Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências O que é um objecto quântico? Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão. João Luís Cordovil Doutoramento em História e Filosofia das Ciências 2011 Universidade de Lisboa Faculdade de Ciências Secção Autónoma de História e Filosofia das Ciências O que é um objecto quântico? Uma investigação sobre as implicações epistemológicas e ontológicas desta questão. João Luís Cordovil Doutoramento em História e Filosofia das Ciências orientado pelos professores doutores Olga Maria Pombo Martins e José Nunes Ramalho Croca 2011 PREFÁCIO A presente Tese, apresentada para cumprimento dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor em História e Filosofia das Ciências, é o resultado de um trabalho de investigação iniciado em 2006, sob a orientação da Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins e do Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca. À Professora Doutora Olga Maria Pombo Martins gostaria de deixar um agradecimento especial. Em primeiro lugar, agradeço-lhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, pelos seus atentos e agudos conselhos, sugestões e pistas, pela sua dedicada prática de comunhão de saberes, bem como pela sua generosidade, exigência e disponibilidade. Em segundo lugar, agradeço-lhe o imenso trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa. Trabalho onde radicam as condições materiais desta dissertação. Em terceiro lugar, agradeço-lhe ter-me dado a ver o que é a Filosofia. Por fim, agradeço-lhe ter-me apresentado ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca. Ao Professor Doutor José Nunes Ramalho Croca agradeçolhe por todo o seu o trabalho de acompanhamento das diversas fases da minha investigação, agradeço-lhe a sua generosidade, paciência e disponibilidade, agradeço-lhe a sua vontade de partilhar saberes e as ideias que tão corajosamente defende. Agradeço-lhe, igualmente, o trabalho que tem desenvolvido no Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa, que tem permitido a existência de um grupo dedicado à Filosofia da Física. Ao Doutor Gil Costa Santos agradeço-lhe os inúmeros diálogos que tivemos, bem como o seu trabalho de revisão e melhoramento deste texto. Em todo o caso, devo sublinhar que tudo quanto se escreve e defende no texto deste trabalho é, evidentemente, da minha exclusiva responsabilidade. À ‘Fundação para a Ciência e a Tecnologia’ agradeço a atribuição de uma bolsa de investigação (SFRH/BD/21790/2005), sem a qual teria sido levar a cabo este trabalho de investigação. A todos, agradeço. impossível Ao meu Pai À Sara Índice Introdução ..................................................... 1 1.Sobre a questão da Natureza dos Objectos Quânticos .......... 3 2.A Constituição da Mecânica Quântica ......................... 13 2.1. O Princípio da Correspondência ........................... 19 2.2.A hipótese de De Broglie .................................. 43 2.3.Doutrina da Indispensabilidade dos conceitos clássicos ... 48 2.4. As duas partículas puras da Física Clássica .............. 84 2.5.A Pentadoxia .............................................. 92 2.6.O Princípio da Correspondência: nível conceptual ......... 100 2.7. O “Princípio” da complementaridade ...................... 103 2.8.Os postulados da Mecânica Quântica ....................... 132 2.8.1,Léxico: Função de onda, Observáveis e Operadores ... 137 2.8.2.A Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física .......................... 141 2.9.O Problema da Medição .................................... 156 2.9.1. O Problema da Completude .......................... 158 2.9.2.O Problema da Caracterização ....................... 163 2.10. Conclusão .............................................. 168 3. O que é um Objecto Físico ................................. 179 3.1. O conceito de objecto físico em Descartes ............... 181 3.1.1. Movimento ......................................... 207 3.1.2 conclusão .......................................... 216 3.2. O conceito de objecto físico em Newton .................. 218 3.2.1. Corpo ............................................. 219 3.2.2. Quantidade de Movimento ........................... 224 3.2.3. Os três tipos de força ............................ 227 3.2.4. Os conceitos de espaço, tempo, lugar e movimento .. 234 3.2.5. o conceito de tempo ............................... 235 3.2.6. o conceito de espaço ............................ 240 3.2.7. o conceito de movimento ........................... 244 3.2.8. conclusão ......................................... 249 3.3. O conceito de objecto físico em Kant .................... 254 3.3.1. Foronomia ......................................... 267 3.3.2. Dinâmica .......................................... 271 3.3.3. Mecânica .......................................... 276 3.3.4. Fenomenologia ..................................... 278 3.3.5. Conclusão ......................................... 279 3.4. Conclusão geral do capítulo ............................. 284 4. Elementos para uma concepção dinâmica e relacional de objecto físico ....................................................... 293 4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos .......... 295 4.2. Objectos Físicos como nós de relações ................... 314 5. Conclusão ................................................. 325 Bibliografia ................................................. 331 Introdução O trabalho que aqui se apresenta pode-se afirmar que é constituído por três partes: uma reconstrutiva, outra descritiva, uma terceira interpretativa (ou especulativa). Estas três partes não são, naturalmente, estanques. A reconstrução do pensamento de um autor passa, também, pela descrição e interpretação desse pensamento. A descrição igualmente não é realizável sem a interpretação e sem ser, em certo grau, uma reconstrução. E o mesmo se aplicará à interpretação. Portanto, esta partição é mais tónica do que categórica. (Como talvez seja o parte, faz-se caso para todas as reconstrução do partições.) Na primeira pensamento de Bohr sobre a uma constituição da Mecânica Quântica. Nesta tentar-se-á mostrar, através do movimento interior ao pensamento de Bohr, a forma como a Mecânica Quântica se constituiu como uma solução de compromisso da tensão entre o que em termos deleuzianos pode ser designado por uma imagem-pensamento sobre os objectos físicos e a descoberta do domínio quântico. Ou seja, do confronto entre um conjunto de pressupostos ontológicos implícitos onde a Física sempre se fundou e a descoberta dos objectos quânticos. A solução de Bohr, sobre a qual se edificou a Mecânica Quântica, clássicas da permitiu foi Física, ocultar o a num de generalizar exercício problema da de as teorias ilusionista, natureza dos que objectos quânticos. Problema que, como se tentará mostrar, ficou na raiz das chamadas implicações filosóficas da Mecânica Quântica. Na segunda principais parte, conceitos de far-se-á objecto uma descrição físico, em dos particular aqueles que presidiram à constituição da Física. Ou seja, os conceitos de objecto físico em Descartes, Newton e Kant. Em particular, mostrar-se-á que, embora a Física seja a ciência do movimento, não decorre do conceito de objecto físico que este se movimente. Algo que se torna problemático quando se tenta pensar os objectos quânticos. Por fim, na última parte, a partir de uma interpretação de alguns elementos da metafísica de Leibniz e de Deleuze, ensaiar-se-ão os primeiros passos para uma concepção de objecto quântico. Antes do mais, será feita uma apresentação da questão “O que é um Objecto Quântico?”, determinando-se o seu lugar no que se tem designado por Filosofia da Mecânica Quântica. 1. Sobre a questão da Natureza dos objectos quânticos. O que é um objecto quântico? A questão surge-nos, sem demora ou dificuldade, logo que entramos do labiríntico domínio quântico. Domínio pleno de becos sem saída, de lugares a que sempre se parece retornar, de percursos tortuosos e desorientadores, mas que para o qual, a meu ver, na literatura, seja esta filosófica ou não, existem apenas três vias de acesso: a via formal, a via historicista e a via conceptual. A via formal passa pela apresentação dos postulados, do formalismo e do elegante aparato matemático da Mecânica Quântica. Esta é a via que encontramos, principalmente, na literatura filosófica de inspiração analítica1. Esta será a via mais rápida e, actualmente, mais comum de entrada nos chamados problemas da medição e da não-localidade. 1 Veja-se, a exemplo, o livro de Pierter E. Vermass (1999), A philosopher’s understanding of quantum mechanics, Cambridge: Cambridge University Press, ou o capítulo de Michael Dickson (2007), “Nonrelativistic Quantum Mechanics”, presente no livro Philosophy of Physics Part A, Amesterdam: Elsevier, pp. 275-415. 3 A via historicista, por seu turno, passa, principalmente, pela narrativa do desenvolvimento da Física das primeiras três décadas do século XX. Sendo que, em muitos casos, recua até à Física do século XVII, fazendonos recordar o velho debate sobre a natureza da luz para o relacionar com a fundação da Mecânica Quântica. Esta é a via que é percorrida, principalmente, na literatura filosófica de inspiração francesa2. Por fim, confrontar a quem via a conceptual. percorre Esta com passa uma por fazer experiência de pensamento. Usualmente, é escolhida, para esse efeito, a chamada experiência de dupla fenda.3 Esta via é aquela se encontra, principalmente, na literatura filosófica que, à falta de melhor, designarei por empirista4. 2 Desde o livro de Bachelard, G. (1951), L’activité rationaliste de la physique contemporaine Paris: Presses Universitaires de France ao livro de Omnès, R. (1999), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton University Press (cuja edição francesa surgiu um ano mais tarde: Comprendre la mécanique quantique, EdP Sciences (2000)), ou do mesmo Omnès. R. (2006), Les indispensables de la mécanique quantique, Paris: Odile Jacob. 3 Experiência que, como tantas vezes ocorre com as experiências de pensamento, já foi realizada em laboratório, tendo obtido os resultados esperados. Cf., por exemplo, Arndt, Markus; Nairz, Olaf e Zeilinger, Anton (2003), Quantum interference experiments with large molecules Am. J. Phys. 71 (4), October 2003, pp. 319-325. 4 Por exemplo, o livro de Osvaldo Pessoa Jr. (2003), Conceitos de Física Quântica, São Paulo: Livraria da Física, o texto do filósofo americano Richard F. Kitchener (1988), The World view of contemporary physics: does it need a new metaphysics?, ou mesmo os primeiros capítulos do volume III das Lectures on physics de Richard Feynman 4 Estas sentido três de vias, uma embora mesma distintas, conclusão. A encaminham-nos saber: um no objecto quântico é uma entidade com propriedades tanto das ondas, como das partículas. Uma entidade sobre a qual, no já distante ano de 1928, Lord Eddington afirmava: “Podemos dificilmente descrever tal entidade como uma onda ou como uma partícula; talvez como compromisso seja melhor chamá-la de “ondícula””5. Este compromisso proposto por Eddington, no entanto, não teve, nem tem tido, qualquer eco na Filosofia da Física Quântica. Porquê? A que se deve esta ausência? Ou como coloca, embora com ironia, o filósofo Norueguês Arne Naess: porque não aceitamos esta generosa oferta de Eddington?6 A resposta é-nos dada por Margenau. Em explícita recusa às “ondiculas”, este afirma: (1964) que embora seja um livro de Física é referenciando repetidamente em textos filosóficos. 5 “We can scarcely describe such an entity as a wave or as a particle; perhaps as a compromise we had better call it a "wavicle". Eddington, A. (1928), The Nature of Physical World, New York: The MacMillan Company, p. 201. (tradução nossa) 6 Cf. Arne Naess (2005), The Selected Works of Arne Naess, Dordrecht: Springer, p.62. 5 “Para clarificar o problema fazemos notar para começar que, obviamente, as incompatíveis; propriedades das adicioná-las como ondas e das se elas partículas fossem são meramente diferentes não faz sentido. É apropriado dizer que um certo animal é um cavalo e uma besta de carga, mas não que é um cavalo e uma vaca.”7 Está implícito nestas palavras de Margenau que afirmar que uma entidade possui o conjunto de propriedades de X, não é outra coisa que afirmar que essa entidade é X. Ou dito de outra forma, afirmar que uma entidade possui, por exemplo, as propriedades das ondas, é afirmar que essa entidade é uma onda. De igual modo, dizer que de uma entidade possui o conjunto de propriedades das partículas, é dizer que consequência, essa o entidade mesmo é sucederá uma com partícula. as E, por entidades que declaramos possuírem as propriedades das vacas, dos cavalos ou das bestas de carga, onde diremos de cada uma delas, e respectivamente, que é uma vaca, que é um cavalo ou que é uma besta de carga. 7 “To clarify the problem we note to begin with that the obvious properties of waves and particles are incompatible; adding them together as though they are merely different does not make sense. It is proper to say that certain animal is a horse and a beast of burden, but not a horse and a cow”, Margenau, Henry (1977), The Nature of Physical Reality, p. 321. (tradução nossa) 6 Por outro lado, uma entidade poderá ser um cavalo e uma besta de carga - como, de forma implícita, indica Margenau - na medida em que as propriedades dos cavalos e das bestas de carga, embora diferentes, são compatíveis. Nomeadamente, esta entidade, que possui as propriedades tanto dos cavalos como das bestas de carga, será um cavalo de carga. Tal como aqueles cavalos que cartam com os turistas pelas curvas da Serra de Sintra. Contudo, no caso das vacas e dos cavalos, as suas propriedades são incompatíveis e não meramente diferentes. Como tal, uma entidade a que possuísse as propriedades dos cavalos e das vacas – a que, e fazendo uso da mesmo lógica de geração de neologismos de Eddington, poderíamos designar por “vacalo”8 – tratar-se-ia de uma entidade com uma dupla natureza. Seria vaca e cavalo. E poder-se-á afirmar o mesmo das partículas e das ondas do que anteriormente afirmámos das vacas e cavalos. Assim, tal como os “vacalos” aqui congeminados, também as tais “ondículas” de que nos fala Eddington seriam entidades com uma dupla natureza. Seriam ondas e partículas. Ou seja, das palavras de Margenau compreende-se que aceitar a “ondícula” seria aceitar que 8 Poderíamos imaginar, inspirados, por ventura, em As Viagens de Marco Polo, uma criatura metade vaca e metade cavalo. Por exemplo, com uma nobre cabeça de equídeo e uma vulgar traseira de bovino. Contudo, neste caso, teríamos um animal cuja cabeça identificaríamos com as dos cavalo e uma traseira que identificaríamos com as das vacas, mas não teríamos um animal que identificássemos integralmente tanto com os cavalos, como com as vacas. Tal criatura está, de resto, fora do alcance da imaginação. 7 uma entidade que fosse dupla na sua essência. Seria aceitar uma identidade que fosse dupla. Ora, esta duplicidade intrínseca ao termo “ondículas” contradiz a grande coluna vertebral da lógica desde os Gregos. Portanto, aceitar as “ondículas” seria tropeçar na lógica mais basilar e tombar, de cabeça, de encontro ao mais robusto dos paradoxos. É, pois, inteligível que na literatura sobre o domínio quântico muito rareie o termo “ondícula”. Esta literatura, ao invés de “ondícula” tem preferido fazer uso da expressão “dualismo onda-partícula”. No entanto, esta preferência não é, a meu ver, nem inocente, nem inócua. Ela revela um deslocamento ontológico subtil mas decisivo. Um deslocamento que se denuncia em afirmações como a seguinte, do punho de Nikolic: “Em livros introdutórios à Mecânica Quântica, […] o estranho carácter conceptual da Mecânica Quântica é muitas vezes verbalizado em termos da dualidade onda-particula. De acordo com esta dualidade, os objectos microscópicos fundamentais, como os electrões e os fotões, não são nem puras partículas, nem puras ondas, mas tanto ondas como partículas. Ou mais precisamente, em algumas condições eles comportam-se como ondas enquanto que em outras condições eles comportam-se como partículas”9 9 “In introductory textbooks on QM,[…] a conceptually strange character of QM is often verbalized in terms of wave-particle duality. According 8 Na primeira parte desta citação Nikolic afirma-nos, equivocamente, que, de acordo com o chamado dualismo ondapartícula, os “objectos microscópicos fundamentais” são entidades com uma natureza dupla, são “tanto ondas como partículas”. Isto seria, no entanto, ir precisamente ao encontro do que Eddington justamente proponha designar por “ondículas” e do doloroso paradoxo que lhe está inerente. Não haveria, então, qualquer diferença de significado entre a expressão “dualismo onda-partícula” e o termo “ondícula”. Porém, na segunda parte desta mesma citação, Nikolic emenda a mão, e esclarece que, afinal, de acordo com o dualismo onda-partícula, fundamentais”, os cuja ditos natureza “objectos agora não microscópicos qualifica, são entidades que se comportam ora à maneira das ondas, ora à maneira das partículas. Da primeira parte desta citação para a sua segunda, verificamos um resvalamento do nível ontológico para um nível que poderíamos considerar comportamental. Se na primeira parte da citação, era suposto que os “objectos to this duality, fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles fundamental microscopic objects such as electrons and photons are neither pure particles nor pure waves, but both waves and particles. Or more precisely, in some conditions they behave as waves, while in other conditions they behave as particles.”, Nikolic, H. (2007), “Quantum Mechanics: Myths and Facts” in Foundations of Physics,37, p. 1567. (tradução nossa) 9 microscópicos fundamentais” tinham uma identidade dupla (partículas e ondas), o que fica suposto na segunda parte é que estes objectos têm uma única identidade susceptível de um duplo comportamento. Esta citação de Nikolic é exemplar pois, tal como nesta, toda a literatura sobre o domínio quântico, por uma via ou outra, inicialmente nos encaminha no sentido da conclusão que um objecto quântico é uma entidade que possui as propriedades das ondas e das partículas, que um objecto quântico é uma ondícula. Porém, no momento seguinte, esta mesma literatura desvia-se de tal dolorosíssima conclusão e assume, somente, que um objecto quântico é uma entidade que, de algum modo, ora se comporta como se fosse uma onda, ora se comporta como se fosse uma onda. Os objectos quânticos são então apresentados, qual Dr. Jekyll e Mr. Hyde, como entidades físicas acometida por dupla personalidade, por uma dupla natureza, no caso, um dualismo onda-partícula. Em suma, encaminham embora no todos sentido os caminhos das da paradoxais literatura nos “ondículas”, subitamente (e subtilmente) somos desviados em direcção à ambígua expressão “dualismo onda-partícula” e sua consequente indeterminação ontológica: um objecto quântico não é nem onda, nem partícula e, muito menos, “ondícula”. 10 Eis que nos surge a questão: então, do que falamos quando falamos de objectos quânticos? Afinal, o que é um objecto quântico? Trata-se, pois, de uma questão antiga e que já terá sido por mais de mil vezes repetida. Contudo, trata-se igualmente de uma questão sem bibliografia. O que será compreensível pois, se ao seguir por qualquer uma das três vias em que se divide a literatura sobre o domínio quântico, chegamos a um lugar onde nos perguntamos pela natureza dos literatura objectos dá-nos a quânticos, sensação perguntamos que julgamos já porque a saber a resposta. Uma resposta que, pela sua natureza paradoxal, não conseguimos comportar, aceitar ou compreender. De certo modo, seguindo a literatura, a resposta antecederia a questão. Troca-se a resposta paradoxal pelo paradoxo de uma questão, não retórica, que é antecedida pela sua resposta. E de paradoxo em paradoxo chegamos à conclusão que a questão da natureza dos objectos quânticos, embora seja uma questão de natureza filosófica (pois perguntamos pelo conceito) esta é, igualmente, uma questão esquecida pela literatura filosófica. Literatura esta onde todas a suas vias se têm focado, principalmente, no chamado problema da medição10. 10 Isto mesmo é explicitamente afirmado por autores Arntzenius, Guido Bacciagaluppi, Chuang Liu, Brigitte como Frank Falkenburg, 11 Mas, se o problema da natureza dos objectos quânticos ficou em aberto, como se pôde constituir uma teoria como a Mecânica Quântica? Por outro lado, não será o problema da medição fruto da forma como se constituiu a Mecânica Quântica e, por consequência, do tal problema da natureza dos objectos quânticos? E, por fim, não nos levará a actual literatura filosófica, por algum encantamento com a Mecânica Quântica, por maus caminhos, ou melhor, para um lugar equivocado? Para um lugar afastado de um outro a partir do qual se possa pensar a estranha natureza dos objectos quânticos? Comecemos pela primeira destas questões: como se pôde constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o problema da natureza dos objectos quânticos? Steven French, Tim Maudlin, entre outros, no curioso Foundations and Philosophy of Physics editado John Symonns e Juan Ferrer, que ainda aguarda publicação e que me foi facultado por John Symonns, a quem agradeço. 12 2. A constituição da Mecânica Quântica. A Mecânica Quântica constitui uma generalização racional das teorias clássicas da Física. Esta é, a meu ver, a sua essência. E esta é, igualmente, quanto a mim, a pedra angular do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica11. 11 Assim parece ser, igualmente, a tese defendida por Peter e Alisa Bokulish no seu artigo, publicado em 2005, intitulado “Niels Bohr’s Generalization of Classical Mechanics” (in Foundations of Physics, Volume 35, Number 3, Springer, pp. 347-371). Digo que parece pois, embora todo o artigo se desenvolva no sentido de argumentar em favor de que, para Bohr, a Mecânica Quântica é uma generalização racional da Física Clássica, estes autores propõem-se mostrar “ the central role played by his [Bohr] thesis that quantum theory is a rational generalization of classical mechanics” (p. 347 - abstract). A diferença reside no facto de “Física Clássica” e “Mecânica Clássica” não serem sinónimos. O Electromagnetismo faz parte, igualmente, da chamada Física Clássica. Esta distinção pode parecer de menor importância, mas não o é. É uma distinção importante, em primeiro lugar, pela confusão que gera. Confusão que surge quando, no dito artigo, os mencionados autores não só não comentam esta distinção entre Física e Mecânica, como são corrigidos pela própria citação de Bohr que apresentam logo na segunda página, onde Bohr se refere, explicitamente, ao Electromagnetismo. A confusão criada pelos autores do referido artigo cresce quando dão como exemplo de conceito de Mecânica Clássica, na quinta página, o “electric field value”. Muito dificilmente um conceito da Mecânica. E, duvidosamente um conceito. Pois trata-se de um “valor”, uma quantidade, do campo eléctrico. A diferença entre “Física Clássica” e “Mecânica clássica” é importante, em segundo lugar, pois, como se tentará aqui mostrar, a Mecânica Quântica é fruto de uma generalização tanto dos conceitos do Electromagnetismo, como da Mecânica Clássica. Logo, ao não se cuidar da distinção entre Mecânica Clássica e Electromagnetismo Clássico percebe-se mal a constituição da Mecânica Quântica. Estas falhas de rigor são particularmente graves e estranhas. Não só porque surgem numa revista como a Foundations of Physics, mas, igualmente, pelo facto de Alisa Bokulish ser uma reputada Filosofa da Física, sendo inclusive a responsável pela entrada dedicada ao princípio da correspondência na stanford encyclopedia of philosophy. Portanto, embora semelhantes, a tese que aqui distingue-se da de Alisa e Perter Bokulish por eu defender que a essência do pensamento de Bohr passa 13 São duas surpresa teses a que, quem porventura, esteja podem familiarizado causar (mesmo alguma que seja distantemente) com a literatura filosófica, científica ou histórica, dedicada à Mecânica dos quantas. No caso da primeira tese, a surpresa virá porque é comum enfatizar-se o carácter revolucionário da Mecânica Quântica. Tão profundamente revolucionário que teria levado à definitiva cisão da Física entre aquela que é Clássica, e que contém, desde a Mecânica de Newton até às relatividades de Einstein, passando pelo Electromagnetismo de Maxwell e a Termodinâmica, e a outra que é Moderna. Que, em boa verdade, até se poderia denominar por Física Quântica. Pois a Física Mecânica Moderna Quântica é constituída, e a sua na sua essência, descendente pela directa, a Electrodinâmica Quântica. É como se existissem duas eras na Física: antes da Mecânica Quântica; depois da Mecânica Quântica. A minha segunda tese – a que se refere à pedra angular do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica – poderá surpreender, por sua vez, porque é comum, mesmo na literatura filosófica, atribuir-se esse estatuto ao que se por este considerar a Mecânica Quântica como uma generalização racional das teorias clássicas da Física e não apenas da Mecânica Clássica. 14 designa, frequentemente, e talvez de forma imprópria12, por princípio da complementaridade. No entanto, a meu ver, o chamado princípio da complementaridade não será tanto o pilar mas o pináculo do pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica, não aquilo que funda mas aquilo que fecha. Por ocupar esse lugar de culminante a complementaridade será mais visível e, talvez por isso, mais comentada. Contudo e prosseguindo com a metáfora arquitectónica – a meu ver, o pensamento de Bohr sobre a Física Quântica conclui-se com a complementaridade, precisamente na mas tem o tese de que a seu suporte e coesão Mecânica Quântica é uma generalização racional das teorias físicas clássicas. Esta tese de Bohr percorre todo o seu trabalho sobre a Mecânica Quântica. Encontramo-la, nas suas primeiras aproximações, em textos ao longo na década de 2013. Em particular, no próprio texto onde, pela primeira vez, surge a tal “complementaridade”14. Ela, contudo, surge-nos com maior frequência e de modo um pouco mais claro em textos do 12 Digo “talvez de forma imprópria”, pois Bohr nunca fez uso dessa expressão ao longo da sua obra. O físico dinamarquês fala apenas em “complementaridade”. Isto mesmo é realçado por Henry Folse em Folse, Henry (1985), The Philosophy of Niels Bohr: The Framework of Complementarity, Amsterdam: North-Holland, p. 18. 13 Conferir por exemplo, Bohr, Niels (1922), “The fundamental postulates of the quantum theory” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. R. ed., Amsterdam : North-Holland, 1976, p. 356 ou Bohr, Niels (1923), idem, p. 588. 14 Conferir Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584. 15 final de vida de Bohr. Num desses textos, publicado em 1958, quatro anos antes da sua morte, o físico dinamarquês, ao rever o processo que foi iniciando com descoberta do quantum de acção por parte de Planck, afirma: “O problema com que os físicos foram confrontados [perante a descoberta de Planck] foi, como tal, o de desenvolverem uma generalização racional da física incorporação harmónica do quantum clássica de que acção. permitisse Depois de a uma exploração preliminar da evidência experimental […] esta difícil tarefa foi finalmente realizada.”15 A difícil tarefa realizada pelos físicos a que Bohr aqui faz menção concretizou-se na Mecânica Quântica. É à narração do processo de constituição desta teoria que ele dedica esta parte do seu texto aqui citado. Assim, embora Bohr não o diga, aqui, explicitamente, das palavras da citação anterior conclui-se com naturalidade que, segundo o físico dinamarquês, a Mecânica como uma generalização racional Quântica foi constituída da física clássica. A 15 “The problem with which physicists were confronted was therefore to develop a rational generalization of classical physics, which would permit the harmonious incorporation of the quantum of action. After a preliminary exploration of the experimental evidence […] this difficult task was eventually accomplished”. Bohr, Niels (1958), “Quantum Physics and Philosophy” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of quantum physics II (1933-1958), Kalckar, J. ed., North-Holland: Amsterdam, 1996, p. 389. (Tradução minha) 16 questão parece então ser: o que quer dizer Bohr com “generalização racional da física clássica”? Ele não nos oferece uma resposta directa e clara. Tal é, de resto, característico em Bohr. É o seu “estilo”, como dirão alguns16. Contudo, julgo ser possível entende-lo começando por atender, em primeiro lugar, ao que o próprio afirma na seguinte passagem de um outro texto : “Na procura de uma formulação de tal generalização [racional] o nosso único guia foi apenas o chamado argumento da correspondência.”17 O que aqui Bohr chama de “argumento da correspondência” é, na verdade, aquilo que o próprio usualmente designava e é assim, de resto, que é conhecido na literatura em geral - por princípio da correspondência. Princípio de que foi autor e acerca do qual, no tal célebre texto onde pela primeira vez surge a “complementaridade”, havia confessado: 16 Conferir, por exemplo, Bokulish, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition),Zalta, E.N.(ed.),(URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2 010/entries/bohr-correspondence/), p.15. 17 “In the search for the formulation of such a generalization, our only guide has just been the so-called correspondence argument”. Bohr, Niels (1939), “The causality problem in Atomic Physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933– 1958), Kalckar, J. ed., Amsterdam: North-Holland, 1996, p. 305. (Tradução minha) 17 “O propósito generalização de olhar racional a das teoria teorias quântica clássicas como uma levou[-me] à formulação do chamado princípio da correspondência.”18 Nas duas citações anteriores Bohr revela que a tese de que a Mecânica Quântica é uma generalização racional da Física clássica não é fruto nem de uma análise sobre o processo histórico de que levou à constituição desta teoria, nem de uma interpretação acerca dessa. Trata-se do seu programa enquanto fundador da Mecânica Quântica. Foi com o “propósito de olhar para a Mecânica Quântica como uma generalização da Física clássica” que incorporasse o quantum de acção “de” Planck, que Bohr criou e desenvolveu, durante a gestação da teoria quântica actual, o princípio da correspondência. E foi fazendo uso deste princípio, tendo-o como “único guia”, como ferramenta privilegiada, que procurou a tal generalização racional da Física Clássica. Isto é, foi, pelo menos em parte, fazendo uso do princípio da correspondência que Bohr procurou constituir a Mecânica Quântica. Poder-se-á dizer que ele mesmo o confessa, reforçando a nossa certeza do papel instrumental, mas decisivo, que o princípio de correspondência desempenhou na construção da Mecânica Quântica. Mas o que 18 “The aim of regarding the quantum theory as a rational generalisation of the classical theories led to the formulation of the so-called correspondence principle.” Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 584. (Tradução minha) 18 afirma este instrumento da vontade de Bohr? Como se constituiu a Mecânica Quântica a partir deste princípio? De que modo o princípio da correspondência permite entender que a Mecânica Quântica seja uma generalização racional da Física Clássica? 2.1. O Princípio da Correspondência O princípio da correspondência (“Korrespondenzprinzip”19) tem a sua origem no contexto daquilo que se designa por Teoria Quântica do Átomo ou Teoria Quântica Antiga (em contraponto ao que seria, posteriormente, a nova teoria quântica, isto é, a Mecânica Quântica). A Teoria Quântica Antiga foi proposta por Bohr em 1913. Esta tinha como ponto de partida o modelo atómico de Rutherford. Modelo que é usualmente designado por modelo planetário do átomo. Pois, à imagem dos sistemas planetários, o átomo seria formado por um corpo central - o núcleo - de carga total positiva, onde estaria concentrada a maioria da massa do átomo, em redor do qual orbitavam corpos de menor massa e de carga negativa – os electrões. Haveria assim uma analogia simples e - talvez por isso - encantadora entre o mundo à escala do 19 Conferir, por exemplo, a obra Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.315. 19 ínfimo e o mundo à escala do astronómico, entre a escala dos electrões e a escala dos planetas. Um à imagem de outro, como se se espelhassem na figura, embora distintas na escala. A analogia sedutora. imagética Pois de trazia Rutherford consigo era a certamente sensação de inteligibilidade fácil que todas as coisas cujas feições reconhecemos sempre transportam consigo. E o seu modelo tinha igualmente resultados a recentes virtude – de à estar época, de acordo com entenda-se - os das experiências atómicas com radiação alfa. Contudo, como não há “bela sem senão”, e tal como qualquer livro de história da Física Moderna ensinará, o modelo de Rutherford tinha, entre outros, o defeito fatal de ser incapaz de explicar a estabilidade da matéria. Segundo o Electromagnetismo um corpo electricamente carregado, como é o caso do electrão, ao mover-se emite energia sob a forma de radiação electromagnética. Por consequência, se os electrões dentro do átomo estão em movimento, como o modelo de Rutherford declarava, e se aceita o Electromagnetismo, isso significava que os electrões intra-atómicos iriam perder, progressivamente, energia. Por conseguinte, os electrões dentro de um átomo, acabariam por perfazer orbitas cada vez mais fechadas, cada vez mais próximas, numa espiral vertiginosa que os levariam, rápida e inevitavelmente, a 20 colidir com o núcleo. A estabilidade dos átomos e, como tal, de toda a matéria supostamente constituída por estes, seria um incómodo mistério. Pelo menos, para quem quisesse estar com o modelo de Rutherford. Ora, era precisamente este o mistério que Bohr – que se encontrava em Manchester a trabalhar com Rutherford - se propunha solucionar. Com esse fim, na segunda metade de 1913, publicou, em três partes, o artigo “Sobre a constituição dos átomos e das moléculas”20. Deste tríptico, que curiosamente, Ciência fundamental intimidade e Teoria que Filosofia, Magazine”21, “Philosophical chamada pela constam Quântica denota foi os Antiga. entre a publicado no fundamentos da Esta assentava principalmente, como o próprio Bohr explicaria alguns anos mais tarde, nos seguintes postulados: “I. Um sistema atómico pode existir, de forma permanente, apenas numa descontínua série de de estados valores de correspondentes energia. E, por a uma série consequência, qualquer alteração de energia do sistema, incluindo a emissão e a absorção de radiação electromagnética, deve ter lugar 20 Conferir Bohr, N. (1913), “On Molecules” in Niels Bohr Collected Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish 1981, pp. 159-240. 21 A mesma revista onde entre, 1861 “On Physical Lines of Force” trabalho the Constitution of Atoms and Works, Vol. 2: Work in Atomic ed., Amsterdam: North-Holland, e 1862, Maxwell havia publicado seminal do Electromagnetismo. 21 como uma transição completa entre esses dois estados. Estes estados serão designados por “estados estacionários” do sistema. II. A radiação absorvida ou emitida durante a transição entre dois estados estacionários […] possui uma frequência ν, que é dada pela relação E' — E" = h ν, onde h é a constante de Planck e onde E' e E" são os valores da energia dos dois estados considerados.” 22 Bohr aceita, como propunha Rutherford, que os electrões no átomo se movimentam ao redor do núcleo em órbitas circulares e periódicas23. São, como tal, órbitas descritas pela Mecânica Clássica. Contudo, em contradição com 22 I. That an atomic system can, and can only, exist permanently in a certain series of states corresponding to a discontinuous series of values for its energy, and that consequently any change of the energy of the system, including emission and absorption of electromagnetic radiation, must take place by a complete transition between two such states. These states will be denoted as the "stationary states" of the system. II. That the radiation absorbed or emitted during a transition between two stationary states […] possesses a frequency ν, given by the relation E' — E" = h ν where h is Planck's constant and where E' and E" are the values of the energy in the two states under consideration.”, Bohr, N. (1918), “On the Quantum Theory of Line-Spectra” in Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, p.71. (Tradução minha) 23 Conferir Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981, p.162. 22 Rutherford (e com a Mecânica Clássica) Bohr propõe, através do primeiro postulado, que os electrões não podem descrever trajectórias arbitrárias ao redor do núcleo, como é o caso dos corpos descrever celestes orbitas do sistema indexadas a solar. um Apenas determinado podem estado estacionário de energia. Isto é, os electrões distribuem-se ao redor do núcleo atómico não em órbitas à imagem das órbitas planetárias, que a Mecânica Clássica descreve como um basculante jogo de equilíbrio entre as forças centrífuga e de atracção gravítica, mas em órbitas fixas – também chamadas de orbitais - relativas a uma série de estados discretos de energia24: Os ditos “estados estacionários”. Por consequência, num átomo não existem análogos nem aos cometas, nem aos satélites. Formalmente, a sucessão destas órbitas, desses estados discretos de energia, é-nos dada pela série de números naturais25, simbolizando-se por “n” o nível de um determinado estado estacionário. O estado estacionário de menor energia, também dito de fundamental, corresponde ao 24 Cada estado estacionário de energia pode, no contexto da Teoria Quântica Antiga, ser de igual forma descrita como um jogo entre Forças: a de atracção electromagnética e a centrípeta. Esta foi, aliás, a aproximação inicial de Bohr ao problema do átomo. Contudo, será um jogo onde o resultado é sempre um aborrecido empate para cada desses estados estacionários. Resultado identicamente estranho para as teorias físicas clássicas e, em particular, para a Mecânica Celeste. 25 Considera-se aqui que o “zero” não é um número natural. Terá sido uma opção de Bohr em conformidade com o que é tradicional em Física Clássica. Que, à margem do debate sobre a natureza do “zero”, tem considerado que o “um” é o primeiro dos naturais. 23 primeiro nível de energia e é representado por n=1. O seguinte estado estacionário de energia, o segundo nível de energia, é representado por n = 2 e assim por diante. Por outro lado, e tal como se afirma no Electromagnetismo, Bohr assume que a diminuição da energia de um electrão tem como efeito a emissão de radiação de equivalente valor quantitativo de energia. É uma consequência do princípio da conservação da energia que Bohr, aqui, assume por completo. Contudo, dado que, pelo primeiro postulado, as órbitas atómicas são caracterizadas pela quantidade de energia que lhe é correspondente, essa emissão de radiação não pode ser causada pelo movimento dos electrões em redor do núcleo. Assim, e agora em contradição com o Electromagnetismo, Bohr propõe, no segundo postulado, que a emissão (e a absorção) de radiação é causada apenas pela transição electrónica entre estados estacionários de energia. Dado que estes estados, por força do primeiro postulado, são numericamente discretos, então o espectro da radiação de um átomo é, necessariamente, descontínuo. Esta consequência dos dois postulados contradiz o Electromagnetismo, pois, segundo esta teoria, o movimento do electrão seria a única causa da emissão da radiação e esta apresentar-se-ia num espectro contínuo. Ou seja, decorre desta teoria de Bohr que o espectro de um átomo não é como um arco-íris, como seria de esperar pelo 24 Electromagnetismo, mas um conjunto de riscas separadas, cada uma de sua “cor”, cada uma referente a um determinado estado estacionário de energia. Mas o mais extraordinário é que isto implica que um electrão, ao transitar de um estado de energia para outro, de uma órbita para outra, fá-lo sem passar por lugares intermédios. Um electrão, segundo a Teoria Quântica Antiga, realizava uma espécie de salto – um salto quântico, como ficou celebrizado, principalmente na literatura científica – entre dois estados de energia. Salto, tanto maior (ou menor) quanto a diferença de energia da radiação entretanto, emitida por ou absorvida explicar a correspondente. existência e Fica, distribuição discreta dos tais estados estacionários. São postulados de forma quase Ad-Hoc. A primeira teoria quântica de Bohr, por muito bizarras que fossem as suas consequências, tinha o mérito de oferecer uma explicação tanto para estabilidade da matéria, como para a sequência das descobertas sobre o espectro atómico realizadas, principalmente, no início do século XX. Ou seja, resolvia, em parte, os mistérios que o modelo atómico de Rutherford havia libertado. O preço a pagar pela resolução desses mistérios pareceria ser um afastamento radical em relação à Física 25 Clássica. Porém, a teoria de Bohr era, na realidade, e tal como escreve Andrade e Silva: “[…] um fascinante monstro híbrido. Descreve os átomos como minúsculos sistemas solares em que os electrões giram em torno de núcleos segundo as leis da Mecânica de Newton. Mas, de todos os movimentos classicamente possíveis, apenas retém um número muito pequeno, ou seja, aqueles que respeitam a regra dos quanta.”26 Como diz Andrade e Silva, a primeira teoria quântica de Bohr era um “fascinante monstro híbrido”. Por um lado, tinha sucesso onde os modelos “mais” clássicos do átomo falhavam. Por outro, era o produto de um processo a que, de modo pitoresco, pode ser descrito como “uma no cravo, outra na ferradura”. teorias Bohr, físicas ora respeitava clássicas, o ora fundamental as das transgredia. Nomeadamente, através da imposição – via postulado - da quantificação das órbitas. habilidosa e esforçada incorporar no modelo de Tudo isto conseguir, atómico de já de na tentativa algum Rutherford a modo, chamada hipótese de Planck, ou postulado quântico de acção. Segundo esta, e fazendo uso de palavras do próprio Bohr, “a energia 26 Andrade e Silva, João e Lochak, G. (1969), Quanta, grains et champs (tradução do francês por Manuel Pina, “Quanta, Grãos e Campos”), Lisboa: Instituto de novas profissões, pp.71-73. 26 radiada por um sistema atómico não sucede de uma forma contínua, tal como é assumido pelo electromagnetismo, mas, pelo contrário, sucede em emissões distintamente separadas”27. Em suma, do ponto vista formal, a proposta de Bohr compunha-se, reconhece, “na como o introdução próprio nas leis físico [do dinamarquês movimento do electrão] de uma quantidade estranha ao electromagnetismo clássico, i.e. a constante de Planck ou, como é frequente ser chamada, o quantum de acção elementar”28. E, por esta razão, o modelo atómico de Bohr é, geralmente, classificado como semi-clássico29. Importa salientar que o valor numérico da constante de Planck é mínimo30. Como tal, o quantum de acção elementar só é quantitativamente significativo quando estão envolvidas energias igualmente mínimas. Este é o caso das energias correspondentes às transições entre os primeiros estados estacionários. Contudo, este não é o caso para as 27 “the energy radiation from an atomic system does not take place in the continuous way assumed in ordinary electrodynamics, but that it, on the contrary, takes place in distinctly separated emissions”, Bohr, N. (1913), “On the Constitution of Atoms and Molecules” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 2: Work in Atomic Physics (1912-1917), Hoyer, Ulrish ed., Amsterdam: North-Holland, 1981p.164 (Tradução minha) 28 “to introduce in the laws in question a quantity foreign to the classical electrodynamics, i. e. Planck's constant, or as it often is called the elementary quantum of action.”, idem, p. 162 (Tradução minha). 29 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 278. 30 Actualmente, considera-se para a constante de Planck o valor h=6.62606896(33)×10−34 J.s 27 transições electrónicas nos estados estacionários de valor “n” mais elevado. Deste modo, por um lado, não fará sentido introduzir directamente o postulado da quantificação das órbitas num sistema planetário, numa tentativa desesperada de manter a analogia entre planetas e electrões. Através da Teoria Quântica Antiga, tal não possível. Ela é apenas uma Física dos átomos, uma Física Atómica. Por outro lado, a progressiva perda de significância quantitativa do quantum de acção elementar leva a que, à medida que diferença se de percorrem energia entre os estados estes será estacionários a progressivamente menor. Como tal, por consequência do segundo postulado, onde se afirma que a frequência31 é directamente proporcional à diferença de energia, a diferença entre os valores da progressivamente frequência menor. será, Ou seja, de o igual espectro, forma, que é marcadamente discreto nos primeiros níveis, vai tomando, progressivamente, a figura de um espectro contínuo. Isto é, aproxima-se, pouco a pouco, do tipo de espectro, dito de “espectro clássico”, que é previsto pela Física Clássica. 31 Por comodidade de escrita, irá preferir-se aqui o termo “frequência” ao mais correcto “frequência temporal”. Assim, na falta de outro aviso, ao ler-se o primeiro deverá entender-se o segundo. 28 Neste sentido, na sucessão dos estados estacionários, estatisticamente32, verifica-se uma aproximação assimptótica nas previsões do valor da frequência, entre a Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. Ou, dito de outro modo, no limite dos estados estacionários de elevado valor de “n”, isto é, no chamado limite clássico, existe, estatisticamente, uma correspondência numérica entre a frequência da radiação emitida num “salto quântico” e a frequência resultante33 do movimento periódico do electrão no estado estacionário de “partida”. Esta é, de resto, a noção vulgar34 do princípio da correspondência. Contudo, como salienta Darrigol35, uma correspondência semelhante entre encontrada relativamente intensidade. físicas Neste caso clássica a outra a e quântica grandeza pode física: correspondência ser a ocorre, igualmente, no limite dos grandes números quânticos. Porém, aqui a correspondência é entre o valor da probabilidade de 32 De acordo com o postulado quântico, a emissão de radiação electromagnética é feita em quantidade discretas - fotão a fotão. Já no caso da “radiação clássica” a emissão é feita por uma quantidade contínua. Logo, a aproximação assimptótica não é relativa a uma emissão individual, mas relativa ao um conjunto de emissões. 33 Note-se que segundo a electrodinâmica clássica, um electrão com um movimento circular e constante radia uma onda electromagnética com uma frequência temporal idêntica à frequência do movimento do electrão. 34 Conferir Bokulish, Alisa (2009), Three Puzzles about Bohr’s Correspondence Principle, (artigo disponível em: http://philsciarchive.pitt.edu/4826) p.1. 35 Conferir Darrigol, Olivier (2009), “A simplified genesis of quantum mechanics” in Studies in History and Philosophy of Modern Physics, 40, p. 115. 29 transição entre dois estados estacionários e a amplitude da radiação.36 Na procura de um enunciado geral, que englobe estes dois tipos de correspondência entre físicas clássicas e quântica, e à falta de um que nos fosse concedido pelo próprio Bohr, poder-se-ia dizer que o princípio da correspondência afirma que, na zona onde o quantum de acção é, quantitativamente, pouco significativo, isto é, no limite clássico, a teoria quântica e as teorias clássicas aproximam-se - qual Aquiles da tartaruga - assimptoticamente nas suas previsões numéricas. Este é o sentido do enunciado do princípio da correspondência que é normal encontrar na literatura filosófica e que aparece, por exemplo, em Murdoch, no seu Niels Bohr’s Philosophy of Physics37. Entendido ofereceria deste uma modo, o referência, princípio à imagem da de correspondência um farol fiel, resistente e luminoso, para a construção de uma qualquer teoria quântica. Em particular, em conformidade com este 36 No Electromagnetismo assume-se que a radiação tem uma natureza ondulatória. Por conseguinte, a sua intensidade é determinada pela amplitude. Já no caso das teorias quânticas, a intensidade de uma linha espectral é determinada pela quantidade de fotões emitidas por uma frequência em particular. Assim, quanto mais provável for uma transição quântica de uma radiação em particular, mais fotões serão emitidos, ou seja, maior será a intensidade. 37 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 39. 30 entendimento do princípio da correspondência, as leis e as equações de uma qualquer física quântica deveriam ser construídas de tal forma que, no limite clássico, existisse uma correspondência numérica aproximada entre as que são quânticas e as que são clássicas. Isto mesmo é salientado pelo físico Max Born: “A ideia directriz (princípio da correspondência de Bohr) pode descrever-se Submetidas ao nas suas julgamento da linhas gerais experiência, do as seguinte leis da modo. física clássica provaram brilhantemente em todos processos dinâmicos, macroscópicos e microscópicos, incluindo o movimento dos átomos considerados como um todo (teoria cinética da matéria). Deve, portanto, estabelecer-se necessário que deverá […] a nova chegar aos como mecânica, mesmos postulado suposta incondicionalmente ainda resultados que desconhecida, a mecânica clássica.”38 Assim entendido, poder-se-ia dizer que o princípio de correspondência seria tão-somente um produto do que se pode designar por “bom senso” dos físicos. Dado que a Física Clássica tantas e tão repetidas vezes se mostrou válida, então, seria apenas de “bom senso” que a nova Mecânica, a 38 Born, Max (1969), Atomic Physics (tradução do inglês de Egídio Namorado, “Física Atómica“), Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian (1986), p.114. 31 Mecânica Quântica, ou qualquer outra teoria quântica, no limite dos grandes números quânticos chegasse, aproximadamente, aos mesmos resultados da frequência e da intensidade princípio que de a Física Clássica. correspondência Neste seria um sentido, o princípio de continuidade entre teorias, “incondicionalmente necessário” por força do “bom senso”. No entanto, esta necessária aproximação numérica entre as teorias quântica e clássica, é a meu ver, e tal como defende Alisa Bokulish, num texto de 2010, uma consequência do princípio da correspondência e não uma enunciação deste. Segundo Bokulish, o próprio Bohr, numa conversa com Rosenfeld – um dos seus discípulos mais próximos –, terá explicitamente rejeitado o entendimento do referido princípio que surgiu na citação de Born: “Léon Rosenfeld recorda a frustração de Bohr com o continuado mau entendimento do seu princípio. Quando Rosenfeld sugeriu a Bohr que o princípio da correspondência era sobre o acordo assimptótico entre as previsões quânticas e clássicas, Bohr enfaticamente argumento de protestou correspondência. e A respondeu: exigência "[esse] não de a que é o teoria quântica deve sobrepor-se à descrição clássica para baixos modos 32 de frequência não é de todo um princípio. É um requisito óbvio para a teoria.”39 O pretenso enunciado do princípio da correspondência que aparece na citação de Born, e que é tão popular, especialmente entre os físicos, é claramente rejeitado por Bohr. Não pelo seu conteúdo, mas por se tratar, a seu ver, de um “requisito óbvio” da teoria e, como tal, nem sequer precisar de ser explicitado sob a forma de um “princípio”. Assim, igualmente para Bohr, a correspondência numérica entre as teorias quântica e clássicas, no tal limite dos grandes números aplicação do designar por quânticos, “bom senso”. princípio será Este pelo seu uma sim, mera questão quase se carácter de de poderia regra do pensamento em geral. Ou seja, Bohr recusa o entendimento de Born do princípio da correspondência por considerar que esse entendimento é uma consequência óbvia de um princípio de bom senso do pensamento aplicado à Física. 39 “Léon Rosenfeld recounts Bohr's frustration at the continued misunderstanding of his principle. When Rosenfeld off-handedly suggested to Bohr that the correspondence principle was about the asymptotic agreement of quantum and classical predictions, Bohr emphatically protested and replied, “It is not the correspondence argument. The requirement that the quantum theory should go over to the classical description for low modes of frequency, is not at all a principle. It is an obvious requirement for the theory”, Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/boh r-correspondence/, pp 36-37.