. Domínio pleno de
becos
sem
saída,
de
lugares
a
que
sempre
se
parece
retornar, de percursos tortuosos e desorientadores, mas que
para o qual, a meu ver, na literatura, seja esta filosófica
ou não, existem apenas três vias de acesso: a via formal, a
via historicista e a via conceptual.
A via formal passa pela apresentação dos postulados, do
formalismo e do elegante aparato matemático da Mecânica
Quântica. Esta é a via que encontramos, principalmente, na
literatura filosófica de inspiração analítica1. Esta será a
via mais rápida e, actualmente, mais comum de entrada nos
chamados problemas da medição e da não-localidade.
1
Veja-se, a exemplo, o livro de Pierter E. Vermass (1999), A
philosopher’s understanding of quantum mechanics, Cambridge: Cambridge
University Press, ou o capítulo de Michael Dickson (2007), “Nonrelativistic Quantum Mechanics”, presente no livro Philosophy of
Physics Part A, Amesterdam: Elsevier, pp. 275-415.
3
A
via
historicista,
por
seu
turno,
passa,
principalmente, pela narrativa do desenvolvimento da Física
das primeiras três décadas do século XX. Sendo que, em
muitos casos, recua até à Física do século XVII, fazendonos recordar o velho debate sobre a natureza da luz para o
relacionar com a fundação da Mecânica Quântica. Esta é a
via
que
é
percorrida,
principalmente,
na
literatura
filosófica de inspiração francesa2.
Por
fim,
confrontar
a
quem
via
a
conceptual.
percorre
Esta
com
passa
uma
por
fazer
experiência
de
pensamento. Usualmente, é escolhida, para esse efeito, a
chamada experiência de dupla fenda.3 Esta via é aquela se
encontra, principalmente, na literatura filosófica que, à
falta de melhor, designarei por empirista4.
2
Desde o livro de Bachelard, G. (1951), L’activité rationaliste de la
physique contemporaine Paris: Presses Universitaires de France ao
livro de Omnès, R. (1999), Understanding Quantum Mechanics, Princeton:
Princeton University Press (cuja edição francesa surgiu um ano mais
tarde: Comprendre la mécanique quantique, EdP Sciences (2000)), ou do
mesmo Omnès. R. (2006), Les indispensables de la mécanique quantique,
Paris: Odile Jacob.
3
Experiência que, como tantas vezes ocorre com as experiências de
pensamento, já foi realizada em laboratório, tendo obtido os
resultados esperados. Cf., por exemplo, Arndt, Markus; Nairz, Olaf e
Zeilinger, Anton (2003), Quantum interference experiments with large
molecules Am. J. Phys. 71 (4), October 2003, pp. 319-325.
4
Por exemplo, o livro de Osvaldo Pessoa Jr. (2003), Conceitos de
Física Quântica, São Paulo: Livraria da Física, o texto do filósofo
americano Richard F. Kitchener (1988), The World view of contemporary
physics: does it need a new metaphysics?, ou mesmo os primeiros
capítulos do volume III das Lectures on physics de Richard Feynman
4
Estas
sentido
três
de
vias,
uma
embora
mesma
distintas,
conclusão.
A
encaminham-nos
saber:
um
no
objecto
quântico é uma entidade com propriedades tanto das ondas,
como das partículas. Uma entidade sobre a qual, no já
distante ano de 1928, Lord Eddington afirmava:
“Podemos dificilmente descrever tal entidade como uma onda ou
como uma partícula; talvez como compromisso seja melhor chamá-la
de “ondícula””5.
Este compromisso proposto por Eddington, no entanto, não
teve, nem tem tido, qualquer eco na Filosofia da Física
Quântica. Porquê? A que se deve esta ausência? Ou como
coloca, embora com ironia, o filósofo Norueguês Arne Naess:
porque não aceitamos esta generosa oferta de Eddington?6
A resposta é-nos dada por Margenau. Em explícita recusa
às “ondiculas”, este afirma:
(1964)
que
embora
seja
um
livro
de
Física
é
referenciando
repetidamente em textos filosóficos.
5
“We can scarcely describe such an entity as a wave or as a particle;
perhaps as a compromise we had better call it a "wavicle". Eddington,
A. (1928), The Nature of Physical World, New York: The MacMillan
Company, p. 201. (tradução nossa)
6
Cf. Arne Naess (2005), The Selected Works of Arne Naess,
Dordrecht:
Springer, p.62.
5
“Para clarificar o problema fazemos notar para começar que,
obviamente,
as
incompatíveis;
propriedades
das
adicioná-las
como
ondas
e
das
se
elas
partículas
fossem
são
meramente
diferentes não faz sentido. É apropriado dizer que um certo
animal é um cavalo e uma besta de carga, mas não que é um cavalo
e uma vaca.”7
Está implícito nestas palavras de Margenau que afirmar
que uma entidade possui o conjunto de propriedades de X,
não é outra coisa que afirmar que essa entidade é X. Ou
dito de outra forma, afirmar que uma entidade possui, por
exemplo, as propriedades das ondas, é afirmar que essa
entidade
é
uma
onda.
De
igual
modo,
dizer
que
de
uma
entidade possui o conjunto de propriedades das partículas,
é
dizer
que
consequência,
essa
o
entidade
mesmo
é
sucederá
uma
com
partícula.
as
E,
por
entidades
que
declaramos possuírem as propriedades das vacas, dos cavalos
ou das bestas de carga, onde diremos de cada uma delas, e
respectivamente, que é uma vaca, que é um cavalo ou que é
uma besta de carga.
7
“To clarify the problem we note to begin with that the obvious
properties of waves and particles are incompatible; adding them
together as though they are merely different does not make sense. It
is proper to say that certain animal is a horse and a beast of burden,
but not a horse and a cow”, Margenau, Henry (1977), The Nature of
Physical Reality, p. 321. (tradução nossa)
6
Por outro lado, uma entidade poderá ser um cavalo e uma
besta de carga - como, de forma implícita, indica Margenau
- na medida em que as propriedades dos cavalos e das bestas
de carga, embora diferentes, são compatíveis. Nomeadamente,
esta entidade, que possui as propriedades tanto dos cavalos
como das bestas de carga, será um cavalo de carga. Tal como
aqueles cavalos que cartam com os turistas pelas curvas da
Serra de Sintra.
Contudo,
no
caso
das
vacas
e
dos
cavalos,
as
suas
propriedades são incompatíveis e não meramente diferentes.
Como tal, uma entidade a que possuísse as propriedades dos
cavalos e das vacas – a que, e fazendo uso da mesmo lógica
de geração de neologismos de Eddington, poderíamos designar
por “vacalo”8 – tratar-se-ia de uma entidade com uma dupla
natureza. Seria vaca e cavalo. E poder-se-á afirmar o mesmo
das partículas e das ondas do que anteriormente afirmámos
das vacas e cavalos. Assim, tal como os “vacalos” aqui
congeminados, também as tais “ondículas” de que nos fala
Eddington seriam entidades com uma dupla natureza. Seriam
ondas
e
partículas.
Ou
seja,
das
palavras
de
Margenau
compreende-se que aceitar a “ondícula” seria aceitar que
8
Poderíamos imaginar, inspirados, por ventura, em As Viagens de Marco
Polo, uma criatura metade vaca e metade cavalo. Por exemplo, com uma
nobre cabeça de equídeo e uma vulgar traseira de bovino. Contudo,
neste caso, teríamos um animal cuja cabeça identificaríamos com as dos
cavalo e uma traseira que identificaríamos com as das vacas, mas não
teríamos um animal que identificássemos integralmente tanto com os
cavalos, como com as vacas. Tal criatura está, de resto, fora do
alcance da imaginação.
7
uma entidade que fosse dupla na sua essência. Seria aceitar
uma
identidade
que
fosse
dupla.
Ora,
esta
duplicidade
intrínseca ao termo “ondículas” contradiz a grande coluna
vertebral da lógica desde os Gregos. Portanto, aceitar as
“ondículas” seria tropeçar na lógica mais basilar e tombar,
de cabeça, de encontro ao mais robusto dos paradoxos.
É, pois, inteligível que na literatura sobre o domínio
quântico muito rareie o termo “ondícula”. Esta literatura,
ao invés de “ondícula” tem preferido fazer uso da expressão
“dualismo onda-partícula”. No entanto, esta preferência não
é, a meu ver, nem inocente, nem inócua. Ela revela um
deslocamento
ontológico
subtil
mas
decisivo.
Um
deslocamento que se denuncia em afirmações como a seguinte,
do punho de Nikolic:
“Em livros introdutórios à Mecânica Quântica, […] o estranho
carácter
conceptual
da
Mecânica
Quântica
é
muitas
vezes
verbalizado em termos da dualidade onda-particula. De acordo com
esta dualidade, os objectos microscópicos fundamentais, como os
electrões e os fotões, não são nem puras partículas, nem puras
ondas, mas tanto ondas como partículas. Ou mais precisamente, em
algumas condições eles comportam-se como ondas enquanto que em
outras condições eles comportam-se como partículas”9
9
“In introductory textbooks on QM,[…] a conceptually strange character
of QM is often verbalized in terms of wave-particle duality. According
8
Na
primeira
parte
desta
citação
Nikolic
afirma-nos,
equivocamente, que, de acordo com o chamado dualismo ondapartícula,
os
“objectos
microscópicos
fundamentais”
são
entidades com uma natureza dupla, são “tanto ondas como
partículas”. Isto seria, no entanto, ir precisamente ao
encontro do que Eddington justamente proponha designar por
“ondículas” e do doloroso paradoxo que lhe está inerente.
Não haveria, então, qualquer diferença de significado entre
a expressão “dualismo onda-partícula” e o termo “ondícula”.
Porém, na segunda parte desta mesma citação, Nikolic emenda
a mão, e esclarece que, afinal, de acordo com o dualismo
onda-partícula,
fundamentais”,
os
cuja
ditos
natureza
“objectos
agora
não
microscópicos
qualifica,
são
entidades que se comportam ora à maneira das ondas, ora à
maneira das partículas.
Da
primeira
parte
desta
citação
para
a
sua
segunda,
verificamos um resvalamento do nível ontológico para um
nível
que
poderíamos
considerar
comportamental.
Se
na
primeira parte da citação, era suposto que os “objectos
to this duality, fundamental microscopic objects such as electrons and
photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and
particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves,
while in other conditions they behave as particles fundamental
microscopic objects such as electrons and photons are neither pure
particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more
precisely, in some conditions they behave as waves, while in other
conditions they behave as particles.”, Nikolic, H. (2007), “Quantum
Mechanics: Myths and Facts” in Foundations of Physics,37, p. 1567.
(tradução nossa)
9
microscópicos
fundamentais”
tinham
uma
identidade
dupla
(partículas e ondas), o que fica suposto na segunda parte é
que estes objectos têm uma única identidade susceptível de
um duplo comportamento.
Esta citação de Nikolic é exemplar pois, tal como nesta,
toda a literatura sobre o domínio quântico, por uma via ou
outra, inicialmente nos encaminha no sentido da conclusão
que
um
objecto
quântico
é
uma
entidade
que
possui
as
propriedades das ondas e das partículas, que um objecto
quântico é uma ondícula. Porém, no momento seguinte, esta
mesma literatura desvia-se de tal dolorosíssima conclusão e
assume, somente, que um objecto quântico é uma entidade
que, de algum modo, ora se comporta como se fosse uma onda,
ora
se
comporta
como
se
fosse
uma
onda.
Os
objectos
quânticos são então apresentados, qual Dr. Jekyll e Mr.
Hyde,
como
entidades
físicas
acometida
por
dupla
personalidade, por uma dupla natureza, no caso, um dualismo
onda-partícula.
Em
suma,
encaminham
embora
no
todos
sentido
os
caminhos
das
da
paradoxais
literatura
nos
“ondículas”,
subitamente (e subtilmente) somos desviados em direcção à
ambígua
expressão
“dualismo
onda-partícula”
e
sua
consequente indeterminação ontológica: um objecto quântico
não é nem onda, nem partícula e, muito menos, “ondícula”.
10
Eis
que
nos
surge
a
questão:
então,
do
que
falamos
quando falamos de objectos quânticos? Afinal, o que é um
objecto quântico?
Trata-se, pois, de uma questão antiga e que já terá sido
por
mais
de
mil
vezes
repetida.
Contudo,
trata-se
igualmente de uma questão sem bibliografia. O que será
compreensível pois, se ao seguir por qualquer uma das três
vias
em
que
se
divide
a
literatura
sobre
o
domínio
quântico, chegamos a um lugar onde nos perguntamos pela
natureza
dos
literatura
objectos
dá-nos
a
quânticos,
sensação
perguntamos
que
julgamos
já
porque
a
saber
a
resposta. Uma resposta que, pela sua natureza paradoxal,
não conseguimos comportar, aceitar ou compreender. De certo
modo,
seguindo
a
literatura,
a
resposta
antecederia
a
questão. Troca-se a resposta paradoxal pelo paradoxo de uma
questão, não retórica, que é antecedida pela sua resposta.
E
de
paradoxo
em
paradoxo
chegamos
à
conclusão
que
a
questão da natureza dos objectos quânticos, embora seja uma
questão
de
natureza
filosófica
(pois
perguntamos
pelo
conceito) esta é, igualmente, uma questão esquecida pela
literatura filosófica. Literatura esta onde todas a suas
vias se têm focado, principalmente, no chamado problema da
medição10.
10
Isto mesmo é explicitamente afirmado por autores
Arntzenius, Guido Bacciagaluppi, Chuang Liu, Brigitte
como Frank
Falkenburg,
11
Mas, se o problema da natureza dos objectos quânticos
ficou em aberto, como se pôde constituir uma teoria como a
Mecânica Quântica? Por outro lado, não será o problema da
medição
fruto
da
forma
como
se
constituiu
a
Mecânica
Quântica e, por consequência, do tal problema da natureza
dos objectos quânticos? E, por fim, não nos levará a actual
literatura
filosófica,
por
algum
encantamento
com
a
Mecânica Quântica, por maus caminhos, ou melhor, para um
lugar equivocado? Para um lugar afastado de um outro a
partir do qual se possa pensar a estranha natureza dos
objectos quânticos?
Comecemos pela primeira destas questões: como se pôde
constituir
a
Mecânica
Quântica
deixando
em
aberto
o
problema da natureza dos objectos quânticos?
Steven French, Tim Maudlin, entre outros, no curioso Foundations and
Philosophy of Physics editado John Symonns e Juan Ferrer, que ainda
aguarda publicação e que me foi facultado por John Symonns, a quem
agradeço.
12
2. A constituição da Mecânica Quântica.
A Mecânica Quântica constitui uma generalização racional
das teorias clássicas da Física. Esta é, a meu ver, a sua
essência. E esta é, igualmente, quanto a mim,
a pedra
angular do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica11.
11
Assim parece ser, igualmente, a tese defendida por Peter e Alisa
Bokulish no seu artigo, publicado em 2005, intitulado “Niels Bohr’s
Generalization of Classical Mechanics” (in Foundations of Physics,
Volume 35, Number 3, Springer, pp. 347-371). Digo que parece pois,
embora todo o artigo se desenvolva no sentido de argumentar em favor
de que, para Bohr, a Mecânica Quântica é uma generalização racional da
Física Clássica, estes autores propõem-se mostrar “ the central role
played by his [Bohr] thesis that quantum theory is a rational
generalization of classical mechanics” (p. 347 - abstract). A
diferença reside no facto de “Física Clássica” e “Mecânica Clássica”
não serem sinónimos. O Electromagnetismo faz parte, igualmente, da
chamada Física Clássica. Esta distinção pode parecer de menor
importância, mas não o é. É uma distinção importante, em primeiro
lugar, pela confusão que gera. Confusão que surge quando, no dito
artigo, os mencionados autores não só não comentam esta distinção
entre Física e Mecânica, como são corrigidos pela própria citação de
Bohr que apresentam logo na segunda página, onde Bohr se refere,
explicitamente, ao Electromagnetismo. A confusão criada pelos autores
do referido artigo cresce quando dão como exemplo de conceito de
Mecânica Clássica, na quinta página, o “electric field value”. Muito
dificilmente um conceito da Mecânica. E, duvidosamente um conceito.
Pois trata-se de um “valor”, uma quantidade, do campo eléctrico. A
diferença entre “Física Clássica” e “Mecânica clássica” é importante,
em segundo lugar, pois, como se tentará aqui mostrar, a Mecânica
Quântica é fruto de uma generalização tanto dos conceitos do
Electromagnetismo, como da Mecânica Clássica. Logo, ao não se cuidar
da distinção entre Mecânica Clássica e Electromagnetismo Clássico
percebe-se mal a constituição da Mecânica Quântica. Estas falhas de
rigor são particularmente graves e estranhas. Não só porque surgem
numa revista como a Foundations of Physics, mas, igualmente, pelo
facto de Alisa Bokulish ser uma reputada Filosofa da Física, sendo
inclusive a responsável pela entrada dedicada ao princípio da
correspondência na stanford encyclopedia of philosophy. Portanto,
embora semelhantes, a tese que aqui distingue-se da de Alisa e Perter
Bokulish por eu defender que a essência do pensamento de Bohr passa
13
São
duas
surpresa
teses
a
que,
quem
porventura,
esteja
podem
familiarizado
causar
(mesmo
alguma
que
seja
distantemente) com a literatura filosófica, científica ou
histórica, dedicada à Mecânica dos quantas.
No caso da primeira tese, a surpresa virá porque é
comum enfatizar-se o carácter revolucionário da Mecânica
Quântica. Tão profundamente revolucionário que teria levado
à definitiva cisão da Física entre aquela que é Clássica, e
que contém, desde a Mecânica de Newton até às relatividades
de Einstein, passando pelo Electromagnetismo de Maxwell e a
Termodinâmica,
e
a
outra
que
é
Moderna.
Que,
em
boa
verdade, até se poderia denominar por Física Quântica. Pois
a
Física
Mecânica
Moderna
Quântica
é
constituída,
e
a
sua
na
sua
essência,
descendente
pela
directa,
a
Electrodinâmica Quântica. É como se existissem duas eras na
Física:
antes
da
Mecânica
Quântica;
depois
da
Mecânica
Quântica.
A minha segunda tese – a que se refere à pedra angular
do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica – poderá
surpreender,
por
sua
vez,
porque
é
comum,
mesmo
na
literatura filosófica, atribuir-se esse estatuto ao que se
por este considerar a Mecânica Quântica como uma generalização
racional das teorias clássicas da Física e não apenas da Mecânica
Clássica.
14
designa, frequentemente, e talvez de forma imprópria12, por
princípio da complementaridade. No entanto, a meu ver, o
chamado princípio da complementaridade não será tanto o
pilar mas o pináculo do pensamento de Bohr sobre a Mecânica
Quântica, não aquilo que funda mas aquilo que fecha. Por
ocupar esse lugar de culminante a complementaridade será
mais visível e, talvez por isso, mais comentada. Contudo e prosseguindo com a metáfora arquitectónica – a meu ver, o
pensamento de Bohr sobre a Física Quântica conclui-se com a
complementaridade,
precisamente na
mas
tem
o
tese de que a
seu
suporte
e
coesão
Mecânica Quântica é uma
generalização racional das teorias físicas clássicas.
Esta tese de Bohr percorre todo o seu trabalho sobre a
Mecânica
Quântica.
Encontramo-la,
nas
suas
primeiras
aproximações, em textos ao longo na década de 2013. Em
particular, no próprio texto onde, pela primeira vez, surge
a tal “complementaridade”14. Ela, contudo, surge-nos com
maior frequência e de modo um pouco mais claro em textos do
12
Digo “talvez de forma imprópria”, pois Bohr nunca fez uso dessa
expressão ao longo da sua obra. O físico dinamarquês fala apenas em
“complementaridade”. Isto mesmo é realçado por Henry Folse em Folse,
Henry (1985), The Philosophy of Niels Bohr: The Framework of
Complementarity, Amsterdam: North-Holland, p. 18.
13
Conferir por exemplo, Bohr, Niels (1922), “The fundamental
postulates of the quantum theory” in Niels Bohr Collected Works, Vol.
3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. R. ed.,
Amsterdam : North-Holland, 1976, p. 356 ou Bohr, Niels (1923), idem,
p. 588.
14
Conferir Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent
Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p.
584.
15
final de vida de Bohr. Num desses textos, publicado em
1958, quatro anos antes da sua morte, o físico dinamarquês,
ao rever o processo que foi iniciando com descoberta do
quantum de acção por parte de Planck, afirma:
“O problema com que os físicos foram confrontados [perante a
descoberta de Planck] foi, como tal, o de desenvolverem uma
generalização
racional
da
física
incorporação
harmónica
do
quantum
clássica
de
que
acção.
permitisse
Depois
de
a
uma
exploração preliminar da evidência experimental […] esta difícil
tarefa foi finalmente realizada.”15
A difícil tarefa realizada pelos físicos a que Bohr aqui
faz
menção
concretizou-se
na
Mecânica
Quântica.
É
à
narração do processo de constituição desta teoria que ele
dedica esta parte do seu texto aqui citado. Assim, embora
Bohr não o diga, aqui, explicitamente, das palavras da
citação anterior conclui-se com naturalidade que, segundo o
físico dinamarquês, a Mecânica
como
uma
generalização
racional
Quântica foi constituída
da
física
clássica.
A
15
“The problem with which physicists were confronted was therefore to
develop a rational generalization of classical physics, which would
permit the harmonious incorporation of the quantum of action. After a
preliminary exploration of the experimental evidence […] this
difficult task was eventually accomplished”. Bohr, Niels (1958),
“Quantum Physics and Philosophy” in Niels Bohr Collected Works, Vol.
7: Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed.,
North-Holland: Amsterdam, 1996, p. 389. (Tradução minha)
16
questão
parece
então
ser:
o
que
quer
dizer
Bohr
com
“generalização racional da física clássica”?
Ele não nos oferece uma resposta directa e clara. Tal é,
de resto, característico em Bohr. É o seu “estilo”, como
dirão
alguns16.
Contudo,
julgo
ser
possível
entende-lo
começando por atender, em primeiro lugar, ao que o próprio
afirma na seguinte passagem de um outro texto :
“Na procura de uma formulação de tal generalização [racional]
o
nosso
único
guia
foi
apenas
o
chamado
argumento
da
correspondência.”17
O que aqui Bohr chama de “argumento da correspondência”
é, na verdade, aquilo que o próprio usualmente designava e é assim, de resto, que é conhecido na literatura em geral
- por princípio da correspondência. Princípio de que foi
autor e acerca do qual, no tal célebre texto onde pela
primeira vez surge a “complementaridade”, havia confessado:
16
Conferir,
por
exemplo,
Bokulish,
Alisa
(2010),
"Bohr's
Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy
(Winter
2010
Edition),Zalta, E.N.(ed.),(URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2
010/entries/bohr-correspondence/), p.15.
17
“In the search for the formulation of such a generalization, our
only guide has just been the so-called correspondence argument”. Bohr,
Niels (1939), “The causality problem in Atomic Physics” in Niels Bohr
Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–
1958), Kalckar, J. ed., Amsterdam: North-Holland, 1996, p. 305.
(Tradução minha)
17
“O
propósito
generalização
de
olhar
racional
a
das
teoria
teorias
quântica
clássicas
como
uma
levou[-me]
à
formulação do chamado princípio da correspondência.”18
Nas duas citações anteriores Bohr revela que a tese de
que a Mecânica Quântica é uma generalização racional da
Física clássica não é fruto nem de uma análise sobre o
processo
histórico
de
que
levou
à
constituição
desta
teoria, nem de uma interpretação acerca dessa. Trata-se do
seu programa enquanto fundador da Mecânica Quântica. Foi
com o “propósito de olhar para a Mecânica Quântica como uma
generalização
da
Física
clássica”
que
incorporasse
o
quantum de acção “de” Planck, que Bohr criou e desenvolveu,
durante a gestação da teoria quântica actual, o princípio
da
correspondência.
E
foi
fazendo
uso
deste
princípio,
tendo-o como “único guia”, como ferramenta privilegiada,
que
procurou
a
tal
generalização
racional
da
Física
Clássica. Isto é, foi, pelo menos em parte, fazendo uso do
princípio da correspondência que Bohr procurou constituir a
Mecânica
Quântica.
Poder-se-á
dizer
que
ele
mesmo
o
confessa, reforçando a nossa certeza do papel instrumental,
mas
decisivo,
que
o
princípio
de
correspondência
desempenhou na construção da Mecânica Quântica. Mas o que
18
“The aim of regarding the quantum theory as a rational
generalisation of the classical theories led to the formulation of the
so-called correspondence principle.” Bohr, N. (1928), “The Quantum
Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature,
Volume 121, Issue 3050, p. 584. (Tradução minha)
18
afirma
este
instrumento
da
vontade
de
Bohr?
Como
se
constituiu a Mecânica Quântica a partir deste princípio? De
que modo o princípio da correspondência permite entender
que a Mecânica Quântica seja uma generalização racional da
Física Clássica?
2.1. O Princípio da Correspondência
O princípio da correspondência (“Korrespondenzprinzip”19)
tem a sua origem no contexto daquilo que se designa por
Teoria Quântica do Átomo ou Teoria Quântica Antiga (em
contraponto ao que seria, posteriormente, a nova teoria
quântica, isto é, a Mecânica Quântica). A Teoria Quântica
Antiga foi proposta por Bohr em 1913. Esta tinha como ponto
de partida o modelo atómico de Rutherford. Modelo que é
usualmente designado por modelo planetário do átomo. Pois,
à imagem dos sistemas planetários, o átomo seria formado
por um corpo central - o núcleo - de carga total positiva,
onde estaria concentrada a maioria da massa do átomo, em
redor do qual orbitavam corpos de menor massa e de carga
negativa – os electrões. Haveria assim uma analogia simples
e - talvez por isso - encantadora entre o mundo à escala do
19
Conferir, por exemplo, a obra Niels Bohr Collected Works, Vol. 3:
The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed.,
Amsterdam: North-Holland, 1976, p.315.
19
ínfimo e o mundo à escala do astronómico, entre a escala
dos electrões e a escala dos planetas. Um à imagem de
outro, como se se espelhassem na figura, embora distintas
na escala.
A
analogia
sedutora.
imagética
Pois
de
trazia
Rutherford
consigo
era
a
certamente
sensação
de
inteligibilidade fácil que todas as coisas cujas feições
reconhecemos sempre transportam consigo. E o seu modelo
tinha
igualmente
resultados
a
recentes
virtude
–
de
à
estar
época,
de
acordo
com
entenda-se
-
os
das
experiências atómicas com radiação alfa. Contudo, como não
há “bela sem senão”, e tal como qualquer livro de história
da Física Moderna ensinará, o modelo de Rutherford tinha,
entre outros, o defeito fatal de ser incapaz de explicar a
estabilidade da
matéria. Segundo o Electromagnetismo um
corpo electricamente carregado, como é o caso do electrão,
ao
mover-se
emite
energia
sob
a
forma
de
radiação
electromagnética. Por consequência, se os electrões dentro
do átomo estão em movimento, como o modelo de Rutherford
declarava,
e
se
aceita
o
Electromagnetismo,
isso
significava que os electrões intra-atómicos iriam perder,
progressivamente, energia. Por conseguinte, os electrões
dentro de um átomo, acabariam por perfazer orbitas cada vez
mais
fechadas,
cada
vez
mais
próximas,
numa
espiral
vertiginosa que os levariam, rápida e inevitavelmente, a
20
colidir com o núcleo. A estabilidade dos átomos e, como
tal, de toda a matéria supostamente constituída por estes,
seria um incómodo mistério. Pelo menos, para quem quisesse
estar com o modelo de Rutherford.
Ora, era precisamente este o mistério que Bohr – que se
encontrava em Manchester a trabalhar com Rutherford - se
propunha solucionar. Com esse fim, na segunda metade de
1913,
publicou,
em
três
partes,
o
artigo
“Sobre
a
constituição dos átomos e das moléculas”20. Deste tríptico,
que
curiosamente,
Ciência
fundamental
intimidade
e
Teoria
que
Filosofia,
Magazine”21,
“Philosophical
chamada
pela
constam
Quântica
denota
foi
os
Antiga.
entre
a
publicado
no
fundamentos
da
Esta
assentava
principalmente, como o próprio Bohr explicaria alguns anos
mais tarde, nos seguintes postulados:
“I. Um sistema atómico pode existir, de forma permanente,
apenas
numa
descontínua
série
de
de
estados
valores
de
correspondentes
energia.
E,
por
a
uma
série
consequência,
qualquer alteração de energia do sistema, incluindo a emissão
e a absorção de radiação electromagnética, deve ter lugar
20
Conferir
Bohr, N. (1913), “On
Molecules” in Niels Bohr Collected
Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish
1981, pp. 159-240.
21
A mesma revista onde entre, 1861
“On Physical Lines of Force” trabalho
the Constitution of Atoms and
Works, Vol. 2: Work in Atomic
ed., Amsterdam: North-Holland,
e 1862, Maxwell havia publicado
seminal do Electromagnetismo.
21
como uma transição completa entre esses dois estados. Estes
estados
serão
designados
por
“estados
estacionários”
do
sistema.
II. A radiação absorvida ou emitida durante a transição entre
dois estados estacionários […] possui uma frequência ν, que é
dada pela relação E' — E" = h ν, onde h é a constante de
Planck e onde E' e E" são os valores da energia dos dois
estados considerados.”
22
Bohr aceita, como propunha Rutherford, que os electrões
no
átomo
se
movimentam
ao
redor
do
núcleo
em
órbitas
circulares e periódicas23. São, como tal, órbitas descritas
pela
Mecânica
Clássica.
Contudo,
em
contradição
com
22
I. That an atomic system can, and can only, exist permanently in a
certain series of states corresponding to a discontinuous series of
values for its energy, and that consequently any change of the energy
of the system, including emission and absorption of electromagnetic
radiation, must take place by a complete transition between two such
states. These states will be denoted as the "stationary states" of the
system.
II. That the radiation absorbed or emitted during a transition
between two stationary states […] possesses a frequency ν, given by
the relation
E' — E" = h ν
where h is Planck's constant and where E' and E" are the values of
the energy in the two states under consideration.”, Bohr, N. (1918),
“On the Quantum Theory of Line-Spectra” in Vol. 3: The Correspondence
Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland,
1976, p.71. (Tradução minha)
23
Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and
Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic
Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland,
1981, p.162.
22
Rutherford (e com a Mecânica Clássica) Bohr propõe, através
do primeiro postulado, que os electrões não podem descrever
trajectórias arbitrárias ao redor do núcleo, como é o caso
dos
corpos
descrever
celestes
orbitas
do
sistema
indexadas
a
solar.
um
Apenas
determinado
podem
estado
estacionário de energia. Isto é, os electrões distribuem-se
ao redor do núcleo atómico não em órbitas à imagem das
órbitas planetárias, que a Mecânica Clássica descreve como
um basculante jogo de equilíbrio entre as forças centrífuga
e de atracção gravítica, mas em órbitas fixas – também
chamadas de orbitais - relativas a uma série de estados
discretos de energia24: Os ditos “estados estacionários”.
Por consequência, num átomo não existem análogos nem aos
cometas, nem aos satélites.
Formalmente, a sucessão destas órbitas, desses estados
discretos de energia, é-nos dada pela série de números
naturais25,
simbolizando-se
por
“n”
o
nível
de
um
determinado estado estacionário. O estado estacionário de
menor energia, também dito de fundamental, corresponde ao
24
Cada estado estacionário de energia pode, no contexto da Teoria
Quântica Antiga, ser de igual forma descrita como um jogo entre
Forças: a de atracção electromagnética e a centrípeta. Esta foi,
aliás, a aproximação inicial de Bohr ao problema do átomo. Contudo,
será um jogo onde o resultado é sempre um aborrecido empate para cada
desses estados estacionários. Resultado identicamente estranho para as
teorias físicas clássicas e, em particular, para a Mecânica Celeste.
25
Considera-se aqui que o “zero” não é um número natural. Terá sido
uma opção de Bohr em conformidade com o que é tradicional em Física
Clássica. Que, à margem do debate sobre a natureza do “zero”, tem
considerado que o “um” é o primeiro dos naturais.
23
primeiro nível
de energia e é
representado por n=1. O
seguinte estado estacionário de energia, o segundo nível de
energia, é representado por n = 2 e assim por diante.
Por
outro
lado,
e
tal
como
se
afirma
no
Electromagnetismo, Bohr assume que a diminuição da energia
de um electrão tem como efeito a emissão de radiação de
equivalente
valor
quantitativo
de
energia.
É
uma
consequência do princípio da conservação da energia que
Bohr, aqui, assume por completo. Contudo, dado que, pelo
primeiro postulado, as órbitas atómicas são caracterizadas
pela quantidade de energia que lhe é correspondente, essa
emissão de radiação não pode ser causada pelo movimento dos
electrões em redor do núcleo. Assim, e agora em contradição
com o Electromagnetismo, Bohr propõe, no segundo postulado,
que a emissão (e a absorção) de radiação é causada apenas
pela transição electrónica entre estados estacionários de
energia. Dado que estes estados, por força do primeiro
postulado, são numericamente discretos, então o espectro da
radiação de um átomo é, necessariamente, descontínuo. Esta
consequência
dos
dois
postulados
contradiz
o
Electromagnetismo, pois, segundo esta teoria, o movimento
do electrão seria a única causa da emissão da radiação e
esta
apresentar-se-ia
num
espectro
contínuo.
Ou
seja,
decorre desta teoria de Bohr que o espectro de um átomo não
é
como
um
arco-íris,
como
seria
de
esperar
pelo
24
Electromagnetismo, mas um
conjunto de riscas
separadas,
cada uma de sua “cor”, cada uma referente a um determinado
estado estacionário de energia. Mas o mais extraordinário é
que isto implica que um electrão, ao transitar de um estado
de energia para outro, de uma órbita para outra, fá-lo sem
passar
por
lugares
intermédios.
Um
electrão,
segundo
a
Teoria Quântica Antiga, realizava uma espécie de salto – um
salto quântico, como ficou celebrizado, principalmente na
literatura
científica
–
entre
dois
estados
de
energia.
Salto, tanto maior (ou menor) quanto a diferença de energia
da
radiação
entretanto,
emitida
por
ou
absorvida
explicar
a
correspondente.
existência
e
Fica,
distribuição
discreta dos tais estados estacionários. São postulados de
forma quase Ad-Hoc.
A primeira teoria quântica de Bohr, por muito bizarras
que
fossem
as
suas
consequências,
tinha
o
mérito
de
oferecer uma explicação tanto para estabilidade da matéria,
como para a sequência das descobertas sobre o espectro
atómico realizadas, principalmente, no início do século XX.
Ou seja, resolvia, em parte, os mistérios que o modelo
atómico de Rutherford havia libertado.
O
preço
a
pagar
pela
resolução
desses
mistérios
pareceria ser um afastamento radical em relação à Física
25
Clássica. Porém, a teoria de Bohr era, na realidade, e tal
como escreve
Andrade e Silva:
“[…] um fascinante monstro híbrido. Descreve os átomos como
minúsculos sistemas solares em que os electrões giram em torno
de núcleos segundo as leis da Mecânica de Newton. Mas, de todos
os movimentos classicamente possíveis, apenas retém um número
muito
pequeno,
ou
seja,
aqueles
que
respeitam
a
regra
dos
quanta.”26
Como diz Andrade e Silva, a primeira teoria quântica de
Bohr era um “fascinante monstro híbrido”. Por um lado,
tinha sucesso onde os modelos “mais” clássicos do átomo
falhavam. Por outro, era o produto de um processo a que, de
modo pitoresco, pode ser descrito como “uma no cravo, outra
na
ferradura”.
teorias
Bohr,
físicas
ora
respeitava
clássicas,
o
ora
fundamental
as
das
transgredia.
Nomeadamente, através da imposição – via postulado - da
quantificação
das
órbitas.
habilidosa
e
esforçada
incorporar
no
modelo
de
Tudo
isto
conseguir,
atómico
de
já
de
na
tentativa
algum
Rutherford
a
modo,
chamada
hipótese de Planck, ou postulado quântico de acção. Segundo
esta, e fazendo uso de palavras do próprio Bohr, “a energia
26
Andrade e Silva, João e Lochak, G. (1969), Quanta, grains et champs
(tradução do francês por Manuel Pina, “Quanta, Grãos e Campos”),
Lisboa: Instituto de novas profissões, pp.71-73.
26
radiada por um sistema atómico não sucede de uma forma
contínua, tal como é assumido pelo electromagnetismo, mas,
pelo
contrário,
sucede
em
emissões
distintamente
separadas”27. Em suma, do ponto vista formal, a proposta de
Bohr
compunha-se,
reconhece,
“na
como
o
introdução
próprio
nas
leis
físico
[do
dinamarquês
movimento
do
electrão] de uma quantidade estranha ao electromagnetismo
clássico, i.e. a constante de Planck ou, como é frequente
ser chamada, o quantum de acção elementar”28. E, por esta
razão, o modelo atómico de Bohr é, geralmente, classificado
como semi-clássico29.
Importa salientar que o valor numérico da constante de
Planck é mínimo30. Como tal, o quantum de acção elementar
só
é
quantitativamente
significativo
quando
estão
envolvidas energias igualmente mínimas. Este é o caso das
energias correspondentes às transições entre os primeiros
estados estacionários. Contudo, este não é o caso para as
27
“the energy radiation from an atomic system does not take place in
the continuous way assumed in ordinary electrodynamics, but that it,
on the contrary, takes place in distinctly separated emissions”, Bohr,
N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr
Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer,
Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981p.164 (Tradução minha)
28
“to introduce in the laws in question a quantity foreign to the
classical electrodynamics, i. e. Planck's constant, or as it often is
called the elementary quantum of action.”, idem, p. 162 (Tradução
minha).
29
Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical
Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 278.
30
Actualmente, considera-se para a constante de Planck o valor
h=6.62606896(33)×10−34 J.s
27
transições electrónicas nos estados estacionários de valor
“n” mais elevado. Deste modo, por um lado, não fará sentido
introduzir directamente o postulado da quantificação das
órbitas num sistema planetário, numa tentativa desesperada
de manter a analogia entre planetas e electrões. Através da
Teoria Quântica Antiga, tal não possível. Ela é apenas uma
Física dos átomos, uma Física Atómica.
Por outro lado, a progressiva perda de significância
quantitativa do quantum de acção elementar leva a que, à
medida
que
diferença
se
de
percorrem
energia
entre
os
estados
estes
será
estacionários
a
progressivamente
menor. Como tal, por consequência do segundo postulado,
onde
se
afirma
que
a
frequência31
é
directamente
proporcional à diferença de energia, a diferença entre os
valores
da
progressivamente
frequência
menor.
será,
Ou
seja,
de
o
igual
espectro,
forma,
que
é
marcadamente discreto nos primeiros níveis, vai tomando,
progressivamente, a figura de um espectro contínuo. Isto é,
aproxima-se, pouco a pouco, do tipo de espectro, dito de
“espectro clássico”, que é previsto pela Física Clássica.
31
Por comodidade de escrita, irá preferir-se aqui o termo “frequência”
ao mais correcto “frequência temporal”. Assim, na falta de outro
aviso, ao ler-se o primeiro deverá entender-se o segundo.
28
Neste sentido, na sucessão dos estados estacionários,
estatisticamente32,
verifica-se
uma
aproximação
assimptótica nas previsões do valor da frequência, entre a
Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. Ou, dito de
outro modo, no limite dos estados estacionários de elevado
valor de “n”, isto é, no chamado limite clássico, existe,
estatisticamente,
uma
correspondência
numérica
entre
a
frequência da radiação emitida num “salto quântico” e a
frequência resultante33 do movimento periódico do electrão
no estado estacionário de “partida”. Esta é, de resto, a
noção vulgar34 do princípio da correspondência.
Contudo, como salienta Darrigol35, uma correspondência
semelhante
entre
encontrada
relativamente
intensidade.
físicas
Neste
caso
clássica
a
outra
a
e
quântica
grandeza
pode
física:
correspondência
ser
a
ocorre,
igualmente, no limite dos grandes números quânticos. Porém,
aqui a correspondência é entre o valor da probabilidade de
32
De acordo com o postulado quântico, a emissão de radiação
electromagnética é feita em quantidade discretas - fotão a fotão. Já
no caso da “radiação clássica” a emissão é feita por uma quantidade
contínua. Logo, a aproximação assimptótica não é relativa a uma
emissão individual, mas relativa ao um conjunto de emissões.
33
Note-se que segundo a electrodinâmica clássica, um electrão com um
movimento circular e constante radia uma onda electromagnética com uma
frequência temporal idêntica à frequência do movimento do electrão.
34
Conferir Bokulish, Alisa (2009), Three Puzzles about Bohr’s
Correspondence Principle, (artigo disponível em: http://philsciarchive.pitt.edu/4826) p.1.
35
Conferir Darrigol, Olivier (2009), “A simplified genesis of quantum
mechanics” in Studies in History and Philosophy of Modern Physics, 40,
p. 115.
29
transição entre dois estados estacionários e a amplitude da
radiação.36
Na procura de um enunciado geral, que englobe estes dois
tipos
de
correspondência
entre
físicas
clássicas
e
quântica, e à falta de um que nos fosse concedido pelo
próprio
Bohr,
poder-se-ia
dizer
que
o
princípio
da
correspondência afirma que, na zona onde o quantum de acção
é,
quantitativamente,
pouco
significativo,
isto
é,
no
limite clássico, a teoria quântica e as teorias clássicas
aproximam-se
-
qual
Aquiles
da
tartaruga
-
assimptoticamente nas suas previsões numéricas. Este é o
sentido do enunciado do princípio da correspondência que é
normal encontrar na literatura filosófica e que aparece,
por exemplo, em Murdoch, no seu Niels Bohr’s Philosophy of
Physics37.
Entendido
ofereceria
deste
uma
modo,
o
referência,
princípio
à
imagem
da
de
correspondência
um
farol
fiel,
resistente e luminoso, para a construção de uma qualquer
teoria quântica. Em particular, em conformidade com este
36
No Electromagnetismo assume-se que a radiação tem uma natureza
ondulatória. Por conseguinte, a sua intensidade é determinada pela
amplitude. Já no caso das teorias quânticas, a intensidade de uma
linha espectral é determinada pela quantidade de fotões emitidas por
uma frequência em particular. Assim, quanto mais provável for uma
transição quântica de uma radiação em particular, mais fotões serão
emitidos, ou seja, maior será a intensidade.
37
Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics,
Cambridge: Cambridge University press, p. 39.
30
entendimento do princípio da correspondência, as leis e as
equações
de
uma
qualquer
física
quântica
deveriam
ser
construídas de tal forma que, no limite clássico, existisse
uma correspondência numérica aproximada entre as que são
quânticas e as que são clássicas. Isto mesmo é salientado
pelo físico Max Born:
“A ideia directriz (princípio da correspondência de Bohr)
pode
descrever-se
Submetidas
ao
nas
suas
julgamento
da
linhas
gerais
experiência,
do
as
seguinte
leis
da
modo.
física
clássica provaram brilhantemente em todos processos dinâmicos,
macroscópicos e microscópicos, incluindo o movimento dos átomos
considerados como um todo (teoria cinética da matéria). Deve,
portanto,
estabelecer-se
necessário
que
deverá
[…]
a
nova
chegar
aos
como
mecânica,
mesmos
postulado
suposta
incondicionalmente
ainda
resultados
que
desconhecida,
a
mecânica
clássica.”38
Assim entendido, poder-se-ia dizer que o princípio de
correspondência seria tão-somente um produto do que se pode
designar por “bom senso” dos físicos. Dado que a Física
Clássica tantas e tão repetidas vezes se mostrou válida,
então, seria apenas de “bom senso” que a nova Mecânica, a
38
Born, Max (1969), Atomic Physics (tradução do inglês de Egídio
Namorado, “Física Atómica“), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian
(1986), p.114.
31
Mecânica Quântica, ou qualquer outra teoria quântica, no
limite
dos
grandes
números
quânticos
chegasse,
aproximadamente, aos mesmos resultados da frequência e da
intensidade
princípio
que
de
a
Física
Clássica.
correspondência
Neste
seria
um
sentido,
o
princípio
de
continuidade entre teorias, “incondicionalmente necessário”
por força do “bom senso”.
No entanto, esta necessária aproximação numérica entre
as teorias quântica e clássica, é a meu ver, e tal como
defende Alisa Bokulish, num texto de 2010, uma consequência
do princípio da correspondência e não uma enunciação deste.
Segundo
Bokulish,
o
próprio
Bohr,
numa
conversa
com
Rosenfeld – um dos seus discípulos mais próximos –, terá
explicitamente
rejeitado
o
entendimento
do
referido
princípio que surgiu na citação de Born:
“Léon
Rosenfeld
recorda
a
frustração
de
Bohr
com
o
continuado mau entendimento do seu princípio. Quando Rosenfeld
sugeriu a Bohr que o princípio da correspondência era sobre o
acordo assimptótico entre as previsões quânticas e clássicas,
Bohr
enfaticamente
argumento
de
protestou
correspondência.
e
A
respondeu:
exigência
"[esse]
não
de
a
que
é
o
teoria
quântica deve sobrepor-se à descrição clássica para baixos modos
32
de frequência não é de todo um princípio. É um requisito óbvio
para a teoria.”39
O pretenso enunciado do princípio da correspondência que
aparece
na
citação
de
Born,
e
que
é
tão
popular,
especialmente entre os físicos, é claramente rejeitado por
Bohr. Não pelo seu conteúdo, mas por se tratar, a seu ver,
de um “requisito óbvio” da teoria e, como tal, nem sequer
precisar de ser explicitado sob a forma de um “princípio”.
Assim, igualmente para Bohr,
a
correspondência
numérica
entre as teorias quântica e clássicas, no tal limite dos
grandes
números
aplicação
do
designar
por
quânticos,
“bom
senso”.
princípio
será
Este
pelo
seu
uma
sim,
mera
questão
quase
se
carácter
de
de
poderia
regra
do
pensamento em geral. Ou seja, Bohr recusa o entendimento de
Born do princípio da correspondência por considerar que
esse entendimento é uma consequência óbvia de um princípio
de bom senso do pensamento aplicado à Física.
39
“Léon Rosenfeld recounts Bohr's frustration at the continued
misunderstanding of his principle. When Rosenfeld off-handedly
suggested to Bohr that the correspondence principle was about the
asymptotic agreement of quantum and classical predictions, Bohr
emphatically protested and replied, “It is not the correspondence
argument. The requirement that the quantum theory should go over to
the classical description for low modes of frequency, is not at all a
principle. It is an obvious requirement for the theory”, Bokulich,
Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford
Encyclopedia
of
Philosophy
(Winter
2010
Edition),
Edward
N.
Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/boh
r-correspondence/, pp 36-37.(Tradução minha)
33
Por
outro
lado,
inferimos
nesta
posição
de
Bohr
uma
indicação segundo a qual o princípio da correspondência tem
um outro sentido. Um sentido supostamente mais amplo e
profundo. Este, creio eu, pode ser encontrado, logo na
primeira vez que o físico dinamarquês dedica uma secção
explicitamente
ao
princípio
da
correspondência.
Afirma
Bohr:
“Consideremos
mais
cuidadosamente
esta
relação
entre
os
espectros expectáveis com base na teoria quântica e a teoria
ordinária
da
radiação
[isto
é,
o
electromagnetismo].
As
frequências das linhas espectrais calculadas pelos dois métodos
concordam completamente na região onde os estados estacionários
estão pouco separados uns dos outros. […] Esta correspondência
entre as frequências determinadas pelos dois métodos deve ter um
significado mais profundo e nós somos conduzidos antecipar que
se aplicará também às intensidades. […] Esta relação peculiar
sugere uma lei geral para a ocorrência das transições entre
estados estacionários.”40
40
“Let us now consider somewhat more closely this relation between the
spectra one would expect on the basis of the quantum theory, and on
the ordinary theory of radiation. The frequencies of the spectral
lines calculated according to both methods agree completely in the
region where the stationary states deviate only little from one
another[…] This correspondence between the frequencies determined by
the two methods must have a deeper significance and we are led to
anticipate that it will also apply to the intensities.[…]This peculiar
relation suggests a general law for the occurrence of transitions
between stationary states.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series
34
Nesta longa citação, onde, no tal estilo por vezes pouco
cuidado com a precisão das palavras, as teorias quântica e
electromagnética
são
apresentadas
como
“métodos”,
encontramos os dois tipos já referidos de correspondência
entre as físicas quântica e clássica: de frequência e de
intensidade. No entanto, a frase final, que o próprio Bohr
colocou
em
itálico,
revela
que
estas
correspondências
numéricas entre teorias sugerem uma lei geral. No caso, uma
lei geral para a ocorrência das transições quânticas. Esta
aparece-nos na seguinte passagem de um texto posterior:
“A demonstração do acordo assimptótico entre o espectro e o
movimento
deu
origem
à
formulação
do
"princípio
da
correspondência", de acordo com o qual a possibilidade de cada
processo de transição relacionada
condicionada
pela
presença
de
com emissão de radiação é
um
componente
harmónico
correspondente no movimento do átomo.”41
Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The
Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam:
North-Holland, 1976, pp. 249–250. (Tradução minha)
41
“The demonstration of the asymptotic agreement between spectrum and
motion gave rise to the formulation of the "correspondence principle",
according to which the possibility of every transition process
connected with emission of radiation is conditioned by the presence of
a corresponding harmonic component in the motion of the atom.”, Bohr,
N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Nature, Volume 116, Issue
2927, p. 848. (Tradução minha)
35
Aqui, o princípio de correspondência surge, não como uma
mera
aproximação
numérica,
mas
como
uma
condição.
É
condição de possibilidade de uma transição entre estados
estacionários,
estados
estes
que
correspondam
a
um
componente harmónico do movimento do electrão num estado
estacionário do átomo. Entende-se que Bohr se refira a esta
correspondência como uma “lei” geral da teoria quântica.
Pois, por um lado, essa correspondência aplica-se a todos
estados estacionários e não apenas aos do limite clássico.
Sendo,
neste
sentido,
universal
para
os
estados
estacionários de energia dos átomos. Por outro lado, essa
correspondência consiste na imposição de uma condição de
possibilidade das transições entre estados quânticos: uma
transição
entre
estados
transição
quântica,
é
estacionários
possível
se
e
de
só
se
energia,
ou
existir
um
harmónico correspondente do movimento do electrão. Atentese
que
o
movimento
a
que
aqui
se
faz
referência
é
o
movimento circular e periódico do electrão em redor do
núcleo. Estamos ainda dentro da imagem do átomo como um
minúsculo sistema solar.
Claro
está
que
o
enunciado
anterior
do
princípio
da
correspondência pode parecer de interesse meramente formal
e,
por
essa
razão,
ser
muito
específico
da
Física.
Estaríamos, afinal, longe da promessa de ter uma lei geral
36
de
profundo
significado.
Contudo,
em
boa
verdade,
este
enunciado leva-nos num caminho, um pouco árido – talvez -,
mas onde, no final, julgo que se cumpre a promessa. Quando
Bohr descobriu esta relação de correspondência entre as
transições
quânticas
permissíveis
e
os
harmónicos
do
movimento do electrão, ele descobriu algo fundamental sobre
a teoria quântica.
Por um lado, é preciso notar que, em física, diz-se
“harmónico” o que é múltiplo inteiro de uma determinada
frequência.
Esta
última
é
denominada
“frequência
fundamental”. Neste caso concreto, a frequência fundamental
será
a
frequência
do
movimento
do
electrão
no
estado
estacionário inicial. Ou seja, a quantidade de revoluções
por unidade de tempo do electrão em redor do núcleo.
Uma
série
particular
de
harmónicas
facilmente
compreensível é, por exemplo, a das oitavas42. Onde dizer
primeira, segunda, terceira e quarta oitavas é o mesmo que
dizer segunda, quarta, oitava e décima sexta harmónicas, em
relação a uma determinada nota inicial. Ou seja, existe uma
42
Diz-se “oitava” a nota cuja frequência dista o dobro (oitava acima)
ou a metade (oitava abaixo) em relação a uma outra. A título de
exemplo, o dó de segunda tem uma frequência aproximada de 130,5 Hz.
Logo, é uma oitava abaixo em relação ao Dó de 3, que tem uma
frequência aproximada de 261,o Hz, e é uma oitava acima relativamente
ao Dó de 1, a frequência fundamental desta série, que tem uma
frequência aproximada de 62,25 Hz. Note-se que a frequência que é
tripla da frequência fundamental é dita de terceiro harmónico do Dó de
primeira, mas, no entanto, não é uma oitava mas uma quinta acima
deste.
37
correspondência entre a diferença de frequências de notas
que
distam
uma
oitava
e
uma
sequência
particular
de
harmónicas da nota inicial. Assim sendo, as primeiras – as
oitavas - podem ser descritas, na totalidade, a partir das
segundas.
De forma similar, o princípio da correspondência, ao
enunciar-se como condição de que as transições quânticas só
podem ocorrer para harmónicos correspondentes do movimento
do electrão num determinado estado estacionário, leva a que
as
primeiras
formalmente,
–
as
transições
descritas
a
quânticas
partir
das
-
podem
segundas
ser,
–
dos
harmónicos. Ou seja, Bohr determina que a Teoria Quântica
Antiga pode ser, em certa medida, descrita e desenvolvida
fazendo-se o uso das propriedades dos harmónicos43. Mas
como?
O princípio da correspondência impõe que uma “transição
relacionada com emissão de radiação” está condicionada pela
existência de “um componente harmónico correspondente no
movimento”. Isto significa, literalmente, que, neste caso,
um electrão só pode transitar para um estado estacionário
de
tal
forma
frequência
do
que
se
multiplique,
seu
movimento.
Isto
por
é,
um
que
inteiro,
a
a
duplique,
triplique, quadruplique, etc. Seria o caso, análogo, da
43
Em particular, através do desenvolvimento desta correspondência são
estabelecidas as regras de selecção de transições quânticas que estão
na génese da Química actual.
38
Terra, por exemplo, só poder transitar para uma órbita
planetária quando um ano fosse de 182 dias, 91 dias, 45
dias, etc. Estranho caso seria para um corpo como a Terra.
Contudo, caso normal será para uma onda periódica, como é
caso, idealmente, das ondas electromagnéticas44. Pois, esta
relação
de
condição
entre
transições
de
estados
e
harmónicos lhes é característica. Quer isto dizer, e tal
como enfatiza Pringe ao longo da sua tese doutoral45, o
princípio da correspondência implica uma analogia formal
entre a frequência do movimento e a frequência da radiação
electromagnética.
Mais
especificamente,
o
referido
princípio pressupõe, formalmente, uma analogia
transições
de
estados
estacionários
e
as
entre as
mudanças
na
frequência de uma radiação electromagnética. Ou dito ainda
de outro modo, é como se, formalmente, um electrão, no que
respeita as alterações do seu estado de movimento, fosse
uma onda electromagnética.
Estamos perante uma analogia fundamental. Em primeiro
lugar, porque justifica e possibilita que a Teoria Quântica
Antiga possa ser desenvolvida fazendo uso das propriedades
dos
harmónicos.
Em
segundo
lugar,
e
mais
importante,
porque, a partir desta analogia formal entre os dois tipos
referidos
de
frequência,
é
possível
estabelecer
uma
44
Conferir, a seguir, neste capítulo, página 87 e seguintes.
Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of
Judgment, Berlin: De Gruyter.
45
39
correspondência formal entre a Teoria Quântica Antiga e o
Electromagnetismo.
Assim, por um lado, podemos afirmar que estamos, para
já, perante dois níveis do princípio da correspondência. O
que por si só é uma conclusão interessante. Pois, se a
literatura
filosófica
mais
especializada
no
pensamento
Bohriano se tem dedicado a debater qual dos anteriores é
“o” princípio da correspondência46, a meu ver, a melhor
forma de compreender o pensamento de Bohr é entender que
existem vários níveis do referido princípio.
O primeiro nível será o nível numérico, que consiste
numa
correspondência
das
previsões
quantitativas
da
frequência e da intensidade, no limite clássico, entre a
Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo.
O segundo nível será o nível formal, que, por sua vez,
consiste
numa
correspondência
entre
os
formalismos
da
Teoria Quântica Antiga e do Electromagnetismo. Note-se que
através
desta
correspondência
formal
são
deduzíveis
correspondências numéricas. Pois, no limite
as
clássico, a
frequência do movimento de um estado estacionário inicial é
numericamente equivalente à frequência da emissão entre
46
Conferir Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle"
in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition),
Edward
N.
Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/boh
r-correspondence
40
estados estacionários próximos. Por essa razão, porque um
implica o outro, julgo que estamos perante dois níveis do
referido
princípio
e
não
duas
distintas. Note-se ainda que
(ou
três)
formulações
estas correspondências não
implicam que a Teoria Quântica Antiga seja deduzível do
Electromagnetismo. Sendo o inverso igualmente verdadeiro.