(Tradução minha) 33 Por outro lado, inferimos nesta posição de Bohr uma indicação segundo a qual o princípio da correspondência tem um outro sentido. Um sentido supostamente mais amplo e profundo. Este, creio eu, pode ser encontrado, logo na primeira vez que o físico dinamarquês dedica uma secção explicitamente ao princípio da correspondência. Afirma Bohr: “Consideremos mais cuidadosamente esta relação entre os espectros expectáveis com base na teoria quântica e a teoria ordinária da radiação [isto é, o electromagnetismo]. As frequências das linhas espectrais calculadas pelos dois métodos concordam completamente na região onde os estados estacionários estão pouco separados uns dos outros. […] Esta correspondência entre as frequências determinadas pelos dois métodos deve ter um significado mais profundo e nós somos conduzidos antecipar que se aplicará também às intensidades. […] Esta relação peculiar sugere uma lei geral para a ocorrência das transições entre estados estacionários.”40 40 “Let us now consider somewhat more closely this relation between the spectra one would expect on the basis of the quantum theory, and on the ordinary theory of radiation. The frequencies of the spectral lines calculated according to both methods agree completely in the region where the stationary states deviate only little from one another[…] This correspondence between the frequencies determined by the two methods must have a deeper significance and we are led to anticipate that it will also apply to the intensities.[…]This peculiar relation suggests a general law for the occurrence of transitions between stationary states.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series 34 Nesta longa citação, onde, no tal estilo por vezes pouco cuidado com a precisão das palavras, as teorias quântica e electromagnética são apresentadas como “métodos”, encontramos os dois tipos já referidos de correspondência entre as físicas quântica e clássica: de frequência e de intensidade. No entanto, a frase final, que o próprio Bohr colocou em itálico, revela que estas correspondências numéricas entre teorias sugerem uma lei geral. No caso, uma lei geral para a ocorrência das transições quânticas. Esta aparece-nos na seguinte passagem de um texto posterior: “A demonstração do acordo assimptótico entre o espectro e o movimento deu origem à formulação do "princípio da correspondência", de acordo com o qual a possibilidade de cada processo de transição relacionada condicionada pela presença de com emissão de radiação é um componente harmónico correspondente no movimento do átomo.”41 Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), Nielsen, J. Rud ed., Amsterdam: North-Holland, 1976, pp. 249–250. (Tradução minha) 41 “The demonstration of the asymptotic agreement between spectrum and motion gave rise to the formulation of the "correspondence principle", according to which the possibility of every transition process connected with emission of radiation is conditioned by the presence of a corresponding harmonic component in the motion of the atom.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Nature, Volume 116, Issue 2927, p. 848. (Tradução minha) 35 Aqui, o princípio de correspondência surge, não como uma mera aproximação numérica, mas como uma condição. É condição de possibilidade de uma transição entre estados estacionários, estados estes que correspondam a um componente harmónico do movimento do electrão num estado estacionário do átomo. Entende-se que Bohr se refira a esta correspondência como uma “lei” geral da teoria quântica. Pois, por um lado, essa correspondência aplica-se a todos estados estacionários e não apenas aos do limite clássico. Sendo, neste sentido, universal para os estados estacionários de energia dos átomos. Por outro lado, essa correspondência consiste na imposição de uma condição de possibilidade das transições entre estados quânticos: uma transição entre estados transição quântica, é estacionários possível se e de só se energia, ou existir um harmónico correspondente do movimento do electrão. Atentese que o movimento a que aqui se faz referência é o movimento circular e periódico do electrão em redor do núcleo. Estamos ainda dentro da imagem do átomo como um minúsculo sistema solar. Claro está que o enunciado anterior do princípio da correspondência pode parecer de interesse meramente formal e, por essa razão, ser muito específico da Física. Estaríamos, afinal, longe da promessa de ter uma lei geral 36 de profundo significado. Contudo, em boa verdade, este enunciado leva-nos num caminho, um pouco árido – talvez -, mas onde, no final, julgo que se cumpre a promessa. Quando Bohr descobriu esta relação de correspondência entre as transições quânticas permissíveis e os harmónicos do movimento do electrão, ele descobriu algo fundamental sobre a teoria quântica. Por um lado, é preciso notar que, em física, diz-se “harmónico” o que é múltiplo inteiro de uma determinada frequência. Esta última é denominada “frequência fundamental”. Neste caso concreto, a frequência fundamental será a frequência do movimento do electrão no estado estacionário inicial. Ou seja, a quantidade de revoluções por unidade de tempo do electrão em redor do núcleo. Uma série particular de harmónicas facilmente compreensível é, por exemplo, a das oitavas42. Onde dizer primeira, segunda, terceira e quarta oitavas é o mesmo que dizer segunda, quarta, oitava e décima sexta harmónicas, em relação a uma determinada nota inicial. Ou seja, existe uma 42 Diz-se “oitava” a nota cuja frequência dista o dobro (oitava acima) ou a metade (oitava abaixo) em relação a uma outra. A título de exemplo, o dó de segunda tem uma frequência aproximada de 130,5 Hz. Logo, é uma oitava abaixo em relação ao Dó de 3, que tem uma frequência aproximada de 261,o Hz, e é uma oitava acima relativamente ao Dó de 1, a frequência fundamental desta série, que tem uma frequência aproximada de 62,25 Hz. Note-se que a frequência que é tripla da frequência fundamental é dita de terceiro harmónico do Dó de primeira, mas, no entanto, não é uma oitava mas uma quinta acima deste. 37 correspondência entre a diferença de frequências de notas que distam uma oitava e uma sequência particular de harmónicas da nota inicial. Assim sendo, as primeiras – as oitavas - podem ser descritas, na totalidade, a partir das segundas. De forma similar, o princípio da correspondência, ao enunciar-se como condição de que as transições quânticas só podem ocorrer para harmónicos correspondentes do movimento do electrão num determinado estado estacionário, leva a que as primeiras formalmente, – as transições descritas a quânticas partir das - podem segundas ser, – dos harmónicos. Ou seja, Bohr determina que a Teoria Quântica Antiga pode ser, em certa medida, descrita e desenvolvida fazendo-se o uso das propriedades dos harmónicos43. Mas como? O princípio da correspondência impõe que uma “transição relacionada com emissão de radiação” está condicionada pela existência de “um componente harmónico correspondente no movimento”. Isto significa, literalmente, que, neste caso, um electrão só pode transitar para um estado estacionário de tal forma frequência do que se multiplique, seu movimento. Isto por é, um que inteiro, a a duplique, triplique, quadruplique, etc. Seria o caso, análogo, da 43 Em particular, através do desenvolvimento desta correspondência são estabelecidas as regras de selecção de transições quânticas que estão na génese da Química actual. 38 Terra, por exemplo, só poder transitar para uma órbita planetária quando um ano fosse de 182 dias, 91 dias, 45 dias, etc. Estranho caso seria para um corpo como a Terra. Contudo, caso normal será para uma onda periódica, como é caso, idealmente, das ondas electromagnéticas44. Pois, esta relação de condição entre transições de estados e harmónicos lhes é característica. Quer isto dizer, e tal como enfatiza Pringe ao longo da sua tese doutoral45, o princípio da correspondência implica uma analogia formal entre a frequência do movimento e a frequência da radiação electromagnética. Mais especificamente, o referido princípio pressupõe, formalmente, uma analogia transições de estados estacionários e as entre as mudanças na frequência de uma radiação electromagnética. Ou dito ainda de outro modo, é como se, formalmente, um electrão, no que respeita as alterações do seu estado de movimento, fosse uma onda electromagnética. Estamos perante uma analogia fundamental. Em primeiro lugar, porque justifica e possibilita que a Teoria Quântica Antiga possa ser desenvolvida fazendo uso das propriedades dos harmónicos. Em segundo lugar, e mais importante, porque, a partir desta analogia formal entre os dois tipos referidos de frequência, é possível estabelecer uma 44 Conferir, a seguir, neste capítulo, página 87 e seguintes. Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter. 45 39 correspondência formal entre a Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. Assim, por um lado, podemos afirmar que estamos, para já, perante dois níveis do princípio da correspondência. O que por si só é uma conclusão interessante. Pois, se a literatura filosófica mais especializada no pensamento Bohriano se tem dedicado a debater qual dos anteriores é “o” princípio da correspondência46, a meu ver, a melhor forma de compreender o pensamento de Bohr é entender que existem vários níveis do referido princípio. O primeiro nível será o nível numérico, que consiste numa correspondência das previsões quantitativas da frequência e da intensidade, no limite clássico, entre a Teoria Quântica Antiga e o Electromagnetismo. O segundo nível será o nível formal, que, por sua vez, consiste numa correspondência entre os formalismos da Teoria Quântica Antiga e do Electromagnetismo. Note-se que através desta correspondência formal são deduzíveis correspondências numéricas. Pois, no limite as clássico, a frequência do movimento de um estado estacionário inicial é numericamente equivalente à frequência da emissão entre 46 Conferir Bokulich, Alisa (2010), "Bohr's Correspondence Principle" in The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Winter 2010 Edition), Edward N. Zalta (ed.),URL=http://plato.stanford.edu/archives/win2010/entries/boh r-correspondence 40 estados estacionários próximos. Por essa razão, porque um implica o outro, julgo que estamos perante dois níveis do referido princípio e não duas distintas. Note-se ainda que (ou três) formulações estas correspondências não implicam que a Teoria Quântica Antiga seja deduzível do Electromagnetismo. Sendo o inverso igualmente verdadeiro. Não existe uma continuidade directa entre a Teoria Quântica Antiga e qualquer uma das teorias físicas clássicas (ao contrário do que sucede entre as Mecânicas Relativista e Clássica), de tal despreocupadamente modo de uma que para se outra. possa A transitar separar estas teorias encontra-se a introdução do postulado quântico no modelo atómico e a sua consequência: os estados estacionários de energia, ou os estados quânticos. Porém, se o postulado gramatical separa quântico duas as separa, linguagens, como o uma regra princípio da correspondência liga-as, como um tradutor. Em particular, o princípio da correspondência permite que Teoria Quântica Antiga seja entendida como resultante de uma revisão do formalismo do Electromagnetismo de tal modo que incorpore o postulado quântico. Revisão que, pela sua natureza formal, só poderá ser realizada unicamente pela razão. Portanto, em certa medida, pode-se tomar a Teoria Quântica Antiga como uma generalização racional do Electromagnetismo clássico. A este propósito afirma Bohr: 41 “Embora o processo de radiação não possa ser descrito com base na teoria ordinária da electrodinâmica […] existe, no entanto, uma correspondência de longo alcance entre os vários tipos de possíveis transições entre os estados estacionários por um lado e os vários componentes harmónicos do movimento, por outro. Esta correspondência é de tal natureza que a teoria actual dos espectros [teoria quântica antiga] pode ser num certo sentido considerada como uma generalização racional da teoria ordinária da radiação [isto é, o Electromagnetismo].47 Como é salientado por Darrigol48, Bohr usa a expressão “num certo natureza assente sentido”, formal. – inteiramente É pois uma recorde-se formal a generalização correspondência – entre na a base de é apenas entre de teorias numa analogia da radiação frequência electromagnética e a frequência do movimento orbital do 47 “Although the process of radiation can not be described in the basis of the ordinary theory of electrodynamics […]there is found, nevertheless, to exist a far-reaching correspondence between the various types of possible transitions between the stationary states on the one hand and the various harmonic components of the motion on the other hand. This correspondence is of such a nature, that the present theory of spectra is in a certain sense to be regarded as a rational generalization of the ordinary theory of radiation.” Bohr, N. (1920), “Essays II: On the Series Spectra of Elements” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 3: The Correspondence Principle (1918–1923), J. Rud Nielsen, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1976), pp. 245–246. (Tradução minha) 48 Conferir Darrigol, Olivier (1992), From c-Numbers Berkeley: University of California Press, p. 138. to q-Numbers, 42 electrão. Não é a este nível, a meu ver, que Bohr considera que a Mecânica Quântica é uma generalização racional das teorias clássicas da Física. Entretanto, insinua-se já aqui o terceiro nível, e o mais fundamental, do princípio da correspondência: o nível conceptual. Porém, para o descobrir há que recuar e realizar um outro movimento. 2.2. A hipótese de De Broglie: a descoberta do domínio quântico. É bem conhecido o teorema matemático segundo o qual a série de harmónicos de um movimento periódico não é outra coisa senão a sequência de termos do chamado desenvolvimento de Fourier da posição. Isto é, cada um dos harmónicos do movimento (e a frequência fundamental), tal como toda a onda periódica, é uma onda plana sinusoidal. Significa isto que é às ondas planas sinusoidais que Bohr, no contexto da teoria quântica, se refere quando se refere, formalmente, às ondas. Por consequência, um electrão intraatómico, no seu movimento, pode ser tomado, formalmente, como se de uma onda plana sinusoidal (que também pode ser designada por “onda de Fourier”) em propagação se tratasse. 43 Pode não parecer, mas esta conclusão é da maior importância. Para já, por duas razões: em primeiro lugar, por ser este o fundamento do nível formal do princípio da correspondência. Formalmente, tanto a radiação, como os electrões, no seu movimento são ondas sinusoidais em propagação. E, por consequência, electrões e radiação são formalmente idênticos. Em segundo lugar, porque significa que estamos, de certa forma, muito próximos da proposta, absolutamente decisiva, de De Broglie, de 192449. Segundo esta proposta, no caso particular de um átomo, o movimento de um electrão num estado estacionário é caracterizado por ser ondulatório. Mais especificamente, por ser uma onda estacionária. Este é o tipo de onda igualmente característico, por exemplo, da oscilação de uma corda em tensão. Assim, identificar a os proposta estados de De Broglie estacionários permite-se com ondas estacionárias. E, deste modo, podemos dizer que um átomo quantificado é um pouco como um instrumento de cordas. Uma ancestral harpa, por exemplo. Se esta é construída por um conjunto de cordas vibrantes distribuídas segundo a antiga lei pitagórica de que as frequências possíveis de uma corda vibrante são múltiplos inteiros (harmónicos) de uma 49 Conferir o discurso de De Broglie de aceitação do prémio Nobel. De Broglie, L. (1929), The wave nature of the electron in "Louis de Broglie - Nobel Lecture". Nobelprize.org. 27 Sep 2011: http://www.nobelprize.org/nobel_prizes/physics/laureates/1929/br oglie-lecture.pdf, p. 247. 44 frequência fundamental, de forma análoga, o átomo “de” De Broglie é constituído por um conjunto de estados estacionários distribuídos segundo a mesma lei. E se um é caracterizado por um número discreto de cordas, cada uma com a sua caracterizado estacionários, frequência por cada um um bem determinada, número com discreto a sua o de outro é estados frequência bem determinada. Poder-se-ia dizer então que a quantificação do átomo é análoga à quantificação das vibrações de uma corda musical. É precisamente a partir desta analogia que Mário Bunge chega mesmo a afirmar, curiosamente, que “o primeiro a descobrir os quanta não foi Planck em 1900, mas Pitágoras no século VI a.C.”50. Estamos, porém, ainda à volta de uma analogia formal. Uma analogia que, contudo, se suporta em algo mais significativo. A saber: segundo De Broglie, e esta é a essência da sua proposta, da sua hipótese, os electrões, tal como os fotões, são caracterizados por uma cinemática ondulatória e uma dinâmica corpuscular. Ou dito de outro modo, os electrões, tal como os fotões, tal como todos objectos quânticos: propagam-se como ondas; interagem como corpos. Este é um momento decisivo. Em primeiro lugar, porque a proposta de De Broglie permite explicar a existência e a 50 Conferir Bunge, Mário (2002), “Twenty Five Centuries of Quantum Physics” (trad. do inglês por Florbela Meireles, “Vinte e cinco séculos de Física Quântica”) in Gazeta de Física, vol. 25, 3, Julho de 2002, p.1. 45 distribuição dos estados estacionários. Os estados estacionários não têm que ser tomados como uma mera, embora habilidosa, imposição ad-hoc. Nem tão pouco o movimento dos electrões “obedecem” às regras das ondas electromagnéticas pela particularidade de fazerem parte de um sistema atómico e lhes serem, formalmente, análogos. Todos os electrões são, quanto ao seu movimento, tidas como ondas. Assim, a proposta De Broglie permitia explicar o que era postulado na Teoria Quântica encontra-se na Antiga. origem da E, como tal, transição da esta proposta Teoria Quântica Antiga para a Teoria Quântica Nova. Isto é, para a Mecânica Quântica. Uma transição que implica que a teoria quântica deixa de ser apenas uma teoria do átomo seja, deixa de ser constituintes, ou microfísica. A proposta de De e dos seus apenas uma Broglie não se cinge ao domínio atómico, mas refere-se a todo o domínio físico. E como assinala, por exemplo, Leblond “macroscópico não é sinónimo de clássico”51. Este é igualmente um momento decisivo, pois a proposta de De Broglie consiste na atribuição, embora por analogia conceptual, de uma dupla natureza aos objectos quânticos: a das ondas na sua propagação; a dos corpos na sua interacção. Emprego o termo “dupla analogia” pois diz-se 51 Conferir Lévy-Leblond, Jean-Marc (2003), “On the Nature of Quantons” in Science & Education 12, p. 499. 46 que os objectos quânticos, quanto à sua cinemática, são como se fossem ondas. E quanto à dinâmica, são como se fossem corpos materiais. Contudo, De Broglie não se aventura a afirmar que, de facto, os objectos quânticos têm a natureza das ondas e dos corpos. Quer isto dizer que estamos de regresso à questão original: “O que é um objecto quântico?”. O que não será surpreendente, dado que havíamos dito que esta é a questão que se encontra logo que se entra no labiríntico domínio quântico. E, por consequência, encontra-se na génese da Mecânica Quântica. Por esta via, regressamos igualmente à questão lançada no final do capítulo anterior: “como se pôde constituir a Mecânica Quântica deixando em aberto o problema da natureza dos objectos quânticos?” Por outro lado, no caminho que fizemos no sentido de responder a estas questões, outras se juntaram. A saber: O que quer dizer que a Mecânica Quântica é uma generalização racional da Física generalização correspondência Clássica?; racional?; foi o de o que que instrumento entende Bohr por modo o princípio da para a construção da Mecânica Quântica a partir das teorias físicas clássicas?; o que se entende por “nível conceptual do princípio da correspondência?”; de que modo este nível se relaciona com os outros dois?; por que razão a Mecânica Quântica se 47 constituiu evitando responder à questão da natureza dos objectos quânticos? Para responder a estas questões pensamos ser preciso tomar em atenção uma outra tese de Bohr sobre a Mecânica Quântica. Esta tese, que a meu ver, é a basilar do pensamento bohriano e, como tal, é mais fundamental que as anteriores, é comummente designada na literatura de relativa à Filosofia da Mecânica Quântica por “doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos”. 2.3. Doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos. Não será totalmente pacifico o que Bohr entende como “conceitos clássicos”. A meu ver, e aqui sigo o entendimento geral dos exegetas dos escritos de Bohr ( como Folse, Murdoch, Pringe, etc.), Bohr refere-se ao que se considera serem os conceitos que constituem o léxico mais fundamental “corpo”, da Física “posição”, Clássica. “momentum”, Conceitos “campo”, como “onda”, “energia”, “carga”, “massa” “frequência”, etc. No entanto, Don Howard no seu artigo “What makes a Classical Concept Classical”, de 1994, assumidamente opõe-se a esse entendimento. Don Howard defende que, por “clássico”, Bohr quer dizer “uma 48 descrição em termos do que os físicos chamam de misturas”52. Isto é, “um dispositivo formal que nos permite proceder como se os sistemas físicos estivessem num estado intrínseco bem definido”53. O argumento de Howard não me parece porém convincente. Pois, neste artigo, ao invés de expor uma análise dos conceitos a que Bohr se refere quando se refere a conceitos clássicos, Howard acaba por se centrar numa distinção, da autoria do próprio, entre “descrições clássicas” e “descrições quânticas” dos sistemas físicos. A distinguir estas descrições estaria o facto, na terminologia de Howard, de a primeira consistir nas tais “misturas” e a segunda consistir na utilização de “termos puros”. Contudo, em qualquer dos tipos de descrição, nada se afirma sobre se os conceitos físicos usados são os mesmos ou não. Ou seja, parece haver apenas uma distinção no tipo de descrição (“puros” e “misturas”) em que os conceitos são utilizados para descrever um determinado sistema físico, e não tanto uma distinção entre os conceitos utilizados. Isto é, para Howard, o mesmo conceito, o momento linear, por exemplo, pode tomar o estatuto de clássico ou quântico conforme o tipo de descrição do sistema. Porém, o argumento de Howard, 52 Conferir Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 203. 53 Idem, ibidem. 49 não só parece ser apenas de cariz nominalista, como acaba por reforçar a tese que aqui se pretenderá defender que é justamente pela insistência, por parte de Bohr, de se fazer uso dos conceitos clássicos que, mesmo num sistema quântico, os conceitos usados são, na sua essência, os mesmos das teorias clássicas da Física. Por outro lado, a seguinte afirmação do físico dinamarquês parece dar aval à tese, que compartilho, de que Bohr por “conceitos clássicos” refere-se aos conceitos que pertencem à linguagem das teorias físicas clássicas: “A interpretação, sem ambiguidades, de qualquer medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas clássicas. E, neste sentido, deveremos dizer que a linguagem de Newton e Maxwell será a linguagem dos físicos para todo o sempre”54 Não parece haver margem para dúvidas que por “linguagem de Newton e Maxwell” Bohr se refere à linguagem que é constituída pelos Electromagnetismo. conceitos da Ou ao seja, Mecânica que Clássica podemos e do denominar, 54 “We must, in fact, realize that the unambiguous interpretation of any measurement must be essentially framed in I terms of the classical physical theories, and we may say that in this sense the language of Newton and Maxwell will remain the language of physicists for all time.”, N. Bohr (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 360. (Tradução minha) 50 genericamente, por “conceitos da Física Clássica”. No entanto, é impossível não notar como Bohr é categórico quando afirma: “a linguagem de Newton e Maxwell será a linguagem dos físicos para todo o sempre”. Não se trata, certamente, de uma profecia. E assim sendo, em que se funda esta certeza? Qual a razão pela qual para essa linguagem será “para todo sempre”? Creio que Bohr adianta uma razão na primeira parte da passagem citada. A saber: “a interpretação de qualquer medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas clássicas”. Este é, aliás, o sentido mais comum pelo qual se julgam os conceitos clássicos como indispensáveis para Bohr. Mas, o qualquer que quer medição”? dizer Uma Bohr medição, com “interpretação qualquer que ela de seja, consiste numa interacção entre dois sistemas físicos. O sistema que é objecto da medição e o sistema que é agente da medição, ou seja, o instrumento de medida. Como consequência dessa interacção produz-se uma alteração do estado físico do sistema que é agente da medição. Isto é, produz-se um resultado da medida. Seja esse resultado percebido como uma variação da posição de um ponteiro (como no caso de uma antiga balança de pratos), seja esse resultado percebido como uma variação dos dígitos presentes num ecrã (como no caso de uma balança digital). Em qualquer dos casos, uma medição passa, necessariamente, pela 51 percepção, por parte de um sujeito, da alteração do estado – o resultado da medição - de um sistema físico macroscópico – o instrumento de medida. Daí que uma medição é seja sempre uma relação a três: o objecto da medida; o instrumento da medida e o sujeito que percebe o resultado da medida. Digo que “percebe”, pois não basta a percepção, por parte do sujeito, de uma alteração do estado físico do sistema medidor. É necessário que o sujeito estabeleça a relação entre essa percepção e a alteração do estado físico do objecto da medição. Sem se estabelecer essa relação entre o objecto da medição, o instrumento de medida e o sujeito não existe medição pois faltará um dos seus elementos. Note-se que, neste caso, o instrumento de medida é o objecto trata-se da percepção então, directa do sujeito. necessariamente, de um E, como sistema tal, físico macroscópico. Daqui Bohr irá inferir que os instrumentos de medida, porque macroscópicos, clássicas. A são então meu ver, também são eles objecto esta é uma sistemas das teorias das razões físicos físicas que Bohr apresenta para defender a tese que a interpretação das medições deve necessariamente ser estabelecida em termos clássicos. Logicamente, assim entendido, o argumento de Bohr é circular e de cariz totalmente instrumentalista. Por um 52 lado, fica por justificar por que razão os objectos físicos macroscópicos devem ser descritos para todo sempre pelas teorias de Newton e Maxwell. Por que não poderá surgir uma outra teoria, uma teoria não clássica, que descreva as alterações de estado físico do instrumento de medida? Ou mesmo, por que não podem esses estados do instrumento de medida serem descritos pela Mecânica Quântica? Ao considerar, sem apresentar justificação, que os objectos macroscópicos são objectos exclusivos das teorias clássicas, e dado que os aparelhos de medida são, em última instância, objectos macroscópicos, Bohr, é conduzido à conclusão de que a interpretação de qualquer medição deve ser entendida em termos clássicos. Ou seja, conclui simplesmente a sua própria hipótese de partida. Por outro lado, o argumento de Bohr fixa-se apenas nas variações de estado do agente de medida e, como tal, suspende a referência à relação causal entre a alteração dos estados do sistema agente da medida e do sistema que é objecto da medida. Alteração de estado à qual é feita corresponder a um valor quantitativo de uma grandeza física determinada do objecto da medida. O que é a própria essência do acto de medir. No entanto, indispensabilidade creio dos que a conceitos tese bohriana clássicos pode da ser encontrada num outro sentido. Um sentido que é mais subtil, 53 mas mais profundo. E que, estranhamente, tem sido muitas vezes subestimado, senão mesmo esquecido. Descobrimo-lo na seguinte passagem: “De acordo com a visão deste autor [Bohr], será um engano acreditar que as dificuldades da teoria atómica [ou seja, da Mecânica Quântica] podem ser contornadas por uma eventual substituição dos conceitos da física clássica por novas formas conceptuais […] Não me parece crível que os conceitos das teorias clássicas sejam, alguma vez, supérfluos para a descrição da experiência física. O reconhecimento da indivisibilidade do quantum de acção e a determinação da sua magnitude depende, não apenas da análise das medições serem baseadas em conceitos clássicos, mas do facto de que somente uma aplicação desses conceitos tornam possível relacionar o simbolismo da teoria quântica com os resultados da experiência”55 Nesta citação é possível constatar que Bohr, num primeiro momento, enfatiza que os conceitos clássicos são 55 “to the view of the author, it would be a misconception to believe that the difficulties of the atomic theory may be evaded by eventually replacing the concepts of classical physics by new conceptual forms. […] No more is it likely that the fundamental concepts of the classical theories will ever become superfluous for the description of physical experience. The recognition of the indivisibility of the quantum of action, and the determination of its magnitude, not only depend on an analysis of measurements based on classical concepts, but it continues to be the application of these concepts alone that makes it possible to relate the symbolism of the quantum theory to the data of experience.”, Bohr, Niels (1929), “Introductory survey to the Atomic Theory and the Description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed. (North-Holland, Amsterdam, 1985), p. 294. (Tradução minha) 54 essenciais para a interpretação das medições. É o sentido da doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos que já nos havia surgido. Contudo, num segundo momento, Bohr assinala que os conceitos clássicos são igualmente necessários pois “somente uma aplicação desses conceitos tornam possível relacionar o simbolismo da teoria quântica com os resultados da experiência”. Ou seja, os conceitos clássicos da física são essenciais para dar conteúdo semântico ao formalismo da Mecânica Quântica. Assim, poderse-ia afirmar que, segundo Bohr, sem os conceitos clássicos uma teoria quântica, qualquer que ela fosse, careceria sempre de sentido. Bohr reforça a posição anterior num artigo, que é pouco discutido, onde desenvolve uma narrativa contrafactual da historia da Física. Nesta, ele convida-nos a imaginar uma história da física descoberta antes em que da a Mecânica Mecânica Quântica Clássica fosse e do Electromagnetismo: “Imagine por um momento que as recentes descobertas experimentais de difracção de electrões e efeitos fotónicos, que cabem tão bem na mecânica quântica, fossem feitas antes do trabalho de Faraday e Maxwell. Naturalmente, tal situação é impensável, uma vez que a interpretação das experiências em causa baseia-se essencialmente nos conceitos criados por esse trabalho. Mas permitamo-nos, no entanto, ter uma visão de tal 55 fantasia e perguntemo-nos, em seguida, qual seria o estado da ciência. Eu julgo que não seria dizer muito afirmar que estaríamos mais longe de uma visão consistente das propriedades da matéria e da luz do que Newton e Huygens estavam.”56 Ao considerar hipoteticamente que a Mecânica Quântica poderia ter clássicas, sido Bohr descoberta antes imediatamente das considera teorias que físicas isso seria impossível. Impossível, pois – argumenta - a interpretação das experiências que levou à descoberta da teoria quântica requer o uso de conceitos clássicos, no caso apresentado, dos conceitos do Electromagnetismo. Reconhece-se aqui o primeiro sentido da doutrina de Bohr da indispensabilidade dos conceitos clássicos. Bohr, no entanto, prescinde dessa objecção e continua com a narrativa contrafactual para chamar a atenção para o segundo sentido em que os conceitos clássicos são, para ele, indispensáveis. E chega à conclusão que a Mecânica Quântica por si só fornece uma descrição menos adequada da luz e da matéria do que faz a 56 “Let us imagine for a moment that the recent experimental discoveries of electron diffraction and photonic effects, which fall in so well with the quantum mechanical symbolism, were made before the work of Faraday and Maxwell. Of course, such a situation is unthinkable, since the interpretation of the experiments in question is essentially based on the concepts created by this work. But let us, nevertheless, take such a fanciful view and ask ourselves what the state of science would then be. I think it is not too much to say that we should be farther away from a consistent view of the properties of matter and light than Kewton and Huygens were.”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 360. (Tradução minha) 56 Física Clássica. É uma conclusão surpreendente se julgarmos (ou se julgássemos) a Mecânica Quântica como uma teoria conceptualmente autónoma que superou as teorias clássicas e, como tal, que poderíamos falar da primeira sem, mesmo implicitamente, necessitar das segundas. Aqui, a tese de Bohr é que a Mecânica Quântica sem a Física Clássica e os seus conceitos seria uma teoria incompleta. Incompleta, não no sentido do chamado debate EPR57 e do seu desenvolvimento posterior – as relações de Bell - que tanta tinta têm feito correr na Mecânica literatura Quântica. filosófica Isto é, contemporânea incompleta porque sobre a existiria algum elemento da realidade física que a Mecânica Quântica deixa fora da sua descrição. Neste sentido, para Bohr, a Mecânica Quântica Bastará recordar controvérsia58 que é uma algum teoria dos completa. Sem dúvida. momentos da célebre Bohr manteve durante cerca de trinta anos com Einstein. A Mecânica Quântica é incompleta para Bohr no sentido em que o significado do seu formalismo depende dos conceitos da Física Clássica. No sentido em que, sem os conceitos da Física Clássica, uma teoria quântica, qualquer que ela seja, nada mais seria que uma 57 Refere-se aqui, obviamente, o debate que se gerou a partir da publicação, em 1935, do artigo “Is Quantum Mechanics complete?” de Einstein, Poldoski e Rose e da réplica de Bohr com um artigo homónimo, nesse mesmo ano de 1935. 58 Conferir O relato que o próprio Bohr faz dessa controvérsia em: Bohr, N. (1949), “Discussion with Einstein on Epistemological Problems in Atomic Physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing. 57 muda construção matemática. Um corpo matemático carente de significado físico. Como um monstro de Frankenstein, imponente, eventualmente poderoso, mas sem alma. Ou seja, uma teoria quântica, qualquer que ela seja, enquanto teoria física, não é possível sem os conceitos clássicos que lhe dão sentido, que a vivificam. É precisamente nesta tese de Bohr sobre o estatuto dos conceitos clássicos que, segundo Heisenberg, reside a essência da chamada “Interpretação de Copenhaga”. Ela pode ser enunciada de um modo lapidar: “Os conceitos da física clássica formam a linguagem pela qual descrevemos os arranjos experimentais e registamos os resultados. Não podemos, nem devemos, mudar esses conceitos por nenhuns outros […] não podemos, nem devemos, tentar melhorálos”59 É porque Heisenberg se assume aqui como porta-voz do físico dinamarquês, que o seu tom adquire uma dimensão inabitualmente peremptória: “não podemos, nem devemos, mudar os conceitos” clássicos. Nem sequer “tentar melhorálos”. Estamos perante um quase imperativo ético. Um mandamento: “não devemos”. Mas, por outro lado, trata-se de 59 “The concepts of classical physics form the language by which we describe the arrangement of our experiments and state the results. We cannot and should not replace these concepts by any others […] we cannot and should not try to improve them.” Heisenberg, Werner (1958), Physics and Philosophy, London: Penguin Books, p. 14. (Tradução minha) 58 uma condição prévia e imutável à da experiência, pois “não podemos mudá-los por nenhuns outros”, nem tão pouco “podemos melhorá-los”. Neste sentido, poder-se-ia dizer que os conceitos clássicos da Física surgem com a força de um a priori, de conceitos uma exigência clássicos seriam transcendental. prévios à Pois esses experiência e, simultaneamente, condição de possibilidade de descrição e interpretação dos resultados desta. Algo que é, aliás, e sem surpresa, muitas vezes assinalado por Heisenberg60. Estamos perante um ponto de grande significado na exegese dos textos de Bohr. Na verdade, é precisamente neste sentido, isto é, tomando Bohr como um paladino do dito carácter apriorístico dos conceitos clássicos, que diversos filósofos da física como Pringe61, Falkenburg62, Bitbol63, Petitot64, Honner65, Von Weizsäcker66, entre outros, tentaram, e continuam a tentar, desenvolver ou encontrar uma fundação transcendental para a Mecânica Quântica. 60 Conferir, por exemplo, Heisenberg, Wener (1959),” A descoberta de Planck e os problemas filosóficos da física atómica” in Discussione sulla física moderna (tradução para Português por Gita Guinsburg “Problemas da Física Moderna”), São Paulo: Perspectiva, p. 18. 61 Conferir Pringe, Hernán (2007), Critique of the Quantum Power of Judgment, Berlin: De Gruyter. 62 Conferir Falkenburg, Briggitte (2007), Particle Metaphysics: A critical Account of Subatomic Reality, Berlin: Springer. 63 Conferir Bitbol, M. (1998), “Some Steps Towards a Transcendental Deduction of Quantum Mechanics” in Philosophia naturalis, 35, pp. 253280. 64 Conferir Petitot, J. (1991). La philosophie transcendantale et le problème de l’objectivité. Paris: Osiris. 65 Conferir Honner, John (1987), The description of Nature: Niels Bohr and the Philosophy of Quantum Physics, Oxford: Clarendon press. 66 Conferir Von Weizäcker, C. (1952), The world view of physics, Chicago: Chicago University Press. 59 Grande parte da literatura filosófica contemporânea sobre a teoria quântica moderna navega nesse mar. Logicamente, de um modo ou de outro, todos os filósofos da física referidos tomam Bohr como um kantiano. Alguns, como Hooker67, Honner68, Pringe69, Catherine Chevalley70 e Steen Brock71, e recorrendo às palavras de Patrícia Kauark-Leite, “tentam mesmo estabelecer um paralelo próximo entre o pensamento de Kant Bohr”72. e Porém, e esta é uma dificuldade consistente, Bohr nunca se reconheceu como membro de tal família refere filosófica. a Quântica. Kant Será em Aliás, nenhum uma curiosamente, dos seus estranha Bohr textos ausência nunca sobre pois se Física Bohr era conhecedor das obras do gigante filosófico de Königsberg. Afinal, Christian Bohr, pai de Niels Bohr, leccionava Kant na Universidade de Copenhaga. E é bem conhecida a existência de uma proximidade pessoal e intelectual entre Bohr e o neo-kantiano Harald HØffding73. Mas, a meu ver, 67 Conferir Hooker, C. A. (1972). “The nature of quantum mechanical reality”, in Paradigms and Paradoxes, Pittsburgh: University of Pittsburgh Press, pp. 135-172. 68 Conferir nota de rodapé nº 65. 69 Conferir nota de rodapé nº 61. 70 Conferir Chevalley, C. (1991), “Glossaire”, in N. Bohr, Physique atomique e connaissance humaine. Paris: Gallimard, pp. 345-567. 71 Conferir Brock, S. (2003) Niels Bohr’s Philosophy of Quantum Physics, Berlin: Logos Verlag. 72 Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.245. 73 Conferir, por exemplo, Faye, J. (1991), Niels Bohr: His Heritage and Legacy. An Antirealism View of Quantum Mechanics, Dordrecht: Kluwer; Moreira, Rui (2011), Contribuição para o estudo das origens do princípio da complementaridade, no prelo. 60 mais importante do que saber a razão da referida ausência, interessa perguntar, novamente, pela razão da sua presença: por que defende Bohr que os conceitos clássicos têm este carácter que podemos classificar de apriorístico? por que razão – regressando um pouco atrás - a linguagem dos físicos será sempre a de Newton e de Maxwell? Ou, como diz Schrödinger em carta dirigida a Bohr em 13 de Outubro de 1935: “Devem Bohr], existir razões repetidamente, a claras e declarar definidas que que devemos o levem [a interpretar as observações em termos clássicos, de acordo com a sua própria natureza. Sempre que você o afirma, fá-lo de forma tão clara e definitiva, no indicativo, sem quaisquer reservas como “provavelmente”, ou “pode ser”, ou “devemos estar preparados para”, como se fosse a máxima certeza do mundo. Isso deve pertencer à sua mais firme convicção – e eu não consigo entender em que se baseia”74 74 […] there must be clear and definite reasons which cause you repeatedly to declare that we must interpret observations in classical terms, according to their very nature. Whenever you say that, you state it so definitely and clearly, in the indicative, without any reservations like “probably”, or “it might be”, or “we must be prepared for”, as if this were the uttermost certainty in the world. It must be among your firmest convictions - and I cannot understand what it is based upon” Carta de Schrödinger a Bohr datada de 13 de Outubro de 1935 in Niels Bohr Collected Works, Vol. 7: Foundations of Quantum Physics II (1933–1958), J. Kalckar, ed., Amsterdam: Elsevier (1996), p. 508. (Tradução minha) 61 A resposta directa de Bohr à questão de Schrödinger, como assinalam75 os filósofos australianos Schlosshauer e Camilleri, foi evasiva. Contudo, creio que podemos encontrar a razão da certeza de Bohr e, indirectamente, da perplexidade de Schrödinger, em passagens como a seguinte: “[…] apenas com o auxílio das ideias clássicas é possível atribuir um significado não ambíguo aos resultados da observação.”76 Nesta passagem observação” ao Bohr invés refere-se de a “resultados “resultados da medição” da ou “resultados da experiência”. Trata-se, a meu ver de uma das flutuações terminológicas habituais nos textos de Bohr e até – creio que se poderá dizer – típicas em muitos físicos embora estranhas aos olhos de um filósofo. Flutuação que é compreensível se atendermos que, em Física, todas as experiências e todas observações são medições77. E, como 75 Conferir Schlosshauer, Maximilian e Camilleri, Kristian (2008) The quantum-to-classical transition: Bohr’s doctrine of classical concepts, emergent classicality, and decoherence, pp. 25-26 (artigo on-line, em http://arxiv.org/abs/0804.1609v1). 76 “[…] only with the help of classical ideas is it possible to ascribe an unambiguous meaning to the results of observation.”, Bohr, N. (1929), “Introduction Survey to “Atomic Theory and the description of Nature”” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I(1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 295. (Tradução minha) 77 Segundo Max Jammer o filósofo inglês Norman Campbell terá leva ao extremo esta posição ao defender que a Física seria definível como a ciência da medição. Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p. 471. 62 tal, “observação” e “experiência” podem ser aceitavelmente tomados como sinónimos de “medição”. Por esta razão é, usual, em Física, por um lado, referir-se o sujeito da medição como “observador” e, por outro lado, vaguear-se livremente entre os termos “observação”, “medição” e “experiência” como se de sinónimos se tratasse. Por outro lado, na passagem anterior encontramos o termo “ideias clássicas” ao invés de “conceitos clássicos”. Será tentador flutuação afirmar que também terminológica. estamos Julgo, no perante entanto, mais que uma talvez assim não seja. Mas, se esse não é o caso, então a que ideias clássicas se refere Bohr? E que relação têm estas com os conceitos clássicos? Em particular quando são usuais as passagens nas quais Bohr afirma: “[…] toda a experiência deve ser, em última análise, expressa em conceitos clássicos”78 Creio pois ser legitimo afirmar que, segundo Bohr, tanto a descrição física dos instrumentos, como a interpretação dos resultados das experiências (ou medições, ou observações), deve fazer uso dos termos clássicos. Já antes havíamos encontrado, de certo modo, esta tese quando Bohr dizia que “a interpretação, sem ambiguidades, de qualquer 78 “[…] all experience must ultimately be expressed classical concepts”, idem, p. 210. (Tradução minha) in terms of 63 medição deve ser essencialmente estabelecida em termos das teorias físicas clássicas.”79. Contudo, nesta última, tal como quando nos diz que “apenas com o auxílio das ideias clássicas é possível atribuir um significado não ambíguo aos resultados observação”80, da surge-nos a expressão “não ambíguo”. E esta é, a meu ver, precisamente a chave mestra (ou a palavra-chave) do pensamento Bohriano sobre a Física dos Quanta. Em particular, permite-nos aceder ao fundamento da doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos. Encontramos esta expressão, novamente, numa passagem de Bohr onde este procura ser mais esclarecedor relativamente à referida doutrina dos conceitos clássicos: “[…] É transcenda decisivo o reconhecer domínio das que, por explicações mais da que Física o fenómeno Clássica, a descrição deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos. O argumento é simplesmente que pela palavra “experimento” referimo-nos a uma situação onde podemos dizer a outros o que fizemos e o que aprendemos e, como tal, o relato do arranjo experimental e dos resultados da observação deve ser expresso numa linguagem não ambígua com a aplicação adequada da terminologia da física clássica”81 79 Conferir página 50. Conferir página 62. 81 […] “It is decisive to recognize that, however far the phenomena transcend the scope of classical physical explanation, the account of all evidence must be expressed in classical terms. The argument is simply that by the word “experiment” we refer to a situation where we can tell others what we have done and what we have learned and that, 80 64 Na primeira parte desta citação surge-nos, colocada em itálico pelo próprio Bohr, de forma muito clara, a doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos: “a descrição deve, evidentemente, ser expressa em termos clássicos”. Porém, para além do simples enunciar da referida doutrina, Bohr acrescenta aqui que esta se aplica “por mais que o fenómeno transcenda o domínio das explicações da Física Clássica”. Em particular, aplica-se ao domínio quântico. Mas, mais importante que isso, enfatiza que os conceitos clássicos são condição geral de descrição de um fenómeno82 físico qualquer. Ou seja, reencontramos aqui o alegado carácter apriorístico destes conceitos. Portanto, a primeira parte da citação anterior leva-nos apenas a reencontrar alguns dos elementos essenciais da referida doutrina. Mas o mesmo já não poderá ser dito em relação à segunda parte. Nesta, Bohr acrescenta algo. Nomeadamente que quando nos referimos a uma experiência referimo-nos a “uma situação onde podemos dizer a outros o therefore, the account of the experimental arrangement and of the results of the observations must be expressed in unambiguous language with suitable application of the terminology of classical physics” Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing, p.39. (Tradução minha) 82 O termo “fenómeno” surge aqui, e daqui em diante, tal como é habitual no contexto da Física, não significando “o que aparece aos sentidos” ou o “objecto da percepção”, mas como “evento”. Por exemplo, a levitação magnética diz-se um fenómeno quântico macroscópico. Não porque observamos um corpo suspenso no ar, mas porque é uma situação física pela Mecânica Quântica 65 que fizemos e o que aprendemos”. Isto é, Bohr assinala que a marca mais fundamental de uma experiência científica não será tanto o confronto entre a teoria e a natureza, mas a comunicabilidade do que foi realizado e dos seus resultados. Não é surpreendente que assim seja. Afinal, a Ciência é uma empresa necessariamente colectiva. Não só dentro de uma geração, mas entre gerações.83 E, como tal, só se efectiva quando é posto em comum o que foi desenvolvido por um indivíduo ou um grupo de investigação. A Ciência não é labor de eremitas abnegados. E é isto mesmo que entendo que Bohr pretende aqui realçar: a comunicabilidade é uma condição essencial à Ciência. Por consequência, as experiências e os seus resultados têm de ser expressos numa linguagem não ambígua. Requisito que, para Bohr, dentro da Física, só pode ser cumprido com o recurso aos conceitos clássicos desta ciência84. Só aí, no 83 Conferir, Pombo, Olga (2006), Unidade da Ciência: Programas, Figuras e Metáforas, Lisboa: Edições Duarte Reis, p.139. 84 Contrariamente a este entendimento do pensamento de Bohr, David Favrholdt (Conferir Favrhodt, David (1993), “Niels Bohr’s views concerning language” in Semiotica, Volume 94, Issue 1-2, pp. 5–34) argumenta que o uso necessário dos conceitos clássicos justifica-se com o facto destes, implicitamente, estabelecerem-se através de uma distinção entre o sujeito e o objecto. Entre quem diz e o que é dito. Seria este o sentido de uma comunicabilidade não ambígua. Por consequência, defende Favrholdt, “a solitary physicist on a desert island may communicate with himself by writing down experimental results to be read later, etc. The decisive point is not the situation of communication, but unambiguity. Therefore, we might as well write 'unambiguous thinking' where Bohr writes 'unambiguous communication' or 'description'” (p. 10 do referido artigo). A meu ver este argumento está errado por três razões. Em primeiro lugar, a estrutura sujeitopredicado não é garante de não ambiguidade do que é dito. Em segundo lugar, Favrholdt escamoteia o facto de Bohr, como surge na citação a 66 recurso aos conceitos clássicos, a linguagem da Física, como vimos, ganha sentido. Só esse sentido pode fundar a sua objectividade. E só essa objectividade pode garantir a não ambiguidade da comunicação entre pares. Neste sentido, assinala Howard: “Bohr via consequência a doutrina directa da dos sua conceitos doutrina clássicos da como objectividade uma que, afirma que o uso dos conceitos clássicos é condição necessária para uma comunicabilidade não ambígua.”85 Não deixa de ser surpreendente que o pensamento de Bohr se alicerce numa tese sobre a objectividade. Ele que tantas e repetidas vezes é acusado de ter introduzido o subjectivismo na Física. Nomeadamente, por ser confundido como afim com a solução de Von Neumann para o chamado problema da medição86. Mas compreende-se a razão pela qual que esta nota se refere, entender por experiência “uma situação onde podemos dizer a outros”. Se é a “outros”, então não fará sentido algum defender que a comunicabilidade é para si mesmo (salvo caso de esquizofrenia…). Terceira e última razão, esta interpretação de Favrholdt é contrária à própria “doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos”. Pois, da relação sujeito-predicato nada obriga a um recurso necessário dos conceitos da Física Clássica. 85 “Bohr regarded the doctrine of classical concepts as a direct consequence of his doctrine of objectivity, holding that the use of classical concepts is a necessary condition for unambiguous communicability.” Howard, D. (1994), “What makes a classical concept classical? Towards a reconstruction of Niels Bohr’s philosophy of physics,” in Niels Bohr and Contemporary Philosophy (Boston Studies in the Philosophy of Science, Vol. 153), J. Faye and H. Folse, eds., Dordrecht: Kluwer, p. 207. 86 Voltaremos a este assunto, mais tarde, neste capítulo. Conferir página 138 e seguintes. 67 Bohr, neste aspecto, compreendido. directamente Para pela tem Bohr, sido a relação tantas vezes objectividade sujeito-objecto. não Ela mal passa supõe a relação comunicativa entre sujeitos. Para ser mais preciso, as condições de possibilidade da comunicabilidade não ambígua da experiência. Só que, para essa comunicabilidade não ambígua “o necessária”. doutrina dos uso Assim, dos conceitos como indicava conceitos clássicos Howard, clássicos como é Bohr uma condição “via a consequência directa da sua doutrina da objectividade”. O que Howard não explica é porquê? Por que razão exige Bohr este caminho indirecto? Por que razão não funda Bohr a objectividade directamente na comunicabilidade entre sujeitos? Por que exige esse caminho mais longo que obriga á intervenção mediadora dos conceitos clássicos? A nosso ver, a razão deve ser procurada no facto de só os conceitos clássicos, como atrás procuramos mostrar, atribuírem sentido às teorias físicas. Ou seja, a nosso ver, a objectividade possível tem o seu fundamento na abertura semântica dos conceitos clássicos ao mundo que eles descrevem. É porque os conceitos clássicos abrem a teoria ao mundo que só eles conferem objectividade à teoria, que eles constituem a condição necessária de uma comunicação não ambígua. Aí se funda também a comunicabilidade que faz da ciência algo mais do que uma 68 congeminação solitária, isto é, algo que a ergue ao estatuto de património colectivo. Mas, regressemos uma vez mais à questão fulcral que tem vindo a percorrer estas páginas e à qual falta ainda dar uma resposta: privilegiado onde dos se funda conceitos da este física pretenso estatuto clássica? Por razão os conceitos clássicos são os que não que sofrem de ambiguidade e, como tal, segundo o físico dinamarquês, são aqueles de que os físicos terão sempre de fazer uso? Onde se funda, conceitos em última clássicos? análise, A a resposta doutrina não é bohriana directa. dos Apenas tortuosamente alcançável. Em primeiro lugar, tal como David Favrholdt assinala na sua introdução geral ao décimo volume das obras completas de Bohr: “[…] Ele [Bohr] repetidamente faz-nos recordar do facto de que a física clássica é um refinamento do uso descritivo da linguagem comum, isto é, que os conceitos fundamentais da física clássica são desenvolvidos a partir dos conceitos que fazemos uso na nossa descrição quotidiana do que nos rodeia.”87 87 “[…] He [Bohr] often reminds us of the fact that classical physics is a refinement of the descriptive use of ordinary language, i.e. that the fundamental concepts of classical physics are developed from the concepts we use in our everyday description of our surroundings.” Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect 69 Para Bohr, a linguagem da Física Clássica está, sempre esteve e sempre estará contida na linguagem que utilizamos quotidianamente. Ela quotidianamente para existe dizer em o termos que hoje que usamos dizemos com “rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”, entre outros. Termos existentes nas línguas naturais desde tempos muito anteriores a Maxwell ou a Newton. Termos que, segundo Bohr, são o material, em estado impuro, a partir do qual se constitui o léxico fundamental das teorias físicas clássicas. E, como tal, a linguagem da Física Clássica não é tanto uma linguagem nova, com conceitos que ela mesmo teria gerado, mas o resultado de um refinamento da linguagem vulgar. A chave aqui é – claro está – a palavra “refinamento”. Palavra que, como assinala Favrholdt, surge repetidamente nos textos de Bohr nas passagens em que se refere à génese da linguagem da Física Clássica. Mas Favrholdt não esclarece as seguintes questões fundamentais: Para Bohr, de onde provêm esses termos impuros que estão presentes nas línguas naturais? E o que quer ele dizer com “refinamento” da linguagem comum? A resposta à primeira destas questões surge-nos numa brevíssima passagem da conclusão de um texto de Bohr 1928: Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha). 70 “[…] cada palavra da linguagem refere-se à nossa percepção comum”88 Se habitualmente Bohr se move na penumbra, aqui colocase numa posição clara. Todos os termos da linguagem natural têm como referente algo que é dado na nossa percepção comum. Mais precisamente, da nossa percepção comum do mundo físico. É Estamos na presença de uma tese marcadamente empirista. Poderíamos, até, imaginar Bohr a dizer com Hume que “todos os materiais do pensamento são derivados da sensibilidade”89. E, como tal, nada com sentido pode ser dito sobre o mundo físico que não remeta, em última análise, para uma percepção recordada deste. Claro está que a tese de Bohr de uma relação necessária entre as palavras e os elementos da percepção comum do mundo dificilmente sustentável. Bastará que nos físico é recordemos de termos como “nada” ou “infinito”. Que percepção temos nós do “infinito”? Ou do “nada”? Bohr poderia replicar dizendonos que não temos a percepção do infinito, que chegamos a este por um processo de idealização, mas que, na base dessa idealização, está uma percepção, necessariamente finita, do 88 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha) 89 Hume, David (1748), Essays Concerning the Human Understanding ( trad. port. De Artur Morão “Investigações Sobre o Entendimento Humano”, Lisboa: Edições 70 (1989)), p. 25. 71 mundo físico. Mais difícil seria o termo “nada”. Pois, logicamente, entendendo-se “nada” como referindo-se ao que é uma ausência de percepção, então, é seria por um lado contraditório falar-se da percepção do “nada” e, por outro, difícil seria entender o “nada” como idealização a partir de uma percepção, inexistente e, em rigor, impossível. O facto é que Bohr, tanto neste caso como em geral, raramente se confronta com as dificuldades que podem ser colocadas às suas teses. Tal como nunca tematiza ou sistematiza o seu pensamento sobre a Física Quântica. Em defesa de Bohr poder-se-á dizer, simplesmente, que não o faz porque não é um filósofo. É um físico a pensar sobre a Física. E os físicos, tipicamente, critica”,fazendo uso axiomático-dedutivo, pensam do seu partindo a física bem de um de forma conhecido lugar “pré- pensamento pretensamente seguro a partir do qual se vai deduzindo sucessivamente as suas implicações. Talvez por isso, a Bohr baste que seja evidente – e será isso que é importante aqui focar – que, por mais distintas que as línguas naturais sejam nas suas ortografias, nas suas regras de sintaxe e nos seus léxicos, elas são todas atravessadas transversalmente por um movimento de abertura ao mundo que nelas se diz e por elas apenas se pode conhecer e pensar. Sem o saber, Bohr está a ressuscitar a antiga tese leibniziana (ou se quiser ir ainda mais longe, cratiliana) segundo a qual as línguas 72 naturais estão, desde a sua origem, marcadas por uma irrecusável abertura ao mundo, ou, como diz Olga Pombo a propósito de Leibniz, por “imperceptíveis laços que as unem ao mundo por elas visado”90. Ora, é justamente porque, como Leibniz, Bohr pensa as línguas naturais como a sede do sentido que ele pode defender que a física não pode dispensar os conceitos da física clássica, porque eles nada mais são do que um “refinamento” dos termos da linguagem natural, termos esses que, pelo seu lado, se referem sempre ao mundo através da percepção em que se fundam, ou, por outras palavras, porque “[…] cada palavra da linguagem refere-se à nossa percepção comum”91. Em última análise, porque a Física tem necessariamente que trabalhar com termos que fazem parte da nossa descrição quotidiana do que nos rodeia, como “rapidez”, “peso”, “calor”, “localização”, entre outros. No entanto, estes termos, no contexto da sua utilização quotidiana, sofrem de ambiguidades. Por um lado, dizemos, por exemplo, que “o ar está pesado” ou que “esta caixa é pesada”, sem distinguir o sentido do termo “pesado” em 90 Pombo, Olga (1997), Leibniz e o Problema de uma Língua Universal, Lisboa: Junta Nacional de Investigação Científica e Tecnológica, p. 255. 91 “[…] every word in the language refers to our ordinary perception.” Bohr, N. (1928), Bohr, N. (1928), “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 590. (Tradução minha) 73 ambas situações92. muito pesada” Por tem outro lado, significado dizer apenas “esta caixa relativamente é ao sujeito que profere a frase e para o momento considerado. Mais tarde, a mesmo pessoa pode considerar que é “leve” o que antes dizia ser “pesado”. Ou, para um outro, a tal caixa, no momento inicial, pode ser “pouco pesada”. No primeiro caso, o termo “pesado” é ambíguo pois pode ser entendido em diferentes sentidos. No segundo caso, a frase será vaga de sentido, pois refere-se à qualificação de uma sensação particular e momentânea. Quando se diz “muito”, logo se pode perguntar: Mas quanto é “muito”? E neste sentido, a frase será vaga, imprecisa. Em qualquer destes casos não pode existir, para Bohr, comunicabilidade efectiva. Pois, em ambas as situações não existe objectividade no que é dito. Como recorda o físico dinamarquês: “Por objectividade entendemos uma descrição por meio de uma linguagem comum a todos a partir da qual as pessoas podem comunicar umas com outras no domínio relevante”93 92 Para um físico as duas situações são claramente distinguíveis. No primeiro caso é feita referência o termo “pesado” refere-se à pressão do ar. No segundo caso é refere-se ao peso gravítico da caixa. 93 "By objectivity we understand a description by means of a language common to all in which people may communicate with each other in the relevant field." Bohr, Niels (1953) citado de Favrholdt, David (1999), “General Introduction” in Niels Bohr Collect Works, Volume 10: Complementarity Beyond Physics (1928-1962), David Favrholdt ed. Amesterdam: Elsevier, 1999, p. XXXVII (Tradução minha). 74 Bem entendido, a doutrina da objectividade de Bohr é, como será claro, uma doutrina da inter-subjectividade. Que se realiza em dois planos. Por um lado, no plano da comunhão entre sujeitos da percepção do mundo físico. Por outro lado, na partilha de uma linguagem comum, isto é, de uma linguagem vulgar, natural, aberta ao mundo, a partir da qual a física pode, por um processo de “refinamento”, construir a linguagem da física. Entende-se, pois, que para Bohr a linguagem da Física Clássica seja o produto refinado da linguagem vulgar, no sentido em que teria sido purificada das ambiguidades que caracterizam aquela. Tornando-se assim a ambígua referenciação ao mundo físico que se verifica nas línguas vulgares, numa referenciação unívoca a esse mundo. E, na medida em que os conceitos da Física Clássica são o produto acabado desse refinamento, dessa operação de conquista da univocidade, apenas eles possibilitam que um físico na sua comunicação com os seus pares seja perfeitamente compreendido. Isto é, apenas os termos da linguagem vulgar (enquanto sede operação de univocidade, do sentido) refinamento garante a depois que de sujeitos permite comunicabilidade. comunicabilidade garante a objectividade. apurar E a uma a sua apenas essa Não se pode pois dizer que, para Bohr, a objectividade repousa unicamente na comunicabilidade, entendida esta enquanto inter75 subjectividade. A objectividade em Bohr tem uma dupla raiz. Ela funda-se na comunhão de sentido que une os falantes de uma mesma língua vulgar (porque ela se refere sempre ao mesmo mundo) e no refinamento que permite o acesso à fixação unívoca do significado. Assim, será clássicos da possuírem uma característica Física, dupla e sua faceta. essencial condição Por um de dos conceitos objectividade, lado, terem como referente elementos relativos à percepção comum do mundo. Portanto, ser sempre possível ilustrá-los, isto é, produzir uma imagem que lhes dê sentido. Ou seja, é ser sempre possível tornar presente (por via da imaginação, como diria Kant) uma situação física concreta correspondente ao seu campo referencial. imaginando-se essa Seja recorrendo situação física. à Por memória, outro seja lado, é também condição da objectividade desses conceitos clássicos da Fisica o facto de terem conquistado a sua univocidade, isto é, de terem conseguido a fixação do seu sentido. Terá sido esse o trabalho realizado, entre outros, por Newton e Maxwell. Desta forma, quando um físico utiliza o termo “momento angular” na sua comunicação inter-pares, segundo Bohr, todos sabem exactamente o que está a ser dito. Sabem-no, por um lado, porque dominam a linguagem refinada da Física Clássica. Sabem-no, por outro lado, porque o conceito de 76 “momento angular” recordando-se) pode uma ser situação ilustrado física imaginando-se concreta a (ou que o conceito se refere, isto é, como diria Kant, porque ao conceito podemos fazer corresponder uma imagem, ou melhor uma regra de produção de imagens94. No caso presente, por “momento angular” entende-se a quantidade de movimento de um corpo em rotação. Algo que podemos ilustrar imaginando uma roda de bicicleta em movimento. Quanto maior a tendência de uma roda de bicicleta manter-se em movimento, maior o momento angular. Logicamente, o mesmo poderia ser dito para qualquer outro conceito da física clássica. Resta acrescentar que esta tese bohriana de uma conexão referencial necessária entre os conceitos da Física e os elementos concretos do mundo físico que comummente percepcionamos pressupõe a existência desse mundo físico. Existência que será prévia à linguagem e, como tal, independente desta. Neste sentido, acompanho Popper quando este afirma: “[…] Bohr era, basicamente, um realista. Mas a teoria quântica foi para ele, desde o início, um enigma”95 94 É justamente essa a função da imaginação em Kant. Ela produz a imagem correspondente ao conceito, ou melhor, a regra de construção dessas imagens. 95 “[…] Bohr was, basically, a realist. But quantum theory had been, from the very start, a riddle for him.” Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge, p. 9. 77 Será ainda cedo para classificar o tipo de realismo que o pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica envolve96. Mas talvez seja desde já possível afirmar que “Bohr era, basicamente, um realista”. Como serão, de um modo ou de outro, a generalidade dos cientistas antes e depois de Bohr. Porém, o contrario facto de ser realista não impede, pelo potencia, que, tal como a generalidade dos grandes físicos da sua época (ou mesmo desde a sua época), Bohr seja um homem confrontado com um enigma. O mesmo que se faz eco neste trabalho: qual a natureza dos objectos quânticos97. Toda a linguagem em Física, em particular da que é dita clássica, radica nos conceitos de “onda” e “corpo”. Pois, é presumido que os objectos físicos assim se distinguem na sua natureza: ondas e corpos. Falar em “momentum”, “massa”, “impenetrabilidade”, “amplitude”, “fase” ou “difracção” (só para dar alguns exemplos de termos fundamentais que constituem a linguagem da física clássica) é falar nas propriedades ora dos corpos, ora das ondas. Neste sentido, afirma Bohr: 96 Conferir página 153 deste capítulo. Conferir, por exemplo, Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, p. 46. 97 78 “Não deve ser esquecido que apenas as ideias clássicas de partículas materiais e ondas electromagnéticas têm um campo de aplicação sem ambiguidades”98 Esta frase leva-nos ao âmago do pensamento de Bohr sobre a Física. Mais, leva-nos até mesmo ao âmago da própria Física. Contudo, para o alcançar, há que fazer, uma vez mais, uma pequena, mas capital, digressão. 2.4. As duas partículas puras da Física Clássica. É transversal a quase todos os estudos críticos sobre a Mecânica Quântica, a dificuldade em distinguir de forma muito clara e precisa os termos “corpúsculo” e “partícula”. A consequência dessa tão instintiva indistinção leva a que se imagine ou se julgue as partículas quânticas, como os electrões, como se fossem pequenos corpos, como se fossem esferas diminutas. Porém, como aqui já se mostrou o domínio quântico – e essa é a sua condição de acesso – não é uma espécie de Liliput. Gostaria, portanto, de contribuir para 98 “It must not be forgotten that only the classical ideas of material particles and electromagnetic waves have a field of unambiguous application”, Bohr, N. (1931), “Maxwell and modern theoretical physics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 359. (Tradução minha) 79 a clarificação entre os termos “corpúsculos” e “partículas”. Por “corpúsculo” julgo que se deve entender “um pequeno corpo”. Claro está que o termo “pequeno” é relativo e, por consequência, o termo “corpúsculo” também o será. A Terra enquanto corpo material é um corpúsculo em comparação com o Sol. Mas uma bola de futebol será um corpúsculo em comparação com a Terra. No entanto, reconhecendo embora a relatividade que afecta este termo, parece legitimo afirmar que uma molécula, um átomo ou um núcleo, a terem uma natureza corpórea, são corpúsculos tendo os humanos como referencial. Por seu turno, o termo “partícula” remete para a noção de “parte mínima”, sem que, necessariamente, se refira a entidades com propriedades corpóreas. Ou seja, é possível conceber partes mínimas de entidades não corpóreas. Por exemplo, uma onda é, em geral, decomponível linearmente em outras. Isto é, uma onda é, em geral, decomponível em duas ou mais ondas que adicionadas por sobreposição entre si resultam na primeira. Destas últimas direi que são partes da primeira e, na medida em que essas partes de ondas são por sua vez decomponíveis em partes cada vez menores. Assim, uma onda, tal como um corpo, em geral, é passível de ser decomposto num conjunto de partes mínimas, ou seja num conjunto de partículas. Mas já não poderíamos dizer que uma 80 onda é composta por um assimetria percebe-se partícula. De uma conjunto a onda de corpúsculos. Nesta diferença entre corpúsculo eu dizer que posso ela e tem partículas. Mas não posso dizer que ela tem corpúsculos. Isto mostra que o conceito de corpúsculo esta necessariamente ligado ao conceito de parte de um corpo. Pelo contrario o conceito de partícula não obriga a referência ao corpo. Um corpo pode ter partículas mas uma onda jamais poderá ter corpúsculos. Portanto, enquanto o termo “corpúsculo” nos remete necessariamente para a natureza dos objectos físicos, o termo “partícula” remete unicamente para a relação mereológica entre um todo e as suas partes. Por consequência, posso dizer que uma onda pode ter partículas sem que isso constitua uma contradição. E, deste modo, “partícula” e literatura, em não “onda” geral, é verdadeira que é sobre a oposição tão vulgar a Mecânica entre encontrar Quântica. na A oposição, de facto, far-se-á entre “corpo” e “onda”. Ou, em particular, no caso de corpos pequenos, entre “corpúsculo” e “onda”. Algo que só é cuidado em alguma da literatura filosófica de inspiração francesa sobre a Mecânica Quântica99. Serve esta distinção principalmente para tornar 99 Por exemplo, Bachelard ao longo da sua obra refere-se sempre a corpúsculos. O mesmo sucede, embora com flutuações em D'Espagnat (conferir D’Espagnat (2006), On physics and philosophy, Princeton: Princeton University Press.) Porém, nenhum dos dois estabelece a distinção entre corpúsculos e partículas. 81 claro que as ondas, tal como nos corpos admitem partes sucessivamente mais simples. Ou seja, a relação mereológica linear que atribuímos aos corpos, quando se afirma que um corpo é o compósito aditivo de paralelo nas ondas. Por outro corpúsculos, tem o seu lado, desta relação mereológica é permitido pensar num processo de decomposição sucessivo dos corpos ou das ondas, em partes cada vez mais simples. Sucessão levada ad infinitum até se alcançar a mais simples das partes de cada um deles. Isto é, aquela que não pode ser decomponível, mesmo em pensamento. Algo a que designarei por “partícula pura”, visto ser a parte sem partes, uma entidade somente obtenível por um processo mental pensável, isto é, uma entidade ideal ou uma ideia. No caso dos corpos, essa partícula pura é a ideia de corpo pontual. No caso das ondas, essa partícula pura é a ideia de onda plana sinusoidal. Pois, como Fourier mostrou, qualquer onda é decomponível em ondas planas sinusoidais. Por fim, a meu ver, as teorias físicas são definíveis como a procura de uma resposta precisa a um conjunto determinado de questões fundamentais. A Mecânica Clássica pode ser definida como a procura da resposta precisa a duas questões dirigidas, obviamente, aos objectos físicos: onde está?; para onde vai? (ou, de onde vem?) Na tal linguagem vulgar que usamos descuidadamente para descrever o que nos rodeia poderíamos dizer que perguntar “onde está” é 82 procurar saber a localização. E, perguntar “para onde vai é procurar saber “movimento” o só movimento. nos permitem Porém, “localização” responder às e questões características da Mecânica de forma ambígua. Posso dizer que um livro, por exemplo “A Crítica da Faculdade do Juízo”, está na segunda prateleira entre a “A Crítica da Razão Pura” e o “Opus Postumum” e assim dizer a sua localização. Contudo, não estou a dizer precisamente onde está. As páginas respeitantes à introdução não estarão, precisamente, na mesma localização que as páginas que constituem a conclusão. Isto é, por terem espessura, não estarei em condições de dizer precisamente a distância entre dois destes livros. A distância entre capas será diferente da distância entre contracapas. Poderei igualmente dizer que retirarei um desses livros na direcção do cimo da única mesa da sala e assim dizer o seu movimento desde a estante. Porém, não estarei a dizer precisamente “para onde vai”. E, em particular, não estarei em condições de dizer quanto tempo levará o livro no seu percurso entre a estante e o cima da mesa. Dizer precisamente “onde está” é dizer a posição. Dizer precisamente “para onde vai” (ou “de onde veio”) é dizer o momentum. Se a Mecânica se caracteriza pela procura da resposta às referidas questões, então um sistema físico – constituído por um objecto físico, por exemplo - para a 83 Mecânica Clássica, fica completamente definido sabendo-selhe a posição e o momentum. O que é, de resto, um teorema bem conhecido e que aqui é reencontrado, não pela via formal, como é tradicional, mas por uma via que se poderá considerar conceptual. Por outro lado, é relativamente a pedras, livros ou bolas que dizemos que estão e vão. Quer dizer, não as pedras, os livros indiferenciados, ou as bolas abstractos, mas isentos unicamente de corpos qualidades, de diferenciações internas. Significa isto que a Mecânica tem, como seu objecto privilegiado, os corpos. E, por essa via, não admirará que a grande metáfora da Mecânica Clássica seja o jogo de bilhar. No qual saber “onde” e “para onde” é tudo o que um jogador tem a considerar. É como se todas as bolas do inertes, bilhar como suficientemente fossem se iguais, fossem inchados para meros se equivalentes. pontos deixarem Corpos matemáticos tocar pelo exterior. É por isso que, a partir deste jogo, quase os todos os conceitos da Mecânica Clássica podem ser ilustrados. Pois, como bem sabem os jogadores de bilhar, mesmo a bola tem que ser pensada na sua relação à posição. Se há pintas brancas no pano verde do campo de jogo para indicar a posição em que as bolas de bilhar devem colocadas, é porque se pretende assinalar a bola, na sua posição, tem 84 que ser reduzida à condição de ponto. O jogo de bilhar pode prolongar ainda o seu estatuto de metáfora se pensarmos que o jogador tem como objectivo central a previsão precisa do movimento das bolas de bilhar na sua quantidade e sentido. Mas para esse movimento, de quantidade e sentido preciso, não há na língua natural uma palavra especifica. Pelo contrario o físico, depois de reduzir as pedras, os livros e as bolas ao conceito de corpo e depois de reduzir esta a um ponto material, possui ainda um termo técnico que identifica com precisão o movimento e o sentido desse ponto material: o momentum. Ou seja, a Mecânica constitui-se pala redução dos seres concretos do mundo natural aos corpos abstractos e indiferenciados e destes àquilo que, aqui, proponho em Newton designar por “partícula pura dos corpos”. O que surge como “partícula material” ou “massa pontual”100. Por outras palavras, a mecânica faz-se pela redução dos objectos na sua concretude (pedras, livros, etc.) a entidades abstracta e inertes, isto é, a corpos. Mas, o movimento dessa redução, a sua tendência por assim dizer inercial, vai prolongar-se até que do corpo fiquemos apenas com o ponto. Por sua vez, a meu ver, o Electromagnetismo Clássico pode ser definido pela procura da resposta precisa a uma única questão: qual a flutuação do campo electromagnético? 100 Conferir, capítulo III, página 225. 85 Existe aqui uma questões assimetria na fundamentais entre quantidade e no o tipo de Electromagnetismo e a Mecânica Clássica. É uma assimetria relevante. Que, para já, importa somente aqui indicar, sem ainda a explorar ou desenvolver. A esta assimetria voltaremos no próximo capítulo. No entretanto, importa para já assinalar que a questão desdobrada fundamental em duas: do ao Electromagnetismo longo de um pode determinado ser tempo, quantas vezes a flutuação do campo electromagnético perfaz um ciclo, ou seja, realiza uma oscilação completa?; Qual a magnitude dessa oscilação? Perguntar pela quantidade de ciclos ao longo do tempo será procurar saber o ritmo da oscilação. Ou a sua frequência, mas esta entendida de forma vaga. E perguntar pela magnitude da oscilação será procurar saber o seu tamanho. No entanto, “ritmo da oscilação” e “tamanho da oscilação” são termos ambíguos. De uma corda a vibrar, isto é, a oscilar entre dois “pontos” fixos, posso dizer que pulsa com um ritmo maior ou menor. A corda do mais grave de um violoncelo oscila menos vezes, num mesmo tempo, do que a corda do mais agudo de um violino. Porém, não poderei dizer precisamente o quão um oscila mais do que o outro. Por outro lado, posso dizer que uma oscilação é grande ou pequena de tamanho, tendo-me como referencial. Mas com o 86 termo “tamanho” não estou a dizer precisamente a magnitude da oscilação. Dizer precisamente “a quantidade de oscilações completas num certo tempo” é dizer-lhe a “frequência temporal”. Isto é, a quantidade precisamente a de ciclos por “magnitude da unidade de tempo. Dizer oscilação” é dizer-lhe a “amplitude”. Isto é, a distância entre o eixo da oscilação e o seu ponto mais elevado. Portanto, o electromagnetismo tem como objecto as ondas, pois é relativamente a estas que perguntamos magnitude. pelo E seu não Electromagnetismo ciclo admirará seja a oscilatório que a flutuação e grande da pela sua metáfora superfície de do um líquido. As águas ordeiras de um lago, por exemplo. O campo electromagnético é, justamente, pensado na literatura científica a partir da analogia com a superfície de um líquido. Porém, só se pode dizer precisamente qual o ciclo de algo se esse ciclo se repetir constante e eternamente. E da mesma forma só se pode dizer precisamente a frequência e a amplitude de uma onda se esta for uma onda plana sinusoidal. Ou seja, também o electromagnetismo opera uma redução semelhante àquela que, como vimos, a mecânica leva a cabo na passagem do objecto concreto ao corpo e deste ao ponto. Para o electromagnetismo, é necessário passar das ondas em geral para a ideia de uma partícula pura das 87 ondas, que em Electromagnetismo toma a designação “onda electromagnética”. Ou seja, podemos pois dizer que o corpo pontual (ou partícula material) e a onda plana sinusoidal (ou onda electromagnética) são os arquétipos, respectivamente, dos corpos e das ondas. É certo que a palavra arquétipo remete para uma relação entre algo mais rico (o arquétipo) e algo mais pobre (a sombra, a coisa, a materialidade). Ora, neste caso, é o corpo (mais rico) que é reduzido à partícula material ( mais pobre)e a onda (mais rica) que é reduzida à onda plana sinusoidal (mais pobre). Neste sentido seriam os corpos e as ondas os arquétipos e não o contrario. No entanto, ao inverter esta ordem platónica que a palavra arquétipo transporta nas suas entranhas, pretendo chamar a atenção para o encontro da Física com a matemática que neste particular se opera. É porque quer matematizar o mundo que a Física o reduz. Num primeiro passo, a corpos e ondas. E, num segundo passo, reduz estes corpos e estas ondas a partículas puras (tanto de corpos como de ondas). Só assim, com esta dupla redução, tem-se julgado que a Física está em condições de poder matematizar o mundo. Surpreendentemente, seria possível inverter os termos desta relação. Poderíamos dizer que é porque a Física reduz os seres do mundo a corpos e ondas e estes a partículas puras, que se coloca em 88 condições de iniciar a grande operação de matematização do real. No primeiro caso, o motor do desenvolvimento da física é a vontade de matematizar. É essa vontade que está na origem da redução do concreto ao matemático. No segundo caso, é porque já foi operada essa redução, porque o mundo deixou de ser povoado por objectos coloridos, espessos, preenchidos de qualidades que eu posso olha-los como puros arquétipos. Em qualquer dos casos, quando Bohr afirma que “apenas as ideias clássicas electromagnéticas ambiguidades”101, de partículas têm um afirma-o, materiais campo de justamente, e ondas aplicação porque sem apenas relativamente a estas se pode responder, precisamente, às questões que caracterizam tanto a Mecânica, como o Electromagnetismo. Só de um corpo pontual se poderá dizer que possui sinusoidal uma se posição poderá precisa. dizer que Só de possui uma uma onda plana frequência temporal precisa. Isto é, só um corpo pontual e uma onda harmónica plana possuem um valor numérico bem determinado nas suas propriedades. Recapitulemos. Para Bohr, como vimos, existe um Mundo físico que comummente percepcionamos. Mundo físico a que nos referimos quando falamos em “localização”, “movimento”, “ritmo da oscilação”, “tamanho da oscilação”, etc. Termos 101 Conferir página 79, neste mesmo capítulo. 89 que são transversais às línguas naturais e é com os quais verbalizamos a percepção do Mundo físico. Isto é, são os termos com os quais dizemos as propriedades dos corpos e das ondas. Contudo, linguagem natural permitem responder como são também ambíguos. com vimos, E, em precisão os termos da particular, não questões que às caracterizam a Mecânica e o Electromagnetismo. Neste sentido, essencialmente, da oscilação”, e ao “momentum”, à dos transformação “movimento”, quantitativamente “ritmo” linguagem da “localização”, “tamanho a de “ritmo em termos “frequência que ao e como oscilação” se ou referem “movimento”, Respectivamente, temporal” resulta, termos da “localização”, “tamanho”. físicos ao “posição”, “amplitude”. Esta transformação é, como vimos, aquilo a que Bohr designa por refinamento. Tornar propriedades, um discurso portanto, que se qualificativo, refere num às discurso referente à quantificação, ao quantitativo. E neste sentido poder-se-ia obriga a afirmar passar que da a linguagem linguagem da Física natural à Clássica linguagem matemática. Enquanto esta (a linguagem natural) se refere à realidade física que comummente experienciamos, aquela (a linguagem da física) referir-se-ia unicamente à depuração quantitativa dessa realidade. 90 Como consequência desta transformação, os conceitos clássicos são representáveis por símbolos de valor numérico variável. Ou simplesmente, por uma variável. Portanto, a univocidade dos conceitos clássicos é assegurada pelo facto de elas serem susceptíveis de tradução em formalismos matemáticos e sistemas de equações. Assim, os físicos sabem precisamente do que estão a falar quando falam em “momento angular” porque existe uma fórmula matemática que o define. No entanto, a objectividade dos conceitos clássicos não se esgota na sua univocidade, isto é, na sua possibilidade de tradução em linguagem matemática. Essa objectividade, como também vimos, está fundada na abertura ao mundo que caracteriza a linguagem natural. Como vimos, é aí que os conceitos clássicos encontram o seu sentido. Portanto, quando Bohr afirma que materiais “apenas e ondas as ideias clássicas electromagnéticas têm de um partículas campo de aplicação sem ambiguidades” ele não está a referir-se ao problema da objectividade dos termos da Física Clássica, mas à sua univocidade. O que Bohr está a dizer é que toda a linguagem da Física, ao querer-se (ao exigir-se) objectiva, tem como referente, necessariamente, o representante ideal dos corpos e das ondas: o corpo pontual e a onda plana sinusoidal. Em, particular, as partículas materiais e as ondas electromagnéticas. Na verdade, apenas estes 91 arquétipos garantem a univocidade dos conceitos clássicos. Pois, a univocidade dos conceitos clássicos é assegurada pelo facto das propriedades quantitativas serem traduzíveis em símbolos matemáticos. Por fim, se Bohr afirma que a linguagem de Newton e de Maxwell será sempre a dos físicos, será porque julga que o mundo físico, necessariamente, só pode ser descrito em função ou das propriedades dos corpos, ou das propriedades e das ondas. Pois, a Mecânica Clássica é a Física dos objectos físicos com propriedades corpóreas. E, por outro lado, o Electromagnetismo Clássico é a Física dos objectos físicos com propriedades ondulatórias. 2.5. A Pentadoxia. Do que acabamos de ver no paragrafo anterior resulta que, a nosso ver, é legitimo afirmar que o pensamento de Bohr sobre pressupostos. a Mecânica Pressupostos submete à critica, isto é, Quântica que se Bohr funda não em explicita cinco nem extraídos daquilo que o senso comum julga serem os objectos físicos. Neles se suporta o edifício da Mecânica Quântica e a generalidade das leituras filosóficas que sobre ela tem sido propostas e que. em 92 geral, são designadas por "Filosofia da Mecânica Quântica". Cinco pressupostos a que designarei por pentadoxia. 1) Os objectos físicos distinguem-se, quanto à sua detentores de natureza, em ondas e corpos. 2) Todos os objectos propriedades. E físicos são neste sentido, físico é diz-se que são substanciais. 3) Qualquer objecto homeómeras, isto é, em decomponível partes cuja em partes natureza é idêntica ao todo de que são partes. 4) Todas propriedades quantitativas dos objectos físicos têm, intrinsecamente, um valor bem determinado. 5) Quanto à enquanto sua modalidade, possíveis, são os objectos idênticos físicos, aos objectos físicos enquanto actuais. E, nessa actualização os objectos físicos não alteram a sua natureza. Estamos perante um conjunto de pressupostos que tem sido admitidos como óbvios, isto é, que não tem sido objecto de discussão critica, nem do lado dos produtores da mecânica quântica, nem do lado daqueles que procuram pensar os adquiridos da mecânica quântica. Percorrendo-se as páginas da literatura encontramos filosófica quem duvide sobre que a Mecânica Quântica não os objectos físicos são 93 distinguíveis quanto à sua natureza em ondas e corpos102. Pelo contrário, esta distinção é sempre tomada como ponto seguro de partida. Ao dizer-se, como se disse no capítulo anterior, que filosófica todas sobre vias a existentes mecânica na quântica literatura se reportam directamente ao labiríntico dualismo onda-corpúsculo, isto é, o dão quântico, como é condição porque, de acesso precisamente, ao próprio todas domínio essas vias pressupõem que os objectos físicos se distinguem, quanto à sua natureza, em ondas e corpos. O que é deveras surpreendente. Como se explica uma aceitação tão acrítica e tácita que os objectos físicos não possam ser concebidos senão como ondas ou como corpúsculos? Por que não se encontra uma procura por uma concepção de objectos físicos? De forma igualmente especialistas desta área surpreendente, todos os parecem saber o que é um corpo e o que é uma onda. Dois conceitos que nunca se encontram analisados, embora constantemente evocados. É igualmente assumido103 que a distinção entre onda e corpo reside numa clara distinção entre as propriedades destes dois tipos de objectos físicos. É defendido, amiúde, que os corpos são entidades que possuem a propriedade da 102 Conferir, por exemplo, Epperson, Michael (2004), Quantum Mechanics and the Philosophy of Alfred Whitehead, Nova Iorque: Fordham University Press, p. IX. 103 Conferir, por exemplo, Aerts, Diederik (1998), “The Entity and Modern Physics” in Interpreting Bodies (Ed. Elena Castellani), Princeton: Princeton University Press, p.226. 94 localização enquanto as ondas são entidades que possuem a propriedade de interferência à distância, seja com outras ondas, seja consigo mesmo. Em resumo, esta presumível e clara diferença entre corpo e onda nunca é tematizada. Ela é apresentada como se todos soubessem claramente em que consiste. De forma ainda mais radical, é presumido que ondas e corpos são entidades detentoras de propriedades, isto é, que são substâncias. Sendo que, por substancia é invariavelmente suposto aquilo que subjaz às qualidades, aquilo que qualidades104. as suporta, Trata-se de o suporte uma metafísico identificação das demasiado rápida que passa ao lado, e aparentemente ignora, que o conceito de substância é um dos mais antigos e trabalhados conceitos da filosofia. Como explicar este esquecimento? Como compreender este quase recalcamento? Duas razões podem, a meu ver, ser apresentadas. Uma tem a ver com a História da Física, nomeadamente com a forma como Newton incorporou o conceito de substância na Física, como se verá no próximo capítulo. Uma segunda ordem de razões tem a ver com o facto de o conceito de substância como suporte de propriedades ser aquele que mais frontalmente é desafiado pela mecânica quântica. Pois, como foi visto no capítulo 104 Conferir, por exemplo, Falkenburg, Brigitte Metaphysics, Berlim: Springer, p. 120, p.331. (2007), Particle 95 anterior, a dupla natureza dos objectos quânticos desafia esse conceito de substância. Assume-se, igualmente, que o todo é decomponível em partes cuja sua natureza é a igual à natureza do todo de que essas partes são parte. E como tal, numa aproximação quase inevitável às teses atomistas, podemos pensar num processo de decomposição continuada até que cheguemos à ideia de uma parte sem partes. Isto é, a parte simples ou o que designei por partícula pura. Nesta ordem de ideias, havendo duas espécies de objectos físicos, haverá duas espécies de partículas puras ou arquétipos: nos corpos, a partícula material ou corpo pontual; nas ondas, a onda plana sinusoidal. Mas, ao dizer-se que a parte tem a mesma natureza do todo, então temos que admitir que as propriedades são as mesmas tanto para o todo como para a parte. E neste sentido, o todo surge como um mero agregado de partes. Assim, é porque se assume que a parte é da mesma natureza do todo, que podemos dizer a velocidade do todo indicando a velocidade da parte. Deste modo, o todo pode ser representado pela parte. Em particular, pela partícula pura uma vez que só estas podem dar resposta, sem ambiguidades, às questões que caracterizam cada uma das teorias físicas. Ainda por outro lado, ao caracterizar-se a Física como a procura de resposta precisa a questões como “onde está?”, 96 assume-se105 que esta questão terá uma resposta. Isto é, que, intrinsecamente, num dado momento, um objecto físico terá uma posição e um momentum ou uma frequência e uma amplitude bem determinadas. Ou seja, que a cada instante, os objectos físicos possuem valores bem determinados nas suas propriedades quantitativas. Por fim, quanto à modalidade, na extensão de se aceitar que a cada instante os objectos físicos são completamente determinados nos valores das suas propriedades quantitativas aceita-se que as propriedades manifestadas num acto de medição existem, antes desta, em potência no objecto. E, como tal, caracterizando-se os corpos e as ondas pelas propriedades que são detentores, assume-se que na actualização de uma dessas propriedades não existe alteração da natureza. O corpo actualizado é idêntico, isto é, tem a mesma natureza, do corpo enquanto possibilidade. Em conclusão, os conceitos clássicos da Física e, como tal, a própria Física desde Newton, radicam nestes cinco postulados extraídos de um “senso comum” sobre a natureza dos objectos físicos. Senso comum que, como vimos, encontramos com espanto e choque na textura onde se suporta grande parte Quântica. da literatura Especialmente filosófica quando esta sobre se a Mecânica centra, como 105 Conferir, por exemplo, Rae, Alastair (2004), Quantum Physics: illusion or reality?, (2ed) , Cambride: Cambridge University Press, p. 106. 97 veremos, no chamado problema da medição106 e nos decorrentes debates sobre as interpretações, o realismo ou a violação das relações de Bell. Senso comum que em Bohr é transcendentalizado. Pois, como já vimos, ao entender-se por experiência o que é comunicável, e ter como a condição prévia da clássicos, comunicabilidade então este a senso utilização comum dos conceitos torna-se a própria condição de possibilidade da experiência em geral. Por esta via creio Quântica que deve o pensamento ser de classificado Bohr de sobre a Mecânica “transcendentalista”. Contudo, e como bem ressalva Kauark-Leite107, Bohr não é um kantiano. Afinal, embora os conceitos clássicos da física possuam um carácter apriorístico, não são puros. Pois, na sua génese, experiência são comum extraídos do mundo da experiência. físico. Uma De experiência uma que Newton e Maxwell conceptualizaram na construção das suas teorias, fixando-lhes uma semântica unívoca. Considerando que todo pensamento de Bohr sobre a Mecânica Quântica é suportado, no seu mais fundamental, na pentadoxia dos objectos físicos da Física desde Newton, percebe-se agora que a doutrina dos conceitos clássicos não é nada mais que a expressão dessa ontologia implícita. E por via desta última os conceitos clássicos da física são 106 Conferir, neste capítulo, página 156. Conferir Patrícia Kauark-Leite (2010), “Transcendental Philosophy and Quantum Physics” in Revista Internacional de Filosofia, Campinas, v. 33, n. 1, jan.-jun de 2010, P.249. 107 98 os únicos objectivos. São os únicos que podemos conhecer de forma clara e distinta. Para Bohr, os físicos só sabem precisamente do que estão a falar quando falam em posição, velocidade, momentum, massa, frequência temporal, amplitude e todos aqueles que se derivam destes. E, consequentemente, alicerçando-se na pentadoxia dos objectos físico, para Bohr é inescapável concluir que a linguagem dos físicos será sempre a linguagem da Física Clássica. No entanto, podemo-nos perguntar: E o que sucede com conceitos da Física Quântica como, por exemplo, “spin”? A realidade é que, segundo Bohr, não sabemos exactamente do que estamos a falar quando falamos de “spin”. O mais compreensível que podemos dizer é que se trata de algo análogo ao momento angular. Isto é, é que se refere à quantidade de movimento de algo a rodar sobre si mesmo. Como um imaginar pião. que Ou um uma bola. electrão Seriamos seria assim esférico e tentados sentir a que estamos a compreender o que dizemos por “spin”. Apenas para sermos desiludidos quando constatamos que, segundo a Mecânica Quântica, os valores possíveis do spin para um electrão seriam ½ ou – ½. Isto é, que o electrão dá uma volta completa sobre si mesmo quando roda 180º. Uma frase sem sentido. Neste sentido, quando falamos de “spin” Bohr dir-nos-á que não sabemos realmente do que falamos. Apenas podemos estabelecer uma analogia com algo que sabemos o que 99 é, como o “momento angular”. Ou seja, o conceito quântico de spin, como todos conceitos da Mecânica Quântica são generalizações de conceitos da Física Clássica. No conceito de presente, do conceito de “momento angular”. Esta é a função do nível conceptual do princípio da correspondência. Esta é a via pela qual a Mecânica Quântica constitui uma generalização da Física Clássica. E, por esta razão, o princípio da correspondência tem um carácter instrumental. Poderemos agora fazer o caminho inverso e observar o princípio da correspondência em toda a sua extensão. 2.6. Princípio da correspondência: nível conceptual Como já aqui foi visto, se é possível estabelecer uma correspondência Teorias geral Físicas entre Clássicas, a Mecânica é-o, Quântica principalmente, e as pelos conceitos de onda e corpo. O conceito de onda no caso da correspondência entre Electromagnetismo. correspondência Clássica. O entre Portanto, a Mecânica conceito a de Mecânica por um Quântica corpo Quântica lado, no e podemos a e o caso da Mecânica tomar a correspondência formal como resultante da existência de uma correspondência conceptual a que esse formalismo se refere. 100 Por outro, podemos correspondência linguagem da entender estabelece Física que uma Quântica o princípio correspondência e a linguagem da da entre Física Clássica. Correspondência esta que atinge apenas todo o seu alcance no contexto da Mecânica Quântica. A doutrina da indispensabilidade dos conceitos clássicos revela-nos que, mais do que uma referência numérica lá no limite onde a constante de Planck pode ser “ignorada”, e mais do que uma analogia parcial entre formalismos, o princípio da correspondência estabelece como condição, a priori, que uma qualquer teoria física, e a Mecânica Quântica em particular, tem de ser constituída de modo a que os seus conceitos da conceitos Física tenham Clássica. correspondência Pois, só através com os destes últimos o formalismo de uma teoria física poderá adquirir significado. Só através destes haverá objectividade. Esta mesma leitura do princípio é nos dada por Bohr na seguinte afirmação: “[…] a necessidade de fazer um uso extensivo […] dos conceitos clássicos, dos quais depende, em última análise, a interpretação de toda a experiência, deu origem à formulação do chamado princípio da correspondência, que expressa os nossos 101 esforços de utilizar todos os conceitos clássicos dando-lhes uma adequada reinterpretação quantum-teórica” 108 Ou dito na forma que surge com mais frequência nas suas obras: “O princípio da correspondência expressa a tendência de se fazer uso, durante o desenvolvimento sistemático da teoria quântica, de todas as características das teorias clássicas numa transcrição racional apropriada ao contraste fundamental entre o postulado quântico e as teorias clássicas”.109 Através desde entendimento do princípio da correspondência, a que poderemos chamar de nível conceptual do Princípio da Correspondência, Bohr recusa que a Mecânica Quântica possa ser aplicada ao domínio das teorias clássicas ou mesmo que as possa vir a substituir. Pelo 108 “[…] the necessity of making an extensive use, nevertheless, of the classical concepts, upon which depends ultimately the interpretation of all experience, gave rise to the formulation of the so-called correspondence principle which expresses our endeavours to utilize all the classical concepts by giving them a suitable quantum-theoretical re-interpretation.” Bohr, N. (1929), “Introductory Survey to ”The Atomic Theory and the description of Nature” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 6: Foundations of Quantum Physics I (1926–1932), J. Kalckar, ed., Amsterdam: North-Holland, 1985, p. 286. (Tradução minha) 109 “The correspondence principle expresses the tendency to utilise in the systematic development of the quantum theory every feature of the classical theories in a rational transcription appropriate to the fundamental contrast between the postulates and the classical theories.”, Bohr, N. (1925), “Atomic Theory and Mechanics” in Niels Bohr Collected Works, Vol. 5: The Emergence of of Quantum Mechanics (Mainly 1924–1926), Stolzenburg, Klaus ed., Amsterdam: North-Holland, 1984, p. 277. (Tradução minha) 102 contrário, o que defende é que a Mecânica Quântica deve ser entendida como uma teoria que se afasta o mínimo possível das teorias físicas clássicas. Ou melhor, que a Mecânica Quântica é, de algum modo, uma generalização das teorias clássicas da física. Como se defende aqui, que a Mecânica Quântica é uma generalização as teorias racional das teorias clássicas. Mas se físicas clássicas se constroem no suposto implícito que os objectos físicos são ondas ou corpos, como continuar a ser “clássico” se os objectos quânticos não são nem ondas, nem corpos? É este o dilema que consumiu Bohr durante os anos de 1926 a 1928. E é com o propósito de lhe dar resposta que Bohr propõe o seu “princípio” da complementaridade. 2.7. O “Princípio” da Complementaridade. O chamado “princípio” da Complementaridade encontra-se estabelecido, nas suas linhas directoras, no já mencionado artigo de Niels Bohr crismado de “The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory”, de Abril de 1928. No final do primeiro parágrafo desse artigo, Bohr afirma sobre a constituição da teoria quântica: 103 “[…] a sua essência pode ser expressa no chamado postulado quântico que atribui a qualquer processo atómico uma descontinuidade essencial […] completamente estranha às teorias clássicas e simbolizada pelo quantum de acção de Planck”110. Importa recordar que o chamado postulado quântico (ou hipótese Teoria quântica Quântica de Planck) Antiga. encontra-se Consistindo parte de Planck, que a energia atómico não sucede de forma na na génese postulação, radiada por um contínua mas em da por sistema emissões descontínuas111. Postulado a partir do qual (e do modelo atómico de Rutherford) Bohr concebeu o modelo quântico do atómico. Inaugurando-se, assim, a Teoria Quântica Antiga. Por sua vez, é uma consequência do postulado quântico que, ao nível atómico, qualquer interacção entre dois sistemas não pode ser minimizada de um modo contínuo até um valor tão arbitrariamente pequeno quanto se pretenda. Mesmo que os tomemos como sistemas físicos ideais. Isto é, como parcelas do mundo físico isoladas e constituídas por 110 “[…] its essence may be expressed in the so-called quantum postulate, which attributes to any atomic process an essential discontinuity […] completely foreign to the classical theories and symbolized by Planck’s quantum of action”, Bohr, N. (1928), “ The Quantum Postulate and the Recent Development of Atomic Theory” in Nature, Volume 121, Issue 3050, p. 580. (tradução minha) 111 Conferir página 30 deste mesmo capítulo. 104 partículas puras. Pois, afirma Bohr, pelo dito postulado é atribuído a “qualquer processo atómico uma descontinuidade essencial”. As interacções entre sistemas atómicos podem apenas ser minimizadas de um modo descontínuo, por unidades discretas, degrau-a-degrau, quanta por quanta, até ao valor limite de um quantum. Ou seja, até ao valor do quantum de acção de Planck. E nunca menos que este. Valor que, como já foi aqui referido, embora seja quantitativamente mínimo é tremendamente significativo à escala das interacções atómicas e subatómicas. Por outro lado, é preciso ter presente dois aspectos. Em primeiro lugar, qualquer observação de um fenómeno atómico só é possível por intermédio de um instrumento. A que Bohr, neste artigo, designa por “agente de observação”. Mas que em, rigor, deveria designar por “instrumento de medição”. Pois entendido o termo “observação” pode, erroneamente, como se referido a algo visualizável. A distinguir ambas está a distinção entre “ver” (visualizar) e “ver que” (observar)112. Os “fenómenos” atómicos, pela sua intrínseca óptico. pequenez Seja construindo-se da um estarão para sensibilidade hipotético (e além visual do nosso directa. idílico) limite Seja, microscópico 112 Distinção que é trazida do trabalho de Ribeiro, Cláudia (2009), Electrões inobserváveis e estrelas invisíveis, Lisboa: Centro de Filosofia das Ciências da Universidade de Lisboa – colecção Thesis, p. 112. 105 óptico que servisse como um fiel ampliador da nossa acutilância visual. Não há como visualizamos um fenómeno atómico. São-nos invisíveis. Tal como nos são inodoros, insonsos, inaudíveis e intangíveis. Podemos, no entanto, medir os fenómenos através de um instrumento de medida. Como, por electrões. exemplo, E dos um microscópio resultados da de varrimento medição dizer de que observamos. Isto é, dar uma interpretação aos resultados da medida. Portanto, observação de um fenómeno atómico corresponde, na verdade, a uma medição (ou um conjunto de medições) de um sistema atómico. Se existisse um gato à escala atómica – um nano-gato, por exemplo – ele só por nós seria observado se se medissem as posições das suas partes e lhe traçássemos a figura, como fazem as crianças com os desenhos de unir os pontos. Não nunca o veríamos. Em suma, Bohr não está a entender por “observação” visualizável, mas o que é mensurável. E, por o que é isso, em rigor, por “agente de observação” deveremos entender de um “instrumento de medida”. Em segundo coincidência, temporal, em lugar, tanto qualquer espacial terminologia medição como importada consiste temporal da na (espácio- Relatividade de Einstein), entre o sistema medidor – o instrumento – e o objecto de medida. Então, somos facilmente conduzidos a concluir, com Bohr, que: 106 “o postulado quântico implica que qualquer observação de um fenómeno atómico envolve uma interacção com o agente de observação que não pode ser negligenciada”113. Em razão do postulado quântico, não é possível, mesmo idealmente, tomar uma medição (ou, como lhe chama Bohr, uma observação) de um fenómeno atómico como um acto passivo e neutral. E, como tal, não é possível uma medição em que o estado físico do sistema objecto da medida seja imperturbado pela presença do instrumento de medida. Medir é perturbar. É claro que se poderá dizer tal sempre foi sabido. Um termómetro colocado numa sala irá trocar calor com esta. Um amperímetro irá absorver parte da energia do circuito eléctrico. Uma régua colocada junto a folha de papel irá atrai-la graviticamente. Em qualquer dos casos, o valor medido não corresponderá exactamente ao valor antes da medida. Contudo, em qualquer dos casos a perturbação é de um valor tão diminuto, muito menor que a própria escala dos instrumentos de medida, que não é numericamente significativa. Por outro lado, a história da Física desde Newton foi acompanhada pelo desenvolvendo uma teoria de erros de medida. Isto é, um corpo teórico que permitia 113 “[…] the quantum postulate implies that any observation of atomic phenomena will involve an interaction with the agency of observation not to be neglected”, Idem, ibidem. (tradução minha) 107 explicar e prever os erros afectos à medição por imperfeições, desvios às condições instrumentais ideais da medição. Como tal, classicamente é concebível engendrar uma diminuição contínua da interacção entre o sistema medidor e o sistema medido. Em limite, podemos idealizar um acto de medida em que essa interacção seja nula. E, deste modo, afirmar que o resultado da medida corresponde ao valor quantitativo da propriedade do sistema físico objecto da medição. Nestas condições ideais, uma situação física onde o termómetro indicasse, a exemplo, -273,15 K, esta seria a temperatura do sistema medido. Portanto, do postulado quântico resulta, segundo Bohr, que medir é sempre perturbar. Não é idealizável uma medição em que o sistema medido seja indiferente à presença do sistema medidor. Daqui seguiria que, à escala atómica, o resultado de uma medida não reflecte o valor quantitativo da propriedade do sistema físico objecto da medição. O resultado de uma medida reflecte, necessariamente, a interacção entre sistema medido e sistema medidor. Assim, não é concebível um termómetro que meça objectivamente a temperatura, um amperímetro que meça a corrente eléctrica ou uma régua meça o tamanho de um sistema atómico. E, por conseguinte, esvaziar-se-ia de algum sentido expressões, como por exemplo, “a temperatura do átomo é de”. Ou “a dimensão do átomo é”. 108 Do postulado quântico resulta uma subjectividade inevitável associada ao acto de medir. E, como tal, de observar. Subjectividade inevitável que leva Bohr ao seguinte raciocínio: “Por um lado, a definição de um estado de um sistema físico, como é ordinariamente entendido requer a eliminação de todas as perturbações exteriores. Mas, neste caso, de acordo com o postulado quântico, qualquer observação será impossível e, acima de tudo, os conceitos de espaço e tempo perderão o seu sentido imediato. Por outro lado, se permitirmos que existam interacções com os apropriados agentes de medida, isto de forma a ser possível a observação, então uma definição não ambígua do estado do sistema não é, naturalmente, possível, e não pode haver qualquer causalidade no sentido ordinário da palavra”114. A definição do estado de um sistema físico, segundo a Mecânica atribuição Clássica, de um é valor completamente bem estabelecido determinado às pela propriedades posição e momentum. É responder precisamente às questões 114 “On one hand, the definition of the state of a physical system, as ordinarily understood, claims the elimination of all external disturbances. But in that case, according to the quantum postulate, any observation will be impossible, and, above all, the concepts of space and time lose their immediate sense. On the other hand, if in order to make observation possible we permit certain interactions with suitable agencies of measurement, not belonging to the system, an unambiguous definition of the state of the system is naturally no longer possible, and there can be no question of causality in the ordinary sense of the word.”, Idem, ibidem (tradução minha) 109 “onde está?”, possível “para falar de onde vai?”. valores bem Porém, somente determinados será destas propriedades se se tomar como isolado o sistema físico considerado. Isto é, se se considerar o sistema ausente de interacções físicas com o que lhe é exterior. Atribuir um valor bem determinado à velocidade de uma bola de bilhar implica que, para além de representável por um corpo pontual, não está a ser golpeada nem a exaustar-se em atrito. Pois se assim fosse, a posição e o momentum não se conservariam no sistema considerado e, por consequência, não lhes poderíamos atribuir valores bem determinados. Como tal, a definição de um sistema físico “requer a eliminação de todas postulado as perturbações quântico a exteriores”. observação de um Contudo, sistema pelo atómico qualquer envolve uma interacção de valor não nulo com o instrumento de medida, então de um sistema atómico isolado “qualquer observação será impossível”. Um sistema atómico isolado é como uma caixa negra. Um território sempre por cartografar. Uma resposta sempre adiada as questões que caracterizam as teorias físicas clássicas. Por questões, outro lado, então, se se pretende necessariamente, responder ter-se-ão a estas permitir interacções entre o sistema objecto da medição e o sistema agente da medição. Porém, por consequência do postulado quântico, essa interacção, mesmo idealmente, não terá um 110 valor nulo. A medição alterará o valor numérico da propriedade medida. E, como tal, “uma definição não ambígua do estado do sistema não é, naturalmente, possível”. Ao medir o podermos sistema atómico responder à – um electrão, questão por “onde exemplo está?”. - Mas, simultaneamente, introduzimos uma perturbação tal que nos impossibilitará sistema, à de responder questão “para precisamente, onde vai?”. para esse Assim, por consequência da perturbação intrínseca ao acto de medir, não será possível definir a evolução causal do sistema. Ou nas palavras de Bohr, “não pode haver qualquer causalidade no sentido ordinário da palavra”. Daqui, conclui: “a considerar própria a natureza co-ordenação da teoria quântica espácio-temporal e a força-nos asserção a da causalidade, união que caracteriza as teorias clássicas, como aspectos complementares mas exclusivos da descrição […]”115. Esta passagem assinala a primeira vez em que surge o termo “complementaridade” nos trabalhos publicados de Bohr. E constitui, igualmente, o enunciado do primeiro tipo 115 “The very nature of the quantum theory thus forces us to regard the space-time co-ordination and the claim of causality, the union of which characterizes the classical theories as complementary but exclusive features of the description, symbolizing the idealization of observation and definition respectively” Idem, ibidem (Tradução minha) 111 complementaridade: a que podemos designar por “espaciotemporal-causal”. De seguida, Bohr natureza dos objectos radiação luminosa enfrenta-se quânticos. como para o com Tanto caso o problema para dos o da caso da constituintes atómicos da matéria. No caso da radiação luminosa, Bohr relembra que a sua propagação é adequadamente descrita pela teoria electromagnética de Maxwell. Teoria onde – recorde-se - se concebe a luz como uma flutuação de um meio contínuo: o campo electromagnético. Ou seja, onde se toma a luz como uma entidade com uma natureza ondulatória. Contudo, a conservação da energia e de momentum durante as interacções entre a luz e a matéria, como no caso do efeito fotoeléctrico, por exemplo, é adequadamente descrita, tal como mostrou Einstein116, concebendo a luz como uma entidade constituída não por uma ondas, mas por corpos de dimensões físicas ínfimas, por corpúsculos de luz. Ou seja, por fotões. Assim, por um lado, somos levados a dizer que a luz tem uma natureza propagação. dizemos que E, ondulatória por a outro luz tem lado, uma no que com a concerne mesma natureza à sua confiança, corpórea (ou 116 Conferir Einstein, Albert (1905, "On a Heuristic Viewpoint Concerning the Production and Transformation of Light" in Annalen der Physik 17: 132–148. 112 corpuscular) no que respeita à alteração do estado físico por consequência da sua interacção com a matéria. O caso matéria, da natureza segundo dos Bohr, é constituintes análogo ao atómicos da da radiação electromagnética. Por um lado, na propagação diz-se que um electrão é uma onda. Por outro lado, no que diz respeito à interacção, seja constituintes com atómicos, a luz, somos ou seja levado a com dizer outros que um electrão tem a natureza dos corpúsculos. Portanto, tanto para a luz, como para os constituintes mínimos propagam da matéria, como uma somos onda e, conduzidos no a entanto, dizer que interagem se como corpúsculos. Tanto a luz, como as fracções atómicas da matéria, somos seduzidos a dizer que possuem uma dupla e contraditória natureza. Ora corpúsculo, ora onda. O que constitui o já conhecido paradoxo da natureza dos objectos quânticos. Reaparece, uma vez mais a questão: o que é um objecto quântico? Aparentemente, tão insolúvel como inevitável. Mas agora é o momento em que Bohr enfrenta directamente. É um dos momentos decisivos da constituição da Mecânica Quântica. Diz-nos o físico dinamarquês: 113 “[…] nós não estamos a lidar com imagens contraditórias mas complementares, que apenas juntas oferecem uma generalização natural dos modos clássicos de descrição”117. A terminologia de Bohr derrapa uma vez mais. Como sempre parece suceder em momentos decisivos. Agora surgenos o termo “imagem”. No entanto, creio que por “imagem” Bohr está simplesmente a entender uma representação visual dos conceitos de onda e de corpo. A sua ilustração. Como tal, se este esclarecimento permite controlar a derrapagem, penso que é entendível das palavras de Bohr que devemos considerar as ondas e os corpos não como entidades com naturezas contraditórias, mas como entidades com naturezas complementares. Tal como se nos dissesse que não devemos considerar a luz e a sombra, a vida e a morte, o cheio e o vazio não como contraditórios, mas como complementares. Algo que, de algum modo, nos faz recordar o Tao Te Ching (ou Dao De Jing) de Lao Tzu. Quando neste se insiste na complementaridade dos opostos Yin e Yang. Onde um evoca sempre o outro. O sábio procura não marcar a oposição, mas o estado de equilíbrio, de harmonização, entre eles. Talvez tenha sido esta proximidade que tenha levado Bohr a 117 “We are not dealing with contradictory but complementary pictures of the phenomena, which only together offer a natural generalization of the classical mode of description” Idem, ibidem. (tradução minha) 114 escolher o tão conhecido diagrama T’ai-chi T’u como seu brasão de armas. Mas seja qual tenha sido a influência orientalista no pensamento de Bohr, importa regressar à citação anterior. E podemos interpretar esta entendendo que Bohr nos diz que “onda” e “corpo” embora mutuamente excludentes, por serem contrários, ambos são necessários, de forma complementar, à descrição completa dos sistemas quânticos. Em particular, dos sistemas atómicos. Temos assim o segundo tipo de complementaridade: a complementaridade onda-corpúsculo. Não é claro ao logo deste artigo de Bohr de 1928, tal como nunca ficou claro ao longo da sua obra, se existe uma interligação intrínseca entre estes dois tipos de complementaridade. Uma articulação fundamental. Ou mesmo se estes são apenas dois casos particulares da aplicação de um princípio comum: o tal princípio de complementaridade. Termo este, no entanto, que, como já aqui se afirmou118, Bohr nunca terá utilizado. Na realidade, como assinala, entre outros, Max Jammer119, Bohr nunca oferece uma definição clara do que seja a “complementaridade”. Segundo este autor o mais próximo que Bohr esteve de nos conceder 118 Conferir Folse, Henry J. (1985), The Philosophy of Niels Bohr, New York: Elsevier S.P., p. 18. 119 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & Sons, p.95. 115 uma definição de “complementaridade” terá surgido em 1929, quando declara: “A indivisibilidade do quantum de acção [isto é, o postulado quântico] […] força-nos a adoptar um novo tipo de descrição designado qualquer aplicação simultâneo de diferente, são por dos outros complementaridade, conceitos conceitos igualmente clássicos clássicos necessários no pressupõe que, para sentido a numa o que uso conexão elucidação do fenómeno”120. Na realidade, a afirmação “qualquer aplicação dos conceitos clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros conceitos acrescenta clássicos” pouco ou para uma nada em elucidação do relação ao fenómeno, que já característico na Física Clássica. Em Mecânica Clássica, recordemos, a exemplo, a elucidação de um fenómeno requer a utilização simultânea e conjunta dos conceitos de posição e momentum. Neste sentido estas palavras de Bohr não serão, por si só, especialmente esclarecedoras. No entanto, Bohr acrescenta “numa conexão diferente”. E deste modo, embora 120 “The indivisibility of the quantum action […] force us to adopt a new mode of description designed as complementary in the sense that any given application of classic concepts precludes de simultaneous use of other classic concepts which in a different connection are equally necessary for the elucidation of the phenomena” Idem, ibidem (Tradução minha). 116 de forma pouco segura, poder-se-á entender que a complementaridade é para Bohr “um novo tipo descrição”, cuja tipologia particular caracteriza-se pelo uso de simultâneo de conceitos clássicos que se contradizem com vista à “elucidação do fenómeno”. Por outro lado, da citação anterior é notório que Bohr percebe a complementaridade como consequência do postulado quântico. Como algo que é forçado por este. E, por essa via, seria forçado, para Bohr, pela própria essência da teoria quântica. Pois, recordemos, para o físico dinamarquês, a essência da teoria quântica encontra a sua expressão no postulado quântico. Logo, a complementaridade deve ser tida não como uma interpretação da Mecânica Quântica, nomeadamente do seu formalismo, mas como condição da constituição desta. Como condição de possibilidade de constituição de qualquer teoria quântica, poderia avisarnos Bohr. Porém, a meu ver, a complementaridade não é uma consequência inescapável do postulado quântico, e muito menos uma condição de possibilidade de teorias quânticas em geral. A complementaridade é consequência da perseverança da pentadoxia sobre os objectos físicos e da visível, a doutrina dos conceitos clássicos, sua face perante a aparente a questão da natureza dos objectos quânticos. É-o, antes de mais, porque todo o argumento da complementaridade pressupõe, de forma implícita, a tese que não podemos 117 descrever os fenómenos físicos senão através dos conceitos da física clássica. E, vemo-lo em passagens, como na citação anterior, em que se afirma à guisa de definição de complementaridade que “qualquer aplicação dos conceitos clássicos pressupõe o uso simultâneo de outros conceitos clássicos”. Na verdade, as teses centrais do artigo de 1928 - e talvez do expostas parágrafo. próprio logo nas Linhas pensamento duas sobre Bohriano primeiras as quais - linhas não se encontram-se do primeiro têm escrito suficientes páginas de filosofia. Afirma-se: “A teoria quântica é caracterizada pelo reconhecimento de um limite fundamental das ideias da física clássica quando aplicadas aos fenómenos quânticos. Esta situação assim criada é de uma natureza peculiar, dado que a nossa interpretação das experiências reside essencialmente em conceitos clássicos.”121 Desta citação de Bohr, em primeiro lugar, é reconhecível a referida doutrina quando nos afirma “a nossa interpretação das experiências reside essencialmente em 121 “The quantum theory is characterized by the acknowledgment of fundamental limitation in the classical physical ideas when applied to atomic phenomena. The situation thus created is of a peculiar nature, since our interpretation of the experimental material rests essentially upon the classical concepts”, idem, p. 580. 118 conceitos clássicos”. E encontramo-la presente tipos de complementaridade. complementaridade No primeiro espaciotemporal-causal – nos dois tipo de – a forma um pouco arrevesada. Pois, sem o justificar, Bohr refere-se tanto ao espaço-tempo, como à causalidade, como conceitos clássico da física. E, nesta medida, no primeiro tipo de complementaridade é pressuposto que a representação espácio-temporal e causalidade sejam conceitos necessários para a descrição dos fenómenos físicos. Encontramos, igualmente, a presença da doutrina dos conceitos clássicos complementaridade. no Pois caso esta do ao segundo fazer-se a tipo de partir da oposição entre os conceitos de onda e de corpúsculo, faz-se pressupondo que essas são as duas únicas concepções possíveis dos objectos físicos. Seja num caso ou noutro, os conceitos clássicos são apresentados, no quadro da complementaridade, como condições necessárias à descrição dos fenómenos físicos em geral, e por particular. conseguinte, Deste modo, dos uma fenómenos atómicos correspondência em necessária entre o modo de descrição dos fenómenos macroscópicos e atómicos, entre os conceitos de física clássica e os conceitos de física atómica. Assim, encontramos igualmente 119 a presença, em ambos tipos de complementaridade, do princípio da correspondência. No entanto, da doutrina dos conceitos clássicos e a aplicação do princípio da correspondência não decorre, por si só, a natureza complementaridade. de todos objectos Pois, por físicos um fosse lado, se a inteiramente corpórea, toda Física seria, em última análise, Mecânica. E, como tal, toda situação física poderia ser explicada através da ideia de corpo pontual, dos conceitos clássicos da Mecânica e ilustrada através de um jogo de bilhar. Em particular, uma física do átomo seria nada mais que uma generalização da Mecânica para o domínio do ínfimo. Tal como a Mecânica celeste é uma generalização da Mecânica para o domínio do astronómico. Existindo uma consequente correspondência entre os conceitos de uma e de outra. Esse era o projecto de Heisenberg, que pretendia construir uma teoria atómica unicamente corpuscular. O que o conduziu à Mecânica conta da Matricial122. propagação Esta, de um porém, nunca sistema conseguiu quântico. E, dar por consequência, de aspectos como a difracção da luz, para se dar um exemplo. Por outro lado, se a natureza de todos objectos físicos fosse inteiramente ondulatória, toda a Física seria algo 122 Conferir, por exemplo, Cushing, James T. (1998), Philosophical Concepts in Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 284. 120 semelhante ao Electromagnetismo. E, como tal, quase toda situação física poderia ser explicada através dos conceitos clássicos do Electromagnetismo e ilustrada através da flutuação de águas de um lago. Em particular, uma física do átomo seria nada mais que uma generalização do Electromagnetismo. Esse era o projecto de Schrödinger, que pretendia construir uma ondulatória123. O que contacto o trabalho com o teoria conduziu, de De atómica depois unicamente de Broglie, entrar à em Mecânica Ondulatória. E que está na origem da actual interpretação estocástica conseguiu da dar Mecânica conta Quântica. Esta, satisfatoriamente, por porém, nunca exemplo, da interacção, ao nível atómico, entre a radiação e a matéria. A verdade é que Bohr sempre rejeitou tanto o projecto de Heisenberg, como o de Schrödinger. E se o encontramos na citação anterior a defender o uso necessário dos conceitos clássicos, encontramo-lo, igualmente, logo na primeira frase, a afirmar que a característica das teorias quântica é “o reconhecimento de um limite fundamental das ideias clássicas”. Nomeadamente, das ideias de partícula material e onda electromagnética. Um limite que é sinalizado pelo postulado quântico. Um limite que tem, no entanto, a sua razão na questão da natureza dos objectos quânticos. O 123 Conferir, Schrödinger, Erwin (?), “What is an Elementary Particle?” in Interpreting Bodies, Elena Castellani ed. (1998), Princeton: Princeton University Press, pp 197-210. 121 postulado quântico é, na verdade, uma desta consequência desta. Um seu corolário. É claro que será estranho dizer que um postulado é um corolário. No entanto, essa transição é apenas fruto da própria evolução histórica da teoria quântica. É um anacronismo de Bohr. O postulado quântico surge, recorde-se, no contexto da teoria quântica antiga. Onde era realmente a postulação que a radiação electromagnética interagia com a matéria por quantidades discretas. Porém, na mesma medida que a transição entre a Teoria Quântica Antiga e a Mecânica Quântica se dá por razão da hipótese de De Broglie, o postulado quântico de Planck é integrado na nova teoria quântica como um corolário. Pois, dado que o problema da natureza dupla dos objectos quânticos consiste – recorde-se – no facto que estes propagarem-se como ondas e interagirem como corpúsculos, então será um corolário do referido dualismo dizer que a interacção entre sistemas atómicos, que são sistemas quânticos particulares, se realiza de forma descontínua, isto é, corpuscularmente. E, em particular, que qualquer processo atómico envolve uma descontinuidade essencial. O que nada mais é justamente a definição que Bohr no artigo de 1928 dá de “postulado quântico”. Como tal, a meu ver, Bohr compreende bem que é a própria natureza dos objectos quântica a impor um limite à aplicação das ideias clássicas. E, por consequência, 122 limitar, igualmente, a aplicabilidade dos conceitos clássicos. Limite que é expresso no postulado quântico. E que como tal, no seu entender, é forçosamente uma característica de uma qualquer teoria quântica. Pois não existindo tal limite a teoria atómica, por exemplo, seria naturalmente incorporada numa generalização de uma das teorias clássicas. Compreende-se então o dilema de Bohr, o mesmo que se encontra na génese da constituição da Mecânica Quântica: como dar conta da natureza quântica sem deixar de ser fiel à concepção clássica dos objectos físicos? Ou como será a formulação mais próxima de a de Bohr: “como integrar o postulado quântico nas teorias clássicas?”. E do segundo tipo de complementaridade compreende-se a solução de Bohr: os conceitos de corpo e de domínio quântico, não devem onda, quando aplicados ao tomados como contraditórios entre si, mas complementares. E, por consequência, o mesmo ocorrerá para os conceitos que se reportam ora aos corpos, ora as ondas. Creio ser, neste momento, entendível o movimento de Bohr. Movimento derradeiro e decisivo para a constituição da Mecânica solucionado Quântica. está, irresolubilidade e da Como perante questão o a da que não tem persistente natureza solução e aparente dos objectos quânticos, Bohr decide evitá-la. Retira-se estrategicamente do campo da ontológica e coloca-se no domínio da 123 epistemologia. Pois ao afirmar que a complementaridade consiste na aplicação conjugada dos conceitos de corpo e onda, Bohr, no fundo, esquiva-se de enfrentar a perturbadora natureza dos objectos quânticos, de responder à questão “o que é?”, focalizando-se na questão “como descrever os fenómenos quânticos fazendo uso dos conceitos clássicos?”. quântica Como deve se dissesse ser que, descrita por como vezes, a coisa ondulatória e conjugadamente, nas outras vezes, deve ser descrita como corpuscular, sem complementaridade nunca se dizer é o acordo que “coisa” é possível no essa. A desacordo insanável entre a pentadoxia e a questão da natureza dos objectos quânticos. Contudo, não é uma resposta a esta última. É uma forma hábil de a evitar. De lhe fugir. De a ignorar. Se os objectos quânticos fossem ornitorrincos e Bohr não um físico mas um biólogo, a sua reacção perante a célebre aparição do ornitorrinco seria defender que não importa se este animal é um Mamífero ou é um Réptil. Nem, muito menos, ousar-se repensar as categorias de Mamífero ou de Réptil. A reacção de Bohr seria, julgo, afirmar que devemo-nos salvar do tormentoso paradoxo que esse animal nos oferece dizendo descrito como Mamífero e apenas Mamífero, Réptil e não que nuns noutros como aspectos como pode Réptil. contrários, ser Tomemos mas como complementares. 124 Este ardiloso desviar da nossa atenção da ontologia para a epistemologia, da questão da natureza dos objectos quânticos, para a questão de como descrever os fenómenos quânticos, é um gesto de ilusionista que parece fazer desaparecer o obstáculo principal, mas que, contudo, não é realizado sem gravíssimas consequências. Aliás, a meu ver, é a raiz de todas maleitas filosóficas da Mecânica Quântica. Um conjunto de implicações mais directas encontra-se expresso no primeiro tipo de complementaridade: complementaridade espácio-temporal/causal. Ao descreveremse os fenómenos conceitos de incapacidade quânticos corpo de e onda, qualquer um fazendo por uso um destes conjugado lado, e conceitos dos dado a agarrar a natureza dos objectos quânticos, resulta que a descrição é sempre incompleta. propagação, fazendo Quanto uso melhor do os descrevemos conceito de onda, na pior sua os descrevemos na sua interacção como corpúsculos. Ou seja, quanto melhor sabemos onde está, pior sabemos para onde vai, ou de onde veio. E o inverso. O que é justamente o que Heisenberg nos diz nas suas relações de incerteza: quanto melhor sabemos o momentum (e, por consequência, a velocidade), pior sabemos a posição; quanto melhor sabemos a posição, pior sabemos o momentum. O que, no fundo, é o que é dito por Bohr no primeiro tipo de complementaridade. 125 Se sabemos a espaciotemporalidade do objecto quântico, deixamos de saber a sua evolução causal. E vice-versa. Estas relações de incerteza, que estão contidas no primeiro tipo de complementaridade, têm três implicações. Em primeiro lugar, se os conceitos clássicos da física forem entendidos com um estatuto de conceitos a priori, significa isto que, em termos kantianos, existirá uma complementaridade entre a sensibilidade (algo que aparece no espaço-tempo) e o entendimento (categoria da causalidade). E, por conseguinte, os fenómenos quânticos seriam epistemologicamente indetermináveis. Seriam objectos de conhecimento de experiência eternamente incompletos. Ou para se ser fiel a Kant, nem objecto124 seriam, pois, justamente, não seriam algo que aparece aos sentidos e é determinável pelo entendimento. Apenas seriam, ou aparição de algo aos sentidos, ou pura especulação da razão. Portanto, o primeiro tipo de complementaridade assinala o limite inultrapassável da capacidade de conhecimento. Limite esse que é expresso, matematicamente, nas relações de Heisenberg. Este seria então o âmago do primeiro tipo de complementaridade: Assinalar que a própria natureza dos objectos quânticos marca o limite da capacidade legisladora do sujeito transcendental. A complementaridade é como uma 124 No capítulo seguinte analisámos o conceito de objecto físico em Kant. 126 placa que indica o fim do mundo conhecível. E, por conseguinte, daqui decorreria que a Mecânica Quântica seria a última teoria da Física. É a tese, como refere Popper, do “fim do percurso”125 da Física. Em segundo lugar, da nossa limitação transcendental na descrição dos fenómenos quânticos decorre que não é possível determinar o resultado de uma medida a não ser probabilisticamente. Em terceiro lugar percebe-se a conexão entre os dois tipos de complementaridade. A primeira, que até aqui chamámos de espácio-temporal/causal, a que, como salienta Murdoch126, também poderíamos ter chamado de cinemática/dinâmica, pois estabelece-se entre a evolução no espaço-tempo e a interacção física, é uma complementaridade epistemológica. Enquanto a segunda é uma complementaridade ontológica. São tipos de complementaridades distinto na justa distinção que existe entre esses campos filosóficos. Compreende-se assim que Bohr nunca os tenha formulado como um “princípio” geral e uno. Ou que um pode ser reduzido a outro. A relação entre os dois tipos de complementaridade é a relação entre epistemologia e a ontologia. E, como tal, a meu ver, a complementaridade espácio-temporal/causal não é 125 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 27. 126 Conferir Murdoch, Dugald (1987), Niels Bohr’s Philosophy of Physics, Cambridge: Cambridge University press, pp. 58-60. 127 derivável da complementaridade onda/corpúsculo, mas é consequente. Por outro ontologia para lado, a do já referido epistemologia deslocamento resulta que a da Mecânica Quântica constitui-se como uma teoria carente de ontologia. Mário Bunge, um dos poucos a compreender bem a importância e gravidade da questão da natureza dos objectos quânticos, defende que a Mecânica Quântica é uma teoria à procura do seu referente127. Aponta, justamente, para esta ausência como Mecânica o coração da debilidade filosófica da Quântica. E para suprir esta carência avança com distinção entre objectos classões e físicos objectos clássicos, quânticos, a a que que designa por designa por quantões128. A Física Clássica referia-se aos primeiros. A Mecânica teriam Quântica como aos segundos. propriedades a Os posição objectos e o clássicos momentum. Os objectos quânticos teriam como propriedades a quasição e o quasimomentum. A meu ver, se Bunge acerta na questão, não alcança a solução. Não posso compartilhar da sua proposta pois esta entidades consiste, – os no fundo, quantões – na postulação detentoras das Ad-Hoc de bizarras propriedades quânticas da dispersão de posição – quasição – e dispersão de momentum – quasimomentum – sem que Bunge 127 Conferir Bunge, Mario (1982), Filosofia de la Fisica, Barcelona: Ariel, pp. 110. 128 Conferir, idem, pp 118-121. 128 diga o que são os quantões (ou objectos quânticos). Ou, para se ser mais preciso e justo, o que é isso de uma entidade com uma dispersão de posições e momentum? Por outro lado, a proposta de Bunge levanta outros problemas como a relação entre quantões e classões ou o que sucede numa medição. Não compartilho do optimismo reservado de Bunge quando ainda julga tratar-se de um problema da interpretação do formalismo e não da teoria em si. De tratar-se saber a quem a Mecânica Quântica se refere. A meu ver a situação é mais grave e fundamental. Digo que a Mecânica Quântica carece de ontologia e julgo que sempre assim será pois essa é a sua essência. E afirmo-o pois o seu processo de constituição passa, justamente, por não se referir aos objectos quânticos, mas apenas aos resultados de medições. É fá-lo porque a sua ontologia de partida é incompatível com a natureza das entidades à qual uma genuína Mecânica dos Quanta dever-se-ia referir. Na Mecânica Quântica não há um objecto que se concebe, mas apenas um sujeito que organiza a sua experiência sensível de acordo com um conjunto de categorias inamovíveis. A Mecânica Quântica coloca-se quase totalmente do lado do sujeito, pois o objecto é tido como incognoscível. 129 Neste sentido, a Mecânica Quântica uma teoria que, contrariamente a todas teorias científicas, não explica, não descreve, não nos dá a ver o que se passa. A Mecânica Quântica é, a meu ver e como a seguir pretendo ilustrar através da análise dos seus postulados, uma pura máquina de previsão de resultado de medições. Como se tratasse de um modelo teórico de previsão probabilística de resultados de uma roleta ou das cartas de um baralho. Ela prevê, mas não explica. Ela capacita-nos para antecipar o conjunto de resultados possíveis de uma medição, mas não nos oferece uma cosmovisão ou mundivisão do domínio dos quanta. Por esta razão e se, como afirma Popper, “toda a ciência é cosmologia”129 cautelosa, poder-se-ia mas, até igualmente, dizer, num de forma muito de grande assumo atrevimento, que é duvidoso que a Mecânica Quântica seja uma teoria científica. Deixemos, no entanto, em aberto tão herética questão que não é, de momento, a nossa. O problema da Mecânica Quântica é, tal como Popper bem intuiu, fundamentalmente, um problema de compreensão130. Não do seu formalismo e como trabalhá-lo. O que tem sido realizado com inegável sucesso. Mas no sentido que a teoria quântica nova constitui-se negligenciando, ou melhor, recusando a possibilidade de uma compreensão do domínio 129 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics (tradução do Inglês por Nuno Ferreira da Fonseca, “A Teoria dos Quanta e o Cisma na Física”), Lisboa: Dom Quixote, p. 23. 130 Idem, ibidem. 130 sobre o qual versa. Recusa fundada na sua incondicional impossibilidade de se responder, ou sequer dar sentido, à questão: o que é um objecto quântico? E, como tal – e sem surpresa - toda tentativa ou cedência à tentação de ontologizar esta teoria só nos leva a enganos e múltiplas confusões. É deste movimento de malabarista entre os pressupostos ontológicos que estão na raiz dos conceitos clássicos, a indispensabilidade destes e da sua incapacidade de dar conta da natureza dos objectos quânticos, que se que se constitui a Mecânica Quântica. Assim, de uma análise aos postulados da Mecânica Quântica, revelar-se-ão dois aspectos fundamentais: Em primeiro lugar, que a Mecânica Quântica é, na sua essência, uma generalização racional das teorias clássicas. Isto é, uma extensão dos seus formalismos. Como veremos a seguir os objectos quânticos são descritos formalmente na sua propagação como ondas. Isto é, são tomados por ondas de Fourier, sem no entanto que isso corresponda a uma entidade que ondule. Os objectos quânticos são descritos formalmente na sua interacção como corpos (ou corpúsculos). Isto é, são tomados por partículas pontuais, sem no entanto que isso corresponda a uma entidade corpórea. A uni-los encontra-se o chamado “delta de Dirac”, que permite, formalmente, 131 considerar as partículas pontuais como uma sobreposição infinita de ondas de Fourier. Uma espécie de instrumento formal da complementaridade. Em segundo lugar, que é esta incompreensão sobre a natureza da Mecânica Quântica, isto é, do não reconhecimento que esta é uma generalização racional das teorias clássicas e, por consequência, que é uma teoria que não tem como referentes os tais objectos quânticos, é, a meu ver, a razão de ser das labirínticas complicações em que se perde parte da Filosofia da Mecânica Quântica. 2.8. Os postulados da Mecânica Quântica. A Mecânica Quântica, que tantas e tantas vezes, e pelos Física mais insuspeitos Quântica, como autores, se a é também Física e designada Mecânica por fossem claramente sinónimos131, pode ser apresentada a partir de um conjunto de postulados. Tal é, de resto, comum a todas teorias em Física. E tal como é comum a todas teorias em Física os postulados da Mecânica Quântica são expressos 131 Se fossem sinónimos então o Electromagnetismo e o Electrodinâmica Quântica teriam de ser reduzíveis à Mecânica, o que está longe de ser claro que assim o seja. 132 segundo um determinado formalismo matemático. Porém, no caso particular da Mecânica Quântica, os seus postulados conhecem diversas formulações. Como a Mecânica Matricial de Heisenberg, ou a Mecânica Ondulatória de Schrödinger. Estes formalismos, no entanto, tal como Dirac demonstrou e é bem conhecido, são matematicamente equivalentes entre si132. O formalismo mais presente tanto na literatura filosófica, como na literatura científica, que se dedicam à Mecânica Quântica é aquele que foi proposto por Von Neumann, em 1932, na sua célebre obra Mathematical Foundations of Quantum Mechanics. Esta formulação fundamental da Mecânica Quântica surge-nos, por exemplo, no sempre referenciado The Philosophy of Quantum Mechanics de Max Jammer: “Axioma I. A cada sistema corresponde um espaço de Hilbert H cujos vectores (vectores de estado, funções de onda) descrevem completamente os estados do sistema. Axioma II. A cada observável P corresponde unicamente um operador auto-adjunto A de acção em H. Axioma III. Para um sistema no estado φ, a probabilidade probA(λ1,λ2|φ) que o resultado de uma medição do observável P, representado por A, se encontre entre λ1 e λ2, é dada por ║(Eλ2 Eλ1)φ║2, onde Eλ é a resolução da identidade pertencente a A. 132 Conferir Dirac, P.A.M (1935), Mechanics, London: Clarendon Press. The Principles of Quantum 133 Axioma IV. O desenvolvimento temporal do vector de estado φ é determinado pela equação Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (equação de Schrödinger) onde o hamiltoneano H é o operador evolução e ℏ é a constante de Planck dividida por 2π. Axioma V. Se a medição de um observável P, representado por A tiver um resultado dentro do intervalo entre λ1 e λ2, então o estado do sistema imediatamente após uma medição é uma função própria de (Eλ2 - Eλ1)“133 Trata-se, como é bem patente, de um formalismo de uma apreciável sofisticação (e elegância) matemática. De assinalável valor para o labor do físico. Mas, no entanto, não é a mais adequada expressão dos postulados da Mecânica Quântica para o labor filosófico. Não o é, em primeiro 133 “Axiom I. To every system corresponds a Hilbert space H whose vectors (state vectors, wave functions) completely describe the states of the system. Axiom II. To every observable P corresponds uniquely a self-adjoint operator A action in H. Axiom III. For a system in state φ, the probability probA(λ1,λ2|φ) that the result of a measurement of the observable P, represented by A, lies between λ1 and λ2 is given by ║(Eλ2 - Eλ1)φ║2, where Eλ is the resolution of the identity belonging to A. Axiom IV. The time development of the state vector φ is determined by the equation Hφ=iℏ𝜕φ/𝜕t (Schrödinger equation), where the Hamiltonian H is the evolution operator and ℏ is Planck’s constant divided by 2π. Axiom V. If the measurement of the observable P, represented by A, yields a result between λ1 and λ2, then the state of the system immediately after the measurement is an eigenfunction of (Eλ2 - Eλ1), Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics, New York: John Wiley & sons, p. 5. (Tradução minha). 134 lugar, porque o labor filosófico não se faz pelo uso de formalismos matemáticos sofisticados, como é caso do formalismo de Von Neumann. O labor filosófico faz-se pelo uso das palavras e a sofisticação dos conceitos. Porque preferem, então, os filósofos o formalismo de Von Neumann? Talvez porque seja esse o da preferência dos físicos. O que pode ser encontrado com mais facilidade nos manuais de física. Ou formalismo estará talvez de em Von porque Neumann desacordo que o é filósofo de o que inspiração seu labor prefere o analítica e não se faça acentuadamente pelo formalismo. Ou ainda porque talvez o filosofo creia que os postulados quânticos não se podem apresentar senão de forma matemático-formal. Como veremos, já de seguida, tal não é o caso. Em segundo lugar, digo que o formalismo de Von Neumann não é o mais indicado para o labor filosófico pois tratase, na realidade, de um meta-formalismo. Isto é, de um formalismo construído, deliberadamente, para englobar os formalismo de Heisenberg e Schrödinger numa unidade. Tal é explicitamente Mathematical assumido Foundations pelo of próprio Quantum Von Neumann Mechanics134. no Esta operação de unificação formal, que muito útil é para o 134 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351 135 físico, a meu ver, afasta o filósofo da questão fundamental da Mecânica relação Quântica. entre a Obscurece-a, constituição da pois a Mecânica tão decisiva Quântica e o problema da natureza dos objectos quânticos fica como por detrás de um pano, como uma sombra chinesa. Passamos a ver coelhos onde há dedos. Assim, os postulados da Mecânica Quântica que a seguir apresento, apresento-os de forma, quase totalmente, discursiva e baseando-me na formulação rigorosa, clara e inspirados que surge na Introdução à Física Moderna de Andrade e Silva135. Posto isto, a meu ver a Mecânica Quântica pode ser enunciada, no seu essencial, a partir dos cinco postulados que se seguem: Primeiro Postulado da Mecânica Quântica: o estado de um sistema quântico136, para um dado instante, é completamente definido por uma função de onda Ψ(q1,q2,q3,t). 135 Conferir Andrade e Silva, J. (1997), Introdução à Física Moderna, Lisboa: Associação dos Estudantes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, pp. 113-117. 136 Note-se que, em sentido estrito, os sistemas quânticos distinguemse dos sistemas físicos clássicos apenas de forma nominal. Isto é, a distinção entre sistemas clássicos e quânticos reside unicamente no facto dos primeiros serem constituídos por objectos físicos clássicos e os segundos por objectos quânticos. Por seu turno, os sistemas físicos, sejam eles clássicos, sejam eles quânticos, podem ser individuais, quando constituídos por um único objecto, ou compostos, quando constituídos dois ou mais objectos. 136 Segundo observável postulado O da corresponde Mecânica um Quântica: operador linear A cada Ô. Os resultados possíveis de uma medida de um observável O são os valores próprios do operador linear correspondente. Terceiro postulado da Mecânica Quântica: a decomposição espectral da função de onda permite calcular a probabilidade respectiva de cada um dos resultados possíveis de uma medição. Quarto postulado da Mecânica Quântica: a evolução da função de onda é, em geral, descrita pela equação de Quando se Schrödinger. Onde H é o operador Hamiltoniano. Quinto postulado da Mecânica Quântica: efectua uma medição sobre o sistema a que a função de onda transforma-se, imediatamente, numa das funções próprias do observável correspondente à medição. 2.8.1. Léxico: Função de Onda, Observáveis e Operadores. A compreensão destes postulados exigem, como é fácil de entender, passa por uma compreensão do seu léxico. Em 137 particular dos termos “função de onda”, “observáveis” e “operadores”. Uma função de onda é, tal o próprio nome assim o indica, uma função matemática em a projecção das suas soluções no espaço desenha a figura de uma onda. No caso da Mecânica Quântica a função de onda tem, em geral, a forma de uma onda harmónica plana. Uma onda de extensão infinita e de frequência temporal constante. À função de onda Ψ atribui-se igualmente a designação de “função de estado” do sistema, pois, segundo o primeiro postulado, a função define, por completo, o estado de um sistema quântico num instante determinado. Em Mecânica Quântica designam-se de “observáveis” as propriedades dos objectos quânticos que se podem medir. O que se justifica pois – recorde-se - em Mecânica Quântica, os termos “medição” e “observação” são usados, frequentemente, como sinónimos. Sucedendo o mesmo com os termos “aparelho de medida”, “instrumento de medida” e “agente de observação”. Por outro lado, considera-se que dos sistemas quânticos só são mensuráveis as propriedades físicas que possam sofrer alterações, na sua quantidade, por razão de um processo físico. Este tipo de propriedades toma, em dinâmicas”. Física, Assim, a designação pode-se de “grandezas igualmente físicas definir por 138 “observáveis” como as grandezas físicas dinâmicas dos objectos quânticos. Este não é o caso, por exemplo, do tempo, da massa ou da carga, que não se alteram na sua quantidade por razão de um processo de medição. Mas este é o caso, por exemplo, da posição, da velocidade, do momentum ou da energia. E, deste modo, posição, velocidade, momentum e energia são ditos de observáveis dos sistemas quânticos. Por fim, por operador linear entende-se, em geral, um objecto matemático que quando aplicado a uma função opera uma transformação de tal forma que a adição do conjunto de resultados dessa transformação é igual à função sobre a qual se aplicou o operador. No caso particular da Mecânica Quântica, os operadores lineares são aplicados à função de onda que define um dado sistema quântico produzindo uma decomposição linear em outras funções chamadas de “funções próprias do operador”. Por sua vez, cada uma dessas funções próprias define, por completo, um dos estados possíveis de ser obtido numa medição do observável correspondente ao operador em questão. Ou seja, define o resultado de uma medição. Ao valor quantitativo associado a uma função própria, ou seja, aquilo que é o resultado numa medição designa-se por “valor próprio do operador”. Ao conjunto dos valores próprios atribui-se o nome de ”espectro do operador”. 139 Fazendo uso de uma analogia, um operador linear em Mecânica Quântica actua como se de um prisma se tratasse. Tal como um prisma decompõe linearmente, isto é, em que a composição das partes é aditivamente equivalente ao todo, a luz emitida pelo Sol nas cores possíveis de serem observadas, um operador decompõe linearmente a função de onda nas funções próprias desse operador. Ou seja, nos estados possíveis de serem observados da propriedade dinâmica considerada. Tal como se considera que a luz do Sol é composta pela sobreposição linear de todas cores possíveis, considera-se que a função-de-onda é composta pela sobreposição linear do conjunto completo das funções próprias de um dado operador. E, finalmente, tal como o que se observa da luz operada pelo prisma são as cores, e ao conjunto destas se designa por “espectro”, o que se observa de um sistema quântico são os valores próprios de um dado operador, e o conjunto destes constitui o “espectro do operador”. Por último, é preciso esclarecer o termo “corresponde” que surge no segundo postulado. De acordo com este diz-se que a cada observável corresponde um operador. Significa isto que em Mecânica Quântica, uma grandeza física dinâmica é representada matematicamente por um operador. Portanto, e de forma literal, o observável “momentum” é representado matematicamente pelo operador “momentum”, o observável 140 “posição” é representado “posição”, o matematicamente observável “energia” pelo operador representado pelo operador “energia”, e assim por diante. De forma que cada observável seja representado matematicamente por um operador linear correspondente. Clarificado o léxico, creio que agora é possível – finalmente – esclarecer de que forma a Mecânica Quântica é, na sua essência, uma generalização racional das teorias clássicas da Física. 2.8.2. A Mecânica Quântica como generalização racional das teorias clássicas da Física. Da leitura dos postulados da Mecânica Quântica dois aspectos fundamentais, a meu ver, surgem de imediato: 1) O tema central da Mecânica Quântica é a medição. 2) A linguagem dos primeiros quatro postulados é uma linguagem relativa a ondas, enquanto o quinto é relativo a corpos. Comecemos distingue-se físicas ao pelo primeiro radicalmente dedicar-se de ponto. todas exclusivamente A Mecânica as outras à medição. Quântica teorias Não, é 141 claro, porque a medição não tenha sido sempre um aspecto importante em Física. Já aqui o assinalámos anteriormente. Mas, ao contrário de qualquer outra teoria em Física, em Mecânica Quântica a medição é, não só incorporada na própria constituição da teoria, como é o seu tema central. A medição, na Mecânica Quântica, não tem o estatuto de simples concretização das previsões de uma teoria. Algo de que sempre sucedeu nas teorias físicas clássicas e por essa razão jamais jamais mereceu mereceu ser honras referida de nos constar seus postulados, sua construção na axiomática das teorias físicas. A medição sempre se pode delicadamente ignorar em Física Clássica. Seja porque o próprio aparelho de medida pode ser objecto de descrição das teorias físicas clássicas. Seja porque as teorias físicas aos serem fundadas na pentadoxia sobre os objectos físicos pressupõem que, idealmente, isto é, num limite onde a interacção entre sistema medidor e medido praticamente nulo, um processo onde a intervenção do aparelho de medida é irrelevante. A relevância da medição da Mecânica Quântica é particularmente notória no segundo postulado desta teoria, quando se operador afirma linear. que Pois a cada isto observável significa que corresponde cada um grandeza física dinâmica é formalmente representada, não por uma variável, como em todas outras teorias físicas, mas, em 142 geral, por uma função diferencial. Isto é, por um objecto matemático que é aplicada à função de estado (ou função de onda) decompondo-a linearmente em funções próprias do observável a que corresponde. Funções matemáticas estas que representam, um resultado possível da medição. Ou seja, e dito de uma forma mais clara, um operador é, no contexto da Mecânica Quântica, um objecto formalmente a determinada postulado, acção (ou grandeza ao matemático que representa operação) física. estabelecer-se de medição Portanto, que a no cada de uma segundo observável corresponde um operador, inscreve-se na lei fundamental da Mecânica Quântica que esta refere-se, não às propriedades do sistema, que seriam representadas formalmente por uma variável, mas refere-se aos resultados da operação da medida das propriedades. A Mecânica Quântica não se refere, por exemplo, à posição de um objecto quântico mas à medição da posição dessa entidade. Este é, quanto a mim, um dos pontos crucial: a Mecânica Quântica não se refere às propriedades características dos objectos físicos, mas à operação de medição das propriedades que se enquadram na categoria de grandezas físicas. A Mecânica Quântica não tem como referente as propriedades como a posição, o momentum ou a energia (e, portanto, dentro de uma perspectiva substancialista, não se refere a entidade que possua essas propriedades) mas à operação de medição da posição, do 143 momentum ou da energia. E, neste sentido, a Mecânica Quântica constitui-se por uma alteração das questões que caracterizam a Mecânica. Se esta última se pergunta “onde está?” e “para onde vai?”, a Mecânica Quântica pergunta “quais são os resultados possíveis da medição da posição?” e “quais são os resultados possíveis da medição do momentum?”. Portanto, a meu ver, a Mecânica Quântica nada afirma sobre um estado de um sistema físico antes da medida. Apenas prevê o conjunto de resultados possíveis e suas probabilidades Quântica é, resultados podemos de respectivas pois, como uma roleta. perguntar pela de uma uma E medição. teoria tal como probabilidade A Mecânica estatística dos numa nos de roleta sair um dado número, de sair uma dada cor, de sair um número par (ou impar), na Mecânica Quântica podemos perguntar pela probabilidade de um determinado resultado da posição, do momentum, da energia, etc. O terceiro postulado enuncia justamente a forma de encontrar a probabilidade de cada resultado da medição a partir da função de estado. Por outro lado, a distribuição de resultados e as suas probabilidades respectivas são dependentes do contexto experimental. Se a roleta em causa for do tipo americana e 144 não do tipo europeia137, ou se bloquearmos o número 13 já depois do lançamento da esfera da sorte, por exemplo, isso implica uma modificação dos resultados possíveis e das suas probabilidades respectivas. A equação de Schrödinger serve, justamente, dar conta das variações que decorrem da inclusão de elementos que modifiquem as condições iniciais do sistema. Ou seja, da evolução das previsões dos resultados de medida em função da evolução das condições do sistema. No entanto, contrariamente a uma roleta, a estatística segundo a qual se constitui a Mecânica Quântica é ondulatória. É particularmente claro, em especial, quando se acede ao domínio quântico por via da chamada “experiência da dupla fenda” que o coração da Mecânica Quântica habita na frase “distribuição estatística ondulatória de resultados”. Como tal, é sem surpresa que se constata que ao longo dos quatro postulados iniciais – os que se referem à probabilidade e estatística de resultados da medição - é clara a presença de termos que se referem às ondas. Logo no primeiro postulado, pois neste se define a função de estado de um sistema quântico como uma função de onda. Função de onda que, pelo segundo postulado, é decomposta linearmente por um operador em funções próprias, 137 As roletas distinguem-se na sua tipologia em americanas e europeias pela inclusão de mais um número – o 00 – nas primeiras em relação as primeiras. 145 tal como a luz é decomposta linearmente por um prisma em cores. E, desta forma, tal como a luz pode ser entendida como o composto linear de todas as cores observáveis, a o estado do sistema quântico num dado instante, pode ser entendida como o composto de uma sobreposição linear de estados possíveis de serem resultados de uma medida. Por sua vez, no terceiro postulado é estabelecida a relação entre a probabilidade de cada um desses resultados possíveis de uma medição e a amplitude da função de onda que os descreve. E, por fim, a equação que dá conta da evolução – a equação de Schrödinger resultados de uma medida sobre da expectativa dos o sistema físico é uma equação típica de ondas. Ondas e probabilidades dos resultados possíveis de uma medição cruzam-se nos primeiros postulados. Corpo e resultado da medida cruzam-se no quinto e último postulado. Pois se a estatística é ondulatória, cada resultado individual é a fixação de valor determinado para a posição, para o momentum, para energia, etc. Ou seja, para as propriedades corpusculares. Esta é a forma extremamente habilidosa, trama subtil de equilíbrio delicado, urdida principalmente por esse génio dinamarquês, obstinado mas polido, que se constituiu a Mecânica Quântica. 146 Por um lado, a Mecânica Quântica constitui-se aceitando a imposição da Natureza física que os objectos quânticos se propagam como ondas e interagem como corpos. Não haveria uma teoria quântica se não houvesse anuência à imposição quântica da sem Natureza uma física. certa dose Não de haveria realismo. uma Sem teoria algo da própria Natureza física a decepcionar a nossa concepção clássica. No entanto, por outro lado, trata-se de uma aceitação condicionada pela pentadoxia dos objectos físicos. Isto é, sem prescindir que os objectos físicos só podem ser concebidos tal qual o são nas teorias clássicas da física. Ou seja, distinguem sem prescindir exclusivamente que em os ondas objectos ou físicos corpos; que se são substanciais; que as suas partes têm a mesma natureza do seu todo; que as suas propriedades quantitativas possuem valores bem determinados; que a actualização sucede sem alteração extensão, de sem natureza do que é actualizado. prescindir do primado dos E, por conceitos clássicos. Porém, afirmar que não se admite outra concepção de objectos físicos senão a da pentadoxia, não significa que uma teoria física os tenha que incluir integralmente. Pode incluir esses elementos de um modo formal e ser-se ausente nas referências ontológicas. É o caso da Mecânica Quântica. 