Não existe uma continuidade directa entre a Teoria Quântica
Antiga e qualquer uma das teorias físicas clássicas (ao
contrário do que sucede entre as Mecânicas Relativista e
Clássica),
de
tal
despreocupadamente
modo
de
uma
que
para
se
outra.
possa
A
transitar
separar
estas
teorias encontra-se a introdução do postulado quântico no
modelo
atómico
e
a
sua
consequência:
os
estados
estacionários de energia, ou os estados quânticos. Porém,
se
o
postulado
gramatical
separa
quântico
duas
as
separa,
linguagens,
como
o
uma
regra
princípio
da
correspondência liga-as, como um tradutor. Em particular, o
princípio da correspondência permite que Teoria Quântica
Antiga seja entendida como resultante de uma revisão do
formalismo do Electromagnetismo de tal modo que incorpore o
postulado quântico. Revisão que, pela sua natureza formal,
só poderá ser realizada unicamente pela razão. Portanto, em
certa medida, pode-se tomar a Teoria Quântica Antiga como
uma generalização racional do Electromagnetismo clássico. A
este propósito afirma Bohr:
41
“Embora o processo de radiação não possa ser descrito com
base
na
teoria
ordinária
da
electrodinâmica
[…]
existe,
no
entanto, uma correspondência de longo alcance entre os vários
tipos de possíveis transições entre os estados estacionários por
um lado e os vários componentes harmónicos do movimento, por
outro.
Esta
correspondência
é
de
tal
natureza
que
a
teoria
actual dos espectros [teoria quântica antiga] pode ser num certo
sentido considerada como uma generalização racional da teoria
ordinária da radiação [isto é, o Electromagnetismo].47
Como é salientado por Darrigol48, Bohr usa a expressão
“num
certo
natureza
assente
sentido”,
formal.
–
inteiramente
É
pois
uma
recorde-se
formal
a
generalização
correspondência
–
entre
na
a
base
de
é
apenas
entre
de
teorias
numa
analogia
da
radiação
frequência
electromagnética e a frequência do movimento orbital do
47
“Although the process of radiation can not be described in the basis
of the ordinary theory of electrodynamics […]there is found,
nevertheless, to exist a far-reaching correspondence between the
various types of possible transitions between the stationary states on
the one hand and the various harmonic components of the motion on the
other hand. This correspondence is of such a nature, that the present
theory of spectra is in a certain sense to be regarded as a rational
generalization of the ordinary theory of radiation.” Bohr, N. (1920),
“Essays II: On the Series Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected
Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), J. Rud
Nielsen, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1976), pp. 245–246. (Tradução
minha)
48
Conferir Darrigol, Olivier (1992), From c-Numbers
Berkeley: University of California Press, p. 138.
to
q-Numbers,
42
electrão. Não é a este nível, a meu ver, que Bohr considera
que a Mecânica Quântica é uma generalização racional das
teorias clássicas da Física. Entretanto, insinua-se já aqui
o terceiro nível, e o mais fundamental, do princípio da
correspondência:
o
nível
conceptual.
Porém,
para
o
descobrir há que recuar e realizar um outro movimento.
2.2. A hipótese de De Broglie: a descoberta do domínio
quântico.
É bem conhecido o teorema matemático segundo o qual a
série de harmónicos de um movimento periódico não é outra
coisa
senão
a
sequência
de
termos
do
chamado
desenvolvimento de Fourier da posição. Isto é, cada um dos
harmónicos do movimento (e a frequência fundamental), tal
como toda a onda periódica, é uma onda plana sinusoidal.
Significa isto que é às ondas planas sinusoidais que Bohr,
no contexto da teoria quântica, se refere quando se refere,
formalmente, às ondas. Por consequência, um electrão intraatómico, no seu movimento, pode ser tomado, formalmente,
como se de uma onda plana sinusoidal (que também pode ser
designada por “onda de Fourier”) em propagação se tratasse.
43
Pode
não
parecer,
mas
esta
conclusão
é
da
maior
importância. Para já, por duas razões: em primeiro lugar,
por ser este o fundamento do nível formal do princípio da
correspondência. Formalmente, tanto a radiação, como os
electrões,
no
seu
movimento
são
ondas
sinusoidais
em
propagação. E, por consequência, electrões e radiação são
formalmente idênticos. Em segundo lugar, porque significa
que estamos, de certa forma, muito próximos da proposta,
absolutamente decisiva, de De Broglie, de 192449. Segundo
esta proposta, no caso particular de um átomo, o movimento
de um electrão num estado estacionário é caracterizado por
ser ondulatório. Mais especificamente, por ser uma onda
estacionária.
Este
é
o
tipo
de
onda
igualmente
característico, por exemplo, da oscilação de uma corda em
tensão.
Assim,
identificar
a
os
proposta
estados
de
De
Broglie
estacionários
permite-se
com
ondas
estacionárias. E, deste modo, podemos dizer que um átomo
quantificado é um pouco como um instrumento de cordas. Uma
ancestral harpa, por exemplo. Se esta é construída por um
conjunto de cordas vibrantes distribuídas segundo a antiga
lei pitagórica de que as frequências possíveis de uma corda
vibrante
são
múltiplos
inteiros
(harmónicos)
de
uma
49
Conferir o discurso de De Broglie de aceitação do prémio Nobel. De
Broglie, L. (1929), The wave nature of the electron in "Louis de
Broglie - Nobel Lecture". Nobelprize.org. 27 Sep 2011:
http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1929/br
oglie-lecture.pdf, p. 247.
44
frequência fundamental, de forma análoga, o átomo “de” De
Broglie
é
constituído
por
um
conjunto
de
estados
estacionários distribuídos segundo a mesma lei. E se um é
caracterizado por um número discreto de cordas, cada uma
com
a
sua
caracterizado
estacionários,
frequência
por
cada
um
um
bem
determinada,
número
com
discreto
a
sua
o
de
outro
é
estados
frequência
bem
determinada. Poder-se-ia dizer então que a quantificação do
átomo é análoga à quantificação das vibrações de uma corda
musical. É precisamente a partir desta analogia que Mário
Bunge chega mesmo a afirmar, curiosamente, que “o primeiro
a descobrir os quanta não foi Planck em 1900, mas Pitágoras
no século VI a.C.”50. Estamos, porém, ainda à volta de uma
analogia formal. Uma analogia que, contudo, se suporta em
algo mais significativo. A saber: segundo De Broglie, e
esta é a essência da sua proposta, da sua hipótese, os
electrões, tal como os fotões, são caracterizados por uma
cinemática ondulatória e uma dinâmica corpuscular. Ou dito
de outro modo, os electrões, tal como os fotões, tal como
todos objectos quânticos: propagam-se como ondas; interagem
como corpos.
Este é um momento decisivo. Em primeiro lugar, porque a
proposta de De Broglie permite explicar a existência e a
50
Conferir Bunge, Mário (2002), “Twenty Five Centuries of Quantum
Physics” (trad. do inglês por Florbela Meireles, “Vinte e cinco
séculos de Física Quântica”) in Gazeta de Física, vol. 25, 3, Julho de
2002, p.1.
45
distribuição
dos
estados
estacionários.
Os
estados
estacionários não têm que ser tomados como uma mera, embora
habilidosa, imposição ad-hoc. Nem tão pouco o movimento dos
electrões “obedecem” às regras das ondas electromagnéticas
pela particularidade de fazerem parte de um sistema atómico
e lhes serem, formalmente, análogos. Todos os electrões
são, quanto ao seu movimento, tidas como ondas. Assim, a
proposta De Broglie permitia explicar o que era postulado
na
Teoria
Quântica
encontra-se
na
Antiga.
origem
da
E,
como
tal,
transição
da
esta
proposta
Teoria
Quântica
Antiga para a Teoria Quântica Nova. Isto é, para a Mecânica
Quântica. Uma transição que implica que a teoria quântica
deixa
de
ser
apenas
uma
teoria
do
átomo
seja,
deixa
de
ser
constituintes,
ou
microfísica. A
proposta de De
e
dos
seus
apenas
uma
Broglie não se
cinge ao
domínio atómico, mas refere-se a todo o domínio físico. E
como assinala, por exemplo, Leblond “macroscópico não é
sinónimo de clássico”51.
Este é igualmente um momento decisivo, pois a proposta
de De Broglie consiste na atribuição, embora por analogia
conceptual, de uma dupla natureza aos objectos quânticos: a
das
ondas
na
sua
propagação;
a
dos
corpos
na
sua
interacção. Emprego o termo “dupla analogia” pois diz-se
51
Conferir Lévy-Leblond, Jean-Marc (2003), “On the Nature of Quantons”
in Science & Education 12, p. 499.
46
que os objectos quânticos, quanto à sua cinemática, são
como se fossem ondas. E quanto à dinâmica, são como se
fossem
corpos
materiais.
Contudo,
De
Broglie
não
se
aventura a afirmar que, de facto, os objectos quânticos têm
a natureza das ondas e dos corpos.
Quer
isto
dizer
que
estamos
de
regresso
à
questão
original: “O que é um objecto quântico?”. O que não será
surpreendente, dado que havíamos dito que esta é a questão
que se encontra logo que se entra no labiríntico domínio
quântico. E, por consequência, encontra-se na génese da
Mecânica Quântica. Por esta via, regressamos igualmente à
questão lançada no final do capítulo anterior: “como se
pôde constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o
problema da natureza dos objectos quânticos?”
Por outro lado, no caminho que fizemos no sentido de
responder a estas questões, outras se juntaram. A saber: O
que quer dizer que a Mecânica Quântica é uma generalização
racional
da
Física
generalização
correspondência
Clássica?;
racional?;
foi
o
de
o
que
que
instrumento
entende
Bohr
por
modo
o
princípio
da
para
a
construção
da
Mecânica Quântica a partir das teorias físicas clássicas?;
o que se entende por “nível conceptual do princípio da
correspondência?”; de que modo este nível se relaciona com
os outros dois?; por que razão
a Mecânica Quântica se
47
constituiu evitando responder à questão da natureza dos
objectos quânticos?
Para responder a estas questões pensamos ser preciso
tomar em atenção uma outra tese de Bohr sobre a Mecânica
Quântica.
Esta
tese,
que
a
meu
ver,
é
a
basilar
do
pensamento bohriano e, como tal, é mais fundamental que as
anteriores,
é
comummente
designada
na
literatura
de
relativa à Filosofia da Mecânica Quântica por “doutrina da
indispensabilidade dos conceitos clássicos”.
2.3.
Doutrina
da
indispensabilidade
dos
conceitos
clássicos.
Não será totalmente pacifico o que Bohr entende como
“conceitos
clássicos”.
A
meu
ver,
e
aqui
sigo
o
entendimento geral dos exegetas dos escritos de Bohr ( como
Folse, Murdoch, Pringe, etc.), Bohr refere-se ao que se
considera serem os conceitos que constituem o léxico mais
fundamental
“corpo”,
da
Física
“posição”,
Clássica.
“momentum”,
Conceitos
“campo”,
como
“onda”,
“energia”,
“carga”, “massa” “frequência”, etc. No entanto, Don Howard
no seu artigo “What makes a Classical Concept Classical”,
de 1994, assumidamente opõe-se a esse entendimento. Don
Howard defende que, por “clássico”, Bohr quer dizer “uma
48
descrição
em
termos
do
que
os
físicos
chamam
de
misturas”52. Isto é, “um dispositivo formal que nos permite
proceder como se os sistemas físicos estivessem num estado
intrínseco bem definido”53.
O argumento de Howard não me parece porém convincente.
Pois, neste artigo, ao invés de expor uma análise dos
conceitos a que Bohr se refere quando se refere a conceitos
clássicos, Howard acaba por se centrar numa distinção, da
autoria
do
próprio,
entre
“descrições
clássicas”
e
“descrições quânticas” dos sistemas físicos. A distinguir
estas
descrições
estaria
o
facto,
na
terminologia
de
Howard, de a primeira consistir nas tais “misturas” e a
segunda consistir na utilização de “termos puros”. Contudo,
em qualquer dos tipos de descrição, nada se afirma sobre se
os conceitos físicos usados são os mesmos ou não. Ou seja,
parece haver apenas uma distinção no tipo de descrição
(“puros” e “misturas”) em que os conceitos são utilizados
para descrever um determinado sistema físico, e não tanto
uma distinção entre os conceitos utilizados. Isto é, para
Howard, o mesmo conceito, o momento linear, por exemplo,
pode tomar o estatuto de clássico ou quântico conforme o
tipo de descrição do sistema. Porém, o argumento de Howard,
52
Conferir Howard, D. (1994), “What makes a classical concept
classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of
physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in
the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds.,
Dordrecht: Kluwer, p. 203.
53
Idem, ibidem.
49
não só parece ser apenas de cariz nominalista, como acaba
por reforçar a tese que aqui se pretenderá defender que é
justamente pela insistência, por parte de Bohr, de se fazer
uso
dos
conceitos
clássicos
que,
mesmo
num
sistema
quântico, os conceitos usados são, na sua essência, os
mesmos das teorias clássicas da Física.
Por
outro
lado,
a
seguinte
afirmação
do
físico
dinamarquês parece dar aval à tese, que compartilho, de que
Bohr por “conceitos clássicos” refere-se aos conceitos que
pertencem à linguagem das teorias físicas clássicas:
“A interpretação, sem ambiguidades, de qualquer medição deve
ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas
clássicas. E, neste sentido, deveremos dizer que a linguagem de
Newton
e
Maxwell
será
a
linguagem
dos
físicos
para
todo
o
sempre”54
Não parece haver margem para dúvidas que por “linguagem
de Newton e Maxwell” Bohr se refere à linguagem que é
constituída
pelos
Electromagnetismo.
conceitos
da
Ou
ao
seja,
Mecânica
que
Clássica
podemos
e
do
denominar,
54
“We must, in fact, realize that the unambiguous interpretation of
any measurement must be essentially framed in I terms of the classical
physical theories, and we may say that in this sense the language of
Newton and Maxwell will remain the language of physicists for all
time.”, N. Bohr (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in
Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics
I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p.
360. (Tradução minha)
50
genericamente,
por
“conceitos
da
Física
Clássica”.
No
entanto, é impossível não notar como Bohr é categórico
quando afirma: “a linguagem de Newton e Maxwell será a
linguagem dos físicos para todo o sempre”. Não se trata,
certamente, de uma profecia. E assim sendo, em que se funda
esta certeza? Qual a razão pela qual para essa linguagem
será “para todo sempre”? Creio que Bohr adianta uma razão
na
primeira
parte
da
passagem
citada.
A
saber:
“a
interpretação de qualquer medição deve ser essencialmente
estabelecida em termos das teorias físicas clássicas”. Este
é, aliás, o sentido mais comum pelo qual se julgam os
conceitos clássicos como indispensáveis para Bohr.
Mas,
o
qualquer
que
quer
medição”?
dizer
Uma
Bohr
medição,
com
“interpretação
qualquer
que
ela
de
seja,
consiste numa interacção entre dois sistemas físicos. O
sistema que é objecto da medição e o sistema que é agente
da
medição,
ou
seja,
o
instrumento
de
medida.
Como
consequência dessa interacção produz-se uma alteração do
estado físico do sistema que é agente da medição. Isto é,
produz-se
um
resultado
da
medida.
Seja
esse
resultado
percebido como uma variação da posição de um ponteiro (como
no
caso
de
uma
antiga
balança
de
pratos),
seja
esse
resultado percebido como uma variação dos dígitos presentes
num ecrã (como no caso de uma balança digital). Em qualquer
dos
casos,
uma
medição
passa,
necessariamente,
pela
51
percepção, por parte de um sujeito, da alteração do estado
–
o
resultado
da
medição
-
de
um
sistema
físico
macroscópico – o instrumento de medida. Daí que uma medição
é seja sempre uma relação a três: o objecto da medida; o
instrumento da medida e o sujeito que percebe o resultado
da medida. Digo que “percebe”, pois não basta a percepção,
por parte do sujeito, de uma alteração do estado físico do
sistema medidor. É necessário que o sujeito estabeleça a
relação entre essa percepção e a alteração do estado físico
do objecto da medição. Sem se estabelecer essa relação
entre o objecto da medição, o instrumento de medida e o
sujeito
não
existe
medição
pois
faltará
um
dos
seus
elementos.
Note-se que, neste caso, o instrumento de medida é o
objecto
trata-se
da
percepção
então,
directa
do
sujeito.
necessariamente,
de
um
E,
como
sistema
tal,
físico
macroscópico. Daqui Bohr irá inferir que os instrumentos de
medida,
porque
macroscópicos,
clássicas.
A
são
então
meu
ver,
também
são
eles
objecto
esta
é
uma
sistemas
das
teorias
das
razões
físicos
físicas
que
Bohr
apresenta para defender a tese que a interpretação das
medições deve necessariamente ser estabelecida em termos
clássicos.
Logicamente, assim entendido, o argumento de Bohr é
circular e de cariz totalmente instrumentalista. Por um
52
lado, fica por justificar por que razão os objectos físicos
macroscópicos devem ser descritos para todo sempre pelas
teorias de Newton e Maxwell. Por que não poderá surgir uma
outra teoria, uma teoria não clássica, que descreva as
alterações de estado físico do instrumento de medida? Ou
mesmo, por que não podem esses estados do instrumento de
medida
serem
descritos
pela
Mecânica
Quântica?
Ao
considerar, sem apresentar justificação, que os objectos
macroscópicos
são
objectos
exclusivos
das
teorias
clássicas, e dado que os aparelhos de medida são, em última
instância,
objectos
macroscópicos,
Bohr,
é
conduzido
à
conclusão de que a interpretação de qualquer medição deve
ser
entendida
em
termos
clássicos.
Ou
seja,
conclui
simplesmente a sua própria hipótese de partida.
Por outro lado, o argumento de Bohr fixa-se apenas nas
variações
de
estado
do
agente
de
medida
e,
como
tal,
suspende a referência à relação causal entre a alteração
dos estados do sistema agente da medida e do sistema que é
objecto da medida. Alteração de estado à qual
é feita
corresponder a um valor quantitativo de uma grandeza física
determinada
do
objecto
da
medida.
O
que
é
a
própria
essência do acto de medir.
No
entanto,
indispensabilidade
creio
dos
que
a
conceitos
tese
bohriana
clássicos
pode
da
ser
encontrada num outro sentido. Um sentido que é mais subtil,
53
mas mais profundo. E que, estranhamente, tem sido muitas
vezes subestimado, senão mesmo esquecido. Descobrimo-lo na
seguinte passagem:
“De acordo com a visão deste autor [Bohr], será um engano
acreditar que as dificuldades da teoria atómica [ou seja, da
Mecânica
Quântica]
podem
ser
contornadas
por
uma
eventual
substituição dos conceitos da física clássica por novas formas
conceptuais
[…]
Não
me
parece
crível
que
os
conceitos
das
teorias clássicas sejam, alguma vez, supérfluos para a descrição
da experiência física. O reconhecimento da indivisibilidade do
quantum de acção e a determinação da sua magnitude depende, não
apenas
da
análise
das
medições
serem
baseadas
em
conceitos
clássicos, mas do facto de que somente uma aplicação desses
conceitos
tornam
possível
relacionar
o
simbolismo
da
teoria
quântica com os resultados da experiência”55
Nesta
citação
é
possível
constatar
que
Bohr,
num
primeiro momento, enfatiza que os conceitos clássicos são
55
“to the view of the author, it would be a misconception to believe
that the difficulties of the atomic theory may be evaded by eventually
replacing the concepts of classical physics by new conceptual forms.
[…] No more is it likely that the fundamental concepts of the
classical theories will ever become superfluous for the description of
physical experience. The recognition of the indivisibility of the
quantum of action, and the determination of its magnitude, not only
depend on an analysis of measurements based on classical concepts, but
it continues to be the application of these concepts alone that makes
it possible to relate the symbolism of the quantum theory to the data
of experience.”, Bohr, Niels (1929), “Introductory survey to the
Atomic Theory and the Description of Nature” in Niels Bohr Collected
Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J.
Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 294. (Tradução
minha)
54
essenciais para a interpretação das medições. É o sentido
da doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos
que já nos havia surgido. Contudo, num segundo momento,
Bohr assinala que os conceitos clássicos são igualmente
necessários pois “somente uma aplicação desses conceitos
tornam possível relacionar o simbolismo da teoria quântica
com os resultados da experiência”. Ou seja, os conceitos
clássicos
da
física
são
essenciais
para
dar
conteúdo
semântico ao formalismo da Mecânica Quântica. Assim, poderse-ia afirmar que, segundo Bohr, sem os conceitos clássicos
uma
teoria
quântica,
qualquer
que
ela
fosse,
careceria
sempre de sentido.
Bohr reforça a posição anterior num artigo, que é pouco
discutido, onde desenvolve uma narrativa contrafactual da
historia da Física. Nesta, ele convida-nos a imaginar uma
história
da
física
descoberta
antes
em
que
da
a
Mecânica
Mecânica
Quântica
Clássica
fosse
e
do
Electromagnetismo:
“Imagine
por
um
momento
que
as
recentes
descobertas
experimentais de difracção de electrões e efeitos fotónicos, que
cabem
tão
bem
na
mecânica
quântica,
fossem
feitas
antes
do
trabalho de Faraday e Maxwell. Naturalmente, tal situação é
impensável, uma vez que a interpretação das experiências em
causa baseia-se essencialmente nos conceitos criados por esse
trabalho. Mas permitamo-nos, no entanto, ter uma visão de tal
55
fantasia e perguntemo-nos, em seguida, qual seria o estado da
ciência.
Eu
julgo
que
não
seria
dizer
muito
afirmar
que
estaríamos mais longe de uma visão consistente das propriedades
da matéria e da luz do que Newton e Huygens estavam.”56
Ao considerar hipoteticamente que a Mecânica Quântica
poderia
ter
clássicas,
sido
Bohr
descoberta
antes
imediatamente
das
considera
teorias
que
físicas
isso
seria
impossível. Impossível, pois – argumenta - a interpretação
das experiências que levou à descoberta da teoria quântica
requer o uso de conceitos clássicos, no caso apresentado,
dos conceitos do Electromagnetismo. Reconhece-se aqui o
primeiro sentido da doutrina de Bohr da indispensabilidade
dos conceitos clássicos. Bohr, no entanto, prescinde dessa
objecção
e
continua
com
a
narrativa
contrafactual
para
chamar a atenção para o segundo sentido em que os conceitos
clássicos
são,
para
ele,
indispensáveis.
E
chega
à
conclusão que a Mecânica Quântica por si só fornece uma
descrição menos adequada da luz e da matéria do que faz a
56
“Let us imagine for a moment that the recent experimental
discoveries of electron diffraction and photonic effects, which fall
in so well with the quantum mechanical symbolism, were made before the
work of Faraday and Maxwell. Of course, such a situation is
unthinkable, since the interpretation of the experiments in question
is essentially based on the concepts created by this work. But let us,
nevertheless, take such a fanciful view and ask ourselves what the
state of science would then be. I think it is not too much to say that
we should be farther away from a consistent view of the properties of
matter and light than Kewton and Huygens were.”, Bohr, N. (1931),
“Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected
Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J.
Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 360. (Tradução minha)
56
Física Clássica. É uma conclusão surpreendente se julgarmos
(ou se julgássemos) a Mecânica Quântica como uma teoria
conceptualmente autónoma que superou as teorias clássicas
e, como tal, que poderíamos falar da primeira sem, mesmo
implicitamente, necessitar das segundas. Aqui, a tese de
Bohr é que a Mecânica Quântica sem a Física Clássica e os
seus conceitos seria uma teoria incompleta. Incompleta, não
no sentido do chamado debate EPR57 e do seu desenvolvimento
posterior – as relações de Bell - que tanta tinta têm feito
correr
na
Mecânica
literatura
Quântica.
filosófica
Isto
é,
contemporânea
incompleta
porque
sobre
a
existiria
algum elemento da realidade física que a Mecânica Quântica
deixa fora da sua descrição. Neste sentido, para Bohr, a
Mecânica
Quântica
Bastará
recordar
controvérsia58 que
é
uma
algum
teoria
dos
completa.
Sem
dúvida.
momentos
da
célebre
Bohr manteve durante cerca de
trinta
anos com Einstein. A Mecânica Quântica é incompleta para
Bohr no sentido em que o significado do seu formalismo
depende dos conceitos da Física Clássica. No sentido em
que,
sem
os
conceitos
da
Física
Clássica,
uma
teoria
quântica, qualquer que ela seja, nada mais seria que uma
57
Refere-se aqui, obviamente, o debate que se gerou a partir da
publicação, em 1935, do artigo “Is Quantum Mechanics complete?” de
Einstein, Poldoski e Rose e da réplica de Bohr com um artigo homónimo,
nesse mesmo ano de 1935.
58
Conferir O relato que o próprio Bohr faz dessa controvérsia em:
Bohr, N. (1949), “Discussion with Einstein on Epistemological Problems
in Atomic Physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York:
Kessinger Publishing.
57
muda construção matemática. Um corpo matemático carente de
significado
físico.
Como
um
monstro
de
Frankenstein,
imponente, eventualmente poderoso, mas sem alma. Ou seja,
uma teoria quântica, qualquer que ela seja, enquanto teoria
física, não é possível sem os conceitos clássicos que lhe
dão sentido, que a vivificam.
É precisamente nesta tese de Bohr sobre o estatuto dos
conceitos
clássicos
que,
segundo
Heisenberg,
reside
a
essência da chamada “Interpretação de Copenhaga”. Ela pode
ser enunciada de um modo lapidar:
“Os conceitos da física clássica formam a linguagem pela qual
descrevemos
os
arranjos
experimentais
e
registamos
os
resultados. Não podemos, nem devemos, mudar esses conceitos por
nenhuns outros […] não podemos, nem devemos, tentar melhorálos”59
É porque Heisenberg se assume aqui como porta-voz do
físico dinamarquês, que o seu tom adquire uma dimensão
inabitualmente
peremptória:
“não
podemos,
nem
devemos,
mudar os conceitos” clássicos. Nem sequer “tentar melhorálos”.
Estamos
perante
um
quase
imperativo
ético.
Um
mandamento: “não devemos”. Mas, por outro lado, trata-se de
59
“The concepts of classical physics form the language by which we
describe the arrangement of our experiments and state the results. We
cannot and should not replace these concepts by any others […] we
cannot and should not try to improve them.” Heisenberg, Werner (1958),
Physics and Philosophy, London: Penguin Books, p. 14. (Tradução minha)
58
uma condição prévia e imutável à da experiência, pois “não
podemos
mudá-los
por
nenhuns
outros”,
nem
tão
pouco
“podemos melhorá-los”. Neste sentido, poder-se-ia dizer que
os conceitos clássicos da Física surgem com a força de um a
priori,
de
conceitos
uma
exigência
clássicos
seriam
transcendental.
prévios
à
Pois
esses
experiência
e,
simultaneamente, condição de possibilidade de descrição e
interpretação dos resultados desta. Algo que é, aliás, e
sem
surpresa,
muitas
vezes
assinalado
por
Heisenberg60.
Estamos perante um ponto de grande significado na exegese
dos
textos
de
Bohr.
Na
verdade,
é
precisamente
neste
sentido, isto é, tomando Bohr como um paladino do dito
carácter apriorístico dos conceitos clássicos, que diversos
filósofos da física como Pringe61, Falkenburg62, Bitbol63,
Petitot64,
Honner65,
Von
Weizsäcker66,
entre
outros,
tentaram, e continuam a tentar, desenvolver ou encontrar
uma
fundação
transcendental
para
a
Mecânica
Quântica.
60
Conferir, por exemplo, Heisenberg, Wener (1959),” A descoberta de
Planck e os problemas filosóficos da física atómica” in Discussione
sulla física moderna (tradução para Português por Gita Guinsburg
“Problemas da Física Moderna”), São Paulo: Perspectiva, p. 18.
61
Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of
Judgment, Berlin: De Gruyter.
62
Conferir Falkenburg, Briggitte (2007), Particle Metaphysics: A
critical Account of Subatomic Reality, Berlin: Springer.
63
Conferir Bitbol, M. (1998), “Some Steps Towards a Transcendental
Deduction of Quantum Mechanics” in Philosophia naturalis, 35, pp. 253280.
64
Conferir Petitot, J. (1991). La philosophie transcendantale et le
problème de l’objectivité. Paris: Osiris.
65
Conferir Honner, John (1987), The description of Nature: Niels Bohr
and the Philosophy of Quantum Physics, Oxford: Clarendon press.
66
Conferir Von Weizäcker, C. (1952), The world view of physics,
Chicago: Chicago University Press.
59
Grande parte da literatura filosófica contemporânea sobre a
teoria quântica moderna navega nesse mar. Logicamente, de
um modo ou de outro, todos os filósofos da física referidos
tomam
Bohr
como
um
kantiano.
Alguns,
como
Hooker67,
Honner68, Pringe69, Catherine Chevalley70 e Steen Brock71, e
recorrendo às palavras de Patrícia Kauark-Leite, “tentam
mesmo estabelecer um paralelo próximo entre o pensamento de
Kant
Bohr”72.
e
Porém,
e
esta
é
uma
dificuldade
consistente, Bohr nunca se reconheceu como membro de tal
família
refere
filosófica.
a
Quântica.
Kant
Será
em
Aliás,
nenhum
uma
curiosamente,
dos
seus
estranha
Bohr
textos
ausência
nunca
sobre
pois
se
Física
Bohr
era
conhecedor das obras do gigante filosófico de Königsberg.
Afinal, Christian Bohr, pai de Niels Bohr, leccionava Kant
na
Universidade
de
Copenhaga.
E
é
bem
conhecida
a
existência de uma proximidade pessoal e intelectual entre
Bohr e o neo-kantiano Harald HØffding73. Mas, a meu ver,
67
Conferir Hooker, C. A. (1972). “The nature of quantum mechanical
reality”, in Paradigms and Paradoxes, Pittsburgh: University of
Pittsburgh Press, pp. 135-172.
68
Conferir nota de rodapé nº 65.
69
Conferir nota de rodapé nº 61.
70
Conferir Chevalley, C. (1991), “Glossaire”, in N. Bohr, Physique
atomique e connaissance humaine. Paris: Gallimard, pp. 345-567.
71
Conferir Brock, S. (2003) Niels Bohr’s Philosophy of Quantum
Physics, Berlin: Logos Verlag.
72
Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy
and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas,
v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.245.
73
Conferir, por exemplo, Faye, J. (1991), Niels Bohr: His Heritage and
Legacy. An Antirealism View of Quantum Mechanics, Dordrecht: Kluwer;
Moreira, Rui (2011), Contribuição para o estudo das origens do
princípio da complementaridade, no prelo.
60
mais importante do que saber a razão da referida ausência,
interessa perguntar, novamente, pela razão da sua presença:
por que defende Bohr que os conceitos clássicos têm este
carácter que podemos classificar de apriorístico? por que
razão
–
regressando
um
pouco
atrás
-
a
linguagem
dos
físicos será sempre a de Newton e de Maxwell? Ou, como diz
Schrödinger em carta dirigida a Bohr em 13 de Outubro de
1935:
“Devem
Bohr],
existir
razões
repetidamente,
a
claras
e
declarar
definidas
que
que
devemos
o
levem
[a
interpretar
as
observações em termos clássicos, de acordo com a sua própria
natureza. Sempre que você o afirma, fá-lo de forma tão clara e
definitiva,
no
indicativo,
sem
quaisquer
reservas
como
“provavelmente”, ou “pode ser”, ou “devemos estar preparados
para”,
como
se
fosse
a
máxima
certeza
do
mundo.
Isso
deve
pertencer à sua mais firme convicção – e eu não consigo entender
em que se baseia”74
74
[…] there must be clear and definite reasons which cause you
repeatedly to declare that we must interpret observations in classical
terms, according to their very nature. Whenever you say that, you
state it so definitely and clearly, in the indicative, without any
reservations like “probably”, or “it might be”, or “we must be
prepared for”, as if this were the uttermost certainty in the world.
It must be among your firmest convictions - and I cannot understand
what it is based upon” Carta de Schrödinger a Bohr datada de 13 de
Outubro de 1935 in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of
Quantum Physics II (1933–1958), J. Kalckar, ed., Amsterdam: Elsevier
(1996), p. 508. (Tradução minha)
61
A resposta directa de Bohr à questão de Schrödinger,
como assinalam75 os filósofos australianos Schlosshauer e
Camilleri,
foi
evasiva.
Contudo,
creio
que
podemos
encontrar a razão da certeza de Bohr e, indirectamente, da
perplexidade de Schrödinger, em passagens como a seguinte:
“[…] apenas com o auxílio das ideias clássicas é possível
atribuir
um
significado
não
ambíguo
aos
resultados
da
observação.”76
Nesta
passagem
observação”
ao
Bohr
invés
refere-se
de
a
“resultados
“resultados
da
medição”
da
ou
“resultados da experiência”. Trata-se, a meu ver de uma das
flutuações terminológicas habituais nos textos de Bohr e
até – creio que se poderá dizer – típicas em muitos físicos
embora estranhas aos olhos de um filósofo. Flutuação que é
compreensível
se
atendermos
que,
em
Física,
todas
as
experiências e todas observações são medições77. E, como
75
Conferir Schlosshauer, Maximilian e Camilleri, Kristian (2008) The
quantum-to-classical
transition:
Bohr’s
doctrine
of
classical
concepts, emergent classicality, and decoherence, pp. 25-26 (artigo
on-line, em http://arxiv.org/abs/0804.1609v1).
76
“[…] only with the help of classical ideas is it possible to ascribe
an unambiguous meaning to the results of observation.”, Bohr, N.
(1929), “Introduction Survey to “Atomic Theory and the description of
Nature”” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum
Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985,
p. 295. (Tradução minha)
77
Segundo Max Jammer o filósofo inglês Norman Campbell terá leva ao
extremo esta posição ao defender que a Física seria definível como a
ciência da medição. Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of
Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p. 471.
62
tal, “observação” e “experiência” podem ser aceitavelmente
tomados como sinónimos de “medição”. Por esta razão é,
usual, em Física, por um lado, referir-se o sujeito da
medição como “observador” e, por outro lado, vaguear-se
livremente
entre
os
termos
“observação”,
“medição”
e
“experiência” como se de sinónimos se tratasse.
Por outro lado, na passagem anterior encontramos o termo
“ideias clássicas” ao invés de “conceitos clássicos”. Será
tentador
flutuação
afirmar
que
também
terminológica.
estamos
Julgo,
no
perante
entanto,
mais
que
uma
talvez
assim não seja. Mas, se esse não é o caso, então a que
ideias clássicas se refere Bohr? E que relação têm estas
com os conceitos clássicos? Em particular quando são usuais
as passagens nas quais Bohr afirma:
“[…] toda a experiência deve ser, em última análise, expressa
em conceitos clássicos”78
Creio pois ser legitimo afirmar que, segundo Bohr, tanto
a descrição física dos instrumentos, como a interpretação
dos
resultados
das
experiências
(ou
medições,
ou
observações), deve fazer uso dos termos clássicos. Já antes
havíamos encontrado, de certo modo, esta tese quando Bohr
dizia que “a interpretação, sem ambiguidades, de qualquer
78
“[…] all experience must ultimately be expressed
classical concepts”, idem, p. 210. (Tradução minha)
in
terms
of
63
medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das
teorias físicas clássicas.”79. Contudo, nesta última, tal
como quando nos diz que “apenas com o auxílio das ideias
clássicas é possível atribuir um significado não ambíguo
aos
resultados
observação”80,
da
surge-nos
a
expressão
“não ambíguo”. E esta é, a meu ver, precisamente a chave
mestra (ou a palavra-chave) do pensamento Bohriano sobre a
Física dos Quanta. Em particular, permite-nos aceder ao
fundamento da doutrina da indispensabilidade dos conceitos
clássicos.
Encontramos
esta
expressão,
novamente,
numa
passagem de Bohr onde este procura ser mais esclarecedor
relativamente à referida doutrina dos conceitos clássicos:
“[…]
É
transcenda
decisivo
o
reconhecer
domínio
das
que,
por
explicações
mais
da
que
Física
o
fenómeno
Clássica,
a
descrição deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos.
O
argumento
é
simplesmente
que
pela
palavra
“experimento”
referimo-nos a uma situação onde podemos dizer a outros o que
fizemos e o que aprendemos e, como tal, o relato do arranjo
experimental e dos resultados da observação deve ser expresso
numa
linguagem
não
ambígua
com
a
aplicação
adequada
da
terminologia da física clássica”81
79
Conferir página 50.
Conferir página 62.
81
[…] “It is decisive to recognize that, however far the phenomena
transcend the scope of classical physical explanation, the account of
all evidence must be expressed in classical terms. The argument is
simply that by the word “experiment” we refer to a situation where we
can tell others what we have done and what we have learned and that,
80
64
Na primeira parte desta citação surge-nos, colocada em
itálico pelo próprio Bohr, de forma muito clara, a doutrina
da indispensabilidade dos conceitos clássicos: “a descrição
deve, evidentemente, ser expressa em termos
clássicos”.
Porém, para além do simples enunciar da referida doutrina,
Bohr acrescenta aqui que esta se aplica “por mais que o
fenómeno transcenda o domínio das explicações da Física
Clássica”. Em particular, aplica-se ao domínio quântico.
Mas, mais importante que isso, enfatiza que os conceitos
clássicos são condição geral de descrição de um fenómeno82
físico
qualquer.
Ou
seja,
reencontramos
aqui
o
alegado
carácter apriorístico destes conceitos.
Portanto, a primeira parte da citação anterior leva-nos
apenas a reencontrar alguns dos elementos essenciais da
referida doutrina. Mas o mesmo já não poderá ser dito em
relação
à
segunda
parte.
Nesta,
Bohr
acrescenta
algo.
Nomeadamente que quando nos referimos a uma experiência
referimo-nos a “uma situação onde podemos dizer a outros o
therefore, the account of the experimental arrangement and of the
results of the observations must be expressed in unambiguous language
with suitable application of the terminology of classical physics”
Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological
problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New
York: Kessinger Publishing, p.39. (Tradução minha)
82
O termo “fenómeno” surge aqui, e daqui em diante, tal como é
habitual no contexto da Física, não significando “o que aparece aos
sentidos” ou o “objecto da percepção”, mas como “evento”. Por exemplo,
a levitação magnética diz-se um fenómeno quântico macroscópico. Não
porque observamos um corpo suspenso no ar, mas porque é uma situação
física pela Mecânica Quântica
65
que fizemos e o que aprendemos”. Isto é, Bohr assinala que
a marca mais fundamental de uma experiência científica não
será tanto o confronto entre a teoria e a natureza, mas a
comunicabilidade
do
que
foi
realizado
e
dos
seus
resultados. Não é surpreendente que assim seja. Afinal, a
Ciência é uma empresa necessariamente colectiva. Não só
dentro de uma geração, mas entre gerações.83 E, como tal,
só
se
efectiva
quando
é
posto
em
comum
o
que
foi
desenvolvido por um indivíduo ou um grupo de investigação.
A Ciência não é labor de eremitas abnegados. E é isto mesmo
que
entendo
que
Bohr
pretende
aqui
realçar:
a
comunicabilidade é uma condição essencial à Ciência. Por
consequência, as experiências e os seus resultados têm de
ser expressos numa linguagem não ambígua. Requisito que,
para Bohr, dentro da Física, só pode ser cumprido com o
recurso aos conceitos clássicos desta ciência84. Só aí, no
83
Conferir, Pombo, Olga (2006), Unidade da Ciência: Programas, Figuras
e Metáforas, Lisboa: Edições Duarte Reis, p.139.
84
Contrariamente a este entendimento do pensamento de Bohr, David
Favrholdt (Conferir Favrhodt, David (1993), “Niels Bohr’s views
concerning language” in Semiotica, Volume 94, Issue 1-2, pp. 5–34)
argumenta que o uso necessário dos conceitos clássicos justifica-se
com o facto destes, implicitamente, estabelecerem-se através de uma
distinção entre o sujeito e o objecto. Entre quem diz e o que é dito.
Seria este o sentido de uma comunicabilidade não ambígua. Por
consequência, defende Favrholdt, “a solitary physicist on a desert
island may communicate with himself by writing down experimental
results to be read later, etc. The decisive point is not the situation
of communication, but unambiguity. Therefore, we might as well write
'unambiguous thinking' where Bohr writes 'unambiguous communication'
or 'description'” (p. 10 do referido artigo). A meu ver este argumento
está errado por três razões. Em primeiro lugar, a estrutura sujeitopredicado não é garante de não ambiguidade do que é dito. Em segundo
lugar, Favrholdt escamoteia o facto de Bohr, como surge na citação a
66
recurso aos conceitos clássicos, a linguagem da Física,
como vimos, ganha sentido. Só esse sentido pode fundar a
sua objectividade. E só essa objectividade pode garantir a
não ambiguidade da comunicação entre pares. Neste sentido,
assinala Howard:
“Bohr
via
consequência
a
doutrina
directa
da
dos
sua
conceitos
doutrina
clássicos
da
como
objectividade
uma
que,
afirma que o uso dos conceitos clássicos é condição necessária
para uma comunicabilidade não ambígua.”85
Não deixa de ser surpreendente que o pensamento de Bohr
se alicerce numa tese sobre a objectividade. Ele que tantas
e
repetidas
vezes
é
acusado
de
ter
introduzido
o
subjectivismo na Física. Nomeadamente, por ser confundido
como afim com a solução de Von Neumann para o chamado
problema da medição86. Mas compreende-se a razão pela qual
que esta nota se refere, entender por experiência “uma situação onde
podemos dizer a outros”. Se é a “outros”, então não fará sentido algum
defender que a comunicabilidade é para si mesmo (salvo caso de
esquizofrenia…). Terceira e última razão, esta interpretação de
Favrholdt é contrária à própria “doutrina da indispensabilidade dos
conceitos clássicos”. Pois, da relação sujeito-predicato nada obriga a
um recurso necessário dos conceitos da Física Clássica.
85
“Bohr regarded the doctrine of classical concepts as a direct
consequence of his doctrine of objectivity, holding that the use of
classical
concepts
is
a
necessary
condition
for
unambiguous
communicability.” Howard, D. (1994), “What makes a classical concept
classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of
physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in
the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds.,
Dordrecht: Kluwer, p. 207.
86
Voltaremos a este assunto, mais tarde, neste capítulo. Conferir
página 138 e seguintes.
67
Bohr,
neste
aspecto,
compreendido.
directamente
Para
pela
tem
Bohr,
sido
a
relação
tantas
vezes
objectividade
sujeito-objecto.
não
Ela
mal
passa
supõe
a
relação comunicativa entre sujeitos. Para ser mais preciso,
as
condições
de
possibilidade
da
comunicabilidade
não
ambígua da experiência. Só que, para essa comunicabilidade
não
ambígua
“o
necessária”.
doutrina
dos
uso
Assim,
dos
conceitos
como
indicava
conceitos
clássicos
Howard,
clássicos
como
é
Bohr
uma
condição
“via
a
consequência
directa da sua doutrina da objectividade”. O que Howard não
explica é porquê? Por que razão exige Bohr este caminho
indirecto? Por que razão não funda Bohr a objectividade
directamente na comunicabilidade entre sujeitos? Por que
exige esse caminho mais longo que obriga á intervenção
mediadora dos conceitos clássicos?
A nosso ver, a razão deve ser procurada no facto de só
os
conceitos
clássicos,
como
atrás
procuramos
mostrar,
atribuírem sentido às teorias físicas. Ou seja, a nosso
ver,
a
objectividade
possível
tem
o
seu
fundamento
na
abertura semântica dos conceitos clássicos ao mundo que
eles descrevem. É porque os conceitos clássicos abrem a
teoria
ao
mundo
que
só
eles
conferem
objectividade
à
teoria, que eles constituem a condição necessária de uma
comunicação
não
ambígua.
Aí
se
funda
também
a
comunicabilidade que faz da ciência algo mais do que uma
68
congeminação
solitária,
isto
é,
algo
que
a
ergue
ao
estatuto de património colectivo.
Mas, regressemos uma vez mais à questão fulcral que tem
vindo a percorrer estas páginas e à qual falta ainda dar
uma
resposta:
privilegiado
onde
dos
se
funda
conceitos
da
este
física
pretenso
estatuto
clássica?
Por
razão os conceitos clássicos são os que não
que
sofrem de
ambiguidade e, como tal, segundo o físico dinamarquês, são
aqueles de que os físicos terão sempre de fazer uso? Onde
se
funda,
conceitos
em
última
clássicos?
análise,
A
a
resposta
doutrina
não
é
bohriana
directa.
dos
Apenas
tortuosamente alcançável.
Em primeiro lugar, tal como David Favrholdt assinala na
sua introdução geral ao décimo volume das obras completas
de Bohr:
“[…] Ele [Bohr] repetidamente faz-nos recordar do facto de
que a física clássica é um refinamento do uso descritivo da
linguagem comum, isto é, que os conceitos fundamentais da física
clássica são desenvolvidos a partir dos conceitos que fazemos
uso na nossa descrição quotidiana do que nos rodeia.”87
87
“[…] He [Bohr] often reminds us of the fact that classical physics
is a refinement of the descriptive use of ordinary language, i.e. that
the fundamental concepts of classical physics are developed from the
concepts we use in our everyday description of our surroundings.”
Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect
69
Para Bohr, a linguagem da Física Clássica está, sempre
esteve e sempre estará contida na linguagem que utilizamos
quotidianamente.
Ela
quotidianamente
para
existe
dizer
em
o
termos
que
hoje
que
usamos
dizemos
com
“rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”, entre outros.
Termos existentes nas línguas naturais desde tempos muito
anteriores a Maxwell ou a Newton. Termos que, segundo Bohr,
são o material, em estado impuro, a partir do qual se
constitui
o
léxico
fundamental
das
teorias
físicas
clássicas. E, como tal, a linguagem da Física Clássica não
é tanto uma linguagem nova, com conceitos que ela mesmo
teria
gerado,
mas
o
resultado
de
um
refinamento
da
linguagem vulgar.
A chave aqui é – claro está – a palavra “refinamento”.
Palavra que, como assinala Favrholdt, surge repetidamente
nos textos de Bohr nas passagens em que se refere à génese
da
linguagem
da
Física
Clássica.
Mas
Favrholdt
não
esclarece as seguintes questões fundamentais: Para Bohr, de
onde provêm esses termos impuros que estão presentes nas
línguas naturais? E o que quer ele dizer com “refinamento”
da linguagem comum?
A resposta à primeira destas questões surge-nos numa
brevíssima passagem da conclusão de um texto de Bohr 1928:
Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David
Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).
70
“[…] cada palavra da linguagem refere-se à nossa percepção
comum”88
Se habitualmente Bohr se move na penumbra, aqui colocase numa posição clara. Todos os termos da linguagem natural
têm como referente algo que é
dado na nossa
percepção
comum. Mais precisamente, da nossa percepção comum do mundo
físico. É Estamos na presença de uma tese marcadamente
empirista. Poderíamos, até, imaginar Bohr a dizer com Hume
que “todos os materiais do pensamento são derivados da
sensibilidade”89. E, como tal, nada com sentido pode ser
dito
sobre
o
mundo
físico
que
não
remeta,
em
última
análise, para uma percepção recordada deste. Claro está que
a tese de Bohr de uma relação necessária entre as palavras
e
os
elementos
da
percepção
comum
do
mundo
dificilmente sustentável. Bastará que nos
físico
é
recordemos de
termos como “nada” ou “infinito”. Que percepção temos nós
do “infinito”? Ou do “nada”? Bohr poderia replicar dizendonos que não temos a percepção do infinito, que chegamos a
este por um processo de idealização, mas que, na base dessa
idealização, está uma percepção, necessariamente finita, do
88
“[…] every word in the language refers to our ordinary perception.”
Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the
Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue
3050, p. 590. (Tradução minha)
89
Hume, David (1748), Essays Concerning the Human Understanding (
trad. port. De Artur Morão “Investigações Sobre o Entendimento
Humano”, Lisboa: Edições 70 (1989)), p. 25.
71
mundo físico. Mais difícil seria o termo “nada”. Pois,
logicamente, entendendo-se “nada” como referindo-se ao que
é uma ausência de percepção, então, é seria por um lado
contraditório falar-se da percepção do “nada” e, por outro,
difícil seria entender o “nada” como idealização a partir
de uma percepção, inexistente e, em rigor, impossível. O
facto é que Bohr, tanto neste caso como em geral, raramente
se confronta com as dificuldades que podem ser colocadas às
suas teses. Tal como nunca tematiza ou sistematiza o seu
pensamento
sobre
a
Física
Quântica.
Em
defesa
de
Bohr
poder-se-á dizer, simplesmente, que não o faz porque não é
um filósofo. É um físico a pensar sobre a Física. E os
físicos,
tipicamente,
critica”,fazendo
uso
axiomático-dedutivo,
pensam
do
seu
partindo
a
física
bem
de
um
de
forma
conhecido
lugar
“pré-
pensamento
pretensamente
seguro a partir do qual se vai deduzindo sucessivamente as
suas implicações. Talvez por isso, a Bohr baste que seja
evidente – e será isso que é importante aqui focar – que,
por mais distintas que as línguas naturais sejam nas suas
ortografias, nas suas regras de sintaxe e nos seus léxicos,
elas
são
todas
atravessadas
transversalmente
por
um
movimento de abertura ao mundo que nelas se diz e por elas
apenas se pode conhecer e pensar. Sem o saber, Bohr está a
ressuscitar a antiga tese leibniziana (ou se quiser ir
ainda mais longe, cratiliana) segundo a qual as línguas
72
naturais
estão,
desde
a
sua
origem,
marcadas
por
uma
irrecusável abertura ao mundo, ou, como diz Olga Pombo a
propósito de Leibniz, por “imperceptíveis laços que as unem
ao mundo por elas visado”90. Ora, é justamente porque, como
Leibniz, Bohr pensa as línguas naturais como a sede do
sentido
que
ele
pode
defender
que
a
física
não
pode
dispensar os conceitos da física clássica, porque eles nada
mais são do que um “refinamento” dos termos da linguagem
natural, termos esses que, pelo seu lado, se referem sempre
ao mundo através da percepção em que se fundam, ou, por
outras
palavras,
porque
“[…]
cada
palavra
da
linguagem
refere-se à nossa percepção comum”91. Em última análise,
porque
a
Física
tem
necessariamente
que
trabalhar
com
termos que fazem parte da nossa descrição quotidiana do que
nos rodeia, como “rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”,
entre outros.
No entanto, estes termos, no contexto da sua utilização
quotidiana, sofrem de ambiguidades. Por um lado, dizemos,
por exemplo, que “o ar está pesado” ou que “esta caixa é
pesada”, sem distinguir o sentido do termo “pesado” em
90
Pombo, Olga (1997), Leibniz e o Problema de uma Língua Universal,
Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, p.
255.
91
“[…] every word in the language refers to our ordinary perception.”
Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the
Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue
3050, p. 590. (Tradução minha)
73
ambas
situações92.
muito
pesada”
Por
tem
outro
lado,
significado
dizer
apenas
“esta
caixa
relativamente
é
ao
sujeito que profere a frase e para o momento considerado.
Mais tarde, a mesmo pessoa pode considerar que é “leve” o
que antes dizia ser “pesado”. Ou, para um outro, a tal
caixa, no momento inicial, pode ser “pouco pesada”. No
primeiro caso, o termo “pesado” é ambíguo pois pode ser
entendido em diferentes sentidos. No segundo caso, a frase
será vaga de sentido, pois refere-se à qualificação de uma
sensação particular e momentânea. Quando se diz “muito”,
logo se pode perguntar: Mas quanto é “muito”?
E neste
sentido, a frase será vaga, imprecisa.
Em qualquer destes casos não pode existir, para Bohr,
comunicabilidade efectiva. Pois, em ambas as situações não
existe objectividade no que é dito. Como recorda o físico
dinamarquês:
“Por objectividade entendemos uma descrição por meio de uma
linguagem
comum
a
todos
a
partir
da
qual
as
pessoas
podem
comunicar umas com outras no domínio relevante”93
92
Para um físico as duas situações são claramente distinguíveis. No
primeiro caso é feita referência o termo “pesado” refere-se à pressão
do ar. No segundo caso é refere-se ao peso gravítico da caixa.
93
"By objectivity we understand a description by means of a language
common to all in which people may communicate with each other in the
relevant field." Bohr, Niels (1953) citado de Favrholdt, David (1999),
“General Introduction” in Niels Bohr Collect Works, Volume 10:
Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed.
Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha).
74
Bem entendido, a doutrina da objectividade de Bohr é,
como será claro, uma doutrina da inter-subjectividade. Que
se
realiza
em
dois
planos.
Por
um
lado,
no
plano
da
comunhão entre sujeitos da percepção do mundo físico. Por
outro lado, na partilha de uma linguagem comum, isto é, de
uma linguagem vulgar, natural, aberta ao mundo, a partir da
qual
a
física
pode,
por
um
processo
de
“refinamento”,
construir a linguagem da física.
Entende-se, pois, que para Bohr a linguagem da Física
Clássica seja o produto refinado da linguagem vulgar, no
sentido em que teria sido purificada das ambiguidades que
caracterizam
aquela.
Tornando-se
assim
a
ambígua
referenciação ao mundo físico que se verifica nas línguas
vulgares, numa referenciação unívoca a esse mundo. E, na
medida em que os conceitos da Física Clássica são o produto
acabado desse refinamento, dessa operação de conquista da
univocidade,
apenas eles possibilitam que um físico na sua
comunicação
com
os
seus
pares
seja
perfeitamente
compreendido. Isto é, apenas os termos da linguagem vulgar
(enquanto
sede
operação
de
univocidade,
do
sentido)
refinamento
garante
a
depois
que
de
sujeitos
permite
comunicabilidade.
comunicabilidade garante a objectividade.
apurar
E
a
uma
a
sua
apenas
essa
Não se pode pois
dizer que, para Bohr, a objectividade repousa unicamente na
comunicabilidade,
entendida
esta
enquanto
inter75
subjectividade. A objectividade em Bohr tem uma dupla raiz.
Ela funda-se na comunhão de sentido que une os falantes de
uma mesma língua vulgar (porque ela se refere sempre ao
mesmo
mundo)
e
no
refinamento
que
permite
o
acesso
à
fixação unívoca do significado.
Assim,
será
clássicos
da
possuírem
uma
característica
Física,
dupla
e
sua
faceta.
essencial
condição
Por
um
de
dos
conceitos
objectividade,
lado,
terem
como
referente elementos relativos à percepção comum do mundo.
Portanto, ser sempre possível ilustrá-los, isto é, produzir
uma imagem que lhes dê sentido. Ou seja, é ser sempre
possível tornar presente (por via da imaginação, como diria
Kant) uma situação física concreta correspondente ao seu
campo
referencial.
imaginando-se
essa
Seja
recorrendo
situação
física.
à
Por
memória,
outro
seja
lado,
é
também condição da objectividade desses conceitos clássicos
da Fisica o facto de terem conquistado a sua univocidade,
isto é, de terem conseguido a fixação do seu sentido. Terá
sido esse o trabalho realizado, entre outros, por Newton e
Maxwell.
Desta forma, quando um físico utiliza o termo “momento
angular”
na
sua
comunicação
inter-pares,
segundo
Bohr,
todos sabem exactamente o que está a ser dito. Sabem-no,
por um lado, porque dominam a linguagem refinada da Física
Clássica. Sabem-no, por outro lado, porque o conceito de
76
“momento
angular”
recordando-se)
pode
uma
ser
situação
ilustrado
física
imaginando-se
concreta
a
(ou
que
o
conceito se refere, isto é, como diria Kant, porque ao
conceito podemos fazer corresponder uma imagem, ou melhor
uma regra de produção de imagens94. No caso presente, por
“momento angular” entende-se a quantidade de movimento de
um corpo em rotação. Algo que podemos ilustrar imaginando
uma
roda
de
bicicleta
em
movimento.
Quanto
maior
a
tendência de uma roda de bicicleta manter-se em movimento,
maior o momento angular.
Logicamente,
o
mesmo
poderia
ser
dito
para
qualquer
outro conceito da física clássica.
Resta acrescentar que esta tese bohriana de uma conexão
referencial necessária entre os conceitos da Física e os
elementos
concretos
do
mundo
físico
que
comummente
percepcionamos pressupõe a existência desse mundo físico.
Existência
que
será
prévia
à
linguagem
e,
como
tal,
independente desta. Neste sentido, acompanho Popper quando
este afirma:
“[…]
Bohr
era,
basicamente,
um
realista.
Mas
a
teoria
quântica foi para ele, desde o início, um enigma”95
94
É justamente essa a função da imaginação em Kant. Ela produz a
imagem correspondente ao conceito, ou melhor, a regra de construção
dessas imagens.
95
“[…] Bohr was, basically, a realist. But quantum theory had been,
from the very start, a riddle for him.” Popper, Karl (1982), Quantum
Theory and the Schism in Physics, London: Routledge, p. 9.
77
Será ainda cedo para classificar o tipo de realismo que
o pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica envolve96.
Mas talvez seja desde já possível afirmar que “Bohr era,
basicamente, um realista”. Como serão, de um modo ou de
outro, a generalidade dos cientistas antes e depois de
Bohr. Porém, o
contrario
facto de ser realista não impede, pelo
potencia,
que,
tal
como
a
generalidade
dos
grandes físicos da sua época (ou mesmo desde a sua época),
Bohr seja um homem confrontado com um enigma. O mesmo que
se faz eco neste trabalho: qual a natureza dos objectos
quânticos97.
Toda a linguagem em Física, em particular da que é dita
clássica, radica nos conceitos de “onda” e “corpo”. Pois, é
presumido que os objectos físicos assim se distinguem na
sua natureza: ondas e corpos. Falar em “momentum”, “massa”,
“impenetrabilidade”, “amplitude”, “fase” ou “difracção” (só
para
dar
alguns
exemplos
de
termos
fundamentais
que
constituem a linguagem da física clássica) é falar nas
propriedades ora dos corpos, ora das ondas. Neste sentido,
afirma Bohr:
96
Conferir página 153 deste capítulo.
Conferir, por exemplo, Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s
Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 46.
97
78
“Não deve ser esquecido que apenas as ideias clássicas de
partículas materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de
aplicação sem ambiguidades”98
Esta frase leva-nos ao âmago do pensamento de Bohr sobre
a Física. Mais, leva-nos até mesmo ao âmago da própria
Física. Contudo, para o alcançar, há que fazer, uma vez
mais, uma pequena, mas capital, digressão.
2.4. As duas partículas puras da Física Clássica.
É transversal a quase todos os estudos críticos sobre a
Mecânica Quântica, a dificuldade em distinguir de forma
muito clara e precisa os termos “corpúsculo” e “partícula”.
A consequência dessa tão instintiva indistinção leva a que
se imagine ou se julgue as partículas quânticas, como os
electrões, como se fossem pequenos corpos, como se fossem
esferas diminutas. Porém, como aqui já se mostrou o domínio
quântico – e essa é a sua condição de acesso – não é uma
espécie de Liliput.
Gostaria, portanto, de contribuir para
98
“It must not be forgotten that only the classical ideas of material
particles and electromagnetic waves have a field of unambiguous
application”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical
physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum
Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland,
1985, p. 359. (Tradução minha)
79
a
clarificação
entre
os
termos
“corpúsculos”
e
“partículas”.
Por “corpúsculo” julgo que se deve entender “um pequeno
corpo”. Claro está que o termo “pequeno” é relativo e, por
consequência, o termo “corpúsculo” também o será. A Terra
enquanto corpo material é um corpúsculo em comparação com o
Sol.
Mas
uma
bola
de
futebol
será
um
corpúsculo
em
comparação com a Terra. No entanto, reconhecendo embora a
relatividade que afecta este termo, parece legitimo afirmar
que
uma
molécula,
um
átomo
ou
um
núcleo,
a
terem
uma
natureza corpórea, são corpúsculos tendo os humanos como
referencial.
Por seu turno, o termo “partícula” remete para a noção
de “parte mínima”, sem que, necessariamente, se refira a
entidades com propriedades corpóreas. Ou seja, é possível
conceber partes mínimas de entidades não corpóreas. Por
exemplo, uma onda é, em geral, decomponível linearmente em
outras. Isto é, uma onda é, em geral, decomponível em duas
ou mais ondas que adicionadas por sobreposição entre si
resultam na primeira. Destas últimas direi que são partes
da primeira e, na medida em que essas partes de ondas são
por
sua
vez
decomponíveis
em
partes
cada
vez
menores.
Assim, uma onda, tal como um corpo, em geral, é passível de
ser decomposto num conjunto de partes mínimas, ou seja num
conjunto de partículas. Mas já não poderíamos dizer que uma
80
onda
é
composta
por
um
assimetria
percebe-se
partícula.
De
uma
conjunto
a
onda
de
corpúsculos.
Nesta
diferença
entre
corpúsculo
eu
dizer
que
posso
ela
e
tem
partículas. Mas não posso dizer que ela tem corpúsculos.
Isto
mostra
que
o
conceito
de
corpúsculo
esta
necessariamente ligado ao conceito de parte de um corpo.
Pelo
contrario
o
conceito
de
partícula
não
obriga
a
referência ao corpo. Um corpo pode ter partículas mas uma
onda jamais poderá ter corpúsculos. Portanto, enquanto o
termo
“corpúsculo”
nos
remete
necessariamente
para
a
natureza dos objectos físicos, o termo “partícula” remete
unicamente para a relação mereológica entre um todo e as
suas partes. Por consequência, posso dizer que uma onda
pode ter partículas sem que isso constitua uma contradição.
E,
deste
modo,
“partícula”
e
literatura,
em
não
“onda”
geral,
é
verdadeira
que
é
sobre
a
oposição
tão
vulgar
a
Mecânica
entre
encontrar
Quântica.
na
A
oposição, de facto, far-se-á entre “corpo” e “onda”. Ou, em
particular, no caso de corpos pequenos, entre “corpúsculo”
e “onda”. Algo que só é cuidado em alguma da literatura
filosófica
de
inspiração
francesa
sobre
a
Mecânica
Quântica99. Serve esta distinção principalmente para tornar
99
Por exemplo, Bachelard ao longo da sua obra refere-se sempre a
corpúsculos. O mesmo sucede, embora com flutuações em D'Espagnat
(conferir D’Espagnat (2006), On physics and philosophy, Princeton:
Princeton University Press.) Porém, nenhum dos dois estabelece a
distinção entre corpúsculos e partículas.
81
claro que as ondas, tal como nos corpos admitem partes
sucessivamente mais simples. Ou seja, a relação mereológica
linear que atribuímos aos corpos, quando se afirma que um
corpo é o compósito aditivo de
paralelo
nas
ondas.
Por
outro
corpúsculos, tem o seu
lado,
desta
relação
mereológica é permitido pensar num processo de decomposição
sucessivo dos corpos ou das ondas, em partes cada vez mais
simples. Sucessão levada ad infinitum até se alcançar a
mais simples das partes de cada um deles. Isto é, aquela
que não pode ser decomponível, mesmo em pensamento. Algo a
que designarei por “partícula pura”, visto ser a parte sem
partes,
uma
entidade
somente
obtenível
por
um
processo
mental pensável, isto é, uma entidade ideal ou uma ideia.
No caso dos corpos, essa partícula pura é a ideia de corpo
pontual. No caso das ondas, essa partícula pura é a ideia
de
onda
plana
sinusoidal.
Pois,
como
Fourier
mostrou,
qualquer onda é decomponível em ondas planas sinusoidais.
Por fim, a meu ver, as teorias físicas são definíveis
como
a
procura
de
uma
resposta
precisa
a
um
conjunto
determinado de questões fundamentais. A Mecânica Clássica
pode ser definida como a procura da resposta precisa a duas
questões dirigidas, obviamente, aos objectos físicos: onde
está?; para onde vai? (ou, de onde vem?) Na tal linguagem
vulgar que usamos descuidadamente para descrever o que nos
rodeia
poderíamos
dizer
que
perguntar
“onde
está”
é
82
procurar saber a localização. E, perguntar “para onde vai é
procurar
saber
“movimento”
o
só
movimento.
nos
permitem
Porém,
“localização”
responder
às
e
questões
características da Mecânica de forma ambígua. Posso dizer
que
um
livro,
por
exemplo
“A
Crítica
da
Faculdade
do
Juízo”, está na segunda prateleira entre a “A Crítica da
Razão
Pura”
e
o
“Opus
Postumum”
e
assim
dizer
a
sua
localização. Contudo, não estou a dizer precisamente onde
está. As páginas respeitantes à introdução não estarão,
precisamente,
na
mesma
localização
que
as
páginas
que
constituem a conclusão. Isto é, por terem espessura, não
estarei
em
condições
de
dizer
precisamente
a
distância
entre dois destes livros. A distância entre capas será
diferente da distância entre contracapas.
Poderei igualmente dizer que retirarei um desses livros
na direcção do cimo da única mesa da sala e assim dizer o
seu movimento desde a estante. Porém, não estarei a dizer
precisamente “para onde vai”. E, em particular, não estarei
em condições de dizer quanto tempo levará o livro no seu
percurso entre a estante e o cima da mesa.
Dizer precisamente “onde está” é dizer a posição. Dizer
precisamente “para onde vai” (ou “de onde veio”) é dizer o
momentum. Se a Mecânica se caracteriza pela procura da
resposta às referidas questões, então um sistema físico –
constituído por um objecto físico, por exemplo - para a
83
Mecânica Clássica, fica completamente definido sabendo-selhe a posição e o momentum. O que é, de resto, um teorema
bem conhecido e
que aqui é reencontrado, não
pela via
formal, como é tradicional, mas por uma via que se poderá
considerar conceptual.
Por
outro
lado,
é
relativamente
a
pedras,
livros
ou
bolas que dizemos que estão e vão. Quer dizer, não as
pedras,
os
livros
indiferenciados,
ou
as
bolas
abstractos,
mas
isentos
unicamente
de
corpos
qualidades,
de
diferenciações internas. Significa isto que a Mecânica tem,
como seu objecto privilegiado, os corpos. E, por essa via,
não admirará que a grande metáfora da Mecânica Clássica
seja o jogo de bilhar. No qual saber “onde” e “para onde” é
tudo o que um jogador tem a considerar. É como se todas as
bolas
do
inertes,
bilhar
como
suficientemente
fossem
se
iguais,
fossem
inchados
para
meros
se
equivalentes.
pontos
deixarem
Corpos
matemáticos
tocar
pelo
exterior. É por isso que, a partir deste jogo, quase os
todos
os
conceitos
da
Mecânica
Clássica
podem
ser
ilustrados.
Pois, como bem sabem os jogadores de bilhar, mesmo a
bola tem que ser pensada na sua relação à posição. Se há
pintas brancas no pano verde do campo de jogo para indicar
a posição em que as bolas de bilhar devem colocadas, é
porque se pretende assinalar a bola, na sua posição, tem
84
que ser reduzida à condição de ponto. O jogo de bilhar pode
prolongar ainda o seu estatuto de metáfora se pensarmos que
o jogador tem como objectivo central a previsão precisa do
movimento das bolas de bilhar na sua quantidade e sentido.
Mas para esse movimento, de quantidade e sentido preciso,
não
há
na
língua
natural
uma
palavra
especifica.
Pelo
contrario o físico, depois de reduzir as pedras, os livros
e as bolas ao conceito de corpo e depois de reduzir esta a
um
ponto
material,
possui
ainda
um
termo
técnico
que
identifica com precisão o movimento e o sentido desse ponto
material: o momentum. Ou seja, a Mecânica constitui-se pala
redução dos seres concretos do mundo natural aos corpos
abstractos e indiferenciados e destes àquilo que, aqui,
proponho
em
Newton
designar por “partícula pura dos corpos”. O que
surge
como
“partícula
material”
ou
“massa
pontual”100. Por outras palavras, a mecânica faz-se pela
redução dos objectos na sua concretude (pedras, livros,
etc.) a entidades abstracta e inertes, isto é, a corpos.
Mas, o movimento dessa redução, a sua tendência por assim
dizer inercial, vai prolongar-se até que do corpo fiquemos
apenas com o ponto.
Por sua vez, a meu ver, o Electromagnetismo Clássico
pode ser definido pela procura da resposta precisa a uma
única questão: qual a flutuação do campo electromagnético?
100
Conferir, capítulo III, página 225.
85
Existe aqui uma
questões
assimetria na
fundamentais
entre
quantidade e no
o
tipo de
Electromagnetismo
e
a
Mecânica Clássica. É uma assimetria relevante. Que, para
já, importa somente aqui indicar, sem ainda a explorar ou
desenvolver.
A
esta
assimetria
voltaremos
no
próximo
capítulo. No entretanto, importa para já assinalar que a
questão
desdobrada
fundamental
em
duas:
do
ao
Electromagnetismo
longo
de
um
pode
determinado
ser
tempo,
quantas vezes a flutuação do campo electromagnético perfaz
um ciclo, ou seja, realiza uma oscilação completa?; Qual a
magnitude dessa oscilação?
Perguntar pela quantidade de ciclos ao longo do tempo
será
procurar
saber
o
ritmo
da
oscilação.
Ou
a
sua
frequência, mas esta entendida de forma vaga. E perguntar
pela
magnitude
da
oscilação
será
procurar
saber
o
seu
tamanho. No entanto, “ritmo da oscilação” e “tamanho da
oscilação” são termos ambíguos. De uma corda a vibrar, isto
é, a oscilar entre dois “pontos” fixos, posso dizer que
pulsa com um ritmo maior ou menor. A corda do mais grave de
um violoncelo oscila menos vezes, num mesmo tempo, do que a
corda do mais agudo de um violino. Porém, não poderei dizer
precisamente o quão um oscila mais do que o outro. Por
outro lado, posso dizer que uma oscilação é grande ou
pequena de tamanho, tendo-me como referencial. Mas com o
86
termo “tamanho” não estou a dizer precisamente a magnitude
da oscilação.
Dizer precisamente “a quantidade de oscilações completas
num certo tempo” é dizer-lhe a “frequência temporal”. Isto
é, a quantidade
precisamente
a
de ciclos por
“magnitude
da
unidade de tempo. Dizer
oscilação”
é
dizer-lhe
a
“amplitude”. Isto é, a distância entre o eixo da oscilação
e o seu ponto mais elevado. Portanto, o electromagnetismo
tem como objecto as ondas, pois é relativamente a estas que
perguntamos
magnitude.
pelo
E
seu
não
Electromagnetismo
ciclo
admirará
seja
a
oscilatório
que
a
flutuação
e
grande
da
pela
sua
metáfora
superfície
de
do
um
líquido. As águas ordeiras de um lago, por exemplo. O campo
electromagnético
é,
justamente,
pensado
na
literatura
científica a partir da analogia com a superfície de um
líquido. Porém, só se pode dizer precisamente qual o ciclo
de algo se esse ciclo se repetir constante e eternamente. E
da mesma forma só se pode dizer precisamente a frequência e
a
amplitude
de
uma
onda
se
esta
for
uma
onda
plana
sinusoidal. Ou seja, também o electromagnetismo opera uma
redução semelhante àquela que, como vimos, a mecânica leva
a cabo na passagem do objecto concreto ao corpo e deste ao
ponto. Para o electromagnetismo, é necessário passar das
ondas em geral para a ideia de uma partícula pura das
87
ondas, que em Electromagnetismo toma a designação “onda
electromagnética”.
Ou seja, podemos pois dizer que o corpo pontual (ou
partícula material) e a onda plana sinusoidal (ou onda
electromagnética) são os arquétipos, respectivamente, dos
corpos e das ondas.
É certo que a palavra arquétipo remete para uma relação
entre algo mais rico (o arquétipo) e algo mais pobre (a
sombra, a coisa, a materialidade). Ora, neste caso, é o
corpo (mais rico) que é reduzido à partícula material (
mais pobre)e a onda (mais rica) que é reduzida à onda plana
sinusoidal (mais pobre). Neste sentido seriam os corpos e
as ondas os arquétipos e não o contrario. No entanto, ao
inverter
esta
ordem
platónica
que
a
palavra
arquétipo
transporta nas suas entranhas, pretendo chamar a atenção
para
o
encontro
da
Física
com
a
matemática
que
neste
particular se opera. É porque quer matematizar o mundo que
a Física o reduz. Num primeiro passo, a corpos e ondas. E,
num segundo passo, reduz estes
corpos e estas
ondas a
partículas puras (tanto de corpos como de ondas). Só assim,
com esta dupla redução, tem-se julgado que a Física está em
condições de poder matematizar o mundo. Surpreendentemente,
seria possível inverter os termos desta relação. Poderíamos
dizer que é porque a Física reduz os seres do mundo a
corpos e ondas e estes a partículas puras, que se coloca em
88
condições de iniciar a grande operação de matematização do
real.
No
primeiro
caso,
o
motor
do
desenvolvimento
da
física é a vontade de matematizar. É essa vontade que está
na origem da redução do concreto ao matemático. No segundo
caso, é porque já foi operada essa redução, porque o mundo
deixou de ser povoado por objectos coloridos, espessos,
preenchidos de qualidades que eu posso olha-los como puros
arquétipos.
Em qualquer dos casos, quando Bohr afirma que “apenas as
ideias
clássicas
electromagnéticas
ambiguidades”101,
de
partículas
têm
um
afirma-o,
materiais
campo
de
justamente,
e
ondas
aplicação
porque
sem
apenas
relativamente a estas se pode responder, precisamente, às
questões
que
caracterizam
tanto
a
Mecânica,
como
o
Electromagnetismo. Só de um corpo pontual se poderá dizer
que
possui
sinusoidal
uma
se
posição
poderá
precisa.
dizer
que
Só
de
possui
uma
uma
onda
plana
frequência
temporal precisa. Isto é, só um corpo pontual e uma onda
harmónica plana possuem um valor numérico bem determinado
nas suas propriedades.
Recapitulemos. Para Bohr, como vimos, existe um Mundo
físico que comummente percepcionamos. Mundo físico a que
nos referimos quando falamos em “localização”, “movimento”,
“ritmo da oscilação”, “tamanho da oscilação”, etc. Termos
101
Conferir página 79, neste mesmo capítulo.
89
que são transversais às línguas naturais e é com os quais
verbalizamos a percepção do Mundo físico. Isto é, são os
termos com os quais dizemos as propriedades dos corpos e
das
ondas.
Contudo,
linguagem
natural
permitem
responder
como
são
também
ambíguos.
com
vimos,
E,
em
precisão
os
termos
da
particular,
não
questões
que
às
caracterizam a Mecânica e o Electromagnetismo.
Neste
sentido,
essencialmente,
da
oscilação”,
e
ao
“momentum”,
à
dos
transformação
“movimento”,
quantitativamente
“ritmo”
linguagem
da
“localização”,
“tamanho
a
de
“ritmo
em
termos
“frequência
que
ao
e
como
oscilação”
se
ou
referem
“movimento”,
Respectivamente,
temporal”
resulta,
termos
da
“localização”,
“tamanho”.
físicos
ao
“posição”,
“amplitude”.
Esta
transformação é, como vimos, aquilo a que Bohr designa por
refinamento.
Tornar
propriedades,
um
discurso
portanto,
que
se
qualificativo,
refere
num
às
discurso
referente à quantificação, ao quantitativo. E neste sentido
poder-se-ia
obriga
a
afirmar
passar
que
da
a
linguagem
linguagem
da
Física
natural
à
Clássica
linguagem
matemática. Enquanto esta (a linguagem natural) se refere à
realidade física que comummente experienciamos, aquela (a
linguagem da física) referir-se-ia unicamente à depuração
quantitativa dessa realidade.
90
Como
consequência
desta
transformação,
os
conceitos
clássicos são representáveis por símbolos de valor numérico
variável. Ou
simplesmente, por uma variável. Portanto, a
univocidade dos conceitos clássicos é assegurada pelo facto
de
elas
serem
susceptíveis
de
tradução
em
formalismos
matemáticos e sistemas de equações.
Assim,
os
físicos
sabem
precisamente
do
que
estão
a
falar quando falam em “momento angular” porque existe uma
fórmula
matemática
que
o
define.
No
entanto,
a
objectividade dos conceitos clássicos não se esgota na sua
univocidade, isto é, na sua possibilidade de tradução em
linguagem
matemática.
Essa
objectividade,
como
também
vimos, está fundada na abertura ao mundo que caracteriza a
linguagem
natural.
Como
vimos,
é
aí
que
os
conceitos
clássicos encontram o seu sentido. Portanto, quando Bohr
afirma
que
materiais
“apenas
e
ondas
as
ideias
clássicas
electromagnéticas
têm
de
um
partículas
campo
de
aplicação sem ambiguidades” ele não está a referir-se ao
problema da objectividade dos termos da Física Clássica,
mas à sua univocidade. O que Bohr está a dizer é que toda a
linguagem da Física, ao querer-se (ao exigir-se) objectiva,
tem como referente, necessariamente, o representante ideal
dos corpos e das ondas: o corpo pontual e a onda plana
sinusoidal. Em, particular, as partículas materiais e as
ondas
electromagnéticas.
Na
verdade,
apenas
estes
91
arquétipos garantem a univocidade dos conceitos clássicos.
Pois, a univocidade dos conceitos clássicos é assegurada
pelo facto das propriedades quantitativas serem traduzíveis
em símbolos matemáticos.
Por fim, se Bohr afirma que a linguagem de Newton e de
Maxwell será sempre a dos físicos, será porque julga que o
mundo
físico,
necessariamente,
só
pode
ser
descrito
em
função ou das propriedades dos corpos, ou das propriedades
e das ondas. Pois, a Mecânica Clássica é a Física dos
objectos físicos com propriedades corpóreas. E, por outro
lado, o Electromagnetismo Clássico é a Física dos objectos
físicos com propriedades ondulatórias.
2.5. A Pentadoxia.
Do que acabamos de ver no paragrafo anterior resulta
que, a nosso ver, é legitimo afirmar que o pensamento de
Bohr
sobre
pressupostos.
a
Mecânica
Pressupostos
submete à critica, isto é,
Quântica
que
se
Bohr
funda
não
em
explicita
cinco
nem
extraídos daquilo que o senso
comum julga serem os objectos físicos. Neles se suporta o
edifício da Mecânica Quântica e a generalidade das leituras
filosóficas que sobre ela tem sido propostas e que. em
92
geral, são designadas por "Filosofia da Mecânica Quântica".
Cinco pressupostos a que designarei por pentadoxia.
1) Os
objectos
físicos
distinguem-se,
quanto
à
sua
detentores
de
natureza, em ondas e corpos.
2) Todos
os
objectos
propriedades.
E
físicos
são
neste
sentido,
físico
é
diz-se
que
são
substanciais.
3) Qualquer
objecto
homeómeras,
isto
é,
em
decomponível
partes
cuja
em
partes
natureza
é
idêntica ao todo de que são partes.
4) Todas propriedades quantitativas dos objectos físicos
têm, intrinsecamente, um valor bem determinado.
5) Quanto
à
enquanto
sua
modalidade,
possíveis,
são
os
objectos
idênticos
físicos,
aos
objectos
físicos enquanto actuais. E, nessa actualização os
objectos físicos não alteram a sua natureza.
Estamos perante um conjunto de pressupostos que tem sido
admitidos como óbvios, isto é, que não tem sido objecto de
discussão critica, nem do lado dos produtores da mecânica
quântica,
nem
do
lado
daqueles
que
procuram
pensar
os
adquiridos da mecânica quântica. Percorrendo-se as páginas
da
literatura
encontramos
filosófica
quem
duvide
sobre
que
a
Mecânica
Quântica
não
os
objectos
físicos
são
93
distinguíveis quanto à sua natureza em ondas e corpos102.
Pelo contrário, esta distinção é sempre tomada como ponto
seguro de partida. Ao dizer-se, como se disse no capítulo
anterior,
que
filosófica
todas
sobre
vias
a
existentes
mecânica
na
quântica
literatura
se
reportam
directamente ao labiríntico dualismo onda-corpúsculo, isto
é,
o
dão
quântico,
como
é
condição
porque,
de
acesso
precisamente,
ao
próprio
todas
domínio
essas
vias
pressupõem que os objectos físicos se distinguem, quanto à
sua
natureza,
em
ondas
e
corpos.
O
que
é
deveras
surpreendente. Como se explica uma aceitação tão acrítica e
tácita que os objectos físicos não possam ser concebidos
senão
como
ondas
ou
como
corpúsculos?
Por
que
não
se
encontra uma procura por uma concepção de objectos físicos?
De
forma
igualmente
especialistas desta área
surpreendente,
todos
os
parecem saber o que é um corpo e
o que é uma onda. Dois conceitos que nunca se encontram
analisados, embora constantemente evocados.
É igualmente assumido103 que a distinção entre onda e
corpo reside numa clara distinção entre as propriedades
destes dois tipos de objectos físicos. É defendido, amiúde,
que os corpos são entidades que possuem a propriedade da
102
Conferir, por exemplo, Epperson, Michael (2004), Quantum Mechanics
and the Philosophy of Alfred Whitehead, Nova Iorque: Fordham
University Press, p. IX.
103
Conferir, por exemplo,
Aerts, Diederik (1998), “The Entity and
Modern Physics” in Interpreting Bodies (Ed. Elena Castellani),
Princeton: Princeton University Press, p.226.
94
localização enquanto as ondas são entidades que possuem a
propriedade de interferência à distância, seja com outras
ondas, seja consigo mesmo. Em resumo, esta presumível e
clara diferença entre corpo e onda nunca é tematizada. Ela
é apresentada como se todos soubessem claramente em que
consiste.
De forma ainda mais radical, é presumido que ondas e
corpos são entidades detentoras de propriedades, isto é,
que
são
substâncias.
Sendo
que,
por
substancia
é
invariavelmente suposto aquilo que subjaz às qualidades,
aquilo
que
qualidades104.
as
suporta,
Trata-se
de
o
suporte
uma
metafísico
identificação
das
demasiado
rápida que passa ao lado, e aparentemente ignora, que o
conceito de substância é um dos mais antigos e trabalhados
conceitos da filosofia. Como explicar este esquecimento?
Como
compreender
este
quase
recalcamento?
Duas
razões
podem, a meu ver, ser apresentadas. Uma tem a ver com a
História da Física, nomeadamente com a forma como Newton
incorporou o conceito de substância na Física, como se verá
no próximo capítulo. Uma segunda ordem de razões tem a ver
com o facto de o conceito de substância como suporte de
propriedades ser aquele que mais frontalmente é desafiado
pela mecânica quântica. Pois, como foi visto no capítulo
104
Conferir, por exemplo, Falkenburg, Brigitte
Metaphysics, Berlim: Springer, p. 120, p.331.
(2007),
Particle
95
anterior, a dupla natureza dos objectos quânticos desafia
esse conceito de substância.
Assume-se,
igualmente,
que
o
todo
é
decomponível
em
partes cuja sua natureza é a igual à natureza do todo de
que essas partes são parte. E como tal, numa aproximação
quase inevitável às teses atomistas, podemos pensar num
processo de decomposição continuada até que cheguemos à
ideia de uma parte sem partes. Isto é, a parte simples ou o
que designei por partícula pura. Nesta ordem de ideias,
havendo
duas
espécies
de
objectos
físicos,
haverá
duas
espécies de partículas puras ou arquétipos: nos corpos, a
partícula material ou corpo pontual; nas ondas, a onda
plana sinusoidal.
Mas, ao dizer-se que a parte tem a mesma natureza do
todo,
então temos que admitir que as propriedades são as
mesmas
tanto
para
o
todo
como
para
a
parte.
E
neste
sentido, o todo surge como um mero agregado de partes.
Assim, é porque se assume que a parte é da mesma natureza
do todo, que podemos dizer a velocidade do todo indicando a
velocidade
da
parte.
Deste
modo,
o
todo
pode
ser
representado pela parte. Em particular, pela partícula pura
uma vez que
só estas podem dar resposta, sem ambiguidades,
às questões que caracterizam cada uma das teorias físicas.
Ainda por outro lado, ao caracterizar-se a Física como a
procura de resposta precisa a questões como “onde está?”,
96
assume-se105 que esta questão terá uma resposta. Isto é,
que, intrinsecamente, num dado momento, um objecto físico
terá uma posição e um momentum ou uma frequência e uma
amplitude bem determinadas. Ou seja, que a cada instante,
os objectos físicos possuem valores bem determinados nas
suas propriedades quantitativas.
Por fim, quanto à modalidade, na extensão de se aceitar
que a cada instante os objectos físicos são completamente
determinados
nos
valores
das
suas
propriedades
quantitativas aceita-se que as propriedades manifestadas
num acto de medição existem, antes desta, em potência no
objecto. E, como tal, caracterizando-se os corpos e as
ondas pelas propriedades que são detentores, assume-se que
na
actualização
de
uma
dessas
propriedades
não
existe
alteração da natureza. O corpo actualizado é idêntico, isto
é, tem a mesma natureza, do corpo enquanto possibilidade.
Em conclusão, os conceitos clássicos da Física e, como
tal, a própria Física desde Newton, radicam nestes cinco
postulados extraídos de um “senso comum” sobre a natureza
dos
objectos
físicos.
Senso
comum
que,
como
vimos,
encontramos com espanto e choque na textura onde se suporta
grande
parte
Quântica.
da
literatura
Especialmente
filosófica
quando
esta
sobre
se
a
Mecânica
centra,
como
105
Conferir, por exemplo, Rae, Alastair (2004), Quantum Physics:
illusion or reality?, (2ed) , Cambride: Cambridge University Press, p.
106.
97
veremos, no chamado problema da medição106 e nos decorrentes
debates sobre as interpretações, o realismo ou a violação
das
relações
de
Bell.
Senso
comum
que
em
Bohr
é
transcendentalizado. Pois, como já vimos, ao entender-se
por experiência o que é comunicável, e ter como a condição
prévia
da
clássicos,
comunicabilidade
então
este
a
senso
utilização
comum
dos
conceitos
torna-se
a
própria
condição de possibilidade da experiência em geral. Por esta
via
creio
Quântica
que
deve
o
pensamento
ser
de
classificado
Bohr
de
sobre
a
Mecânica
“transcendentalista”.
Contudo, e como bem ressalva Kauark-Leite107, Bohr não é um
kantiano. Afinal, embora os conceitos clássicos da física
possuam um carácter apriorístico, não são puros. Pois, na
sua
génese,
experiência
são
comum
extraídos
do
mundo
da
experiência.
físico.
Uma
De
experiência
uma
que
Newton e Maxwell conceptualizaram na construção das suas
teorias, fixando-lhes uma semântica unívoca.
Considerando
que
todo
pensamento
de
Bohr
sobre
a
Mecânica Quântica é suportado, no seu mais fundamental, na
pentadoxia dos objectos físicos da Física desde Newton,
percebe-se agora que a doutrina dos conceitos clássicos não
é nada mais que a expressão dessa ontologia implícita. E
por via desta última os conceitos clássicos da física são
106
Conferir, neste capítulo, página 156.
Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy
and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas,
v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.249.
107
98
os únicos objectivos. São os únicos que podemos conhecer de
forma clara e distinta. Para Bohr, os físicos só sabem
precisamente do que estão a falar quando falam em posição,
velocidade, momentum, massa, frequência temporal, amplitude
e todos aqueles que se derivam destes. E, consequentemente,
alicerçando-se na pentadoxia dos objectos físico, para Bohr
é inescapável concluir que a linguagem dos físicos será
sempre a linguagem da Física Clássica.
No entanto, podemo-nos perguntar: E o que sucede com
conceitos da Física Quântica como, por exemplo, “spin”? A
realidade é que, segundo Bohr, não sabemos exactamente do
que
estamos
a
falar
quando
falamos
de
“spin”.
O
mais
compreensível que podemos dizer é que se trata de algo
análogo ao momento angular. Isto é, é que se refere à
quantidade de movimento de algo a rodar sobre si mesmo.
Como
um
imaginar
pião.
que
Ou
um
uma
bola.
electrão
Seriamos
seria
assim
esférico
e
tentados
sentir
a
que
estamos a compreender o que dizemos por “spin”. Apenas para
sermos
desiludidos
quando
constatamos
que,
segundo
a
Mecânica Quântica, os valores possíveis do spin para um
electrão seriam ½ ou – ½. Isto é, que o electrão dá uma
volta completa sobre si mesmo quando roda 180º. Uma frase
sem sentido. Neste sentido, quando falamos de “spin” Bohr
dir-nos-á que não sabemos realmente do que falamos. Apenas
podemos estabelecer uma analogia com algo que sabemos o que
99
é, como o “momento angular”. Ou seja, o conceito quântico
de spin, como todos conceitos da Mecânica Quântica são
generalizações de conceitos da Física Clássica. No conceito
de presente, do conceito de “momento angular”. Esta é a
função do nível conceptual do princípio da correspondência.
Esta é a via pela qual a Mecânica Quântica constitui uma
generalização da Física Clássica. E, por esta razão, o
princípio da correspondência tem um carácter instrumental.
Poderemos
agora
fazer
o
caminho
inverso
e
observar
o
princípio da correspondência em toda a sua extensão.
2.6. Princípio da correspondência: nível conceptual
Como já aqui foi visto, se é possível estabelecer uma
correspondência
Teorias
geral
Físicas
entre
Clássicas,
a
Mecânica
é-o,
Quântica
principalmente,
e
as
pelos
conceitos de onda e corpo. O conceito de onda no caso da
correspondência
entre
Electromagnetismo.
correspondência
Clássica.
O
entre
Portanto,
a
Mecânica
conceito
a
de
Mecânica
por
um
Quântica
corpo
Quântica
lado,
no
e
podemos
a
e
o
caso
da
Mecânica
tomar
a
correspondência formal como resultante da existência de uma
correspondência conceptual a que esse formalismo se refere.
100
Por
outro,
podemos
correspondência
linguagem
da
entender
estabelece
Física
que
uma
Quântica
o
princípio
correspondência
e
a
linguagem
da
da
entre
Física
Clássica. Correspondência esta que atinge apenas todo o seu
alcance no contexto da Mecânica Quântica.
A doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos
revela-nos que, mais do que uma referência numérica lá no
limite onde a constante de Planck pode ser “ignorada”, e
mais
do
que
uma
analogia
parcial
entre
formalismos,
o
princípio da correspondência estabelece como condição, a
priori,
que
uma
qualquer
teoria
física,
e
a
Mecânica
Quântica em particular, tem de ser constituída de modo a
que
os
seus
conceitos
da
conceitos
Física
tenham
Clássica.
correspondência
Pois,
só
através
com
os
destes
últimos o formalismo de uma teoria física poderá adquirir
significado. Só através destes haverá objectividade. Esta
mesma leitura do princípio é nos dada por Bohr na seguinte
afirmação:
“[…]
a
necessidade
de
fazer
um
uso
extensivo
[…]
dos
conceitos clássicos, dos quais depende, em última análise, a
interpretação de toda a experiência, deu origem à formulação do
chamado princípio da correspondência, que expressa os nossos
101
esforços de utilizar todos os conceitos clássicos dando-lhes uma
adequada reinterpretação quantum-teórica”
108
Ou dito na forma que surge com mais frequência nas suas
obras:
“O princípio da correspondência expressa a tendência de se
fazer
uso,
durante
o
desenvolvimento
sistemático
da
teoria
quântica, de todas as características das teorias clássicas numa
transcrição racional apropriada ao contraste fundamental entre o
postulado quântico e as teorias clássicas”.109
Através
desde
entendimento
do
princípio
da
correspondência, a que poderemos chamar de nível conceptual
do Princípio da Correspondência, Bohr recusa que a Mecânica
Quântica
possa
ser
aplicada
ao
domínio
das
teorias
clássicas ou mesmo que as possa vir a substituir. Pelo
108
“[…] the necessity of making an extensive use, nevertheless, of the
classical concepts, upon which depends ultimately the interpretation
of all experience, gave rise to the formulation of the so-called
correspondence principle which expresses our endeavours to utilize all
the classical concepts by giving them a suitable quantum-theoretical
re-interpretation.” Bohr, N. (1929), “Introductory Survey to ”The
Atomic Theory and the description of Nature” in Niels Bohr Collected
Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J.
Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 286. (Tradução minha)
109
“The correspondence principle expresses the tendency to utilise in
the systematic development of the quantum theory every feature of the
classical theories in a rational transcription appropriate to the
fundamental contrast between the postulates and the classical
theories.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Niels
Bohr Collected Works, Vol. 5: The Emergence of of Quantum Mechanics
(Mainly 1924–1926), Stolzenburg, Klaus ed., Amsterdam: North-Holland,
1984, p. 277. (Tradução minha)
102
contrário, o que defende é que a Mecânica Quântica deve ser
entendida como uma teoria que se afasta o mínimo possível
das teorias físicas clássicas. Ou melhor, que a Mecânica
Quântica é, de algum modo, uma generalização das teorias
clássicas da física. Como se defende aqui, que a Mecânica
Quântica
é
uma
generalização
as
teorias
racional
das
teorias
clássicas.
Mas
se
físicas
clássicas
se
constroem
no
suposto implícito que os objectos físicos são ondas ou
corpos, como continuar a ser “clássico” se os objectos
quânticos não são nem ondas, nem corpos? É este o dilema
que consumiu Bohr durante os anos de 1926 a 1928. E é com o
propósito
de
lhe
dar
resposta
que
Bohr
propõe
o
seu
“princípio” da complementaridade.
2.7. O “Princípio” da Complementaridade.
O chamado “princípio” da Complementaridade encontra-se
estabelecido, nas suas linhas directoras, no já mencionado
artigo de Niels Bohr crismado de “The Quantum Postulate and
the Recent Development of Atomic Theory”, de Abril de 1928.
No final do primeiro parágrafo desse artigo, Bohr afirma
sobre a constituição da teoria quântica:
103
“[…] a sua essência pode ser expressa no chamado postulado
quântico
que
atribui
a
qualquer
processo
atómico
uma
descontinuidade essencial […] completamente estranha às teorias
clássicas e simbolizada pelo quantum de acção de Planck”110.
Importa recordar que o chamado postulado quântico (ou
hipótese
Teoria
quântica
Quântica
de
Planck)
Antiga.
encontra-se
Consistindo
parte de Planck, que a energia
atómico
não
sucede
de
forma
na
na
génese
postulação,
radiada por um
contínua
mas
em
da
por
sistema
emissões
descontínuas111. Postulado a partir do qual (e do modelo
atómico de Rutherford) Bohr concebeu o modelo quântico do
atómico. Inaugurando-se, assim, a Teoria Quântica Antiga.
Por sua vez, é uma consequência do postulado quântico
que,
ao
nível
atómico,
qualquer
interacção
entre
dois
sistemas não pode ser minimizada de um modo contínuo até um
valor tão arbitrariamente pequeno quanto se pretenda. Mesmo
que os tomemos como sistemas físicos ideais. Isto é, como
parcelas
do
mundo
físico
isoladas
e
constituídas
por
110
“[…] its essence may be expressed in the so-called quantum
postulate, which attributes to any atomic process an essential
discontinuity […] completely foreign to the classical theories and
symbolized by Planck’s quantum of action”, Bohr, N. (1928), “ The
Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in
Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 580. (tradução minha)
111
Conferir página 30 deste mesmo capítulo.
104
partículas puras. Pois, afirma Bohr, pelo dito postulado é
atribuído a “qualquer processo atómico uma descontinuidade
essencial”. As interacções entre sistemas atómicos podem
apenas ser minimizadas de um modo descontínuo, por unidades
discretas, degrau-a-degrau, quanta por quanta, até ao valor
limite de um quantum. Ou seja, até ao valor do quantum de
acção de Planck. E nunca menos que este. Valor que, como já
foi aqui referido, embora seja quantitativamente mínimo é
tremendamente
significativo
à
escala
das
interacções
atómicas e subatómicas.
Por outro lado, é preciso ter presente dois aspectos.
Em
primeiro
lugar,
qualquer
observação
de
um
fenómeno
atómico só é possível por intermédio de um instrumento. A
que Bohr, neste artigo, designa por “agente de observação”.
Mas que em, rigor, deveria designar por “instrumento de
medição”. Pois
entendido
o termo “observação” pode, erroneamente,
como
se
referido
a
algo
visualizável.
A
distinguir ambas está a distinção entre “ver” (visualizar)
e “ver que” (observar)112. Os “fenómenos” atómicos, pela sua
intrínseca
óptico.
pequenez
Seja
construindo-se
da
um
estarão
para
sensibilidade
hipotético
(e
além
visual
do
nosso
directa.
idílico)
limite
Seja,
microscópico
112
Distinção que é trazida do trabalho de Ribeiro, Cláudia (2009),
Electrões inobserváveis e estrelas invisíveis, Lisboa: Centro de
Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa – colecção Thesis, p.
112.
105
óptico
que
servisse
como
um
fiel
ampliador
da
nossa
acutilância visual. Não há como visualizamos um fenómeno
atómico. São-nos invisíveis. Tal como nos são inodoros,
insonsos, inaudíveis e intangíveis. Podemos, no entanto,
medir os fenómenos através de um instrumento de medida.
Como,
por
electrões.
exemplo,
E
dos
um
microscópio
resultados
da
de
varrimento
medição
dizer
de
que
observamos. Isto é, dar uma interpretação aos resultados da
medida.
Portanto,
observação
de
um
fenómeno
atómico
corresponde, na verdade, a uma medição (ou um conjunto de
medições) de um sistema atómico. Se existisse um gato à
escala atómica – um nano-gato, por exemplo – ele só por nós
seria observado se se medissem as posições das suas partes
e lhe traçássemos a figura, como fazem as crianças com os
desenhos de unir os pontos. Não nunca o veríamos. Em suma,
Bohr
não
está
a
entender
por
“observação”
visualizável, mas o que é mensurável. E, por
o
que
é
isso, em
rigor, por “agente de observação” deveremos entender de um
“instrumento de medida”.
Em
segundo
coincidência,
temporal,
em
lugar,
tanto
qualquer
espacial
terminologia
medição
como
importada
consiste
temporal
da
na
(espácio-
Relatividade
de
Einstein), entre o sistema medidor – o instrumento – e o
objecto de medida. Então, somos facilmente conduzidos a
concluir, com Bohr, que:
106
“o postulado quântico implica que qualquer observação de
um
fenómeno
atómico
envolve
uma
interacção
com
o
agente
de
observação que não pode ser negligenciada”113.
Em razão do postulado quântico, não é possível, mesmo
idealmente, tomar uma medição (ou, como lhe chama Bohr, uma
observação) de um fenómeno atómico como um acto passivo e
neutral. E, como tal, não é possível uma medição em que o
estado
físico
do
sistema
objecto
da
medida
seja
imperturbado pela presença do instrumento de medida. Medir
é perturbar. É claro que se poderá dizer tal sempre foi
sabido. Um termómetro colocado numa sala irá trocar calor
com esta. Um amperímetro irá absorver parte da energia do
circuito eléctrico. Uma régua colocada junto a folha de
papel irá atrai-la graviticamente. Em qualquer dos casos, o
valor medido não corresponderá exactamente ao valor antes
da medida. Contudo, em qualquer dos casos a perturbação é
de um valor tão diminuto, muito menor que a própria escala
dos
instrumentos
de
medida,
que
não
é
numericamente
significativa. Por outro lado, a história da Física desde
Newton foi acompanhada pelo desenvolvendo uma teoria de
erros de medida. Isto é, um corpo teórico que permitia
113
“[…] the quantum postulate implies that any observation of atomic
phenomena will involve an interaction with the agency of observation
not to be neglected”, Idem, ibidem. (tradução minha)
107
explicar
e
prever
os
erros
afectos
à
medição
por
imperfeições, desvios às condições instrumentais ideais da
medição. Como tal, classicamente é concebível engendrar uma
diminuição contínua da interacção entre o sistema medidor e
o sistema medido. Em limite, podemos idealizar um acto de
medida em que essa interacção seja nula. E, deste modo,
afirmar que o resultado da medida corresponde ao valor
quantitativo da propriedade do sistema físico objecto da
medição. Nestas condições ideais, uma situação física onde
o termómetro indicasse, a exemplo, -273,15 K, esta seria a
temperatura do sistema medido.
Portanto, do postulado quântico resulta, segundo Bohr,
que medir é sempre perturbar. Não é idealizável uma medição
em que o sistema medido seja indiferente à presença do
sistema medidor. Daqui seguiria que, à escala atómica, o
resultado de uma medida não reflecte o valor quantitativo
da propriedade do sistema físico objecto da medição. O
resultado
de
uma
medida
reflecte,
necessariamente,
a
interacção entre sistema medido e sistema medidor. Assim,
não é concebível um termómetro que meça objectivamente a
temperatura, um amperímetro que meça a corrente eléctrica
ou uma régua meça o tamanho de um sistema atómico. E, por
conseguinte, esvaziar-se-ia de algum sentido expressões,
como por exemplo, “a temperatura do átomo é de”. Ou “a
dimensão do átomo é”.
108
Do
postulado
quântico
resulta
uma
subjectividade
inevitável associada ao acto de medir. E, como tal, de
observar.
Subjectividade
inevitável
que
leva
Bohr
ao
seguinte raciocínio:
“Por um lado, a definição de um estado de um sistema
físico, como é ordinariamente entendido requer a eliminação de
todas as perturbações exteriores. Mas, neste caso, de acordo com
o postulado quântico, qualquer observação será impossível e,
acima de tudo, os conceitos de espaço e tempo perderão o seu
sentido imediato. Por outro lado, se permitirmos que existam
interacções com os apropriados agentes de medida, isto de forma
a ser possível a observação, então uma definição não ambígua do
estado do sistema não é, naturalmente, possível, e não pode
haver qualquer causalidade no sentido ordinário da palavra”114.
A definição do estado de um sistema físico, segundo a
Mecânica
atribuição
Clássica,
de
um
é
valor
completamente
bem
estabelecido
determinado
às
pela
propriedades
posição e momentum. É responder precisamente às questões
114
“On one hand, the definition of the state of a physical system, as
ordinarily understood, claims the elimination of all external
disturbances. But in that case, according to the quantum postulate,
any observation will be impossible, and, above all, the concepts of
space and time lose their immediate sense. On the other hand, if in
order to make observation possible we permit certain interactions with
suitable agencies of measurement, not belonging to the system, an
unambiguous definition of the state of the system is naturally no
longer possible, and there can be no question of causality in the
ordinary sense of the word.”, Idem, ibidem (tradução minha)
109
“onde
está?”,
possível
“para
falar
de
onde
vai?”.
valores
bem
Porém,
somente
determinados
será
destas
propriedades se se tomar como isolado o sistema físico
considerado. Isto é, se se considerar o sistema ausente de
interacções físicas com o que lhe é exterior. Atribuir um
valor bem determinado à velocidade de uma bola de bilhar
implica
que,
para
além
de
representável
por
um
corpo
pontual, não está a ser golpeada nem a exaustar-se em
atrito. Pois se assim fosse, a posição e o momentum não se
conservariam no sistema considerado e, por consequência,
não lhes poderíamos atribuir valores bem determinados. Como
tal, a definição de um sistema físico “requer a eliminação
de
todas
postulado
as
perturbações
quântico
a
exteriores”.
observação
de
um
Contudo,
sistema
pelo
atómico
qualquer envolve uma interacção de valor não nulo com o
instrumento de medida, então de um sistema atómico isolado
“qualquer observação será impossível”. Um sistema atómico
isolado é como uma caixa negra. Um território sempre por
cartografar. Uma resposta sempre adiada as questões que
caracterizam as teorias físicas clássicas.
Por
questões,
outro
lado,
então,
se
se
pretende
necessariamente,
responder
ter-se-ão
a
estas
permitir
interacções entre o sistema objecto da medição e o sistema
agente da medição. Porém, por consequência do postulado
quântico, essa interacção, mesmo idealmente, não terá um
110
valor
nulo.
A
medição
alterará
o
valor
numérico
da
propriedade medida. E, como tal, “uma definição não ambígua
do estado do sistema não é, naturalmente, possível”. Ao
medir
o
podermos
sistema
atómico
responder
à
–
um
electrão,
questão
por
“onde
exemplo
está?”.
-
Mas,
simultaneamente, introduzimos uma perturbação tal que nos
impossibilitará
sistema,
à
de
responder
questão
“para
precisamente,
onde
vai?”.
para
esse
Assim,
por
consequência da perturbação intrínseca ao acto de medir,
não será possível definir a evolução causal do sistema. Ou
nas palavras de Bohr, “não pode haver qualquer causalidade
no sentido ordinário da palavra”. Daqui, conclui:
“a
considerar
própria
a
natureza
co-ordenação
da
teoria
quântica
espácio-temporal
e
a
força-nos
asserção
a
da
causalidade, união que caracteriza as teorias clássicas, como
aspectos complementares mas exclusivos da descrição […]”115.
Esta passagem assinala a primeira vez em que surge o
termo “complementaridade” nos trabalhos publicados de Bohr.
E
constitui,
igualmente,
o
enunciado
do
primeiro
tipo
115
“The very nature of the quantum theory thus forces us to regard the
space-time co-ordination and the claim of causality, the union of
which characterizes the classical theories as complementary but
exclusive features of the description, symbolizing the idealization of
observation and definition respectively” Idem, ibidem (Tradução minha)
111
complementaridade:
a
que
podemos
designar
por
“espaciotemporal-causal”.
De
seguida,
Bohr
natureza
dos
objectos
radiação
luminosa
enfrenta-se
quânticos.
como
para
o
com
Tanto
caso
o
problema
para
dos
o
da
caso
da
constituintes
atómicos da matéria.
No caso da radiação luminosa, Bohr relembra que a sua
propagação
é
adequadamente
descrita
pela
teoria
electromagnética de Maxwell. Teoria onde – recorde-se - se
concebe a luz como uma flutuação de um meio contínuo: o
campo electromagnético. Ou seja, onde se toma a luz como
uma
entidade
com
uma
natureza
ondulatória.
Contudo,
a
conservação da energia e de momentum durante as interacções
entre
a
luz
e
a
matéria,
como
no
caso
do
efeito
fotoeléctrico, por exemplo, é adequadamente descrita, tal
como mostrou Einstein116, concebendo a luz como uma entidade
constituída não por uma ondas, mas por corpos de dimensões
físicas
ínfimas,
por
corpúsculos
de
luz.
Ou
seja,
por
fotões. Assim, por um lado, somos levados a dizer que a luz
tem
uma
natureza
propagação.
dizemos
que
E,
ondulatória
por
a
outro
luz
tem
lado,
uma
no
que
com
a
concerne
mesma
natureza
à
sua
confiança,
corpórea
(ou
116
Conferir Einstein, Albert (1905, "On a Heuristic Viewpoint
Concerning the Production and Transformation of Light" in Annalen der
Physik 17: 132–148.
112
corpuscular) no que respeita à alteração do estado físico
por consequência da sua interacção com a matéria.
O
caso
matéria,
da
natureza
segundo
dos
Bohr,
é
constituintes
análogo
ao
atómicos
da
da
radiação
electromagnética. Por um lado, na propagação diz-se que um
electrão é uma onda. Por outro lado, no que diz respeito à
interacção,
seja
constituintes
com
atómicos,
a
luz,
somos
ou
seja
levado
a
com
dizer
outros
que
um
electrão tem a natureza dos corpúsculos.
Portanto, tanto para a luz, como para os constituintes
mínimos
propagam
da
matéria,
como
uma
somos
onda
e,
conduzidos
no
a
entanto,
dizer
que
interagem
se
como
corpúsculos. Tanto a luz, como as fracções atómicas da
matéria, somos seduzidos a dizer que possuem uma dupla e
contraditória natureza. Ora corpúsculo, ora onda. O que
constitui o já conhecido paradoxo da natureza dos objectos
quânticos. Reaparece, uma vez mais a questão: o que é um
objecto
quântico?
Aparentemente,
tão
insolúvel
como
inevitável. Mas agora é o momento em que Bohr enfrenta
directamente. É um dos momentos decisivos da constituição
da Mecânica Quântica. Diz-nos o físico dinamarquês:
113
“[…] nós não estamos a lidar com imagens contraditórias
mas complementares, que apenas juntas oferecem uma generalização
natural dos modos clássicos de descrição”117.
A terminologia de Bohr derrapa uma vez mais. Como
sempre parece suceder em momentos decisivos. Agora surgenos o termo “imagem”. No entanto, creio que por “imagem”
Bohr está simplesmente a entender uma representação visual
dos conceitos de onda e de corpo. A sua ilustração. Como
tal, se este esclarecimento permite controlar a derrapagem,
penso que é entendível das palavras de Bohr que devemos
considerar as ondas e os corpos não como entidades com
naturezas contraditórias, mas como entidades com naturezas
complementares. Tal como se nos dissesse que não devemos
considerar a luz e a sombra, a vida e a morte, o cheio e o
vazio não como
contraditórios,
mas como complementares.
Algo que, de algum modo, nos faz recordar o Tao Te Ching
(ou Dao De Jing) de Lao Tzu. Quando neste se insiste na
complementaridade dos opostos Yin e Yang. Onde um evoca
sempre o outro. O sábio procura não marcar a oposição, mas
o estado de equilíbrio, de harmonização, entre eles. Talvez
tenha
sido
esta
proximidade
que
tenha
levado
Bohr
a
117
“We are not dealing with contradictory but complementary pictures
of the phenomena, which only together offer a natural generalization
of the classical mode of description” Idem, ibidem. (tradução minha)
114
escolher o tão conhecido diagrama T’ai-chi T’u como seu
brasão de armas.
Mas seja qual tenha sido a influência orientalista no
pensamento de Bohr, importa regressar à citação anterior. E
podemos interpretar esta entendendo que Bohr nos diz que
“onda” e “corpo” embora mutuamente excludentes, por serem
contrários, ambos são necessários, de forma complementar, à
descrição completa dos sistemas quânticos. Em particular,
dos
sistemas
atómicos.
Temos
assim
o
segundo
tipo
de
complementaridade: a complementaridade onda-corpúsculo.
Não é claro ao logo deste artigo de Bohr de 1928, tal
como nunca ficou claro ao longo da sua obra, se existe uma
interligação
intrínseca
entre
estes
dois
tipos
de
complementaridade. Uma articulação fundamental. Ou mesmo se
estes são apenas dois casos particulares da aplicação de um
princípio
comum:
o
tal
princípio
de
complementaridade.
Termo este, no entanto, que, como já aqui se afirmou118,
Bohr nunca terá utilizado. Na realidade, como assinala,
entre
outros,
Max
Jammer119,
Bohr
nunca
oferece
uma
definição clara do que seja a “complementaridade”. Segundo
este autor o mais próximo que Bohr esteve de nos conceder
118
Conferir Folse, Henry J. (1985), The Philosophy of Niels Bohr, New
York: Elsevier S.P., p. 18.
119
Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics,
New York: John Wiley & Sons, p.95.
115
uma definição de “complementaridade” terá surgido em 1929,
quando declara:
“A
indivisibilidade
do
quantum
de
acção
[isto
é,
o
postulado quântico] […] força-nos a adoptar um novo tipo de
descrição
designado
qualquer
aplicação
simultâneo
de
diferente,
são
por
dos
outros
complementaridade,
conceitos
conceitos
igualmente
clássicos
clássicos
necessários
no
pressupõe
que,
para
sentido
a
numa
o
que
uso
conexão
elucidação
do
fenómeno”120.
Na
realidade,
a
afirmação
“qualquer
aplicação
dos
conceitos clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros
conceitos
acrescenta
clássicos”
pouco
ou
para
uma
nada
em
elucidação
do
relação
ao
fenómeno,
que
já
característico na Física Clássica. Em Mecânica Clássica,
recordemos, a exemplo, a elucidação de um fenómeno requer a
utilização simultânea e conjunta dos conceitos de posição e
momentum. Neste sentido estas palavras de Bohr não serão,
por si só, especialmente esclarecedoras. No entanto, Bohr
acrescenta “numa conexão diferente”. E deste modo, embora
120
“The indivisibility of the quantum action […] force us to adopt a
new mode of description designed as complementary in the sense that
any given application of classic concepts precludes de simultaneous
use of other classic concepts
which in a different connection are
equally necessary for the elucidation of the phenomena” Idem, ibidem
(Tradução minha).
116
de
forma
pouco
segura,
poder-se-á
entender
que
a
complementaridade é para Bohr “um novo tipo descrição”,
cuja
tipologia
particular
caracteriza-se
pelo
uso
de
simultâneo de conceitos clássicos que se contradizem com
vista à “elucidação do fenómeno”.
Por outro lado, da citação anterior é notório que Bohr
percebe a complementaridade como consequência do postulado
quântico. Como algo que é forçado por este. E, por essa
via, seria forçado, para Bohr, pela própria essência da
teoria
quântica.
Pois,
recordemos,
para
o
físico
dinamarquês, a essência da teoria quântica encontra a sua
expressão no postulado quântico. Logo, a complementaridade
deve
ser
tida
não
como
uma
interpretação
da
Mecânica
Quântica, nomeadamente do seu formalismo, mas como condição
da constituição desta. Como condição de possibilidade de
constituição de qualquer teoria quântica, poderia avisarnos Bohr. Porém, a meu ver, a complementaridade não é uma
consequência inescapável do postulado quântico,
e muito
menos uma condição de possibilidade de teorias quânticas em
geral. A complementaridade é consequência da perseverança
da pentadoxia sobre os objectos físicos e da
visível,
a
doutrina
dos
conceitos
clássicos,
sua face
perante
a
aparente a questão da natureza dos objectos quânticos. É-o,
antes de mais, porque todo o argumento da complementaridade
pressupõe,
de
forma
implícita,
a
tese
que
não
podemos
117
descrever os fenómenos físicos senão através dos conceitos
da
física
clássica.
E,
vemo-lo
em
passagens,
como
na
citação anterior, em que se afirma à guisa de definição de
complementaridade
que
“qualquer
aplicação
dos
conceitos
clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros conceitos
clássicos”.
Na verdade, as teses centrais do artigo de 1928 - e
talvez
do
expostas
parágrafo.
próprio
logo
nas
Linhas
pensamento
duas
sobre
Bohriano
primeiras
as
quais
-
linhas
não
se
encontram-se
do
primeiro
têm
escrito
suficientes páginas de filosofia. Afirma-se:
“A teoria quântica é caracterizada pelo reconhecimento
de um limite fundamental das ideias da física clássica quando
aplicadas aos fenómenos quânticos. Esta situação assim criada é
de uma natureza peculiar, dado que a nossa interpretação das
experiências reside essencialmente em conceitos clássicos.”121
Desta
citação
de
Bohr,
em
primeiro
lugar,
é
reconhecível a referida doutrina quando nos afirma “a nossa
interpretação
das
experiências
reside
essencialmente
em
121
“The quantum theory is characterized by the acknowledgment of
fundamental limitation in the classical physical ideas when applied to
atomic phenomena. The situation thus created is of a peculiar nature,
since
our
interpretation
of
the
experimental
material
rests
essentially upon the classical concepts”, idem, p. 580.
118
conceitos clássicos”. E encontramo-la presente
tipos
de
complementaridade.
complementaridade
No
primeiro
espaciotemporal-causal
–
nos dois
tipo
de
–
a
forma
um
pouco arrevesada. Pois, sem o justificar, Bohr refere-se
tanto ao espaço-tempo, como à causalidade, como conceitos
clássico da física. E, nesta medida, no primeiro tipo de
complementaridade
é
pressuposto
que
a
representação
espácio-temporal e causalidade sejam conceitos necessários
para a descrição dos fenómenos físicos.