147 Assim, encontramos pentadoxia dos a presença objectos físicos dos elementos quando da encontramos, implicitamente, as partículas puras dos corpos e das ondas ao longo dos postulados. Pois quando há pouco se afirmou que a Mecânica Quântica transforma, por exemplo, a questão “onde está?” para “quais os resultados possíveis (e respectivas probabilidades) de uma medição da posição?”, implica que a Mecânica Quântica refere-se às partículas pura dos corpos, isto é aos corpos pontuais, pois são as entidades que possuem uma posição bem determinada. Porém, os corpos pontuais ideais dos corpos, únicos elementos surgem como aos aqui não arquétipos quais a como representações deste, teoria mas como os quântica nova se refere. Numa autonomização absoluta do representante face ao representado. Por sua vez, ao identificar-se a função de onda como as funções de estado isto implica que as ondas a que se refere a Mecânica Quântica são infinitamente extensas e de frequência temporal (e por consequência, de energia) bem determinada. formalmente Isto às é, a Mecânica partículas sinusoidais planas ou Se a Mecânica puras Quântica das ondas – refere-se as ondas ondas de Fourier. é a Física dos corpos e o Electromagnetismo é a Física das ondas, a Mecânica Quântica é a Física das partículas puras dos corpos e das ondas. Ou 148 seja, na Mecânica Quântica a referência as ondas se cingem à estatística física que dos resultados, possuam não a propriedades qualquer entidade ondulatórias. E a referência aos corpos cinge-se à verificação de um valor bem determinado Quântica nas integra a medições. imposição Deste da modo, natureza a Mecânica dos objectos quânticos por um lado, a constituir-se com uma estrutura dual. Isto é, tendo a parte cinemática dos postulados referentes a ondas; e a parte dinâmica referente a corpos. Por outro quânticos formal. lado, é A a imposição integrada Mecânica da natureza considerando-a Quântica dos apenas constitui-se objectos de não maneira como uma teoria que se refere aos objectos quânticos, pois estes são, pela sua natureza, incompatíveis com a Física Clássica. A Mecânica Quântica constitui-se como uma teoria que se refere somente aos resultados de uma medição. Pois este é a única forma de trazer o domínio quântico para o domínio clássico. De certa forma, de integrar o quântico no clássico. É, portanto, notório que o propósito de Bohr sempre foi o de conciliar as teorias natureza quântica precisamente, e num como o clássicas com a todo consistente. próprio afirmou bizarra Ou (que mais aqui se recorda) “O problema com que os físicos foram confrontados [perante a descoberta de Planck] foi, como tal, o de 149 desenvolverem uma generalização racional da física clássica que permitisse a incorporação harmónica do quantum de acção.”138 Ao assinalar generalização afirmar que racional que a a da Mecânica física Mecânica Quântica clássica, Quântica foi é Bohr uma está constituída, a não através da introdução de novos conceitos ou de uma nova linguagem em relação à Física clássica, mas através de uma revisão racional dos conceitos e modos de descrição já presentes na Física Clássica. Num equilíbrio difícil entre manter-se o mais próximo da Física Clássica e querer estende-la de forma a incorporar o postulado quântico. E esta é esta, a meu ver, a essência da Mecânica Quântica: não tanto uma profunda revolução, mas uma resposta, quase desesperada, do “espírito” da Física Clássica caracteriza pela pentadoxia dos objectos físicos, que se por via da razão, à perturbação causada pela descoberta do domínio quântico. Assim, se as teorias clássicas têm como elementos fundamentais momentum, seu energia, quantitativas, formais do a formalismo etc., que Mecânica fundamentais os as variáveis representam Quântica operadores tem propriedades como posição, posição, elementos o operador momentum, o operador energia, etc., elementos que actos de medida das propriedades quantitativas. As segundas – os 138 Conferir nota de rodapé º 5 deste capítulo. 150 operadores - são uma construção puramente formal das primeiras – as variáveis. Construção formal que integra, como é claro, o valor do quantum de acção. Deste modo, os conceitos clássicos são integrados na mecânica quântica por via de uma generalização racional. Neste sentido a Mecânica Quântica é, na sua essência, a meu ver e estando aqui em acordo com Bohr, uma generalização racional das teorias clássicas da Física. Porém, a Mecânica Quântica ao constituir-se como uma generalização racional das teorias clássicas perde contacto com as entidades que deveria descrever. A Mecânica Quântica não tem como referentes os objectos quânticos, mas um dado conjunto de medições que são realizadas. A Mecânica Quântica constitui-se por recusa de se enfrentar com a questão da natureza dos objectos quânticos. Recusa que, por sua vez, leva ao vazio de sentido de questões como: “o que existia antes da medida?”. Aceitar a Mecânica Quântica e, no entanto, colocar a questão sobre o que nos diz esta do que existe, realmente, antes da medida, é o mesmo que aceitar o Big Bang e procurar resposta na Teoria do Big Bang à questão “o que existia antes do Big Bang?”. Ambas teorias constituem-se fora do âmbito dessas questões. No entanto, boa parte da literatura filosófica sobre a Mecânica Quântica conhece a sua motivação numa certa 151 tentação de ter um discurso ontológico sobre esta teoria quântica. Esta tentação de ontologizar concretiza-se na atribuição à função de onda do estatuto de função de estado do sistema antes da medida. Ou seja, como se a função de onda de um sistema representasse, efectivamente, de algum modo, o estado do sistema antes da medição e não fosse relativo apenas e só à expectativa de resultados. A diferença será subtil mas creio que pode ser elucidada regressando ao exemplo da roleta. Imagine-se que esta é viciada de tal forma que a distribuição de ocorrência dos números (resultados lançamento – de uma configurasse roleta) não o – lançamento perfil a estatístico corpuscular, que seria uma recta, mas um perfil estatístico ondulatório. Isto é, uma curva (uma normal, por exemplo). O perfil estatístico de tão demoníaca roleta poderia ser, formalmente, tomado como o resultado da sobreposição linear de um conjunto de ondas, cada uma relativa a cada número de sair em sorte. Ou seja, nesta roleta cada resultado possível é descrito, formalmente, por uma onda. Contudo, trata-se de um sistema mecânico plenamente clássico, de uma esfera e um conjunto de “caixas” pintadas com um número. E, como tal, a função de estado deste sistema é uma função de onda. Porém, esta função traduz somente a expectativa de resultados e de, nenhum modo, representa o sistema físico antes da medição. 152 Essa cedência à tentação de ontologizar a Mecânica Quântica nunca a encontramos em Bohr. Nem poderíamos encontrar, a meu ver. Pois para ele será bem claro que a Mecânica Quântica não se refere ao domínio quântico, mas ao resultado das medições. E, como tal, não fará sentido algum falar-se do estado do sistema quântico antes da medida. É em Von Neumann que encontramos, em certa medida, o início deste movimento de cedência à tentação, este cair num discurso ontologizante, ainda que insípido, sobre a função de onda. Encontramo-lo exactamente na mesma obra, de 1932 e que já foi aqui referida, onde tratou de axiomatizar a Mecânica Quântica. Assinala-se outros o primeiros farão posteriormente, postulados, um Von Neumann, como muitos que sistema conforme quântico os antes quatros de uma medição é, em geral, composto por uma sobreposição linear de estados possíveis de uma medição. Cada um destes definidos por uma função própria do operador correspondente à medição. Ou seja, como se esses estados possíveis de uma medida existissem, de algum modo, em sobreposição. A tão famosa “sobreposição quântica”. E deste modo afirma-se que antes da medida, relativamente, por exemplo, à sua energia, um sistema quântico encontra-se num estado de sobreposição dos estados de energia possíveis de virem a ser medidos. De seguida acrescenta-se que a equação de Schrödinger permite determinar completamente o estado do sistema, num 153 instante qualquer, a partir do conhecimento da função de onda num instante qualquer anterior. Ou seja, que é uma equação determinista. O que tem duas consequências. Por um lado significa primeiros que considerando-se postulados, a Mecânica apenas Quântica é os quatro uma teoria determinista. E, por outro lado, dado que se considera que o sistema evolui sobreposição de linear forma de determinística, estados então, possíveis essa permanece perfeitamente definida enquanto sobreposição ao longo do tempo. (O que, em boa verdade, não é surpreendente. Por um lado, pois essa “evolução do estado do sistema” trata-se tão somente uma evolução da expectativa dos resultados de uma dada medição. Como a expectativa dos resultados de uma roleta. Expectativas determinista. Por esta outro que também lado, evoluem trabalha-se de formal com uma estatística ondulatória e, como tal, pode-se representar a função de onda como o produto de um sobreposição linear de outras ondas). No entanto, de uma medição não resulta uma sobreposição de estados, mas apenas um estado particular bem determinado. Por exemplo, da medição de um electrão resulta um valor determinado para a sua posição, para o seu momentum, para a sua energia, etc. Nunca se observa um electrão, simultaneamente, em duas ou mais localizações, ou com duas ou mais energias, por exemplo. 154 Assim, no último capítulo da referida obra de Von Neumann, este assinala existência dos dois tipos de evolução dos sistemas quânticos139: Uma evolução continua, determinista, linear e reversível, que decorre ao longo do tempo e antes de ser efectuada uma medição no sistema; e uma outra evolução, esta descontínua, indeterminista, nãolinear e irreversível, que ocorre quando uma medição sobre esse sistema é efectuada. Interpretando-se a função de onda como se referisse a algo antes da medida, coloca-se, logicamente, a questão: como relacionar o que existe antes da medida com o que resulta da medida? Como relacionar os dois regimes da regimes de evolução dos sistemas quânticos? Para dar conta desta transição entre evolução dos sistemas quânticos que Von Neumann propõe o quinto e último postulado da Mecânica Quântica, onde se promove que no instante em que se realiza a medição há uma transformação, funções um próprias colapso, do da função sistema. Este de onda numa postulado das ficaria celebrizado com a designação de “postulado do colapso da função de onda”. Como é por demais conhecido, a celebridade é deste postulado decorre do facto de ser a partir deste que resulta o emaranhado de problemas que têm ocupado 139 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), p. 351. 155 grande parte da literatura filosófica da Mecânica Quântica140. Emaranhado este a que se tem dado a designação geral de “problema da medição”. 2.9.O Problema da Medição O chamado "problema da medição" surge, segundo literatura filosófica especializada141, como já a aqui foi visto, da oposição entre a evolução determinista descrita pelos primeiros quatro postulados e a evolução indeterminista descrita pelo postulado do colapso. Mais propriamente, o enunciado partir a problema da geral seguinte da medição questão: pode ser como, por consequência de uma medição, um sistema que se encontra em "sobreposição quântica" se transforma, por acção de uma medição, num sistema em que os seus estados não se sobrepõem? 140 Conferir Primeiro capítulo deste trabalho, página 9. Conferir Busch, Paul e Lahti, Pekka (2009), “Measurement Theory” in Greenberger, Daniel; Hentschel, Klaus e Weinert, Friedel, Compendium of Quantum Physics, Berlim: Springer-Verlag, p. 375. 141 156 Segundo Osvaldo Jr.142, Pessoa o problema geral da medição pode, por sua vez, ser decomposto em dois outros problemas: i) Problema da "caracterização": se o postulado do colapso se aplica sempre quando é realizada uma medição sobre um sistema quântico, então o que caracteriza uma medição? ii) Problema da "completude": poderia o processo de medição que está na origem do postulado do colapso ser explicado pela própria Mecânica Quântica e, por conseguinte, esta ser completa sem necessitar do quinto postulado? Embora distintos, estes dois problemas não são independentes. Pois se houver uma resposta positiva para o problema da completude então o problema da caracterização também terá sido desapareceria. resolvido, Analisemos porque o quinto postulado separadamente ambos, começando pelo segundo (visto que é a condição do primeiro). 142 Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 183. 157 2.9.1. O problema da Completude Na literatura sobre os fundamentos da Mecânica Quântica existem, em geral, três tipos de resolução do problema da completude. O primeiro tipo de resolução do referido problema foi proposto pelo próprio Von Neumann. Este faz uso da hipótese segundo a qual o aparelho macroscópico de medida poderia ser descrito como um sistema quântico143. Objecto quântico medido e aparelho de medida formariam assim um sistema quântico composto. Contudo, tal não resolveria o problema da completude, pois o estado deste sistema é um estado em sobreposição. O sistema teria, por sua vez, que ser medido por outro aparelho de medida e, como tal, retornar-se-ia à situação cadeia inicial. infinita Logo, de desta aparelhos forma, de entrar-se-ia medida que se numa medem, sucessivamente, uns aos outros. E, como tal, nunca haveria um valor da medição. O acto de medição nunca se concluiria. Como mais à frente144 se verá, Von Neumann tenta responder a esta objecção a partir da sua resposta ao problema da caracterização. Um outro tipo de proposta de resolução do problema da completude da Mecânica Quântica encontramos a sua génese da 143 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, p. 475. 144 Conferir página 163. 158 já referida145 tese de Schrödinger de considerar que os objectos quânticos têm uma natureza totalmente ondulatória, isto é, são ondas, que são representadas pela função de onda. E, como tal, no acto de colapso abrupto da função medição não haveria um de onda mas o produto da interacção física entre a matéria do aparelho de medida e objecto quântico. Exactamente que processo é este é matéria para o problema da caracterização de uma medição. Por essa razão, mais frente voltaremos a esta tese. Por fim, o terceiro tipo de teses em defesa da completude da Mecânica Quântica sem o quinto postulado é designado por Pessoa Júnior criptodeterminista146. de Criptodeterminista já que os sistemas quânticos possuiriam continuamente propriedades. um valor Os sistemas bem determinado quânticos das cumpririam suas com a pentadoxia sobre os objectos quânticos e, como tal, seriam ontologicamente bem determinados. Contudo, seriam epistemologicamente indeterminados. Isto é, existiria uma impossibilidade de prever deterministamente os resultados de medições individuais. Essa indeterminação seria fruto do conhecimento necessariamente limitado a respeito do estado inicial dos sistemas considerados. 145 146 Conferir página 121. Conferir Pessoa Jr., Osvaldo (1992), “O problema da medição em mecânica quântica: Um exame atualizado” in Cadernos de História e Filosofia da Ciência (série 3) 2(2), jul-dez 1992, p. 184. 159 Uma das formulações do criptodeterminismo defender que indeterminismo da evolução de passa por um sistema quântico no momento da medição dever-se-á a uma limitação do conhecimento do estado físico do observador. E, como tal, dado que o estado do observador antes da medição não é conhecido de maneira exacta seria impossível prever deterministicamente os resultados da interacção entre os sistemas objecto observador. Tal da medida, como não aparelho sabemos da prever medida de e forma determinada o resultado de uma colisão entre duas bolas bilhar (ou entre duas ondas) se desconhecermos, por exemplo, a força com que impulsionamos uma delas. E deste modo, no acto de medida não haveria um misterioso colapso da função de onda, mas tão-somente a revelação do valor da propriedade objecto da medida. Tal como se poderia medir a velocidade de colisão assim e cada uma saber, das a bolas de posteriori, bilhar o depois da resultado da colisão. Contudo, esta tese conhece diversos problemas. Por um lado, teria no perfil estatístico ondulatório da medição um mistério insondável. E, por essa razão, a atribuição de função de estado à função de onda seria completamente injustificada. Por outro lado, implicaria que o observador, enquanto sistema físico quântico observado e era, agente simultaneamente, de observação. sistema Seria, simultaneamente, parte do sistema medido e parte do sistema 160 medidor. O que seria, por um lado, inconsistente com a definição de estado de um sistema físico, que é parte fundadora da Mecânica Quântica, no sentido que esta se constitui a partir da complementaridade de Bohr. Ou seja, seria incoerente com a própria Mecânica Quântica. Por outro lado, levar-nos-ia novamente para o caso de sistemas que se medem uns a outros numa cadeia infinita. Existe, no entanto, um outro conjunto de propostas do tipo criptodeterminista. Estas, no entanto, defendem que a Mecânica Quântica não é uma teoria completa. Este tipo de cripodeterminismo consiste na tese de que o indeterminismo do acto de medida, que na axiomática da Mecânica Quântica – recorde-se primeiros - aparece quatro na transição postulados e o abrupta quinto entre os postulado, reflectiria apenas uma insuficiência da Mecânica Quântica. Isto é, haveria pelo menos uma variável que não estaria a ser considerada. Este conjunto de teses é conhecida por “tese das diferentes variáveis formulações escondidas” e em e foi diferentes avançada, momentos, em por Einstein147, De Broglie148, Popper149, Bohm150, entre outros. 147 Conferir Bohr, N. (1949), “Discussions with Einstein on epistemological problems in atomic physics” in Atomic Physics and Human Knowledge, New York: Kessinger Publishing. 148 Conferir De Broglie, L. e Andrade e Silva, J.L. (1971), La Réinterprétation de la Mécanique Ondulatoire, Paris: GauthierVillards. 149 Conferir Popper, Karl (1982), Quantum Theory and the Schism in Physics, London: Routledge. 161 Estas teses implicam que a função de onda não definiria, por completo, o estado de um sistema quântico. Ou seja, estas teses apontam para irresolubilidade do problema da completude dentro do contexto da Mecânica Quântica, por razão da incompletude desta. Como tal, apontam para teorias quânticas alternativas à Mecânica Quântica. Esta é a origem da linhagem das teorias quântica de De Broglie: a teoria de De Broglie (ou teoria da dupla solução); a teoria De Broglie-Bohm (ou Mecânica Bohmiana) e a teoria De BroglieCroca. Quanto a estas será preciso ter claro dois aspectos. Em primeiro lugar, a família de teorias de De Broglie não formam um grupo de interpretações Quântica. São teorias quânticas sobre a alternativas à Mecânica Mecânica Quântica. Em segundo lugar, é preciso ter claro que as teorias de De Broglie, de De Broglie-Bohm e de De BroglieCroca, como veremos mais tarde151, têm justamente como essência o apelo a um novo conceito de objecto físico. Algo no entanto que só surge no contexto da última e é a razão pela qual, a meu ver, as duas primeiras são inconsistentes. Encontramos em Von Neumann uma recusa clara das teses de “variáveis simultaneamente, escondidas”. com a proposta Recusa de um que teorema surge, que, pretensamente, demonstra que qualquer “tese de variáveis 150 Conferir Bohm, David (1980), Wholeness and the Implicate Order, London: Routledge. 151 Conferir capítulo V, página 329. 162 escondidas” é inválida152 para a Mecânica Quântica. Teorema, designado por “no-go” e que até aos meados dos anos 50 do século XX dominou o panorama dos fundamentos de Mecânica Quântica. Isto, até ao advento da teoria de De BroglieBohm. Em conclusão, em relação ao problema da completude existem na literatura sobre os fundamentos da Mecânica Quântica dois caminhos opostos: por um lado, a família de teorias de De Broglie defendem que o quinto postulado assinala incompletude da Mecânica Quântica; por outro lado, outros – como Von Neumann e Schrödinger - remetem a resolução do problema da completude para o contexto do problema da caracterização. 2.9.2 O problema da Caracterização Na já aqui referida obra de Von Neumann de 1932, este assinala153 que uma característica fundamental de uma medição é a existência de um acto perceptivo de um sujeito. Uma medição é uma relação a três, como aqui já foi afirmado. Porém, esta não fica completamente caracterizada considerando-se apenas a interacção física entre o objecto 152 Conferir Neumann, J. Von (1932), Mathematische Grundlagen der Quantenmechanik. Berlin: Springer (Tradução em inglês de Robert T. Beyer, “Mathematical Foundations of Quantum Mechanics”, Princeton: Princeton University Press, 1955), pp. 439. 153 Conferir Idem, pp. 419-420 163 de medida e o aparelho de medida. Para se completar é preciso que exista um sujeito que tome consciência do resultado da medida. Isto é, da alteração de estado físico do aparelho de medida. Neste sentido, Von Neumann defende que a transformação irreversível do estado do sistema medido seria devida ao conhecimento que o observador tem do seu próprio estado, permitindo que ele corte a cadeia de aparelhos de medida que se medem sucessivamente. Ou seja, em última análise, seria a consciência do sujeito da medição que levaria ao colapso da função de onda154. Esta tese de Von Neumann seria mais tarde radicalizada por Wigner, levando esta a afirmar que “o Universo não existia ‘realmente’ antes da vida inteligente” 155 . Esta espécie de subjectivismo ontológico que emana de Von Neumann e Wigner atravessa toda a literatura filosófica sobre a Mecânica Quântica. Em particular, surge quando se analisa a celebre experiência de pensamento que Schrödinger apresentou, num conjunto de artigos publicados156 em 1935, e que ficou conhecido como o "paradoxo do gato". Paradoxo que configura a formulação mais famosa do problema da 154 Conferir Jammer, Max (1974), The Philosophy of Quantum Mechanics: The Interpretations of Quantum Mechanics in Historical Perspective. New York: Wiley-Interscience, pp. 481-482. 155 Citado de Schomers, W. (1987), “Evolution of Quantum Theory” in Quantum Theory and pictures of reality, Schomers (ed), Berlim: Springer, p. 35. 156 Shrödinger, Erwin (1935), "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik" in Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844849. 164 caracterização e, simultaneamente, a primeira reacção contra a tese de Von Neumann. Aqui se apresenta: Considere-se que um gato é fechado dentro de uma câmara de aço. Dentro desta encontra-se uma substância radioactiva que tem uma probabilidade 1/2 de fazer accionar um detector dentro de um certo intervalo de tempo. Ligado a este detector há um "dispositivo assassino" que funciona de tal maneira que se o detector for disparado, o gato será morto. Por outro lado, se nenhuma radiação for detectada no intervalo de tempo considerado o gato permanece vivo. A Mecânica Quântica descreve o estado do átomo radioactivo como uma sobreposição de estados de emissão e de não- emissão. Qual será, então, o estado do sistema como um todo ao final do intervalo de tempo aqui considerado? De acordo com a interpretação de Von Neumann, seria uma sobreposição de estados - gato vivo e gato morto - até que uma observação fosse efectuada por um observador. Momento no qual dar-se-ia um colapso do estado ou para gato vivo ou para gato morto. Pois, todas as medições levam à percepção de um estado singular. Ou seja, seria a consciência do observador que faria o sistema colapsar e, por consequência, matar ou salvar o pobre animal. Esta solução leva à tão famigerada conclusão que os objectos quânticos são ontologicamente determinados pelo acto de observação. Conclusão que é absurda para Schrödinger e por 165 essa razão terá crismado de “paradoxo” a experiência de pensamento descrita. Em alternativa, o físico austríaco propôs que num acto de medição, de algum modo, houvesse um processo físico que levasse a uma compressão das ondas. A proposta de Schrödinger era essencialmente isso: “uma proposta”. Porém, é a proposta que está na origem da actual tese da decoerência157. Onde, justamente, uma medição de um sistema quântico é caracterizado por um processo físico de interacção rápidas mas contínua entre o objecto de medida, o aparelho e o “ambiente” de tal modo que o estado em sobreposição quântica é transformada num estado clássico. Contudo, esta tese passa necessariamente pela introdução do tal parâmetro “ambiente”. Ou seja, por uma variável que é exterior à Mecânica Quântica. E, por essa razão, a meu ver, embora pretenda ser fiel à Mecânica Quântica acaba por se aproximar da família das teorias de variáveis escondidas. A meu ver do “paradoxo” do gato de Schrödinger resultam uma de três hipóteses relativamente ao problema da medição: Primeira hipótese. Aceitar o colapso da função de onda por acção de uma consciência proposta por Von Neumann e Wigner e a sua consequente subjectividade ontológica. O que 157 Conferir, por exemplo, do filósofo francês Ómnes, Roland (1990), Understanding Quantum Mechanics, Princeton: Princeton Univesity press, pp. 224-234. 166 me parece ser conduzir a um claro absurdo, pois a Mecânica Quântica surge, justamente, para dar conta de uma realidade que não é conceptualizável pelas teorias clássicas. E como tal, como poderia haver necessidade de responder a uma realidade estranha ontologicamente e dependente simultaneamente das nossas ela ser consciências? Por outro lado, esta tese de Von Neumann e Wigner conduzem a um sem número de paradoxos. Por exemplo, se estiverem dois observadores a observar simultaneamente uma medição, qual deles é o responsável pelo colapso? Segunda hipótese. Aceitar que a Mecânica Quântica não é uma teoria completa, tal como defendem os proponentes das teorias das variáveis ocultas. E, assim sendo, não fará sentido ter da função de onda dentro da Mecânica Quântica como uma função que descreve o estado do sistema antes da medida. Terceira necessita do hipótese. quinto Aceitar que postulado, a Mecânica tentando no Quântica entanto interpretar o seu formalismo e, em particular, o estatuto ontológico da função de onda, sem cair no subjectivismo ontológico da tese de Von Neumann. Ou seja, entramos no campo prolífero das interpretações da Mecânica Quântica. Existe um leque enorme de opções. Porém, em comum a todas percorre o problema da medição sempre insatisfatoriamente resolvido. Em comum a todas atravessam os problemas que 167 decorrer de cair na tentação de considerar que a função de onda se refere ao estado do sistema quântico medida. o Aliás, Quântica da das panorama últimas dos fundamentos décadas tem antes da de sido, Mecânica em parte, dominado pelo aparecimento de um conjunto de teoremas “nogo”, estes já não sobre a tese das variáveis escondidas, mas sobre a irresolubilidade do problema da medição158. O que é, a meu ver, indicativo que a Mecânica Quântica constitui uma generalização racional das teorias clássicas da Física e como tal não têm como referente o domínio quântico mas o resultado de medições sobre este. 2.10. Conclusão Quatro teses fundamentais percorrem este capítulo: 1) Tanto a Mecânica literatura Quântica, filosófica como sobre grande esta, parte da pressupõem 158 Conferir, por exemplo, Brown, H. (1986) “The Insolubility Proof of the Quantum Measurement Problem”, Foundations of Physics 16, pp. 857870; Fine, A. (1970) “Insolubility of the Quantum Measurement Problem”, Physical Review D2, pp. 2783-2787 ou Busch, P. e Shimony, Abe (1996), “Insolubility of the Quantum Measurement Problem for Unsharp Observables”, Studies in History and Philosophy of Science Part B 27 (4), pp. 397-404. 168 implicitamente um conjunto de cinco teses sobre os objectos físicos - a pentadoxia. 2) As teorias físicas são caracterizáveis por uma questão ou um conjunto de questões determinadas. 3) O domínio quântico não é conceptualizável pela pentadoxia. 4) A Mecânica Quântica é uma generalização racional das teorias físicas clássicas. Tanto a Mecânica maioria da Quântica, literatura como filosófica esta teoria, sobre a assenta, implicitamente, num conjunto de aparentes certezas acerca dos objectos físicos: Que os objectos físicos se dividem em corpos e ondas; que os objectos físicos são divisíveis em partes cuja natureza é igual ao do todo de que são partes; que os objectos físicos possuem propriedades; que as propriedades quantitativas têm um valor bem determinado; que os objectos físicos se actualizam sem modificação das suas propriedades. certezas são Este extraídas conjunto de uma de cinco opinião geral aparentes sobre a natureza dos objectos físicos e por isso designei-as de pentadoxia. Opiniões, pois elas entranham-se em nós com tal facilidade, fruto da sua tão suposta evidência, que são, em geral, aceites de um modo acrítico. Por isso, só as 169 encontramos implícitas, mesmo na literatura filosófica dedica à Mecânica Quântica. São como um senso comum a partir do qual podemos começar a pensar com segurança. Afinal, quem, mesmo dentro do contexto da Filosofia da Física, duvida que a matéria se divide em sólidos e fluidos? Ou seja, que se dividem em corpos e ondas? Que da divisão de uma maçã resultam duas partes de maçã e que estas também maçã são? Que os livros, a água ou o fumo têm cor, forma, cheiro, etc.? Ou seja, que são portadores de propriedades? Que automóveis, tal como todos os objectos físicos que nos rodeiam, têm um valor bem determinado da altura, do peso ou da velocidade? Que uma nota de cinco euros é, conceptualmente, idêntica esteja ela possivelmente ou actualmente na minha mão? Seguros nesta pentadoxia sobre os objectos físicos fundam-se as teorias clássicas da Física. A Mecânica como física dos ondulações corpos. do O campo Electromagnetismo electromagnético. como E se física dos das corpos perguntamos pela sua localização e pelo seu movimento, ou seja, perguntamos “Onde?” e “Para onde?”, então estas questões são a impressão digital da Mecânica. E se das ondas perguntamos pelo seu ciclo e pela sua magnitude, estas questões são a impressão digital do Electromagnetismo. Porém, a Física, em geral, caracterizase, igualmente, pela procura de uma resposta precisa, de 170 uma resposta quantitativa, de uma fixação momentânea do estado da coisa física. Assim, a Mecânica procura saber a quantificação da localização, isto é, a posição e procura saber a quantidade de movimento, isto é, o momentum. Por sua vez, o Electromagnetismo procura saber a quantificação do ciclo, isto é, a frequência temporal e procura saber a quantificação da magnitude da oscilação, isto é, a amplitude. Estas duas teses – as duas primeiras teses do conjunto de quatro que percorrem este capítulo - encontram a sua síntese nas partículas puras dos corpos e das ondas. Pois, por um lado, a pentadoxia leva-nos até essas entidades como arquétipos dos corpos e das ondas. Por outro lado, apenas relativamente às partículas puras podemos falar de “posição”, “momentum”, “frequência temporal”, etc. Ou seja, é primeiramente a estes arquétipos, aos representantes ideais dos objectos físicos, que se referem os conceitos clássicos. Por outro lado, só chegamos às partículas puras de ondas e corpos, partindo da pentadoxia. E, assim, podemos dizer que aquelas – as partículas puras de corpos e ondas - são a expressão maior desta – a pentadoxia. Aceitando as duas teses anteriores, Bohr considera a linguagem da física clássica como um refinamento da linguagem comum que se refere ao mundo físico. Refinamento 171 pois, por um lado, a linguagem da Física toma como ponto de partida essa linguagem comum. Aquela que se refere ao mundo físico que comummente experienciamos com termos como “localização”, “movimento”, “ritmo”, etc. Ou seja, aquela que se refere ao mundo físico que se divide em corpos e ondas. Porém, ao contrário da linguagem natural, a linguagem da Física pretende ter como referente, não os corpos e as ondas, mas os representantes arquétipos destes. E, a partir desse deslocamento transformar a linguagem comum, que se referem as qualidades, como “movimento”, numa linguagem que se refere à quantificação dessas qualidades, como “quantidade de movimento ou momentum”. Ou seja, transformar o discurso ambíguo sobre o mundo físico num discurso matemático, formal, objectivo. Neste sentido, Bohr defende que a linguagem da Física clássica é a única que garante a comunicabilidade efectiva entre Físicos. Pois é aquela que é objectiva e constrói-se a partir dessa divisão entre corpos e ondas. Não havendo outras naturezas dos objectos físicos, não haverá outras Físicas que não a Clássica. E, como tal, Bohr defende a indispensabilidade dos conceitos clássicos. Outorgando-lhes quase um estatuto de um a priori condições físico. de Na transcendental, possibilidade realidade, de pois convocam se trata-se, conceber a meu em si as um ver, objecto de uma transcendentalização da pentadoxia dos objectos físicos. 172 Deste modo, a doutrina dos conceitos clássicos de Bohr implica que qualquer teoria física é uma generalização das teorias clássicas. Em particular, uma qualquer teoria atómica deveria resultar de uma generalização natural das teorias físicas. Isto é, um caso particular destas. Como o é, por exemplo, a Termodinâmica relativamente à Mecânica. Contudo, algo da realidade do mundo quântico invalida todos os modelos clássicos do átomo, como o de Rutherford. Algo da natureza dos objectos quânticos escapa aos conceitos clássicos. Escapa à pentadoxia dos objectos físicos. Algo da realidade do domínio quântico não se deixa enformar. Bohr domínio compreendeu quântico esta como insubmissão ninguém, ao da realidade compreender que do os objectos quânticos não se deixam conceber como ondas ou corpos. Se não houvesse essa realidade, aqui compreendida, tal como propõe Brigitte Falkenburg, como a capacidade de algo contrariar as nossas expectativas159, de nos desiludir, não haveria Mecânica Quântica. E, neste sentido, Bohr é, sem dúvida, um realista. Realismo que será difícil de classificar, mas que o permite ter bem clara a tensão entre essa “realidade quântica” e a doutrina dos conceitos clássicos. E na medida que esta última nada mais é que a expressão da pentadoxia, foi intenção do físico dinamarquês 159 Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 19. 173 encontrar uma forma de integrar harmoniosamente a estranha natureza dos objectos quânticos na concepção clássica do mundo físico. Esta integração estabelecer, como constituição da realiza-se princípio Mecânica começando orientador Quântica, que por da esta se própria deve ter, logicamente, uma relação de correspondência com as teorias clássicas da Física. Uma correspondência, em primeiro lugar, entre previsões numéricas no limite onde a natureza quântica perde significado físico prático. Ou seja, no tal limite dos grandes números quânticos. Uma correspondência, em segundo lugar, entre os formalismos. E, em terceiro lugar, uma correspondência entre conceitos. Por fim, harmoniosa da o culminar estranha da incorporação natureza quântica consistente nas e teorias clássicas, reside na determinação da aplicabilidade dos conceitos clássicos. A tese fundadora da Teoria Quântica Nova foi a de De Broglie que consiste na afirmação que objectos quânticos se propagam como ondas e interagem como corpos. Para De Broglie tal tese implicava que, de algum modo, teríamos que encontrar um conceito quânticos. Em De apropriado Broglie existe para uma os abertura objectos para a questão: “o que é um objecto quântico?”. Em Bohr existe uma renúncia total a tal tipo de questão ontológica. De De 174 Broglie, Bohr retira a lição que nenhum conceito clássico não pode ser aplicado a todas etapas necessárias à descrição completa de uma determinada situação experimental relativa a um sistema quântico. Da doutrina dos conceitos clássicos é claro que os objectos quânticos só podem ser concebidos fossem exclusivamente ondas ou corpos como não ondas haveria ou corpos. necessidade Mas de se uma teoria quântica. Bohr foge do labirinto a que a tese de De Broglie nos conduz, retirando deste apenas a ilação que os conceitos clássicos devem ser aplicados formalmente e de um modo complementar. Aos objectos quânticos continuam a ser aplicados os conceitos de ondas e de corpos. Porém, não se referem à natureza destes, mas ao padrão de resultados de uma medição sobre estes. A onda não se refere à natureza dos objectos quânticos, mas à estatística de resultados de medida. E neste movimento, a posição é substituída pelo operador posição. O momentum é substituída pelo operador momentum. A energia é substituída pelo operador energia. A Mecânica Quântica não é uma teoria que se refere ao estado físico dos objectos quânticos, mas apenas e só ao cálculo probabilístico Quântica de uma constitui-se, medição assim, sobre como, eles. A Mecânica essencialmente, uma generalização racional das teorias clássicas da Física. Compreende-se quânticos, pois dentro que do não seja contexto da aplicável Mecânica aos objectos Quântica, o 175 conceito de trajectória. Pois isso significaria uma assumpção ontológica sobre essas entidades quânticas. Sobre uma sucessão de posições. Nem tão pouco lhes será aplicável o conceito de energia, ou momentum, ou massa, ou qualquer outro. Se se refere, por exemplo, à posição dos objectos quânticos é apenas por enorme simplicidade. Na realidade, no contexto da Mecânica Quântica, deveríamos apenas falar em medições sentido, de todo posição discurso e suas probabilidades. ontologizante sobre a Neste função de onda, sobre o cair na tentação de perguntar “o que havia antes da medição?” querendo ser fiel à Mecânica Quântica, é uma pura quimera. E, por consequência, parte do debate sobre as implicações da Mecânica Quântica são, a meu ver, sem sentido. Por outro lado, se se fala em propriedades dos objectos quânticos como o spin é apenas por não se ter presente que essas supostas propriedades são puras construções formais a partir de propriedades dos objectos clássicos, tal como o spin é do momentum angular. E se a Física de Partículas se faz falando em electrões, neutrinos, protões ou outros objectos quânticos, imaginadas como subterrâneo do corpúsculos CERN, a alta que se movem, velocidade, quase no anel como se fossem bolas de bilhar lançadas dentro um tubo gigante, é 176 apenas como assinala Brigitte Falkenburg160, porque a Física de Partículas se constitui a partir de um conjunto de conceitos operacionais habilidosas de transgressões partícula. à Mecânica Portanto, Quântica. O em mesmo poderia ser dito, a meu ver, da Electrodinâmica Quântica, com o seu conceito operacional de “campo nulo flutuante”, ou da Química Quântica, com o conceito operacional de “distribuição de electrões”. Em todas elas, em todas as linhas de investigação da Física Quântica da segunda metade do século XX, sente-se a vontade de ontologização na referência ao domínio quântico. O mesmo que a Mecânica Quântica se recusa fazer qualquer referência ontológica, pois os objectos quânticos não podem ser concebidos sem ferir as entranhadas objectos físicos questão não é quântico?”. Pois que convicções percorre verdadeiramente essa questão sobre toda a a natureza Física. “o que é já manifesta dos Assim, um a objecto a nossa estranheza em relação à sua natureza. Já, de certo modo, manifesta a nossa vontade de tornar clássico o quântico. Já nos conduz pelo caminho trilhado por Bohr que só nos leva a uma Mecânica Quântica, rica na produção de previsões de resultados, mas ontologicamente vazia. A questão que o domínio quântico levanta, a meu ver, não é pois “o que é um objecto quântico?” mas: “o que é um objecto físico?”. 160 Idem, p. 221. 177 178 3. O que é um objecto físico? Num artigo que, ainda se pode considerar como recente, o norteamericano Ned Markosian assinala: “Apesar filosóficas, da o sua óbvia conceito de importância objecto nas físico tem discussões recebido, surpreendentemente, pouca atenção. Em particular, a questão “O que é um objecto físico?”, isto é, “qual é a análise correcta do conceito de objecto físico?” tem sido praticamente ignorada pela maioria dos filósofos.”161 O conceito de objecto físico é, necessariamente, de vital importância para a Filosofia da Física. Para qualquer Física. Não fora esta, justamente, a ciência que tem por objecto os objectos físicos. Contudo, aceitando o que assinala Markosian, estranhamente, a análise deste conceito tem estado muito pouco presente na Filosofia contemporânea. 161 “Despite its obvious importance in philosophical discussions, the concept of a physical object has received surprisingly little attention. In particular, the question What are physical objects?, i.e., What is the correct analysis of the concept of a physical object?, has been all but ignored by most philosophers.” Markosian, Ned (2000), “What are Physical Objects?”, in Philosophy and Phenomenological Research, 61, pp. 375-376. (tradução minha) 179 E se assim é para a Filosofia em geral, é-o, logicamente, para a Filosofia da Física. O que será, particularmente surpreendente, pois não só é um conceito fundamental, por definição da própria Filosofia da Física, como se afirmou no inicio deste parágrafo, mas porque, como pretendeu mostrar o capítulo anterior deste trabalho, a questão “o que é um objecto físico?” é crucial para a Filosofia da Mecânica Quântica. Porém, se o conceito de objecto físico tem estado arredado da literatura filosófica actual, ele foi manifestamente um dos epicentros da ontologia dos séculos XVI e XVII – época do início tanto da Filosofia Moderna, como da Física Clássica. Por isso, a meu ver, qualquer investigação sobre o conceito de objecto físico, que se pretende relacionar com a Física actual, terá que começar por essa época. Mais especificamente, por Descartes. Tanto mais que Markosian, no referido artigo, defende uma concepção de objecto físico muito aproximada da apresentada por Descartes. 180 3.1. O Conceito de Objecto Físico em Descartes Dentro da bibliografia de Descartes, é nos “Princípios de Filosofia” que encontramos uma especial e desenvolvida atenção à Metafísica da Física. Atenção essa que tem o seu foco no conceito de objecto físico e como a partir deste se ergue a própria Física. Nos “Princípios de Filosofia”, tal como nas “Meditações”, Descartes apresenta uma ontologia constituída por três substâncias. Substâncias que se distinguem em dois tipos, cada um dos quais correspondente um sentido ligeiramente diferente do conceito de substância. Isto mesmo é assinalado por Descartes no título do parágrafo 51 da primeira parte dos “Princípio de Filosofia”, onde se pode ler “O que é a substância: um nome que não se pode atribuir a Deus e às criaturas no mesmo sentido”. O primeiro desses sentidos do conceito de substância pode ser encontrado, no referido parágrafo dos “Princípios de Filosofia”, na bem conhecida afirmação de Descartes: 181 “Quando concebemos a substância, concebemos uma coisa que existe de tal maneira que só tem necessidade de si própria para existir.”162 A substância surge aqui como o que existe independentemente de qualquer outra coisa. O que quer dizer que, por um lado, o que é substância subsiste enquanto existente, isto é, mantém-se como existente, pela sua própria natureza. E, por outro lado, significa que o que é substância tem em si mesma, na sua natureza, a razão da génese da sua existência. Porém, como salienta logo o próprio Descartes, “só Deus é assim”163. Só Deus necessita apenas de si mesmo para permanecer como existente e só Ele tem a razão da sua existência completamente fundada na sua natureza. Pois, em primeiro lugar, Descartes assinala que de Deus temos a ideia de um “Ser omnisciente, todo-poderoso e extremamente perfeito, isto é, um Ser todo perfeito”164. Ou seja, de Deus temos a ideia de um Ser infinitamente poderoso. Ora, 162 “Lorsque nous concevons la substance, nous concevons seulement une chose qui existe en telle façon qu’elle n’a besoin que de soi-même pour exister.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 121 ( Parte I, Parágrafo 51) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.45). 163 164 “[…] il n’y a que Dieu qui soit tel” Idem, ibidem. “[…] d’un être tout-connaissant, sout-puissant parfait” Idem, (Parte I, parágrafo 14) p. 32. et extrêmement 182 naturalmente a existência de tal Ser não pode depender da existência de outra coisa qualquer, pois seria uma contradição um Ser ser infinitamente poderoso e depender de outra entidade qualquer. E sendo o único Ser infinitamente poderoso, só Deus pode ter em si mesmo a razão da sua existência. Como tal, “só pelo facto de se aperceber de que a existência necessária e eterna está compreendida na ideia de um Ser concebido significa, mergulhando perfeito”165, como tendo segundo nas então esse profundezas só “pode necessária”166. existência Descartes, Ser por do um lado, chamado ser O que e não “argumento ontológico”, que se temos em nós essa ideia de um Ser perfeito então é porque ele existe. E, por outro lado, significa, igualmente, que somente Deus existe necessariamente pela sua própria essência. Só Deus existe independentemente de qualquer outra coisa. Só Deus será, então, substância. Porém, se só Deus cumpre com a condição de substância então isto significará que tudo é Deus? Se assim fosse serse-ia levado a dizer que, verdadeiramente, existe apenas uma única substância – a de Deus. Dir-se-ia, então, que 165 “[…] de cela Seul qu’elle aperçoit que l’existence nécessaire et éternelle est comprise dans l’idée qu’elle a d’un être tout parfait, elle doit conclure que cet être tout parfait est ou existe”, Idem, ibidem. 166 “[…] parce qu’elle ne peut être conçue qu’avec une nécessaire.” Idem, p. 100 (Parte I, Parágrafo 14) (p. 33) existence 183 Descartes é, no fundo, um monista. E, como tal, todas as coisas, os objectos físicos em particular, seriam algo como partes, manifestações ou modos particulares de Deus. Esta conclusão colocaria Descartes muito próximo de Espinosa (ou, Espinosa muito do ponto de próximo de vista cronológico, Descartes). colocaria Pois, justamente, para Espinosa, da conclusão que apenas Deus corresponde com o conceito de substância mesmo, resulta como algo que existe apenas que “afora Deus, não pode ser si dada nem concebida nenhuma substância”167. Tudo o que existe é, de algum modo, Deus. Distinguindo, então, o filósofo holandês, a Natureza em duas: a Natureza naturante, que é “[…] o que existe por si e é concebido por si […], isto é, Deus, enquanto é considerado naturada que é o como conjunto causa de “[…] livre; todos e os a Natureza modos dos atributos de Deus, enquanto são considerados como coisas que existem em Deus e não podem existir nem ser concebidas sem Deus”168. Em Espinosa a Natureza é uma substância única. E, em particular, os objectos físicos, que no caso são apenas os corpos, são entendidos como “[…] um modo que 167 Espinosa, Bento de (1677), Ethica, (tradução portuguesa de Joaquim de Carvalho, Joaquim Ferrreira Gomes e António Simões, Ética, Lisboa: Relógio d’Água (1992), p. 121. 168 Idem, pp.150-151. 184 exprime, de maneira certa e determinada, a essência de Deus”169. Porém, para Descartes, contrariamente a Espinosa, da consideração que a substância é única, no sentido que só Deus depende de si mesmo para existir, não resulta que todas as coisas não são outra coisa que modos ou manifestações de Deus. Não resulta que as coisas não possam ser concebidas sem Deus. Em Descartes Deus não está em todas coisas. Deus é o criador de todas coisas. Porém, se tudo foi criado por Deus isto não significa que todas coisas criadas tenham o mesmo estatuto quanto à sua existência: “[…] entre as coisas criadas algumas são de tal natureza que não podem existir sem outras, distinguimo-las daquelas que só têm necessidade do concurso ordinário de Deus, chamando substâncias a estas e qualidades ou atributos das substâncias àquelas.”170 Se Deus é a única coisa cuja existência decorre unicamente da sua natureza, e por isso é única coisa que 169 Idem, p.197. 170 Idem, ibidem. 185 cumpre integralmente substância, unicamente outras de Deus, com a coisas definição há coisas cuja que de Descartes existência para de depende existirem “só têm necessidade do concurso ordinário de Deus”. Como tal estas são, na sua existência, completamente independentes de todas outras criadas por Deus. E neste sentido, Descartes considera-as igualmente como substâncias, embora num sentido ligeiramente diferente relativamente a Deus. Por seu turno, se estas substâncias apenas necessitam de Deus para existirem, então todas as outras coisas dependem destas para existirem. Não serão substâncias, pois não dependem unicamente de Deus para existirem, mas são “qualidades ou atributos” das substâncias. Sendo mais específico, afirma Descartes: “A criadas principal é que inteligentes, substâncias; umas ou as distinção são então outras que observo intelectuais, propriedades são isto que corpórea, entre é, as substâncias pertencem isto é, coisas a corpos tais ou propriedades que pertencem ao corpo.”171 171 “Et la principale distinction que je remarque entre toutes les choses créés est que les unes sont intellectuelles, c’est-à-dire sont des substances intelligentes, ou bien des propriétés qui appartiennent au corps.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 119 ( Parte I, parágrafo 48) tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.44) 186 Nesta passagem, Descartes esclarece que as substâncias criadas se dividem intelectuais (a que entre aquelas Descartes que são igualmente substâncias designa por substâncias pensantes ou almas) e as que são substâncias corpórea ou corpos. O que significa, em primeiro lugar, que existem para Descartes três substâncias. A de Deus, que existe independente de tudo, e as que a foram criadas por Deus e cuja existência depende unicamente Dele: a substância corpórea e a substância que pensa. Em segundo lugar, dentro das coisas criadas, para além das substâncias, existem as propriedades que pertencem à substância que pensa e as propriedades que pertencem as substâncias corporais. O que, segundo Rodriguez-Pereya172, actual professor de Metafísica na Universidade de Oxford, constitui um segundo conceito de substância em Descartes: Substância é uma entidade detentora de propriedades. Mas será que estamos perante, não de um segundo conceito de substância, mas de um corolário do conceito de substância? Isto é, será que da afirmação que a substância é uma entidade detentora de propriedades decorre da concepção da 172 Conferir Rodriguez-Pereya, Gonzalo (2008), “Descarte’s Substance dualism and His Independence Concept of Substance” in .Journal of the History of Philosophy, vol. 46, no. 1, p. 69. 187 substância como o que existe independente de qualquer outra coisa? Se se afirma que algo, chamemos-lhe “A”, não é substância pois a sua existência depende directamente de outra coisa, chamemos-lhe “B”, logo se coloca a questão: e “B”, a sua existência depende exclusivamente de Deus ou depende de outra coisa ainda, a que podemos chamar de “C”? Se depende exclusivamente de Deus, “B” é substância e “A” uma sua propriedade. Mas se a existência de “B” depende de “C”, então, substância por e, um por lado, outro conclui-se lado, que regressamos “B” à não é questão anterior, mas agora dirigida a “C”: a existência de “C” depende exclusivamente de Deus ou depende de outra coisa ainda, a depois de que podemos realizado chamar o mesmo de “D”? E, movimento, eventualmente, regressamos à questão anterior, mas agora relativo a um “D”, do qual dependeria a existência de “C”, e um “E” relativamente à existência de “D”, e assim sucessivamente num encadeamento de existências dependentes. Por conseguinte, a interrogação sobre se existem dois ou mais conceitos de substância no “Princípios de seguinte Filosofia” de Descartes transforma-se na questão: uma qualquer cadeia de existências dependentes sucessivamente termina, necessariamente, numa substância? 188 Se sim, então, em última instância, todas as coisas criadas ou são substâncias, pois dependem apenas de Deus para existirem, ou são coisas que dependem, directa ou indirectamente, das substâncias criadas para existirem. E neste sentido, tudo o que existe ou é substância, ou é, necessariamente, uma propriedade conseguinte, o conceito propriedades é um enquanto coisa de substância corolário do destas. E, por como portador de conceito de substância que existe independentemente de qualquer outra coisa que não seja a substância de Deus. Portanto, não estaríamos perante dois conceitos de substância, como afirma Rodriguez-Pereya, mas de apenas um. Creio, aliás, que esta seja a interpretação mais fiel a Descartes. Pois a hierarquia das substâncias e das suas propriedades seria como uma árvore: uma folha de uma árvore depende do ramo depende do onde se encontra para existir; o ramo tronco da árvore para existir; e o tronco depende da raiz a qual funda a existência da árvore, pois não há árvores sem raízes. Em sentido metafórico, e não se lhe exigindo demasiado, Deus seria a raiz e o mundo criado a árvore, pois se uma árvore só existe se existir uma raiz, uma raiz estariam existe as sem necessidade substâncias e de partir árvore. deste No as tronco suas propriedades, como ramificações e folhagens. 