Encontramos, igualmente, a presença da doutrina dos
conceitos
clássicos
complementaridade.
no
Pois
caso
esta
do
ao
segundo
fazer-se
a
tipo
de
partir
da
oposição entre os conceitos de onda e de corpúsculo, faz-se
pressupondo
que
essas
são
as
duas
únicas
concepções
possíveis dos objectos físicos.
Seja num caso ou noutro, os conceitos clássicos são
apresentados,
no
quadro
da
complementaridade,
como
condições necessárias à descrição dos fenómenos físicos em
geral,
e
por
particular.
conseguinte,
Deste
modo,
dos
uma
fenómenos
atómicos
correspondência
em
necessária
entre o modo de descrição dos fenómenos macroscópicos e
atómicos,
entre
os
conceitos
de
física
clássica
e
os
conceitos de física atómica. Assim, encontramos igualmente
119
a
presença,
em
ambos
tipos
de
complementaridade,
do
princípio da correspondência.
No entanto, da doutrina dos conceitos clássicos e a
aplicação do princípio da correspondência não decorre, por
si
só,
a
natureza
complementaridade.
de
todos
objectos
Pois,
por
físicos
um
fosse
lado,
se
a
inteiramente
corpórea, toda Física seria, em última análise, Mecânica.
E, como tal, toda situação física poderia ser explicada
através da ideia de corpo pontual, dos conceitos clássicos
da Mecânica e ilustrada através de um jogo de bilhar. Em
particular, uma física do átomo seria nada mais que uma
generalização da Mecânica para o domínio do ínfimo. Tal
como a Mecânica celeste é uma generalização da Mecânica
para o domínio do astronómico. Existindo uma consequente
correspondência entre os conceitos de uma e de outra. Esse
era o projecto de Heisenberg, que pretendia construir uma
teoria atómica unicamente corpuscular. O que o conduziu à
Mecânica
conta
da
Matricial122.
propagação
Esta,
de
um
porém,
nunca
sistema
conseguiu
quântico.
E,
dar
por
consequência, de aspectos como a difracção da luz, para se
dar um exemplo.
Por outro lado, se a natureza de todos objectos físicos
fosse inteiramente ondulatória, toda a Física seria algo
122
Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical
Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 284.
120
semelhante ao Electromagnetismo. E, como tal, quase toda
situação física poderia ser explicada através dos conceitos
clássicos
do
Electromagnetismo
e
ilustrada
através
da
flutuação de águas de um lago. Em particular, uma física do
átomo
seria
nada
mais
que
uma
generalização
do
Electromagnetismo. Esse era o projecto de Schrödinger, que
pretendia
construir
uma
ondulatória123.
O
que
contacto
o
trabalho
com
o
teoria
conduziu,
de
De
atómica
depois
unicamente
de
Broglie,
entrar
à
em
Mecânica
Ondulatória. E que está na origem da actual interpretação
estocástica
conseguiu
da
dar
Mecânica
conta
Quântica.
Esta,
satisfatoriamente,
por
porém,
nunca
exemplo,
da
interacção, ao nível atómico, entre a radiação e a matéria.
A verdade é que Bohr sempre rejeitou tanto o projecto
de Heisenberg, como o de Schrödinger. E se o encontramos na
citação anterior a defender o uso necessário dos conceitos
clássicos,
encontramo-lo,
igualmente,
logo
na
primeira
frase, a afirmar que a característica das teorias quântica
é “o reconhecimento de um limite fundamental das ideias
clássicas”. Nomeadamente, das ideias de partícula material
e onda electromagnética. Um limite que é sinalizado pelo
postulado quântico. Um limite que tem, no entanto, a sua
razão na questão da natureza dos objectos quânticos. O
123
Conferir, Schrödinger, Erwin (?), “What is an Elementary Particle?”
in Interpreting Bodies, Elena Castellani ed. (1998), Princeton:
Princeton University Press, pp 197-210.
121
postulado quântico é, na verdade, uma desta consequência
desta. Um seu corolário. É claro que será estranho dizer
que um postulado é um corolário. No entanto, essa transição
é apenas fruto da própria evolução histórica da teoria
quântica. É um anacronismo de Bohr. O postulado quântico
surge, recorde-se, no contexto da teoria quântica antiga.
Onde
era
realmente
a
postulação
que
a
radiação
electromagnética interagia com a matéria por quantidades
discretas. Porém, na mesma medida que a transição entre a
Teoria Quântica Antiga e a Mecânica Quântica se dá por
razão da hipótese de De Broglie, o postulado quântico de
Planck
é
integrado
na
nova
teoria
quântica
como
um
corolário. Pois, dado que o problema da natureza dupla dos
objectos quânticos consiste – recorde-se – no facto que
estes
propagarem-se
como
ondas
e
interagirem
como
corpúsculos, então será um corolário do referido dualismo
dizer que a interacção entre sistemas atómicos, que são
sistemas
quânticos
particulares,
se
realiza
de
forma
descontínua, isto é, corpuscularmente. E, em particular,
que qualquer processo atómico envolve uma descontinuidade
essencial. O que nada mais é justamente a definição que
Bohr no artigo de 1928 dá de “postulado quântico”.
Como tal, a meu ver, Bohr compreende bem que é a
própria natureza dos objectos quântica a impor um limite à
aplicação
das
ideias
clássicas.
E,
por
consequência,
122
limitar,
igualmente,
a
aplicabilidade
dos
conceitos
clássicos. Limite que é expresso no postulado quântico. E
que
como
tal,
no
seu
entender,
é
forçosamente
uma
característica de uma qualquer teoria quântica. Pois não
existindo tal limite a teoria atómica, por exemplo, seria
naturalmente
incorporada
numa
generalização
de
uma
das
teorias clássicas. Compreende-se então o dilema de Bohr, o
mesmo que se encontra na génese da constituição da Mecânica
Quântica: como dar conta da natureza quântica sem deixar de
ser fiel à concepção clássica dos objectos físicos? Ou como
será a formulação mais próxima de a de Bohr: “como integrar
o postulado quântico nas teorias clássicas?”. E do segundo
tipo de complementaridade compreende-se a solução de Bohr:
os
conceitos
de
corpo
e
de
domínio quântico, não devem
onda,
quando
aplicados
ao
tomados como contraditórios
entre si, mas complementares. E, por consequência, o mesmo
ocorrerá para os conceitos que se reportam ora aos corpos,
ora as ondas.
Creio ser, neste momento, entendível o movimento de
Bohr. Movimento derradeiro e decisivo para a constituição
da
Mecânica
solucionado
Quântica.
está,
irresolubilidade
e
da
Como
perante
questão
o
a
da
que
não
tem
persistente
natureza
solução
e
aparente
dos
objectos
quânticos, Bohr decide evitá-la. Retira-se estrategicamente
do
campo
da
ontológica
e
coloca-se
no
domínio
da
123
epistemologia.
Pois
ao
afirmar
que
a
complementaridade
consiste na aplicação conjugada dos conceitos de corpo e
onda,
Bohr,
no
fundo,
esquiva-se
de
enfrentar
a
perturbadora natureza dos objectos quânticos, de responder
à
questão
“o
que
é?”,
focalizando-se
na
questão
“como
descrever os fenómenos quânticos fazendo uso dos conceitos
clássicos?”.
quântica
Como
deve
se
dissesse
ser
que,
descrita
por
como
vezes,
a
coisa
ondulatória
e
conjugadamente, nas outras vezes, deve ser descrita como
corpuscular, sem
complementaridade
nunca se dizer
é
o
acordo
que “coisa” é
possível
no
essa. A
desacordo
insanável entre a pentadoxia e a questão da natureza dos
objectos quânticos. Contudo, não é uma resposta a esta
última. É uma forma hábil de a evitar. De lhe fugir. De a
ignorar. Se os objectos quânticos fossem ornitorrincos e
Bohr não um físico mas um biólogo, a sua reacção perante a
célebre aparição do ornitorrinco seria defender que não
importa se este animal é um Mamífero ou é um Réptil. Nem,
muito menos, ousar-se repensar as categorias de Mamífero ou
de Réptil. A reacção de Bohr seria, julgo, afirmar que
devemo-nos salvar do tormentoso paradoxo que esse animal
nos
oferece
dizendo
descrito
como
Mamífero
e
apenas
Mamífero,
Réptil
e
não
que
nuns
noutros
como
aspectos
como
pode
Réptil.
contrários,
ser
Tomemos
mas
como
complementares.
124
Este ardiloso desviar da nossa atenção da ontologia
para a epistemologia, da questão da natureza dos objectos
quânticos, para a questão de como descrever os fenómenos
quânticos,
é
um
gesto
de
ilusionista
que
parece
fazer
desaparecer o obstáculo principal, mas que, contudo, não é
realizado sem gravíssimas consequências. Aliás, a meu ver,
é
a
raiz
de
todas
maleitas
filosóficas
da
Mecânica
Quântica.
Um conjunto de implicações mais directas encontra-se
expresso
no
primeiro
tipo
de
complementaridade:
complementaridade espácio-temporal/causal. Ao descreveremse
os
fenómenos
conceitos
de
incapacidade
quânticos
corpo
de
e
onda,
qualquer
um
fazendo
por
uso
um
destes
conjugado
lado,
e
conceitos
dos
dado
a
agarrar
a
natureza dos objectos quânticos, resulta que a descrição é
sempre
incompleta.
propagação,
fazendo
Quanto
uso
melhor
do
os
descrevemos
conceito
de
onda,
na
pior
sua
os
descrevemos na sua interacção como corpúsculos. Ou seja,
quanto melhor sabemos onde está, pior sabemos para onde
vai, ou de onde veio. E o inverso. O que é justamente o que
Heisenberg nos diz nas suas relações de incerteza: quanto
melhor
sabemos
o
momentum
(e,
por
consequência,
a
velocidade), pior sabemos a posição; quanto melhor sabemos
a posição, pior sabemos o momentum. O que, no fundo, é o
que é dito por Bohr no primeiro tipo de complementaridade.
125
Se
sabemos
a
espaciotemporalidade
do
objecto
quântico,
deixamos de saber a sua evolução causal. E vice-versa.
Estas relações de incerteza, que estão contidas no
primeiro tipo de complementaridade, têm três implicações.
Em primeiro lugar, se os conceitos clássicos da física
forem entendidos com um estatuto de conceitos a priori,
significa
isto
que,
em
termos
kantianos,
existirá
uma
complementaridade entre a sensibilidade (algo que aparece
no
espaço-tempo)
e
o
entendimento
(categoria
da
causalidade). E, por conseguinte, os fenómenos quânticos
seriam epistemologicamente indetermináveis. Seriam objectos
de conhecimento de experiência eternamente incompletos. Ou
para
se
ser
fiel
a
Kant,
nem
objecto124
seriam,
pois,
justamente, não seriam algo que aparece aos sentidos e é
determinável pelo entendimento. Apenas seriam, ou aparição
de
algo
aos
sentidos,
ou
pura
especulação
da
razão.
Portanto, o primeiro tipo de complementaridade assinala o
limite
inultrapassável
da
capacidade
de
conhecimento.
Limite esse que é expresso, matematicamente, nas relações
de Heisenberg. Este seria então o âmago do primeiro tipo de
complementaridade: Assinalar que
a própria
natureza dos
objectos quânticos marca o limite da capacidade legisladora
do sujeito transcendental. A complementaridade é como uma
124
No capítulo seguinte analisámos o conceito de objecto físico em
Kant.
126
placa
que
indica
o
fim
do
mundo
conhecível.
E,
por
conseguinte, daqui decorreria que a Mecânica Quântica seria
a última teoria da Física. É a tese, como refere Popper, do
“fim do percurso”125 da Física.
Em segundo lugar, da nossa limitação transcendental na
descrição
dos
fenómenos
quânticos
decorre
que
não
é
possível determinar o resultado de uma medida a não ser
probabilisticamente.
Em terceiro lugar percebe-se a conexão entre os dois
tipos
de
complementaridade.
A
primeira,
que
até
aqui
chamámos de espácio-temporal/causal, a que, como salienta
Murdoch126,
também
poderíamos
ter
chamado
de
cinemática/dinâmica, pois estabelece-se entre a evolução no
espaço-tempo e a interacção física, é uma complementaridade
epistemológica. Enquanto a segunda é uma complementaridade
ontológica. São
tipos de
complementaridades distinto na
justa distinção que existe entre esses campos filosóficos.
Compreende-se assim que Bohr nunca os tenha formulado como
um “princípio” geral e uno. Ou que um pode ser reduzido a
outro. A relação entre os dois tipos de complementaridade é
a relação entre epistemologia e a ontologia. E, como tal, a
meu ver, a complementaridade espácio-temporal/causal não é
125
Conferir Popper, Karl (1982),
Quantum Theory and the Schism in
Physics
(tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria
dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 27.
126
Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of
Physics, Cambridge: Cambridge University press, pp. 58-60.
127
derivável
da
complementaridade
onda/corpúsculo,
mas
é
consequente.
Por
outro
ontologia
para
lado,
a
do
já
referido
epistemologia
deslocamento
resulta
que
a
da
Mecânica
Quântica constitui-se como uma teoria carente de ontologia.
Mário Bunge, um dos poucos a compreender bem a importância
e gravidade da questão da natureza dos objectos quânticos,
defende que a Mecânica Quântica é uma teoria à procura do
seu referente127. Aponta, justamente, para esta
ausência
como
Mecânica
o
coração
da
debilidade
filosófica
da
Quântica. E para suprir esta carência avança com distinção
entre
objectos
classões
e
físicos
objectos
clássicos,
quânticos,
a
a
que
que
designa
por
designa
por
quantões128. A Física Clássica referia-se aos primeiros. A
Mecânica
teriam
Quântica
como
aos
segundos.
propriedades
a
Os
posição
objectos
e
o
clássicos
momentum.
Os
objectos quânticos teriam como propriedades a quasição e o
quasimomentum. A meu ver, se Bunge acerta na questão, não
alcança a solução. Não posso compartilhar da sua proposta
pois
esta
entidades
consiste,
–
os
no
fundo,
quantões
–
na
postulação
detentoras
das
Ad-Hoc
de
bizarras
propriedades quânticas da dispersão de posição – quasição –
e dispersão de momentum – quasimomentum – sem que Bunge
127
Conferir Bunge, Mario (1982), Filosofia de la Fisica, Barcelona:
Ariel, pp. 110.
128
Conferir, idem, pp 118-121.
128
diga o que são os quantões (ou objectos quânticos). Ou,
para se ser mais preciso e justo, o que é isso de uma
entidade com uma dispersão de posições e momentum? Por
outro lado, a proposta de Bunge levanta outros problemas
como a relação entre quantões e classões ou o que sucede
numa medição.
Não compartilho do optimismo reservado de Bunge quando
ainda julga tratar-se de um problema da interpretação do
formalismo e não da teoria em si. De tratar-se saber a quem
a Mecânica Quântica se refere. A meu ver a situação é mais
grave e fundamental. Digo que a Mecânica Quântica carece de
ontologia e julgo que sempre assim será pois essa é a sua
essência. E afirmo-o pois o seu processo de constituição
passa,
justamente,
por
não
se
referir
aos
objectos
quânticos, mas apenas aos resultados de medições. É fá-lo
porque a sua ontologia de partida é incompatível com a
natureza das entidades à qual uma genuína Mecânica dos
Quanta dever-se-ia referir. Na Mecânica Quântica não há um
objecto que se concebe, mas apenas um sujeito que organiza
a sua experiência sensível de acordo com um conjunto de
categorias inamovíveis. A Mecânica Quântica coloca-se quase
totalmente do lado do sujeito, pois o objecto é tido como
incognoscível.
129
Neste sentido, a Mecânica Quântica uma teoria que,
contrariamente a todas teorias científicas, não explica,
não descreve, não nos dá a ver o que se passa. A Mecânica
Quântica é, a meu ver e como a seguir pretendo ilustrar
através da análise dos seus postulados, uma pura máquina de
previsão de resultado de medições. Como se tratasse de um
modelo teórico de previsão probabilística de resultados de
uma roleta ou das cartas de um baralho. Ela prevê, mas não
explica.
Ela
capacita-nos
para
antecipar
o
conjunto
de
resultados possíveis de uma medição, mas não nos oferece
uma cosmovisão ou mundivisão do domínio dos quanta. Por
esta razão e se, como afirma Popper, “toda a ciência é
cosmologia”129
cautelosa,
poder-se-ia
mas,
até
igualmente,
dizer,
num
de
forma
muito
de
grande
assumo
atrevimento, que é duvidoso que a Mecânica Quântica seja
uma teoria científica. Deixemos, no entanto, em aberto tão
herética questão que não é, de momento, a nossa.
O problema da Mecânica Quântica é, tal como Popper bem
intuiu, fundamentalmente, um problema de compreensão130. Não
do
seu
formalismo
e
como
trabalhá-lo.
O
que
tem
sido
realizado com inegável sucesso. Mas no sentido que a teoria
quântica
nova
constitui-se
negligenciando,
ou
melhor,
recusando a possibilidade de uma compreensão do domínio
129
Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in
Physics
(tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria
dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 23.
130
Idem, ibidem.
130
sobre o qual versa. Recusa fundada na sua incondicional
impossibilidade de se responder, ou sequer dar sentido, à
questão: o que é um objecto quântico? E, como tal – e sem
surpresa
-
toda
tentativa
ou
cedência
à
tentação
de
ontologizar esta teoria só nos leva a enganos e múltiplas
confusões.
É deste movimento de malabarista entre os pressupostos
ontológicos que estão na raiz dos conceitos clássicos, a
indispensabilidade
destes
e
da
sua
incapacidade
de
dar
conta da natureza dos objectos quânticos, que se que se
constitui a Mecânica Quântica.
Assim,
de
uma
análise
aos
postulados
da
Mecânica
Quântica, revelar-se-ão dois aspectos fundamentais:
Em primeiro lugar, que a Mecânica Quântica é, na sua
essência, uma generalização racional das teorias clássicas.
Isto é, uma extensão dos seus formalismos. Como veremos a
seguir os objectos quânticos são descritos formalmente na
sua propagação como ondas. Isto é, são tomados por ondas de
Fourier, sem no entanto que isso corresponda a uma entidade
que ondule. Os objectos quânticos são descritos formalmente
na sua interacção como corpos (ou corpúsculos). Isto é, são
tomados por partículas pontuais, sem no entanto que isso
corresponda a uma entidade corpórea. A uni-los encontra-se
o
chamado
“delta
de
Dirac”,
que
permite,
formalmente,
131
considerar as partículas pontuais como uma
sobreposição
infinita de ondas de Fourier. Uma espécie de instrumento
formal da complementaridade.
Em segundo lugar, que é esta incompreensão sobre a
natureza
da
Mecânica
Quântica,
isto
é,
do
não
reconhecimento que esta é uma generalização racional das
teorias clássicas e, por consequência, que é uma teoria que
não tem como referentes os tais objectos quânticos, é, a
meu ver, a razão de ser das labirínticas complicações em
que se perde parte da Filosofia da Mecânica Quântica.
2.8. Os postulados da Mecânica Quântica.
A Mecânica Quântica, que tantas e tantas vezes, e
pelos
Física
mais
insuspeitos
Quântica,
como
autores,
se
a
é
também
Física
e
designada
Mecânica
por
fossem
claramente sinónimos131, pode ser apresentada a partir de um
conjunto de postulados. Tal é, de resto, comum a todas
teorias em Física. E tal como é comum a todas teorias em
Física os postulados da Mecânica Quântica são expressos
131
Se fossem sinónimos então o Electromagnetismo e o Electrodinâmica
Quântica teriam de ser reduzíveis à Mecânica, o que está longe de ser
claro que assim o seja.
132
segundo um determinado formalismo matemático.
Porém, no
caso particular da Mecânica Quântica, os seus postulados
conhecem diversas formulações. Como a Mecânica Matricial de
Heisenberg, ou a Mecânica Ondulatória de Schrödinger. Estes
formalismos, no entanto, tal como Dirac demonstrou e é bem
conhecido, são matematicamente equivalentes entre si132. O
formalismo mais presente tanto na literatura filosófica,
como na literatura científica, que se dedicam à Mecânica
Quântica é aquele que foi proposto por Von Neumann, em
1932,
na
sua
célebre
obra
Mathematical
Foundations
of
Quantum Mechanics. Esta formulação fundamental da Mecânica
Quântica surge-nos, por exemplo, no sempre referenciado The
Philosophy of Quantum Mechanics de Max Jammer:
“Axioma I. A cada sistema corresponde um espaço de Hilbert
H cujos vectores (vectores de estado, funções de onda) descrevem
completamente os estados do sistema.
Axioma II. A cada observável P corresponde unicamente um
operador auto-adjunto A de acção em H.
Axioma III. Para um sistema no estado φ, a probabilidade
probA(λ1,λ2|φ) que o resultado de uma medição do observável P,
representado por A, se encontre entre λ1 e λ2, é dada por ║(Eλ2 Eλ1)φ║2, onde Eλ é a resolução da identidade pertencente a A.
132
Conferir
Dirac, P.A.M
(1935),
Mechanics, London: Clarendon Press.
The
Principles
of
Quantum
133
Axioma IV.
O desenvolvimento temporal do vector de estado
φ é determinado pela equação Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (equação de Schrödinger)
onde o hamiltoneano H é o operador evolução e ℏ é a constante de
Planck
dividida por 2π.
Axioma V. Se a medição de um observável P, representado por
A tiver um resultado dentro do intervalo entre λ1 e λ2, então o
estado do sistema imediatamente após uma medição é uma função
própria de (Eλ2 - Eλ1)“133
Trata-se, como é bem patente, de um formalismo de uma
apreciável
sofisticação
(e
elegância)
matemática.
De
assinalável valor para o labor do físico. Mas, no entanto,
não é a mais adequada expressão dos postulados da Mecânica
Quântica para o labor filosófico. Não o é, em primeiro
133
“Axiom I. To every system corresponds a Hilbert space H whose
vectors (state vectors, wave functions) completely describe the states
of the system.
Axiom II. To every observable P corresponds uniquely a self-adjoint
operator A action in H.
Axiom III. For a system in state φ, the probability probA(λ1,λ2|φ) that
the result of a measurement of the observable P, represented by A,
lies between λ1 and λ2 is given by ║(Eλ2 - Eλ1)φ║2, where Eλ is the
resolution of the identity belonging to A.
Axiom IV. The time development of the state vector φ is determined by
the equation Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (Schrödinger equation), where the Hamiltonian H
is the evolution operator and ℏ is Planck’s constant divided by 2π.
Axiom V. If the measurement of the observable P, represented by A,
yields a result between λ1 and λ2, then the state of the system
immediately after the measurement is an eigenfunction of (Eλ2 - Eλ1),
Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York:
John Wiley & sons, p. 5. (Tradução minha).
134
lugar, porque o labor filosófico não se faz pelo uso de
formalismos
matemáticos
sofisticados,
como
é
caso
do
formalismo de Von Neumann. O labor filosófico faz-se pelo
uso das palavras e a sofisticação dos conceitos. Porque
preferem, então, os filósofos o formalismo de Von Neumann?
Talvez porque seja esse o da preferência dos físicos. O que
pode ser encontrado com mais facilidade nos manuais de
física.
Ou
formalismo
estará
talvez
de
em
Von
porque
Neumann
desacordo
que
o
é
filósofo
de
o
que
inspiração
seu
labor
prefere
o
analítica
e
não
se
faça
acentuadamente pelo formalismo. Ou ainda porque talvez o
filosofo creia que os postulados quânticos não se podem
apresentar senão de forma matemático-formal. Como veremos,
já de seguida, tal não é o caso.
Em segundo lugar, digo que o formalismo de Von Neumann
não é o mais indicado para o labor filosófico pois tratase, na realidade, de um meta-formalismo. Isto é, de um
formalismo construído, deliberadamente, para englobar os
formalismo de Heisenberg e Schrödinger numa unidade. Tal é
explicitamente
Mathematical
assumido
Foundations
pelo
of
próprio
Quantum
Von
Neumann
Mechanics134.
no
Esta
operação de unificação formal, que muito útil é para o
134
Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der
Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T.
Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton:
Princeton University Press, 1955), p. 351
135
físico, a meu ver, afasta o filósofo da questão fundamental
da
Mecânica
relação
Quântica.
entre
a
Obscurece-a,
constituição
da
pois
a
Mecânica
tão
decisiva
Quântica
e
o
problema da natureza dos objectos quânticos fica como por
detrás de um pano, como uma sombra chinesa. Passamos a ver
coelhos onde há dedos. Assim, os postulados da Mecânica
Quântica que a seguir apresento, apresento-os de forma,
quase totalmente, discursiva e baseando-me na formulação
rigorosa, clara e inspirados que surge na Introdução à
Física Moderna de Andrade e Silva135.
Posto isto, a meu ver a Mecânica Quântica pode ser
enunciada, no seu essencial, a partir dos cinco postulados
que se seguem:
Primeiro Postulado da Mecânica Quântica: o estado de
um
sistema
quântico136,
para
um
dado
instante,
é
completamente definido por uma função de onda Ψ(q1,q2,q3,t).
135
Conferir Andrade e Silva, J. (1997), Introdução à Física Moderna,
Lisboa: Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências da
Universidade de Lisboa, pp. 113-117.
136
Note-se que, em sentido estrito, os sistemas quânticos distinguemse dos sistemas físicos clássicos apenas de forma nominal. Isto é, a
distinção entre sistemas clássicos e quânticos reside unicamente no
facto dos primeiros serem constituídos por objectos físicos clássicos
e os segundos por objectos quânticos. Por seu turno, os sistemas
físicos, sejam eles clássicos, sejam eles quânticos, podem ser
individuais, quando constituídos por um único objecto, ou compostos,
quando constituídos dois ou mais objectos.
136
Segundo
observável
postulado
O
da
corresponde
Mecânica
um
Quântica:
operador
linear
A
cada
Ô.
Os
resultados possíveis de uma medida de um observável O são
os valores próprios do operador linear correspondente.
Terceiro
postulado
da
Mecânica
Quântica:
a
decomposição espectral da função de onda permite calcular a
probabilidade
respectiva
de
cada
um
dos
resultados
possíveis de uma medição.
Quarto postulado da Mecânica Quântica: a evolução da
função
de
onda
é,
em
geral,
descrita
pela
equação
de
Quando
se
Schrödinger.
Onde H é o operador Hamiltoniano.
Quinto
postulado
da
Mecânica
Quântica:
efectua uma medição sobre o sistema a que a função de onda
transforma-se, imediatamente, numa das funções próprias do
observável correspondente à medição.
2.8.1.
Léxico:
Função
de
Onda,
Observáveis
e
Operadores.
A compreensão destes postulados exigem, como é fácil
de entender, passa por uma compreensão do seu léxico. Em
137
particular dos termos “função de onda”, “observáveis” e
“operadores”.
Uma função de onda é, tal o próprio nome assim o
indica,
uma
função
matemática
em
a
projecção
das
suas
soluções no espaço desenha a figura de uma onda. No caso da
Mecânica Quântica a função de onda tem, em geral, a forma
de uma onda harmónica plana. Uma onda de extensão infinita
e de frequência temporal constante. À função de onda Ψ
atribui-se igualmente a designação de “função de estado” do
sistema,
pois,
segundo
o
primeiro
postulado,
a
função
define, por completo, o estado de um sistema quântico num
instante determinado.
Em Mecânica Quântica designam-se de “observáveis” as
propriedades dos objectos quânticos que se podem medir. O
que se justifica pois – recorde-se - em Mecânica Quântica,
os
termos
“medição”
e
“observação”
são
usados,
frequentemente, como sinónimos. Sucedendo o mesmo com os
termos
“aparelho
de
medida”,
“instrumento
de
medida”
e
“agente de observação”. Por outro lado, considera-se que
dos sistemas quânticos só são mensuráveis as propriedades
físicas que possam sofrer alterações, na sua quantidade,
por razão de um processo físico. Este tipo de propriedades
toma,
em
dinâmicas”.
Física,
Assim,
a
designação
pode-se
de
“grandezas
igualmente
físicas
definir
por
138
“observáveis”
como
as
grandezas
físicas
dinâmicas
dos
objectos quânticos. Este não é o caso, por exemplo, do
tempo, da massa ou da carga, que não se alteram na sua
quantidade por razão de um processo de medição. Mas este é
o caso, por exemplo, da posição, da velocidade, do momentum
ou da energia. E, deste modo, posição, velocidade, momentum
e energia são ditos de observáveis dos sistemas quânticos.
Por fim, por operador linear entende-se, em geral, um
objecto matemático que quando aplicado a uma função opera
uma transformação de tal forma que a adição do conjunto de
resultados dessa transformação é igual à função sobre a
qual se aplicou o operador. No caso particular da Mecânica
Quântica, os operadores lineares são aplicados à função de
onda que define um dado sistema quântico produzindo uma
decomposição linear em outras funções chamadas de “funções
próprias do operador”. Por sua vez, cada uma dessas funções
próprias define, por completo, um dos estados possíveis de
ser obtido numa medição do observável correspondente ao
operador em questão. Ou seja, define o resultado de uma
medição.
Ao
valor
quantitativo
associado
a
uma
função
própria, ou seja, aquilo que é o resultado numa medição
designa-se por “valor próprio do operador”. Ao conjunto dos
valores
próprios
atribui-se
o
nome
de
”espectro
do
operador”.
139
Fazendo uso de uma analogia, um operador linear em
Mecânica Quântica actua como se de um prisma se tratasse.
Tal como um prisma decompõe linearmente, isto é, em que a
composição das partes é aditivamente equivalente ao todo,
a
luz
emitida
pelo
Sol
nas
cores
possíveis
de
serem
observadas, um operador decompõe linearmente a função de
onda nas funções próprias desse operador. Ou seja, nos
estados
possíveis
de
serem
observados
da
propriedade
dinâmica considerada.
Tal como se considera que a luz do Sol é composta pela
sobreposição linear de todas cores possíveis, considera-se
que a função-de-onda é composta pela sobreposição linear do
conjunto completo das funções próprias de um dado operador.
E, finalmente, tal como o que se observa da luz operada
pelo prisma são as cores, e ao conjunto destas se designa
por “espectro”, o que se observa de um sistema quântico são
os valores próprios de um dado
operador, e o
conjunto
destes constitui o “espectro do operador”.
Por último, é preciso esclarecer o termo “corresponde”
que surge no segundo postulado. De acordo com este diz-se
que a cada observável corresponde um operador. Significa
isto que em Mecânica Quântica, uma grandeza física dinâmica
é representada matematicamente por um operador. Portanto, e
de forma literal, o observável “momentum” é representado
matematicamente
pelo
operador
“momentum”,
o
observável
140
“posição”
é
representado
“posição”,
o
matematicamente
observável
“energia”
pelo
operador
representado
pelo
operador “energia”, e assim por diante. De forma que cada
observável
seja
representado
matematicamente
por
um
operador linear correspondente.
Clarificado o léxico, creio que agora é possível –
finalmente – esclarecer de que forma a Mecânica Quântica é,
na sua essência, uma generalização racional das teorias
clássicas da Física.
2.8.2. A Mecânica Quântica como generalização racional
das teorias clássicas da Física.
Da leitura dos postulados da Mecânica Quântica dois
aspectos fundamentais, a meu ver, surgem de imediato:
1) O tema central da Mecânica Quântica é a medição.
2) A linguagem dos primeiros quatro postulados é uma
linguagem relativa a ondas, enquanto o quinto é
relativo a corpos.
Comecemos
distingue-se
físicas
ao
pelo
primeiro
radicalmente
dedicar-se
de
ponto.
todas
exclusivamente
A
Mecânica
as
outras
à
medição.
Quântica
teorias
Não,
é
141
claro, porque a medição não tenha sido sempre um aspecto
importante em Física. Já aqui o assinalámos anteriormente.
Mas, ao contrário de qualquer outra teoria em Física, em
Mecânica
Quântica
a
medição
é,
não
só
incorporada
na
própria constituição da teoria, como é o seu tema central.
A medição, na Mecânica Quântica, não tem o estatuto de
simples concretização das previsões de uma teoria. Algo de
que sempre sucedeu nas teorias físicas clássicas e por essa
razão
jamais
jamais
mereceu
mereceu
ser
honras
referida
de
nos
constar
seus
postulados,
sua
construção
na
axiomática das teorias físicas. A medição sempre se pode
delicadamente ignorar em Física Clássica. Seja porque o
próprio aparelho de medida pode ser objecto de descrição
das
teorias
físicas
clássicas.
Seja
porque
as
teorias
físicas aos serem fundadas na pentadoxia sobre os objectos
físicos pressupõem que, idealmente, isto é, num limite onde
a interacção entre sistema medidor e medido praticamente
nulo, um processo onde a intervenção do aparelho de medida
é irrelevante.
A
relevância
da
medição
da
Mecânica
Quântica
é
particularmente notória no segundo postulado desta teoria,
quando
se
operador
afirma
linear.
que
Pois
a
cada
isto
observável
significa
que
corresponde
cada
um
grandeza
física dinâmica é formalmente representada, não por uma
variável, como em todas outras teorias físicas, mas, em
142
geral, por uma função diferencial. Isto é, por um objecto
matemático que é aplicada à função de estado (ou função de
onda)
decompondo-a
linearmente
em
funções
próprias
do
observável a que corresponde. Funções matemáticas estas que
representam, um resultado possível da medição. Ou seja, e
dito de uma forma mais clara, um operador é, no contexto da
Mecânica Quântica, um objecto
formalmente
a
determinada
postulado,
acção
(ou
grandeza
ao
matemático que representa
operação)
física.
estabelecer-se
de
medição
Portanto,
que
a
no
cada
de
uma
segundo
observável
corresponde um operador, inscreve-se na lei fundamental da
Mecânica Quântica que esta refere-se, não às propriedades
do sistema, que seriam representadas formalmente por uma
variável,
mas
refere-se
aos
resultados
da
operação
da
medida das propriedades. A Mecânica Quântica não se refere,
por exemplo, à posição de um objecto quântico mas à medição
da posição dessa entidade. Este é, quanto a mim, um dos
pontos
crucial:
a
Mecânica
Quântica
não
se
refere
às
propriedades características dos objectos físicos, mas à
operação de medição das propriedades que se enquadram na
categoria de grandezas físicas. A Mecânica Quântica não tem
como referente as propriedades como a posição, o momentum
ou
a
energia
(e,
portanto,
dentro
de
uma
perspectiva
substancialista, não se refere a entidade que possua essas
propriedades) mas à operação de medição da posição, do
143
momentum
ou
da
energia.
E,
neste
sentido,
a
Mecânica
Quântica constitui-se por uma alteração das questões que
caracterizam a Mecânica. Se esta última se pergunta “onde
está?” e “para onde vai?”, a Mecânica Quântica pergunta
“quais são os resultados possíveis da medição da posição?”
e
“quais
são
os
resultados
possíveis
da
medição
do
momentum?”.
Portanto, a meu ver, a Mecânica Quântica nada afirma
sobre um estado
de um sistema
físico antes da medida.
Apenas prevê o conjunto de resultados possíveis e suas
probabilidades
Quântica
é,
resultados
podemos
de
respectivas
pois,
como
uma
roleta.
perguntar
pela
de
uma
uma
E
medição.
teoria
tal
como
probabilidade
A
Mecânica
estatística
dos
numa
nos
de
roleta
sair
um
dado
número, de sair uma dada cor, de sair um número par (ou
impar),
na
Mecânica
Quântica
podemos
perguntar
pela
probabilidade de um determinado resultado da posição, do
momentum, da energia, etc. O terceiro postulado enuncia
justamente a forma de encontrar a probabilidade de cada
resultado da medição a partir da função de estado.
Por outro lado, a distribuição de resultados e as suas
probabilidades
respectivas
são
dependentes
do
contexto
experimental. Se a roleta em causa for do tipo americana e
144
não do tipo europeia137, ou se bloquearmos o número 13 já
depois do lançamento da esfera da sorte, por exemplo, isso
implica uma modificação dos resultados possíveis e das suas
probabilidades respectivas. A equação de Schrödinger serve,
justamente,
dar
conta
das
variações
que
decorrem
da
inclusão de elementos que modifiquem as condições iniciais
do
sistema.
Ou
seja,
da
evolução
das
previsões
dos
resultados de medida em função da evolução das condições do
sistema.
No entanto, contrariamente a uma roleta, a estatística
segundo
a
qual
se
constitui
a
Mecânica
Quântica
é
ondulatória. É particularmente claro, em especial, quando
se
acede
ao
domínio
quântico
por
via
da
chamada
“experiência da dupla fenda” que o coração da Mecânica
Quântica
habita
na
frase
“distribuição
estatística
ondulatória de resultados”. Como tal, é sem surpresa que se
constata que ao longo dos quatro postulados iniciais – os
que se referem à probabilidade e estatística de resultados
da medição -
é clara a presença de termos que se referem
às ondas. Logo no primeiro postulado, pois neste se define
a função de estado de um sistema quântico como uma função
de onda. Função de onda que, pelo segundo postulado, é
decomposta linearmente por um operador em funções próprias,
137
As roletas distinguem-se na sua tipologia em americanas e europeias
pela inclusão de mais um número – o 00 – nas primeiras em relação as
primeiras.
145
tal como a luz é decomposta linearmente por um prisma em
cores. E, desta forma, tal como a luz pode ser entendida
como o composto linear de todas as cores observáveis, a o
estado do sistema quântico num dado instante, pode ser
entendida como o composto de uma sobreposição linear de
estados possíveis de serem resultados de uma medida. Por
sua vez, no terceiro postulado é estabelecida a relação
entre
a
probabilidade
de
cada
um
desses
resultados
possíveis de uma medição e a amplitude da função de onda
que os descreve. E, por fim, a equação que dá conta da
evolução – a equação de Schrödinger resultados de uma medida sobre
da expectativa dos
o sistema físico é uma
equação típica de ondas.
Ondas e probabilidades dos resultados possíveis de uma
medição
cruzam-se
nos
primeiros
postulados.
Corpo
e
resultado da medida cruzam-se no quinto e último postulado.
Pois
se
a
estatística
é
ondulatória,
cada
resultado
individual é a fixação de valor determinado para a posição,
para
o
momentum,
para
energia,
etc.
Ou
seja,
para
as
propriedades corpusculares.
Esta é a forma extremamente habilidosa, trama subtil
de
equilíbrio
delicado,
urdida
principalmente
por
esse
génio dinamarquês, obstinado mas polido, que se constituiu
a Mecânica Quântica.
146
Por
um
lado,
a
Mecânica
Quântica
constitui-se
aceitando a imposição da Natureza física que os objectos
quânticos se propagam como ondas e interagem como corpos.
Não haveria uma teoria quântica se não houvesse anuência à
imposição
quântica
da
sem
Natureza
uma
física.
certa
dose
Não
de
haveria
realismo.
uma
Sem
teoria
algo
da
própria Natureza física a decepcionar a nossa concepção
clássica.
No entanto, por outro lado, trata-se de uma aceitação
condicionada pela pentadoxia dos objectos físicos. Isto é,
sem
prescindir
que
os
objectos
físicos
só
podem
ser
concebidos tal qual o são nas teorias clássicas da física.
Ou
seja,
distinguem
sem
prescindir
exclusivamente
que
em
os
ondas
objectos
ou
físicos
corpos;
que
se
são
substanciais; que as suas partes têm a mesma natureza do
seu todo; que as suas propriedades quantitativas possuem
valores bem determinados; que a actualização sucede sem
alteração
extensão,
de
sem
natureza
do
que
é
actualizado.
prescindir
do
primado
dos
E,
por
conceitos
clássicos. Porém, afirmar que não se admite outra concepção
de objectos físicos senão a da pentadoxia, não significa
que uma teoria física os tenha que incluir integralmente.
Pode incluir esses elementos de um modo formal e ser-se
ausente nas referências ontológicas. É o caso da Mecânica
Quântica.
147
Assim,
encontramos
pentadoxia
dos
a
presença
objectos
físicos
dos
elementos
quando
da
encontramos,
implicitamente, as partículas puras dos corpos e das ondas
ao longo dos postulados. Pois quando há pouco se afirmou
que a Mecânica Quântica transforma, por exemplo, a questão
“onde
está?”
para
“quais
os
resultados
possíveis
(e
respectivas probabilidades) de uma medição da posição?”,
implica que a Mecânica Quântica refere-se às partículas
pura dos corpos, isto é aos corpos pontuais, pois são as
entidades que possuem uma posição bem determinada. Porém,
os
corpos
pontuais
ideais
dos
corpos,
únicos
elementos
surgem
como
aos
aqui
não
arquétipos
quais
a
como
representações
deste,
teoria
mas
como
os
quântica
nova
se
refere. Numa autonomização absoluta do representante face
ao representado.
Por sua vez, ao identificar-se a função de onda como
as funções de estado isto implica que as ondas a que se
refere a Mecânica Quântica são infinitamente extensas e de
frequência temporal (e por consequência, de energia) bem
determinada.
formalmente
Isto
às
é,
a
Mecânica
partículas
sinusoidais planas ou
Se
a
Mecânica
puras
Quântica
das
ondas
–
refere-se
as
ondas
ondas de Fourier.
é
a
Física
dos
corpos
e
o
Electromagnetismo é a Física das ondas, a Mecânica Quântica
é a Física das partículas puras dos corpos e das ondas. Ou
148
seja, na Mecânica Quântica a referência as ondas se cingem
à
estatística
física
que
dos
resultados,
possuam
não
a
propriedades
qualquer
entidade
ondulatórias.
E
a
referência aos corpos cinge-se à verificação de um valor
bem
determinado
Quântica
nas
integra
a
medições.
imposição
Deste
da
modo,
natureza
a
Mecânica
dos
objectos
quânticos por um lado, a constituir-se com uma estrutura
dual.
Isto
é,
tendo
a
parte
cinemática
dos
postulados
referentes a ondas; e a parte dinâmica referente a corpos.
Por
outro
quânticos
formal.
lado,
é
A
a
imposição
integrada
Mecânica
da
natureza
considerando-a
Quântica
dos
apenas
constitui-se
objectos
de
não
maneira
como
uma
teoria que se refere aos objectos quânticos, pois estes
são,
pela
sua
natureza,
incompatíveis
com
a
Física
Clássica. A Mecânica Quântica constitui-se como uma teoria
que se refere somente aos resultados de uma medição. Pois
este é a única forma de trazer o domínio quântico para o
domínio clássico. De certa forma, de integrar o quântico no
clássico.
É, portanto, notório que o propósito de Bohr sempre
foi o de conciliar as teorias
natureza
quântica
precisamente,
e
num
como
o
clássicas com a
todo
consistente.
próprio
afirmou
bizarra
Ou
(que
mais
aqui
se
recorda) “O problema com que os físicos foram confrontados
[perante
a
descoberta
de
Planck]
foi,
como
tal,
o
de
149
desenvolverem uma generalização racional da física clássica
que
permitisse
a
incorporação
harmónica
do
quantum
de
acção.”138
Ao
assinalar
generalização
afirmar
que
racional
que
a
a
da
Mecânica
física
Mecânica
Quântica
clássica,
Quântica
foi
é
Bohr
uma
está
constituída,
a
não
através da introdução de novos conceitos ou de uma nova
linguagem em relação à Física clássica, mas através de uma
revisão racional dos conceitos e modos de descrição já
presentes na Física Clássica. Num equilíbrio difícil entre
manter-se
o
mais
próximo
da
Física
Clássica
e
querer
estende-la de forma a incorporar o postulado quântico. E
esta é esta, a meu ver, a essência da Mecânica Quântica:
não tanto uma profunda revolução, mas uma resposta, quase
desesperada,
do
“espírito”
da
Física
Clássica
caracteriza pela pentadoxia dos objectos físicos,
que
se
por via
da razão, à perturbação causada pela descoberta do domínio
quântico. Assim, se as teorias clássicas têm como elementos
fundamentais
momentum,
seu
energia,
quantitativas,
formais
do
a
formalismo
etc.,
que
Mecânica
fundamentais
os
as
variáveis
representam
Quântica
operadores
tem
propriedades
como
posição,
posição,
elementos
o
operador
momentum, o operador energia, etc., elementos que actos de
medida das propriedades quantitativas. As segundas – os
138
Conferir nota de rodapé º 5 deste capítulo.
150
operadores
-
são
uma
construção
puramente
formal
das
primeiras – as variáveis. Construção formal que integra,
como é claro, o valor do quantum de acção. Deste modo, os
conceitos clássicos são integrados na mecânica quântica por
via de uma generalização racional.
Neste sentido a Mecânica Quântica é, na sua essência,
a
meu
ver
e
estando
aqui
em
acordo
com
Bohr,
uma
generalização racional das teorias clássicas da Física.
Porém, a Mecânica Quântica ao constituir-se como uma
generalização racional das teorias clássicas perde contacto
com as entidades que deveria descrever. A Mecânica Quântica
não tem como referentes os objectos quânticos, mas um dado
conjunto
de
medições
que
são
realizadas.
A
Mecânica
Quântica constitui-se por recusa de se enfrentar com a
questão da natureza dos objectos quânticos. Recusa que, por
sua vez, leva ao vazio de sentido de questões como: “o que
existia antes da medida?”. Aceitar a Mecânica Quântica e,
no entanto, colocar a questão sobre o que nos diz esta do
que existe, realmente, antes da medida, é o
mesmo que
aceitar o Big Bang e procurar resposta na Teoria do Big
Bang à questão “o que existia antes do Big Bang?”. Ambas
teorias constituem-se fora do âmbito dessas questões.
No entanto, boa parte da literatura filosófica sobre
a Mecânica Quântica conhece a sua motivação numa certa
151
tentação de ter um discurso ontológico sobre esta teoria
quântica. Esta
tentação de ontologizar concretiza-se na
atribuição à função de onda do estatuto de função de estado
do sistema antes da medida. Ou seja, como se a função de
onda de um sistema representasse, efectivamente, de algum
modo, o estado do sistema antes da medição e não fosse
relativo
apenas
e
só
à
expectativa
de
resultados.
A
diferença será subtil mas creio que pode ser elucidada
regressando ao exemplo da roleta. Imagine-se que esta é
viciada de tal forma que a distribuição de ocorrência dos
números
(resultados
lançamento
–
de
uma
configurasse
roleta)
não
o
–
lançamento
perfil
a
estatístico
corpuscular, que seria uma recta, mas um perfil estatístico
ondulatório. Isto é, uma curva (uma normal, por exemplo). O
perfil estatístico de tão demoníaca roleta poderia ser,
formalmente, tomado como o resultado da sobreposição linear
de um conjunto de ondas, cada uma relativa a cada número de
sair
em
sorte.
Ou
seja,
nesta
roleta
cada
resultado
possível é descrito, formalmente, por uma onda. Contudo,
trata-se de um sistema mecânico plenamente clássico, de uma
esfera e um conjunto de “caixas” pintadas com um número. E,
como tal, a função de estado deste sistema é uma função de
onda. Porém, esta função traduz somente a expectativa de
resultados e de, nenhum modo, representa o sistema físico
antes da medição.
152
Essa cedência à tentação de ontologizar a Mecânica
Quântica
nunca
a
encontramos
em
Bohr.
Nem
poderíamos
encontrar, a meu ver. Pois para ele será bem claro que a
Mecânica Quântica não se refere ao domínio quântico, mas ao
resultado das medições. E, como tal, não fará sentido algum
falar-se do estado do sistema quântico antes da medida. É
em Von Neumann que encontramos, em certa medida, o início
deste
movimento
de
cedência
à
tentação,
este
cair
num
discurso ontologizante, ainda que insípido, sobre a função
de onda. Encontramo-lo exactamente na mesma obra, de 1932 e
que já foi aqui referida, onde tratou de axiomatizar a
Mecânica Quântica. Assinala-se
outros
o
primeiros
farão
posteriormente,
postulados,
um
Von Neumann, como muitos
que
sistema
conforme
quântico
os
antes
quatros
de
uma
medição é, em geral, composto por uma sobreposição linear
de
estados
possíveis
de
uma
medição.
Cada
um
destes
definidos por uma função própria do operador correspondente
à medição. Ou seja, como se esses estados possíveis de uma
medida existissem, de algum modo, em sobreposição. A tão
famosa “sobreposição quântica”. E deste modo afirma-se que
antes da medida, relativamente, por exemplo, à sua energia,
um sistema quântico encontra-se num estado de sobreposição
dos estados de energia possíveis de virem a ser medidos.
De seguida acrescenta-se que a equação de Schrödinger
permite determinar completamente o estado do sistema, num
153
instante qualquer, a partir do conhecimento da função de
onda num instante qualquer anterior. Ou seja, que é uma
equação determinista. O que tem duas consequências. Por um
lado
significa
primeiros
que
considerando-se
postulados,
a
Mecânica
apenas
Quântica
é
os
quatro
uma
teoria
determinista. E, por outro lado, dado que se considera que
o
sistema
evolui
sobreposição
de
linear
forma
de
determinística,
estados
então,
possíveis
essa
permanece
perfeitamente definida enquanto sobreposição ao longo do
tempo. (O que, em boa verdade, não é surpreendente. Por um
lado, pois essa “evolução do estado do sistema” trata-se
tão somente uma evolução da expectativa dos resultados de
uma dada medição. Como a expectativa dos resultados de uma
roleta.
Expectativas
determinista.
Por
esta
outro
que
também
lado,
evoluem
trabalha-se
de
formal
com
uma
estatística ondulatória e, como tal, pode-se representar a
função de onda como o produto de um
sobreposição linear de
outras ondas).
No
entanto,
de
uma
medição
não
resulta
uma
sobreposição de estados, mas apenas um estado particular
bem determinado. Por exemplo, da medição de um electrão
resulta um valor determinado para a sua posição, para o seu
momentum, para a sua energia, etc. Nunca se observa um
electrão, simultaneamente, em duas ou mais localizações, ou
com duas ou mais energias, por exemplo.
154
Assim, no último capítulo da referida obra de Von
Neumann,
este
assinala
existência
dos
dois
tipos
de
evolução dos sistemas quânticos139: Uma evolução continua,
determinista, linear e reversível, que decorre ao longo do
tempo e antes de ser efectuada uma medição no sistema; e
uma outra evolução, esta descontínua, indeterminista, nãolinear e irreversível, que ocorre quando uma medição sobre
esse sistema é efectuada.
Interpretando-se a função de onda como se referisse a
algo antes da medida, coloca-se, logicamente, a questão:
como relacionar o que existe antes da medida com o que
resulta
da
medida?
Como
relacionar
os
dois
regimes
da
regimes
de
evolução dos sistemas quânticos?
Para
dar
conta
desta
transição
entre
evolução dos sistemas quânticos que Von Neumann propõe o
quinto e último postulado da Mecânica Quântica, onde se
promove que no instante em que se realiza a medição há uma
transformação,
funções
um
próprias
colapso,
do
da
função
sistema.
Este
de
onda
numa
postulado
das
ficaria
celebrizado com a designação de “postulado do colapso da
função de onda”. Como é por demais conhecido, a celebridade
é deste postulado decorre do facto de ser a partir deste
que
resulta
o
emaranhado
de
problemas
que
têm
ocupado
139
Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der
Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T.
Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton:
Princeton University Press, 1955), p. 351.
155
grande
parte
da
literatura
filosófica
da
Mecânica
Quântica140. Emaranhado este a que se tem dado a designação
geral de “problema da medição”.
2.9.O Problema da Medição
O
chamado
"problema
da
medição"
surge,
segundo
literatura filosófica especializada141, como já
a
aqui foi
visto, da oposição entre a evolução determinista descrita
pelos
primeiros
quatro
postulados
e
a
evolução
indeterminista descrita pelo postulado do colapso. Mais
propriamente,
o
enunciado
partir
a
problema
da
geral
seguinte
da
medição
questão:
pode
ser
como,
por
consequência de uma medição, um sistema que se encontra em
"sobreposição quântica" se transforma, por acção de uma
medição,
num
sistema
em
que
os
seus
estados
não
se
sobrepõem?
140
Conferir Primeiro capítulo deste trabalho, página 9.
Conferir Busch, Paul e Lahti, Pekka (2009), “Measurement Theory” in
Greenberger, Daniel; Hentschel, Klaus e Weinert, Friedel, Compendium
of Quantum Physics, Berlim: Springer-Verlag, p. 375.
141
156
Segundo
Osvaldo
Jr.142,
Pessoa
o
problema
geral
da
medição pode, por sua vez, ser decomposto em dois outros
problemas:
i) Problema da "caracterização": se o postulado do
colapso se aplica sempre quando é realizada uma medição
sobre um sistema quântico, então o que caracteriza uma
medição?
ii) Problema da "completude": poderia o processo de
medição que está na origem do postulado do colapso ser
explicado
pela
própria
Mecânica
Quântica
e,
por
conseguinte, esta ser completa sem necessitar do quinto
postulado?
Embora
distintos,
estes
dois
problemas
não
são
independentes. Pois se houver uma resposta positiva para o
problema da completude então o problema da caracterização
também
terá
sido
desapareceria.
resolvido,
Analisemos
porque
o
quinto
postulado
separadamente
ambos,
começando
pelo segundo (visto que é a condição do primeiro).
142
Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em mecânica
quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e Filosofia da
Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 183.
157
2.9.1. O problema da Completude
Na
literatura
sobre
os
fundamentos
da
Mecânica
Quântica existem, em geral, três tipos de resolução do
problema da completude.
O primeiro tipo de resolução do referido problema foi
proposto pelo próprio Von Neumann. Este faz uso da hipótese
segundo a qual o aparelho macroscópico de medida poderia
ser descrito como um sistema quântico143. Objecto quântico
medido e aparelho de medida formariam assim um sistema
quântico composto. Contudo, tal não resolveria o problema
da completude, pois o estado deste sistema é um estado em
sobreposição. O sistema teria, por sua vez, que ser medido
por outro aparelho de medida e, como tal, retornar-se-ia à
situação
cadeia
inicial.
infinita
Logo,
de
desta
aparelhos
forma,
de
entrar-se-ia
medida
que
se
numa
medem,
sucessivamente, uns aos outros. E, como tal, nunca haveria
um valor da medição. O acto de medição nunca se concluiria.
Como mais à frente144 se verá, Von Neumann tenta responder a
esta objecção a
partir da sua
resposta ao problema da
caracterização.
Um outro tipo de proposta de resolução do problema da
completude da Mecânica Quântica encontramos a sua génese da
143
Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics:
The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective.
New York: Wiley-Interscience, p. 475.
144
Conferir página 163.
158
já referida145 tese de Schrödinger de considerar que os
objectos quânticos têm uma natureza totalmente ondulatória,
isto é, são ondas, que são representadas pela função de
onda. E, como tal, no acto de
colapso
abrupto
da
função
medição não haveria um
de
onda
mas
o
produto
da
interacção física entre a matéria do aparelho de medida e
objecto quântico. Exactamente que processo é este é matéria
para o problema da caracterização de uma medição. Por essa
razão, mais frente voltaremos a esta tese.
Por
fim,
o
terceiro
tipo
de
teses
em
defesa
da
completude da Mecânica Quântica sem o quinto postulado é
designado
por
Pessoa
Júnior
criptodeterminista146.
de
Criptodeterminista já que os sistemas quânticos possuiriam
continuamente
propriedades.
um
valor
Os
sistemas
bem
determinado
quânticos
das
cumpririam
suas
com
a
pentadoxia sobre os objectos quânticos e, como tal, seriam
ontologicamente
bem
determinados.
Contudo,
seriam
epistemologicamente indeterminados. Isto é, existiria uma
impossibilidade de prever deterministamente os resultados
de medições individuais. Essa indeterminação seria fruto do
conhecimento necessariamente limitado a respeito do estado
inicial dos sistemas considerados.
145
146
Conferir página 121.
Conferir Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em
mecânica
quântica: Um
exame
atualizado”
in
Cadernos
de História
e
Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 184.
159
Uma das formulações do criptodeterminismo
defender
que
indeterminismo
da
evolução
de
passa por
um
sistema
quântico no momento da medição dever-se-á a uma limitação
do conhecimento do estado físico do observador. E, como
tal, dado que o estado do observador antes da medição não é
conhecido
de
maneira
exacta
seria
impossível
prever
deterministicamente os resultados da interacção entre os
sistemas
objecto
observador.
Tal
da
medida,
como
não
aparelho
sabemos
da
prever
medida
de
e
forma
determinada o resultado de uma colisão entre duas bolas
bilhar
(ou
entre
duas
ondas)
se
desconhecermos,
por
exemplo, a força com que impulsionamos uma delas. E deste
modo, no acto de medida não haveria um misterioso colapso
da função de onda, mas tão-somente a revelação do valor da
propriedade objecto da medida. Tal como se poderia medir a
velocidade
de
colisão
assim
e
cada
uma
saber,
das
a
bolas
de
posteriori,
bilhar
o
depois
da
resultado
da
colisão. Contudo, esta tese conhece diversos problemas. Por
um lado, teria no perfil estatístico ondulatório da medição
um mistério insondável. E, por essa razão, a atribuição de
função
de
estado
à
função
de
onda
seria
completamente
injustificada. Por outro lado, implicaria que o observador,
enquanto
sistema
físico
quântico
observado
e
era,
agente
simultaneamente,
de
observação.
sistema
Seria,
simultaneamente, parte do sistema medido e parte do sistema
160
medidor. O que seria, por um lado, inconsistente com a
definição de estado de um sistema físico, que
é parte
fundadora da Mecânica Quântica, no sentido que esta se
constitui a partir da complementaridade de Bohr. Ou seja,
seria incoerente com a própria Mecânica Quântica. Por outro
lado, levar-nos-ia novamente para o caso de sistemas que se
medem uns a outros numa cadeia infinita.