189 Porém, regressemos à questão anterior, ainda deixada em aberto, de saber se existem nos “Princípios de Filosofia” dois conceitos distintos de substância. E, em especial, regressemos à questão: uma qualquer cadeia de existência dependentes sucessivamente termina numa substância? Seria possível responder negativamente a esta questão? Sim, seria. Pois é possível conceber que uma entidade “A” depende na sua existência de uma entidade “B” que, por sua vez, depende de uma entidade “C” que, por fim, depende de “A”. Portanto, nesta caso de circularidade de dependências, nem “A”, nem “B”, nem, ainda, “C”, individualmente consideradas, são substâncias no sentido de algo que existe independente de qualquer coisa. Mas seriam substâncias no sentido que são detentoras de propriedades. Porém, neste caso, “A”,”B” e “C” teriam um estranho estatuto. Pois, ao se afirmar que pela sua relação mútua de dependências, “A” seria propriedade de “B”, “B” seria propriedade de “C” e “C” seria propriedade de “A”, seria afirmar que, neste sentido, “A”, “B” e “C” seriam, por um lado, substâncias no sentido que seria portadores de propriedades, mas por outro lado seriam propriedades. O que constituiria uma contradição. Contradição que se supera se entender que, neste individualmente propriedades caso, nem considerados, co-dependentes. “A”, são nem “B”, nem “C”, substâncias, mas Contraponhamos à imagem da 190 árvore, a imagem do rizoma ou do coral. A este assunto voltaremos no próximo capítulo. Porém, importa aqui assinalar que esta possibilidade de existirem propriedades sem substância é explicitamente rejeitada por Descartes, como se verá, mais à frente, quando se referir a natureza da distinção entre “extensão” e “substância extensa”. Rejeitando-se esta última possibilidade, conclui-se que do conceito de substância como portador de propriedades é corolário do conceito de substância como o que tem em si mesmo a razão da sua existência. E, portanto, não creio que estejamos perante, nos “Princípios de Filosofia”, de dois conceitos de substância Regressando agora à passagem onde Descartes afirma que as coisas criadas se distinguem em duas categorias: as substâncias - a pensante e a corpórea - as propriedades que pertencem a estas, perguntemos: se Descartes afirma que só existem duas substâncias entre as coisas criadas, em que se distinguem a substância corpórea e a pensante? Como podemos saber que são estas as únicas substâncias criadas? E se estas substâncias são apenas possíveis na sua existência, pois só Deus existe necessariamente, como sabemos que existem realmente as substâncias corpóreas e pensante? A resposta a estas questões pode ser encontrada a partir da seguinte passagem de Descartes: 191 “[…] [para cada uma das substâncias criadas] há um atributo que constitui a sua natureza e a sua essência e do qual todos os outros atributos dependem. A saber, a extensão em comprimento, largura e altura constitui a natureza da substância corporal, e o pensamento constitui a natureza da substância que pensa. Com efeito, tudo quanto pode ser atribuído ao corpo pressupõe a extensão e Igualmente, não passa todas as de dependência propriedades que do que é encontramos extenso. na coisa pensante são diferentes maneiras de pensar.”173 Nesta passagem Descartes afirma que as substâncias criadas distinguem-se entre si por possuírem um atributo que lhes é essencial. Da substância que pensa, o seu atributo principal é o pensamento. Da substância corpórea o seu atributo principal é a extensão. Assim, por um lado, em função do pensamento e da extensão, sabemos, respectivamente, que tanto a substância pensante, como a substância corpórea realmente existem, 173 “[…] il y en toutefois un en chacune qui constitue sa nature et son essence, et de qui tout les autres dépendent. A savoir, l’étendue en longueur, largeur et profondeur, constitue la nature de la substance qui pensé. Car tout ce que d’ailleurs on peut attribuer au corps présuppose de l’étendue, et n’est qu’une dépendance de ce qui est éstendu; de même, tout les propriétés que nous trouvons en la chose qui pensé ne sont que des façons différentes de penser“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 123 ( Parte I, Parágrafo 53) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.46). 192 pois, segundo Descartes “[…] logo que encontramos algum atributo podemos substância, e concluir que tal que é o atributo de existe”174. substância alguma Não há em Descartes a possibilidade de atributos ou propriedades sem existir um sujeito, isto é, uma substância, que as possua. Por outro lado, a distinção entre substâncias opera-se ao nível da Distinguimos pensamento, os distinção atributos entre segundo atributos principais, Descartes, pois a principais. extensão concebemos e o clara e distintamente extensão sem o pensamento e pensamento sem extensão. Ou seja, em tudo o que concebemos e podemos conceber sobre a extensão em nada precisamos do pensamento enquanto entidade (pois, naturalmente, só através do pensamento podemos conceber algo. Porém, aqui entende-se pensamento entidade enquanto ou faculdade substância). de Sendo conceber o contrário e não como igualmente verdadeiro. Para concebermos os corpos apenas necessitamos da extensão e, como tal, esse é o atributo – único - que lhes essencial, é esse atributo que constitui a sua natureza. Argumenta Descartes que podemos verificar que só concebemos clara e distintamente os corpos pela extensão, corpos como o que é extenso recorrendo um exemplo a que hoje se chamaria de “experiência de pensamento” e que é 174 “lorsqu’on en rencontre quelqu’un [attribut], on a raison de conclure qu’il est l’attribut de quelque substance, et que cette substance existe.“, Idem, p. 123 (Parte I, Parágrafo 52) (p. 46) 193 semelhante ao famoso “Meditações”, mas que exemplo da vela, apresentado nas nos “Princípios de Filosofia”, é revisitado na seguinte passagem: “Tomemos por exemplo uma pedra e retiremos-lhes tudo o que sabemos que não pertence à natureza do corpo. Primeiramente retiramos-lhe a dureza, e nem por isso deixará de ser corpo; depois a cor, já que alguma vezes temos visto pedras tão transparentes que não têm cor; tiremos o peso, porque também o fogo, ainda que muito ténue, nem por isso deixa de ser um corpo; tiremos-lhe o frio, o calor e todas as qualidades deste género, pois não pensamos estejam todas as outras qualidades deste género, pois não pensamos que estejam na pedra ou que a pedra mude de natureza porque umas vezes nos parece quente e outras fria. Depois de assim termos examinado esta pedra descobrimos que a verdadeira ideia que nos faz conceber que é um corpo que consiste unicamente em nos apercebemos distintamente de que é uma substância extensa em comprimento, largura e altura”175 175 “Nous prenons pour exemple une pierre et en ôtons tout ce que nous saurons ne point appartenir à la nature du corps. Otons-en donc premièrement la dureté, parce que, si on réduisait cette pierre en poudre, elle n’aurait plus de dureté, et ne laisserait pas pour cela d’être un corps; ôtons-en aussi la couleur, parce que nous avons pu voir quelquefois des pierres si transparentes qu’elles n’avaient point de couleur; ôtons-en la pesanteur, parce que nous voyons que le feu, quoiqu’il soit très léger, ne laisse pas d’être un corps; ôtons-en le froid, la chaleur, et toutes les autres qualités de ce genre, parce que nous ne pensons point qu’elles soient dans la pierre, ou bien que cette pierre change de nature parce qu’elle nous semble tantôt chaude et tantôt froid. Après avoir ainsi examine cette pierre, nous trouverons que la véritable idée que nous en avons consiste en cela seul que nous apercevons distinctement qu’elle est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur”, Idem, pp. 156-157 (Parte II, Parágrafo 11)(p.64). 194 Defende corpos então através Descartes das que impressões o que conhecemos sensíveis, dos conhecemo-lo apenas de uma forma confusa e indistinta. Confusa, pois das impressões sensíveis temos a sensação de cor, cheiro, dureza, calor, etc. Sensações que associamos aos corpos e somos levados a dizer, por exemplo, que um dado corpo é azul ou que é quente. Porém, segundo Descartes “conhecemos clara e distintamente a dor, a cor e outras sensações quando as consideramos simplesmente como pensamentos”176. Ou seja, só sabemos, por exemplo, o que é a cor quando a tomamos como consequência, algo da como algo substância pensante completamente e, distinto por da substância corpórea. Portanto, todas essas coisas que as nossas cheiro, impressões dureza ou sensíveis calor só nos oferecerem confusamente os como cor, poderemos associar aos corpos, pois são elementos não destes mas do pensamento. Por essa razão, os corpos não mudam a sua natureza consoante a sua cor, cheiro, dureza ou calor. Retirando do conjunto de atributos do corpo tudo aquilo que é da sensação, apenas resta a extensão. Mas se retirarmos a extensão não há corpo. Podemos conceber uma pedra incolor, 176 “[…] nous connaissons clairement et distinctement la douleur, la couleur et les autres sentiments, lorsque nous les considérons simplement comme des pensées », Idem, p. 136 (Parte I, Parágrafo 68) (p. 53). 195 inodora, sem Descartes, peso, de mas forma não alguma, podemos um conceber, corpo sem segundo extensão. Chegamos, então, à conclusão que a ideia que temos dos corpos é a ideia de uma coisa extensa, de uma res extensa. Pois ao se eliminar sucessivamente todos as propriedades que atribuímos aos corpos, alcançamos a única da qual não se pode prescindir na concepção de corpo: a extensão em comprimento, largura e altura. Assim, distintamente para Descartes, uma substância só concebemos pensante pelo clara e pensamento. Pois, se por um lado, não é inteligível uma substância pensante sem pensamento, por outro lado apenas precisamos do pensamento para conceber a substância que pensa. Da mesma forma, só concebemos clara e distintamente uma substância corpórea pela extensão. Pois, por um lado, não é inteligível um corpo sem extensão, por outro lado, apenas precisamos da extensão para conceber o corpo. Por seu turno, dado que todas as coisas que conhecemos são referentes ou ao pensamento ou à extensão e sendo estes os atributos que constituem, distinta e respectivamente, a essência da substância que pensa e da substância corpórea, então sabemos que não existirem outras substâncias criadas para além da Alma e do Corpo. Havendo dois atributos 196 principais sabemos que existem apenas duas substâncias criadas. Regressando aos corpos como conceito, não surpreendente que extensão possua um estatuto relativamente à corpos têm sua natureza. volume e têm será essencial É de senso comum que os uma localização. Aliás, ao argumentar por eliminação, isto é, ao tentar mostrar que a essência dos corpos é extensão nas três dimensões do espaço físico por recurso à eliminação de todos os outros presumidos atributos, Descartes remete para o senso comum sobre os corpos, onde, naturalmente, se inclui a noção que os corpos têm comprimento, largura e altura (aliás, na sua argumentação Descartes pressupõe que é, igualmente, de senso comum o que seja comprimento, largura e altura). Na caracterização dos corpos, o que é fulcral e particular, tal como assinala Garber177, em Descartes é a afirmação que a natureza dos corpos seja exclusivamente a extensão. Ou seja, que um conjunto de propriedades que vulgarmente atribuímos aos corpos, como a temperatura, o peso, a cor, nem quaisquer outras que julguemos, não pertencem realmente a estes. Afirma, pois Descartes: 177 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 77. 197 “[…] a natureza do corpo em geral não consiste em ser uma coisa dura, pesada ou colorida, ou que afecta os sentidos de qualquer outra maneira, mas que é apenas uma substância extensa em comprimento, largura e altura”178 Os corpos conhecemos confusamente através dos sentidos, ao misturar a sua extensão com cores, cheiros, propriedades tácteis, etc. Os corpos conhecemos clara e distintamente como extensão e apenas como extensão. Por essa razão é tão fundamental em Descartes a separação radical e completa entre a substância pensante e corpórea. Pois, permite estabelecer uma radical separação entre o sujeito que conhece o mundo físico - o sujeito que pensa e o objecto desse conhecimento - o corpo. Permitindo que aquilo que seja determinado para os corpos seja objectivo, isto é, que pertence somente ao objecto. Por outro lado, como coisa puramente extensa, os corpos, os objectos físicos, na sua natureza e propriedades são afins com os objectos geométricos. Como tal, a partir da sua concepção de corpo, Descartes pode fundar 178 “[…] la nature de la matière, ou du corps pris en général, ne consiste point en ce qu’il est une chose dure, ou pesante, ou colorée, ou qui touche nos sens de quelque autre façon, mais seulement en ce qu’il est une substance étendue en longueur, largeur et profondeur.” Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 149 (Parte II, Parágrafo 4) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.60). 198 solidamente na matemática uma ciência dos objectos físicos, isto é, uma Física. Porém, a Física que Descartes pode fundar é uma Física geométrica, uma Física das proporções e não uma Física das quantidades, uma Física com uma álgebra funcional. E, como tal, não é a Física como a reconhecemos, que se inicia com Newton. Porém, se todo o corpo é, pela sua essência, extenso, então, poderá haver extensão sem corpo? Para Descartes, nos “Princípios de Filosofia”, não. Pois, tal como já foi aqui referido, existência Descartes de uma não considera propriedade que a não possibilidade seja senão da uma propriedade de uma substância determinada. A cor existe na medida que é uma propriedade da substância pensante. A extensão existe na medida que é uma propriedade da substância corpórea. Descartes é muito claro quando afirma: “[…] só distinguimos pensamento e extensão do que pensa e é extenso como as dependências da própria coisa de que dependem, e conhecemo-las tão clara e distintamente como a sua substância desde de que não pensemos que subsistem por si próprias, mas que são somente as maneiras ou dependências daquelas substâncias”179 179 “[…] nous ne distinguons la pensé et l’étendue de ce qui pensé et ce qui est étendu que comme les dépendances d’une chose, de la chose même dont elles dépendent; nous les connaissons aussi clairement et aussi distinctement que leurs substances, pourvu que nous ne pensions point qu’elles subsistent d’elles-mêmes, mais qu’elles sont seulement 199 Se distinguimos “extensão” da substância que é extensa, fazemo-lo apenas por via do pensamento, pois não corresponde distinção a uma real, distinção então real. teríamos Pois que se fosse uma considerar que “extensão” subsistiria si mesma, o que não é aceitável para Descartes, pois equivaleria a afirmar que a “extensão” era uma substância. Por sua vez, se a extensão só pode ser considerada como propriedade da substância corpórea, então não pode haver extensão extensão, isto sem corpo. é, todo Mais concretamente, o espaço físico, toda a está necessariamente preenchido por corpo. Ou seja, do conceito de corpo de Descartes resulta que o mundo físico é um plenum. Uma das consequências imediatas do plenum do espaço físico é, claro está, a não existência de vazio em Descartes. Como assinala o próprio: “Quanto ao vazio, no sentido em que os filósofos tomam esta palavra, isto é, como um espaço onde não há nenhuma substância, é evidente que tal espaço não existe no universo, porque a les façons ou dépendances de quelques substances.” Idem, pp. 133-134 (Parte I, Parágrafo 64) (p.51). 200 extensão do espaço ou do lugar interior não é diferente da do corpo”180. Porém, se a natureza da interior não distinguir, distinguir é diferente pois os todo vários o “extensão do espaço ou lugar da do espaço corpos é no corpo” como podemos corpo, como podemos espaço? Afinal, é da percepção sensível comum que os corpos são vários no espaço e não apenas um, isto é, que são finitos, que Descartes chega à conclusão que a natureza dos corpos é a pura extensão. Se percebemos o espaço físico como um plenum, não poderíamos chegar, por eliminação, como faz Descartes no exemplo da pedra à qual vamos retirando sucessivamente atribuições, à noção de largura, altura e comprimento e, como tal, que os corpos são coisa extensa. Se falamos numa pedra que tem uma largura, uma altura e um comprimento, é porque é finita e o que a rodeia é-lhe, de alguma forma, distinto. Mas se o espaço é um plenum essa distinção não pode ser relativamente à natureza do que o rodeia, como seria o caso do vazio. E, como tal, só pode residir na diferença na composição das partes do corpo – no caso, a 180 “Pour ce qui est du vide, au sens que les philosophes prennent ce mot, à savoir, pour un espace où il n’y a point de substance, est évident qu’il n’y a point d’espace en l’univers qui soit tel, parce que l’extension de l’espace ou du lieu intérieur n’est point différente de l’extension du corps.” idem, p. 161 (Parte II, Parágrafo 16) (p.66). 201 pedra – e o que o rodeia. O que imediatamente rodeia um corpo particular, Descartes de logicamente, a lugar a sua superfície, exterior figura desse dessa é corpo designado por particular. superfície, que é E, o consideramos ser a figura do corpo é apenas um modo da extensão. Desta forma, a diferença entre um corpo particular e o que o rodeia, que também é corpo, reside na diferença entre as partes que constituem esse corpo particular e as que o rodeia. Mais especificamente: “[…] só há uma matéria em todo o universo e só a conhecemos porque é extensa. Todas as propriedades que nela apercebemos distintamente apenas se referem ao facto de poder ser dividida e movimentada segundo as suas partes.”181 Desta passagem assinala-se, em primeiro lugar, que surge o termo “matéria”. Esta matéria não é outra coisa que a substância corpórea entendida como plenum. Isto é, com a totalidade da extensão. E por isso, “[…] a Terra e os céus são feitos de uma mesma matéria, […] cuja natureza consiste 181 “Il n’y a donc qu’une même matière en tout l’univers, et nous la connaissons par cela Seul qu’elle est étendue; pour ce que toutes les propriétés que apercevons distinctement en elle, se rapportent à ce qu’elle peut être divisée et mue selon ses parties”, Idem, p. 168 (Parte II, Parágrafo 23) (p.69). 202 unicamente em ser extensa”182. coisa Ao identificar a matéria com o plenum da substância do mundo físico, ou seja, o espaço, Descartes, por um lado, afasta-se de Aristóteles quando no filósofo grego o mundo físico é tido como constituído por cinco matérias (água, ar, fogo, terra e éter), havendo apenas uma matéria. Por outro lado, a identificação da matéria com o plenum permite que se distinga quando estamos a falar de um corpo particular do conjunto total de corpos que constitui a plenitude do mundo físico. Em segundo lugar, na passagem anterior, Descartes assinala que dado que a natureza dos corpos é a extensão, então estes são divisíveis em partes. E, como tal, embora toda a matéria seja constituída por partes, os corpos ou objectos físicos particulares distinguem-se entre si pelas diferenças entre essas partes que os constituem. A saber: nos seus tamanhos e nos seus movimentos. Relativamente corpos se podem ao tamanho, dividir há nessas umas tão partes em pequenas que que os nos escapam à visão e assim temos a falsa percepção de um vazio e, por contraste de um corpo particular, como uma pedra 182 “[…] la Terre et les cieux sont faits que d’une même matière […], dont la nature consiste en cela seul qu’elle est une chose étendue”, Idem, p. 167 (Parte II, Parágrafo 22) (p.68). 203 rodeada de ar. Isso mesmo é referido explicitamente por Descartes quando afirma que: “[…] considero que em cada corpo há muitas partículas que são tão pequenas que não podem ser sentidas”183 Significa isto, por um lado, que um corpo como o ar de uma sala é constituída, essencialmente, por partículas tão pequenas que não podem ser sentidas. Não as vendo somos levados a concluir erradamente que não existem e falamos em vazio quando esse vazio está cheio. Até, numericamente, mais cheio que uma pedra. Mas por outro lado Descartes afirma que não só os fluidos, como o ar, são constituídos por partículas corpóreas ou corpúsculos tão pequenos que não podem ser sentidos. Todos os corpos o são. Afinal, se estes são extensos, então podem ser divididos em partes, progressivamente, cada vez mais pequenas. Porém: “Por mais pequenas que as suas partes sejam, todavia, e porque é necessário que sejam extensas, pensamos que não há sequer uma de entre elas que não possa dividir-se em duas ou 183 “[…] je considère plusieurs parties en chaque corps qui sont petites qu’elles ne peuvent être senties“, Idem, p. 516 (Parte IV, Parágrafo 201) (p.272). 204 noutras ainda mais pequenas; donde se segue que são divisíveis.”184 Por mais pequenos que sejam os corpúsculo a cada divisão, não é pensável uma qualquer sequência de divisões até se alcançar uma parte tão ínfima do corpo que seja última e absolutamente simples. Isto é, algo como um átomo, entendido no sentido do que denominei no capítulo anterior de partícula pura dos corpos. Pois considerar que um átomo, no sentido de um corpo sem divisibilidade, seria considerar um corpo sem partes. Logo, seria, igualmente, considerar um corpo sem extensão. O que constituiria uma contradição com a própria afirma-se sentido concepção assim, que este do corpo claramente, defende a como extenso. contrário existência ao de Descartes atomismo, no corpúsculos indivisíveis e imutáveis na sua extensão e figura. Contudo, para Descartes, tal como para os atomistas, tudo no mundo físico é apenas composto por corpúsculos. Corpúsculos que, para Descartes, como já foi referido, são concebidos, não 184 “D’autant que, si petites qu’on suppose ces parties, néanmoins, parce qu’il faut qu’elles soient étendues, nous concevons qu’il n’y en a pas une entre elles qui ne puisse être encore divisée en deux ou plus grand nombre d’autres plus petites, d’où il suit qu’elle est divisible.” Idem, p.166 (Parte II, Parágrafo 20) (p.68). 205 como entidades infinitamente pequenos, mas como entidades incontáveis e de extensão indefinida185. Mas regressando um pouco atrás, segundo Descartes os corpos individuais distinguem-se não só pela dimensão das suas partes, mas igualmente pelo movimento destas. É assim que Descartes, partes dos entre os parágrafos 54 e 63 da segunda “Princípios de Filosofia”, estabelece a diferença entre sólidos e líquidos. Em que, resumidamente, neste últimos as suas partes, para além de serem mais pequenas, movem-se mais facilmente e, por isso, oferecem menos resistência à divisão. Mas mais importante que a distinção entre sólidos e líquidos, interessa assinalar que, em Descartes, do mesmo modo que da nossa experiência do mundo extraímos a noção que os corpos têm figura, extraímos a noção que os corpos se movem. O movimento, tal como a figura, não é algo que decorre necessariamente da concepção de corpo como coisa extensa. Um corpo poderia ser sem fim definido e, como tal, ser sem contorno e, pois está, sem figura. E os corpos poderiam ser eternamente estáticos. Figura e movimento são para Descartes modos de ser extenso. Isto é, não fazem parte da sua natureza, mas são maneiras diferentes da extensão existir. São, em linguagem escolástica, acidentes, 185 Conferir, Idem p.181 (Parte II, Parágrafo 34) (p. 74) 206 neste caso, da extensão. Mas, o que é o movimento em Descartes? Como conceber movimento num plenum? E se não é parte da sua natureza, por que se movimentam os corpos? 3.1.1 Movimento. O conceito de “movimento” é apresentado por Descartes nos “Princípios de Filosofia” em dois tempos. Primeiro, Descartes apresenta “movimento”, a que o conceito apelidada de de senso impróprio. comum de Depois, em oposição a este, Descartes apresenta o seu conceito de movimento. O primeiro, o impróprio: “[…] o movimento, de acordo com o senso comum, é a acção pela qual um corpo passa de um local para outro”186 Este é o conceito de movimento como de mudança de lugar. É o conceito de movimento que nos parece mais intuitivo e por isso Descartes designa-o de “senso comum”. Descartes, rejeita-o. Pois, como o próprio logo assinala, 186 ”[…] le mouvement, selon qu’on le prend d’ordinaire, n’est autre chose que l’action par laquelle un corps passe d’un lieu en un autre.” Idem, p.169 (Parte II, Parágrafo 24). 207 este senso comum sobre o movimento leva-nos a cair numa imensa dificuldade. Afirma Descartes, segundo o conceito de senso comum sobre o movimento: “[…] uma vez que se pode afirmar que uma coisa muda e não muda de lugar ao mesmo tempo, também podemos dizer que se move e não se move ao mesmo tempo. Por exemplo, quem está sentado na popa de um barco impelido pelo vento crê que se move quando se fixa apenas na margem donde partiu e a considera imóvel; e não crê que mover-se quando se fixa somente no barco em que se encontra, porque não muda de localização relativamente às suas partes.”187 Claramente a questão aqui é o que se designa, geralmente, por relatividade de Galileu, onde a definição do estado de movimento de um objecto físico particular é relativo a um referencial arbitrário. No caso, o movimento de um passageiro num barco relativo à popa do barco que o transporta ou à margem donde partiu. E, por consequência, desta relatividade do estado movimento de um objecto físico 187 ”[…] qu’une même chose en même temps change de lieu et n’en change point, de même nous pouvons dire qu’e même temps elle se meut et ne se meut point. Car celui, par exemple, qui est assis à la poupe d’un vaisseau que ce vent fait aller, croit se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au rivage duquel il est parti et le considère comme immobile, et ne croit pas se mouvoir, quand il ne prend garde qu’au vaisseau sur lequel il est, parce qu’il ne change point de situation au regard de ses parties.”, idem, ibidem. 208 particular em relação a um referencial arbitrário, existe uma indeterminação sobre o estado de movimento verdadeiro, pois podemos dizer, Descartes, que movimento. O um que simultaneamente, mesmo só nos corpo pode está levar tal como em a salienta repouso concluir e em que o movimento não é algo, de facto, das coisas extensas. Seria, talvez uma atribuição do pensamento. O movimento seria talvez uma sensação. O que para Descartes é inaceitável, entre outras razões, pois contradiz a noção de movimento como modo da extensão, isto é, como modo de ser extenso. E, por conseguinte, conceito de levaria corpo como à contradição pura com extensão, o próprio avançado por Descartes. Contrariamente a esta concepção de senso de comum do movimento, Descartes considera que propriamente dito: “[…] o movimento é translação de uma parte da matéria ou de um corpo da proximidade daqueles que lhe são imediatamente contíguos – e que consideramos em repouso – para a proximidade de outros”188 188 “[…] [mouvement] est le transport d’une partie de la matière, ou d’un corps, du voisinage de ceux qui le touchent immédiatement, et que nous considérons comme en repos, dans le voisinage de quelques autres.“ Idem, p. 169 (Parte II, Parágrafo 25) (p.69). 209 Descartes procura resolver o problema do relativismo do movimento, fixando como referência do movimento a vizinhança contígua do corpo que se move. Assim, Descartes assegura que de um corpo podermos dizer apenas que está em translação com a sua vizinhança contígua ou em repouso em relação a esta, mas nunca, simultaneamente, em ambos estados de movimento. Contudo, o conceito de movimento cartesiano é, por si, um mar de problemas. Em primeiro lugar, pois este conceito de movimento movimento é de ainda um relativista. corpo Afinal, particular é o estado relativo a de uma vizinhança que arbitrariamente se afirma encontrar-se em repouso. Ou seja, na verdade, o movimento, em Descartes, aparece apenas como uma diferença relativa entre dois corpos: a vizinhança e o corpo que se diz em movimento. Aos corpos não lhes é atribuída propriedades características do movimento como a celeridade, a velocidade ou a aceleração. Dentro do conceito de movimento de Descartes, poder-se-ia até dizer que não é o corpo que se move e que não é a sua vizinhança contígua que se encontra em repouso, mas o inverso. O segundo problema com o conceito de movimento em Descartes é que, como assinala Garber189, nos conduz a uma 189 Garber, Daniel (1992), Descartes’ Metaphysical Physics, Chicago: University of Chicago Press, p. 178. 210 circularidade. Pois, na sequência da apresentação do seu conceito de movimento, Descartes afirma sobre os corpos: “Por corpo ou parte da matéria entendo aquilo que é transportado conjuntamente, ainda que seja composto de várias partes que [com a sua acção] desencadeiam outros movimentos”190 Ora, ao conceber corpo com o “o que é transportado conjuntamente”, “translação quando antes, concebeu movimento como a de circularidade um entre corpo”, “corpo” Descartes e entra “movimento”. numa Pois, se “movimento” é concebido em função de “corpo” (como uma translação deste), já “corpo” em concebido em função do que é transportado, ou seja, do que é transladado, isto é, do que se movimenta. Esta circularidade pode ser, em certa medida, rompida atendendo que este conceito de corpo em função do movimento é naturalmente consistente com o conceito de corpo como coisa extensa, dado que a afirmação “composto de várias partes” implica dizer que é extenso. 190 “Par un corps, ou bien par une partie de la matière, j’entends tout ce qui est transporté ensemble, quoiqu’il soit peut-être composé de plusieurs parties qui emploient cependant leur agitation à faire d’autres mouvements.“ Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 170 (Parte II, Parágrafo 25) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”, Lisboa: Edições 70 (2006)), p.170).Idem, p. 170. 211 Note-se que o inverso não é necessariamente verdadeiro, pois ser extenso não significa necessariamente ser composto de várias partes, como é exemplo o conceito de átomo de Demócrito. Daqui resulta igualmente claro – se dúvidas houvesse – que o conceito de corpo como o que é extenso, em Descartes, é primeiro, é primordial, relativamente a este conceito de corpo conjuntamente”. E, como como tal, “o que “corpo” é é, transportado em Descartes, claramente concebido independentemente de “movimento”. Como aqui já se disse, o Universo físico de Descartes poderia ser eternamente estático. Porém, dizer que um corpo é coisa extensão não nos faz o entender o que é o movimento, isto é, não nos faz sair da circularidade relativamente à definição de “movimento”. Pois, ao se afirmar que movimento é “translação de um corpo”, ou seja, é a translação de uma coisa extensa então movimento é definido em função da translação. Mas o que será a translação senão um movimento? O terceiro problema com o conceito de “movimento” de Descartes decorre de ser um movimento num plenum. Um corpo que se movimenta num espaço plenamente preenchido tem como consequência que o movimento seja, necessariamente local, tal como Descartes pretendia, porém implica, igualmente, que não pode existir um movimento sem contacto. E, por conseguinte, qualquer movimento de um corpo leva ao “desencadear de outros movimentos”. Contudo, isto só poderá 212 levar à conclusão que quando um corpo se move, só o pode fazer em função de todos os corpos que o rodeiam. Descartes tenta resolver este problema indicando que “tem de haver necessariamente um círculo de matéria ou de corpos que se movem em conjunto ao mesmo tempo; e de tal maneira que quando um corpo deixa o seu lugar para que outro o preencha, vai ocupar o do outro e assim sucessivamente até ao último que nesse instante ocupa o lugar deixado pelo primeiro. E facilmente verificamos que isto é um círculo perfeito”191. O centro deste circulo será, logicamente, comum a todos corpúsculos que estão em movimento. O que levará Descartes ao conceito de turbilhão ou vórtice. Porém, como é fácil de verificar imaginando três rodas dentadas, embora os seus dentes se disponham de modo a que se movam circularmente, fazendo mover as outras que lhe são contíguas, se estas três rodas estiverem simultaneamente interconectadas não há possibilidade de existir movimento algum. É condição de possibilidade de movimento deste pleno de corpúsculos necessária corpúsculos, entre que contíguos todos compõem a as o existência partículas plenum. uma harmonia corpóreas, Harmonia que ou em 191 “[…] qu’il y ait toujours tout un cercle de matière ou anneau de corps qui se meuvent ensemble en même temps ; en sorte que, quand un corps quitte sa place à quelqu’autre qui le chasse, il entre en celle d’un autre, et cet autre en celle d’un autre, et ainsi de suite jusques au dernier, qui occupe au même instant le lieu délaissé par le premier. Nous concevons cela sans peine en un cercle parfait.“ Idem, pp. 179-180 (Parte II, Parágrafo 33) (p.73). 213 Descartes não é justificada. Terá sido pré-estabelecida por Deus no momento da criação da substância extensa? Descartes não nos responde reconhecendo, aliás, não saber como se compunha o universo no momento da criação192. Mesmo que Deus tivesse composto harmonicamente as partes físicas do Universo no acto de criação, teria ainda que calcular o desgaste ao longo do tempo de cada corpo. Isto é, a decomposição por fricção das partes em contacto de que nos fala Descartes “Princípios de no parágrafo 50, na terceira parte dos Filosofia”. Decomposição por fricção que leva a que os corpúsculos tendam a ser redondos e evoluírem para uma extensão cada vez menor. Por outro lado, dado que o conceito de corpo não decorre a necessidade destes se moverem, então a quantidade de movimento total não poderá diminuir ou aumentar ao longo do tempo. Pois uma variação da quantidade de movimento significaria movimento, que o que os corpos contradiz teriam a sua absorvido natureza, ou doado segundo Descartes. Mas se os corpos se movem, e o movimento não é consequência da sua natureza, então algo, isto é, Deus no momento da criação, não só distribuiu os corpúsculos de modo a que os movimentos individuais fossem compatíveis no plenum de que fazem parte, como deu o impulso inicial que 192 Conferir p. 250 (Parte III, Parágrafo 47) (p.111). 214 fez o mundo físico mover-se. Deus é o criador da matéria e a primeira causa do movimento193. Outro Descartes problema decorre com dos o conceito corpos serem de movimento concebidos como de o simples agregado de corpúsculos individuais. Isto é, os corpúsculos que compõem um corpo não estão ligados entre si194. Nada os une pois se alguma coisa houvesse teria ser substância extensa e, como tal, corpuscular. Então, por um lado, o movimento do corpo é a coincidência do movimento, digamos, empático, das suas partes. Por outro lado, um corpo é consistente na medida que as suas partes constituintes estão em relativo repouso umas com outras. Porém, como assinala Edward Slowik195,não havendo nada que force os constituintes dos corpos a estarem unidos, como explicar que uma colisão não leve à desintegração de um corpo? 193 Conferir Idem, p. 182 (Parte II, Parágrafo 36) (p.75). 194 Conferir Idem, p. 206 (Parte II, Parágrafo 55) (p.85). 195 Conferir Slowik, Edward (2009), “Descartes’ Physics” in Standford Encyclopedia of Philosophy, (http://plato.standford.edu/archives/fall2009/entries/descartesphysics), p. 11. 215 3.1.2. Conclusão O conceito Descartes, de como um objecto físico, produto do seu ou corpo, método surge de em dúvida metódica. Duvidemos de tudo que julgamos saber sobre os corpos, como que estes têm cor, peso, dureza, etc, até que cheguemos ao único atributo que não podemos negar ao corpos sob pena de não os podermos conceber. Esse atributo é a extensão. Assim, conclui Descartes, que a única coisa que não podemos duvidar sobre os corpos é que estes são coisa extensa. Ou dito de outro modo, os corpos têm como natureza ou propriedade essencial, a extensão. Concebendo os objectos físicos apenas como coisa extensa, Descartes permite que estes sejam representados fielmente como objectos geométricos. Assim, pode-se edificar uma ciência dos corpos, uma Física escrita em linguagem matemática, liberta das amarras da subjectividade inerente à atribuição aos corpos daquilo que é da sensação, isto é, do pensamento. Concebendo os objectos físicos como coisa extensa e apenas como coisa extensa, todos os fenómenos físicos e suas leis poderiam ser deduzidos do mesmo modo e com a mesma segurança como se deduzem os teoremas da geometria a partir dos seus postulados. Isto é, 216 fazendo apenas uso recto da razão. A Física seria uma pura teoria da razão. Porém, o universo físico em Descartes, concebido apenas como uma espécie de tangram, não encontra em si, na sua natureza, nenhuma razão para existir movimento. Tudo do mundo físico, em Descartes, poderia ser estático. É preciso então assumir que Deus para além de criar os corpos deulhes movimento. As três leis de movimento que Descartes deduz, e que essencialmente, serviram leis da de inspiração tendência a da Newton, conservação são, do movimento, isto é, são, essencialmente, leis de inércia. Contudo, como aqui se pretendeu cartesiana de objecto consistente (ou mesmo físico compatível) mostrar, torna-se com a a concepção dificilmente atribuição aos corpos do movimento como algo que lhes é próprio. E, por outro lado, através de Descartes mostra-se a inconsistência de uma Mecânica fundada num conceito de corpo como coisa extensa. 217 3.2. O conceito de objecto físico em Newton. Como é sabido, Mathematica, ou constitui tanto o como Philosophiae é usualmente a magnus opus Naturalis tratado, Principia Principia, de Newton, como o livro fundador da Física tal como hoje ainda a reconhecemos. Publicada quatro décadas depois Filosofia” de Descartes, os dos “Princípios Principia de tomam-lhe, possivelmente, a sua inspiração tanto no título, como na concepção mecanicista e matemática da realidade física. Pois, tanto numa obra, como na outra, a Terra, o Mundo em geral, são descritos, de certo modo, como fossem “apenas uma máquina onde só há que considerar as figuras e os movimentos das respectivas partículas”196. Os quatro Principia partes “Movimento dos Mundo” (Livro podem principais: ser divididos, “Definições Corpos” (Livros III) e o e a meu em Axiomática”, I e II), o “Escólio ver, Geral”. o “Sistema do A parte que interessa aqui focar é a primeira, pois é onde se encontra 196 Conferir Descartes, René (1644), “Les Principes de la Philosophie” in Oeuvres Philosophiques de Descartes, Tome III, Paris: Garnier Frères (1973), p. 503 (Parte IV, Parágrafo 188) (tradução minha a partir da tradução para português de João Gama, “Princípios de Filosofia”) Lisboa: Edições 70 (2006)), p.265. Não o será assim estritamente em Newton, pois, como se verá, a figura corresponde à delimitação espacial da matéria que constitui um corpo. Portanto, claramente, tanto em Newton como Descartes, o mundo físico é como uma máquina. Contudo, no caso do físico inglês, é uma máquina onde há considerar, para além da figura e movimento, a quantidade de matéria. 218 exposta a ontologia sobre o mundo físico (ou o conjunto de assumpções ontológicas) de Newton. Uma ontologia que é constituída por três elementos fundamentais: Corpo, Espaço e Tempo. 3.2.1. Corpo O início Principia é da primeira composta por das partes oito referidas definições, cada dos uma acompanhada por um comentário. Estas definições constituem os pilares da Física Newtoniana, numa estrutura claramente inspirada nos Elementos de Euclides. Isto é, numa estrutura axiomática-dedutiva. E dado que o tópico de estudo da Filosofia Natural, aquela em que Newton quer estabelecer os princípios matemáticos, são os objectos físicos, então não será surpreendente que a primeira dessas definições (Definição I) se refira, justamente, aos corpos. No comentário à Definição I, Newton afirma que por “corpo” ou entendemos “massa” por deveremos “quantidade entender de o matéria”. mesmo que Logicamente entendido estabelece-se aqui um mero jogo de equivalências entre estes três termos. O que em pouco esclarece sobre exactamente o que é um “corpo” ou “massa”. Contudo, percebe-se logo aqui que para Newton, um corpo é uma certa 219 quantidade. Um compósito de uma quantidade de matéria. Mas o que é “quantidade de matéria”? Pois, é justamente sobre esta última que Newton dedica a Definição I. Nesta, Newton afirma entender por “quantidade de matéria” simplesmente o produto da densidade pelo volume. Trata-se, numa primeira leitura, de assinalaram, uma definição entre outros, Insatisfatória pois Newton insatisfatória, Mach197 ao e James definir tal como Cushing198. “quantidade de matéria” em função da densidade apenas nos conduz a uma questão: então, o que é “densidade”? Questão que nos Principia fica no vazio, pois Newton nunca lhe dá resposta. Assim, a “quantidade insatisfação de matéria” relativamente encontra à aqui definição parte da de sua justificação, pois se esta nos conduz à questão sobre a “densidade” e esta fica por responder, então ficamos sem saber o que isso da “quantidade de matéria”. Pior, se por “densidade” se entender, como é usual em Física, o quociente entre a massa e o volume de um corpo, então a Definição I é circular. Se para fugir desta circularidade devemos entender o termo “densidade” com outro sentido, Newton nunca o indica expressamente. 197 Conferir Mach, Ernst (1901), Die Mechanik in ihrer Entwickelung historisch-kritisch dargesiellt (trad. ingle. de Thomas J. McCormack, “The Science of Mechanics: a Critical and Historical Account of its Development “) La Salle: Open Court Publishing Co. (1960), p.194) 198 Conferir Cushing, James T. (1998), Philosophical Physics, Cambridge: Cambridge University Press, p. 98. Concepts in 220 Porém, entender julgo tanto a que sendo razão justos porque este com não Newton nos podemos dá outra indicação sobre o que é densidade e constatar que a sua definição de quantidade de matéria não é nem circular, nem vazia. Ao afirmar que por “quantidade de matéria” entende o produto entre a densidade e o volume, Newton evoca, para a compreensão da definição de “quantidade de matéria”, por um lado, um senso comum sobre o que é o “volume” e, por outro lado, remete para uma certa experiência comum da densidade. Experiência, por exemplo, de um tão típico nevoeiro inglês, onde quanto mais partículas de água houver suspensas no ar, mais denso é. Experiência de uma cidade, que quanto mais habitantes tem dentro do seu espaço, maior será a sua densidade populacional. Experiência, portanto, de que uma coisa mais densa é aquela que tem maior quantidade de elementos num determinado volume. Assim, ao definir corpo ou quantidade de matéria através da densidade, Newton evita a circularidade pois no fundo faz simplesmente apelo à experiência comum do mundo. Em particular, à experiência da densidade. Mas igualmente importante, esta definição de corpo remete, implicitamente, para a existência de unidade de matéria. Pois se um corpo (ou “quantidade de matéria”) é definido através da densidade, então essa definição toma como implícito um conjunto de elementos que preenchem esse 221 volume. Portanto, a “densidade” deve ser aqui entendida, como afirma Cohen como a “medida do grau de concentração de um número de partículas fundamentais que compõem toda a matéria”199. Deste modo, a matéria ou um corpo material pode ser definido como o composto da adição de um conjunto de elementos materiais discretos ou partículas materiais. Ou seja, na primeira definição dos Principia Newton, por um lado, faz apelo à nossa experiência comum do mundo físico, mas por outro lado, introduz implicitamente uma concepção atomista desse mundo. Portanto, logo na primeira definição ficam bem marcados dois traços fundamentais do pensamento de Newton: o empirismo e o atomismo. Da Newton Definição concebe o I dos corpo Principia como o resulta, agregado de então, uma que certa quantidade de elementos últimos da matéria, isto é: átomos. E, como volume, tal, maior quanto a mais quantidade átomos de houver, matéria. para o Portanto, mesmo para Newton, um corpo é isto mesmo: uma certa quantidade de átomos que ocupam um dado volume. E ao definir corpo como a adição de partes, isto é, de partículas materiais, Newton estabelece estas entidades como referentes de tudo quanto vai tratar nos Principia. Ou seja, a meu ver, os Principia, e por consequência a Mecânica Clássica, constitui-se, na 199 Cohen, Bernard (2002), “Newton Concepts of force and mass” in The Cambridge Companion to Newton, Cohen, Bernard e Smith, George E. (ed.), Cambridge: Cambridge University Press, p. 59. 222 sua essência, como a Física das partículas materiais. Ou mais especificamente, dado que estas partículas se tratam de átomos materiais, poderia até ser dito que a Física de Newton é, na sua essência ontológica, uma Física Atómica. Que, no entanto, se concretiza como Física dos corpos, isto é, dos compostos das partículas materiais, dado que, por um lado, é a esses que temos acesso empírico e, por outro lado, por que, para Newton, a natureza e a qualidade dos corpos é igual à natureza e à qualidade das partículas materiais. E, portanto, as leis físicas dos átomos materiais serão as mesmas que para os corpos compostos, em particular, dos macroscópicos. Ainda no comentário à Definição I, Newton assinala que a quantidade de matéria pode ser sempre determinada através de experiências com pêndulos, pois é proporcional ao peso. A essência desta relação entre peso e massa será esclarecida indicação é posteriormente relevante pois nos Principia. significa o Esta pequena afastamento de Newton relativamente à concepção Galilaica de corpo, onde neste o corpo é concebido como o que tem peso. Como Newton irá mostrar nos Principia, “peso” decorre da acção de uma força sobre um corpo material, mas não é parte da essência destes corpos. Se só existisse uma partícula material no Universo, não haveria “peso”, apenas matéria. 223 Por fim, ao assinalar que cada corpo é, na sua natureza, o agregado aditivo de um conjunto discreto de unidades últimas de matéria, os átomos, Newton colocando-se em clara oposição a Descartes. Pois, ao contrário deste, Newton rejeita que a natureza dos corpos seja a sua extensão e, por conseguinte, que o espaço seja um plenum material. Ao ter o atomismo como fundamento ontológico, a Mecânica de Newton, a Mecânica Clássica, está, de certo forma, nas antípodas da Mecânica de Descartes. Assim, embora a Definição I dos Principia nos pareça, num primeiro olhar, circular e insatisfatória, creio que um olhar mais atento percebe nela o núcleo da caracterização ontológica dos objectos físicos e desta a anunciação de tudo o resto que se seguirá nos Principia. 3.2.2. Quantidade de Movimento A segunda definição (Definição II) que nos surge nos Principia refere-se à “quantidade de movimento”. Esta é estabelecida como o produto do valor da velocidade pelo valor da quantidade de matéria. Aqui, como em diversas ocasiões ao longo dos Principia, tal como salienta Bernard Cohen, por “movimento” deve-se entender o mesmo que 224 “quantidade de movimento”, algo que, por sua vez, é actualmente designado por “momentum”200. Ou seja, e esse é aspecto fundamental, Newton estabelece que a linguagem da Mecânica se faz quantitativamente e não qualitativamente. Isto é, ao transformar o termo “movimento” em “momentum”, Newton faz-nos mover de uma descrição qualitativa sobre o mundo físico, onde dizemos que as coisas se movem mais ou menos, para uma linguagem, que doravante será a da Física, em que a descrição do mundo se faz apenas pela quantidade. No caso do movimento, pela sua quantidade ou seja, o momentum. Assim, Newton ao estabelecer como fundamental uma quantidade na caracterização do movimento, faz pressupor que os corpos possuem valores bem determinados do movimento. E, deste modo, completa o movimento iniciado na primeira definição afastando-se de uma concepção geométrica do movimento, ou seja, da concepção de Descartes. Movimento em Newton não é um modo de ser extenso. Movimento é, como a seguir se verá, uma quantidade de progresso no espaço e no tempo de um corpo. Por sua vez, no comentário que acompanha a Definição II, Newton acrescenta que “o movimento do todo é a soma dos 200 Cohen, I. Bernard (1999), “A guide to Newton’s Principia” in Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation, Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 96 225 movimentos da totalidade das partes”201. Deste comentário de Newton decorre, então, que a soma do momentum de todas as quantidades de matéria é igual ao momentum da quantidade total de matéria. Logo, se a quantidade total de matéria for invariável, total. Ou seja, invariável na será sequência da igualmente concepção o momentum atomista da Definição I, Newton estabelece que o momentum de um todo é equivalente à adição linear dos momentum das suas partes, ou mais precisamente, das partículas materiais que constituem o corpo. Portanto, por um lado, se o todo é igual à soma das partes, no caso, no que respeita à quantidade de matéria e, por outro lado, se cada uma das partes que constitui esse todo, isto é, o corpo, pode possuir um momentum distinto, então, só se poderá falar em momentum de um corpo se o reduzirmos a uma unidade mínima, isto é, àquilo a que designei, no capítulo anterior, por partículas puras dos corpos. Estabelece-se aqui, uma vez mais, um diferença radical com Descartes. Pois ao conceberse um corpo como aquilo que é extenso, seria um absurdo aceitar que, mesmo formalmente, esse corpo pudesse ser reduzido a algo pontual. 201 “The motion of the whole is the sum of the motions of all the parts” Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”) [Principia - ed. Cohen], Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404 226 Apesar destas clivagens com Descartes, tanto neste último como em Newton, o movimento não é parte da natureza dos corpos. Newtoniano, Tudo poderia estar em repouso no pois os objectos físicos são material. Porém, os objectos físicos movem-se. linguagem estabelecida por Newton, universo apenas momentum. quanta Têm, na Assim, há agora que explicar o movimento. O que em Newton é feito através do conceito de força. Não será, então, surpreendente que Newton depois de ter definido “momentum” e “corpo”, necessite agora de definir “força”. Logo, as seis definições restantes, do grupo de oito que constituem a primeira parte dos Principia referem-se à caracterização de diferentes tipos de forças. Estas podem ser categorizadas em três tipos: a inerente, a aplicada e a centrifuga. 3.2.3. Os três tipos de Força A primeira tipo de força (Definição III) reporta-se à “força inerente”202 (vis incita) da matéria. Esta é definida 202 Usualmente o termo “vis insita” é traduzido por “inate force”. Este é o caso, por exemplo, da tradução em língua inglesa realizada por Andrew Motte, que foi publicada em 1729. Este não é, contudo, o caso da tradução, também para língua inglesa, de Bernard Cohen, publicada em 1999, e que aqui serve de referência. Nesta última, o termo “vis insita” é traduzido por “inherent force” (cf. Newton, Isaac (1726), 227 como “[…] um poder de resistência pelo qual cada corpo, por quanto de si depender, preservar o seu estado de repouso ou de movimento rectilíneo e uniforme”203. Esta capacidade, que é “sempre proporcional à quantidade de matéria”204, ou seja, à massa, é designada, por Newton, por “força de inércia”205. Quanto maior a quantidade de matéria, maior a tendência de um corpo manter o seu estado de repouso ou de movimento. Assim, a força de inércia é uma força intrínseca, própria, inerente aos corpos e que nestes se encontra latente enquanto uma outra força não lhes for aplicada. A força de inércia é, tal como assinala o próprio Newton no seu comentário à Definição III, responsável tanto por um corpo ser impelido quando não lhe é aplicada qualquer força, como é responsável pela resistência que este oferece a uma força que lhe seja aplicada. É devido à força da inércia que corpo algum altera, por si só, o seu estado de movimento (rectilíneo ou não) ou de repouso. Não é, no entanto, justificado por Newton por que razão os corpos mantém o seu Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p. 404) 203 “[…] a power of resisting, by which every body, as much as in it lies, endeavors to persevere in its present stale, whether it be of rest, or of moving uniformly forward in a right line.”, Idem, p.404 204 “This force is ever proportional to the body”, Idem, ibidem. 205 No comentário a esta definição, Newton escreve: “Because of inercia of matter, every body is only with difficult put out of state either of resting or of moving. Consequently, inherent force also be called by the very significant name of force of inercia” Idem, p. 404. the its may (cf 228 estado de movimento na ausência de uma acção exterior. Isto é, não é apresentada nenhuma razão que explique porque é que todos os corpos possuem inércia, nem que explique em que se funda a existência dessa força intrínseca nos corpos, cuja natureza é a materialidade. Numa palavra, em Newton fica por explicar a relação conceptual entre matéria e inércia. Por seu turno, a força que, ao actuar sobre um corpo, é responsável por modificar o estado de repouso ou de movimento rectilíneo e uniforme deste, é chamada “força aplicada” (vis impressa) e é assim definida na Definição IV dos Principia. Contrariamente ao caso da força de inércia, a força aplicada não permanece nos corpos se a acção termina. Ela tem um carácter efémero. A força aplicada não é algo próprio dos corpos, mas é uma acção exterior exercida sobre estes, que “são de diversas fontes, como a percussão, a pressão e a força centrípeta”206. A força Definição V. centrípeta é, Por centrípeta força precisamente, Newton o assunto entende: da “[a força] pela qual os corpos são puxados ou impelidos, ou de 206 “Impressed forces are of different origins as from percussion, from pressure, from centripetal force”, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999), p.405. 229 qualquer outro modo tendem, em direcção a um ponto como centro”207. As três definições finais (Definições VI, VII e VIII) dizem respeito motriz da às força quantidades centrípeta. absoluta, É notório acelerativa que, embora e no comentário à Definição IV a força centrípeta surja apenas como uma das fontes de força aplicada, em igualdade com a pressão ou a percussão, tal como assinala Max Jammer, “parece que Newton olhava para a força centrípeta como uma força de maior importância que todas as outras”208. Descobre-se, no entanto, a razão desta atenção particular quando se repara na abertura ao comentário à Definição V, onde Newton declara que “[Uma força] deste tipo é a gravidade”209. Tal como esta passagem, boa parte do conteúdo dos comentários dedicados à explicite, este às Definições gravidade. conjunto V, Assim, de VI, VII embora definições e VIII, Newton conotados são não com o a força centrípeta referem-se, fundamentalmente, à gravidade. São caracterizações da gravidade. E terá sido este o motivo pelo qual Newton deu, nos Principia, destaque acrescido à 207 “A centripetal force is that by which bodies are drawn or impelled, or any way tend, towards a point as to a centre.” Idem, ibidem. 