Existe, no entanto, um outro conjunto de propostas do
tipo criptodeterminista. Estas, no entanto, defendem que a
Mecânica Quântica não é uma teoria completa. Este tipo de
cripodeterminismo consiste na tese de que o indeterminismo
do acto de medida, que na axiomática da Mecânica Quântica –
recorde-se
primeiros
-
aparece
quatro
na
transição
postulados
e
o
abrupta
quinto
entre
os
postulado,
reflectiria apenas uma insuficiência da Mecânica Quântica.
Isto é, haveria pelo menos uma variável que não estaria a
ser considerada. Este conjunto de teses é conhecida por
“tese
das
diferentes
variáveis
formulações
escondidas”
e
em
e
foi
diferentes
avançada,
momentos,
em
por
Einstein147, De Broglie148, Popper149, Bohm150, entre outros.
147
Conferir
Bohr,
N.
(1949),
“Discussions
with
Einstein
on
epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and
Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing.
148
Conferir De Broglie, L. e Andrade e Silva, J.L. (1971), La
Réinterprétation de la Mécanique Ondulatoire,
Paris: GauthierVillards.
149
Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in
Physics, London: Routledge.
161
Estas teses implicam que a função de onda não definiria,
por completo, o estado de um sistema quântico. Ou seja,
estas teses apontam para irresolubilidade do problema da
completude dentro do contexto da Mecânica Quântica, por
razão da incompletude desta. Como tal, apontam para teorias
quânticas alternativas à Mecânica Quântica. Esta é a origem
da linhagem das teorias quântica de De Broglie: a teoria de
De
Broglie
(ou
teoria
da
dupla
solução);
a
teoria
De
Broglie-Bohm (ou Mecânica Bohmiana) e a teoria De BroglieCroca. Quanto a estas será preciso ter claro dois aspectos.
Em primeiro lugar, a família de teorias de De Broglie não
formam
um
grupo
de
interpretações
Quântica. São teorias quânticas
sobre
a
alternativas à
Mecânica
Mecânica
Quântica. Em segundo lugar, é preciso ter claro que as
teorias de De Broglie, de De Broglie-Bohm e de De BroglieCroca,
como
veremos
mais
tarde151,
têm
justamente
como
essência o apelo a um novo conceito de objecto físico. Algo
no entanto que só surge no contexto da última e é a razão
pela qual, a meu ver, as duas primeiras são inconsistentes.
Encontramos em Von Neumann uma recusa clara das teses
de
“variáveis
simultaneamente,
escondidas”.
com
a
proposta
Recusa
de
um
que
teorema
surge,
que,
pretensamente, demonstra que qualquer “tese de variáveis
150
Conferir Bohm, David (1980), Wholeness and the Implicate Order,
London: Routledge.
151
Conferir capítulo V, página 329.
162
escondidas” é inválida152 para a Mecânica Quântica. Teorema,
designado por “no-go” e que até aos meados dos anos 50 do
século XX dominou o panorama dos fundamentos de Mecânica
Quântica. Isto, até ao advento da teoria de De BroglieBohm.
Em conclusão, em relação ao problema da completude
existem
na
literatura
sobre
os
fundamentos
da
Mecânica
Quântica dois caminhos opostos: por um lado, a família de
teorias
de
De
Broglie
defendem
que
o
quinto
postulado
assinala incompletude da Mecânica Quântica; por outro lado,
outros
–
como
Von
Neumann
e
Schrödinger
-
remetem
a
resolução do problema da completude para o contexto do
problema da caracterização.
2.9.2 O problema da Caracterização
Na já aqui referida obra de Von Neumann de 1932, este
assinala153
que
uma
característica
fundamental
de
uma
medição é a existência de um acto perceptivo de um sujeito.
Uma
medição
é
uma
relação
a
três,
como
aqui
já
foi
afirmado. Porém, esta não fica completamente caracterizada
considerando-se apenas a interacção física entre o objecto
152
Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der
Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T.
Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton:
Princeton University Press, 1955), pp. 439.
153
Conferir Idem, pp. 419-420
163
de medida e o aparelho de medida. Para se completar é
preciso
que
exista
um
sujeito
que
tome
consciência
do
resultado da medida. Isto é, da alteração de estado físico
do aparelho de medida. Neste sentido, Von Neumann defende
que
a
transformação
irreversível
do
estado
do
sistema
medido seria devida ao conhecimento que o observador tem do
seu próprio estado, permitindo que ele corte a cadeia de
aparelhos de medida que se medem sucessivamente. Ou seja,
em
última
análise,
seria
a
consciência
do
sujeito
da
medição que levaria ao colapso da função de onda154.
Esta tese de Von Neumann seria mais tarde radicalizada
por Wigner, levando esta a afirmar que “o Universo não
existia ‘realmente’ antes da vida inteligente”
155
.
Esta espécie de subjectivismo ontológico que emana de
Von Neumann e Wigner atravessa toda a literatura filosófica
sobre a Mecânica Quântica. Em particular, surge quando se
analisa a celebre experiência de pensamento que Schrödinger
apresentou, num conjunto de artigos publicados156 em 1935,
e que ficou conhecido como o "paradoxo do gato". Paradoxo
que
configura
a
formulação
mais
famosa
do
problema
da
154
Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics:
The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective.
New York: Wiley-Interscience, pp. 481-482.
155
Citado de Schomers, W. (1987),
“Evolution of Quantum Theory” in
Quantum Theory and pictures of reality, Schomers (ed), Berlim:
Springer, p. 35.
156
Shrödinger, Erwin (1935), "Die gegenwärtige Situation in der
Quantenmechanik" in Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844849.
164
caracterização
e,
simultaneamente,
a
primeira
reacção
contra a tese de Von Neumann. Aqui se apresenta:
Considere-se que um gato é fechado dentro de uma
câmara
de
aço.
Dentro
desta
encontra-se
uma
substância
radioactiva que tem uma probabilidade 1/2 de fazer accionar
um detector dentro de um certo intervalo de tempo. Ligado a
este detector há um "dispositivo assassino" que funciona de
tal maneira que se o detector for disparado, o gato será
morto. Por outro lado, se nenhuma radiação for detectada no
intervalo de tempo considerado o gato permanece vivo. A
Mecânica Quântica descreve o estado do átomo radioactivo
como uma sobreposição de estados de emissão e
de não-
emissão. Qual será, então, o estado do sistema como um todo
ao final do intervalo de tempo aqui considerado?
De acordo com a interpretação de Von Neumann, seria
uma sobreposição de estados - gato vivo e gato morto - até
que
uma
observação
fosse
efectuada
por
um
observador.
Momento no qual dar-se-ia um colapso do estado ou para gato
vivo ou para gato morto. Pois, todas as medições levam à
percepção
de
um
estado
singular.
Ou
seja,
seria
a
consciência do observador que faria o sistema colapsar e,
por consequência, matar ou salvar o pobre animal. Esta
solução leva à tão famigerada conclusão que os objectos
quânticos são ontologicamente determinados pelo
acto de
observação. Conclusão que é absurda para Schrödinger e por
165
essa razão terá crismado de “paradoxo” a experiência de
pensamento descrita. Em alternativa, o físico
austríaco
propôs que num acto de medição, de algum modo, houvesse um
processo físico que levasse a uma compressão das ondas. A
proposta
de
Schrödinger
era
essencialmente
isso:
“uma
proposta”. Porém, é a proposta que está na origem da actual
tese da decoerência157. Onde, justamente, uma medição de um
sistema quântico é caracterizado por um processo físico de
interacção rápidas mas contínua entre o objecto de medida,
o aparelho e o “ambiente” de tal modo que o estado em
sobreposição quântica é transformada num estado clássico.
Contudo, esta tese passa necessariamente pela introdução do
tal parâmetro “ambiente”. Ou seja, por uma variável que é
exterior à Mecânica Quântica. E, por essa razão, a meu ver,
embora pretenda ser fiel à Mecânica Quântica acaba por se
aproximar da família das teorias de variáveis escondidas.
A
meu
ver
do
“paradoxo”
do
gato
de
Schrödinger
resultam uma de três hipóteses relativamente ao problema da
medição:
Primeira hipótese. Aceitar o colapso da função de onda
por acção de uma consciência proposta por Von Neumann e
Wigner e a sua consequente subjectividade ontológica. O que
157
Conferir, por exemplo, do filósofo francês Ómnes, Roland (1990),
Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton Univesity press,
pp. 224-234.
166
me parece ser conduzir a um claro absurdo, pois a Mecânica
Quântica surge, justamente, para dar conta de uma realidade
que não é conceptualizável pelas teorias clássicas. E como
tal, como poderia haver necessidade de responder a uma
realidade
estranha
ontologicamente
e
dependente
simultaneamente
das
nossas
ela
ser
consciências?
Por
outro lado, esta tese de Von Neumann e Wigner conduzem a um
sem número de paradoxos. Por exemplo, se estiverem dois
observadores a observar simultaneamente uma medição, qual
deles é o responsável pelo colapso?
Segunda hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica não
é uma teoria completa, tal como defendem os proponentes das
teorias das variáveis ocultas. E, assim sendo, não fará
sentido ter da função de onda dentro da Mecânica Quântica
como uma função que descreve o estado do sistema antes da
medida.
Terceira
necessita
do
hipótese.
quinto
Aceitar
que
postulado,
a
Mecânica
tentando
no
Quântica
entanto
interpretar o seu formalismo e, em particular, o estatuto
ontológico da função de onda, sem cair no subjectivismo
ontológico da tese de Von Neumann. Ou seja, entramos no
campo prolífero das interpretações da Mecânica Quântica.
Existe um leque enorme de opções. Porém, em comum a todas
percorre o problema da medição sempre insatisfatoriamente
resolvido. Em comum a todas atravessam os problemas que
167
decorrer de cair na tentação de considerar que a função de
onda se refere
ao estado do sistema quântico
medida.
o
Aliás,
Quântica
da
das
panorama
últimas
dos
fundamentos
décadas
tem
antes da
de
sido,
Mecânica
em
parte,
dominado pelo aparecimento de um conjunto de teoremas “nogo”, estes já não sobre a tese das variáveis escondidas,
mas sobre a irresolubilidade do problema da medição158. O
que
é,
a
meu
ver,
indicativo
que
a
Mecânica
Quântica
constitui uma generalização racional das teorias clássicas
da Física e como tal não têm como referente o domínio
quântico mas o resultado de medições sobre este.
2.10. Conclusão
Quatro teses fundamentais percorrem este capítulo:
1) Tanto
a
Mecânica
literatura
Quântica,
filosófica
como
sobre
grande
esta,
parte
da
pressupõem
158
Conferir, por exemplo, Brown, H. (1986) “The Insolubility Proof of
the Quantum Measurement Problem”, Foundations of Physics 16, pp. 857870;
Fine, A. (1970) “Insolubility of the Quantum Measurement
Problem”, Physical Review D2, pp. 2783-2787 ou Busch, P. e Shimony,
Abe (1996), “Insolubility of the Quantum Measurement Problem for
Unsharp Observables”, Studies in History and Philosophy of Science
Part B 27 (4), pp. 397-404.
168
implicitamente um conjunto de cinco teses sobre os
objectos físicos - a pentadoxia.
2) As teorias físicas são caracterizáveis por uma questão
ou um conjunto de questões determinadas.
3) O
domínio
quântico
não
é
conceptualizável
pela
pentadoxia.
4) A Mecânica Quântica é uma generalização racional das
teorias físicas clássicas.
Tanto
a
Mecânica
maioria
da
Quântica,
literatura
como
filosófica
esta
teoria,
sobre
a
assenta,
implicitamente, num conjunto de aparentes certezas acerca
dos objectos físicos: Que os objectos físicos se dividem em
corpos e ondas; que os objectos físicos são divisíveis em
partes cuja natureza é igual ao do todo de que são partes;
que
os
objectos
físicos
possuem
propriedades;
que
as
propriedades quantitativas têm um valor bem determinado;
que os objectos físicos se actualizam sem modificação das
suas
propriedades.
certezas
são
Este
extraídas
conjunto
de
uma
de
cinco
opinião
geral
aparentes
sobre
a
natureza dos objectos físicos e por isso designei-as de
pentadoxia. Opiniões, pois elas entranham-se em nós com tal
facilidade, fruto da sua tão suposta evidência, que são, em
geral,
aceites
de
um
modo
acrítico.
Por
isso,
só
as
169
encontramos
implícitas,
mesmo
na
literatura
filosófica
dedica à Mecânica Quântica. São como um senso
comum a
partir do qual podemos começar a pensar com segurança.
Afinal, quem, mesmo dentro do contexto da Filosofia da
Física,
duvida
que
a
matéria
se
divide
em
sólidos
e
fluidos? Ou seja, que se dividem em corpos e ondas? Que da
divisão de uma maçã resultam duas partes de maçã e que
estas também maçã são? Que os livros, a água ou o fumo têm
cor, forma, cheiro, etc.? Ou seja, que são portadores de
propriedades? Que automóveis, tal como todos os objectos
físicos que nos rodeiam, têm um valor bem determinado da
altura, do peso ou da velocidade? Que uma nota de cinco
euros é, conceptualmente, idêntica esteja ela possivelmente
ou actualmente na minha mão?
Seguros
nesta
pentadoxia
sobre
os
objectos
físicos
fundam-se as teorias clássicas da Física. A Mecânica como
física
dos
ondulações
corpos.
do
O
campo
Electromagnetismo
electromagnético.
como
E
se
física
dos
das
corpos
perguntamos pela sua localização e pelo seu movimento, ou
seja,
perguntamos
“Onde?”
e
“Para
onde?”,
então
estas
questões são a impressão digital da Mecânica. E se das
ondas perguntamos pelo seu ciclo e pela sua magnitude,
estas
questões
são
a
impressão
digital
do
Electromagnetismo. Porém, a Física, em geral, caracterizase, igualmente, pela procura de uma resposta precisa, de
170
uma resposta quantitativa, de uma fixação momentânea do
estado da coisa física. Assim, a Mecânica procura saber a
quantificação da localização, isto é, a posição e procura
saber a quantidade de movimento, isto é, o momentum. Por
sua vez, o Electromagnetismo procura saber a quantificação
do ciclo, isto é, a frequência temporal e procura saber a
quantificação
da
magnitude
da
oscilação,
isto
é,
a
amplitude.
Estas duas teses – as duas primeiras teses do conjunto
de quatro que percorrem este capítulo - encontram a sua
síntese nas partículas puras dos corpos e das ondas. Pois,
por um lado, a pentadoxia leva-nos até essas entidades como
arquétipos dos corpos e das ondas. Por outro lado, apenas
relativamente
às
partículas
puras
podemos
falar
de
“posição”, “momentum”, “frequência temporal”, etc. Ou seja,
é
primeiramente
a
estes
arquétipos,
aos
representantes
ideais dos objectos físicos, que se referem os conceitos
clássicos. Por outro lado, só chegamos às partículas puras
de
ondas
e
corpos,
partindo
da
pentadoxia.
E,
assim,
podemos dizer que aquelas – as partículas puras de corpos e
ondas - são a expressão maior desta – a pentadoxia.
Aceitando as duas teses anteriores, Bohr considera a
linguagem
da
física
clássica
como
um
refinamento
da
linguagem comum que se refere ao mundo físico. Refinamento
171
pois, por um lado, a linguagem da Física toma como ponto de
partida essa linguagem comum. Aquela que se refere ao mundo
físico
que
comummente
experienciamos
com
termos
como
“localização”, “movimento”, “ritmo”, etc. Ou seja, aquela
que se refere ao mundo físico que se divide em corpos e
ondas.
Porém,
ao
contrário
da
linguagem
natural,
a
linguagem da Física pretende ter como referente, não os
corpos e as ondas, mas os representantes arquétipos destes.
E,
a
partir
desse
deslocamento
transformar
a
linguagem
comum, que se referem as qualidades, como “movimento”, numa
linguagem que se refere à quantificação dessas qualidades,
como
“quantidade
de
movimento
ou
momentum”.
Ou
seja,
transformar o discurso ambíguo sobre o mundo físico num
discurso matemático, formal, objectivo. Neste sentido, Bohr
defende que a linguagem da Física clássica é a única que
garante a comunicabilidade efectiva entre Físicos. Pois é
aquela que é objectiva e constrói-se a partir dessa divisão
entre corpos e ondas. Não havendo outras naturezas dos
objectos
físicos,
não
haverá
outras
Físicas
que
não
a
Clássica. E, como tal, Bohr defende a indispensabilidade
dos conceitos clássicos. Outorgando-lhes quase um estatuto
de um a priori
condições
físico.
de
Na
transcendental,
possibilidade
realidade,
de
pois convocam
se
trata-se,
conceber
a
meu
em si as
um
ver,
objecto
de
uma
transcendentalização da pentadoxia dos objectos físicos.
172
Deste modo, a doutrina dos conceitos clássicos de Bohr
implica que qualquer teoria física é uma generalização das
teorias
clássicas.
Em
particular,
uma
qualquer
teoria
atómica deveria resultar de uma generalização natural das
teorias físicas. Isto é, um caso particular destas. Como o
é, por exemplo, a Termodinâmica relativamente à Mecânica.
Contudo, algo da realidade do mundo quântico invalida todos
os modelos clássicos do átomo, como o de Rutherford. Algo
da natureza dos objectos quânticos escapa aos conceitos
clássicos. Escapa à pentadoxia dos objectos físicos. Algo
da realidade do domínio quântico não se deixa enformar.
Bohr
domínio
compreendeu
quântico
esta
como
insubmissão
ninguém,
ao
da
realidade
compreender
que
do
os
objectos quânticos não se deixam conceber como ondas ou
corpos. Se não houvesse essa realidade, aqui compreendida,
tal como propõe Brigitte Falkenburg, como a capacidade de
algo contrariar as nossas expectativas159, de nos desiludir,
não haveria Mecânica Quântica. E, neste sentido, Bohr é,
sem
dúvida,
um
realista.
Realismo
que
será
difícil
de
classificar, mas que o permite ter bem clara a tensão entre
essa
“realidade
quântica”
e
a
doutrina
dos
conceitos
clássicos. E na medida que esta última nada mais é que a
expressão da pentadoxia, foi intenção do físico dinamarquês
159
Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim:
Springer, p. 19.
173
encontrar uma forma de integrar harmoniosamente a estranha
natureza dos objectos quânticos na concepção clássica do
mundo físico.
Esta
integração
estabelecer,
como
constituição
da
realiza-se
princípio
Mecânica
começando
orientador
Quântica,
que
por
da
esta
se
própria
deve
ter,
logicamente, uma relação de correspondência com as teorias
clássicas
da
Física.
Uma
correspondência,
em
primeiro
lugar, entre previsões numéricas no limite onde a natureza
quântica perde significado físico prático. Ou seja, no tal
limite dos grandes números quânticos. Uma correspondência,
em segundo lugar, entre os formalismos. E, em terceiro
lugar, uma correspondência entre conceitos.
Por
fim,
harmoniosa
da
o
culminar
estranha
da
incorporação
natureza
quântica
consistente
nas
e
teorias
clássicas, reside na determinação da aplicabilidade dos
conceitos clássicos.
A tese fundadora da Teoria Quântica Nova foi a de De
Broglie que consiste na afirmação que objectos quânticos se
propagam
como
ondas
e
interagem
como
corpos.
Para
De
Broglie tal tese implicava que, de algum modo, teríamos que
encontrar
um
conceito
quânticos.
Em
De
apropriado
Broglie
existe
para
uma
os
abertura
objectos
para
a
questão: “o que é um objecto quântico?”. Em Bohr existe uma
renúncia total a tal tipo de questão ontológica. De De
174
Broglie, Bohr retira a lição que nenhum conceito clássico
não
pode
ser
aplicado
a
todas
etapas
necessárias
à
descrição completa de uma determinada situação experimental
relativa a um sistema quântico. Da doutrina dos conceitos
clássicos é claro que os objectos quânticos só podem ser
concebidos
fossem
exclusivamente
ondas
ou
corpos
como
não
ondas
haveria
ou
corpos.
necessidade
Mas
de
se
uma
teoria quântica. Bohr foge do labirinto a que a tese de De
Broglie nos conduz, retirando deste apenas a ilação que os
conceitos clássicos devem ser aplicados formalmente e de um
modo complementar. Aos objectos quânticos continuam a ser
aplicados os conceitos de ondas e de corpos. Porém, não se
referem à natureza destes, mas ao padrão de resultados de
uma medição sobre estes. A onda não se refere à natureza
dos objectos quânticos, mas à estatística de resultados de
medida. E neste movimento, a posição é substituída pelo
operador posição. O momentum é substituída pelo operador
momentum. A energia é substituída pelo operador energia. A
Mecânica Quântica não é uma teoria que se refere ao estado
físico dos objectos quânticos, mas apenas e só ao cálculo
probabilístico
Quântica
de
uma
constitui-se,
medição
assim,
sobre
como,
eles.
A
Mecânica
essencialmente,
uma
generalização racional das teorias clássicas da Física.
Compreende-se
quânticos,
pois
dentro
que
do
não
seja
contexto
da
aplicável
Mecânica
aos
objectos
Quântica,
o
175
conceito
de
trajectória.
Pois
isso
significaria
uma
assumpção ontológica sobre essas entidades quânticas. Sobre
uma sucessão de posições. Nem tão pouco lhes será aplicável
o conceito de energia, ou momentum, ou massa, ou qualquer
outro. Se se refere, por exemplo, à posição dos objectos
quânticos é apenas por enorme simplicidade. Na realidade,
no contexto da Mecânica Quântica, deveríamos apenas falar
em
medições
sentido,
de
todo
posição
discurso
e
suas
probabilidades.
ontologizante
sobre
a
Neste
função
de
onda, sobre o cair na tentação de perguntar “o que havia
antes da medição?” querendo ser fiel à Mecânica Quântica, é
uma pura quimera. E, por consequência, parte do debate
sobre as implicações da Mecânica Quântica são, a meu ver,
sem sentido.
Por
outro
lado,
se
se
fala
em
propriedades
dos
objectos quânticos como o spin é apenas por não se ter
presente
que
essas
supostas
propriedades
são
puras
construções formais a partir de propriedades dos objectos
clássicos, tal como o spin é do momentum angular.
E
se
a
Física
de
Partículas
se
faz
falando
em
electrões, neutrinos, protões ou outros objectos quânticos,
imaginadas
como
subterrâneo
do
corpúsculos
CERN,
a
alta
que
se
movem,
velocidade,
quase
no
anel
como
se
fossem bolas de bilhar lançadas dentro um tubo gigante, é
176
apenas como assinala Brigitte Falkenburg160, porque a Física
de Partículas se constitui a partir de um conjunto de
conceitos
operacionais
habilidosas
de
transgressões
partícula.
à
Mecânica
Portanto,
Quântica.
O
em
mesmo
poderia ser dito, a meu ver, da Electrodinâmica Quântica,
com o seu conceito operacional de “campo nulo flutuante”,
ou
da
Química
Quântica,
com
o
conceito
operacional
de
“distribuição de electrões”. Em todas elas, em todas as
linhas de investigação da Física Quântica da segunda metade
do
século
XX,
sente-se
a
vontade
de
ontologização
na
referência ao domínio quântico. O mesmo que a Mecânica
Quântica se recusa fazer qualquer referência ontológica,
pois os objectos quânticos não podem ser concebidos sem
ferir
as
entranhadas
objectos
físicos
questão
não
é
quântico?”.
Pois
que
convicções
percorre
verdadeiramente
essa
questão
sobre
toda
a
a
natureza
Física.
“o
que
é
já
manifesta
dos
Assim,
um
a
objecto
a
nossa
estranheza em relação à sua natureza. Já, de certo modo,
manifesta a nossa vontade de tornar clássico o quântico. Já
nos conduz pelo caminho trilhado por Bohr que só nos leva a
uma Mecânica Quântica, rica na produção de previsões de
resultados,
mas
ontologicamente
vazia.
A
questão
que
o
domínio quântico levanta, a meu ver, não é pois “o que é um
objecto quântico?” mas: “o que é um objecto físico?”.
160
Idem, p. 221.
177
178
3. O que é um objecto físico?
Num artigo que, ainda se pode considerar como recente,
o norteamericano Ned Markosian assinala:
“Apesar
filosóficas,
da
o
sua
óbvia
conceito
de
importância
objecto
nas
físico
tem
discussões
recebido,
surpreendentemente, pouca atenção. Em particular, a questão “O
que é um objecto físico?”, isto é, “qual é a análise correcta do
conceito de objecto físico?” tem sido praticamente ignorada pela
maioria dos filósofos.”161
O conceito de objecto físico é, necessariamente, de
vital importância para a Filosofia da Física. Para qualquer
Física. Não fora esta, justamente, a ciência que tem por
objecto
os
objectos
físicos.
Contudo,
aceitando
o
que
assinala Markosian, estranhamente, a análise deste conceito
tem estado muito pouco presente na Filosofia contemporânea.
161
“Despite its obvious importance in philosophical discussions, the
concept of a physical object has received surprisingly little
attention. In particular, the question What are physical objects?,
i.e., What is the correct analysis of the concept of a physical
object?, has been all but ignored by most philosophers.” Markosian,
Ned (2000), “What are Physical Objects?”, in
Philosophy and
Phenomenological Research, 61, pp. 375-376. (tradução minha)
179
E se assim é para a Filosofia em geral, é-o, logicamente,
para a Filosofia da Física. O que será, particularmente
surpreendente, pois não só é um conceito fundamental, por
definição da própria Filosofia da Física, como se afirmou
no
inicio
deste
parágrafo,
mas
porque,
como
pretendeu
mostrar o capítulo anterior deste trabalho, a questão “o
que é um objecto físico?” é crucial para a Filosofia da
Mecânica Quântica. Porém, se o conceito de objecto físico
tem estado arredado da literatura filosófica actual, ele
foi
manifestamente
um
dos
epicentros
da
ontologia
dos
séculos XVI e XVII – época do início tanto da Filosofia
Moderna, como da Física Clássica. Por isso, a meu ver,
qualquer investigação sobre o conceito de objecto físico,
que se pretende relacionar com a Física actual, terá que
começar
por
essa
época.
Mais
especificamente,
por
Descartes. Tanto mais que Markosian, no referido artigo,
defende uma concepção de objecto físico muito aproximada da
apresentada por Descartes.
180
3.1. O Conceito de Objecto Físico em Descartes
Dentro da bibliografia de Descartes, é nos “Princípios
de Filosofia” que encontramos uma especial e desenvolvida
atenção à Metafísica da Física. Atenção essa que tem o seu
foco no conceito de objecto físico e como a partir deste se
ergue a própria Física. Nos “Princípios de Filosofia”, tal
como nas “Meditações”, Descartes apresenta uma ontologia
constituída
por
três
substâncias.
Substâncias
que
se
distinguem em dois tipos, cada um dos quais correspondente
um
sentido
ligeiramente
diferente
do
conceito
de
substância. Isto mesmo é assinalado por Descartes no título
do
parágrafo
51
da
primeira
parte
dos
“Princípio
de
Filosofia”, onde se pode ler “O que é a substância: um nome
que não se pode atribuir a Deus e às criaturas no mesmo
sentido”.
O
primeiro
desses
sentidos
do
conceito
de
substância pode ser encontrado, no referido parágrafo dos
“Princípios de Filosofia”, na bem conhecida afirmação de
Descartes:
181
“Quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que
existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para
existir.”162
A
substância
surge
aqui
como
o
que
existe
independentemente de qualquer outra coisa. O que quer dizer
que, por um lado, o que é substância subsiste enquanto
existente,
isto
é,
mantém-se
como
existente,
pela
sua
própria natureza. E, por outro lado, significa que o que é
substância tem em si mesma, na sua natureza, a razão da
génese da sua existência.
Porém, como salienta logo o próprio Descartes, “só
Deus é assim”163. Só Deus necessita apenas de si mesmo para
permanecer como existente e só Ele tem a razão da sua
existência completamente fundada na sua natureza. Pois, em
primeiro lugar, Descartes assinala que de Deus temos a
ideia de um “Ser omnisciente, todo-poderoso e extremamente
perfeito, isto é, um Ser todo perfeito”164. Ou seja, de Deus
temos
a
ideia
de
um
Ser
infinitamente
poderoso.
Ora,
162
“Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une
chose qui existe en telle façon qu’elle n’a besoin que de soi-même
pour exister.”
Descartes, René (1644), “Les Principes de la
Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris:
Garnier Frères (1973), p. 121 ( Parte I, Parágrafo 51) (tradução minha
a partir da tradução para português de João Gama,
“Princípios de
Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.45).
163
164
“[…] il n’y a que Dieu qui soit tel” Idem, ibidem.
“[…] d’un être tout-connaissant, sout-puissant
parfait” Idem, (Parte I, parágrafo 14) p. 32.
et
extrêmement
182
naturalmente a existência de tal Ser não pode depender da
existência
de
outra
coisa
qualquer,
pois
seria
uma
contradição um Ser ser infinitamente poderoso e depender de
outra entidade qualquer. E sendo o único Ser infinitamente
poderoso, só Deus pode ter em si mesmo a razão da sua
existência. Como tal, “só pelo facto de se aperceber de que
a existência necessária e eterna está compreendida na ideia
de
um
Ser
concebido
significa,
mergulhando
perfeito”165,
como
tendo
segundo
nas
então
esse
profundezas
só
“pode
necessária”166.
existência
Descartes,
Ser
por
do
um
lado,
chamado
ser
O
que
e
não
“argumento
ontológico”, que se temos em nós essa ideia de um Ser
perfeito então é porque ele existe. E, por outro lado,
significa,
igualmente,
que
somente
Deus
existe
necessariamente pela sua própria essência. Só Deus existe
independentemente de qualquer outra coisa. Só Deus será,
então, substância.
Porém, se só Deus cumpre com a condição de substância
então isto significará que tudo é Deus? Se assim fosse serse-ia levado a dizer que, verdadeiramente, existe apenas
uma única substância –
a de Deus. Dir-se-ia, então, que
165
“[…] de cela Seul qu’elle aperçoit que l’existence nécessaire et
éternelle est comprise dans l’idée qu’elle a d’un être tout parfait,
elle doit conclure que cet être tout parfait est ou existe”, Idem,
ibidem.
166
“[…] parce qu’elle ne peut être conçue qu’avec une
nécessaire.” Idem, p. 100 (Parte I, Parágrafo 14) (p. 33)
existence
183
Descartes é, no fundo, um monista. E, como tal, todas as
coisas, os objectos físicos em particular, seriam algo como
partes, manifestações ou modos particulares de Deus. Esta
conclusão colocaria Descartes muito próximo de
Espinosa
(ou,
Espinosa
muito
do
ponto
de
próximo
de
vista
cronológico,
Descartes).
colocaria
Pois,
justamente,
para
Espinosa, da conclusão que apenas Deus corresponde com o
conceito
de
substância
mesmo, resulta
como
algo
que
existe
apenas
que “afora Deus, não pode ser
si
dada nem
concebida nenhuma substância”167. Tudo o que existe é, de
algum modo, Deus. Distinguindo, então, o filósofo holandês,
a Natureza em duas: a Natureza naturante, que é “[…] o que
existe por si e é concebido por si […], isto é, Deus,
enquanto
é
considerado
naturada
que
é
o
como
conjunto
causa
de
“[…]
livre;
todos
e
os
a
Natureza
modos
dos
atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas
que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas
sem Deus”168. Em Espinosa a Natureza é uma substância única.
E, em particular, os objectos físicos, que no caso são
apenas os corpos, são entendidos como “[…] um modo que
167
Espinosa, Bento de (1677), Ethica, (tradução portuguesa de Joaquim
de Carvalho, Joaquim Ferrreira Gomes e António Simões, Ética, Lisboa:
Relógio d’Água (1992), p. 121.
168
Idem, pp.150-151.
184
exprime, de maneira certa e determinada, a essência de
Deus”169.
Porém, para Descartes, contrariamente a Espinosa, da
consideração que a substância é única, no sentido que só
Deus depende de si mesmo para existir, não resulta que
todas
as
coisas
não
são
outra
coisa
que
modos
ou
manifestações de Deus. Não resulta que as coisas não possam
ser concebidas sem Deus. Em Descartes Deus não está em
todas coisas. Deus é o criador de todas coisas.
Porém, se tudo foi criado por Deus isto não significa
que todas coisas criadas tenham o mesmo estatuto quanto à
sua existência:
“[…] entre as coisas criadas algumas são de tal natureza
que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que
só
têm
necessidade
do
concurso
ordinário
de
Deus,
chamando
substâncias a estas e qualidades ou atributos das substâncias
àquelas.”170
Se
Deus
é
a
única
coisa
cuja
existência
decorre
unicamente da sua natureza, e por isso é única coisa que
169
Idem, p.197.
170
Idem, ibidem.
185
cumpre
integralmente
substância,
unicamente
outras
de
Deus,
com
a
coisas
definição
há
coisas
cuja
que
de
Descartes
existência
para
de
depende
existirem
“só
têm
necessidade do concurso ordinário de Deus”. Como tal estas
são,
na
sua
existência,
completamente
independentes
de
todas outras criadas por Deus. E neste sentido, Descartes
considera-as
igualmente
como
substâncias,
embora
num
sentido ligeiramente diferente relativamente a Deus.
Por seu turno, se estas substâncias apenas necessitam
de
Deus
para
existirem,
então
todas
as
outras
coisas
dependem destas para existirem. Não serão substâncias, pois
não dependem unicamente de Deus para existirem, mas são
“qualidades
ou
atributos”
das
substâncias.
Sendo
mais
específico, afirma Descartes:
“A
criadas
principal
é
que
inteligentes,
substâncias;
umas
ou
as
distinção
são
então
outras
que
observo
intelectuais,
propriedades
são
isto
que
corpórea,
entre
é,
as
substâncias
pertencem
isto
é,
coisas
a
corpos
tais
ou
propriedades que pertencem ao corpo.”171
171
“Et la principale distinction que je remarque entre toutes les
choses créés est que les unes sont intellectuelles, c’est-à-dire sont
des substances intelligentes, ou bien des propriétés qui appartiennent
au corps.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie”
in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier
Frères (1973), p. 119 ( Parte I, parágrafo 48) tradução minha a partir
da tradução para português de João Gama,
“Princípios de Filosofia”,
Lisboa: Edições 70 (2006)), p.44)
186
Nesta passagem, Descartes esclarece que as substâncias
criadas
se
dividem
intelectuais
(a
que
entre
aquelas
Descartes
que
são
igualmente
substâncias
designa
por
substâncias pensantes ou almas) e as que são substâncias
corpórea ou corpos. O que significa, em primeiro lugar, que
existem para Descartes três substâncias. A de Deus, que
existe independente de tudo, e as que a foram criadas por
Deus
e
cuja
existência
depende
unicamente
Dele:
a
substância corpórea e a substância que pensa.
Em segundo lugar, dentro das coisas criadas, para além
das substâncias, existem as propriedades que pertencem à
substância que pensa e as propriedades que pertencem as
substâncias corporais. O que, segundo Rodriguez-Pereya172,
actual professor de Metafísica na Universidade de Oxford,
constitui um segundo conceito de substância em Descartes:
Substância é uma entidade detentora de propriedades. Mas
será que estamos perante, não de um segundo conceito de
substância, mas de um corolário do conceito de substância?
Isto
é,
será
que
da
afirmação
que
a
substância
é
uma
entidade detentora de propriedades decorre da concepção da
172
Conferir Rodriguez-Pereya, Gonzalo (2008), “Descarte’s Substance
dualism and His Independence Concept of Substance” in .Journal of the
History of Philosophy, vol. 46, no. 1, p. 69.
187
substância como o que existe independente de qualquer outra
coisa?
Se
se
afirma
que
algo,
chamemos-lhe
“A”,
não
é
substância pois a sua existência depende directamente de
outra coisa, chamemos-lhe “B”, logo se coloca a questão: e
“B”, a sua existência depende exclusivamente de Deus ou
depende de outra coisa ainda, a que podemos chamar de “C”?
Se depende exclusivamente de Deus, “B” é substância e “A”
uma sua propriedade. Mas se a existência de “B” depende de
“C”,
então,
substância
por
e,
um
por
lado,
outro
conclui-se
lado,
que
regressamos
“B”
à
não
é
questão
anterior, mas agora dirigida a “C”: a existência de “C”
depende exclusivamente de Deus ou depende de outra coisa
ainda,
a
depois
de
que
podemos
realizado
chamar
o
mesmo
de
“D”?
E,
movimento,
eventualmente,
regressamos
à
questão anterior, mas agora relativo a um “D”, do qual
dependeria a existência de “C”, e um “E” relativamente à
existência de “D”, e assim sucessivamente num encadeamento
de existências dependentes. Por conseguinte, a interrogação
sobre se existem dois ou mais conceitos de substância no
“Princípios de
seguinte
Filosofia” de Descartes transforma-se na
questão:
uma
qualquer
cadeia
de
existências
dependentes sucessivamente termina, necessariamente, numa
substância?
188
Se sim, então, em última instância, todas as coisas
criadas ou são substâncias, pois dependem apenas de Deus
para existirem, ou são coisas que dependem, directa ou
indirectamente, das substâncias criadas para existirem. E
neste sentido, tudo o que existe ou é substância, ou é,
necessariamente,
uma
propriedade
conseguinte,
o
conceito
propriedades
é
um
enquanto coisa
de
substância
corolário
do
destas.
E,
por
como
portador
de
conceito
de
substância
que existe independentemente de
qualquer
outra coisa que não seja a substância de Deus. Portanto,
não estaríamos perante dois conceitos de substância, como
afirma Rodriguez-Pereya, mas de apenas um.
Creio, aliás, que esta seja a interpretação mais fiel
a Descartes. Pois a hierarquia das substâncias e das suas
propriedades seria como uma árvore: uma folha de uma árvore
depende do ramo
depende
do
onde se encontra para existir; o ramo
tronco
da
árvore
para
existir;
e
o
tronco
depende da raiz a qual funda a existência da árvore, pois
não há árvores sem raízes. Em sentido metafórico, e não se
lhe exigindo demasiado, Deus seria a raiz e o mundo criado
a árvore, pois se uma árvore só existe se existir uma raiz,
uma
raiz
estariam
existe
as
sem
necessidade
substâncias
e
de
partir
árvore.
deste
No
as
tronco
suas
propriedades, como ramificações e folhagens.
189
Porém, regressemos à questão anterior, ainda deixada
em
aberto,
de
saber
se
existem
nos
“Princípios
de
Filosofia” dois conceitos distintos de substância. E, em
especial, regressemos à questão: uma qualquer cadeia de
existência
dependentes
sucessivamente
termina
numa
substância? Seria possível responder negativamente a esta
questão?
Sim,
seria.
Pois
é
possível
conceber
que
uma
entidade “A” depende na sua existência de uma entidade “B”
que, por sua vez, depende de uma entidade “C” que, por fim,
depende de “A”. Portanto, nesta caso de circularidade de
dependências,
nem
“A”,
nem
“B”,
nem,
ainda,
“C”,
individualmente consideradas, são substâncias no sentido de
algo que existe independente de qualquer coisa. Mas seriam
substâncias no sentido que são detentoras de propriedades.
Porém,
neste
caso,
“A”,”B”
e
“C”
teriam
um
estranho
estatuto. Pois, ao se afirmar que pela sua relação mútua de
dependências,
“A”
seria
propriedade
de
“B”,
“B”
seria
propriedade de “C” e “C” seria propriedade de “A”, seria
afirmar que, neste sentido, “A”, “B” e “C” seriam, por um
lado,
substâncias
no
sentido
que
seria
portadores
de
propriedades, mas por outro lado seriam propriedades. O que
constituiria uma contradição. Contradição que se supera se
entender
que,
neste
individualmente
propriedades
caso,
nem
considerados,
co-dependentes.
“A”,
são
nem
“B”,
nem
“C”,
substâncias,
mas
Contraponhamos
à
imagem
da
190
árvore, a imagem do rizoma ou do coral. A este assunto
voltaremos
no
próximo
capítulo.
Porém,
importa
aqui
assinalar que esta possibilidade de existirem propriedades
sem substância é explicitamente rejeitada por Descartes,
como se verá, mais à frente, quando se referir a natureza
da
distinção
entre
“extensão”
e
“substância
extensa”.
Rejeitando-se esta última possibilidade, conclui-se que do
conceito
de
substância
como
portador
de
propriedades
é
corolário do conceito de substância como o que tem em si
mesmo a razão da sua existência. E, portanto, não creio que
estejamos perante, nos “Princípios de Filosofia”, de dois
conceitos de substância
Regressando agora à passagem onde Descartes afirma que
as coisas criadas se distinguem em duas categorias: as
substâncias - a pensante e a corpórea - as propriedades que
pertencem a estas, perguntemos: se Descartes afirma que só
existem duas substâncias entre as coisas criadas, em que se
distinguem a substância corpórea e a pensante? Como podemos
saber que são estas as únicas substâncias criadas? E se
estas substâncias são apenas possíveis na sua existência,
pois
só
Deus
existe
necessariamente,
como
sabemos
que
existem realmente as substâncias corpóreas e pensante? A
resposta a estas questões pode ser encontrada a partir da
seguinte passagem de Descartes:
191
“[…] [para cada uma das substâncias criadas] há um atributo
que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os
outros atributos dependem. A saber, a extensão em comprimento,
largura e altura constitui a natureza da substância corporal, e
o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com
efeito, tudo quanto pode ser atribuído ao corpo pressupõe a
extensão
e
Igualmente,
não
passa
todas
as
de
dependência
propriedades
que
do
que
é
encontramos
extenso.
na
coisa
pensante são diferentes maneiras de pensar.”173
Nesta
passagem
Descartes
afirma
que
as
substâncias
criadas distinguem-se entre si por possuírem um atributo
que
lhes
é
essencial.
Da
substância
que
pensa,
o
seu
atributo principal é o pensamento. Da substância corpórea o
seu atributo principal é a extensão.
Assim,
por
um
lado,
em
função
do
pensamento
e
da
extensão, sabemos, respectivamente, que tanto a substância
pensante, como
a substância corpórea realmente
existem,
173
“[…] il y en toutefois un en chacune qui constitue sa nature et
son essence, et de qui tout les autres dépendent. A savoir, l’étendue
en longueur, largeur et profondeur, constitue la nature de la
substance qui pensé. Car tout ce que d’ailleurs on peut attribuer au
corps présuppose de l’étendue, et n’est qu’une dépendance de ce qui
est éstendu; de même, tout les propriétés que nous trouvons en la
chose
qui
pensé
ne
sont
que
des
façons
différentes
de
penser“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in
Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères
(1973), p. 123 ( Parte I, Parágrafo 53) (tradução minha a partir da
tradução para português de João Gama,
“Princípios de Filosofia”,
Lisboa: Edições 70 (2006)), p.46).
192
pois, segundo Descartes “[…] logo que encontramos algum
atributo
podemos
substância,
e
concluir
que
tal
que
é
o
atributo
de
existe”174.
substância
alguma
Não
há
em
Descartes a possibilidade de atributos ou propriedades sem
existir um sujeito, isto é, uma substância, que as possua.
Por outro lado, a distinção entre substâncias opera-se
ao
nível
da
Distinguimos
pensamento,
os
distinção
atributos
entre
segundo
atributos
principais,
Descartes,
pois
a
principais.
extensão
concebemos
e
o
clara
e
distintamente extensão sem o pensamento e pensamento sem
extensão. Ou seja, em tudo o
que concebemos
e podemos
conceber sobre a extensão em nada precisamos do pensamento
enquanto
entidade
(pois,
naturalmente,
só
através
do
pensamento podemos conceber algo. Porém, aqui entende-se
pensamento
entidade
enquanto
ou
faculdade
substância).
de
Sendo
conceber
o
contrário
e
não
como
igualmente
verdadeiro. Para concebermos os corpos apenas necessitamos
da extensão e, como tal, esse é o atributo – único - que
lhes
essencial,
é
esse
atributo
que
constitui
a
sua
natureza. Argumenta Descartes que podemos verificar que só
concebemos clara e distintamente os corpos pela extensão,
corpos como o que é extenso recorrendo um exemplo a que
hoje se chamaria de “experiência de pensamento” e que é
174
“lorsqu’on en rencontre quelqu’un [attribut], on a raison de
conclure qu’il est l’attribut de quelque substance, et que cette
substance existe.“, Idem, p. 123 (Parte I, Parágrafo 52) (p. 46)
193
semelhante
ao
famoso
“Meditações”, mas que
exemplo
da
vela,
apresentado
nas
nos “Princípios de Filosofia”, é
revisitado na seguinte passagem:
“Tomemos por exemplo uma pedra e retiremos-lhes tudo o que
sabemos que não
pertence à natureza do corpo. Primeiramente
retiramos-lhe a dureza, e nem por isso deixará de ser corpo;
depois
a
cor,
já
que
alguma
vezes
temos
visto
pedras
tão
transparentes que não têm cor; tiremos o peso, porque também o
fogo, ainda que muito ténue, nem por isso deixa de ser um corpo;
tiremos-lhe o frio, o calor e todas as qualidades deste género,
pois
não
pensamos
estejam
todas
as
outras
qualidades
deste
género, pois não pensamos que estejam na pedra ou que a pedra
mude de natureza porque umas vezes nos parece quente e outras
fria. Depois de assim termos examinado esta pedra descobrimos
que a verdadeira ideia que nos faz conceber que é um corpo que
consiste unicamente em nos apercebemos distintamente de que é
uma substância extensa em comprimento, largura e altura”175
175
“Nous prenons pour exemple une pierre et en ôtons tout ce que nous
saurons ne point appartenir à la nature du corps. Otons-en donc
premièrement la dureté, parce que, si on réduisait cette pierre en
poudre, elle n’aurait plus de dureté, et ne laisserait pas pour cela
d’être un corps; ôtons-en aussi la couleur, parce que nous avons pu
voir quelquefois des pierres si transparentes qu’elles n’avaient point
de couleur; ôtons-en la pesanteur, parce que nous voyons que le feu,
quoiqu’il soit très léger, ne laisse pas d’être un corps; ôtons-en le
froid, la chaleur, et toutes les autres qualités de ce genre, parce
que nous ne pensons point qu’elles soient dans la pierre, ou bien que
cette pierre change de nature parce qu’elle nous semble tantôt chaude
et tantôt froid. Après avoir ainsi examine cette pierre, nous
trouverons que la véritable idée que nous en avons consiste en cela
seul que nous apercevons distinctement qu’elle est une substance
étendue en longueur, largeur et profondeur”, Idem, pp. 156-157 (Parte
II, Parágrafo 11)(p.64).
194
Defende
corpos
então
através
Descartes
das
que
impressões
o
que
conhecemos
sensíveis,
dos
conhecemo-lo
apenas de uma forma confusa e indistinta. Confusa, pois das
impressões
sensíveis
temos
a
sensação
de
cor,
cheiro,
dureza, calor, etc. Sensações que associamos aos corpos e
somos levados a dizer, por exemplo, que um dado corpo é
azul ou que é quente. Porém, segundo Descartes “conhecemos
clara e distintamente a dor, a
cor e outras
sensações
quando as consideramos simplesmente como pensamentos”176. Ou
seja, só sabemos, por exemplo, o que é a cor quando a
tomamos
como
consequência,
algo
da
como
algo
substância
pensante
completamente
e,
distinto
por
da
substância corpórea. Portanto, todas essas coisas que as
nossas
cheiro,
impressões
dureza
ou
sensíveis
calor
só
nos
oferecerem
confusamente
os
como
cor,
poderemos
associar aos corpos, pois são elementos não destes mas do
pensamento. Por
essa razão, os
corpos não mudam a sua
natureza consoante a sua cor, cheiro, dureza ou calor.
Retirando do conjunto de atributos do corpo tudo aquilo que
é da sensação, apenas resta a extensão. Mas se retirarmos a
extensão não há corpo. Podemos conceber uma pedra incolor,
176
“[…] nous connaissons clairement et distinctement la douleur, la
couleur et les autres sentiments, lorsque nous les considérons
simplement comme des pensées », Idem, p. 136 (Parte I, Parágrafo 68)
(p. 53).
195
inodora,
sem
Descartes,
peso,
de
mas
forma
não
alguma,
podemos
um
conceber,
corpo
sem
segundo
extensão.
Chegamos, então, à conclusão que a ideia que temos dos
corpos é a ideia de uma coisa extensa, de uma res extensa.
Pois ao se eliminar sucessivamente todos as propriedades
que atribuímos aos corpos, alcançamos a única da qual não
se pode prescindir na concepção de corpo: a extensão em
comprimento, largura e altura.
Assim,
distintamente
para
Descartes,
uma
substância
só
concebemos
pensante
pelo
clara
e
pensamento.
Pois, se por um lado, não é inteligível uma substância
pensante sem pensamento, por outro lado apenas precisamos
do pensamento para conceber a substância que pensa. Da
mesma
forma,
só
concebemos
clara
e
distintamente
uma
substância corpórea pela extensão. Pois, por um lado, não é
inteligível um corpo sem extensão, por outro lado, apenas
precisamos da extensão para conceber o corpo.
Por seu turno, dado que todas as coisas que conhecemos
são referentes ou ao pensamento ou à extensão e sendo estes
os atributos que constituem, distinta e respectivamente, a
essência da substância que pensa e da substância corpórea,
então sabemos que não existirem outras substâncias criadas
para
além
da
Alma
e
do
Corpo.
Havendo
dois
atributos
196
principais
sabemos
que
existem
apenas
duas
substâncias
criadas.
Regressando
aos
corpos
como
conceito,
não
surpreendente que extensão possua um estatuto
relativamente à
corpos
têm
sua natureza.
volume
e
têm
será
essencial
É de senso comum que os
uma
localização.
Aliás,
ao
argumentar por eliminação, isto é, ao tentar mostrar que a
essência dos corpos é extensão nas três dimensões do espaço
físico
por
recurso
à
eliminação
de
todos
os
outros
presumidos atributos, Descartes remete para o senso comum
sobre os corpos, onde, naturalmente, se inclui a noção que
os corpos têm comprimento, largura e altura (aliás, na sua
argumentação
Descartes
pressupõe
que
é,
igualmente,
de
senso comum o que seja comprimento, largura e altura). Na
caracterização dos corpos, o que é fulcral e particular,
tal como assinala Garber177, em Descartes é a afirmação que
a natureza dos corpos seja exclusivamente a extensão. Ou
seja,
que
um
conjunto
de
propriedades
que
vulgarmente
atribuímos aos corpos, como a temperatura, o peso, a cor,
nem quaisquer outras que julguemos, não pertencem realmente
a estes. Afirma, pois Descartes:
177
Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago:
University of Chicago Press, p. 77.
197
“[…] a natureza do corpo em geral não consiste em ser uma
coisa dura, pesada ou colorida, ou que afecta os sentidos de
qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa
em comprimento, largura e altura”178
Os
corpos
conhecemos
confusamente
através
dos
sentidos, ao misturar a sua extensão com cores, cheiros,
propriedades tácteis, etc. Os corpos conhecemos clara e
distintamente como extensão e apenas como extensão. Por
essa
razão
é
tão
fundamental
em
Descartes
a
separação
radical e completa entre a substância pensante e corpórea.
Pois, permite estabelecer uma radical separação entre o
sujeito que conhece o mundo físico - o sujeito que pensa e o objecto desse conhecimento - o corpo. Permitindo que
aquilo que seja determinado para os corpos seja objectivo,
isto é, que pertence somente ao objecto.
Por
outro
lado,
como
coisa
puramente
extensa,
os
corpos, os objectos físicos, na sua natureza e propriedades
são afins com os objectos geométricos. Como tal, a partir
da
sua
concepção
de
corpo,
Descartes
pode
fundar
178
“[…] la nature de la matière, ou du corps pris en général, ne
consiste point en ce qu’il est une chose dure, ou pesante, ou colorée,
ou qui touche nos sens de quelque autre façon, mais seulement en ce
qu’il est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur.”
Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres
Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973),
p. 149 (Parte II, Parágrafo 4) (tradução minha a partir da tradução
para português de João Gama,
“Princípios de Filosofia”, Lisboa:
Edições 70 (2006)), p.60).
198
solidamente na matemática uma ciência dos objectos físicos,
isto é, uma Física. Porém, a Física que Descartes pode
fundar é uma Física geométrica, uma Física das proporções e
não uma Física das quantidades, uma Física com uma álgebra
funcional. E, como tal, não é a Física como a reconhecemos,
que se inicia com Newton.
Porém, se todo o corpo é, pela sua essência, extenso,
então, poderá haver extensão sem corpo? Para Descartes, nos
“Princípios de Filosofia”, não. Pois, tal como já foi aqui
referido,
existência
Descartes
de
uma
não
considera
propriedade
que
a
não
possibilidade
seja
senão
da
uma
propriedade de uma substância determinada. A cor existe na
medida que é uma propriedade da substância pensante. A
extensão
existe
na
medida
que
é
uma
propriedade
da
substância corpórea. Descartes é muito claro quando afirma:
“[…] só distinguimos pensamento e extensão do que pensa e é
extenso como as dependências da própria coisa de que dependem, e
conhecemo-las tão clara e distintamente como a sua substância
desde de que não pensemos que subsistem por si próprias, mas que
são somente as maneiras ou dependências daquelas substâncias”179
179
“[…] nous ne distinguons la pensé et l’étendue de ce qui pensé et
ce qui est étendu que comme les dépendances d’une chose, de la chose
même dont elles dépendent; nous les connaissons aussi clairement et
aussi distinctement que leurs substances, pourvu que nous ne pensions
point qu’elles subsistent d’elles-mêmes, mais qu’elles sont seulement
199
Se
distinguimos
“extensão”
da
substância
que
é
extensa, fazemo-lo apenas por via do pensamento, pois não
corresponde
distinção
a
uma
real,
distinção
então
real.
teríamos
Pois
que
se
fosse
uma
considerar
que
“extensão” subsistiria si mesma, o que não é aceitável para
Descartes, pois equivaleria a afirmar que a “extensão” era
uma substância.
Por sua vez, se a extensão só pode ser considerada
como propriedade da substância corpórea, então não pode
haver
extensão
extensão,
isto
sem
corpo.
é,
todo
Mais
concretamente,
o
espaço
físico,
toda
a
está
necessariamente preenchido por corpo. Ou seja, do conceito
de corpo de Descartes resulta que o mundo físico é um
plenum.
Uma das consequências imediatas do plenum do espaço
físico
é,
claro
está,
a
não
existência
de
vazio
em
Descartes. Como assinala o próprio:
“Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam esta
palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância,
é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a
les façons ou dépendances de quelques substances.” Idem, pp. 133-134
(Parte I, Parágrafo 64) (p.51).
200
extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do
corpo”180.
Porém, se a natureza da
interior
não
distinguir,
distinguir
é
diferente
pois
os
todo
vários
o
“extensão do espaço ou lugar
da
do
espaço
corpos
é
no
corpo”
como
podemos
corpo,
como
podemos
espaço?
Afinal,
é
da
percepção sensível comum que os corpos são vários no espaço
e não apenas um, isto é, que são finitos, que Descartes
chega
à
conclusão
que
a
natureza
dos
corpos
é
a
pura
extensão. Se percebemos o espaço físico como um plenum, não
poderíamos chegar, por eliminação, como faz Descartes no
exemplo
da
pedra
à
qual
vamos
retirando
sucessivamente
atribuições, à noção de largura, altura e comprimento e,
como tal, que os corpos são coisa extensa. Se falamos numa
pedra que tem uma largura, uma altura e um comprimento, é
porque é finita e o que a rodeia é-lhe, de alguma forma,
distinto. Mas se o espaço é um plenum essa distinção não
pode ser relativamente à natureza do que o rodeia, como
seria o caso do vazio. E, como tal, só pode residir na
diferença na composição das partes do corpo – no caso, a
180
“Pour ce qui est du vide, au sens que les philosophes prennent ce
mot, à savoir, pour un espace où il n’y a point de substance, est
évident qu’il n’y a point d’espace en l’univers qui soit tel, parce
que l’extension de l’espace ou du lieu intérieur n’est point
différente de l’extension du corps.” idem, p. 161 (Parte II, Parágrafo
16) (p.66).
201
pedra – e o que o rodeia. O que imediatamente rodeia um
corpo
particular,
Descartes
de
logicamente,
a
lugar
a
sua
superfície,
exterior
figura
desse
dessa
é
corpo
designado
por
particular.
superfície,
que
é
E,
o
consideramos ser a figura do corpo é apenas um modo da
extensão.
Desta
forma,
a
diferença
entre
um
corpo
particular e o que o rodeia, que também é corpo, reside na
diferença
entre
as
partes
que
constituem
esse
corpo
particular e as que o rodeia. Mais especificamente:
“[…] só há uma matéria em todo o universo e só a conhecemos
porque é extensa. Todas as propriedades que nela apercebemos
distintamente apenas se referem ao facto de poder ser dividida e
movimentada segundo as suas partes.”181
Desta
passagem
assinala-se,
em
primeiro
lugar,
que
surge o termo “matéria”. Esta matéria não é outra coisa que
a substância corpórea entendida como plenum. Isto é, com a
totalidade da extensão. E por isso, “[…] a Terra e os céus
são feitos de uma mesma matéria, […] cuja natureza consiste
181
“Il n’y a donc qu’une même matière en tout l’univers, et nous la
connaissons par cela Seul qu’elle est étendue; pour ce que toutes les
propriétés que apercevons distinctement en elle, se rapportent à ce
qu’elle peut être divisée et mue selon ses parties”, Idem, p. 168
(Parte II, Parágrafo 23) (p.69).
202
unicamente
em
ser
extensa”182.
coisa
Ao
identificar
a
matéria com o plenum da substância do mundo físico, ou
seja,
o
espaço,
Descartes,
por
um
lado,
afasta-se
de
Aristóteles quando no filósofo grego o mundo físico é tido
como constituído por cinco matérias (água, ar, fogo, terra
e éter), havendo apenas uma matéria. Por outro lado, a
identificação
da
matéria
com
o
plenum
permite
que
se
distinga quando estamos a falar de um corpo particular do
conjunto total de corpos que constitui a plenitude do mundo
físico.
Em
segundo
lugar,
na
passagem
anterior,
Descartes
assinala que dado que a natureza dos corpos é a extensão,
então estes são divisíveis em partes. E, como tal, embora
toda a matéria seja constituída por partes, os corpos ou
objectos físicos particulares distinguem-se entre si pelas
diferenças entre essas partes que os constituem. A saber:
nos seus tamanhos e nos seus movimentos.
Relativamente
corpos
se
podem
ao
tamanho,
dividir
há
nessas
umas
tão
partes
em
pequenas
que
que
os
nos
escapam à visão e assim temos a falsa percepção de um vazio
e, por contraste de um corpo particular, como uma pedra
182
“[…] la Terre et les cieux sont faits que d’une même matière […],
dont la nature consiste en cela seul qu’elle est une chose étendue”,
Idem, p. 167 (Parte II, Parágrafo 22) (p.68).
203
rodeada de ar. Isso mesmo é referido explicitamente por
Descartes quando afirma que:
“[…] considero que em cada corpo há muitas partículas que
são tão pequenas que não podem ser sentidas”183
Significa isto, por um lado, que um corpo como o ar de
uma sala é constituída, essencialmente, por partículas tão
pequenas que não podem ser sentidas. Não as vendo somos
levados a concluir erradamente que não existem e falamos em
vazio quando esse vazio está cheio. Até, numericamente,
mais cheio que uma pedra. Mas por outro lado Descartes
afirma que não só os fluidos, como o ar, são constituídos
por partículas corpóreas ou corpúsculos tão pequenos que
não podem ser sentidos. Todos os corpos o são. Afinal, se
estes são extensos, então podem ser divididos em partes,
progressivamente, cada vez mais pequenas. Porém:
“Por mais pequenas que as suas partes sejam, todavia, e
porque é necessário que sejam extensas, pensamos que não há
sequer uma de entre elas que não possa dividir-se em duas ou
183
“[…] je considère plusieurs parties en chaque corps qui sont
petites qu’elles ne peuvent être senties“, Idem, p. 516 (Parte IV,
Parágrafo 201) (p.272).
204
noutras
ainda
mais
pequenas;
donde
se
segue
que
são
divisíveis.”184
Por
mais
pequenos
que
sejam
os
corpúsculo
a
cada
divisão, não é pensável uma qualquer sequência de divisões
até se alcançar uma parte tão ínfima do corpo que seja
última e absolutamente simples. Isto é, algo como um átomo,
entendido no sentido do que denominei no capítulo anterior
de partícula pura dos corpos. Pois considerar que um átomo,
no sentido de um corpo sem divisibilidade, seria considerar
um corpo sem partes. Logo, seria, igualmente, considerar um
corpo sem extensão. O que constituiria uma contradição com
a
própria
afirma-se
sentido
concepção
assim,
que
este
do
corpo
claramente,
defende
a
como
extenso.
contrário
existência
ao
de
Descartes
atomismo,
no
corpúsculos
indivisíveis e imutáveis na sua extensão e figura. Contudo,
para Descartes, tal como para os atomistas, tudo no mundo
físico é apenas composto por corpúsculos. Corpúsculos que,
para Descartes, como já foi referido, são concebidos, não
184
“D’autant que, si petites qu’on suppose ces parties, néanmoins,
parce qu’il faut qu’elles soient étendues, nous concevons qu’il n’y en
a pas une entre elles qui ne puisse être encore divisée en deux ou
plus grand nombre d’autres plus petites, d’où il suit qu’elle est
divisible.” Idem, p.166 (Parte II, Parágrafo 20) (p.68).
205
como entidades infinitamente pequenos, mas como entidades
incontáveis e de extensão indefinida185.
Mas regressando um pouco atrás, segundo Descartes os
corpos individuais distinguem-se não só pela dimensão das
suas partes, mas igualmente pelo movimento destas. É assim
que Descartes,
partes
dos
entre os parágrafos 54 e 63 da segunda
“Princípios
de
Filosofia”,
estabelece
a
diferença entre sólidos e líquidos. Em que, resumidamente,
neste últimos as suas partes,
para além de serem mais
pequenas, movem-se mais facilmente e, por isso, oferecem
menos resistência à divisão.
Mas mais importante que a distinção entre sólidos e
líquidos, interessa assinalar que, em Descartes, do mesmo
modo que da nossa experiência do mundo extraímos a noção
que os corpos têm figura, extraímos a noção que os corpos
se movem. O movimento, tal como a figura, não é algo que
decorre necessariamente da concepção de corpo como coisa
extensa. Um corpo poderia ser sem fim definido e, como tal,
ser sem contorno e, pois está, sem figura. E os corpos
poderiam ser eternamente estáticos. Figura e movimento são
para Descartes modos de ser extenso. Isto é, não fazem
parte
da
sua
natureza,
mas
são
maneiras
diferentes
da
extensão existir. São, em linguagem escolástica, acidentes,
185
Conferir, Idem p.181 (Parte II, Parágrafo 34) (p. 74)
206
neste
caso,
da
extensão.
Mas,
o
que
é
o
movimento
em
Descartes? Como conceber movimento num plenum? E se não é
parte da sua natureza, por que se movimentam os corpos?
3.1.1 Movimento.
O conceito de “movimento” é apresentado por Descartes
nos “Princípios de Filosofia” em dois tempos. Primeiro,
Descartes
apresenta
“movimento”,
a
que
o
conceito
apelidada
de
de
senso
impróprio.
comum
de
Depois,
em
oposição a este, Descartes apresenta o seu conceito de
movimento. O primeiro, o impróprio:
“[…] o movimento, de acordo com o senso comum, é a acção
pela qual um corpo passa de um local para outro”186
Este é o conceito de movimento como de mudança de
lugar.
É
o
conceito
de
movimento
que
nos
parece
mais
intuitivo e por isso Descartes designa-o de “senso comum”.
Descartes, rejeita-o. Pois, como o próprio logo assinala,
186
”[…] le mouvement, selon qu’on le prend d’ordinaire, n’est autre
chose que l’action par laquelle un corps passe d’un lieu en un autre.”
Idem, p.169 (Parte II, Parágrafo 24).
207
este senso comum sobre o movimento leva-nos a cair numa
imensa dificuldade. Afirma Descartes, segundo o conceito de
senso comum sobre o movimento:
“[…] uma vez que se pode afirmar que uma coisa muda e não
muda de lugar ao mesmo tempo, também podemos dizer que se move e
não se move ao mesmo tempo. Por exemplo, quem está sentado na
popa de um barco impelido pelo vento crê que se move quando se
fixa apenas na margem donde partiu e a considera imóvel;
e não
crê que mover-se quando se fixa somente no barco em que se
encontra, porque não muda de localização relativamente às suas
partes.”187
Claramente
a
questão
aqui
é
o
que
se
designa,
geralmente, por relatividade de Galileu, onde a definição
do estado de movimento de um objecto físico particular é
relativo a um referencial arbitrário. No caso, o movimento
de um passageiro num barco relativo à popa do barco que o
transporta ou à margem donde partiu. E, por consequência,
desta relatividade do estado movimento de um objecto físico
187
”[…] qu’une même chose en même temps change de lieu et n’en change
point, de même nous pouvons dire qu’e même temps elle se meut et ne se
meut point. Car celui, par exemple, qui est assis à la poupe d’un
vaisseau que ce vent fait aller, croit se mouvoir, quand il ne prend
garde qu’au rivage duquel il est parti et le considère comme immobile,
et ne croit pas se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au vaisseau sur
lequel il est, parce qu’il ne change point de situation au regard de
ses parties.”, idem, ibidem.
208
particular em relação a um referencial arbitrário, existe
uma indeterminação sobre o estado de movimento verdadeiro,
pois
podemos
dizer,
Descartes,
que
movimento.
O
um
que
simultaneamente,
mesmo
só
nos
corpo
pode
está
levar
tal
como
em
a
salienta
repouso
concluir
e
em
que
o
movimento não é algo, de facto, das coisas extensas. Seria,
talvez
uma
atribuição
do
pensamento.
O
movimento
seria
talvez uma sensação. O que para Descartes é inaceitável,
entre outras razões, pois contradiz a noção de movimento
como modo da extensão, isto é, como modo de ser extenso. E,
por
conseguinte,
conceito
de
levaria
corpo
como
à
contradição
pura
com
extensão,
o
próprio
avançado
por
Descartes.
Contrariamente a esta concepção de senso de comum do
movimento, Descartes considera que propriamente dito:
“[…] o movimento é translação de uma parte da matéria ou de
um
corpo
da
proximidade
daqueles
que
lhe
são
imediatamente
contíguos – e que consideramos em repouso – para a proximidade
de outros”188
188
“[…] [mouvement] est le transport d’une partie de la matière, ou
d’un corps, du voisinage de ceux qui le touchent immédiatement, et que
nous considérons comme en repos, dans le voisinage de quelques
autres.“ Idem, p. 169 (Parte II, Parágrafo 25) (p.69).
209
Descartes procura resolver o problema do relativismo
do
movimento,
fixando
como
referência
do
movimento
a
vizinhança contígua do corpo que se move. Assim, Descartes
assegura que de um corpo podermos dizer apenas que está em
translação com a sua vizinhança contígua ou em repouso em
relação
a
esta,
mas
nunca,
simultaneamente,
em
ambos
estados de movimento.
Contudo, o conceito de movimento cartesiano é, por si,
um mar de problemas. Em primeiro lugar, pois este conceito
de
movimento
movimento
é
de
ainda
um
relativista.
corpo
Afinal,
particular
é
o
estado
relativo
a
de
uma
vizinhança que arbitrariamente se afirma encontrar-se em
repouso. Ou seja, na verdade, o movimento, em Descartes,
aparece
apenas
como
uma
diferença
relativa
entre
dois
corpos: a vizinhança e o corpo que se diz em movimento. Aos
corpos não lhes é atribuída propriedades características do
movimento como a celeridade, a velocidade ou a aceleração.
Dentro do conceito de movimento de Descartes, poder-se-ia
até dizer que não é o corpo que se move e que não é a sua
vizinhança
contígua
que
se
encontra
em
repouso,
mas
o
inverso.
O segundo problema com o conceito de movimento em
Descartes é que, como assinala Garber189, nos conduz a uma
189
Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago:
University of Chicago Press, p. 178.
210
circularidade. Pois, na sequência da apresentação do seu
conceito de movimento, Descartes afirma sobre os corpos:
“Por
corpo
ou
parte
da
matéria
entendo
aquilo
que
é
transportado conjuntamente, ainda que seja composto de várias
partes que [com a sua acção] desencadeiam outros movimentos”190
Ora, ao conceber corpo com o “o que é transportado
conjuntamente”,
“translação
quando antes, concebeu movimento como a
de
circularidade
um
entre
corpo”,
“corpo”
Descartes
e
entra
“movimento”.
numa
Pois,
se
“movimento” é concebido em função de “corpo” (como uma
translação deste), já “corpo” em concebido em função do que
é transportado, ou seja, do que é transladado, isto é, do
que se movimenta. Esta circularidade pode ser, em certa
medida, rompida atendendo que este conceito de corpo em
função
do
movimento
é
naturalmente
consistente
com
o
conceito de corpo como coisa extensa, dado que a afirmação
“composto de várias partes” implica dizer que é extenso.
190
“Par un corps, ou bien par une partie de la matière, j’entends tout
ce qui est transporté ensemble, quoiqu’il soit peut-être composé de
plusieurs parties qui emploient cependant leur agitation à faire
d’autres mouvements.“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la
Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris:
Garnier Frères (1973), p. 170 (Parte II, Parágrafo 25) (tradução minha
a partir da tradução para português de João Gama,
“Princípios de
Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.170).Idem, p. 170.
211
Note-se que o inverso não é necessariamente verdadeiro,
pois ser extenso não significa necessariamente ser composto
de várias partes, como é exemplo o conceito de átomo de
Demócrito.
Daqui
resulta
igualmente
claro
–
se
dúvidas
houvesse – que o conceito de corpo como o que é extenso, em
Descartes, é primeiro, é primordial, relativamente a este
conceito
de
corpo
conjuntamente”.
E,
como
como
tal,
“o
que
“corpo”
é
é,
transportado
em
Descartes,
claramente concebido independentemente de “movimento”. Como
aqui já se disse, o Universo físico de Descartes poderia
ser eternamente estático. Porém, dizer que um corpo é coisa
extensão não nos faz o entender o que é o movimento, isto
é,
não
nos
faz
sair
da
circularidade
relativamente
à
definição de “movimento”. Pois, ao se afirmar que movimento
é “translação de um corpo”, ou seja, é a translação de uma
coisa
extensa
então
movimento
é
definido
em
função
da
translação. Mas o que será a translação senão um movimento?
O terceiro problema com o conceito de “movimento” de
Descartes decorre de ser um movimento num plenum. Um corpo
que se movimenta num espaço plenamente preenchido tem como
consequência que o movimento seja, necessariamente local,
tal como Descartes pretendia, porém implica, igualmente,
que não pode existir um movimento sem contacto. E, por
conseguinte,
qualquer
movimento
de
um
corpo
leva
ao
“desencadear de outros movimentos”. Contudo, isto só poderá
212
levar à conclusão que quando um corpo se move, só o pode
fazer em função de todos os corpos que o rodeiam. Descartes
tenta resolver este problema indicando que “tem de haver
necessariamente um círculo de matéria ou de corpos que se
movem em conjunto ao mesmo tempo; e de tal maneira que
quando
um
corpo
deixa
o
seu
lugar
para
que
outro
o
preencha, vai ocupar o do outro e assim sucessivamente até
ao último que nesse instante ocupa o lugar deixado pelo
primeiro. E facilmente verificamos que isto é um círculo
perfeito”191.
O
centro
deste
circulo
será,
logicamente,
comum a todos corpúsculos que estão em movimento. O que
levará Descartes ao conceito de turbilhão ou vórtice.
Porém, como é fácil de verificar imaginando três rodas
dentadas, embora os seus dentes se disponham de modo a que
se movam circularmente, fazendo mover as outras que lhe são
contíguas, se estas três rodas estiverem simultaneamente
interconectadas não há possibilidade de existir movimento
algum. É condição de possibilidade de movimento deste pleno
de
corpúsculos
necessária
corpúsculos,
entre
que
contíguos
todos
compõem
a
as
o
existência
partículas
plenum.
uma
harmonia
corpóreas,
Harmonia
que
ou
em
191
“[…] qu’il y ait toujours tout un cercle de matière ou anneau de
corps qui se meuvent ensemble en même temps ; en sorte que, quand un
corps quitte sa place à quelqu’autre qui le chasse, il entre en celle
d’un autre, et cet autre en celle d’un autre, et ainsi de suite
jusques au dernier, qui occupe au même instant le lieu délaissé par le
premier. Nous concevons cela sans peine en un cercle parfait.“ Idem,
pp. 179-180 (Parte II, Parágrafo 33) (p.73).
213
Descartes não é justificada. Terá sido pré-estabelecida por
Deus no momento da criação da substância extensa? Descartes
não nos responde reconhecendo, aliás, não saber como se
compunha o universo no momento da criação192. Mesmo que Deus
tivesse
composto
harmonicamente
as
partes
físicas
do
Universo no acto de criação, teria ainda que calcular o
desgaste
ao
longo
do
tempo
de
cada
corpo.
Isto
é,
a
decomposição por fricção das partes em contacto de que nos
fala
Descartes
“Princípios de
no
parágrafo
50,
na
terceira
parte
dos
Filosofia”. Decomposição por fricção que
leva a que os corpúsculos tendam a ser redondos e evoluírem
para uma extensão cada vez menor.
Por
outro
lado,
dado
que
o
conceito
de
corpo
não
decorre a necessidade destes se moverem, então a quantidade
de movimento total não poderá diminuir ou aumentar ao longo
do tempo. Pois uma variação da quantidade de movimento
significaria
movimento,
que
o
que
os
corpos
contradiz
teriam
a
sua
absorvido
natureza,
ou
doado
segundo
Descartes. Mas se os corpos se movem, e o movimento não é
consequência da sua natureza, então algo, isto é, Deus no
momento da criação, não só distribuiu os corpúsculos de
modo a que os movimentos individuais fossem compatíveis no
plenum de que fazem parte, como deu o impulso inicial que
192
Conferir p. 250 (Parte III, Parágrafo 47) (p.111).
214
fez o mundo físico mover-se. Deus é o criador da matéria e
a primeira causa do movimento193.
Outro
Descartes
problema
decorre
com
dos
o
conceito
corpos
serem
de
movimento
concebidos
como
de
o
simples agregado de corpúsculos individuais. Isto é, os
corpúsculos que compõem um corpo não estão ligados entre
si194. Nada os une pois se alguma coisa houvesse teria ser
substância extensa e, como tal, corpuscular. Então, por um
lado, o movimento do corpo é a coincidência do movimento,
digamos, empático, das suas partes. Por outro lado, um
corpo
é
consistente
na
medida
que
as
suas
partes
constituintes estão em relativo repouso umas com outras.
Porém, como assinala Edward Slowik195,não havendo nada que
force os constituintes dos corpos a estarem unidos, como
explicar que uma colisão não leve à desintegração de um
corpo?
193
Conferir Idem, p. 182 (Parte II, Parágrafo 36) (p.75).
194
Conferir Idem, p. 206
(Parte II, Parágrafo 55) (p.85).
195
Conferir Slowik, Edward (2009), “Descartes’ Physics” in Standford
Encyclopedia
of
Philosophy,
(http://plato.standford.edu/archives/fall2009/entries/descartesphysics), p. 11.
215
3.1.2. Conclusão
O
conceito
Descartes,
de
como
um
objecto
físico,
produto
do
seu
ou
corpo,
método
surge
de
em
dúvida
metódica. Duvidemos de tudo que julgamos saber sobre os
corpos, como que estes têm cor, peso, dureza, etc, até que
cheguemos ao único atributo que não podemos negar ao corpos
sob pena de não os podermos conceber. Esse atributo é a
extensão. Assim, conclui Descartes, que a única coisa que
não podemos duvidar sobre os corpos é que estes são coisa
extensa. Ou dito de outro modo, os corpos têm como natureza
ou propriedade essencial, a extensão.
Concebendo
os
objectos
físicos
apenas
como
coisa
extensa, Descartes permite que estes sejam representados
fielmente
como
objectos
geométricos.
Assim,
pode-se
edificar uma ciência dos corpos, uma Física escrita em
linguagem matemática, liberta das amarras da subjectividade
inerente à atribuição aos corpos daquilo que é da sensação,
isto é, do pensamento. Concebendo os objectos físicos como
coisa
extensa
e
apenas
como
coisa
extensa,
todos
os
fenómenos físicos e suas leis poderiam ser deduzidos do
mesmo modo e com a mesma segurança como se deduzem os
teoremas da geometria a partir dos seus postulados. Isto é,
216
fazendo apenas uso recto da razão. A Física seria uma pura
teoria da razão.
Porém,
o
universo
físico
em
Descartes,
concebido
apenas como uma espécie de tangram, não encontra em si, na
sua natureza, nenhuma razão para existir movimento. Tudo do
mundo físico, em Descartes, poderia ser estático. É preciso
então assumir que Deus para além de criar os corpos deulhes movimento. As três leis de movimento que Descartes
deduz,
e
que
essencialmente,
serviram
leis
da
de
inspiração
tendência
a
da
Newton,
conservação
são,
do
movimento, isto é, são, essencialmente, leis de inércia.
Contudo,
como
aqui
se
pretendeu
cartesiana
de
objecto
consistente
(ou
mesmo
físico
compatível)
mostrar,
torna-se
com
a
a
concepção
dificilmente
atribuição
aos
corpos do movimento como algo que lhes é próprio. E, por
outro lado, através de Descartes mostra-se a inconsistência
de uma Mecânica fundada num conceito de corpo como coisa
extensa.
217
3.2. O conceito de objecto físico em Newton.
Como
é
sabido,
Mathematica,
ou
constitui tanto
o
como
Philosophiae
é
usualmente
a magnus opus
Naturalis
tratado,
Principia
Principia,
de Newton, como o livro
fundador da Física tal como hoje ainda a reconhecemos.
Publicada
quatro
décadas
depois
Filosofia”
de
Descartes,
os
dos
“Princípios
Principia
de
tomam-lhe,
possivelmente, a sua inspiração tanto no título, como na
concepção mecanicista e matemática da realidade física.
Pois, tanto numa obra, como na outra, a Terra, o Mundo em
geral, são descritos, de certo modo, como fossem “apenas
uma máquina onde só há que considerar as figuras e os
movimentos das respectivas partículas”196.
Os
quatro
Principia
partes
“Movimento dos
Mundo”
(Livro
podem
principais:
ser
divididos,
“Definições
Corpos” (Livros
III)
e
o
e
a
meu
em
Axiomática”,
I e II), o
“Escólio
ver,
Geral”.
o
“Sistema do
A
parte
que
interessa aqui focar é a primeira, pois é onde se encontra
196
Conferir Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie”
in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier
Frères (1973), p. 503 (Parte IV, Parágrafo 188) (tradução minha a
partir da tradução para português de João Gama,
“Princípios de
Filosofia”) Lisboa: Edições 70 (2006)), p.265. Não o será assim
estritamente em Newton, pois, como se verá, a figura corresponde à
delimitação espacial da matéria que constitui um corpo. Portanto,
claramente, tanto em Newton como Descartes, o mundo físico é como uma
máquina. Contudo, no caso do físico inglês, é uma máquina onde há
considerar, para além da figura e movimento, a quantidade de matéria.
218
exposta a ontologia sobre o mundo físico (ou o conjunto de
assumpções
ontológicas)
de
Newton.
Uma
ontologia
que
é
constituída por três elementos fundamentais: Corpo, Espaço
e Tempo.
3.2.1. Corpo
O
início
Principia
é
da
primeira
composta
por
das
partes
oito
referidas
definições,
cada
dos
uma
acompanhada por um comentário. Estas definições constituem
os pilares da Física Newtoniana, numa estrutura claramente
inspirada nos Elementos de Euclides. Isto é, numa estrutura
axiomática-dedutiva.
E
dado
que
o
tópico
de
estudo
da
Filosofia Natural, aquela em que Newton quer estabelecer os
princípios matemáticos, são os objectos físicos, então não
será
surpreendente
que
a
primeira
dessas
definições
(Definição I) se refira, justamente, aos corpos.
No comentário à Definição I, Newton afirma que por
“corpo”
ou
entendemos
“massa”
por
deveremos
“quantidade
entender
de
o
matéria”.
mesmo
que
Logicamente
entendido estabelece-se aqui um mero jogo de equivalências
entre estes três termos. O que em pouco esclarece sobre
exactamente
o
que
é
um
“corpo”
ou
“massa”.
Contudo,
percebe-se logo aqui que para Newton, um corpo é uma certa
219
quantidade. Um compósito de uma quantidade de matéria. Mas
o que é “quantidade de matéria”? Pois, é justamente sobre
esta última que Newton dedica a Definição I. Nesta, Newton
afirma entender por “quantidade de matéria” simplesmente o
produto da densidade pelo volume. Trata-se, numa primeira
leitura,
de
assinalaram,
uma
definição
entre
outros,
Insatisfatória
pois
Newton
insatisfatória,
Mach197
ao
e
James
definir
tal
como
Cushing198.
“quantidade
de
matéria” em função da densidade apenas nos conduz a uma
questão:
então,
o
que
é
“densidade”?
Questão
que
nos
Principia fica no vazio, pois Newton nunca lhe dá resposta.
Assim,
a
“quantidade
insatisfação
de
matéria”
relativamente
encontra
à
aqui
definição
parte
da
de
sua
justificação, pois se esta nos conduz à questão sobre a
“densidade” e esta fica por responder, então ficamos sem
saber o que isso da “quantidade de matéria”. Pior, se por
“densidade”
se
entender,
como
é
usual
em
Física,
o
quociente entre a massa e o volume de um corpo, então a
Definição I é circular. Se para fugir desta circularidade
devemos entender o termo “densidade” com outro sentido,
Newton nunca o indica expressamente.
197
Conferir
Mach, Ernst (1901),
Die Mechanik in ihrer Entwickelung
historisch-kritisch dargesiellt (trad. ingle. de Thomas J. McCormack,
“The Science of Mechanics: a Critical and Historical Account of its
Development “) La Salle: Open Court Publishing Co. (1960), p.194)
198
Conferir Cushing, James T. (1998), Philosophical
Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 98.
Concepts
in
220
Porém,
entender
julgo
tanto
a
que
sendo
razão
justos
porque
este
com
não
Newton
nos
podemos
dá
outra
indicação sobre o que é densidade e constatar que a sua
definição de quantidade de matéria não é nem circular, nem
vazia.
Ao afirmar que por “quantidade de matéria” entende o
produto entre a densidade e o volume, Newton evoca, para a
compreensão da definição de “quantidade de matéria”, por um
lado, um senso comum sobre o que é o “volume” e, por outro
lado, remete para uma certa experiência comum da densidade.
Experiência, por exemplo, de um tão típico nevoeiro inglês,
onde quanto mais partículas de água houver suspensas no ar,
mais denso é. Experiência de uma cidade, que quanto mais
habitantes tem
dentro do seu espaço, maior será a sua
densidade populacional. Experiência, portanto, de que uma
coisa mais densa é aquela que
tem maior quantidade de
elementos num determinado volume. Assim, ao definir corpo
ou quantidade de matéria através da densidade, Newton evita
a circularidade pois no fundo faz simplesmente apelo à
experiência comum do mundo. Em particular, à experiência da
densidade. Mas
igualmente importante, esta definição de
corpo remete, implicitamente, para a existência de unidade
de matéria. Pois se um corpo (ou “quantidade de matéria”) é
definido através da densidade, então essa definição toma
como implícito um conjunto de elementos que preenchem esse
221
volume. Portanto, a “densidade” deve ser aqui entendida,
como afirma Cohen como a “medida do grau de concentração de
um número de partículas fundamentais que compõem toda a
matéria”199. Deste modo, a matéria ou um corpo material pode
ser definido como o composto da adição de um conjunto de
elementos materiais discretos ou partículas materiais. Ou
seja, na primeira definição dos Principia Newton, por um
lado, faz apelo à nossa experiência comum do mundo físico,
mas por outro lado, introduz implicitamente uma concepção
atomista desse mundo. Portanto, logo na primeira definição
ficam bem marcados dois traços fundamentais do pensamento
de Newton: o empirismo e o atomismo.
Da
Newton
Definição
concebe
o
I
dos
corpo
Principia
como
o
resulta,
agregado
de
então,
uma
que
certa
quantidade de elementos últimos da matéria, isto é: átomos.
E,
como
volume,
tal,
maior
quanto
a
mais
quantidade
átomos
de
houver,
matéria.
para
o
Portanto,
mesmo
para
Newton, um corpo é isto mesmo: uma certa quantidade de
átomos que ocupam um dado volume. E ao definir corpo como a
adição de partes, isto é, de partículas materiais, Newton
estabelece estas entidades como referentes de tudo quanto
vai tratar nos Principia. Ou seja, a meu ver, os Principia,
e por consequência a Mecânica Clássica, constitui-se, na
199
Cohen, Bernard (2002), “Newton Concepts of force and mass” in The
Cambridge Companion to Newton, Cohen, Bernard e Smith, George E.
(ed.), Cambridge: Cambridge University Press, p. 59.
222
sua essência, como a Física das partículas materiais. Ou
mais especificamente, dado que estas partículas se tratam
de átomos materiais, poderia até ser dito que a Física de
Newton é, na sua essência ontológica, uma Física Atómica.
Que, no entanto, se concretiza como Física dos corpos, isto
é, dos compostos das partículas materiais, dado que, por um
lado, é a esses que temos acesso empírico e, por outro
lado, por que, para Newton, a natureza e a qualidade dos
corpos é igual à natureza e à qualidade das partículas
materiais.
E,
portanto,
as
leis
físicas
dos
átomos
materiais serão as mesmas que para os corpos compostos, em
particular, dos macroscópicos.
Ainda no comentário à Definição I,
Newton assinala
que a quantidade de matéria pode ser sempre determinada
através de experiências com pêndulos, pois é proporcional
ao peso. A essência desta relação entre peso e massa será
esclarecida
indicação
é
posteriormente
relevante
pois
nos
Principia.
significa
o
Esta
pequena
afastamento
de
Newton relativamente à concepção Galilaica de corpo, onde
neste o corpo é concebido como o que tem peso. Como Newton
irá mostrar nos Principia, “peso” decorre da acção de uma
força sobre um corpo material, mas não é parte da essência
destes corpos. Se só existisse uma partícula material no
Universo, não haveria “peso”, apenas matéria.
223
Por
fim,
ao
assinalar
que
cada
corpo
é,
na
sua
natureza, o agregado aditivo de um conjunto discreto de
unidades últimas de matéria, os átomos, Newton colocando-se
em clara oposição a Descartes. Pois, ao contrário deste,
Newton
rejeita
que
a
natureza
dos
corpos
seja
a
sua
extensão e, por conseguinte, que o espaço seja um plenum
material. Ao ter o atomismo como fundamento ontológico, a
Mecânica de Newton, a Mecânica Clássica, está, de certo
forma, nas antípodas da Mecânica de Descartes.
Assim, embora a Definição I dos Principia nos pareça,
num primeiro olhar, circular e insatisfatória, creio que um
olhar mais atento percebe nela o núcleo da caracterização
ontológica dos objectos físicos e desta a anunciação de
tudo o resto que se seguirá nos Principia.
3.2.2. Quantidade de Movimento
A segunda definição (Definição II) que nos surge nos
Principia refere-se à “quantidade de movimento”. Esta é
estabelecida como o produto do valor da velocidade pelo
valor da quantidade de matéria. Aqui, como em diversas
ocasiões ao longo dos Principia, tal como salienta Bernard
Cohen,
por
“movimento”
deve-se
entender
o
mesmo
que
224
“quantidade
de
movimento”,
algo
que,
por
sua
vez,
é
actualmente designado por “momentum”200. Ou seja, e esse é
aspecto fundamental, Newton estabelece que a linguagem da
Mecânica se faz quantitativamente e não qualitativamente.
Isto é, ao transformar o termo “movimento” em “momentum”,
Newton faz-nos mover de uma descrição qualitativa sobre o
mundo físico, onde dizemos que as coisas se movem mais ou
menos, para uma linguagem, que doravante será a da Física,
em que a descrição do mundo se faz apenas pela quantidade.
No
caso
do
movimento,
pela
sua
quantidade
ou
seja,
o
momentum. Assim, Newton ao estabelecer como fundamental uma
quantidade na caracterização do movimento, faz pressupor
que
os
corpos
possuem
valores
bem
determinados
do
movimento. E, deste modo, completa o movimento iniciado na
primeira definição afastando-se de uma concepção geométrica
do movimento, ou seja, da concepção de Descartes. Movimento
em Newton não é um modo de ser extenso. Movimento é, como a
seguir se verá, uma quantidade de progresso no espaço e no
tempo de um corpo.
Por sua vez, no comentário que acompanha a Definição
II, Newton acrescenta que “o movimento do todo é a soma dos
200
Cohen, I. Bernard (1999), “A guide to Newton’s Principia” in Cohen,
I. Bernard e Whitman, Anne, The Principia. Mathematical Principles of
Natural Philosophy, A New Translation, Berkeley and Los Angeles:
University of California Press (1999), p. 96
225
movimentos da totalidade das partes”201. Deste comentário de
Newton decorre, então, que a soma do momentum de todas
as
quantidades de matéria é igual ao momentum da quantidade
total de matéria. Logo, se a quantidade total de matéria
for
invariável,
total.
Ou
seja,
invariável
na
será
sequência
da
igualmente
concepção
o
momentum
atomista
da
Definição I, Newton estabelece que o momentum de um todo é
equivalente à adição linear dos momentum das suas partes,
ou
mais
precisamente,
das
partículas
materiais
que
constituem o corpo. Portanto, por um lado, se o todo é
igual
à
soma
das
partes,
no
caso,
no
que
respeita
à
quantidade de matéria e, por outro lado, se cada uma das
partes que constitui esse todo, isto é, o corpo, pode
possuir um momentum distinto, então, só se poderá falar em
momentum de um corpo se o reduzirmos a uma unidade mínima,
isto é, àquilo a que designei, no capítulo anterior, por
partículas puras dos corpos. Estabelece-se aqui, uma vez
mais, um diferença radical com Descartes. Pois ao conceberse um corpo como aquilo que é extenso, seria um absurdo
aceitar
que,
mesmo
formalmente,
esse
corpo
pudesse
ser
reduzido a algo pontual.
201
“The motion of the whole is the sum of the motions of all the
parts”
Newton,
Isaac
(1726),
Philosophiae
Naturalis
Principia
Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The
Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New
Translation”) [Principia - ed. Cohen], Berkeley and Los Angeles:
University of California Press (1999), p. 404
226
Apesar
destas
clivagens
com
Descartes,
tanto
neste
último como em Newton, o movimento não é parte da natureza
dos
corpos.
Newtoniano,
Tudo
poderia
estar
em
repouso
no
pois
os
objectos
físicos
são
material.
Porém,
os
objectos
físicos
movem-se.
linguagem
estabelecida
por
Newton,
universo
apenas
momentum.
quanta
Têm,
na
Assim,
há
agora que explicar o movimento. O que em Newton é feito
através
do
conceito
de
força.
Não
será,
então,
surpreendente que Newton depois de ter definido “momentum”
e “corpo”, necessite agora de definir “força”. Logo, as
seis definições restantes, do grupo de oito que constituem
a primeira parte dos Principia referem-se à caracterização
de
diferentes
tipos
de
forças.
Estas
podem
ser
categorizadas em três tipos: a inerente, a aplicada e a
centrifuga.
3.2.3. Os três tipos de Força
A primeira tipo de força (Definição III) reporta-se à
“força inerente”202 (vis incita) da matéria. Esta é definida
202
Usualmente o termo “vis insita” é traduzido por “inate force”. Este
é o caso, por exemplo, da tradução em língua inglesa realizada por
Andrew Motte, que foi publicada em 1729. Este não é, contudo, o caso
da tradução, também para língua inglesa, de Bernard Cohen, publicada
em 1999, e que aqui serve de referência. Nesta última, o termo “vis
insita” é traduzido por “inherent force” (cf. Newton, Isaac (1726),
227
como “[…] um poder de resistência pelo qual cada corpo, por
quanto de si depender, preservar o seu estado de repouso ou
de movimento rectilíneo e uniforme”203. Esta capacidade, que
é “sempre proporcional à quantidade de matéria”204, ou seja,
à massa, é designada, por Newton, por “força de inércia”205.
Quanto maior a quantidade de matéria, maior a tendência de
um corpo manter o seu estado de repouso ou de movimento.
Assim, a força de inércia é uma força intrínseca, própria,
inerente
aos
corpos
e
que
nestes
se
encontra
latente
enquanto uma outra força não lhes for aplicada. A força de
inércia
é,
tal
como
assinala
o
próprio
Newton
no
seu
comentário à Definição III, responsável tanto por um corpo
ser impelido quando não lhe é aplicada qualquer força, como
é responsável pela resistência que este oferece a uma força
que lhe seja aplicada. É devido à força da inércia que
corpo algum altera, por si só, o seu estado de movimento
(rectilíneo ou
não) ou de repouso. Não é, no
entanto,
justificado por Newton por que razão os corpos mantém o seu
Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de
Cohen,
I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of
Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles:
University of California Press (1999), p. 404)
203
“[…] a power of resisting, by which every body, as much as in it
lies, endeavors to persevere in its present stale, whether it be of
rest, or of moving uniformly forward in a right line.”, Idem, p.404
204
“This force is ever proportional to the body”, Idem, ibidem.
205
No comentário a esta definição, Newton escreve: “Because of
inercia of matter, every body is only with difficult put out of
state either of resting or of moving. Consequently, inherent force
also be called by the very significant name of force of inercia”
Idem, p. 404.
the
its
may
(cf
228
estado de movimento na ausência de uma acção exterior. Isto
é, não é apresentada nenhuma razão que explique porque é
que todos os corpos possuem inércia, nem que explique em
que
se
funda
a
existência
dessa
força
intrínseca
nos
corpos, cuja natureza é a materialidade. Numa palavra, em
Newton fica por explicar a relação conceptual entre matéria
e inércia.
Por seu turno, a força que, ao actuar sobre um corpo,
é responsável por modificar o
estado de repouso ou de
movimento rectilíneo e uniforme deste, é chamada “força
aplicada” (vis impressa) e é assim definida na Definição IV
dos Principia. Contrariamente ao caso da força de inércia,
a
força
aplicada
não
permanece
nos
corpos
se
a
acção
termina. Ela tem um carácter efémero. A força aplicada não
é
algo
próprio
dos
corpos,
mas
é
uma
acção
exterior
exercida sobre estes, que “são de diversas fontes, como a
percussão, a pressão e a força centrípeta”206.
A
força
Definição
V.
centrípeta
é,
Por
centrípeta
força
precisamente,
Newton
o
assunto
entende:
da
“[a
força] pela qual os corpos são puxados ou impelidos, ou de
206
“Impressed forces are of different origins as from percussion, from
pressure, from centripetal force”, Newton, Isaac (1726), Philosophiae
Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e
Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural
Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University
of California Press (1999), p.405.
229
qualquer outro modo tendem, em direcção a um ponto como
centro”207.
As três definições finais (Definições VI, VII e VIII)
dizem
respeito
motriz
da
às
força
quantidades
centrípeta.
absoluta,
É
notório
acelerativa
que,
embora
e
no
comentário à Definição IV a força centrípeta surja apenas
como uma das fontes de força aplicada, em igualdade com a
pressão
ou
a
percussão,
tal
como
assinala
Max
Jammer,
“parece que Newton olhava para a força centrípeta como uma
força
de
maior
importância
que
todas
as
outras”208.
Descobre-se, no entanto, a razão desta atenção particular
quando se repara na abertura ao comentário à Definição V,
onde
Newton
declara
que
“[Uma
força]
deste
tipo
é
a
gravidade”209. Tal como esta passagem, boa parte do conteúdo
dos
comentários
dedicados
à
explicite,
este
às
Definições
gravidade.
conjunto
V,
Assim,
de
VI,
VII
embora
definições
e
VIII,
Newton
conotados
são
não
com
o
a
força centrípeta referem-se, fundamentalmente, à gravidade.
São caracterizações da gravidade. E terá sido este o motivo
pelo qual Newton deu, nos Principia, destaque acrescido à
207
“A centripetal force is that by which bodies are drawn or impelled,
or any way tend, towards a point as to a centre.” Idem, ibidem.
208
Jammer, Max (1957), Concepts of Force, New York: Dover (1999), p.
122
209
“Of this sort is gravity“, Newton, Isaac (1726), Philosophiae
Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e
Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural
Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University
of California Press (1999)
230
força centrípeta, em detrimento de outros tipos de força.
Pois, um dos temas centrais dos Principia é a relação entre
o peso e a massa. Ou melhor, a distinção entre peso e
massa. Distinção que lhe permite fugir à subjectividade
inerente à concepção de corpo como aquilo que é pesado,
como faz Galileu. Isto porque, enquanto o peso varia com a
altitude e como tal não poderá ser exclusivamente atribuído
ao
corpo,
a
quantidade
de
matéria
é
invariável.
A
quantidade de matéria de um determinado corpo é a que é em
função apenas do corpo considerado.
Por outro lado, no comentário a esta Definição, Newton
afirma existir uma relação de proporcionalidade entre a
massa de um corpo e o seu peso. Proporcionalidade esta que
é, alegadamente, provada através de experiências descritas
na proposição 6 do Livro III dos Principia. Ou seja, para a
qual é dada uma prova empírica. Mas qual é a essência desta
relação? O que distingue “peso” de “massa”? No comentário à
Definição
V,
Newton
gravítica)
é
acrescenta
na
uma
afirma
força
que
a
centrípeta.
introdução
à
secção
gravidade
Em
11
(ou
particular,
dos
força
como
Principia,
a
gravidade é a força centrípeta que resulta da atracção
mútua
entre
gravidade
é,
dois
para
corpos,
Newton,
quaisquer
tanto
a
que
estes
força
pela
sejam.
A
qual
os
231
objectos celestes são mantidos na sua orbita210, como é a
força pela qual os corpos tendem para o centro da terra211.
A
gravidade
é,
portanto,
uma
força
universal
a
todos
corpos, cuja quantidade, a quantidade de atracção entre
corpos, designada por “peso”212. O peso é, como tal, é uma
relação entre massas, entre corpos, mas não parte da sua
essência. Dois corpos, independentemente da distância a que
se encontram, atraem-se de forma gravítica, ou dito por
outras palavras, causam peso um no outro. Assim, a massa
está associada à gravidade e, neste sentido, é designada
por “massa gravítica”. Contudo, na Definição III, Newton já
havia relacionado a “massa” com uma força - a força de
inércia. O termo “massa” aparece, deste modo, associada a
duas
forças
distintas:
“massa
gravítica”
e
“massa
inercial”. Respectivamente, a força com que os corpos se
atraem e a força com que um corpo tende a manter o seu
estado de movimento. Mas se na massa, ou quantidade de
matéria, residem, de algum modo, as forças de inércia e
gravítica,
Newton
clarifica
de
que
atractivo
sobre
manutenção
do
não
modo
outras
seu
o
a
esclarece.
“massa”
massas,
estado
de
Ou
tem
como
seja,
tanto
ele
nunca
esse
poder
tem
esse
poder
movimento,
nem,
por
210
Conferir Idem, p. 806.
211
Conferir Idem, p. 405.
212
Conferir Idem, p. 407, (comentário à Definição VIII).
de
fim,
232
esclarece qual a relação entre esses dois “poderes” da
massa. Algo que será o assunto principal da relatividade de
Einstein.
Em segundo lugar, Newton não esclarece, precisamente,
o que entende por “força”. Procura, apenas associar certos
efeitos sensíveis relacionados com o movimento dos corpos à
existência de uma grandeza que designa por “força”. A força
é simplesmente identificada ora como causa dos diferentes
estados
de
movimento
movimento
não
uniforme),
(repouso,
ora
movimento
como
razão
da
uniforme,
coesão
da
matéria, onde ao contrário de Descartes, os constituintes
dos corpos possuem uma propriedade – a gravidade – que os
força a manterem-se próximos.
Poderíamos ler no segundo axioma, ou segunda lei do
movimento,
uma
definição
formal
de
força.
Nesta
bem
conhecida lei, Newton relaciona a força aplicada com a
variação temporal do momentum. Isto é, Newton apresenta a
relação entre “força” e “momentum”, identificando a “força”
como a variação, ao longo do tempo, do momentum de um corpo
ou de um conjunto de corpos. Deste modo, desta lei do
movimento(ou axioma, como designa Newton), poderemos dizer
que “força” em Newton é apenas a medida da variação da
quantidade de movimento de um corpo. E, em verdade, do
ponto
vista
formal,
por
meio
deste
axioma,
poder-se-ia
233
constituir
toda
a
Física
apresentada
por
Newton
nos
Principia dispensando o conceito de força, substituindo-o
pelo conceito de momentum. O que significa, como já o
havíamos referido no capítulo anterior, que em Mecânica o
estado de um sistema é completamente caracterizado através
da sua posição e do seu momentum. Contudo, se a natureza
dos corpos é apenas o de serem uma certa quantidade de
matéria, então não resulta do conceito de corpo o facto
deles se moverem.
3.2.4.
Os
conceitos
de
“Espaço”,
“tempo”,
“lugar”
e
“movimento”: o escólio da primeira parte dos Principia
Ao corpo de definições segue-se um escólio dedicado
aos conceitos de “espaço”, “tempo”, “lugar” e “movimento”.
Curiosamente, Newton não se propõe definir estes conceitos,
pois, segundo afirma estes “já [são] do conhecimento de
todos”213. Ou seja, dado que entende que estes conceitos são
do conhecimento de todos, Newton remete, por um lado, para
um certo senso comum e, por outro lado, indica que não vai
introduzir novos elementos terminológicos. No fundo, esta é
a grande diferença entre a parte das definições e o escólio
213
Conferir Idem, p. 408.
234
que lhes segue: enquanto na primeira parte Newton introduz
um conjunto de termos novos, como “quantidade de matéria”,
“momentum” e “força gravítica”, na segunda parte, vai fazer
alusão a termos que são da linguagem natural, mas à qual
vai dar o significado que é mais conveniente aos Principia
e que, doravante, constituirá a linguagem da Física. Assim,
Newton anuncia que o propósito deste escólio não é definir
mas esclarecer as noções de “Espaço”, “Tempo”, “Lugar” e
“Movimento”,
concebidas
pois
apenas
“noto
em
que
relação
estas
aos
são
objectos
popularmente
da
percepção
sensível. E daí resultarem de certos preconceitos”214. No
sentido de eliminar estes “preconceitos”, Newton considera
“conveniente distinguir estas quantidades em absoluto e
relativo, verdadeiro e aparente, matemático e comum”215.
3.2.5. O conceito de tempo
A primeira destas “quantidades” é o tempo. A cerca
deste, Newton afirma:
214
“I must observe, that the vulgar conceive those quantities under no
other notions but from the relation they bear to sensible objects. And
thence arise certain prejudices”, Idem, ibidem
215
“it will be convenient to distinguish them into absolute and
relative, true and apparent, mathematical and common.” Idem,
ibidem.
235
“Tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da
sua própria natureza, sem referência com qualquer coisa externa,
flui uniformemente e por outro nome é chamado de duração. Tempo
relativo, aparente e comum é alguma medida sensível e externa
(precisa ou imprecisa) que é obtida através do movimento; tal
medida – por exemplo, uma hora, um dia, um mês, um ano – é
usada ao invés do tempo verdadeiro”216.
comummente
Na
primeira
frase
desta
passagem
encontramos
o
conceito de “tempo” caracterizado como uma substância, no
sentido que é algo que existe independente de qualquer
outra coisa, que existe “por si mesmo e da sua própria
natureza,
sem
referência
com
qualquer
coisa
externa”.
Encontramos aqui o segundo elemento da ontologia de Newton,
depois dos corpos materiais, o tempo. O tempo a que Newton
designa por “tempo absoluto” é o tempo verdadeiro, é o
tempo que existe enquanto substância, que existe fora do
domínio das existências das coisas materiais, isto é, dos
corpos.
seja,
Tempo
cuja
que
sua
Newton
natureza
caracteriza
–
do
tempo
de
–
matemático.
é
a
Ou
passagem,
sucessiva, perfeitamente ritmada, de instante a instante.
216
“Absolute, true and mathematical time, in and of itself and of its
own nature, without reference to anything external, flows uniformly
and by another name is called duration. Relative, apparent, and common
time is any sensible and external measure (precise or imprecise) of
duration by means of motion; such measure – for example, an hour, a
day, a moth, a year – is commonly used instead of true time.”, Idem,
p. 408.
236
Por este ser o tempo verdadeiro, aquele que é por si mesmo,
poderemos denominá-lo ontológico.
Em contraponto, existe um outro tempo, relacionado com
este,
mas
que
é
apenas
uma
sua
sombra,
é
aquele
que
percebemos, que medimos, que é da nossa experiência comum.
O tempo a que Newton denomina por “tempo relativo”.
Este tempo relativo é, para Newton um tempo que é
medido
através
Quando
falamos
da
em
periodicidade
anos,
de
meses,
um
certo
dias,
movimento.
horas,
minutos,
segundos, etc, falamos em unidades de medida de um certo
movimento. Um ano é a medida de tempo do movimento de
translação da Terra em redor do Sol. Um mês é a medida de
tempo do movimento de translação da Lua em redor da Terra.
Um dia é a medida do tempo da rotação da Terra. Uma hora,
um minuto ou um segundo, é a medida do tempo do movimento
do
mecanismo
de
um
relógio.
Contudo,
nenhum
destes
movimentos é uniforme. Os dias não são todos iguais, como
não são iguais todos os minutos, todos os meses, todos os
anos
ou
tomados
todos
neste
os
segundos.
sentido,
não
Dois
são
intervalos
de
necessariamente
tempo,
iguais.
Assim, não é possível determinar, de forma objectiva, nem a
duração de, por exemplo, a velocidade de uma esfera a rolar
num plano inclinado, nem o tempo em que cada corpo se
encontra. E, em particular, através de um mecanismo de
237
medição do tempo não é possível afirmar que dois corpos
compartilham o mesmo tempo ou que se encontram no mesmo
tempo, isto é, que são simultâneos.
Porém, assinala Newton:
“Tempo
relativo,
naturais
absoluto,
pela
são
de
em
equação
fato
astronomia,
do
tempo
desiguais,
é
distinguido
aparente.
apesar
de
Porque
serem
do
os
tempo
dias
comummente
considerados como iguais e usados como uma medida do tempo. Os
astrónomos corrigem essa desigualdade, para que possam medir os
movimentos celestes por um tempo mais verdadeiro. É possível que
não exista um como movimento uniforme de onde o tempo possa ter
uma medida exacta. Todos os movimentos podem ser acelerados e
retardados, mas o fluxo do tempo absoluto não é passível de
mudanças. A duração ou perseverança da existência das coisas é a
mesma, sejam os movimentos rápidos ou lentos ou nulos; portanto,
a duração é justamente distinguida das suas medidas sensíveis
[…]”217
217
“In astronomy, absolute time is distinguished from relative time by
the equation of common time. For natural days, which are commonly
considered equal for the purpose of measuring time, are actually
unequal. Astronomers correct this inequality in order to measure
celestial motion on the basis of truer time. It is possible that there
is no uniform motion by which time may have a exact measure. All
motion can be accelerated and retarded, but the flow of absolute time
cannot be changed. The duration or perseverance of the existence of
things is the same, whether their motions are rapid or slow or null;
accordingly, duration is rightly distinguished from its sensible
measures […]” Idem, p. 410.
238
Se
todos
movimento
os
tempos
escolhido
para
medidos
servir
são
de
relativos
referência,
a
o
um
tempo
passa e o homem envelhece qualquer que seja o relógio que o
acompanhe.
O
tempo,
em
verdade,
para
Newton,
não
é
referente a movimento algum. Como afirma o próprio, “a
duração ou a perseverança da existência das coisas é a
mesma, quer os seus movimentos sejam rápidos ou lentos ou
nulos”. O tempo verdadeiro, absoluto, matemático, flui por
si mesmo, de forma uniforme, constante e imperturbável.
Apenas referente a si mesmo, a sua medida é absoluta e
objectiva. O “fluxo do tempo verdadeiro não é passível de
mudanças”. Logo, a verdadeira duração dos eventos é dada
pelo lapso de tempo absoluto e não pelos procedimentos de
medição. Dado que flui de forma uniforme, as partes do
tempo absoluto são iguais e ordenadas de maneira imutável,
formando uma série. Por sua vez, os eventos são ordenados
objectivamente no tempo em virtude dos lugares no tempo
absoluto em que eles ocorrem. O tempo ao que os conceitos
da Física, como momentum ou força, são relativos é o tempo
verdadeiro.
O
tempo
da
prática
da
Física
é
o
tempo
relativo. E por isso, é ao tempo verdadeiro que se referem
as leis Físicas.
Portanto,
a
simultaneidade,
a
duração
e,
por
consequência, o movimento, existem verdadeiramente para um
tempo absoluto. Substância que, pela sua própria natureza,
239
marca
permanentemente
os
compassos,
sem
hesitações
ou
enganos, de todas as coisas. O tempo verdadeiro não é algo
dos corpos, da mente ou eventualmente do espaço (como será,
de certa forma, para Einstein). É uma coisa em si mesma, à
qual temos acesso por via da comparação de um movimento que
se repete. Numa espécie de sombra do tempo verdadeiro. E,
logicamente, é para este tempo – o verdadeiro - que são
válidas as leis do movimento, que é válida a Física de
Newton.
3.2.6. O conceito de espaço
Sobre o espaço, escreve Newton:
“Espaço absoluto, na sua própria natureza, sem referência a
nada
que
lhe
seja
exterior,
permanece
sempre
homogéneo
e
inamovível”218.
Da mesma forma que relativamente ao tempo, o espaço é
caracterizado
qualquer
como
coisa
uma
“sem
coisa
que
referência
a
existe
por
si,
como
nada
que
lhe
seja
218
“Absolute space, in its own nature, without regard to anything
external, remains always similar and immovable.” Idem, pp. 408-9.
240
exterior”. Ou seja, o espaço aparece, em Newton, igualmente
como uma substância. Completando-se assim a trindade das
substâncias da
Física de Newton (e, de certo
modo, da
Física desde Newton): partículas materiais, tempo e espaço.
Se
o
espaço
absoluto
é
homogéneo,
imutável
e
vistas,
ou
indiferenciado, então:
“[…]
distinguidas
partes
umas
do
das
espaço
outras
não
podem
através
dos
ser
nossos
sentidos,
portanto em seu proveito usamos as suas medidas sensíveis. Como
tal, definimos todos lugares com base nas posições e distâncias
das coisas a um corpo qualquer considerado como imóvel, e então,
com respeito a tais lugares, estimamos todos os movimentos,
considerando os corpos como que transferidos de um
daqueles
lugares para outros. E assim, em vez de espaço e movimento
absolutos, usamos os relativos […]”219.
A
nossa
relação
imediata
com
o
espaço
tem
como
referente o nosso próprio corpo. Tendo-nos como referência,
determinamos os lugares, os movimentos e as distâncias, em
219
“[…] these parts of space cannot be seen and cannot be
distinguished from one another by our senses, we use sensible measures
in their stead. For we define all places on the basis of the positions
and distances of things form some body that we regard as immovable,
and then we reckon all motions with respect to these places, insofar
as we conceive of bodies as being changed in position with respect to
them. Thus, instead of absolute places and motions we use relative
ones […]” Idem, p. 410.
241
qualquer medida sensível (pés, passos, polegadas, etc), a
que
se
encontram
outros
corpos.
Assim,
o
nosso
corpo
define, segundo Newton, um espaço relativo. Poderíamos, no
entanto, tomar como referência outro corpo qualquer e cada
corpo define um espaço relativo distinto. Estes espaços,
contudo, são móveis e cada uma dessas medidas é relativa ao
corpo que é tomada como origem. Como tal, qualquer medida
espacial
referida
a
estes
espaços
é
temporária
e
subjectiva. Ou seja, através da escolha de um referencial
arbitrário,
não
é
possível
indicar
objectivamente
a
distância entre dois corpos ou o estado de movimento de um
corpo.
Para
um
determinado
referencial
um
corpo
poderá
estar em movimento acelerado e para outro estar em repouso.
Regressamos à questão da objectividade do movimento que já
havíamos
encontrado
regressamos
Descartes.
às
Em
em
Descartes.
concepções
resposta
a
E,
relativistas
estes,
no
em
de
que
particular,
Galileu
e
concerne
à
arbitrariedade da escolha do referencial espacial, Newton
afirma:
“[…] em dissertações filosóficas devemo-nos abstrair dos
nossos sentidos e considerar as coisas em si mesmas, distintas
daquelas que são somente as nossas medições sensíveis. Pois é
242
possível que não exista um corpo verdadeiramente em repouso ao
qual todos os lugares e movimentos possam ser referidos”220.
Ou seja, os corpos, na caracterização objectiva do seu
movimento,
só
podem
referir-se
a
um
espaço
imóvel
e
imutável no qual reside o sistema de eixos absoluto. Porém,
tal espaço está para além da nossa percepção. Não porque
não exista, segundo Newton, tal espaço, mas porque estamos
sempre
restringidos
espaço
e,
como
a
tal,
uma
região
do
que
muito
dele
limitada
temos
acesso
desse
não
encontramos “um corpo verdadeiramente em repouso ao qual
todos
os
lugares
e
movimentos
possam
ser
referidos”.
Podemos no entanto, através de um exercício de abstracção,
pensar o espaço relativo que nos tem como referente como
uma parcela de um espaço absoluto, um espaço que podemos
construir
racionalmente
como
a
adição
de
todos
espaços
relativos possíveis. O espaço, enquanto coisa em si mesma
considerada, o espaço verdadeiro não é pois o que medimos
ou que temos noção a partir da nossa experiência do mundo
físico, mas é o todo do qual todos os relativos são parte.
É a esse espaço verdadeiro, absoluto e – acrescenta Newton
220
“[…] but in philosophical disquisitions, we ought to abstract from
our senses, and consider things themselves, distinct from what are
only sensible measures of them. For it may be that there is no body
really at rest, to which the places and motions of others may be
referred” Idem, p.411.
243
– matemático, que são referentes e válidas as
leis do
movimento dos corpos.
3.2.7. O conceito de movimento
No final do Escólio, Newton distingue entre movimento
absoluto e relativo. Afirma Newton:
“Movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar
absoluto para outro; e movimento relativo é a translação de um
lugar relativo para outro.”221.