208 Jammer, Max (1957), Concepts of Force, New York: Dover (1999), p. 122 209 “Of this sort is gravity“, Newton, Isaac (1726), Philosophiae Naturalis Principia Mathematica (trad. ingle. de Cohen, I. Bernard e Whitman, Anne, “The Principia. Mathematical Principles of Natural Philosophy, A New Translation”), Berkeley and Los Angeles: University of California Press (1999) 230 força centrípeta, em detrimento de outros tipos de força. Pois, um dos temas centrais dos Principia é a relação entre o peso e a massa. Ou melhor, a distinção entre peso e massa. Distinção que lhe permite fugir à subjectividade inerente à concepção de corpo como aquilo que é pesado, como faz Galileu. Isto porque, enquanto o peso varia com a altitude e como tal não poderá ser exclusivamente atribuído ao corpo, a quantidade de matéria é invariável. A quantidade de matéria de um determinado corpo é a que é em função apenas do corpo considerado. Por outro lado, no comentário a esta Definição, Newton afirma existir uma relação de proporcionalidade entre a massa de um corpo e o seu peso. Proporcionalidade esta que é, alegadamente, provada através de experiências descritas na proposição 6 do Livro III dos Principia. Ou seja, para a qual é dada uma prova empírica. Mas qual é a essência desta relação? O que distingue “peso” de “massa”? No comentário à Definição V, Newton gravítica) é acrescenta na uma afirma força que a centrípeta. introdução à secção gravidade Em 11 (ou particular, dos força como Principia, a gravidade é a força centrípeta que resulta da atracção mútua entre gravidade é, dois para corpos, Newton, quaisquer tanto a que estes força pela sejam. A qual os 231 objectos celestes são mantidos na sua orbita210, como é a força pela qual os corpos tendem para o centro da terra211. A gravidade é, portanto, uma força universal a todos corpos, cuja quantidade, a quantidade de atracção entre corpos, designada por “peso”212. O peso é, como tal, é uma relação entre massas, entre corpos, mas não parte da sua essência. Dois corpos, independentemente da distância a que se encontram, atraem-se de forma gravítica, ou dito por outras palavras, causam peso um no outro. Assim, a massa está associada à gravidade e, neste sentido, é designada por “massa gravítica”. Contudo, na Definição III, Newton já havia relacionado a “massa” com uma força - a força de inércia. O termo “massa” aparece, deste modo, associada a duas forças distintas: “massa gravítica” e “massa inercial”. Respectivamente, a força com que os corpos se atraem e a força com que um corpo tende a manter o seu estado de movimento. Mas se na massa, ou quantidade de matéria, residem, de algum modo, as forças de inércia e gravítica, Newton clarifica de que atractivo sobre manutenção do não modo outras seu o a esclarece. “massa” massas, estado de Ou tem como seja, tanto ele nunca esse poder tem esse poder movimento, nem, por 210 Conferir Idem, p. 806. 211 Conferir Idem, p. 405. 212 Conferir Idem, p. 407, (comentário à Definição VIII). de fim, 232 esclarece qual a relação entre esses dois “poderes” da massa. Algo que será o assunto principal da relatividade de Einstein. Em segundo lugar, Newton não esclarece, precisamente, o que entende por “força”. Procura, apenas associar certos efeitos sensíveis relacionados com o movimento dos corpos à existência de uma grandeza que designa por “força”. A força é simplesmente identificada ora como causa dos diferentes estados de movimento movimento não uniforme), (repouso, ora movimento como razão da uniforme, coesão da matéria, onde ao contrário de Descartes, os constituintes dos corpos possuem uma propriedade – a gravidade – que os força a manterem-se próximos. Poderíamos ler no segundo axioma, ou segunda lei do movimento, uma definição formal de força. Nesta bem conhecida lei, Newton relaciona a força aplicada com a variação temporal do momentum. Isto é, Newton apresenta a relação entre “força” e “momentum”, identificando a “força” como a variação, ao longo do tempo, do momentum de um corpo ou de um conjunto de corpos. Deste modo, desta lei do movimento(ou axioma, como designa Newton), poderemos dizer que “força” em Newton é apenas a medida da variação da quantidade de movimento de um corpo. E, em verdade, do ponto vista formal, por meio deste axioma, poder-se-ia 233 constituir toda a Física apresentada por Newton nos Principia dispensando o conceito de força, substituindo-o pelo conceito de momentum. O que significa, como já o havíamos referido no capítulo anterior, que em Mecânica o estado de um sistema é completamente caracterizado através da sua posição e do seu momentum. Contudo, se a natureza dos corpos é apenas o de serem uma certa quantidade de matéria, então não resulta do conceito de corpo o facto deles se moverem. 3.2.4. Os conceitos de “Espaço”, “tempo”, “lugar” e “movimento”: o escólio da primeira parte dos Principia Ao corpo de definições segue-se um escólio dedicado aos conceitos de “espaço”, “tempo”, “lugar” e “movimento”. Curiosamente, Newton não se propõe definir estes conceitos, pois, segundo afirma estes “já [são] do conhecimento de todos”213. Ou seja, dado que entende que estes conceitos são do conhecimento de todos, Newton remete, por um lado, para um certo senso comum e, por outro lado, indica que não vai introduzir novos elementos terminológicos. No fundo, esta é a grande diferença entre a parte das definições e o escólio 213 Conferir Idem, p. 408. 234 que lhes segue: enquanto na primeira parte Newton introduz um conjunto de termos novos, como “quantidade de matéria”, “momentum” e “força gravítica”, na segunda parte, vai fazer alusão a termos que são da linguagem natural, mas à qual vai dar o significado que é mais conveniente aos Principia e que, doravante, constituirá a linguagem da Física. Assim, Newton anuncia que o propósito deste escólio não é definir mas esclarecer as noções de “Espaço”, “Tempo”, “Lugar” e “Movimento”, concebidas pois apenas “noto em que relação estas aos são objectos popularmente da percepção sensível. E daí resultarem de certos preconceitos”214. No sentido de eliminar estes “preconceitos”, Newton considera “conveniente distinguir estas quantidades em absoluto e relativo, verdadeiro e aparente, matemático e comum”215. 3.2.5. O conceito de tempo A primeira destas “quantidades” é o tempo. A cerca deste, Newton afirma: 214 “I must observe, that the vulgar conceive those quantities under no other notions but from the relation they bear to sensible objects. And thence arise certain prejudices”, Idem, ibidem 215 “it will be convenient to distinguish them into absolute and relative, true and apparent, mathematical and common.” Idem, ibidem. 235 “Tempo absoluto, verdadeiro e matemático, por si mesmo e da sua própria natureza, sem referência com qualquer coisa externa, flui uniformemente e por outro nome é chamado de duração. Tempo relativo, aparente e comum é alguma medida sensível e externa (precisa ou imprecisa) que é obtida através do movimento; tal medida – por exemplo, uma hora, um dia, um mês, um ano – é usada ao invés do tempo verdadeiro”216. comummente Na primeira frase desta passagem encontramos o conceito de “tempo” caracterizado como uma substância, no sentido que é algo que existe independente de qualquer outra coisa, que existe “por si mesmo e da sua própria natureza, sem referência com qualquer coisa externa”. Encontramos aqui o segundo elemento da ontologia de Newton, depois dos corpos materiais, o tempo. O tempo a que Newton designa por “tempo absoluto” é o tempo verdadeiro, é o tempo que existe enquanto substância, que existe fora do domínio das existências das coisas materiais, isto é, dos corpos. seja, Tempo cuja que sua Newton natureza caracteriza – do tempo de – matemático. é a Ou passagem, sucessiva, perfeitamente ritmada, de instante a instante. 216 “Absolute, true and mathematical time, in and of itself and of its own nature, without reference to anything external, flows uniformly and by another name is called duration. Relative, apparent, and common time is any sensible and external measure (precise or imprecise) of duration by means of motion; such measure – for example, an hour, a day, a moth, a year – is commonly used instead of true time.”, Idem, p. 408. 236 Por este ser o tempo verdadeiro, aquele que é por si mesmo, poderemos denominá-lo ontológico. Em contraponto, existe um outro tempo, relacionado com este, mas que é apenas uma sua sombra, é aquele que percebemos, que medimos, que é da nossa experiência comum. O tempo a que Newton denomina por “tempo relativo”. Este tempo relativo é, para Newton um tempo que é medido através Quando falamos da em periodicidade anos, de meses, um certo dias, movimento. horas, minutos, segundos, etc, falamos em unidades de medida de um certo movimento. Um ano é a medida de tempo do movimento de translação da Terra em redor do Sol. Um mês é a medida de tempo do movimento de translação da Lua em redor da Terra. Um dia é a medida do tempo da rotação da Terra. Uma hora, um minuto ou um segundo, é a medida do tempo do movimento do mecanismo de um relógio. Contudo, nenhum destes movimentos é uniforme. Os dias não são todos iguais, como não são iguais todos os minutos, todos os meses, todos os anos ou tomados todos neste os segundos. sentido, não Dois são intervalos de necessariamente tempo, iguais. Assim, não é possível determinar, de forma objectiva, nem a duração de, por exemplo, a velocidade de uma esfera a rolar num plano inclinado, nem o tempo em que cada corpo se encontra. E, em particular, através de um mecanismo de 237 medição do tempo não é possível afirmar que dois corpos compartilham o mesmo tempo ou que se encontram no mesmo tempo, isto é, que são simultâneos. Porém, assinala Newton: “Tempo relativo, naturais absoluto, pela são de em equação fato astronomia, do tempo desiguais, é distinguido aparente. apesar de Porque serem do os tempo dias comummente considerados como iguais e usados como uma medida do tempo. Os astrónomos corrigem essa desigualdade, para que possam medir os movimentos celestes por um tempo mais verdadeiro. É possível que não exista um como movimento uniforme de onde o tempo possa ter uma medida exacta. Todos os movimentos podem ser acelerados e retardados, mas o fluxo do tempo absoluto não é passível de mudanças. A duração ou perseverança da existência das coisas é a mesma, sejam os movimentos rápidos ou lentos ou nulos; portanto, a duração é justamente distinguida das suas medidas sensíveis […]”217 217 “In astronomy, absolute time is distinguished from relative time by the equation of common time. For natural days, which are commonly considered equal for the purpose of measuring time, are actually unequal. Astronomers correct this inequality in order to measure celestial motion on the basis of truer time. It is possible that there is no uniform motion by which time may have a exact measure. All motion can be accelerated and retarded, but the flow of absolute time cannot be changed. The duration or perseverance of the existence of things is the same, whether their motions are rapid or slow or null; accordingly, duration is rightly distinguished from its sensible measures […]” Idem, p. 410. 238 Se todos movimento os tempos escolhido para medidos servir são de relativos referência, a o um tempo passa e o homem envelhece qualquer que seja o relógio que o acompanhe. O tempo, em verdade, para Newton, não é referente a movimento algum. Como afirma o próprio, “a duração ou a perseverança da existência das coisas é a mesma, quer os seus movimentos sejam rápidos ou lentos ou nulos”. O tempo verdadeiro, absoluto, matemático, flui por si mesmo, de forma uniforme, constante e imperturbável. Apenas referente a si mesmo, a sua medida é absoluta e objectiva. O “fluxo do tempo verdadeiro não é passível de mudanças”. Logo, a verdadeira duração dos eventos é dada pelo lapso de tempo absoluto e não pelos procedimentos de medição. Dado que flui de forma uniforme, as partes do tempo absoluto são iguais e ordenadas de maneira imutável, formando uma série. Por sua vez, os eventos são ordenados objectivamente no tempo em virtude dos lugares no tempo absoluto em que eles ocorrem. O tempo ao que os conceitos da Física, como momentum ou força, são relativos é o tempo verdadeiro. O tempo da prática da Física é o tempo relativo. E por isso, é ao tempo verdadeiro que se referem as leis Físicas. Portanto, a simultaneidade, a duração e, por consequência, o movimento, existem verdadeiramente para um tempo absoluto. Substância que, pela sua própria natureza, 239 marca permanentemente os compassos, sem hesitações ou enganos, de todas as coisas. O tempo verdadeiro não é algo dos corpos, da mente ou eventualmente do espaço (como será, de certa forma, para Einstein). É uma coisa em si mesma, à qual temos acesso por via da comparação de um movimento que se repete. Numa espécie de sombra do tempo verdadeiro. E, logicamente, é para este tempo – o verdadeiro - que são válidas as leis do movimento, que é válida a Física de Newton. 3.2.6. O conceito de espaço Sobre o espaço, escreve Newton: “Espaço absoluto, na sua própria natureza, sem referência a nada que lhe seja exterior, permanece sempre homogéneo e inamovível”218. Da mesma forma que relativamente ao tempo, o espaço é caracterizado qualquer como coisa uma “sem coisa que referência a existe por si, como nada que lhe seja 218 “Absolute space, in its own nature, without regard to anything external, remains always similar and immovable.” Idem, pp. 408-9. 240 exterior”. Ou seja, o espaço aparece, em Newton, igualmente como uma substância. Completando-se assim a trindade das substâncias da Física de Newton (e, de certo modo, da Física desde Newton): partículas materiais, tempo e espaço. Se o espaço absoluto é homogéneo, imutável e vistas, ou indiferenciado, então: “[…] distinguidas partes umas do das espaço outras não podem através dos ser nossos sentidos, portanto em seu proveito usamos as suas medidas sensíveis. Como tal, definimos todos lugares com base nas posições e distâncias das coisas a um corpo qualquer considerado como imóvel, e então, com respeito a tais lugares, estimamos todos os movimentos, considerando os corpos como que transferidos de um daqueles lugares para outros. E assim, em vez de espaço e movimento absolutos, usamos os relativos […]”219. A nossa relação imediata com o espaço tem como referente o nosso próprio corpo. Tendo-nos como referência, determinamos os lugares, os movimentos e as distâncias, em 219 “[…] these parts of space cannot be seen and cannot be distinguished from one another by our senses, we use sensible measures in their stead. For we define all places on the basis of the positions and distances of things form some body that we regard as immovable, and then we reckon all motions with respect to these places, insofar as we conceive of bodies as being changed in position with respect to them. Thus, instead of absolute places and motions we use relative ones […]” Idem, p. 410. 241 qualquer medida sensível (pés, passos, polegadas, etc), a que se encontram outros corpos. Assim, o nosso corpo define, segundo Newton, um espaço relativo. Poderíamos, no entanto, tomar como referência outro corpo qualquer e cada corpo define um espaço relativo distinto. Estes espaços, contudo, são móveis e cada uma dessas medidas é relativa ao corpo que é tomada como origem. Como tal, qualquer medida espacial referida a estes espaços é temporária e subjectiva. Ou seja, através da escolha de um referencial arbitrário, não é possível indicar objectivamente a distância entre dois corpos ou o estado de movimento de um corpo. Para um determinado referencial um corpo poderá estar em movimento acelerado e para outro estar em repouso. Regressamos à questão da objectividade do movimento que já havíamos encontrado regressamos Descartes. às Em em Descartes. concepções resposta a E, relativistas estes, no em de que particular, Galileu e concerne à arbitrariedade da escolha do referencial espacial, Newton afirma: “[…] em dissertações filosóficas devemo-nos abstrair dos nossos sentidos e considerar as coisas em si mesmas, distintas daquelas que são somente as nossas medições sensíveis. Pois é 242 possível que não exista um corpo verdadeiramente em repouso ao qual todos os lugares e movimentos possam ser referidos”220. Ou seja, os corpos, na caracterização objectiva do seu movimento, só podem referir-se a um espaço imóvel e imutável no qual reside o sistema de eixos absoluto. Porém, tal espaço está para além da nossa percepção. Não porque não exista, segundo Newton, tal espaço, mas porque estamos sempre restringidos espaço e, como a tal, uma região do que muito dele limitada temos acesso desse não encontramos “um corpo verdadeiramente em repouso ao qual todos os lugares e movimentos possam ser referidos”. Podemos no entanto, através de um exercício de abstracção, pensar o espaço relativo que nos tem como referente como uma parcela de um espaço absoluto, um espaço que podemos construir racionalmente como a adição de todos espaços relativos possíveis. O espaço, enquanto coisa em si mesma considerada, o espaço verdadeiro não é pois o que medimos ou que temos noção a partir da nossa experiência do mundo físico, mas é o todo do qual todos os relativos são parte. É a esse espaço verdadeiro, absoluto e – acrescenta Newton 220 “[…] but in philosophical disquisitions, we ought to abstract from our senses, and consider things themselves, distinct from what are only sensible measures of them. For it may be that there is no body really at rest, to which the places and motions of others may be referred” Idem, p.411. 243 – matemático, que são referentes e válidas as leis do movimento dos corpos. 3.2.7. O conceito de movimento No final do Escólio, Newton distingue entre movimento absoluto e relativo. Afirma Newton: “Movimento absoluto é a translação de um corpo de um lugar absoluto para outro; e movimento relativo é a translação de um lugar relativo para outro.”221. O movimento relativo ou aparente, aquele que nos lança dúvidas se é real ou não, distingue-se do movimento verdadeiro, aquele que é de facto, apenas e só em função do referencial espacial. Isto é, os primeiros referem-se ao espaço relativo e os segundos referem-se ao espaço absoluto. Porém, em ambos os tipos de movimento, movimento é concebido, simplesmente, como a mudança de lugar de um corpo. O movimento é função do lugar e sobre este último afirma Newton: 221 “Absolute motion is the translation of a body from one absolute place into another; and relative motion, the translation from relative place into another.” Idem, p. 409. one 244 “Lugar é uma parte do espaço que ocupa um corpo e é, de acordo com o espaço, ou absoluto ou relativo. Digo, uma parte do espaço e não a situação, nem a superfície exterior do corpo. Para sólidos iguais os seus lugares são sempre iguais; mas suas superfícies, com as suas figuras diferentes, muitas vezes são desiguais.”222 Desta passagem fica claro que, em razão de existirem, para Newton, dois tipos de espaço – o relativo e absoluto – haverá dois tipos de lugares: o relativo e o absoluto. Porém, seja qual for o tipo, por “lugar” Newton entende a parte do espaço ocupada por um corpo. Ou mais precisamente, o volume do espaço que é preenchido por um corpo. Neste sentido, tal como em Descartes, um corpo tem extensão. Porém, ao contrário de Descartes, para Newton a extensão não é a essência dos corpos. Isto é, enquanto para Descartes um corpo é uma substância extensa, em Newton um corpo é uma substância material que, uma vez que está no espaço, pela própria natureza deste, recebe a propriedade de ser extenso. Portanto, em Newton, por um lado, podemos pensar um corpo como um pedaço de matéria sem ainda lhe 222 “Place is a part of space which a body takes up, and is according to the space, either absolute or relative. I say, a part of space ; not the situation, nor the external surface of the body. For the places of equal solids are always equal; but their superficies, by reason of their dissimilar figures, are often unequal.” Idem, ibidem. 245 atribuir extensão alguma. Por outro lado, podemos ter do espaço como pura extensão, em nada sendo corpóreo. Isto é, podemos ter espaço sem matéria, podemos conceber, em Newton, um espaço vazio. Deste modo, se Newton concebe o movimento como mudança de lugar, conceito que, justamente, Descartes havia considerado de senso comum e impróprio, fá-lo resistindo, por um lado, a ser derrubada pela crítica de Descartes a essa concepção de movimento e, por outro lado, evitando cair nas dificuldades sem fim que o conceito de corpo de Descartes traz consigo. Resiste à crítica de Descartes ao conceito de movimento como mudança de lugar, pois se este objecta que tal concepção nos faz enredar no relativismo, pois não sabemos se foi o corpo que se moveu ou se foi um outro que utilizámos, arbitrariamente, como referencial, ao conceber o espaço e não os corpos como substância extensa, onde a relação das suas partes é sempre idêntica, Newton assegura que os movimentos dos corpos se referem a algo exterior aos corpos que é extenso e imutável, ou seja, que os movimentos referencial de todos absoluto. É os para corpos este se que referiram o a movimento um é concebido como mudança, absoluta e verdadeira, de lugar de um corpo. 246 Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, como já aqui foi visto, Newton é levado a ter o espaço como uma substância puramente extensa. O que em Descartes corresponde ao conceito de corpo e, por consequência, levao a considerar que toda a extensão é corpórea, isto é, que o espaço é um plenum. Porém, em Newton, dado que os corpos são substância material, o espaço enquanto coisa extensa, não é um plenum mas um vazio. Isto é, Newton concebe a existência possível de um espaço sem corpos, um espaço como substância e não como atributo, e por conseguinte, evita enredar-se pelo plenum. O espaço não é corpo, mas recipiente onde se colocam os corpos, numa relação entre substâncias como uma fosse o interior de uma garrafa vazia e o outro o líquido que irá ocupar esse espaço. Por outro lado, ao ter uma concepção atomista, em Newton, um corpo é um composto de partículas, de corpúsculos e, como tal, o movimento de um corpo é, na verdade, o movimento solidário entre as suas partes. Isto é, o movimento de um corpo é o movimento de um todo em que as suas partes se movem de forma, mais ou menos, coerente entre si. Esta solidariedade entre as partes que compõem um corpo é explicável, em Newton, pela consistência interna dos corpos, isto é, como o resultado das interacções gravíticas e das distâncias entre as partes que constituem esse corpo. 247 Por fim, à extensão do espaço que um corpo ocupa Newton denomina de “lugar”. Dado que esta extensão, em comprimento, largura e altura, é o volume do corpo, então poder-se-á afirmar que por “lugar” em Newton pode-se entender o mesmo que em Descartes se entende por “lugar interno”. Porém, dado que para Newton os corpos são compostos por partes materiais, então podemos pensar numa decomposição sucessiva de um corpo até ao limite de uma partícula material última. Que será uma partícula pura dos corpos materiais, ou seja, um corpo material pontual. Assim, estas partes últimas, estes representantes ideais dos corpos já não podemos dizer que ocupam um lugar, pois, como são pontuais, não têm extensão. Mas sendo ainda uma entidade no espaço e dado que este, além de absoluto e verdadeiro, é matemático, ou seja, preenchido plenamente de pontos, então podemos pensar nesse corpo material pontual como algo que se encontra numa dada posição do espaço. Estabelece-se assim uma distinção entre a localização e a posição. Distinção que é pertinente pois, as leis do movimento, as leis que fundam a Mecânica Clássica, são referentes a essas entidades últimas, isto é, as partículas puras dos corpos. Quero com isto dizer que se deve entender que as leis newtonianas do movimento, a Mecânica Clássica, não se referem à transição de lugares de um corpo no espaço 248 relativo, mas à a variação da posição de uma partícula pura dos corpos, naturalmente, no espaço absoluto. 3.2.8. Conclusão No comentário à sua “terceira regra do raciocínio em Filosofia”, Newton escreve: “Dado que apenas conhecemos as qualidades dos corpos através de experiências, nós podemos assumir por universal todas as que universalmente concordam com as experiências. […] Nós não sabemos a extensão dos corpos senão pelos nossos sentidos, nem que esta alcança extensão em todos tudo que os é corpos senão sensível, porque portanto, percebemos a inscrevemo-la universalmente em todos os [corpos]. Que a abundância dos corpos é dura, nós aprendemos pela experiência e como a dureza do todo resulta da dureza das partes, nós, como tal, justamente inferimos a dureza das partículas indivisíveis não apenas dos corpos que sentimos de todos os outros. Que os corpos são impenetráveis, nós recolhemos não da razão, mas da sensação. Os corpos com que concluímos a universal[…]. movimento lidamos do são tidos como impenetrabilidade A extensão, todo, a resulta como dureza, da impenetráveis a uma e daí propriedade impenetrabilidade, extensão, da dureza, o da 249 impenetrabilidade, do movimento das partes e daí concluímos que as partículas últimas de todos os corpos serão igualmente extensas, duras, impenetráveis e móveis […]. E esta é a fundação de toda Filosofia.”223 Nesta longa passagem ficam bem expostos, pela pena do próprio Newton, os elementos fundamentais do seu pensamento sobre os objectos físicos. E sem surpresa reencontramos o que designámos no capítulo anterior por pentadoxia. Segundo Newton a experiência que comummente temos do mundo físico, em que encontramos mesas, pedras, bolas de bilhar, etc, ensina-nos, pois assim será evidente, que este – o mundo físico - é constituído por os objectos físicos que têm extensão, dureza, impenetrabilidade e que são possibilidade de se moverem. O diverso dessas coisas do mundo, mesas, pedras, bolas de bilhar, etc, será o diverso 223 “For since the qualities of bodies are only known to us by experiments, we are to hold for universal all such as universally agree with experiments; […] We no other way know the extension of bodies than by our senses, nor do these reach it in all bodies, but because we perceive extension in all that are sensible, therefore, we ascribe it universally to all others also. That abundance of bodies are hard, we learn by experience, and because the hardness of the whole arises from the hardness of the parts, we, therefore, justly infer the hardness of the undivided particles not only of the bodies we feel but of all others. That all bodies are impenetrable, we gather not from reason, but from sensation. The bodies which we handle we find impenetrable, and thence, conclude impenetrability to be an universal property of all bodies whatsoever. […] The extension, hardness, impenetrability, mobility, of the whole, result from the extension, hardness, impenetrability, mobility, . . . of the parts; and thence we conclude the least particles of all bodies to be also all extended, and hard and impenetrable, and moveable […] And this is the foundation of all philosophy”, Idem 250 de formas de um mesmo que é a matéria. A matéria será, então, o que subjaz a todos corpos e, por conseguinte, será o que possui as propriedades da extensão, da dureza, da impenetrabilidade, da possibilidade de movimento. A partir desses elementos empíricos, Newton realiza duas generalizações de sentido contrário. Uma da parte para o todo. A outra do todo para a parte. O primeiro tipo de generalização sucede no caso do espaço e do tempo. Cada um de nós ocupa, com o nosso corpo, uma parte do espaço. Mas o espaço da sensação, em particular o que nos é dado pela visão e pela audição, é mais amplo que o espaço que é o ocupado pelo nosso corpo. O espaço do nosso corpo está dentro de outro espaço, o dos nossos sentidos exteriores. E este por sua vez, bem sabemos, está dentro de um outro, como uma sala dentro de um edifício. E este ainda é um espaço no interior de um outro. E assim sucessivamente, num jogo de caixas chinesas, que só terá fim se pensarmos que, no limite, todos esses espaços são interiores de um outro que é absoluto, pois nenhum espaço lhe será exterior. Esse será então o espaço verdadeiro, objectivo. Do mesmo modo, segundo Newton, a duração da nossa vida sabemo-la precedida pela duração de outras, a dos nossos pais. Durações de vida, estas últimas, cada uma delas, que 251 sabemos, por sua vez, precedidas e antecipadas por outras, a dos nossos avós e a nossa. A duração medimo-la por relógios ou outros registos de repetições de um movimento. Porém este tempo é função do movimento que escolhemos e recolhemos da experiência, segundo Newton, que será contestado por Einstein, que o tempo, o verdadeiro tempo, decorre inexorável e insensível a qualquer movimento particular. Ou seja, o tempo que temos acesso empírico é uma parte de um tempo absoluto, isto é, que não é relativo a qualquer movimento que não seja o seu próprio. Portanto, da experiência comum que os corpos estão no espaço e no tempo, portanto, da existência de espaço e tempo relativos, Newton generaliza-os chegando à ideia de um espaço e tempo absolutos que são, no entanto, na sua natureza iguais ao espaço e tempo relativos (o espaço é ainda extensão; o tempo é ainda um movimento periódico constante). A outra generalização, que é do todo para a parte, é relativa aos corpos. Cada corpo, como é extenso, é divisível em corpos mais pequenos, em corpúsculos. Porém, como são ainda corpos, então, segundo Newton, deverão possuir as mesmas propriedades do todo de que eram parte. E, como tal, esses corpúsculos são ainda divisíveis em outros e assim sucessivamente até ao limite de um átomo, 252 isto é, de um corpúsculo último, de uma partícula pura, pois é uma parte sem partes. Contudo, aqui Newton cai, necessariamente, em contradição. Pois, como Descartes havia percebido, se todos os corpos têm a propriedade da extensão, então não é concebível um corpo indivisível (pelo menos em pensamento). Encontramos aqui em Newton, todos os elementos do que, no capítulo anterior, designamos por pentadoxia. Ou seja, de uma espécie de ontologia quase espontânea, sugerida directamente pela nossa experiência comum do mundo físico. Assim, Newton não hesita em afirmar que os objectos físicos são corpos, isto é, parcelas unitárias e finitas de matéria. Os objectos físico são substâncias, pois esses corpos, essas parcelas de matéria, possuem propriedades e é através destas que os conhecemos. Nos objectos físicos as suas partes são homeómeras, razão pela qual Newton infere que os corpúsculos terão necessariamente a mesma natureza que um corpo. As propriedades quantitativas dos corpos são bem determinadas, e por isso o corpo pode ser tratado como algo que possui uma determinada quantidade de movimento, uma determinada posição. Por quantidade fim, um de objecto matéria, físico é uma determinada conceptualmente idêntico enquanto possível e enquanto actual. 253 3.3. O Conceito de Objecto Físico em Kant Nas linhas de abertura dos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, Kant afirma que a palavra Natureza pode ser tomada em dois sentidos: formal e material. Por Natureza, em sentido formal, entende-se o conjunto das determinações necessárias para constituir o conceito de um ser particular. Isto é, a sua essência. E, neste sentido, “utiliza-se esta palavra [Natureza] adjectivamente”224, por exemplo, quando afirmamos querer saber qual a natureza dos objectos físicos. Por Natureza em sentido material Kant entende “como a soma total de todas as coisas, enquanto estas podem ser objecto dos nossos sentidos”225. Isto é, o conjunto de todos os fenómenos possíveis. Identifica-se, assim, a Natureza, num sentido, como o conjunto de todas as coisas pensáveis e, num outro sentido, como o conjunto de todos os objectos da experiência. Pese embora esta diferença, em qualquer um 224 Conferir Kant (1781), Kritik der Reinen Vernunft, (trad. port. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique Morujão, “Crítica da Razão Pura” [CRP], Lisboa: Gulbenkian (2001)), nota de rodapé, B447 225 “[…] but as the sum total of all things, insofar as they can be objects of our senses.” Kant (1786), Metaphysische Anfangsgründe der naturwissenschaft (tradução para inglês de Michael Friedman, “Metaphysical Foundations of Natural Science” [MFNS]), Cambridge: Cambridge University Press, 2004, p.3. (tradução minha) 254 dos casos é condição de ser coisa da Natureza a sua determinabilidade, por pensamento ou por experiência, pelo sujeito transcendental, numa característica transformação de um conceito mais comum de Natureza enquanto o conjunto das coisas em si mesmo consideradas, para um conceito de Natureza enquanto o conjunto das coisas pelo sujeito transcendental consideradas. Por sua vez, dado que os nossos sentidos se dividem, segundo Kant, em sentido interno e sentidos externos, existem duas espécies de objectos na Natureza: A alma, que é o objecto do sentido interno; e os corpos, que são os objectos dos sentidos externos226. Logicamente, o complexo dos primeiros – os objectos do sentido interno – constitui a Natureza Pensante, enquanto o complexo dos objectos dos sentidos externos constitui a Natureza Corpórea227, ou seja, a Natureza Física. Assim, em Kant, tal como em Descartes, existe um dualismo claro das coisas da Natureza. Isto é, uma distinção fundamental e completa das coisas da Natureza entre aquelas que são elementos da Natureza Corpórea e as outras que são elementos da Natureza Pensante. Distinguindo-se exterior e a a interior 226 Conferir, [CRP], B400. 227 Idem, B875. Natureza – ao em sujeito duas partes – a transcendental, e 255 atendendo a que podem haver tantas ciências da natureza quantas as coisas especificamente diversas que existem228 então, para Kant, são possíveis, em princípio, duas Ciências da Natureza: a Ciência da Natureza Pensante e a Ciência da Natureza Corpórea. Em Kant, a primeira toma o nome de Psicologia229 e tem como seu objecto as almas, isto é, o que possíveis tem uma Ciências natureza da pensante. Natureza recebe A segunda a dessas designação de Física230 e tem como seu objecto os corpos. Portanto, para Kant, no seu chamado período critico231 a Física é definida completamente como a Ciência dos corpos. Mas, um vez aqui chegados, logo se pergunta, em primeiro lugar, o que é a Ciência, para Kant? E em segundo lugar: o que é um corpo, para Kant? Ou, por que será equivalente em Kant: o que é um objecto físico? Comecemos pela primeira destas duas questões. 228 “[…] there can be as many different natural sciences as there are specifically different things” [MFNS], P.3. (tradução minha) 229 [CRP], B400. 230 Idem, B875. 231 Faço a ressalva que esta é a definição é validade para o período critico, pois a questão da transição da Metafísica para a Física, que é o assunto central dos Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza, é igualmente o objecto do Opus Postumum. E, em particular, a questão da natureza da Física será um dos aspectos centrais desta última obra, sendo repetida exaustivamente, numa persistente procura de uma outra forma de definir Física. Conferir Immanuel, Kant, Opus Postumum (tradução para inglês de Förster, Eckart e Rosen, Michael “Opus Postumum”), Cambridge: Cambridge University Press (1993). 256 Nos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”, Kant define Ciência como um todo do conhecimento ordenado segundo princípios232. Princípios diverso da conhecimento, experiência de modo esses que sintetizam o sensível a que este numa todo unidade de de conhecimento constitua um sistema233 e não uma simples colecção de factos 234 ordenados , ou um mero agregado de conhecimentos. Porém, se estes princípios forem meramente empíricos, isto é, se os princípios que sintetizam o diverso da experiência sensível derivarem, igualmente, da experiência, por exemplo, por indução, então estes “não carregam consigo nenhuma consciência da sua necessidade (não são 235 apodicticamente certas)” , pois será impossível demonstrar a sua validade. Isto é, será impossível demonstrar que esses princípios seriam inferidos a partir de qualquer de experiência possível. Por consequência, se uma Ciência for fundada em princípios meramente empíricos, então as leis da Natureza que lhe subjazem são apenas leis de experiência e esse todo do conhecimento será um conhecimento fundado em leis arbitrárias e indemonstráveis. Será um conhecimento 232 Conferir [MFNS], 233 [CRP], B860. p. 4. 234 O que para Kant constituiria uma doutrina histórica da Natureza. Conferir [MFNS], p.4. 235 “[…] they carry with them no consciousness of their necessity (they are not apodictally certain) [MFNS], ibidem. (tradução minha) 257 contingente, incerto e passível de ser revisto. Um conhecimento, portanto, que só impropriamente poderá ser considerado genuinamente como saber. Só impropriamente, para Kant, poderá ser considerada como Ciência da Natureza. Ciência, propriamente dita, só se pode chamar aquela 236 cuja certeza é apodíctica . Só pode chamar-se aquela onde o conhecimento é necessário e universal. Ou seja, só pode chamar-se aquela onde “as leis fundamentais da Natureza que lhe subjazem são conhecida a priori e não são simples leis de experiência” Crítica à 237 . Pois, como Kant já havia mostrado na Razão Pura 238 , verdadeira universalidade e rigorosa necessidade só podem ser estabelecidas a priori. O conhecimento a priori que é totalmente independente da experiência, recebe, em Kant, o nome de conhecimento puro. Por conseguinte, “a ciência da natureza deve derivar a legitimidade desta designação unicamente da sua parte pura – nomeadamente, aquela que contém os princípios a priori de todas as restantes explicações da natureza - e só 236 Conferir [MFNS], ibidem. 237 “[…] the fundamental natural laws therein are cognized a priori, and are not merely laws of experience” [MFNS], Ibid. (tradução minha) 238 Conferir [CRP], p.38. 258 em virtude desta parte pura uma ciência natural pode ser 239 ciência em sentido próprio” Portanto, para . Kant, o traço fundamental de uma ciência da natureza é esta legitimar-se, não em leis de experiência, mas em princípios puros a priori. E, por esta razão, então “toda a ciência natural propriamente dita precisa, pois, de uma parte pura, na qual se deve fundar a certeza apodíctica que a razão nela busca” 240 . Por sua vez, essa parte pura, a parte que nada toma da experiência mas que é condição de possibilidade do conhecimento empírico, é a Metafísica. Pois é na Metafísica que o objecto se considera apenas segundo as disposições do pensar241, sem pedir nada da experiência, portanto, puramente a priori. Por esse motivo, é apenas na Metafísica que o objecto de conhecimento, não estando refém de um qualquer conjunto de experiências particulares, pode ser pensado e determinado para qualquer experiência possível. Se toda a genuína Ciência da Natureza se funda e legitima na parte que contém puros princípios a priori, e se estes 239 “[…] natural science must derivate the legitimacy of this title only from its pure part – namely, that which contains the a priori principles of all other natural explications – and why only in virtue of this pure part is natural science to be proper science” [MFNS], p.4 (tradução minha) 240 “All proper natural science therefore requires a pure part, on which the apodictic certainty that reason seeks therein can be based.” idem, p.5. (tradução minha) 241 Conferir Idem, pp. 9-10. 259 apenas podem ser encontrados na Metafísica, isto significa então que toda a ciência natural genuína pressupõe uma metafísica da natureza duas partes: 242 . Metafísica essa que se divide em transcendental transcendental trata “das e particular. leis que tornam A parte possível o conceito de uma natureza em geral, mesmo sem relação a qualquer objecto determinado da experiência e, como tal, indeterminado a mundo sensível” respeito da natureza disto ou daquilo do 243 . Portanto, sem qualquer relação aos objecto dos sentidos, mas somente ao modo como poderemos ter destes244. conhecimento Esta parte também toma a designação, em Kant, de Ontologia245. Por sua vez, a parte particular da metafísica da natureza versa somente sobre os princípios que fundam os conceitos empíricos pertencentes a uma das Naturezas particulares: à Natureza dos corpos (Física), ou à Natureza da alma (Psicologia)246. Em ciência resumo, da constituição 242 para natureza, de uma Kant, em existem geral: unidade de em três condições primeiro conhecimento de lugar, obtido a por Conferir idem, p. 5. 243 “[…] treat the laws that make possible the concept of a nature in general, even without relation to any determinate object of experience , and thus undetermined whit respect to the nature of this or that thing in the sensible world” idem, ibidem. (tradução minha) 244 Conferir [CRP], B25. 245 Conferir idem, B873. 246 Conferir [MFNS], p.5. 260 sistematização (ou ordenação) de factos; em segundo lugar, essa sistematização sintáctica tem de ser regulada por princípios racionais; em terceiro lugar, esses princípios têm que ser conhecidos a priori com certeza apodíctica. Por conseguinte, para Kant, só pode tomar legitimamente a designação de Física, aquela em que os seus conceitos encontrem o seu fundamento em princípios metafísicos da Ciência da Natureza Corpórea. E, estes, por seu turno, por serem princípios que tornam possível uma ciência da natureza particular, devem encontrar o seu fundamento nos princípios que tornam possível uma ciência da natureza em geral, ou seja, em princípios transcendentais. Por seu turno, dado que uma teoria racional acerca da Natureza dos genuinamente objectos como físicos Física se, só e só pode ser considerada se, for fundada em princípios puros a priori e, como, a Física tem como seus os objectos dos sentidos exteriores, isto é, segundo Kant, os corpos então, importa saber qual a natureza dos corpos. Dado que se trata de algo que é objecto dos sentidos exteriores, será necessariamente algo intuído no espaço e, por conseguinte, de natureza extensa247. Pois ser extenso decorre 247 da própria condição formal de ser objecto dos Conferir idem, p. 3. 261 sentidos exteriores, isto é, da forma da intuição do que é exterior ao sujeito de conhecimento. Assim, conhecer o conceito de corpo apenas enquanto possibilidade, isto é, conhecer a priori, exige que se dê a priori a intuição correspondente a esse conceito “isto é, que o conceito seja construído. Ora o conhecimento racional mediante a construção de conceitos é matemático”248. Portanto, conclui Kant, que uma teoria da natureza dos corpos, uma Física, só é possível por meio da Matemática249. Porém, a possibilidade de coisas naturais determinadas não pode conhecer-se somente a partir de conceitos, pois “a partir destes pode, certamente, conhecer-se a possibilidade do pensamento, mas não do objecto enquanto coisa natural, a qual pode ser dada (como existente) fora do pensamento”250. Este existente fora do pensamento é o que no fenómeno corresponde à sensação, isto é, o que Kant dá o nome de matéria251. Assim, os corpos são matéria extensa. Por conseguinte, os princípios metafísicos que fundam uma Física genuína terão necessariamente de ser os 248 “[…] that is, that the concept be constructed. Now rational cognition through construction of concepts is mathematical. Idem, p.6. (tradução minha) 249 Conferir idem, ibidem. 250 “[…] for from these the possibility of thought can be certainly be cognized, but the possibility of the object as a natural thing that can be given outside the thought (as existing)” Idem, ibidem. (tradução minha) 251 Conferir [CRP], B34. 262 princípios metafísicos que estabelecem as condições de possibilidade da aplicação da matemática ao conceito de matéria. Isto é, serão os “princípios de construção dos conceitos que pertencem à possibilidade da matéria em 252 geral” . Importa então saber onde encontrar o fundamento desses princípios formais. Ora, como toda a “verdadeira Metafísica é tirada da própria essência da faculdade de pensar e de nenhum modo ela é inventada na medida que não é tomada de 253 empréstimo da experiência” , então será somente através dos conceitos e dos princípios mais puros do pensamento que será possível determinações a encontrar objectivamente priori qualquer de todas conceito e, as em particular, do conceito de matéria. Por sua vez, dado que não há – em Kant - conceitos mais puros do entendimento do que as próprias categorias, então terá de ser a partir dessas mesmas categorias (grandeza, qualidade, relação e modalidade) que se poderá obter todas as determinações do conceito de uma matéria em geral. 252 “[…] principles for the construction of concepts that belong to the possibility of matter in general.”, [MFNS], p. 8. (tradução minha) 253 “All true metaphysics is drawn from the essence of the faculty of thinking itself, and is in no way fictitiously invented on account of not being borrowed from experience”, idem, ibidem. (tradução minha) 263 Está então assim traçado o programa de Kant, nas suas linhas mestras, para os “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”. Como afirma Michael Friedman: “Por um lado, os Principia de Newton representam a realização dos princípios transcendentais dispostos na primeira Crítica. Como tal, fornece ao sistema kantiano um “exemplo in concreto”, que confere “sentido e significado” aos conceitos e princípios abstractos da filosofia transcendental. […] Por outro lado, Kant vê a ciência newtoniana como necessitada de uma análise critica ou metafísica, uma análise que revele as origens e o sentido dos seus conceitos e princípios.”254 A Física inaugurada pelos Philosophie Naturalis Principia Mathematica, tal como Newton a constituiu, só impropriamente pode tomar a designação de Física, pois, tal como se mostrou anteriormente, é um sistema fundado em princípios, leis e conceitos extraídos da experiência. O conceito de corpo como uma substância material com propriedade de ser extenso, duro, impenetrável, que pode ter movimento, é retirado da experiência comum do mundo. E, por sua vez, os conceitos de espaço e tempo verdadeiros, absolutos e matemáticos surgem como uma generalização 254 Friedman, Michael (1992), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard university press, pp. 136-137. 264 racional da experiência comum de espaço e de tempo. Portanto, a Física de Newton apresentada nos Principia é fundada simplesmente em elementos retirados a posteriori da experiência. Como tal não tem em si o carácter necessário dos seus princípios e leis. Logo, não pode ser considerada como saber efectivo sobre a Natureza. Deste modo, Kant propõe-se, através de uma análise completa do conceito de matéria estabelecer os princípios metafísicos da Física consequência os da em geral Mecânica e que newtoniana, em serão, por particular. Mostrando, por um lado, sob que condições esta última pode ser legitimada como genuína ciência da Natureza. Isto é, como conhecimento efectivo e objectivo sobre a Natureza dos corpos. Por outro lado, ao efectuar nos “Princípios Metafísicos da Ciência Natural” um transitar da Filosofia Transcendental para uma Ciência da Natureza particular, Kant faz da Física de Newton um lugar de concretização, de exemplificação, da Filosofia Transcendental. Assim, os “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza” tem como propósito o de realizar uma análise completa ao conceito de matéria, aplicando-lhe, uma a uma, as categorias. Como tal, é claro que o conceito de matéria é o conceito central desta obra. Porém, o que é matéria? 265 Na Crítica da Razão Pura, Kant afirma que a matéria é o que é extenso, impenetrável e sem vida255. Assim entendida, o mundo físico, o que é constituído por corpos materiais, poderia ser estático. Pois, da simples extensão, impenetrabilidade e ausência de vida, ou seja, do simples conceito de matéria não decorre que esta se movimente. Porém, Kant afirma que “a ciência natural é uma doutrina pura ou aplicada do movimento”256. Ou seja, tal como em Descartes e Newton, em Kant o movimento, embora não seja propriedade essencial dos corpos, é a matriz de uma qualquer Física. Não haveria Física se o mundo físico fosse totalmente estático. Portanto, o movimento surge como uma propriedade atribuída aos corpos em função da nossa experiência do mundo físico, como uma propriedade empírica. Isso mesmo é salientado por Kant quando afirma que: “[…] visto que a mobilidade de um objecto no espaço não se pode conhecer a priori sem o ensinamento da experiência e, precisamente por esta razão, não a pude incluir, na Crítica da Razão Pura, entre os puros conceitos do entendimento; e que este conceito, enquanto empírico, só podia encontrar o seu lugar numa ciência da natureza que, enquanto metafísica aplicada, se ocupa 255 Conferir [CRP], B876. 256 “[…] natural science […] is either a pure or a applied doctrine of motion” [MFNS], p. 12. (tradução minha) 266 de um conceito fornecido pela experiência, embora segundo princípios a priori.”257 Assim, para estabelecer os Fundamentos Metafísicos da Ciência da Natureza corpórea não basta submeter o conceito de matéria às categorias. É preciso acrescentar ao conceito de matéria, como sua determinação adicional e primeira, o movimento. Portanto, o conceito de matéria que irá submeter às categorias é o conceito de uma matéria móvel. E assim, estabelece: uma Foronomia; uma Dinâmica; uma Mecânica e uma Fenomenologia. 3.3.1. Foronomia A Foronomia, ou Cinemática, é a teoria da matéria móvel enquanto quantidade (ou seja, submetido à categoria da quantidade). Deste modo, importa aqui tratar a matéria unicamente enquanto coisa que possui um certo grau de movimento. Porém, o que é o movimento? Kant define-o assim: 257 “since the mobility of an object in space cannot be cognized a priori, and without instruction through experience, I could not, for precisely this reason, enumerate it under the pure concepts of the understand in the Critique of Pure Reason; and that this concept, as empirical could only find a place in natural science, as applied metaphysics, which concerns itself with a concept given through experience, although in accordance whit a priori principles”, idem, p. 17. (tradução minha) 267 “Movimento de uma coisa é a modificação das suas condições exteriores em relação a um espaço dado”258 Entendida desta forma o movimento é da ordem da relação entre um corpo, que é sujeito de movimento, e um determinado espaço. Em particular, dado que o espaço é, em Kant, uma forma da sensibilidade, o movimento de um corpo é da ordem da relação desse corpo com o espaço da percepção de um sujeito de conhecimento. No entanto, na medida que este é igualmente móvel, o seu espaço de percepção móvel igualmente o é. A este espaço que é móvel, que é o caso do espaço da nossa percepção do mundo físico, Kant designa por espaço relativo. E, por consequência, afirma, então, Kant que “todo o movimento que é objecto de experiência é meramente relativo”259. Isto é, da experiência directa não podemos afirmar a objectividade do movimento de um corpo que julgamos perceber, mas apenas que este se move em relação a um outro (ou a nós). Neste sentido, o conceito de movimento de Kant é, de alguma forma, devedor do conceito 258 “Motion of a thing is the change of its outer relations to a given space” idem, p. 17. (tradução minha) 259 “[…] all motion that is an object of experience is merely relative” idem, p.16. (tradução minha) 268 cartesiano de movimento como uma relação de um dado corpo com o que lhe é vizinho. Porém, assinala Kant, se o espaço relativo é móvel, então sê-lo-á relativamente a um outro que lhe é exterior e alargado. Por sua vez, “este pressupõe um outro e, assim por diante, até ao infinito”260. Sendo esse espaço último e infinito, então somente esse não será móvel relativamente a nenhum outro e, por conseguinte, é o único que permite julgar objectivamente os movimentos dos corpos, movimentos que lhe são relativos. Logo, tal como em Newton, é neste espaço, no espaço absoluto, que “se deve pensar todo o movimento”261. No entanto, ao contrário de Newton, este espaço absoluto não é um objecto de percepção, ele “nada é, pois, em si, não é um objecto, mas significa somente todo o espaço relativo que, para mim sempre posso pensar além do espaço dado”262. Portanto, ao recusar que o espaço absoluto seja algo que seja da mesma natureza que o espaço relativo, Kant afasta-se de Newton, onde o espaço absoluto é uma substância do qual só temos acesso a uma parte. Mas se se 260 “[…] this latter presupposes […] yet infinity” idem, ibidem. (tradução minha) another; and so on to 261 “[…] that in which all motion must finally be thought”, idem, p.15. (tradução minha) 262 “[…] is thus in itself nothing, and no object at all, but rather signifies only any other relative space, which I can always think beyond the given space”, idem, p.16 (tradução minha) 269 afasta de Newton relativamente à natureza do espaço, a verdade é que o conceito de movimento de Kant é próximo do (ou pelo menos, compatível com o) conceito de movimento de Newton, em que se entende movimento como a mudança de lugar de um corpo. Argumenta Kant que para se determinar a distância da Terra à Lua – exemplo que elege – “escolhe-se a linha mais curta desde o centro de uma ao centro da outra, por conseguinte, apenas um ponto destes corpos é que constitui o seu lugar”263. Isto é, do facto que só podemos falar precisamente da distância entre dois corpos se os reduzirmos a pontos localizados no espaço Kant retira a ilação que o “lugar de todo o corpo é um ponto”264. Ou seja, só podemos falar com propriedade da distância entre dois corpos se estes tiverem uma posição espacial bem determinada. Neste sentido, conceber movimento como mudança de lugar (ou seja, posição) corresponde, se esse movimento for apenas de translação, ao conceito de movimento como a alteração exterior. da relação Porém, determinação a do corpo concepção adicional à móvel com kantiana concepção o que lhe é permite uma newtoniana (e cartesiana) de movimento: ter a rotação como movimento no mesmo sentido que o é a translação. Pois, a Terra na sua 263 “[…] chooses the shortest line form the central point of the one to the central point of the other, so that for each of these bodies there is only one point constituting its place”, Idem, pp. 17-18. (tradução minha) 264 “For the place of any body is a point“ idem, p.17 (tradução minha) 270 rotação é um corpo que altera a sua relação com o que lhe é exterior, porém não mudar de lugar e, no entanto, move-se. Neste sentido, a concepção de movimento de Kant é mais rica que a de Newton, sendo que, de certa forma, inclui esta última como um seu caso particular (quando se considera apenas o movimento como translação). 