O movimento relativo ou aparente, aquele que nos lança
dúvidas
se
é
real
ou
não,
distingue-se
do
movimento
verdadeiro, aquele que é de facto, apenas e só em função do
referencial espacial. Isto é, os primeiros referem-se ao
espaço
relativo
e
os
segundos
referem-se
ao
espaço
absoluto. Porém, em ambos os tipos de movimento, movimento
é concebido, simplesmente, como a mudança de lugar de um
corpo. O movimento é função do lugar e sobre este último
afirma Newton:
221
“Absolute motion is the translation of a body from one absolute
place into another; and relative motion, the translation from
relative place into another.” Idem, p. 409.
one
244
“Lugar é uma parte do espaço que ocupa um corpo e é, de
acordo com o espaço, ou absoluto ou relativo. Digo, uma parte do
espaço e não a situação, nem a superfície exterior do corpo.
Para sólidos iguais os seus lugares são sempre iguais; mas suas
superfícies, com as suas figuras diferentes, muitas vezes são
desiguais.”222
Desta passagem fica claro que, em razão de existirem,
para Newton, dois tipos de espaço – o relativo e absoluto –
haverá dois tipos de lugares: o relativo e o absoluto.
Porém, seja qual for o tipo, por “lugar” Newton entende a
parte do espaço ocupada por um corpo. Ou mais precisamente,
o volume do espaço que é preenchido por um corpo. Neste
sentido, tal como em Descartes, um corpo tem extensão.
Porém, ao contrário de Descartes, para Newton a extensão
não
é
a
essência
dos
corpos.
Isto
é,
enquanto
para
Descartes um corpo é uma substância extensa, em Newton um
corpo é uma substância material que, uma vez que está no
espaço, pela própria natureza deste, recebe a propriedade
de ser extenso. Portanto, em Newton, por um lado, podemos
pensar um corpo como um pedaço de matéria sem ainda lhe
222
“Place is a part of space which a body takes up, and is according
to the space, either absolute or relative. I say, a part of space ;
not the situation, nor the external surface of the body. For the
places of equal solids are always equal; but their superficies, by
reason of their dissimilar figures, are often unequal.” Idem, ibidem.
245
atribuir extensão alguma. Por outro lado, podemos ter do
espaço como pura extensão, em nada sendo corpóreo. Isto é,
podemos
ter
espaço
sem
matéria,
podemos
conceber,
em
Newton, um espaço vazio.
Deste modo, se Newton concebe o movimento como mudança
de
lugar,
conceito
que,
justamente,
Descartes
havia
considerado de senso comum e impróprio, fá-lo resistindo,
por um lado, a ser derrubada pela crítica de Descartes a
essa concepção de movimento e, por outro lado, evitando
cair nas dificuldades sem fim que o conceito de corpo de
Descartes traz consigo. Resiste à crítica de Descartes ao
conceito de movimento como mudança de lugar, pois se este
objecta que tal concepção nos faz enredar no relativismo,
pois não sabemos se foi o corpo que se moveu ou se foi um
outro que utilizámos, arbitrariamente, como referencial, ao
conceber o espaço e não os corpos como substância extensa,
onde a relação das suas partes é sempre idêntica, Newton
assegura que os movimentos dos corpos se referem a algo
exterior aos corpos que é extenso e imutável, ou seja, que
os
movimentos
referencial
de
todos
absoluto.
É
os
para
corpos
este
se
que
referiram
o
a
movimento
um
é
concebido como mudança, absoluta e verdadeira, de lugar de
um corpo.
246
Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, como já
aqui foi visto, Newton é levado a ter o espaço como uma
substância
puramente
extensa.
O
que
em
Descartes
corresponde ao conceito de corpo e, por consequência, levao a considerar que toda a extensão é corpórea, isto é, que
o espaço é um plenum. Porém, em Newton, dado que os corpos
são substância material, o espaço enquanto coisa extensa,
não é um plenum mas um vazio. Isto é, Newton concebe a
existência possível de um espaço sem corpos, um espaço como
substância e não como atributo, e por conseguinte, evita
enredar-se
pelo
plenum.
O
espaço
não
é
corpo,
mas
recipiente onde se colocam os corpos, numa relação entre
substâncias como uma fosse o interior de uma garrafa vazia
e o outro o líquido que irá ocupar esse espaço.
Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, em
Newton,
um
corpo
é
um
composto
de
partículas,
de
corpúsculos e, como tal, o movimento de um corpo é, na
verdade, o movimento solidário entre as suas partes. Isto
é, o movimento de um corpo é o movimento de um todo em que
as suas partes se movem de forma, mais ou menos, coerente
entre si. Esta solidariedade entre as partes que compõem um
corpo é explicável, em Newton, pela consistência interna
dos
corpos,
isto
é,
como
o
resultado
das
interacções
gravíticas e das distâncias entre as partes que constituem
esse corpo.
247
Por
fim,
à
extensão
do
espaço
que
um
corpo
ocupa
Newton denomina de “lugar”. Dado que esta extensão, em
comprimento, largura e altura, é o volume do corpo, então
poder-se-á
afirmar
que
por
“lugar”
em
Newton
pode-se
entender o mesmo que em Descartes se entende por “lugar
interno”.
Porém,
dado
que
para
Newton
os
corpos
são
compostos por partes materiais, então podemos pensar numa
decomposição sucessiva de um corpo até ao limite de uma
partícula material última. Que será uma partícula pura dos
corpos
materiais,
ou
seja,
um
corpo
material
pontual.
Assim, estas partes últimas, estes representantes ideais
dos corpos já não podemos dizer que ocupam um lugar, pois,
como são pontuais, não têm extensão. Mas sendo ainda uma
entidade no espaço e dado que este, além de absoluto e
verdadeiro, é matemático, ou seja, preenchido plenamente de
pontos, então podemos pensar nesse corpo material pontual
como algo que se encontra numa dada posição do espaço.
Estabelece-se assim uma distinção entre a localização
e a posição. Distinção que é pertinente pois, as leis do
movimento, as leis que fundam a Mecânica Clássica, são
referentes a essas entidades últimas, isto é, as partículas
puras dos corpos. Quero com isto dizer que se deve entender
que as leis newtonianas do movimento, a Mecânica Clássica,
não se referem à transição de lugares de um corpo no espaço
248
relativo, mas à a variação da posição de uma partícula pura
dos corpos, naturalmente, no espaço absoluto.
3.2.8. Conclusão
No comentário à sua “terceira regra do raciocínio em
Filosofia”, Newton escreve:
“Dado
que
apenas
conhecemos
as
qualidades
dos
corpos
através de experiências, nós podemos assumir por universal todas
as que universalmente concordam com as experiências. […] Nós não
sabemos a extensão dos corpos senão pelos nossos sentidos, nem
que
esta
alcança
extensão
em
todos
tudo
que
os
é
corpos
senão
sensível,
porque
portanto,
percebemos
a
inscrevemo-la
universalmente em todos os [corpos]. Que a abundância dos corpos
é dura, nós aprendemos pela experiência e como a dureza do todo
resulta
da
dureza
das
partes,
nós,
como
tal,
justamente
inferimos a dureza das partículas indivisíveis não apenas dos
corpos
que
sentimos
de
todos
os
outros.
Que
os
corpos
são
impenetráveis, nós recolhemos não da razão, mas da sensação. Os
corpos
com
que
concluímos
a
universal[…].
movimento
lidamos
do
são
tidos
como
impenetrabilidade
A
extensão,
todo,
a
resulta
como
dureza,
da
impenetráveis
a
uma
e
daí
propriedade
impenetrabilidade,
extensão,
da
dureza,
o
da
249
impenetrabilidade, do movimento das partes e daí concluímos que
as
partículas
últimas
de
todos
os
corpos
serão
igualmente
extensas, duras, impenetráveis e móveis […]. E esta é a fundação
de toda Filosofia.”223
Nesta longa passagem ficam bem expostos, pela pena do
próprio Newton, os elementos fundamentais do seu pensamento
sobre os objectos físicos. E sem surpresa reencontramos o
que designámos no capítulo anterior por pentadoxia.
Segundo Newton a experiência que comummente temos do
mundo físico, em que encontramos mesas, pedras, bolas de
bilhar, etc, ensina-nos, pois assim será evidente, que este
– o mundo físico - é constituído por os objectos físicos
que
têm
extensão,
dureza,
impenetrabilidade
e
que
são
possibilidade de se moverem. O diverso dessas coisas do
mundo, mesas, pedras, bolas de bilhar, etc, será o diverso
223
“For since the qualities of bodies are only known to us by
experiments, we are to hold for universal all such as universally
agree with experiments; […] We no other way know the extension of
bodies than by our senses, nor do these reach it in all bodies, but
because we perceive extension in all that are sensible, therefore, we
ascribe it universally to all others also. That abundance of bodies
are hard, we learn by experience, and because the hardness of the
whole arises from the hardness of the parts, we, therefore, justly
infer the hardness of the undivided particles not only of the bodies
we feel but of all others. That all bodies are impenetrable, we gather
not from reason, but from sensation. The bodies which we handle we
find impenetrable, and thence, conclude impenetrability to be an
universal property of all bodies whatsoever. […] The extension,
hardness, impenetrability, mobility, of the whole, result from the
extension, hardness, impenetrability, mobility, . . . of the parts;
and thence we conclude the least particles of all bodies to be also
all extended, and hard and impenetrable, and moveable […] And this is
the foundation of all philosophy”, Idem
250
de formas de um mesmo que é a matéria. A matéria será,
então, o que subjaz a todos corpos e, por conseguinte, será
o que possui as propriedades da extensão, da dureza, da
impenetrabilidade, da possibilidade de movimento.
A partir desses elementos empíricos, Newton realiza
duas generalizações de sentido contrário. Uma da parte para
o todo. A outra do todo para a parte.
O primeiro tipo de generalização sucede no caso do
espaço e do tempo. Cada um de nós ocupa, com o nosso corpo,
uma
parte
do
espaço.
Mas
o
espaço
da
sensação,
em
particular o que nos é dado pela visão e pela audição, é
mais amplo que o espaço que é o ocupado pelo nosso corpo. O
espaço do nosso corpo está dentro de outro espaço, o dos
nossos
sentidos
exteriores.
E
este
por
sua
vez,
bem
sabemos, está dentro de um outro, como uma sala dentro de
um edifício. E este ainda é um espaço no interior de um
outro. E assim sucessivamente, num jogo de caixas chinesas,
que só terá fim se pensarmos que, no limite, todos esses
espaços são interiores de um outro que é absoluto, pois
nenhum espaço lhe será exterior. Esse será então o espaço
verdadeiro, objectivo.
Do mesmo modo, segundo Newton, a duração da nossa vida
sabemo-la precedida pela duração de outras, a dos nossos
pais. Durações de vida, estas últimas, cada uma delas, que
251
sabemos, por sua vez, precedidas e antecipadas por outras,
a
dos
nossos
avós
e
a
nossa.
A
duração
medimo-la
por
relógios ou outros registos de repetições de um movimento.
Porém este tempo é função do movimento que escolhemos e
recolhemos
da
experiência,
segundo
Newton,
que
será
contestado por Einstein, que o tempo, o verdadeiro tempo,
decorre
inexorável
e
insensível
a
qualquer
movimento
particular. Ou seja, o tempo que temos acesso empírico é
uma parte de um tempo absoluto, isto é, que não é relativo
a qualquer movimento que não seja o seu próprio.
Portanto, da experiência comum que os corpos estão no
espaço e no tempo, portanto, da existência de espaço e
tempo relativos, Newton generaliza-os chegando à ideia de
um espaço e tempo absolutos que são, no entanto, na sua
natureza iguais ao espaço e tempo relativos (o espaço é
ainda extensão; o tempo é ainda um movimento periódico
constante).
A outra generalização, que é do todo para a parte, é
relativa
aos
corpos.
Cada
corpo,
como
é
extenso,
é
divisível em corpos mais pequenos, em corpúsculos. Porém,
como
são
ainda
corpos,
então,
segundo
Newton,
deverão
possuir as mesmas propriedades do todo de que eram parte.
E, como tal, esses corpúsculos são ainda divisíveis em
outros e assim sucessivamente até ao limite de um átomo,
252
isto é, de um corpúsculo último, de uma partícula pura,
pois é uma parte sem partes. Contudo, aqui Newton cai,
necessariamente, em contradição. Pois, como Descartes havia
percebido,
se
todos
os
corpos
têm
a
propriedade
da
extensão, então não é concebível um corpo indivisível (pelo
menos em pensamento).
Encontramos aqui em Newton, todos os elementos do que,
no capítulo anterior, designamos por pentadoxia. Ou seja,
de
uma
espécie
de
ontologia
quase
espontânea,
sugerida
directamente pela nossa experiência comum do mundo físico.
Assim, Newton não hesita em afirmar que os objectos físicos
são
corpos,
isto
é,
parcelas
unitárias
e
finitas
de
matéria. Os objectos físico são substâncias, pois esses
corpos, essas parcelas de matéria, possuem propriedades e é
através destas que os conhecemos. Nos objectos físicos as
suas partes são homeómeras, razão pela qual Newton infere
que os corpúsculos terão necessariamente a mesma natureza
que um corpo. As propriedades quantitativas dos corpos são
bem determinadas, e por isso o corpo pode ser tratado como
algo que possui uma determinada quantidade de movimento,
uma
determinada
posição.
Por
quantidade
fim,
um
de
objecto
matéria,
físico
é
uma
determinada
conceptualmente
idêntico enquanto possível e enquanto actual.
253
3.3. O Conceito de Objecto Físico em Kant
Nas linhas de abertura dos Princípios Metafísicos da
Ciência da Natureza, Kant afirma que a palavra Natureza
pode ser tomada em dois sentidos: formal e material. Por
Natureza,
em
sentido
formal,
entende-se
o
conjunto
das
determinações necessárias para constituir o conceito de um
ser particular. Isto é, a sua essência. E, neste sentido,
“utiliza-se esta palavra [Natureza] adjectivamente”224, por
exemplo, quando afirmamos querer saber qual a natureza dos
objectos físicos.
Por Natureza em sentido material Kant entende “como a
soma total de todas as coisas, enquanto estas podem ser
objecto dos nossos sentidos”225. Isto é, o conjunto de todos
os fenómenos possíveis. Identifica-se, assim, a Natureza,
num sentido, como o conjunto de todas as coisas pensáveis
e, num outro sentido, como o conjunto de todos os objectos
da experiência. Pese embora esta diferença, em qualquer um
224
Conferir Kant (1781), Kritik der Reinen Vernunft, (trad. port. de
Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, “Crítica da
Razão Pura” [CRP], Lisboa: Gulbenkian (2001)), nota de rodapé, B447
225
“[…] but as the sum total of all things, insofar as they can be
objects of our senses.” Kant (1786), Metaphysische Anfangsgründe der
naturwissenschaft
(tradução
para
inglês
de
Michael
Friedman,
“Metaphysical Foundations of Natural Science” [MFNS]), Cambridge:
Cambridge University Press, 2004, p.3. (tradução minha)
254
dos
casos
é
condição
de
ser
coisa
da
Natureza
a
sua
determinabilidade, por pensamento ou por experiência, pelo
sujeito transcendental, numa característica transformação
de um conceito mais comum de Natureza enquanto o conjunto
das coisas em si mesmo consideradas, para um conceito de
Natureza
enquanto
o
conjunto
das
coisas
pelo
sujeito
transcendental consideradas.
Por sua vez, dado que os nossos sentidos se dividem,
segundo
Kant,
em
sentido
interno
e
sentidos
externos,
existem duas espécies de objectos na Natureza: A alma, que
é o objecto do sentido interno; e os corpos, que são os
objectos dos sentidos externos226. Logicamente, o complexo
dos primeiros – os objectos do sentido interno – constitui
a Natureza Pensante, enquanto o complexo dos objectos dos
sentidos externos constitui a Natureza Corpórea227, ou seja,
a Natureza Física. Assim, em Kant, tal como em Descartes,
existe um dualismo claro das coisas da Natureza. Isto é,
uma distinção fundamental e completa das coisas da Natureza
entre aquelas que são elementos da Natureza Corpórea e as
outras que são elementos da Natureza Pensante.
Distinguindo-se
exterior
e
a
a
interior
226
Conferir, [CRP], B400.
227
Idem, B875.
Natureza
–
ao
em
sujeito
duas
partes
–
a
transcendental,
e
255
atendendo a que podem haver tantas ciências da natureza
quantas as coisas especificamente diversas que existem228
então,
para
Kant,
são
possíveis,
em
princípio,
duas
Ciências da Natureza: a Ciência da Natureza Pensante e a
Ciência da Natureza Corpórea. Em Kant, a primeira toma o
nome de Psicologia229 e tem como seu objecto as almas, isto
é,
o
que
possíveis
tem
uma
Ciências
natureza
da
pensante.
Natureza
recebe
A
segunda
a
dessas
designação
de
Física230 e tem como seu objecto os corpos. Portanto, para
Kant, no seu chamado período critico231 a Física é definida
completamente como a Ciência dos corpos. Mas, um vez aqui
chegados, logo se pergunta, em primeiro lugar, o que é a
Ciência, para Kant? E em segundo lugar: o que é um corpo,
para Kant? Ou, por que será equivalente em Kant: o que é um
objecto
físico?
Comecemos
pela
primeira
destas
duas
questões.
228
“[…] there can be as many different natural sciences as there are
specifically different things” [MFNS], P.3. (tradução minha)
229
[CRP], B400.
230
Idem, B875.
231
Faço a ressalva que esta é a definição é validade para o período
critico, pois a questão da transição da Metafísica para a Física, que
é o assunto central dos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza,
é igualmente o objecto do Opus Postumum. E, em particular, a questão
da natureza da Física será um dos aspectos centrais desta última obra,
sendo repetida exaustivamente, numa persistente procura de uma outra
forma de definir Física. Conferir Immanuel, Kant, Opus Postumum
(tradução para inglês de Förster, Eckart e Rosen, Michael “Opus
Postumum”), Cambridge: Cambridge University Press (1993).
256
Nos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”,
Kant define Ciência como um todo do conhecimento ordenado
segundo princípios232. Princípios
diverso
da
conhecimento,
experiência
de
modo
esses que sintetizam o
sensível
a
que
este
numa
todo
unidade
de
de
conhecimento
constitua um sistema233 e não uma simples colecção de factos
234
ordenados
, ou um mero agregado de conhecimentos.
Porém, se estes princípios forem meramente empíricos,
isto
é,
se
os
princípios
que
sintetizam
o
diverso
da
experiência sensível derivarem, igualmente, da experiência,
por exemplo, por indução, então estes “não carregam consigo
nenhuma
consciência
da
sua
necessidade
(não
são
235
apodicticamente certas)”
, pois será impossível demonstrar
a sua validade. Isto é, será impossível demonstrar que
esses princípios seriam inferidos a partir de qualquer de
experiência possível. Por consequência, se uma Ciência for
fundada em princípios meramente empíricos, então as leis da
Natureza que lhe subjazem são apenas leis de experiência e
esse todo do conhecimento será um conhecimento fundado em
leis arbitrárias e indemonstráveis. Será um conhecimento
232
Conferir [MFNS],
233
[CRP], B860.
p. 4.
234
O que para Kant constituiria uma doutrina histórica da Natureza.
Conferir [MFNS], p.4.
235
“[…] they carry with them no consciousness of their necessity (they
are not apodictally certain) [MFNS], ibidem. (tradução minha)
257
contingente,
incerto
e
passível
de
ser
revisto.
Um
conhecimento, portanto, que só impropriamente poderá ser
considerado
genuinamente
como
saber.
Só
impropriamente,
para Kant, poderá ser considerada como Ciência da Natureza.
Ciência, propriamente dita, só se pode chamar aquela
236
cuja certeza é apodíctica
. Só pode chamar-se aquela onde
o conhecimento é necessário e universal. Ou seja, só pode
chamar-se aquela onde “as leis fundamentais da Natureza que
lhe subjazem são conhecida a priori e não são simples leis
de experiência”
Crítica
à
237
. Pois, como Kant já havia mostrado na
Razão
Pura
238
,
verdadeira
universalidade
e
rigorosa necessidade só podem ser estabelecidas a priori.
O conhecimento a priori que é totalmente independente
da experiência, recebe, em Kant, o nome de conhecimento
puro. Por conseguinte, “a ciência da natureza deve derivar
a legitimidade desta designação unicamente da sua parte
pura – nomeadamente, aquela que contém os princípios a
priori de todas as restantes explicações da natureza - e só
236
Conferir [MFNS], ibidem.
237
“[…] the fundamental natural laws therein are cognized a priori,
and are not merely laws of experience” [MFNS], Ibid. (tradução minha)
238
Conferir [CRP], p.38.
258
em virtude desta parte pura uma ciência natural pode ser
239
ciência em sentido próprio”
Portanto,
para
.
Kant,
o
traço
fundamental
de
uma
ciência da natureza é esta legitimar-se, não em leis de
experiência, mas em princípios puros a priori. E, por esta
razão,
então
“toda
a
ciência
natural
propriamente
dita
precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar a
certeza apodíctica que a razão nela busca”
240
.
Por sua vez, essa parte pura, a parte que nada toma da
experiência
mas
que
é
condição
de
possibilidade
do
conhecimento empírico, é a Metafísica. Pois é na Metafísica
que o objecto se considera apenas segundo as disposições do
pensar241,
sem
pedir
nada
da
experiência,
portanto,
puramente a priori. Por esse motivo, é apenas na Metafísica
que o objecto de conhecimento, não estando refém de um
qualquer conjunto de experiências particulares, pode ser
pensado e determinado para qualquer experiência possível.
Se toda a genuína Ciência da Natureza se funda e legitima
na parte que contém puros princípios a priori, e se estes
239
“[…] natural science must derivate the legitimacy of this title
only from its pure part – namely, that which contains the a priori
principles of all other natural explications – and why only in virtue
of this pure part is natural science to be proper science” [MFNS], p.4
(tradução minha)
240
“All proper natural science therefore requires a pure part, on
which the apodictic certainty that reason seeks therein can be based.”
idem, p.5. (tradução minha)
241
Conferir Idem, pp. 9-10.
259
apenas podem ser encontrados na Metafísica, isto significa
então que toda a ciência natural genuína pressupõe uma
metafísica da natureza
duas
partes:
242
. Metafísica essa que se divide em
transcendental
transcendental
trata
“das
e
particular.
leis
que
tornam
A
parte
possível
o
conceito de uma natureza em geral, mesmo sem relação a
qualquer objecto determinado da experiência e, como tal,
indeterminado a
mundo
sensível”
respeito da natureza disto ou daquilo do
243
.
Portanto,
sem
qualquer
relação
aos
objecto dos sentidos, mas somente ao modo como poderemos
ter
destes244.
conhecimento
Esta
parte
também
toma
a
designação, em Kant, de Ontologia245. Por sua vez, a parte
particular da metafísica da natureza versa somente sobre os
princípios que fundam os conceitos empíricos pertencentes a
uma
das
Naturezas
particulares:
à
Natureza
dos
corpos
(Física), ou à Natureza da alma (Psicologia)246.
Em
ciência
resumo,
da
constituição
242
para
natureza,
de
uma
Kant,
em
existem
geral:
unidade
de
em
três
condições
primeiro
conhecimento
de
lugar,
obtido
a
por
Conferir idem, p. 5.
243
“[…] treat the laws that make possible the concept of a nature in
general, even without relation to any determinate object of experience
, and thus undetermined whit respect to the nature of this or that
thing in the sensible world” idem, ibidem. (tradução minha)
244
Conferir [CRP], B25.
245
Conferir idem, B873.
246
Conferir [MFNS], p.5.
260
sistematização (ou ordenação) de factos; em segundo lugar,
essa
sistematização
sintáctica
tem
de
ser
regulada
por
princípios racionais; em terceiro lugar, esses princípios
têm que ser conhecidos a priori com certeza apodíctica.
Por
conseguinte,
para
Kant,
só
pode
tomar
legitimamente a designação de Física, aquela em que os seus
conceitos
encontrem
o
seu
fundamento
em
princípios
metafísicos da Ciência da Natureza Corpórea. E, estes, por
seu turno, por serem princípios que tornam possível uma
ciência
da
natureza
particular,
devem
encontrar
o
seu
fundamento nos princípios que tornam possível uma ciência
da
natureza
em
geral,
ou
seja,
em
princípios
transcendentais.
Por seu turno, dado que uma teoria racional acerca da
Natureza
dos
genuinamente
objectos
como
físicos
Física
se,
só
e
só
pode
ser
considerada
se,
for
fundada
em
princípios puros a priori e, como, a Física tem como seus
os objectos dos sentidos exteriores, isto é, segundo Kant,
os corpos então, importa saber qual a natureza dos corpos.
Dado
que
se
trata
de
algo
que
é
objecto
dos
sentidos
exteriores, será necessariamente algo intuído no espaço e,
por conseguinte, de natureza extensa247. Pois ser extenso
decorre
247
da
própria
condição
formal
de
ser
objecto
dos
Conferir idem, p. 3.
261
sentidos exteriores, isto é, da forma da intuição do que é
exterior
ao
sujeito
de
conhecimento.
Assim,
conhecer
o
conceito de corpo apenas enquanto possibilidade, isto é,
conhecer a priori, exige que se dê a priori a intuição
correspondente a esse conceito “isto é, que o conceito seja
construído.
Ora
o
conhecimento
racional
mediante
a
construção de conceitos é matemático”248. Portanto, conclui
Kant, que uma teoria da natureza dos corpos, uma Física, só
é possível por meio da Matemática249.
Porém, a possibilidade de coisas naturais determinadas
não pode conhecer-se somente a partir de conceitos, pois “a
partir destes pode, certamente, conhecer-se a possibilidade
do pensamento, mas não do objecto enquanto coisa natural, a
qual pode ser dada (como existente) fora do pensamento”250.
Este existente
fora do pensamento é o que no
fenómeno
corresponde à sensação, isto é, o que Kant dá o nome de
matéria251. Assim, os corpos são matéria extensa.
Por conseguinte, os princípios metafísicos que fundam
uma
Física
genuína
terão
necessariamente
de
ser
os
248
“[…] that is, that the concept be constructed. Now rational
cognition through construction of concepts is mathematical. Idem, p.6.
(tradução minha)
249
Conferir idem, ibidem.
250
“[…] for from these the possibility of thought can be certainly be
cognized, but the possibility of the object as a natural thing that
can be given outside the thought (as existing)” Idem, ibidem.
(tradução minha)
251
Conferir [CRP], B34.
262
princípios
metafísicos
que
estabelecem
as
condições
de
possibilidade da aplicação da matemática ao conceito de
matéria. Isto é, serão os “princípios de construção dos
conceitos
que
pertencem
à
possibilidade
da
matéria
em
252
geral”
.
Importa então saber onde encontrar o fundamento desses
princípios formais. Ora, como toda a “verdadeira Metafísica
é tirada da própria essência da faculdade de pensar e de
nenhum modo ela é inventada na medida que não é tomada de
253
empréstimo da experiência”
, então será somente através
dos conceitos e dos princípios mais puros do pensamento que
será
possível
determinações
a
encontrar
objectivamente
priori
qualquer
de
todas
conceito
e,
as
em
particular, do conceito de matéria. Por sua vez, dado que
não há – em Kant - conceitos mais puros do entendimento do
que as próprias categorias, então terá de ser a partir
dessas mesmas categorias (grandeza, qualidade, relação e
modalidade) que se poderá obter todas as determinações do
conceito de uma matéria em geral.
252
“[…] principles for the construction of concepts that belong to the
possibility of matter in general.”, [MFNS], p. 8. (tradução minha)
253
“All true metaphysics is drawn from the essence of the faculty of
thinking itself, and is in no way fictitiously invented on account of
not being borrowed from experience”, idem, ibidem. (tradução minha)
263
Está então assim traçado o programa de Kant, nas suas
linhas mestras, para os “Princípios Metafísicos da Ciência
da Natureza”. Como afirma Michael Friedman:
“Por
um
lado,
os
Principia
de
Newton
representam
a
realização dos princípios transcendentais dispostos na primeira
Crítica. Como tal, fornece ao sistema kantiano um “exemplo in
concreto”, que confere “sentido e significado” aos conceitos e
princípios abstractos da filosofia transcendental. […] Por outro
lado,
Kant
vê
a
ciência
newtoniana
como
necessitada
de
uma
análise critica ou metafísica, uma análise que revele as origens
e o sentido dos seus conceitos e princípios.”254
A
Física
inaugurada
pelos
Philosophie
Naturalis
Principia Mathematica, tal como Newton a constituiu, só
impropriamente pode tomar a designação de Física, pois, tal
como se mostrou anteriormente, é um sistema fundado em
princípios, leis e conceitos extraídos da experiência. O
conceito
de
corpo
como
uma
substância
material
com
propriedade de ser extenso, duro, impenetrável, que pode
ter movimento, é retirado da experiência comum do mundo. E,
por sua vez, os conceitos de espaço e tempo verdadeiros,
absolutos
e
matemáticos
surgem
como
uma
generalização
254
Friedman, Michael (1992), Kant and the Exact Sciences, Cambridge:
Harvard university press, pp. 136-137.
264
racional
da
experiência
comum
de
espaço
e
de
tempo.
Portanto, a Física de Newton apresentada nos Principia é
fundada simplesmente em elementos retirados a posteriori da
experiência. Como tal não tem em si o carácter necessário
dos seus princípios e leis. Logo, não pode ser considerada
como saber efectivo sobre a Natureza.
Deste modo, Kant propõe-se, através de uma análise
completa do conceito de matéria estabelecer os princípios
metafísicos
da
Física
consequência
os
da
em
geral
Mecânica
e
que
newtoniana,
em
serão,
por
particular.
Mostrando, por um lado, sob que condições esta última pode
ser legitimada como genuína ciência da Natureza. Isto é,
como conhecimento efectivo e objectivo sobre a Natureza dos
corpos.
Por
outro
lado,
ao
efectuar
nos
“Princípios
Metafísicos da Ciência Natural” um transitar da Filosofia
Transcendental para uma Ciência
da Natureza
particular,
Kant faz da Física de Newton um lugar de concretização, de
exemplificação, da Filosofia Transcendental.
Assim,
os
“Princípios
Metafísicos
da
Ciência
da
Natureza” tem como propósito o de realizar uma análise
completa ao conceito de matéria, aplicando-lhe, uma a uma,
as categorias. Como tal, é claro que o conceito de matéria
é o conceito central desta obra. Porém, o que é matéria?
265
Na Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a matéria é
o
que
é
extenso,
impenetrável
e
sem
vida255.
Assim
entendida, o mundo físico, o que é constituído por corpos
materiais, poderia ser estático. Pois, da simples extensão,
impenetrabilidade e ausência de vida, ou seja, do simples
conceito de matéria não decorre que esta se movimente.
Porém, Kant afirma que “a ciência natural é uma doutrina
pura ou aplicada do movimento”256. Ou seja, tal como em
Descartes e Newton, em Kant o movimento, embora não seja
propriedade
essencial
dos
corpos,
é
a
matriz
de
uma
qualquer Física. Não haveria Física se o mundo físico fosse
totalmente estático. Portanto, o movimento surge como uma
propriedade
atribuída
aos
corpos
em
função
da
nossa
experiência do mundo físico, como uma propriedade empírica.
Isso mesmo é salientado por Kant quando afirma que:
“[…] visto que a mobilidade de um objecto no espaço não se
pode
conhecer
a
priori
sem
o
ensinamento
da
experiência
e,
precisamente por esta razão, não a pude incluir, na Crítica da
Razão Pura, entre os puros conceitos do entendimento; e que este
conceito, enquanto empírico, só podia encontrar o seu lugar numa
ciência da natureza que, enquanto metafísica aplicada, se ocupa
255
Conferir [CRP], B876.
256
“[…] natural science […] is either a pure or a applied doctrine of
motion” [MFNS], p. 12. (tradução minha)
266
de
um
conceito
fornecido
pela
experiência,
embora
segundo
princípios a priori.”257
Assim, para estabelecer os Fundamentos Metafísicos da
Ciência da Natureza corpórea não basta submeter o conceito
de matéria às categorias. É preciso acrescentar ao conceito
de matéria, como sua determinação adicional e primeira, o
movimento. Portanto, o conceito de matéria que irá submeter
às categorias é o conceito de uma matéria móvel. E assim,
estabelece: uma Foronomia; uma Dinâmica; uma Mecânica e uma
Fenomenologia.
3.3.1. Foronomia
A Foronomia, ou Cinemática, é a teoria da matéria
móvel enquanto quantidade (ou seja, submetido à categoria
da quantidade). Deste modo, importa aqui tratar a matéria
unicamente
enquanto
coisa
que
possui
um
certo
grau
de
movimento. Porém, o que é o movimento? Kant define-o assim:
257
“since the mobility of an object in space cannot be cognized a
priori, and without instruction through experience, I could not, for
precisely this reason, enumerate it under the
pure concepts of the
understand in the Critique of Pure Reason; and that this concept, as
empirical could only find a place in natural science, as applied
metaphysics, which concerns itself with a concept given through
experience, although in accordance whit a priori principles”, idem, p.
17. (tradução minha)
267
“Movimento de uma coisa é a modificação das suas condições
exteriores em relação a um espaço dado”258
Entendida
desta
forma
o
movimento
é
da
ordem
da
relação entre um corpo, que é sujeito de movimento, e um
determinado espaço. Em particular, dado que o espaço é, em
Kant, uma forma da sensibilidade, o movimento de um corpo é
da ordem da relação desse corpo com o espaço da percepção
de um sujeito de conhecimento. No entanto, na medida que
este é igualmente móvel, o seu espaço de percepção móvel
igualmente o é. A este espaço que é móvel, que é o caso do
espaço da nossa percepção do mundo físico, Kant designa por
espaço relativo. E, por consequência, afirma, então, Kant
que
“todo
o
movimento
que
é
objecto
de
experiência
é
meramente relativo”259. Isto é, da experiência directa não
podemos afirmar a objectividade do movimento de um corpo
que julgamos perceber, mas apenas que este se
move em
relação a um outro (ou a nós). Neste sentido, o conceito de
movimento de Kant é, de alguma forma, devedor do conceito
258
“Motion of a thing is the change of its outer relations to a given
space” idem, p. 17. (tradução minha)
259
“[…] all motion that is an object of experience is merely relative”
idem, p.16. (tradução minha)
268
cartesiano de movimento como uma relação de um dado corpo
com o que lhe é vizinho.
Porém, assinala Kant, se o espaço relativo é móvel,
então sê-lo-á relativamente a um outro que lhe é exterior e
alargado. Por sua vez, “este pressupõe um outro e, assim
por diante, até ao infinito”260. Sendo esse espaço último e
infinito, então somente esse não será móvel relativamente a
nenhum outro e, por conseguinte, é o único que permite
julgar objectivamente os movimentos dos corpos, movimentos
que lhe são relativos. Logo, tal como em Newton, é neste
espaço, no espaço absoluto, que “se deve pensar todo o
movimento”261.
No
entanto,
ao
contrário
de
Newton,
este
espaço
absoluto não é um objecto de percepção, ele “nada é, pois,
em si, não é um objecto, mas significa somente todo o
espaço relativo que, para mim sempre posso pensar além do
espaço dado”262.
Portanto, ao recusar que o espaço absoluto seja algo
que seja da mesma natureza que o espaço relativo, Kant
afasta-se
de
Newton,
onde
o
espaço
absoluto
é
uma
substância do qual só temos acesso a uma parte. Mas se se
260
“[…] this latter presupposes […] yet
infinity” idem, ibidem. (tradução minha)
another;
and
so
on
to
261
“[…] that in which all motion must finally be thought”, idem, p.15.
(tradução minha)
262
“[…] is thus in itself nothing, and no object at all, but rather
signifies only any other relative space, which I can always think
beyond the given space”, idem, p.16 (tradução minha)
269
afasta de Newton relativamente à natureza do espaço, a
verdade é que o conceito de movimento de Kant é próximo do
(ou pelo menos, compatível com o) conceito de movimento de
Newton, em que se entende movimento como a mudança de lugar
de
um
corpo.
Argumenta
Kant
que
para
se
determinar
a
distância da Terra à Lua – exemplo que elege – “escolhe-se
a linha mais curta desde o centro de uma ao centro da
outra, por conseguinte, apenas um ponto destes corpos é que
constitui o seu lugar”263. Isto é, do facto que só podemos
falar precisamente da distância entre dois corpos se os
reduzirmos a pontos localizados no espaço Kant retira a
ilação que o “lugar de todo o corpo é um ponto”264. Ou seja,
só podemos falar com propriedade da distância entre dois
corpos
se
estes
tiverem
uma
posição
espacial
bem
determinada. Neste sentido, conceber movimento como mudança
de lugar (ou seja, posição) corresponde, se esse movimento
for apenas de translação, ao conceito de movimento como a
alteração
exterior.
da
relação
Porém,
determinação
a
do
corpo
concepção
adicional
à
móvel
com
kantiana
concepção
o
que
lhe
é
permite
uma
newtoniana
(e
cartesiana) de movimento: ter a rotação como movimento no
mesmo sentido que o é a translação. Pois, a Terra na sua
263
“[…] chooses the shortest line form the central point of the one to
the central point of the other, so that for each of these bodies there
is only one point constituting its place”, Idem, pp. 17-18. (tradução
minha)
264
“For the place of any body is a point“ idem,
p.17 (tradução minha)
270
rotação é um corpo que altera a sua relação com o que lhe é
exterior, porém não mudar de lugar e, no entanto, move-se.
Neste sentido, a concepção de movimento de Kant é mais rica
que a de Newton, sendo que, de certa forma, inclui esta
última como um seu caso particular (quando se considera
apenas o movimento como translação).
3.3.2. Dinâmica
A dinâmica é a teoria da matéria móvel submetido à
categoria da qualidade. Nesta, Kant defende que uma matéria
movível é algo que preenche um espaço.
Contrapõe-se assim,
em Kant, a noção de corpo como algo que “enche” à noção
newtoniana de corpo como coisa que “ocupa” o espaço. Noção
que seria inaceitável para Kant, pois dizer que um corpo
“ocupa”
o
espaço
faz
remeter,
implicitamente,
para
um
espaço que é prévio, no mundo físico, aos corpos. Concepção
essa que é rejeitada por Kant ao ter do espaço, não como
algo do mundo, mas como forma da intuição. Assim, em Kant,
o espaço é prévio aos corpos, não no mundo, mas no sujeito
que o experiencia.
Por “encher” um espaço Kant entende “resistir a todo
móvel que se esforça, graças ao seu movimento, por penetrar
271
num certo espaço”.265 Dito de outro modo, um corpo material
“enche” um espaço no sentido que resiste a ser sobreposto
por um outro. Neste sentido, Kant é levado a especular
sobre a existência de algo na constituição da matéria que a
faz reagir a uma acção exterior, a essa acção de penetração
ou sobreposição. Pois, se “encher” tem o sentido de uma
resistência da matéria à ser sobreposta por outra, isso
deve-se, segundo Kant não há simples existência passiva da
matéria, que seria a atribuição newtoniana da propriedade
de
impenetrabilidade
à
matéria,
mas
esta
ser
algo
que
estabelece uma reacção a acção que lhe é imposta. Ou seja,
a
matéria,
submetida
à
sua
determinação
qualitativa
de
causa-efeito, leva Kant a concluir que esta – a matéria “enche” em virtude de ser constituída do resultado de duas
forças motrizes266.
Em primeiro lugar, por uma força repulsiva, que
é
exercida sobre o que é exterior ao corpo, que apenas se
encontra
na
superfície
de
contacto
e,
como
tal,
é
a
responsável, segundo Kant pela solidez, impenetrabilidade e
ocupação do espaço (e, por consequência, igualmente pela
figura do corpo).
265
“[To fill a space is] to resist every movable that strives through
its motion to penetrate into a certain space.”, idem, p. 33 (tradução
minha)
266
Conferir idem,
p. 34.
272
Porém, se apenas existisse essa força repulsiva, então
as partes constituintes de um corpo material repelar-se-iam
mutuamente
e
estes
dissipar-se-iam.
Assim,
em
segundo
lugar, do mesmo modo que existe uma força repulsiva, terá
que existir uma força atractiva que mantém a coesão: a
gravidade.
No entanto, se a matéria é uma força contrária a uma
invasão
do
que
lhe
é
exterior,
nem
todos
os
corpos
manifestam a mesma a força repulsiva. Nos fluidos é menos
presente
que
nos
sólidos,
em
virtude
das
suas
partes
apresentarem forças distintas. Ou seja, desta concepção de
matéria
como
sobreposição e
algo
que
uma força
possui
uma
força
repulsiva
à
atractiva que permite a sua
coesão, poder-se-ia afirmar que a matéria é constituída por
partes elementares, por pontos onde emanariam as forças.
Haveria aqui lugar para uma espécie de atomismo. Porém,
Kant não é um atomista.
Segundo Kant, “o conceito de uma substância significa
o último sujeito da existência, isto é, o que não pertence,
por seu turno, à existência de uma outra coisa meramente
como um predicado”267. Portanto, substância surge aqui, tal
como
em
Descartes
e
em
Espinosa,
como
o
que
existe
267
“The concept of a substance means the ultimate subject of
existence, that is, that which does not itself belong in turn to the
existence of another merely as a predicate” idem, pp. 39-40. (tradução
minha)
273
independente de outra coisa qualquer, como o que existe sem
ser meramente predicado de outra coisa e, por consequência,
como
o
que
só
pode
ser
concebido
como
sujeito
para
Kant,
de
predicação.
Ora,
dado
que
o
espaço
não
é,
algo
existente mas tão-só uma condição do sujeito transcendental
da percepção do que lhe é exterior,
então o espaço não é
substância e, por consequência, “matéria é o sujeito de
tudo o que, no espaço, se pode incluir na existência das
coisas”268. Ou seja, apenas a matéria é uma substância.
Assim, se a matéria é uma substância que é constituída
por partes, logo, segundo Kant, todas as partes da matéria
são igualmente substâncias. Mais precisamente, substâncias
materiais. Como tal, qualquer divisão da matéria resulta em
partes que são igualmente matéria. Isto significa que, para
Kant, a matéria é divisível até ao infinito e cada uma das
suas partes é, por seu turno, matéria269.
Porém, dado que a espacialidade não é uma propriedade
intrínseca da matéria, mas uma imposição do sujeito, então
Kant ao defender que a matéria é divisível até ao infinito
fá-lo sem ter que aceitar a existência real de substâncias
268
“[…] matter is the subject of everything that may be counted in
space as belonging to the existence of things”, idem, p. 40. (tradução
minha)
269
Conferir Idem, ibidem.
274
corpóreas simples, isto é, sem ter que aceder ao atomismo.
Ou seja, em Kant, o todo não é precedido pelas partes que o
compõem, mas o inverso: o todo é primeiro em relação as
partes. Tal como num corpo geométrico, para Kant, o corpo
físico
pode
ser
dividido
infinitamente,
mas
isso
não
implica que o corpo, como um todo, tenha que ser concebido
como constituído, efectivamente,
por partes
simples (do
mesmo modo que um quadrado é decomponível em triângulos
sucessivamente
mais
pequenos,
mas
tal
não
implica
que
tomemos um quadrado como uma adição de triângulos ou, mais
radicalmente, por pontos).
Contudo,
esta
redução
da
matéria
a
simples
forças
motrizes270, que são responsáveis de encher pela figura e
pela coesão dos corpos, parece ter que ser suportada, como
assinala Eric Watkins271, pela tese de que todo o espaço é
preenchido,
de
algum
modo,
por
forças.
Forças
de
intensidade diferentes pois são diferentes os corpos na sua
coesão. Mas se os corpos são divisíveis até ao infinito,
então o espaço é divisível em forças cada vez menores.
Divisibilidade esta que poderá ser levada até ao limite de
uma matéria tão subtil que quase não é existente: o éter.
270
Conferir Idem, p. 63.
271
Conferir
Watkins, Eric (2009), ”Kant philosophy of science” in
http://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/kant-science,p. 12.
275
Como
Friedman272,
assinala
Kant
durante
o
seu
período
Critico deixa a hipótese do éter em aberto, precisamente
como coisa vaga e implícita, mas será absolutamente central
no Opus Postumum (onde rejeitará a redução da matéria a
forças motrizes individuais e, na extensão, renunciará aos
“Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”).
3.3.3. Mecânica
A Mecânica é a teoria da matéria móvel submetida à
categoria de relação. Como tal, tem como seu objecto a
explicação
de
como
um
corpo,
isto
é,
“uma
matéria
compreendida entre limites determinados”273, enquanto móvel,
comunica o seu movimento a outros corpos. Portanto, é o
lugar que se relaciona mais proximamente com as leis do
movimento de Newton e, portanto, com a constituição de uma
teoria física concreta. Deste
modo, este é o
lugar de
articulação das determinações da matéria móvel já obtidas
com
as
duas
caracterizações
fundamentais
dos
corpos
na
Mecânica newtoniana: quantidade de matéria e quantidade de
movimento.
272
Conferir, Friedman, Michael (1994), Kant and the Exact Sciences,
Cambridge: Harvard University Press, p. 222.
273
“[…] a matter
(tradução minha)
between
determinate
boundaries”,[MFNS],
p.
74
276
Por quantidade de matéria Kant entende “o agregado dos
móveis num espaço determinado”274. O que será, de certa
forma, equivalente à definição de Newton de quantidade de
matéria, na medida em que Kant acrescenta que a uma dada
quantidade de matéria de um corpo chama-se “massa” quando
todas as suas partes se movem em conjunto. No fundo, tanto
em
Kant
como
em
Newton,
quantidade
de
matéria
é
a
quantidade de substância do móvel.
Contudo, dado que a matéria é infinitamente divisível,
a
quantidade
de
matéria
não
pode
ser
estimada
como
o
somatório de um conjunto de partículas materiais, como em
Newton
e,
por
conseguinte,
igualmente
não
poderá
ser
definida através do volume. Portanto, a única forma de
estimar a quantidade de matéria é através da quantidade de
movimento a uma velocidade dada275.
Por quantidade de movimento Kant entende exactamente o
mesmo
que
Newton.
Isto
é,
o
produto
da
quantidade
de
matéria de um corpo pela sua velocidade.276
274
“[The quantity of matter is] the aggregate of the movable in a
determinate space”, idem, p. 76 (tradução minha)
275
Conferir idem, p. 77
276
Conferir idem, ibid.
277
3.3.4. Fenomenologia
Por fim, a fenomenologia é a teoria da matéria móvel
submetida à categoria da modalidade. Mais precisamente, de
como o movimento pode ser objecto de experiência em termos
da
possibilidade,
movimento
actualidade
rectilíneo
é
e
necessidade.
meramente
possível;
Em
o
que
o
movimento
circular é um predicado real da matéria e todo o movimento
de um corpo pelo qual ele exerce uma acção motriz sobre um
outro corpo é necessário um movimento igual e contrário
deste último corpo.
Esta
determinação
modal
do
movimento
dos
corpos
assenta na relação destes com o espaço absoluto. Como foi
salientado
anteriormente,
por
um
lado,
a
partir
de
um
espaço relativo, aquele a que temos acesso empírico, só
podemos
afirmar
que
um
corpo
está
em
repouso
ou
em
movimento relativamente a esse espaço. E, por conseguinte,
o mesmo corpo ser considerado em movimento num dado espaço
relativo e em repouso num outro. Por outro lado, o espaço
absoluto não é um objecto da experiência. O espaço absoluto
em Kant não é em nada dado, nem em parte, como em Newton, à
intuição. Daqui somos então levados a concluir que não
existe nenhum corpo em movimento absoluto ou em repouso
absoluto.
No
entanto,
é
condição
da
determinação
do
278
movimento
(ou
do
repouso)
de
um
corpo
este
ter
como
referente algo considerado imóvel, até para a própria noção
que todos os movimentos são relativos. Assim, segundo Kant,
o espaço absoluto é uma “regra para considerar em si todo o
movimento como puramente relativo”277. Ou seja, o espaço
absoluto é uma ideia da razão. Ideia essa que nos permite
tornar válidas as leis do movimento.
3.3.5. Conclusão
Tal como em Descartes, para Kant é da natureza dos
objectos dos sentidos externos, ou corpos, serem extensos.
Contudo, a extensão (e a figura) é parte da natureza dos
objectos físicos em sentido formal. Como algo é conhecido a
priori, pois é uma determinação da intuição pura do sentido
externo, isto é, do espaço.
Por outro lado, em Kant, tal como o era em Newton, a
materialidade é a natureza dos objectos físicos em sentido
material (permita-se o pleonasmo). Pois a matéria é aquilo
a que no fenómeno corresponde à sensação278.
277
Conferir idem, p. 98.
278
Conferir, [CRP], B35.
279
Poder-se-á
assim
dizer
que
existe
no
conceito
de
objecto físico em Kant uma tentativa de conciliação dos
conceitos de objecto físico de Descartes e de Newton. Que
é,
no
fundo,
uma
tentativa
de
conciliação
entre
o
racionalismo de Descartes e o empirismo de Newton. Uma
tentativa de conciliação que se efectua no conceito de
corpo entendendo-o:
- por um lado, como puro objecto geométrico, como
objecto da razão (isto é, quanto à sua forma); e
-
por
outro
lado,
enquanto
coisa
que
activa
os
sentidos, enquanto objecto empírico (isto é, quanto à sua
materialidade).
Contudo, essa conciliação faz-se, em primeiro lugar,
tendo
o
(contra
espaço
como
Descartes
e
uma
forma
Newton,
subjectiva
onde
o
espaço
da
é
intuição
algo
dos
objectos). Só assim, Kant assegura que o mundo físico pode
ser objecto da matemática, como era propósito de Descartes
e esperança postulada de Newton. Em segundo lugar, essa
conciliação faz-se pela concepção de matéria de Kant (que é
herdada de Leibniz, tal como o espírito conciliador)
esta
é
o
produto
de
forças
antagónicas.
Forças
onde
que
explicam, por um lado, a extensão dos corpos em Descartes.
Por outro, que explicam a impenetrabilidade e dureza dos
corpos em Newton.
280
Mas
existe
ainda
um
terceiro
plano
de
conciliação
entre Newton e Descartes fruto, igualmente, do conceito de
matéria
de
Kant.
Pois
ao
conceber
a
matéria
com
uma
substância que possui forças motrizes, Kant, por um lado,
estabelece a gravidade uma força fundamental dos corpos,
isto é, estabelece como existente um força que actua à
distância. Algo que Descartes rejeita e Newton aceita mas
hesita, isto é, nunca o assume. E, por lado, ao atribuir
aos
corpos
uma
força
fundamental
de
repulsão
(a
que
preenche o espaço), Kant rejeita o atomismo onde assenta o
sistema newtoniano e aceita, como Descartes, que a matéria
é infinitamente divisível.
Portanto, se aqui se afirmou que era intenção de Kant
dar fundamento à Física de Newton, isto não significa que
era intenção de Kant fazer uma estrita defesa dessa Física.
O problema de Kant era o de determinar os princípios
metafísicos
que
permitem
uma
teoria
sobre
a
natureza
corpórea tomar com propriedade a denominação de ciência.
Isto é, conhecimento efectivo dessa natureza. O seu
ponto
de partida, como não poderia deixar de ser, é de conceber a
Natureza física como o conjunto dos fenómenos. Onde, a
matéria, enquanto algo móvel, é o elemento que é dado à
sensibilidade
e,
como
tal,
determinações
do
sujeito
é
o
que
é
transcendental.
objecto
Ou
seja,
das
o
281
propósito de Kant era o de submeter o conceito de matéria
móvel as categorias e delas fazer brotar dedutivamente, os
princípios a que os objectos de experiência possíveis da
Física,
os
corpos
enquanto
matéria
móvel,
estariam
necessariamente submetidos. Em princípios, portanto, que
precederiam e legitimariam, não somente a Física de Newton
mas
uma
princípios
qualquer
Física
metafísicos
de
particular
Kant
neles
seriam
os
fundada.
a
priori
Os
de
qualquer ciência da Natureza.
Contudo, ao ser uma metafísica especifica dos corpos
onde, na sua base residem conceitos empíricos como matéria
e movimento, esta pode-se revelar incorrecta sem, contudo,
atentar necessariamente contra o edifício da Critica da
Razão Pura. Isto é, dado que os conceitos de movimento e de
matéria, em particular, enquanto substância que possui duas
forças
activas
e
opostas,
são
atribuídos
aos
objectos
físicos a partir da experiência que temos deles, então não
pode haver garantia alguma que uma ciência fundada em tais
conceitos traduza um conhecimento efectivo sobre a Natureza
corpórea.
Isso mesmo é reconhecido por Kant quando afirma,
na seguinte passagem, o carácter não universal de alguns
dos princípios metafísicos da Física:
282
“[...]
também
encontram-se
muitas
coisas
aí
que
[na
não
ciência
são
geral
da
absolutamente
natureza]
puras
e
independentes das fontes da experiência: como o conceito de
movimento,
de
impenetrabilidade
(onde
se
funda
o
conceito
empírico de matéria), de inércia, etc., que a impedem de a
chamar uma ciência inteiramente pura da Natureza [...] Mas,
entre os princípios dessa Física geral, há alguns que possuem
realmente a universalidade que exigimos, como a proposição: que
a substância permanece e persiste, que tudo o que acontece tem
uma
causa
segundo
verdadeiramente
leis
leis
constantes,
universais
da
etc.
Natureza,
Estas
que
são
existem
absolutamente a priori”279.
Deste
modo,
existem
dois
tipos
de
princípios
metafísicos da Natureza: Aqueles que, no entender de Kant,
são
absolutamente
universais,
apriorísticos
e,
por
conseguinte, seguros pois têm a sua sede nos conceitos
puros do entendimento; e os outros que são – digamos assim
– semi-puros e, como tal, passíveis de serem revistos. Este
é caso de todos os que se referem aos conceitos empíricos
em geral. E, em particular, será o caso dos que se referem
aos conceitos de matéria e de movimento.
279
Kant (1783), Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik (trad.
port. de Artur Mourão,
“Prolegómenos a toda a Metafísica Futura”),
Lisboa: Edições 70 (1982), § 15, p. 67
283
Por conseguinte, a Física de Newton, fundada, já não
na débil experiência, mas na sólida estrutura do sujeito
transcendental, tal como era o propósito dos “Princípios
Metafísicos da Ciência da Natureza”, pode ser considerada
um conhecimento possível, mas não necessário. Aliás, a meu
ver, uma vez concebida a matéria como substância que possui
forças e aberta a possibilidade do éter (que, como já se
disse, irá ser central no Opus Postumum) podemos ver Kant
mais próximo do que viria a ser, cerca de meio século mais
tarde, o Electromagnetismo do que a Mecânica de Newton.
Pois, é precisamente no Electromagnetismo que a matéria é
concebida
como
atractiva
e
resultante
outra
de
repulsiva,
duas
forças
presentes
opostas,
numa
uma
substância
infinitamente subtil e que preenche todo o espaço: o campo
electromagnético.
2.4. Conclusão geral do capítulo.
A
análise
do
conceito
de
objecto
físico
que
é
realizada neste capítulo é, a meu ver, atravessada por dois
aspectos:
284
1) Por objecto físico concebe-se sempre como o que tem
a natureza corpórea, ou seja, que é um corpo.
2) Embora a Física se constitua sempre como uma teoria
do movimento, de qualquer um dos conceitos de corpo
não
decorre,
necessariamente,
que
estes
se
movimentem.
Embora distintos, creio que estes dois aspectos estão
relacionados. Relação que, a meu ver, se pode expressar nos
seguintes termos: pensar os corpos é pensar a partir do
fixo, do localizado e, portanto, é pensar numa entidade em
que o movimento é apenas possível; pensar as ondas é pensar
em algo que necessariamente se move.
A experiência que temos do mundo físico é, em primeira
instância, o da existência de coisas que nos são exterior e
que se nos opõem activando os nossos sentidos. Atribuímos,
apropriadamente, a designação de “objecto físico” a essas
coisas,
suportados
na
própria
etimologia
da
palavra
“objecto”. A partir desta reacção dos nossos sentidos à
presença de algo que nos é exterior, temos a percepção de
cadeiras,
mesas,
pedras,
bolas
de
bilhar,
cordas
de
violino, das nossas próprias mãos, etc. E chamamos-lhes
corpos a esses objectos físicos.
285
Podemos, então, a meu ver, dizer que um corpo é um
todo
espacialmente
finito.
Na
forma
desenhada
da
sua
finitude espacial encontra a sua figura. Mas um todo de
quê? Descartes dirá que é apenas um todo de extensão, como
um quadrado ou uma outra figura geométrica qualquer. Se um
corpo
é
um
todo
espacialmente
finito,
será
impossível
discordar com Descartes que os corpos têm extensão, são um
todo extenso com figura. Mas dizemos vulgarmente que esse
todo não é somente extensão, mas é um todo de massa. Um
corpo é uma massa com uma determinada figura280, é isto
mesmo que afirma Kant (e Newton, certamente concordaria).
Por sua vez, dizemos que um corpo se movimenta quando,
por exemplo, percepcionamos, o que julgamos ser o mesmo
corpo, percorrendo uma sucessão de locais. O corpo é então
aqui entendido como um todo extenso que se move. Mas tal
não acrescenta nada ao conceito de corpo, pois da concepção
de um todo (de matéria) finito, nada obsta a que esse todo
se movimente. Os corpos, quer os concebamos como simples
extensão, matéria ou resultado de duas forças, concebemolos sempre a partir da sua ausência de movimento. Como se o
movimento
fosse,
para
os
objectos
físicos,
apenas
uma
propriedade acidental.
280
Conferir [MFNS], p. 76.
286
Por outro lado, se o corpo é um todo extenso, então é
composto
movimento.
por
Ou
partes
seja,
e
então
pode
estas
existir
poderão
estar
movimento
num
em
todo
extenso. A este designamos por onda. Portanto, quanto ao
movimento,
podemos
distinguir
corpo
e
onda
do
seguinte
modo: Corpo é um todo móvel; onda é um movimento num todo.
Deste modo, conceber os objectos físicos como ondas
passa necessariamente por ter o movimento como propriedade
fundamental. Uma onda do mar não é concebível como algo que
está em repouso, apenas poderá ser como algo que se mantém
estável. Pois se existem ondas estacionárias, estas são o
resultado
da
sobreposição
persistente
de
duas
ou
mais
ondas, como um processo cujo resultado se mantém idêntico
no tempo, mas que é um processo, que não é algo que está em
repouso. Não existem ondas em repouso. E, como tal, não é
possível
conceber
os
objectos
físicos
como
ondas
sem
considerar que esses objectos têm movimento.
Parece existir aqui, no entanto, uma certa precedência
dos corpos em relação às ondas. Pois, ao dizer-se que uma
onda é um movimento num todo, então esse todo precede, como
condição, a onda. Uma onda do mar é um movimento no mar.
Uma onda sonora é um movimento, por exemplo, no ar ou num
metal. Por conseguinte, se esse todo extenso é um corpo,
então, de certo modo, podemos dizer que, enquanto um corpo
287
pode
ser
concebido
sem
as
ondas,
o
inverso
não
será
totalmente verdade. A não ser, claro está, quando o extenso
que é suporte da onda, for infinitamente extenso, portanto
sem figura. É caso, por exemplo, da onda electromagnética,
que é movimento num “campo” de extensão infinita. Porém,
nesse caso, o campo electromagnético não é concebível nem
como corpo, nem como onda. Na verdade, parece que sobre
qualquer plenum infinito, como é o campo electromagnético,
tomando-o como objecto físico se poderia colocar, de certa
forma, a mesma questão sobre a sua natureza que se coloca
relativamente aos objectos quânticos.
Por outro lado, se a nossa experiência comum do mundo
físico é feita de percepções discretas, como se fossem
flashes, imagens isoladas ou fotografias, então os objectos
físicos são percepcionados, antes do mais, como entidades
sem movimento. O movimento será, então, uma operação de
síntese de várias percepções individuais. Neste sentido, os
corpos individuais, enquanto um todo extenso, como entidade
que pode ser concebida sem o movimento, são o nosso objecto
de experiência privilegiado281.
A
reforçar
assinalam,
esta
entre
tese
evoca-se
outros,
De
aqui
Broglie
que,
e
tal
como
Brigitte
281
Este ponto, por não ser totalmente claro, careceria de uma análise
mais detalhada. Em particular, a tese que o objecto da nossa percepção
externa é o corpo. No entanto, isto significaria mergulhar num
problema imenso que é o problema da percepção. O que forçaria a um
desvio significativo no âmbito deste trabalho.
288
Falkenburg282, todas medições são, antes do mais, medições
da posição (ou seja, da quantidade de localização, como se
disse no capítulo anterior). O que significa que todas as
medições se referem aos corpos. Todas as medições são, em
última
análise,
naturalmente
balança
relativas
mede
comparação
repostas
a
de
massa
duas
à
pergunta
a
um
determinado
de
um
corpo,
posições.
E
o
“onde
está?”,
corpo.
Se
mede-o
mesmo
a
uma
partir
sucede
da
para
a
medição da velocidade. Ou quando se mede o momentum ou a
energia ou mesmo a frequência ou o comprimento de uma onda.
A única propriedade que é directamente medida é a posição.
Todas as outras são-no apenas de forma indirecta. Poder-seá,
então,
afirmar,
caracterizada
entanto,
surpreendentemente,
apenas
dirigida
por
aos
uma
questão.
objectos
que
a
Questão
físicos,
que
Física
é
esta,
no
se
vai
desdobrando nos seus tempos verbais. A saber: Onde está?
Onde estava? Onde estará?
Portanto, os corpos individuais são o nosso objecto de
experiência
privilegiado.
Não
admirará
pois
que
em
Descartes, Newton e Kant, “objecto físico” e “corpo” sejam
quase sinónimos. Ou melhor, a partir da experiência dos
corpos,
cada
um
deles
concebe
os
objectos
físicos.
Descartes por eliminação de tudo aquilo que não faz parte
282
Conferir Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim:
Springer, p. 93.
289
necessariamente dos corpos. Newton tomando por seguro que a
experiência ensina como os objectos físicos são de facto.
Kant tomando por seguro que a experiência ensina como os
objectos físicos são enquanto fenómeno.
Porém, a lição da descoberta do domínio quântico era a
seguinte:
os
objectos
quânticos
movem-se
como
ondas,
interagem como corpos. Quando interpelados por um acto de
medida
os
objectos
quânticos
aparecem
sempre
como
um
corpúsculo. Porém, vagueiam entre duas medições como se
fossem ondas. O objecto quântico tem sempre uma dupla face.
Quanto melhor conhecemos a sua posição, pior conhecemos o
seu momento. Por muito que o reconheçamos como corpúsculo,
nunca o deixamos de reconhecer como onda. E vice-versa. O
objecto quântico resiste e revolta-se às nossas enraizadas
categorias para os objectos físicos. Ele não é onda, nem é
corpúsculo.
Deste modo, sendo que os objectos quânticos não são
corpos,
mas
são
objectos
físicos
então,
nenhum
dos
conceitos de objecto físico, de Descartes, Newton ou Kant
suporta
o
embate
novamente,
à
quânticos.
Mas
com
questão
agora
o
domínio
inicial
com
dois
da
quântico.
natureza
elementos
dos
Voltamos,
objectos
adicionais.
Em
primeiro lugar, dirigimos a questão aos objectos físicos em
geral e não apenas aos quânticos. Em segundo lugar, todas
290
as
medições
podemos
medição
em
pensar
Física
são
que
objecto
o
apresentará,
medições
físico
de
posição.
revelado
necessariamente,
uma
Assim,
por
uma
natureza
corpórea, mesmo que essa não seja a sua natureza. Isto é,
podemos pensar que, na sua essência, um acto de medição, ou
um
acto
de
percepção,
é
um
acto
de
fragmentação
e
de
metamorfose da realidade física. Ou seja, que os objectos
físicos devem ser concebidos, por um lado, como entidades
em que o movimento é parte da sua essência, é um seu
princípio interno e não um acidente. E, por outro lado,
como entidades que, num acto de medida ou de percepção, se
apresentam incompletos, parciais, perspectivados.
291
292
4.
Elementos
para
uma
concepção
dinamista
e
relacional de objecto físico.
No parágrafo oitavo dos “Princípios da Natureza e da
Graça”, Leibniz afirma:
“[…]a matéria é em si mesma indiferente ao movimento e ao
repouso,
e
encontrar
perante
a
razão
um
do
tal
ou
outro
movimento,
e
movimento
menos
ainda
não
podemos
de
um
tal
movimento determinado. E ainda que o movimento presente, que
está
na
matéria,
venha
do
precedente,
e
este
de
um
outro
precedente, continuamos a não avançar, ainda que avancemos tanto
quanto
quisermos:
porque
permanece
de
pé
sempre
a
mesma
pergunta.”283
Os corpos movem-se. É isso que a nossa experiência do
mundo físico nos indica. Não haveria experiência do mundo
físico se não houvesse movimento, não só porque os nossos
283
“[…] la materia es en si misma indiferente al movimiento y al
reposo, y ante tal o cual movimiento no podemos encontrar la razón del
movimiento y menos aún de tal movimiento determinado. Y aunque el
movimiento presente, que está en la materia, proviene del precedente,
y éste incluso de otro precedente, no hemos avanzado más aunque
vayamos tan lejos como queramos: pues siempre queda en pie la misma
pregunta. Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce
fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados
en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito,
p.685. (2003)) parágrafo 8 (tradução minha).
293
mecanismos sensoriais não poderiam existir ou, pelo menos,
funcionar,
mas
igualmente
apareceria
indiferenciado,
porque
o
homogéneo,
mundo
morto.
físico
Os
nos
corpos
movem-se e a física constitui-se como teoria explicativa do
movimento dos objectos físicos. Porém, como se mostrou no
capítulo anterior, conceber os corpos como extensão ou como
matéria é conceber um objecto físico onde a razão do seu
movimento
não
está
inscrita.
Como
afirma
Leibniz
na
passagem anterior, da matéria “não poderíamos achar nela a
razão do seu movimento”. E mesmo que seja construída uma
física tão poderosa como a newtoniana, que nos explica como
os
movimentos
se
sucedem,
falha
a
razão
porque
existe
movimento no mundo físico. Assim, será claro em Leibniz que
a razão do movimento não pode provir da nossa experiência
do mundo físico, como o defenderam Descartes, Newton e
Kant. Pelo contrário, a razão terá que ser encontrada na
metafísica e depois deduzida para os corpos. Como afirmou
Deleuze, “Em lugar da indução física cartesiana, Leibniz
substitui-a por uma dedução moral do corpo”284. Moral que
advém do imperativo “Eu tenho que ter um corpo”285. Deste
modo, como é imperativo em Leibniz, tem que existir uma
razão para os corpos se moverem, para que as coisas sejam
284
Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque
(tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the
baroque”, Londres: Continuum (2006), p.97.
285
Idem, ibidem.
294
assim
e
não
de
outro
modo
qualquer.
Razão
que
não
se
encontra nos corpos, mas nas mónadas.
4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos.
A monadologia, trabalho da chamada fase de maturidade
de Leibniz (ou, como coloca Ezequiel de Olaso, “de maior
maturidade”286), tem como entidade ontológica fundamental a
mónada. Logo no primeiro parágrafo, Leibniz define-a como
uma substância simples. Mas o que entende aqui, Leibniz,
por substância e por simples? Por simples, esclarece o
próprio, significa o que é “sem partes”287. Por conseguinte,
mónada será a substância que não é composta por nada mais,
a substância que não tem algo no seu interior, a que não é
divisível.
Por sua vez, havendo outras coisas no mundo que não as
mónadas, e sendo estas as substâncias simples, então, como
nos
diz
Leibniz,
essas
outras
coisas
são
compostos
de
286
Conferir Olaso, Ezequiel de (1980), “Prólogo” in Escritos
Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.17.
287
Conferir Leibniz, G.W. (1714) Principes de la Philosophie ou
Monadologie, parágrafo 1, (edição Robinet, 1954, p.69).[MonadologiaEd.Robinet]
295
mónadas. Ou mais precisamente, são agregados de mónadas288.
Porém, daqui resultam dois problemas.
Em primeiro lugar, se os objectos físicos de que temos
experiência empírica directa – os corpos – apresentam-senos como extensos, como podem eles resultar da composição
de
mónadas,
que
são
entidades,
de
sua
natureza,
sem
extensão?
Por
outro
lado,
por
que
razão
Leibniz
afirma
na
monadologia que as mónadas são substâncias simples e, no
entanto,
não
afirma
que
os
agregados
de
mónadas
são
substâncias compostas (tal como o faz nos “Princípios da
Natureza
e
da
Graça”289)?
Ou
seja,
por
que
razão,
aparentemente, as mónadas são substâncias e no entanto os
corpos, por exemplo, já não o são? O que entende Leibniz
por substância?
No
célebre
Metafísica”,
parágrafo
Leibniz
começa
VIII
por
dos
“Discursos
considerar
o
de
conceito
aristotélico de substância:
288
289
Conferir idem, parágrafo 2.
Conferir Idem, parágrafo 1
296
“[…] quando se atribuem múltiplos predicados a um mesmo
sujeito e esse sujeito não é atribuído a nenhum outro, ele é
chamado de substância individual”290
Contudo, Leibniz, no comentário que logo se segue, vê
a referida concepção de substância como insuficiente por
esta ser, no seu entender, meramente nominalista. Por sua
vez, Leibniz considera que:
“[…] a natureza de uma substância individual ou de um ser
completo é ter uma noção tão acabada que seja suficiente para
compreender
e
deduzir
a
partir
dela
todos
os
predicados
do
sujeito a qual tal noção é atribuída.”291
Ou seja, Leibniz entende por substância individual o
mesmo que entende por um ser completo. O que significa que,
no seu entender, uma substância, ou um ser completo, é o
que contem em si, virtualmente, todas as predicações da
qual é sujeito. Isto é, não só de todas predicações de que
é sujeito num dado estado, mas de todas as predicações de
290
Leibniz, G. W. (1686), Discours de métaphysique (tradução para
Português de Adelino Cardoso “Discurso de Metafísica”, Lisboa:
Colibri, p. 44 (1995)), parágrafo VIII.
291
Idem, ibidem.
297
que foi, é e será sujeito – em suma, de todo o decorrer dos
seus estados particulares.
Assim,
em
substância,
tal
primeiro
como
lugar,
Aristóteles,
Leibniz
como
uma
entende
a
substância
individual que é sujeito de predicação.
Em segundo lugar, Leibniz entende a substância não
como uma matéria inerte, como
algo onde o movimento é
apenas um atributo possível ou
como o que subsiste na
mudança. Pelo contrário, em Leibniz, uma substância é um
sujeito de predicação de uma série de estados. Estados que
têm de se suceder sem interrupção, pois uma interrupção na
decorrência de estados seria uma ausência de predicação e,
como tal, não poderia ser substância (seria um não-ser, um
ser sem predicado algum). A substância, como Leibniz afirma
logo na abertura dos “Princípios da natureza e da graça”, é
um “ser capaz de acção”292. Porém, esta capacidade não é uma
mera potência para a acção, mas uma força efectiva. Isto é,
em Leibniz as substâncias individuais são concebidas como
entidades que têm em si um princípio interno de mudança,
princípio este que as força a transitarem permanentemente
entre
estados
diferentes.
A
substância
encontra-se
em
perpétua transição de estados.
292
Conferir, Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la
grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia
Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo
Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1.
298
Assim, entender a mónada como uma substância simples,
é entender que ela não tem constituição interna, que ela
não tem nada no seu interior, nem sequer vazio, pois não é
oca como uma caixa de ressonância, mas que, ao invés,
contém virtualmente todos os predicados do qual foi, é e
será sujeito. As mónadas não são o que subjaz à mudança ou
o que tem ou toma formas extensas, pois esses conceitos
fariam dela algo passivo ou, pelo menos, algo em que a
mudança não é necessária. As mónadas, enquanto seres que
contém, virtualmente, toda a sequência dos seus estados,
que se sucedem por razão de um princípio interno, são a
unidade de uma série interminável de estados. Unidade de um
fluxo espontâneo de estados.
Mas, se a mónada, enquanto substância singular, é, por
sua natureza, uma entidade em
sendo
cada
um
desses
mudança contínua de estados,
estados
fugaz
e
efémero,
em
que
consiste cada um desses estados? Isto é, são estados de
quê? Segundo Leibniz, cada estado passageiro “não é mais do
que a chamada percepção”293. Isto é, “a representação de uma
multiplicidade na unidade”294. A unidade é, claro está, a
percepção individual da mónada, o seu estado actual, a sua
percepção
actual
do
múltiplo.
Mas
que
multiplicidade
é
representada em cada mónada?
293
294
Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 14 (p. 77).
Idem, Ibidem.
299
Segundo o Leibniz dos “Princípios da natureza e da
graça”, as percepções das mónadas são representações do
composto295. E o que é este composto que é representado?
Daquilo que se afirmou anteriormente, os compostos (ou os
agregados)
primeira
mónada,
de
mónadas
aproximação,
aquilo
em
são
o
que
os
múltiplo
consiste
corpos.
que
a
é
sua
Portanto,
numa
representado
percepção,
é
na
o
múltiplo do mundo corpóreo, do universo. Em cada percepção
individual, que é uma unidade, habita, como representação
transitória, o múltiplo do mundo corpóreo.
Por seu turno, numa segunda aproximação, dado que cada
corpo é um composto de mónadas, então, o múltiplo que é
percebido como corpo é, na sua essência, o conjunto de
todas as outras mónadas. Isto é, cada mónada percepciona
todas as outras por intermédio dos corpos. A percepção de
cada mónada é a percepção de todas as outras. Ou seja, tal
como
tão
celebremente
afirma
Leibniz,
“cada
substância
simples [tem] relações que exprimem todas as outras e […],
por
conseguinte,
[é]
um
espelho
vivo
perpétuo
do
universo”296. Cada mónada é, por sua natureza, uma imagem,
um ponto de vista, uma perspectiva singular do universo.
Havendo múltiplas mónadas, existem múltiplas perspectivas
295
Conferir Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la
grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia
Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo
Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1.
296
Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 56 (p. 105).
300
do
universo.
Cada
mónada
é
uma
unidade
singular
do
múltiplo. O universo é a unidade das múltiplas mónadas.
As mónadas não são, no entanto, representações fixas
do
múltiplo.
A
cinematográfica.
anteriormente,
mónada
Isto
as
incessantemente
de
não
é,
e
é
uma
como
substâncias
percepção
em
pintura,
já
foi
simples
mas
é
referido
transitam
percepção,
num
fluxo
permanente, em virtude de um princípio que terá se ser
interno. Este princípio interno que, sob sua acção, leva à
transição de estados perceptivos de cada mónada particular,
Leibniz designa por apetência297.
Temos então as duas qualidades ou “acções internas das
substâncias
simples”298
das
mónadas:
a
percepção
e
a
apetência. São estas duas qualidades que as fazem serem
entes
e
qualidade
as
uma
tornam
discerníveis
mónada
seria
entre
si.
indistinguível
de
Isenta
outra.
de
A
diferença entre mónadas, a sua discernibilidade, radica na
percepção particular, na perspectiva singular que cada uma
tem em si, em cada transição, da multiplicidade do mundo.
Duas mónadas que representam identicamente o mundo, não
seriam duas, mas uma. Portanto, o que as distingue não é
algo que lhes é interior, mas a sua relação representativa
do que lhes é exterior.
297
298
Conferir Idem, parágrafo 15 (p. 77).
Conferir Idem, parágrafo 17 (p. 79).
301
As
acções
internas
das
mónadas,
por
estas
serem
substâncias simples, isto é, sem partes, não resultam de
quaisquer mecanismos internos. Pois sendo sem partes, a
mónada em nada poderá ser influída por algo exterior. As
percepções não são impressões numa superfície à maneira de
fotografias ou de selos, nem as transições de estados de
percepção
resultam
de
reacções,
isto
é,
de
acções
em
resposta a impressões externas efectuadas sobre si. Não
tendo partes, não seria concebível que tivessem um interior
que respondesse a uma acção exterior. Dado que essas acções
internas não resultam de quaisquer mecanismos internos, as
mónadas não podem ser tomadas como entidades físicas, em
particular
como
corpos.
As
mónadas
são
autómatos
incorpóreos299.
Uma
vez
sendo
entidade
sem
partes,
seria
tentador
imaginar as mónadas ao jeito de partículas materiais, de
partículas
corpóreas
puras
(como
aqui
se
designou
no
segundo capítulo), corpúsculos mínimos ou simplesmente como
pontos. Contudo, tal como nos avisa Leibniz300, logicamente,
onde
não
há
partes
não
há
extensão,
nem
figura,
nem
divisibilidade alguma possível. Deste modo, por um lado,
uma
mónada
não
poderia
ser
algo
material,
pois
isso
significaria que era composto de matéria. Seria um pedaço,
299
300
Conferir Idem, parágrafo 18 (p. 81).
Conferir Idem, parágrafo 3 (p. 69).
302
por muito mínimo que fosse, um átomo de matéria. Ora, a
mónada não é composta por nada, não tem interioridade. Por
outro lado, uma mónada não pode ser nem um átomo no sentido
que Demócrito dá a esta palavra, nem pode ser um corpúsculo
à maneira de Descartes, pois dado que estes têm extensão
será sempre possível pensar numa sua divisão, o que seria
contrário à natureza simples das mónadas.
Não obstante, poderá dizer-se, como nos diz Leibniz,
que as mónadas são “os verdadeiros átomos da natureza e,
numa palavra, os elementos das coisas”301. Átomos, não no
sentido de elemento imutável no mundo, mas no sentido de
elemento indivisível das coisas, de entidades primeiras de
tudo, de unidades singulares de uma série de estados que já
estão contidas
mónadas
em si, como virtual. E a realidade das
esgota-se
nesse
fluxo
espontâneo
de
estados.
A
mónada é a unidade atómica do real. Neste sentido, poderse-ia representar a mónada como um ponto. Um ponto, não
como a unidade
última de algo
espacial, ou do
próprio
espaço. Isto é, não entendendo a mónada como o elemento
último, o que resta, de uma decomposição ad infinitum do
espaço,
pois
tal
implicaria
dizer
que
o
espaço
seria
anterior à mónada. Tal seria contraditório com o conceito
de mónada como elemento primeiro, primordial relativamente
a
301
todas
as
outras
coisas.
Porém,
se
o
espaço
for
a
Conferir Idem, ibidem.
303
consequência
do
preenchimento
das
mónadas,
então
seria
possível imaginar as mónadas como pontos a partir dos quais
o espaço é composto. A mónada a ser um ponto, não é um
ponto
material,
nem
um
ponto
matemático:
é
um
ponto
metafísico.
Por outro lado, sendo entidades perceptivas e, como
tal, incorpóreas, as mónadas podem ser consideradas como
espíritos ou almas. Porém, Leibniz reserva esta atribuição,
apenas
“àquelas,
acompanhada
de
cuja
percepção
memória”302.
Em
é
mais
particular,
distinta
aos
e
humanos.
Assim, em cada um de nós habita uma multidão de mónadas. Em
cada pedaço de nós, pois a cada pedaço corpóreo corresponde
a sua mónada. Conjunto que é regido, no entanto, por uma em
particular. Como um maestro dirige a sua orquestra. Mas
mais
que
a
questão
das
hierarquias
entre
mónadas,
o
importante a salientar é que se em nós (no que de nós é
consciência que percepciona) habita ou reside uma mónada,
então
em
Descartes,
Leibniz,
Newton
ao
e
contrário
Kant,
o
do
sujeito
que
está
se
no
sucede
mundo.
em
O
sujeito de percepção é parte do mundo que percebe, pois
tanto o que tem percepções, como o que é percepcionado tem
apenas uma natureza: as mónadas. A ciência em Leibniz não
passa
por
um
sujeito
ausente,
que
vê
o
mundo
da
arquibancada ou do camarote. Um sujeito distante e ausente.
302
Conferir Idem, parágrafo 20 (p. 81).
304
Um sujeito transcendente que vai cartografando o mundo à
medida que o descobre. O sujeito de Leibniz, tal como um
explorador, vê o mundo de uma certa perspectiva. Está corpo
a corpo com ele. Vê para o mundo de uma das múltiplas que
este oferece para ser visto. Assim, se o sujeito tem do
mundo uma certa perspectiva, isso não significa que se caia
numa espécie de relativismo. No entanto, torna a ciência
numa empresa muito mais vasta, pois ao contrario de Newton,
por exemplo, onde se pretende olhar o mundo num plano, num
ponto neutro, como partes de um mapa, a Ciência de Leibniz
passa pelo projecto interminável da aquisição de todas as
perspectivas. Por trabalhar, não ao nível do plano, mas do
pleno. Por procurar a harmonização de várias teorias, cada
uma a ver o mundo segundo um ponto de vista que lhe é
próprio. Assim, o sujeito, como está no mundo, é parte do
mundo, tem-se a si mesmo como objecto mais próximo. Ele é
sujeito do sujeito ou, tal como colocou Whitehead, é um
super-jecto.
Porém, se cada uma das mónadas é apenas um reflexo do
todo, um autómato incorpóreo e, como tal, não se encontra
em interacção com nada, como podem as mónadas representar
esse
todo?
Como
aqui
já
se
disse,
cada
mónada
está
associada a um corpo. Assim:
305
“[cada corpo] expressa todo o universo pela conexão de
toda
a
matéria
no
pleno,
a
alma
representa
também
todo
o
universo ao representar esse corpo a que pertence de maneira
particular”303.
Existe um duplo plano: o dos corpos e o das mónadas.
Os
corpos
expressam
o
universo.
As
almas
representam
perceptivamente o corpo a que estão associadas. E é por que
os corpos expressam o universo, que as almas representam,
indirectamente,
o
universo.
Os
corpos
sem
mónadas
não
existiriam, pois são compostos de mónadas. As mónadas sem
corpos também não existiriam, pois não teriam percepções, o
universo não se exprimiria em nada. Quase que se poderia
dizer, recordando Bohr, que os corpos e as mónadas são
complementares.
Todas as mónadas estão em inter-relação, em interligação, mas não em inter-acção. Isto é, existe um vínculo
invisível, imponderável, implícito entre elas. Como numa
dança
bem
ensaiada,
as
mónadas
estão
perfeitamente
coordenadas sem que, no entanto, exista qualquer tipo de
contacto
ou
transita
de
de
interacção
percepção
em
entre
elas.
percepção
Cada
por
uma
via
de
delas
uma
303
“et comme ce corps exprime tout l’univers par la connexion de toute
la matière dans le plein, l’Ame represente aussi tout l’univers en
représentant
ce
corps,
qui
lui
appartient
d’une
manière
particulière.“, idem, parágrafo 62 (p.109).
306
coreografia que as abarca a todas. Cada substância simples
está em mudança por si mesma, mas muda em função de uma
organização incorruptível que as percorre a todas. Assim,
cada mudança só é possível em função de todas as outras. As
mónadas
vivem
em
regime
de
compossibilidade
ou
de
cumplicidade. Neste sentido, as mónadas são como unidades
de
biografias
particulares.
São
livros,
como
afirma
Deleuze304. São livros auto-biográficos. É essa biografia
particular, o seu conjunto de percepções que se sucedem, a
perspectiva
singular
do
universo
que
faz
com
que
cada
mónada seja distinta das demais a cada transição de estado.
Pois
a
percepção
da
mónada
é
a
expressão
singular
da
transição de estados da multiplicidade. E a biografia do
mundo
será
o
conjunto
das
suas
biografias.
Porém,
a
biografia de cada uma contém, virtualmente, a biografia da
totalidade.
Mas, por sua vez, se toda a existência está preenchida
de mónadas (pois não pode haver algo existente que não seja
composto por mónadas) e a estas está associado um pedaço
corpóreo, então o espaço físico é um plenamente preenchido.
Isto
é,
tudo
é
pleno.
Por
conseguinte,
tal
como
em
Descartes, a matéria é divisível em partes mais pequenas e
estas em outras ainda mais pequenas, numa sucessão infinda.
304
Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque
(tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the
baroque”, Londres: Continuum (2006), p. 35.
307
Divisão que não
é meramente racional, como no
caso do
espaço matemático. Isto é, uma divisão que se pode pensar a
partir de um todo. Em que o todo precede as partes. Pelo
contrário, cada corpo é, em actual, dividido em infinitas
partes. Por sua vez, também como em Descartes, todas as
partes da matéria estão ligadas entre si, pois num plenum o
movimento de um corpo particular faz efeito nos que lhe são
contíguos e esses em outros, numa propagação que podermos
conceber como ondulatória. Por conseguinte, o movimento de
um corpo é uma consequência directa do movimento de todo o
universo.
O
estado
actual
de
resultante, reflexo, expressão
um
corpo
individual
é
do decurso evolutivo dos
estados do universo. A multiplicidade é expressa em cada
corpo. E o estudo exaustivo, uma determinação completa de
um
corpo
individual
passaria
pela
conquista
de
todo
o
múltiplo que ele contém. Isto é, teria que passar pela
determinação de todos os outros corpos. O que significa que
a percepção do estado actual de um dado corpo, ao contrário
do que sucede em Descartes, Kant, Newton e, por extensão,
da metafísica implícita da Física, não o determina por
completo, mas apenas parcelarmente.
Por outro lado, se tudo é composto de mónadas ou por
mónadas, que são a substância simples, então, logicamente,
não pode existir nada que não pertença às mónadas. Ou seja,
não
pode
existir
tal
coisa,
como
Newton,
por
exemplo
308
concebe, como um espaço vazio. Um espaço como substância
que precede todos os corpos. O espaço, para Leibniz, é uma
ordem da coexistência das mónadas305. O espaço é da ordem
das coisas, da sua relação e não um plano onde estas podem
ser
depositadas,
ordenadas
e
urdidas
as
suas
relações.
Igualmente, o tempo é da ordem das coisas. Assim, tanto o
espaço, como o tempo, são, para Leibniz, não
coisas, mas
fenómenos
são
bem
fundados.
Fenómenos,
porque
apenas
aparência. Bem fundados, pois fundam-se na relação - que é
o tecido do real – entre as mónadas.
Porém, o que sucede no caso dos corpos? Tal como se
afirmou no início, Leibniz parece hesitar em considerar os
corpos como substâncias. Embora nos “Princípios da Natureza
e da Graça”, Leibniz afirme que os corpos são substâncias
compostas,
na
monadologia
parece
indicar
que
apenas
as
mónadas são verdadeiramente substâncias. Nesta última obra,
os corpos são simples agregados de mónadas. Por outro lado,
se os corpos nos aparecem aos sentidos como extensos e se a
extensão é apenas um fenómeno bem fundado, então os corpos,
tal
qual
nos
aparecem,
são
igualmente
um
fenómeno
bem
fundado. O mesmo sucederá com o movimento, se o pensarmos,
como é usual, como o quociente entre o espaço percorrido e
o tempo decorrido por um corpo, pois também o tempo é da
305
Leibniz, G.W. (1714), Carta a Rémond, Julho de 1714, não enviada
in Princípios da natureza e da graça/Monadologia (trad. Port. de
Miguel Serras Pereira), Lisboa: Fim de Século, p.68. (2001).
309
ordem da relação das coisas e não uma coisa em si. Assim, a
verdadeira natureza dos corpos não nos é revelada através
da percepção directa. E, como tal, toda a Física que se
constitua a partir de uma concepção de corpo tal como ele
nos aparece aos sentidos (extenso, móvel, etc.) será uma
ciência de fenómenos bem fundados, mas não uma ciência da
natureza tal como ela é.
Diz-nos então, Leibniz, “a alma segue as suas próprias
leis,
e
o
corpo
também
suas”306.
as
As
almas
agem
por
apetências, os corpos por movimentos. A Física de Leibniz
não é regida directamente pela percepção e pela apetência.
A Física de Leibniz é regida por duas forças: a viva e a
morta. A primeira é elástica, no sentido que é uma força
que é dirigida para fora mas tem a sua fonte no interior,
como uma mola que se estende, que se atira para fora. Força
que
se
esgota
em
si,
mas
é
transmitida.
Força
que
é,
também, de reacção.
Por outro lado, a força plástica, a força morta é a
força
acumulativa.
Que
se
dirige
para
dentro,
que
se
conforma com o exterior. Mas que é, tão-somente, o que
potencia
a
força
viva.
Existem
assim
duas
forças:
uma
interior, outra exterior; uma acumulativa, outra expansiva;
uma activa, outra passiva. Todos os corpos são deformáveis,
306
Conferir [Monadologia, edição Robinet] Parágrafo 78 (p. 121)
310
elásticos, fluidos na medida suficiente de não perderem a
sua consistência. Encontramos em Leibniz uma física que
rejeita tanto os átomos materiais de Newton, por serem
indeformáveis,
como
os
corpúsculos
que
tendem
para
o
imponderável, para o inconsistente. A física de Leibniz
rejeita
tanto
a
idealização
de
um
corpo
absolutamente
rígido de Newton, como rejeita a idealização de um fluido
imenso que preenche todos os espaços. No fundo, olhando da
física actual para a física proposta por Leibniz, este
rejeita as idealizações que estão na base tanto da Mecânica
Clássica, como do Electromagnetísmo. Leibniz rejeitaria as
partículas puras, tanto dos corpos como das ondas. Porém,
se tudo é pleno em Leibniz, o movimento local propaga-se
por todo o espaço. Todos os corpos sentem, de alguma forma,
o movimento de um corpo particular. A acção particular
propaga-se isotropicamente, como se fosse uma onda. Porém,
uma percepção é um singular. É a percepção de um corpo.
Isto é, a física de Leibniz já inclui, de certo modo, um
dualismo onda-corpúsculo. Dualismo este que se pode pensar,
justamente, como no domínio quântico: na propagação é como
uma onda; na interacção é como um corpo.
Mas o corpo é
aqui pensado, na sua essência, como um centro de força e a
onda
como
a
propagação
dessa
força.
Mas,
neste
caso,
voltaríamos, aparentemente, à concepção que nos surgiu em
Kant, onde o mundo poderia ser totalmente estático. O que
311
não faz sentido em Leibniz, pois nas substâncias simples
existe um princípio interno de transição, de mudança. Tudo
está em movimento, por razão das mónadas.
Porém, regressamos ao problema que deixámos em aberto
no início: Em que consiste exactamente a ligação entre as
mónadas e os corpos?
Leibniz diz-nos que os reinos das almas e dos corpos,
embora completamente separados, são harmónicos entre si.
Numa harmonia pré-estabelecida que permite a transição de
percepções e corresponda a um movimento nos corpos. Os
corpos encontram a sede ou a razão do seu movimento nas
mónadas. Aqui, por movimento, penso que se pode entender o
mesmo que em Kant. Isto é, uma modificação das condições
exteriores.
Porém,
em
que
consiste
precisamente
esta
correspondência entre almas e corpos? Como mostra Daniel
Garber no seu clarificador livro “Lebniz: Body, Substance,
Monad”,
esta
questão
da
ligação
entre
os
corpos
e
as
mónadas irá perseguir Leibniz na fase final da sua vida.
Aliás,
Garber
é
ainda
mais
enfático
ao
afirmar
que
a
questão da ligação entre mónadas e corpos torna-se quase
uma obsessão de Leibniz307. Como mostra Garber, e como é
característico
diferentes,
em
todas
Leibniz,
elas
este
tentará
inconclusivas,
várias
de
formas
resolver
o
307
Garber, Daniel (2009), Leibniz: Body, Substance, Monad, Oxford:
Oxford University press, p. 373.
312
problema. Leibniz terá mesmo, por um momento, posto mesmo
em causa as mónadas. Em resumo, quer tudo isto dizer que,
segundo Garber:
“O trabalho de Leibniz nestes anos [os de maturidade] sobre
os corpos não fazem uma imagem completamente coerente”308.
Não é fácil compreender exactamente como as mónadas, e
as suas qualidades, constituem os corpos; como os corpos
são agregados ou compósitos de mónadas; ou como as acções
das mónadas se ligam com os corpos. E, em particular, não é
fácil perceber como a Metafísica de Leibniz poderá fundar
uma
Física
que
se
quer,
na
sua
essência,
dinamista
e
relacional.
Como será óbvio, não caberia aqui, nem a mim, sequer
ensaiar um movimento qualquer de tentativa de solução do
problema.
Contudo,
poder-se-á
tentar
fazer
uso
da
monadologia como inspiração e, de certo modo, reinterpretar
alguns dos seus aspectos fundamentais de modo a gizar um
conceito de objecto físico com três aspectos que se podem
encontrar
objectos
em
Leibniz:
físicos;
a
a
inter-relação
sua
essência
plena
entre
os
dinâmica;
a
discernibilidade dos objectos físicos.
308
Conferir Idem, p. 382.
313
4.2. Os objectos físicos como nós de relações.
Deleuze, no seu livro sobre Leibniz, fala-nos em dobra
para
descrever
as
variadas
sucessões
paralelas
mas
interligadas em Leibniz. O plano das mónadas e o plano dos
corpos. O plano do contínuo do movimento e o plano do
discreto da percepção. O plano da função e o plano da
derivada. O plano da transição do virtual para o actual (ou
seja, da actualização) da mónadas e o plano da transição do
possível para o real (ou seja, da realização) dos corpos.
Séries paralelas, mas harmónicas. Como duas faces de uma
folha que se vai dobrando.
Por outro lado, a dobra também surge em Deleuze como a
figuração
da
mónada.
Podemos
ver,
perfeitamente,
a
sequência de transições de estado de uma mónada como um
desdobrar, como se fosse uma explicação. Podemos sentir
como cada mónada contém, virtualmente, implicada em si,
dobrada no seu interior, a sua sequência de actualizações.
Podemos olhar para a mónada como uma espécie de origami que
se
reinventa
a
cada
momento.
Podemos
perceber
a
actualização harmónica do conjunto das mónadas como uma
complicação, como uma cumplicidade. A dobra é, sem dúvida,
uma imagem frutuosa das mónadas.
314
Porém, no caso presente, sugiro que interpretemos as
mónadas segundo a figura, não da dobra mas dos “nós”. Isto
é, como entrelaçamentos, como zonas de interligações.
Os nós são constituídos são organizações ou estruturas
particulares dos fios. Assim, um nó existe em função do que
lhe é exterior. Um nó pode surgir por um enrolamento, tal
como pode ser desenrolado, desatado e desaparecer. Contudo,
um nó é uma estrutura autónoma dos fios.
Mas os nós de que aqui falamos não são constituídos
por apenas um fio que se envolve consigo mesmo. Isso seria,
digamos, um laço. O nó de que aqui se fala, é um nó de
múltiplos
fios,
como
estradas,
constituído
um
nó
por
rodoviário,
múltiplos
com
múltiplas
caminhos
que
se
encontram. Os nós podem ser vistos como uma confluência.
Por
isso,
os
nós
podem
ser
igualmente
figurados
como
remoinhos, furacões ou vórtices.
Estes nós são nós de relações. São relações que se
estabilizam num particular. Assim, os nós são entidades
essencialmente relacionais. Fazendo uso de
uma
latitude
particular da língua portuguesa, poderíamos dizer que um nó
só o é relativamente a um nós. Todo o complexo de nós está
literalmente inter-ligado, sem que contudo signifique que
se
trate
distinto
de
de
um
todos
todo
os
indiferenciado.
demais
pelo
Pois,
novelo
cada
nó
particular
é
de
315
relações que instancia. Em cada nó existe um desenrolar de
si que lhe é próprio, mas que é igualmente consequente do
desenrolar
(ou
desfiar)
do
todo
relacional
de
que
faz
parte. Cada um de nós vive num enredo que é o seu, numa
primeira instância, e que é parte da bibliografia da vida,
numa segunda.
Deve-se então entender que os nós são os relata das
relações que os constituem. Porém, os relata não antecedem
as relações. Do mesmo modo que não existem nós sem fios,
não existem relata sem relações. Porém, poderão existir
relações puras, sem estarem instanciadas num relata? Sim,
serão
as
figuras
que
habitam
no
Caos
de
que
nos
fala
Deleuze. O que é o Caos? Deleuze defino-o como “um vazio
que não é um nada, mas um virtual, que contem todas as
partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis
que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência
nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita
de nascimento e desvanecimento”309. É o lugar de todas essas
relações que circulam, como puros fluxos, etéreos, fátuos,
inconsistentes.
São como uma
multiplicidade de
matérias
primas aristotélicas. Todas em potência de forma. Uma como
a outra, incognoscível na sua existência enquanto ser do
309
Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port.
de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”,
Lisboa: editorial presença), p. 105. (1992)
316
Caos. Isto é, uma é incognoscível pois é pura relação sem
relata, outra é incognoscível pois é matéria prima sem
forma.
O
Caos
é
um
virtual,
pois
está
preenchido
de
entidades em pura potência de actualização. Assim, os nós,
entendidos como confluências de relações, são constituídos
pelo desfiar da transição virtual-actual. Portanto, neste
caso, os relata, isto é, os nós de relações, são epicentros
de actualizações em processo. Ora, diz-nos Deleuze, “como
Leibniz
mostrou,
a
força
é
um
virtual
em
curso
de
se
actualizar”310. Logo, os relata são novelos de relações, são
centros de força, não estáveis, como uma carga eléctrica,
mas
meta-estáveis,
em
flutuações
de
intensidade.
Deste
modo, em cada uma das ligações entre nós tem a sua tensão
oscilatória. Isto é uma vibração. Como as cordas de uma
guitarra, que também são fios em tensão que ligam dois nós.
A sua vibração tem uma intensidade, uma frequência que lhe
é particular naquele estado. O seu estado é definido a
partir da intensidade da relações que lhe estão enredadas.
Deste
modo,
todas
as
relações
são
activas,
mas
instáveis. As relações procuram estabelecer-se num nó, num
relatum.
Porém,
nenhum
nó
é
estático,
mas
é
um
estacionário, um meta-equilibrio. Poder-se-á dizer que os
nós, como os corpos em Leibniz e em Kant, são centros de
310
Deleuze, Gilles (1995), Dialogues (trad. Port. de José
Cunha, “Diálogos”, Lisboa: relógio d’agua (2004), p. 180.
Gabriel
317
força.
Porém,
flutuações
são
de
forças
intensidade,
distensões.
Os
nós
osciladores
que
se
são
variáveis
em
pois
contínuas
uma
espécie
inter-ligam
a
existem
em
compressões
de
outros
e
sistema
de
sistemas
de
osciladores. Talvez seja essa a imagem física mais próxima.
Os
nós
substância
o
não
que
são
substâncias
existe
por
si,
se
o
se
que
entender
não
pode
por
ser
decomposto, o que subsiste à mudança, ou o que possui
propriedades. Poder-se-á dizer que são organismos e neste
sentido que são substâncias individuais. Não admirará que
em Bio-matemática, o ADN seja justamente considerado uma
molécula em nó, um Knotene.
Essa multidão de nós construi uma trama, um tecido,
que embora seja uma rede ou uma floresta de rizomas, pela
sua
densidade
pode
ser
tomado
como
um
contínuo
com
rugosidades. Aquilo a que se pode designar por meio ou
plano. O meio é necessariamente um sistema complexo, pois é
constituído por essa trama múltipla de relações. O caso
mais radical de meio é o próprio Caos, mas não é o único.
No Electromagnetismo esse meio é identificado com o campo
electromagnético. No caso da Mecânica celeste esse meio é
identificado
com
o
espaço-tempo.
No
caso
do
domínio
quântico esse meio será o meio sub-quântico. Em todos os
casos repete-se a estrutura, como uma espécie de fractal.
318
Os objectos físicos são nós de relações, singularidades num
contínuo. As massas são deformações do espaço-tempo. As
cargas são centros de força do campo electromagnético. Os
objectos quânticos são vórtices do meio sub-quântico. As
massas são nós, constituídos por outros nós (as cargas
eléctricas) e estas são constituídas por outros nós ainda.
Um nó, esquecida a sua estrutura, pode ser visto como um
ponto. Neste caso, um ponto oscilante num meio. Compreendese assim que se possa confundir o nó com um ponto material,
que se possa confundir com a partícula pura dos corpos. E
se possam confundir as suas oscilações, num meio, como uma
onda harmónica. Porém, cada nó é, por sua natureza, uma
estrutura
ontologicamente
autónoma.
Portanto,
dentro
de
cada nó existe um outro mundo de nós. Tal como em Leibniz,
em cada peixe existe um lago cheio de peixes. A progressão
é infinita, mas em sentido horizontal e não em sentido
vertical. Isto
é, não que a matéria seja divisível ao
infinito e em que cada parte seja igual ao todo. Pelo
contrário, cada nó é divisível em outros nós de relações.
Porém, o novo plano ontológico estrutura-se de outra forma.
São outras relações. São outros nós. Quer isto dizer que
cada plano é emergente relativamente ao seu antecedente.
Mas o que queremos dizer por emergente?
Encontramos em Paul Humphreys a seguinte definição de
emergência:
319
“Emergência é, em sentido lato, a visão que existem coisas
do mundo – objectos, propriedades, leis, talvez outras coisas –
que são manifestadas como resultado da existência
de outras
entidades, usualmente mais básicas, mas que, contudo, não podem
ser completamente reduzidas a essas entidades”311
O
ponto
aqui
é
a
expressão
“ser
completamente
reduzidas”. A forma tradicional de o pensar é a partir da
relação
mereológica
do
todo
e
das
suas
partes.
Assim,
afirma-se que existe emergência quando existem entidades
(todos) que não podem ser completamente reduzidas às suas
partes
constituintes.
Isto
é,
não
resultam
da
simples
combinação das suas partes. Como, por exemplo, as peças de
lego ou de um puzzle. O que pode ser expresso num aforismo
clássico: “o todo não é igual à soma das suas partes”. O
emergentismo
precisamente
opõe-se,
neste
como
é
último,
claro,
ao
concebe-se
atomismo.
que
Pois
tudo
é
constituído por uma combinação de um conjunto de entidades
imutáveis
e
últimas.
E
a
Física
revela-se
claramente
atomista quando concebe um corpo apenas como o compósito de
311
“Emergence is, broadly speaking, the view that there are features
of the world – objects, properties, laws, perhaps other things – that
are manifested as a result of the existence of other, usually more
basic, entities but that cannot be completely reduced to those other
entities” Paul Humphreys (2006), “Emergence”, in The Encyclopedia of
Philosophy (2th Ed) (Donald Borchert (ed.), Nova Iorque: MacMillan,
vol. 3, p. 190. (pp. 190-194).
320
corpúsculos e uma onda apenas como o sobreposto de ondas.
Como já aqui se mostrou, em limite, este atomismo que se
encontra no tutano da Física, leva-nos às partículas puras
dos corpos e das ondas.
Mas como pode um todo ser diferente da soma das partes
que
o
compõem?
Justamente,
porque
não
existindo
tal
elemento atómico, como afirma Gil Santos, “a identidade de
um objecto é a sua organização própria”312. Assim, essa
organização própria que confere identidade a um objecto, ou
nó, como aqui o designámos, possui propriedades distintas
das partes que o compõem e uma autonomia causal que é sua.
Um ser animal não é um mero agregado de órgãos. É autónomo
em relação a estes. Diria Deleuze, “é um corpo sem órgãos”.
Cada objecto é um nó de relações que lhe são únicas.
Poderá o atomista argumentar que essa emergência é
aparente,
pois
são
o
resultado
das
nossas
limitadas
capacidades de explicar, calcular, dar conta das múltiplas
relações
das
partes.
Diz-se
que
um
sistema
é
complexo
precisamente para dizer que existem tantas relações que não
é possível explicar completamente o todo em função das suas
partes, o que não significa que, em limite, o todo seja
ontologicamente autónomo em relação às suas partes. Talvez
312
Santos, Gil C. (2010), “Emergência: Da Mereologia à Organização”, in
Estudios de Lógica, Lenguaje y Epistemologia (David Duque, Emilio
Parejo e Ignácio Antón ed.), Sevilha: Fénix, p.348.
321
uma célula seja, em limite, totalmente explicável a partir
das suas moléculas. Neste caso, onde a emergência é fruto
de
uma
incapacidade
de
conhecer
todas
as
relações
que
formam a entidade emergente, tratar-se-á de uma emergência
epistémica.
Contudo,
o
caso
será
diferente
se
nesse
todo
que
emerge existe uma alteração da natureza das partes. Ou
seja, a transição de entre planos de relações ou o que
designámos por meio é realizada por uma transformação das
relações que caracterizam um relatum. Neste caso, dir-se-á
que existe uma emergência ontológica. Como são exemplos, na
Física, os quarks para os protões; os protões para as bolas
de
bilhar;
celestes.
das
Em
bolas
cada
de
meio
bilhar
para
instanciam-se
alguns
nós
de
objectos
relações
distintos. Mas em cada caso é um plenum de inter-ligações
entre relata em agitação, mas meta-estáveis.
Poderíamos seguir por um desses fios que fazem a ponte
entre dois nós, num caminho aparentemente linear. Isto é,
isolando
uma
relação
particular
entre
dois
relata.
A
distância, a velocidade, o peso, a extensão, etc. E essa
relação, tomada como isolada de todas as outras, poderia
ser considerada como linear. Isto é, onde a relação manterse-ia sob o regime de uma constante de proporcionalidade.
Essa tem sido a estratégia da Física. Como afirma Deleuze,
322
a Ciência opera por funções apenas com a finalidade de
isolar
variáveis
e
de
abrandar
Caos313.
o
Porém,
esse
abrandamento, que é necessário à Física, se encerra em
arquétipos
como
os
sistemas
isolados,
o
absolutamente
sólido, o infinitamente extenso, o ponto material, a onda
harmónica,
na
separabilidade
completa
entre
sujeito
e
mundo, fecha-se em excesso ao mundo. Protege-se do Caos –
afirma Deleuze - prendendo-se a opiniões fixas314. Porém, na
riqueza da realidade, por um lado, a cada chegada a um nó
existem mil caminhos que se abrem, como jardim que se
bifurca de que nos fala Borges. Não existe um nó de um só
fio, um relatum de uma só relação. Cada relatum reenvia,
num primeiro plano, para o meio onde habita. Num segundo
nível, para o mundo. Os nós são mais intensos, do que
extensos.
São
centros
de
força
que
estabilizam
a
cada
momento um conjunto de relações. Neste sentido, os nós são
atractores, são
as chamadas
singularidades dos
sistemas
dinâmicos. É precisamente assim, concebendo os relata como
centros de intensidade, como singularidades, que Delanda
desenvolve
Virtual
a
sua
ontologia
Philosophy”315.
Os
em
graus
“Intensive
de
Science
liberdade
de
and
uma
singularidade de que fala Delanda, são precisamente os fios
313
Conferir Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie?
(Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a
Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 106. (1992)
314
Idem, p.176.
315
Conferir DeLanda, Manuel (2002),
Intensive Science and Virtual
Philosophy, Londres: Continuum.
323
que se enredam num nó. Ou seja, todos os processos são, em
última análise, não-lineares. Isto é, entre dois elementos,
as variáveis não variam proporcionalmente. Seja porque o
sistema nunca pode ser considerado como isolado, ou seja,
cada relatum reenvia para outros relata e, como tal, a
relação nunca é a dois. Esta é forma típica das equações
diferenciais não-lineares, onde é introduzido um parâmetro
de “ambiente”. Contudo, neste caso, o não-linear pode ainda
ser revertido num sistema linear de múltiplas variáveis, de
infinitos elementos. Ou seja, a equação não-linear pode ser
linearizável.
Contudo,
no
caso
onde
a
razão
da
desproporcionalidade reside não só na inter-ligação entre
relata, mas no
intensidade
facto destes serem centros de
variável,
ou
seja,
no
facto
força de
destes
serem
entidades em processo, então essa linearização já não seria
possível316.
Por fim, segundo Deleuze, uma mónada é uma célula.
Poderíamos afirmar que um neurónio é um nó de terminações
nervosas. Neste sentido, o cérebro é um fractal do mundo.
316
Araújo, João (2010), “Investigating the infinity slope in a nonlinear
Approach” in A new vision on Physis, Lisboa: CFCUL, p.217.
324
5. Conclusão
A questão da natureza dos objectos quânticos, como
aqui se tentou mostrar, resulta do choque entre um certo
conceito de objecto físico, que está na constituição intima
da Física, e o domínio quântico. O choque tornou-se em
enigma com a formulação do dualismo onda-corpúsculo por
parte de De Broglie. E o enigma tornou-se em confronto
entre
essa
ontologia
implícita
herdada
de
Newton
e
os
indomáveis objectos quânticos. Bohr fez-se comandante dessa
geração de descobridores do quântico e liderou o processo
de resposta. Neste sentido, analisar o pensamento de Bohr é
ter acesso ao sinuoso mas hábil movimento que permitiu
generalizar
integrar,
as
de
comprometer
teorias
forma
o
físicas
contida,
conceito
a
clássicas
estranheza
clássico
de
de
modo
quântica,
objecto
físico.
a
sem
A
Mecânica Quântica constitui-se nas margens, construi-se nos
limites ontológicos das teorias clássicas da Física. Ela é
uma
pura
teoria
das
probabilidades.
Na
crença
da
impossibilidade de se conceber os objectos físicos senão
como ou ondas, ou corpos, a Mecânica Quântica estabelece-se
325
apenas
como
teoria
que
prevê,
estatisticamente,
os
resultados de medidas. Ou seja, a Mecânica Quântica colocase apenas do lado do sujeito. Aliás, radicaliza a oposição
sujeito-objecto,
deixando
a
quase
nada
o
estatuto
dos
objectos físicos. Bohr chega mesmo a afirmar, numa frase
que é conhecida: “não existe um mundo quântico. Existe
apenas uma descrição física abstracta”317. A leitura desta
frase pode levar pensar que Bohr não atribui realidade ao
mundo quântico. Tal, como se mostrou, não é verdade. Bohr
era um realista. Contudo, Bohr sobre o mundo quântico, faz
as vezes de Colombo sobre o mundo das Américas. Descobridor
de um novo mundo, embora nunca tenha chegado mais longe do
que
às
primeiras
ilhas,
recusa
obstinadamente
que
esse
mundo é novo, embora também não parece ser velho.
Como a Mecânica Quântica se coloca do lado do sujeito,
ela
ocupa-se
conseguinte,
existência
apenas
concede
material
do
resultado
apenas
enquanto
aos
das
medições.
objectos
corpúsculos
e
Por
quânticos
apenas
no
momento em que produzem manchas numa chapa fotográfica ou
que causam sinais num detector. Como se fossem simples
aparições desse sub-mundo que é forçado a dar uma resposta
à questão da posição. E é porque todas as medições são,
317
“there is no quantum world. There is only abstract quantum physical
description” Bohr, Niels citado de Al-Khalili, Jim (2003), Quantum: A
guide for the perplexed, Londres: Weidenfeld & Nicolson, p.153.
326
directamente, de localização, que esse sub-mundo só se pode
revelar sob a forma dos corpos.
Ao colocar-se do lado do sujeito, o movimento dos
objectos
teoria
quânticos
quântica
é
absolutamente
ortodoxa
não
omitido.
atribui,
Por
aos
isso
a
objectos,
trajectória ou meio de propagação. As ondas são apenas
ondas
de
probabilidade.
Curvas
de
probabilidade,
quiser. Deste modo, a Mecânica Quântica
da
natureza
dos
objectos
quânticos.
se
se
escapa à questão
Contudo,
como
aqui
também se pretendeu mostrar, a questão regressa sob a forma
do
Problema
da
Medição,
do
Problema
da
Violação
das
Relações de Bell, do Problema do Realismo, do conjunto de
problemas que muitas vezes são categorizados simplesmente
de implicações filosóficas da Mecânica Quântica. Mas, na
realidade, a meu ver, são apenas implicações de uma teoria
física sem ontologia.
Portanto, o problema que a descoberta que o domínio
quântico levantou (ou fez regressar) é o do conceito de
objecto físico. Mas uma análise a este conceito revela que
já no século XVII, no momento do nascimento da Física se
encontra, de certo modo, o problema que a descoberta do
domínio quântico veio agudizar. Isto é, que os objectos
físicos são concebidos a partir fixo, do movimento enquanto
apenas possível, isto é, como corpos. Ou seja, em grande
327
parte
dos
conceitos
de
objecto
físico,
não
decorre
do
conceito que estes se movam. No entanto, a Física – a
mecânica,
em
particular
–
é
uma
ciência
do
movimento.
Assim, de certo modo, sempre houve na Física uma tensão
entre movimento e o conceito de objecto físico. Que no
domínio quântico se reproduz na tensão entre a onda e o
corpo.
Quer
isto
dizer
que
a
procura
de
um
conceito
de
objecto físico que chegue ao domínio quântico passa por uma
concepção eminentemente dinamista dos objectos físicos. E
essa será, por ventura, a conclusão principal desta tese.
Encontramos essa concepção dinamista, já em Aristóteles,
mas
igualmente
em
Leibniz.
Mas
em
Leibniz
encontramos
também uma particular concepção de Ciência, uma particular
relação entre sujeito e objecto, uma particular ontologia
bem distinta do que ontologia pobre que prevalece na Física
e que foi extraída, por Newton, do senso comum. Aqui, na
Metafísica da Física, como em outras áreas, sempre existiu
a proposta de Leibniz, mas esta não é a prevalecente.
Talvez pelo seu peso metafísico. Talvez pela dificuldade de
se percorrer os labirintos do pensamento de Leibniz. Onde
os
projectos,
aparentemente
isolados,
se
enredam
e
comunicam. Talvez, no caso concreto da Física, pela sua
dependência a uma teoria das almas. O que, por um lado,
leva a que o conceito de objecto físico não se construa a
328
partir da nossa experiência comum do mundo, mas de uma
especulação metafísica que explique essa experiência comum
do
mundo.
Por
outro,
pela
enigmática
representação
nas
almas dos acontecimentos que os corpo instanciam.
Seja como for, a meu ver, a descoberta do domínio
quântico, a questão da natureza dos objectos quânticos,
leva a uma concepção dinamista e relacional de objecto
físico. Uma concepção em que o movimento decorra do próprio
conceito de objecto físico. E, portanto, em que o movimento
seja da ordem da relação dos objectos físicos com o que lhe
é exterior.
A partir de uma leitura de Deleuze enquanto leitor de
Leibniz, tentou-se, especulativamente, lançar pistas para
uma
concepção
intensidade
do
dos
objectos
que
da
como
entidades
extensibilidade.
Como
mais
da
entidades
processuais e não como entidades fixas, imutáveis. Como
entidades essencialmente relacionais e nunca isoladas ou
atómicas. E, neste sentido, de uma concepção dos objectos
físicos que incorpore os fenómenos de emergência e nãolinearidade ontológicas.
No fundo, a descoberta do domínio quântico lançou o
desafio
de
se
repensar
os
fundamentos
ontológicos
da
própria Física. Encontramos uma via para o fazer em Leibniz
e nas diferentes leituras de Leibniz ou, de certo modo, nas
329
leituras
afins
com
Leibniz.
Encontramos
na
teoria
De
Broglie-Croca318 (e é isso, justamente, que a diferencia de
todas
as
outras
teorias
quânticas)
uma
tentativa
de
constituir uma Física fundada numa concepção dinamista e
relacional dos objectos físicos. É um desafio gigante, mas,
a meu ver, inevitável.
318
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