3.3.2. Dinâmica A dinâmica é a teoria da matéria móvel submetido à categoria da qualidade. Nesta, Kant defende que uma matéria movível é algo que preenche um espaço. Contrapõe-se assim, em Kant, a noção de corpo como algo que “enche” à noção newtoniana de corpo como coisa que “ocupa” o espaço. Noção que seria inaceitável para Kant, pois dizer que um corpo “ocupa” o espaço faz remeter, implicitamente, para um espaço que é prévio, no mundo físico, aos corpos. Concepção essa que é rejeitada por Kant ao ter do espaço, não como algo do mundo, mas como forma da intuição. Assim, em Kant, o espaço é prévio aos corpos, não no mundo, mas no sujeito que o experiencia. Por “encher” um espaço Kant entende “resistir a todo móvel que se esforça, graças ao seu movimento, por penetrar 271 num certo espaço”.265 Dito de outro modo, um corpo material “enche” um espaço no sentido que resiste a ser sobreposto por um outro. Neste sentido, Kant é levado a especular sobre a existência de algo na constituição da matéria que a faz reagir a uma acção exterior, a essa acção de penetração ou sobreposição. Pois, se “encher” tem o sentido de uma resistência da matéria à ser sobreposta por outra, isso deve-se, segundo Kant não há simples existência passiva da matéria, que seria a atribuição newtoniana da propriedade de impenetrabilidade à matéria, mas esta ser algo que estabelece uma reacção a acção que lhe é imposta. Ou seja, a matéria, submetida à sua determinação qualitativa de causa-efeito, leva Kant a concluir que esta – a matéria “enche” em virtude de ser constituída do resultado de duas forças motrizes266. Em primeiro lugar, por uma força repulsiva, que é exercida sobre o que é exterior ao corpo, que apenas se encontra na superfície de contacto e, como tal, é a responsável, segundo Kant pela solidez, impenetrabilidade e ocupação do espaço (e, por consequência, igualmente pela figura do corpo). 265 “[To fill a space is] to resist every movable that strives through its motion to penetrate into a certain space.”, idem, p. 33 (tradução minha) 266 Conferir idem, p. 34. 272 Porém, se apenas existisse essa força repulsiva, então as partes constituintes de um corpo material repelar-se-iam mutuamente e estes dissipar-se-iam. Assim, em segundo lugar, do mesmo modo que existe uma força repulsiva, terá que existir uma força atractiva que mantém a coesão: a gravidade. No entanto, se a matéria é uma força contrária a uma invasão do que lhe é exterior, nem todos os corpos manifestam a mesma a força repulsiva. Nos fluidos é menos presente que nos sólidos, em virtude das suas partes apresentarem forças distintas. Ou seja, desta concepção de matéria como sobreposição e algo que uma força possui uma força repulsiva à atractiva que permite a sua coesão, poder-se-ia afirmar que a matéria é constituída por partes elementares, por pontos onde emanariam as forças. Haveria aqui lugar para uma espécie de atomismo. Porém, Kant não é um atomista. Segundo Kant, “o conceito de uma substância significa o último sujeito da existência, isto é, o que não pertence, por seu turno, à existência de uma outra coisa meramente como um predicado”267. Portanto, substância surge aqui, tal como em Descartes e em Espinosa, como o que existe 267 “The concept of a substance means the ultimate subject of existence, that is, that which does not itself belong in turn to the existence of another merely as a predicate” idem, pp. 39-40. (tradução minha) 273 independente de outra coisa qualquer, como o que existe sem ser meramente predicado de outra coisa e, por consequência, como o que só pode ser concebido como sujeito para Kant, de predicação. Ora, dado que o espaço não é, algo existente mas tão-só uma condição do sujeito transcendental da percepção do que lhe é exterior, então o espaço não é substância e, por consequência, “matéria é o sujeito de tudo o que, no espaço, se pode incluir na existência das coisas”268. Ou seja, apenas a matéria é uma substância. Assim, se a matéria é uma substância que é constituída por partes, logo, segundo Kant, todas as partes da matéria são igualmente substâncias. Mais precisamente, substâncias materiais. Como tal, qualquer divisão da matéria resulta em partes que são igualmente matéria. Isto significa que, para Kant, a matéria é divisível até ao infinito e cada uma das suas partes é, por seu turno, matéria269. Porém, dado que a espacialidade não é uma propriedade intrínseca da matéria, mas uma imposição do sujeito, então Kant ao defender que a matéria é divisível até ao infinito fá-lo sem ter que aceitar a existência real de substâncias 268 “[…] matter is the subject of everything that may be counted in space as belonging to the existence of things”, idem, p. 40. (tradução minha) 269 Conferir Idem, ibidem. 274 corpóreas simples, isto é, sem ter que aceder ao atomismo. Ou seja, em Kant, o todo não é precedido pelas partes que o compõem, mas o inverso: o todo é primeiro em relação as partes. Tal como num corpo geométrico, para Kant, o corpo físico pode ser dividido infinitamente, mas isso não implica que o corpo, como um todo, tenha que ser concebido como constituído, efectivamente, por partes simples (do mesmo modo que um quadrado é decomponível em triângulos sucessivamente mais pequenos, mas tal não implica que tomemos um quadrado como uma adição de triângulos ou, mais radicalmente, por pontos). Contudo, esta redução da matéria a simples forças motrizes270, que são responsáveis de encher pela figura e pela coesão dos corpos, parece ter que ser suportada, como assinala Eric Watkins271, pela tese de que todo o espaço é preenchido, de algum modo, por forças. Forças de intensidade diferentes pois são diferentes os corpos na sua coesão. Mas se os corpos são divisíveis até ao infinito, então o espaço é divisível em forças cada vez menores. Divisibilidade esta que poderá ser levada até ao limite de uma matéria tão subtil que quase não é existente: o éter. 270 Conferir Idem, p. 63. 271 Conferir Watkins, Eric (2009), ”Kant philosophy of science” in http://plato.stanford.edu/archives/spr2009/entries/kant-science,p. 12. 275 Como Friedman272, assinala Kant durante o seu período Critico deixa a hipótese do éter em aberto, precisamente como coisa vaga e implícita, mas será absolutamente central no Opus Postumum (onde rejeitará a redução da matéria a forças motrizes individuais e, na extensão, renunciará aos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”). 3.3.3. Mecânica A Mecânica é a teoria da matéria móvel submetida à categoria de relação. Como tal, tem como seu objecto a explicação de como um corpo, isto é, “uma matéria compreendida entre limites determinados”273, enquanto móvel, comunica o seu movimento a outros corpos. Portanto, é o lugar que se relaciona mais proximamente com as leis do movimento de Newton e, portanto, com a constituição de uma teoria física concreta. Deste modo, este é o lugar de articulação das determinações da matéria móvel já obtidas com as duas caracterizações fundamentais dos corpos na Mecânica newtoniana: quantidade de matéria e quantidade de movimento. 272 Conferir, Friedman, Michael (1994), Kant and the Exact Sciences, Cambridge: Harvard University Press, p. 222. 273 “[…] a matter (tradução minha) between determinate boundaries”,[MFNS], p. 74 276 Por quantidade de matéria Kant entende “o agregado dos móveis num espaço determinado”274. O que será, de certa forma, equivalente à definição de Newton de quantidade de matéria, na medida em que Kant acrescenta que a uma dada quantidade de matéria de um corpo chama-se “massa” quando todas as suas partes se movem em conjunto. No fundo, tanto em Kant como em Newton, quantidade de matéria é a quantidade de substância do móvel. Contudo, dado que a matéria é infinitamente divisível, a quantidade de matéria não pode ser estimada como o somatório de um conjunto de partículas materiais, como em Newton e, por conseguinte, igualmente não poderá ser definida através do volume. Portanto, a única forma de estimar a quantidade de matéria é através da quantidade de movimento a uma velocidade dada275. Por quantidade de movimento Kant entende exactamente o mesmo que Newton. Isto é, o produto da quantidade de matéria de um corpo pela sua velocidade.276 274 “[The quantity of matter is] the aggregate of the movable in a determinate space”, idem, p. 76 (tradução minha) 275 Conferir idem, p. 77 276 Conferir idem, ibid. 277 3.3.4. Fenomenologia Por fim, a fenomenologia é a teoria da matéria móvel submetida à categoria da modalidade. Mais precisamente, de como o movimento pode ser objecto de experiência em termos da possibilidade, movimento actualidade rectilíneo é e necessidade. meramente possível; Em o que o movimento circular é um predicado real da matéria e todo o movimento de um corpo pelo qual ele exerce uma acção motriz sobre um outro corpo é necessário um movimento igual e contrário deste último corpo. Esta determinação modal do movimento dos corpos assenta na relação destes com o espaço absoluto. Como foi salientado anteriormente, por um lado, a partir de um espaço relativo, aquele a que temos acesso empírico, só podemos afirmar que um corpo está em repouso ou em movimento relativamente a esse espaço. E, por conseguinte, o mesmo corpo ser considerado em movimento num dado espaço relativo e em repouso num outro. Por outro lado, o espaço absoluto não é um objecto da experiência. O espaço absoluto em Kant não é em nada dado, nem em parte, como em Newton, à intuição. Daqui somos então levados a concluir que não existe nenhum corpo em movimento absoluto ou em repouso absoluto. No entanto, é condição da determinação do 278 movimento (ou do repouso) de um corpo este ter como referente algo considerado imóvel, até para a própria noção que todos os movimentos são relativos. Assim, segundo Kant, o espaço absoluto é uma “regra para considerar em si todo o movimento como puramente relativo”277. Ou seja, o espaço absoluto é uma ideia da razão. Ideia essa que nos permite tornar válidas as leis do movimento. 3.3.5. Conclusão Tal como em Descartes, para Kant é da natureza dos objectos dos sentidos externos, ou corpos, serem extensos. Contudo, a extensão (e a figura) é parte da natureza dos objectos físicos em sentido formal. Como algo é conhecido a priori, pois é uma determinação da intuição pura do sentido externo, isto é, do espaço. Por outro lado, em Kant, tal como o era em Newton, a materialidade é a natureza dos objectos físicos em sentido material (permita-se o pleonasmo). Pois a matéria é aquilo a que no fenómeno corresponde à sensação278. 277 Conferir idem, p. 98. 278 Conferir, [CRP], B35. 279 Poder-se-á assim dizer que existe no conceito de objecto físico em Kant uma tentativa de conciliação dos conceitos de objecto físico de Descartes e de Newton. Que é, no fundo, uma tentativa de conciliação entre o racionalismo de Descartes e o empirismo de Newton. Uma tentativa de conciliação que se efectua no conceito de corpo entendendo-o: - por um lado, como puro objecto geométrico, como objecto da razão (isto é, quanto à sua forma); e - por outro lado, enquanto coisa que activa os sentidos, enquanto objecto empírico (isto é, quanto à sua materialidade). Contudo, essa conciliação faz-se, em primeiro lugar, tendo o (contra espaço como Descartes e uma forma Newton, subjectiva onde o espaço da é intuição algo dos objectos). Só assim, Kant assegura que o mundo físico pode ser objecto da matemática, como era propósito de Descartes e esperança postulada de Newton. Em segundo lugar, essa conciliação faz-se pela concepção de matéria de Kant (que é herdada de Leibniz, tal como o espírito conciliador) esta é o produto de forças antagónicas. Forças onde que explicam, por um lado, a extensão dos corpos em Descartes. Por outro, que explicam a impenetrabilidade e dureza dos corpos em Newton. 280 Mas existe ainda um terceiro plano de conciliação entre Newton e Descartes fruto, igualmente, do conceito de matéria de Kant. Pois ao conceber a matéria com uma substância que possui forças motrizes, Kant, por um lado, estabelece a gravidade uma força fundamental dos corpos, isto é, estabelece como existente um força que actua à distância. Algo que Descartes rejeita e Newton aceita mas hesita, isto é, nunca o assume. E, por lado, ao atribuir aos corpos uma força fundamental de repulsão (a que preenche o espaço), Kant rejeita o atomismo onde assenta o sistema newtoniano e aceita, como Descartes, que a matéria é infinitamente divisível. Portanto, se aqui se afirmou que era intenção de Kant dar fundamento à Física de Newton, isto não significa que era intenção de Kant fazer uma estrita defesa dessa Física. O problema de Kant era o de determinar os princípios metafísicos que permitem uma teoria sobre a natureza corpórea tomar com propriedade a denominação de ciência. Isto é, conhecimento efectivo dessa natureza. O seu ponto de partida, como não poderia deixar de ser, é de conceber a Natureza física como o conjunto dos fenómenos. Onde, a matéria, enquanto algo móvel, é o elemento que é dado à sensibilidade e, como tal, determinações do sujeito é o que é transcendental. objecto Ou seja, das o 281 propósito de Kant era o de submeter o conceito de matéria móvel as categorias e delas fazer brotar dedutivamente, os princípios a que os objectos de experiência possíveis da Física, os corpos enquanto matéria móvel, estariam necessariamente submetidos. Em princípios, portanto, que precederiam e legitimariam, não somente a Física de Newton mas uma princípios qualquer Física metafísicos de particular Kant neles seriam os fundada. a priori Os de qualquer ciência da Natureza. Contudo, ao ser uma metafísica especifica dos corpos onde, na sua base residem conceitos empíricos como matéria e movimento, esta pode-se revelar incorrecta sem, contudo, atentar necessariamente contra o edifício da Critica da Razão Pura. Isto é, dado que os conceitos de movimento e de matéria, em particular, enquanto substância que possui duas forças activas e opostas, são atribuídos aos objectos físicos a partir da experiência que temos deles, então não pode haver garantia alguma que uma ciência fundada em tais conceitos traduza um conhecimento efectivo sobre a Natureza corpórea. Isso mesmo é reconhecido por Kant quando afirma, na seguinte passagem, o carácter não universal de alguns dos princípios metafísicos da Física: 282 “[...] também encontram-se muitas coisas aí que [na não ciência são geral da absolutamente natureza] puras e independentes das fontes da experiência: como o conceito de movimento, de impenetrabilidade (onde se funda o conceito empírico de matéria), de inércia, etc., que a impedem de a chamar uma ciência inteiramente pura da Natureza [...] Mas, entre os princípios dessa Física geral, há alguns que possuem realmente a universalidade que exigimos, como a proposição: que a substância permanece e persiste, que tudo o que acontece tem uma causa segundo verdadeiramente leis leis constantes, universais da etc. Natureza, Estas que são existem absolutamente a priori”279. Deste modo, existem dois tipos de princípios metafísicos da Natureza: Aqueles que, no entender de Kant, são absolutamente universais, apriorísticos e, por conseguinte, seguros pois têm a sua sede nos conceitos puros do entendimento; e os outros que são – digamos assim – semi-puros e, como tal, passíveis de serem revistos. Este é caso de todos os que se referem aos conceitos empíricos em geral. E, em particular, será o caso dos que se referem aos conceitos de matéria e de movimento. 279 Kant (1783), Prolegomena zu einer jeden künftigen Metaphysik (trad. port. de Artur Mourão, “Prolegómenos a toda a Metafísica Futura”), Lisboa: Edições 70 (1982), § 15, p. 67 283 Por conseguinte, a Física de Newton, fundada, já não na débil experiência, mas na sólida estrutura do sujeito transcendental, tal como era o propósito dos “Princípios Metafísicos da Ciência da Natureza”, pode ser considerada um conhecimento possível, mas não necessário. Aliás, a meu ver, uma vez concebida a matéria como substância que possui forças e aberta a possibilidade do éter (que, como já se disse, irá ser central no Opus Postumum) podemos ver Kant mais próximo do que viria a ser, cerca de meio século mais tarde, o Electromagnetismo do que a Mecânica de Newton. Pois, é precisamente no Electromagnetismo que a matéria é concebida como atractiva e resultante outra de repulsiva, duas forças presentes opostas, numa uma substância infinitamente subtil e que preenche todo o espaço: o campo electromagnético. 2.4. Conclusão geral do capítulo. A análise do conceito de objecto físico que é realizada neste capítulo é, a meu ver, atravessada por dois aspectos: 284 1) Por objecto físico concebe-se sempre como o que tem a natureza corpórea, ou seja, que é um corpo. 2) Embora a Física se constitua sempre como uma teoria do movimento, de qualquer um dos conceitos de corpo não decorre, necessariamente, que estes se movimentem. Embora distintos, creio que estes dois aspectos estão relacionados. Relação que, a meu ver, se pode expressar nos seguintes termos: pensar os corpos é pensar a partir do fixo, do localizado e, portanto, é pensar numa entidade em que o movimento é apenas possível; pensar as ondas é pensar em algo que necessariamente se move. A experiência que temos do mundo físico é, em primeira instância, o da existência de coisas que nos são exterior e que se nos opõem activando os nossos sentidos. Atribuímos, apropriadamente, a designação de “objecto físico” a essas coisas, suportados na própria etimologia da palavra “objecto”. A partir desta reacção dos nossos sentidos à presença de algo que nos é exterior, temos a percepção de cadeiras, mesas, pedras, bolas de bilhar, cordas de violino, das nossas próprias mãos, etc. E chamamos-lhes corpos a esses objectos físicos. 285 Podemos, então, a meu ver, dizer que um corpo é um todo espacialmente finito. Na forma desenhada da sua finitude espacial encontra a sua figura. Mas um todo de quê? Descartes dirá que é apenas um todo de extensão, como um quadrado ou uma outra figura geométrica qualquer. Se um corpo é um todo espacialmente finito, será impossível discordar com Descartes que os corpos têm extensão, são um todo extenso com figura. Mas dizemos vulgarmente que esse todo não é somente extensão, mas é um todo de massa. Um corpo é uma massa com uma determinada figura280, é isto mesmo que afirma Kant (e Newton, certamente concordaria). Por sua vez, dizemos que um corpo se movimenta quando, por exemplo, percepcionamos, o que julgamos ser o mesmo corpo, percorrendo uma sucessão de locais. O corpo é então aqui entendido como um todo extenso que se move. Mas tal não acrescenta nada ao conceito de corpo, pois da concepção de um todo (de matéria) finito, nada obsta a que esse todo se movimente. Os corpos, quer os concebamos como simples extensão, matéria ou resultado de duas forças, concebemolos sempre a partir da sua ausência de movimento. Como se o movimento fosse, para os objectos físicos, apenas uma propriedade acidental. 280 Conferir [MFNS], p. 76. 286 Por outro lado, se o corpo é um todo extenso, então é composto movimento. por Ou partes seja, e então pode estas existir poderão estar movimento num em todo extenso. A este designamos por onda. Portanto, quanto ao movimento, podemos distinguir corpo e onda do seguinte modo: Corpo é um todo móvel; onda é um movimento num todo. Deste modo, conceber os objectos físicos como ondas passa necessariamente por ter o movimento como propriedade fundamental. Uma onda do mar não é concebível como algo que está em repouso, apenas poderá ser como algo que se mantém estável. Pois se existem ondas estacionárias, estas são o resultado da sobreposição persistente de duas ou mais ondas, como um processo cujo resultado se mantém idêntico no tempo, mas que é um processo, que não é algo que está em repouso. Não existem ondas em repouso. E, como tal, não é possível conceber os objectos físicos como ondas sem considerar que esses objectos têm movimento. Parece existir aqui, no entanto, uma certa precedência dos corpos em relação às ondas. Pois, ao dizer-se que uma onda é um movimento num todo, então esse todo precede, como condição, a onda. Uma onda do mar é um movimento no mar. Uma onda sonora é um movimento, por exemplo, no ar ou num metal. Por conseguinte, se esse todo extenso é um corpo, então, de certo modo, podemos dizer que, enquanto um corpo 287 pode ser concebido sem as ondas, o inverso não será totalmente verdade. A não ser, claro está, quando o extenso que é suporte da onda, for infinitamente extenso, portanto sem figura. É caso, por exemplo, da onda electromagnética, que é movimento num “campo” de extensão infinita. Porém, nesse caso, o campo electromagnético não é concebível nem como corpo, nem como onda. Na verdade, parece que sobre qualquer plenum infinito, como é o campo electromagnético, tomando-o como objecto físico se poderia colocar, de certa forma, a mesma questão sobre a sua natureza que se coloca relativamente aos objectos quânticos. Por outro lado, se a nossa experiência comum do mundo físico é feita de percepções discretas, como se fossem flashes, imagens isoladas ou fotografias, então os objectos físicos são percepcionados, antes do mais, como entidades sem movimento. O movimento será, então, uma operação de síntese de várias percepções individuais. Neste sentido, os corpos individuais, enquanto um todo extenso, como entidade que pode ser concebida sem o movimento, são o nosso objecto de experiência privilegiado281. A reforçar assinalam, esta entre tese evoca-se outros, De aqui Broglie que, e tal como Brigitte 281 Este ponto, por não ser totalmente claro, careceria de uma análise mais detalhada. Em particular, a tese que o objecto da nossa percepção externa é o corpo. No entanto, isto significaria mergulhar num problema imenso que é o problema da percepção. O que forçaria a um desvio significativo no âmbito deste trabalho. 288 Falkenburg282, todas medições são, antes do mais, medições da posição (ou seja, da quantidade de localização, como se disse no capítulo anterior). O que significa que todas as medições se referem aos corpos. Todas as medições são, em última análise, naturalmente balança relativas mede comparação repostas a de massa duas à pergunta a um determinado de um corpo, posições. E o “onde está?”, corpo. Se mede-o mesmo a uma partir sucede da para a medição da velocidade. Ou quando se mede o momentum ou a energia ou mesmo a frequência ou o comprimento de uma onda. A única propriedade que é directamente medida é a posição. Todas as outras são-no apenas de forma indirecta. Poder-seá, então, afirmar, caracterizada entanto, surpreendentemente, apenas dirigida por aos uma questão. objectos que a Questão físicos, que Física é esta, no se vai desdobrando nos seus tempos verbais. A saber: Onde está? Onde estava? Onde estará? Portanto, os corpos individuais são o nosso objecto de experiência privilegiado. Não admirará pois que em Descartes, Newton e Kant, “objecto físico” e “corpo” sejam quase sinónimos. Ou melhor, a partir da experiência dos corpos, cada um deles concebe os objectos físicos. Descartes por eliminação de tudo aquilo que não faz parte 282 Conferir Falkenburg, Brigitte (2007), Particle Metaphysics, Berlim: Springer, p. 93. 289 necessariamente dos corpos. Newton tomando por seguro que a experiência ensina como os objectos físicos são de facto. Kant tomando por seguro que a experiência ensina como os objectos físicos são enquanto fenómeno. Porém, a lição da descoberta do domínio quântico era a seguinte: os objectos quânticos movem-se como ondas, interagem como corpos. Quando interpelados por um acto de medida os objectos quânticos aparecem sempre como um corpúsculo. Porém, vagueiam entre duas medições como se fossem ondas. O objecto quântico tem sempre uma dupla face. Quanto melhor conhecemos a sua posição, pior conhecemos o seu momento. Por muito que o reconheçamos como corpúsculo, nunca o deixamos de reconhecer como onda. E vice-versa. O objecto quântico resiste e revolta-se às nossas enraizadas categorias para os objectos físicos. Ele não é onda, nem é corpúsculo. Deste modo, sendo que os objectos quânticos não são corpos, mas são objectos físicos então, nenhum dos conceitos de objecto físico, de Descartes, Newton ou Kant suporta o embate novamente, à quânticos. Mas com questão agora o domínio inicial com dois da quântico. natureza elementos dos Voltamos, objectos adicionais. Em primeiro lugar, dirigimos a questão aos objectos físicos em geral e não apenas aos quânticos. Em segundo lugar, todas 290 as medições podemos medição em pensar Física são que objecto o apresentará, medições físico de posição. revelado necessariamente, uma Assim, por uma natureza corpórea, mesmo que essa não seja a sua natureza. Isto é, podemos pensar que, na sua essência, um acto de medição, ou um acto de percepção, é um acto de fragmentação e de metamorfose da realidade física. Ou seja, que os objectos físicos devem ser concebidos, por um lado, como entidades em que o movimento é parte da sua essência, é um seu princípio interno e não um acidente. E, por outro lado, como entidades que, num acto de medida ou de percepção, se apresentam incompletos, parciais, perspectivados. 291 292 4. Elementos para uma concepção dinamista e relacional de objecto físico. No parágrafo oitavo dos “Princípios da Natureza e da Graça”, Leibniz afirma: “[…]a matéria é em si mesma indiferente ao movimento e ao repouso, e encontrar perante a razão um do tal ou outro movimento, e movimento menos ainda não podemos de um tal movimento determinado. E ainda que o movimento presente, que está na matéria, venha do precedente, e este de um outro precedente, continuamos a não avançar, ainda que avancemos tanto quanto quisermos: porque permanece de pé sempre a mesma pergunta.”283 Os corpos movem-se. É isso que a nossa experiência do mundo físico nos indica. Não haveria experiência do mundo físico se não houvesse movimento, não só porque os nossos 283 “[…] la materia es en si misma indiferente al movimiento y al reposo, y ante tal o cual movimiento no podemos encontrar la razón del movimiento y menos aún de tal movimiento determinado. Y aunque el movimiento presente, que está en la materia, proviene del precedente, y éste incluso de otro precedente, no hemos avanzado más aunque vayamos tan lejos como queramos: pues siempre queda en pie la misma pregunta. Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 8 (tradução minha). 293 mecanismos sensoriais não poderiam existir ou, pelo menos, funcionar, mas igualmente apareceria indiferenciado, porque o homogéneo, mundo morto. físico Os nos corpos movem-se e a física constitui-se como teoria explicativa do movimento dos objectos físicos. Porém, como se mostrou no capítulo anterior, conceber os corpos como extensão ou como matéria é conceber um objecto físico onde a razão do seu movimento não está inscrita. Como afirma Leibniz na passagem anterior, da matéria “não poderíamos achar nela a razão do seu movimento”. E mesmo que seja construída uma física tão poderosa como a newtoniana, que nos explica como os movimentos se sucedem, falha a razão porque existe movimento no mundo físico. Assim, será claro em Leibniz que a razão do movimento não pode provir da nossa experiência do mundo físico, como o defenderam Descartes, Newton e Kant. Pelo contrário, a razão terá que ser encontrada na metafísica e depois deduzida para os corpos. Como afirmou Deleuze, “Em lugar da indução física cartesiana, Leibniz substitui-a por uma dedução moral do corpo”284. Moral que advém do imperativo “Eu tenho que ter um corpo”285. Deste modo, como é imperativo em Leibniz, tem que existir uma razão para os corpos se moverem, para que as coisas sejam 284 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p.97. 285 Idem, ibidem. 294 assim e não de outro modo qualquer. Razão que não se encontra nos corpos, mas nas mónadas. 4.1. Objectos Físicos: entre as mónadas e os corpos. A monadologia, trabalho da chamada fase de maturidade de Leibniz (ou, como coloca Ezequiel de Olaso, “de maior maturidade”286), tem como entidade ontológica fundamental a mónada. Logo no primeiro parágrafo, Leibniz define-a como uma substância simples. Mas o que entende aqui, Leibniz, por substância e por simples? Por simples, esclarece o próprio, significa o que é “sem partes”287. Por conseguinte, mónada será a substância que não é composta por nada mais, a substância que não tem algo no seu interior, a que não é divisível. Por sua vez, havendo outras coisas no mundo que não as mónadas, e sendo estas as substâncias simples, então, como nos diz Leibniz, essas outras coisas são compostos de 286 Conferir Olaso, Ezequiel de (1980), “Prólogo” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.17. 287 Conferir Leibniz, G.W. (1714) Principes de la Philosophie ou Monadologie, parágrafo 1, (edição Robinet, 1954, p.69).[MonadologiaEd.Robinet] 295 mónadas. Ou mais precisamente, são agregados de mónadas288. Porém, daqui resultam dois problemas. Em primeiro lugar, se os objectos físicos de que temos experiência empírica directa – os corpos – apresentam-senos como extensos, como podem eles resultar da composição de mónadas, que são entidades, de sua natureza, sem extensão? Por outro lado, por que razão Leibniz afirma na monadologia que as mónadas são substâncias simples e, no entanto, não afirma que os agregados de mónadas são substâncias compostas (tal como o faz nos “Princípios da Natureza e da Graça”289)? Ou seja, por que razão, aparentemente, as mónadas são substâncias e no entanto os corpos, por exemplo, já não o são? O que entende Leibniz por substância? No célebre Metafísica”, parágrafo Leibniz começa VIII por dos “Discursos considerar o de conceito aristotélico de substância: 288 289 Conferir idem, parágrafo 2. Conferir Idem, parágrafo 1 296 “[…] quando se atribuem múltiplos predicados a um mesmo sujeito e esse sujeito não é atribuído a nenhum outro, ele é chamado de substância individual”290 Contudo, Leibniz, no comentário que logo se segue, vê a referida concepção de substância como insuficiente por esta ser, no seu entender, meramente nominalista. Por sua vez, Leibniz considera que: “[…] a natureza de uma substância individual ou de um ser completo é ter uma noção tão acabada que seja suficiente para compreender e deduzir a partir dela todos os predicados do sujeito a qual tal noção é atribuída.”291 Ou seja, Leibniz entende por substância individual o mesmo que entende por um ser completo. O que significa que, no seu entender, uma substância, ou um ser completo, é o que contem em si, virtualmente, todas as predicações da qual é sujeito. Isto é, não só de todas predicações de que é sujeito num dado estado, mas de todas as predicações de 290 Leibniz, G. W. (1686), Discours de métaphysique (tradução para Português de Adelino Cardoso “Discurso de Metafísica”, Lisboa: Colibri, p. 44 (1995)), parágrafo VIII. 291 Idem, ibidem. 297 que foi, é e será sujeito – em suma, de todo o decorrer dos seus estados particulares. Assim, em substância, tal primeiro como lugar, Aristóteles, Leibniz como uma entende a substância individual que é sujeito de predicação. Em segundo lugar, Leibniz entende a substância não como uma matéria inerte, como algo onde o movimento é apenas um atributo possível ou como o que subsiste na mudança. Pelo contrário, em Leibniz, uma substância é um sujeito de predicação de uma série de estados. Estados que têm de se suceder sem interrupção, pois uma interrupção na decorrência de estados seria uma ausência de predicação e, como tal, não poderia ser substância (seria um não-ser, um ser sem predicado algum). A substância, como Leibniz afirma logo na abertura dos “Princípios da natureza e da graça”, é um “ser capaz de acção”292. Porém, esta capacidade não é uma mera potência para a acção, mas uma força efectiva. Isto é, em Leibniz as substâncias individuais são concebidas como entidades que têm em si um princípio interno de mudança, princípio este que as força a transitarem permanentemente entre estados diferentes. A substância encontra-se em perpétua transição de estados. 292 Conferir, Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1. 298 Assim, entender a mónada como uma substância simples, é entender que ela não tem constituição interna, que ela não tem nada no seu interior, nem sequer vazio, pois não é oca como uma caixa de ressonância, mas que, ao invés, contém virtualmente todos os predicados do qual foi, é e será sujeito. As mónadas não são o que subjaz à mudança ou o que tem ou toma formas extensas, pois esses conceitos fariam dela algo passivo ou, pelo menos, algo em que a mudança não é necessária. As mónadas, enquanto seres que contém, virtualmente, toda a sequência dos seus estados, que se sucedem por razão de um princípio interno, são a unidade de uma série interminável de estados. Unidade de um fluxo espontâneo de estados. Mas, se a mónada, enquanto substância singular, é, por sua natureza, uma entidade em sendo cada um desses mudança contínua de estados, estados fugaz e efémero, em que consiste cada um desses estados? Isto é, são estados de quê? Segundo Leibniz, cada estado passageiro “não é mais do que a chamada percepção”293. Isto é, “a representação de uma multiplicidade na unidade”294. A unidade é, claro está, a percepção individual da mónada, o seu estado actual, a sua percepção actual do múltiplo. Mas que multiplicidade é representada em cada mónada? 293 294 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 14 (p. 77). Idem, Ibidem. 299 Segundo o Leibniz dos “Princípios da natureza e da graça”, as percepções das mónadas são representações do composto295. E o que é este composto que é representado? Daquilo que se afirmou anteriormente, os compostos (ou os agregados) primeira mónada, de mónadas aproximação, aquilo em são o que os múltiplo consiste corpos. que a é sua Portanto, numa representado percepção, é na o múltiplo do mundo corpóreo, do universo. Em cada percepção individual, que é uma unidade, habita, como representação transitória, o múltiplo do mundo corpóreo. Por seu turno, numa segunda aproximação, dado que cada corpo é um composto de mónadas, então, o múltiplo que é percebido como corpo é, na sua essência, o conjunto de todas as outras mónadas. Isto é, cada mónada percepciona todas as outras por intermédio dos corpos. A percepção de cada mónada é a percepção de todas as outras. Ou seja, tal como tão celebremente afirma Leibniz, “cada substância simples [tem] relações que exprimem todas as outras e […], por conseguinte, [é] um espelho vivo perpétuo do universo”296. Cada mónada é, por sua natureza, uma imagem, um ponto de vista, uma perspectiva singular do universo. Havendo múltiplas mónadas, existem múltiplas perspectivas 295 Conferir Leibniz, G. W. (1714), Principes de la nature et de la grâce fondés en raison (“Principios de la Naturaleza y de la Gracia Fundados en Razon” in Escritos Filosóficos de Leibniz, Madrid: Mínimo Tránsito, p.685. (2003)) parágrafo 1. 296 Conferir [Monadologia-Ed.Robinet], parágrafo 56 (p. 105). 300 do universo. Cada mónada é uma unidade singular do múltiplo. O universo é a unidade das múltiplas mónadas. As mónadas não são, no entanto, representações fixas do múltiplo. A cinematográfica. anteriormente, mónada Isto as incessantemente de não é, e é uma como substâncias percepção em pintura, já foi simples mas é referido transitam percepção, num fluxo permanente, em virtude de um princípio que terá se ser interno. Este princípio interno que, sob sua acção, leva à transição de estados perceptivos de cada mónada particular, Leibniz designa por apetência297. Temos então as duas qualidades ou “acções internas das substâncias simples”298 das mónadas: a percepção e a apetência. São estas duas qualidades que as fazem serem entes e qualidade as uma tornam discerníveis mónada seria entre si. indistinguível de Isenta outra. de A diferença entre mónadas, a sua discernibilidade, radica na percepção particular, na perspectiva singular que cada uma tem em si, em cada transição, da multiplicidade do mundo. Duas mónadas que representam identicamente o mundo, não seriam duas, mas uma. Portanto, o que as distingue não é algo que lhes é interior, mas a sua relação representativa do que lhes é exterior. 297 298 Conferir Idem, parágrafo 15 (p. 77). Conferir Idem, parágrafo 17 (p. 79). 301 As acções internas das mónadas, por estas serem substâncias simples, isto é, sem partes, não resultam de quaisquer mecanismos internos. Pois sendo sem partes, a mónada em nada poderá ser influída por algo exterior. As percepções não são impressões numa superfície à maneira de fotografias ou de selos, nem as transições de estados de percepção resultam de reacções, isto é, de acções em resposta a impressões externas efectuadas sobre si. Não tendo partes, não seria concebível que tivessem um interior que respondesse a uma acção exterior. Dado que essas acções internas não resultam de quaisquer mecanismos internos, as mónadas não podem ser tomadas como entidades físicas, em particular como corpos. As mónadas são autómatos incorpóreos299. Uma vez sendo entidade sem partes, seria tentador imaginar as mónadas ao jeito de partículas materiais, de partículas corpóreas puras (como aqui se designou no segundo capítulo), corpúsculos mínimos ou simplesmente como pontos. Contudo, tal como nos avisa Leibniz300, logicamente, onde não há partes não há extensão, nem figura, nem divisibilidade alguma possível. Deste modo, por um lado, uma mónada não poderia ser algo material, pois isso significaria que era composto de matéria. Seria um pedaço, 299 300 Conferir Idem, parágrafo 18 (p. 81). Conferir Idem, parágrafo 3 (p. 69). 302 por muito mínimo que fosse, um átomo de matéria. Ora, a mónada não é composta por nada, não tem interioridade. Por outro lado, uma mónada não pode ser nem um átomo no sentido que Demócrito dá a esta palavra, nem pode ser um corpúsculo à maneira de Descartes, pois dado que estes têm extensão será sempre possível pensar numa sua divisão, o que seria contrário à natureza simples das mónadas. Não obstante, poderá dizer-se, como nos diz Leibniz, que as mónadas são “os verdadeiros átomos da natureza e, numa palavra, os elementos das coisas”301. Átomos, não no sentido de elemento imutável no mundo, mas no sentido de elemento indivisível das coisas, de entidades primeiras de tudo, de unidades singulares de uma série de estados que já estão contidas mónadas em si, como virtual. E a realidade das esgota-se nesse fluxo espontâneo de estados. A mónada é a unidade atómica do real. Neste sentido, poderse-ia representar a mónada como um ponto. Um ponto, não como a unidade última de algo espacial, ou do próprio espaço. Isto é, não entendendo a mónada como o elemento último, o que resta, de uma decomposição ad infinitum do espaço, pois tal implicaria dizer que o espaço seria anterior à mónada. Tal seria contraditório com o conceito de mónada como elemento primeiro, primordial relativamente a 301 todas as outras coisas. Porém, se o espaço for a Conferir Idem, ibidem. 303 consequência do preenchimento das mónadas, então seria possível imaginar as mónadas como pontos a partir dos quais o espaço é composto. A mónada a ser um ponto, não é um ponto material, nem um ponto matemático: é um ponto metafísico. Por outro lado, sendo entidades perceptivas e, como tal, incorpóreas, as mónadas podem ser consideradas como espíritos ou almas. Porém, Leibniz reserva esta atribuição, apenas “àquelas, acompanhada de cuja percepção memória”302. Em é mais particular, distinta aos e humanos. Assim, em cada um de nós habita uma multidão de mónadas. Em cada pedaço de nós, pois a cada pedaço corpóreo corresponde a sua mónada. Conjunto que é regido, no entanto, por uma em particular. Como um maestro dirige a sua orquestra. Mas mais que a questão das hierarquias entre mónadas, o importante a salientar é que se em nós (no que de nós é consciência que percepciona) habita ou reside uma mónada, então em Descartes, Leibniz, Newton ao e contrário Kant, o do sujeito que está se no sucede mundo. em O sujeito de percepção é parte do mundo que percebe, pois tanto o que tem percepções, como o que é percepcionado tem apenas uma natureza: as mónadas. A ciência em Leibniz não passa por um sujeito ausente, que vê o mundo da arquibancada ou do camarote. Um sujeito distante e ausente. 302 Conferir Idem, parágrafo 20 (p. 81). 304 Um sujeito transcendente que vai cartografando o mundo à medida que o descobre. O sujeito de Leibniz, tal como um explorador, vê o mundo de uma certa perspectiva. Está corpo a corpo com ele. Vê para o mundo de uma das múltiplas que este oferece para ser visto. Assim, se o sujeito tem do mundo uma certa perspectiva, isso não significa que se caia numa espécie de relativismo. No entanto, torna a ciência numa empresa muito mais vasta, pois ao contrario de Newton, por exemplo, onde se pretende olhar o mundo num plano, num ponto neutro, como partes de um mapa, a Ciência de Leibniz passa pelo projecto interminável da aquisição de todas as perspectivas. Por trabalhar, não ao nível do plano, mas do pleno. Por procurar a harmonização de várias teorias, cada uma a ver o mundo segundo um ponto de vista que lhe é próprio. Assim, o sujeito, como está no mundo, é parte do mundo, tem-se a si mesmo como objecto mais próximo. Ele é sujeito do sujeito ou, tal como colocou Whitehead, é um super-jecto. Porém, se cada uma das mónadas é apenas um reflexo do todo, um autómato incorpóreo e, como tal, não se encontra em interacção com nada, como podem as mónadas representar esse todo? Como aqui já se disse, cada mónada está associada a um corpo. Assim: 305 “[cada corpo] expressa todo o universo pela conexão de toda a matéria no pleno, a alma representa também todo o universo ao representar esse corpo a que pertence de maneira particular”303. Existe um duplo plano: o dos corpos e o das mónadas. Os corpos expressam o universo. As almas representam perceptivamente o corpo a que estão associadas. E é por que os corpos expressam o universo, que as almas representam, indirectamente, o universo. Os corpos sem mónadas não existiriam, pois são compostos de mónadas. As mónadas sem corpos também não existiriam, pois não teriam percepções, o universo não se exprimiria em nada. Quase que se poderia dizer, recordando Bohr, que os corpos e as mónadas são complementares. Todas as mónadas estão em inter-relação, em interligação, mas não em inter-acção. Isto é, existe um vínculo invisível, imponderável, implícito entre elas. Como numa dança bem ensaiada, as mónadas estão perfeitamente coordenadas sem que, no entanto, exista qualquer tipo de contacto ou transita de de interacção percepção em entre elas. percepção Cada por uma via de delas uma 303 “et comme ce corps exprime tout l’univers par la connexion de toute la matière dans le plein, l’Ame represente aussi tout l’univers en représentant ce corps, qui lui appartient d’une manière particulière.“, idem, parágrafo 62 (p.109). 306 coreografia que as abarca a todas. Cada substância simples está em mudança por si mesma, mas muda em função de uma organização incorruptível que as percorre a todas. Assim, cada mudança só é possível em função de todas as outras. As mónadas vivem em regime de compossibilidade ou de cumplicidade. Neste sentido, as mónadas são como unidades de biografias particulares. São livros, como afirma Deleuze304. São livros auto-biográficos. É essa biografia particular, o seu conjunto de percepções que se sucedem, a perspectiva singular do universo que faz com que cada mónada seja distinta das demais a cada transição de estado. Pois a percepção da mónada é a expressão singular da transição de estados da multiplicidade. E a biografia do mundo será o conjunto das suas biografias. Porém, a biografia de cada uma contém, virtualmente, a biografia da totalidade. Mas, por sua vez, se toda a existência está preenchida de mónadas (pois não pode haver algo existente que não seja composto por mónadas) e a estas está associado um pedaço corpóreo, então o espaço físico é um plenamente preenchido. Isto é, tudo é pleno. Por conseguinte, tal como em Descartes, a matéria é divisível em partes mais pequenas e estas em outras ainda mais pequenas, numa sucessão infinda. 304 Conferir Deleuze, Gilles (1988), Le pli: Leibniz et le baroque (tradução para inglês de Tom Conley, “The Fold: Leibniz and the baroque”, Londres: Continuum (2006), p. 35. 307 Divisão que não é meramente racional, como no caso do espaço matemático. Isto é, uma divisão que se pode pensar a partir de um todo. Em que o todo precede as partes. Pelo contrário, cada corpo é, em actual, dividido em infinitas partes. Por sua vez, também como em Descartes, todas as partes da matéria estão ligadas entre si, pois num plenum o movimento de um corpo particular faz efeito nos que lhe são contíguos e esses em outros, numa propagação que podermos conceber como ondulatória. Por conseguinte, o movimento de um corpo é uma consequência directa do movimento de todo o universo. O estado actual de resultante, reflexo, expressão um corpo individual é do decurso evolutivo dos estados do universo. A multiplicidade é expressa em cada corpo. E o estudo exaustivo, uma determinação completa de um corpo individual passaria pela conquista de todo o múltiplo que ele contém. Isto é, teria que passar pela determinação de todos os outros corpos. O que significa que a percepção do estado actual de um dado corpo, ao contrário do que sucede em Descartes, Kant, Newton e, por extensão, da metafísica implícita da Física, não o determina por completo, mas apenas parcelarmente. Por outro lado, se tudo é composto de mónadas ou por mónadas, que são a substância simples, então, logicamente, não pode existir nada que não pertença às mónadas. Ou seja, não pode existir tal coisa, como Newton, por exemplo 308 concebe, como um espaço vazio. Um espaço como substância que precede todos os corpos. O espaço, para Leibniz, é uma ordem da coexistência das mónadas305. O espaço é da ordem das coisas, da sua relação e não um plano onde estas podem ser depositadas, ordenadas e urdidas as suas relações. Igualmente, o tempo é da ordem das coisas. Assim, tanto o espaço, como o tempo, são, para Leibniz, não coisas, mas fenómenos são bem fundados. Fenómenos, porque apenas aparência. Bem fundados, pois fundam-se na relação - que é o tecido do real – entre as mónadas. Porém, o que sucede no caso dos corpos? Tal como se afirmou no início, Leibniz parece hesitar em considerar os corpos como substâncias. Embora nos “Princípios da Natureza e da Graça”, Leibniz afirme que os corpos são substâncias compostas, na monadologia parece indicar que apenas as mónadas são verdadeiramente substâncias. Nesta última obra, os corpos são simples agregados de mónadas. Por outro lado, se os corpos nos aparecem aos sentidos como extensos e se a extensão é apenas um fenómeno bem fundado, então os corpos, tal qual nos aparecem, são igualmente um fenómeno bem fundado. O mesmo sucederá com o movimento, se o pensarmos, como é usual, como o quociente entre o espaço percorrido e o tempo decorrido por um corpo, pois também o tempo é da 305 Leibniz, G.W. (1714), Carta a Rémond, Julho de 1714, não enviada in Princípios da natureza e da graça/Monadologia (trad. Port. de Miguel Serras Pereira), Lisboa: Fim de Século, p.68. (2001). 309 ordem da relação das coisas e não uma coisa em si. Assim, a verdadeira natureza dos corpos não nos é revelada através da percepção directa. E, como tal, toda a Física que se constitua a partir de uma concepção de corpo tal como ele nos aparece aos sentidos (extenso, móvel, etc.) será uma ciência de fenómenos bem fundados, mas não uma ciência da natureza tal como ela é. Diz-nos então, Leibniz, “a alma segue as suas próprias leis, e o corpo também suas”306. as As almas agem por apetências, os corpos por movimentos. A Física de Leibniz não é regida directamente pela percepção e pela apetência. A Física de Leibniz é regida por duas forças: a viva e a morta. A primeira é elástica, no sentido que é uma força que é dirigida para fora mas tem a sua fonte no interior, como uma mola que se estende, que se atira para fora. Força que se esgota em si, mas é transmitida. Força que é, também, de reacção. Por outro lado, a força plástica, a força morta é a força acumulativa. Que se dirige para dentro, que se conforma com o exterior. Mas que é, tão-somente, o que potencia a força viva. Existem assim duas forças: uma interior, outra exterior; uma acumulativa, outra expansiva; uma activa, outra passiva. Todos os corpos são deformáveis, 306 Conferir [Monadologia, edição Robinet] Parágrafo 78 (p. 121) 310 elásticos, fluidos na medida suficiente de não perderem a sua consistência. Encontramos em Leibniz uma física que rejeita tanto os átomos materiais de Newton, por serem indeformáveis, como os corpúsculos que tendem para o imponderável, para o inconsistente. A física de Leibniz rejeita tanto a idealização de um corpo absolutamente rígido de Newton, como rejeita a idealização de um fluido imenso que preenche todos os espaços. No fundo, olhando da física actual para a física proposta por Leibniz, este rejeita as idealizações que estão na base tanto da Mecânica Clássica, como do Electromagnetísmo. Leibniz rejeitaria as partículas puras, tanto dos corpos como das ondas. Porém, se tudo é pleno em Leibniz, o movimento local propaga-se por todo o espaço. Todos os corpos sentem, de alguma forma, o movimento de um corpo particular. A acção particular propaga-se isotropicamente, como se fosse uma onda. Porém, uma percepção é um singular. É a percepção de um corpo. Isto é, a física de Leibniz já inclui, de certo modo, um dualismo onda-corpúsculo. Dualismo este que se pode pensar, justamente, como no domínio quântico: na propagação é como uma onda; na interacção é como um corpo. Mas o corpo é aqui pensado, na sua essência, como um centro de força e a onda como a propagação dessa força. Mas, neste caso, voltaríamos, aparentemente, à concepção que nos surgiu em Kant, onde o mundo poderia ser totalmente estático. O que 311 não faz sentido em Leibniz, pois nas substâncias simples existe um princípio interno de transição, de mudança. Tudo está em movimento, por razão das mónadas. Porém, regressamos ao problema que deixámos em aberto no início: Em que consiste exactamente a ligação entre as mónadas e os corpos? Leibniz diz-nos que os reinos das almas e dos corpos, embora completamente separados, são harmónicos entre si. Numa harmonia pré-estabelecida que permite a transição de percepções e corresponda a um movimento nos corpos. Os corpos encontram a sede ou a razão do seu movimento nas mónadas. Aqui, por movimento, penso que se pode entender o mesmo que em Kant. Isto é, uma modificação das condições exteriores. Porém, em que consiste precisamente esta correspondência entre almas e corpos? Como mostra Daniel Garber no seu clarificador livro “Lebniz: Body, Substance, Monad”, esta questão da ligação entre os corpos e as mónadas irá perseguir Leibniz na fase final da sua vida. Aliás, Garber é ainda mais enfático ao afirmar que a questão da ligação entre mónadas e corpos torna-se quase uma obsessão de Leibniz307. Como mostra Garber, e como é característico diferentes, em todas Leibniz, elas este tentará inconclusivas, várias de formas resolver o 307 Garber, Daniel (2009), Leibniz: Body, Substance, Monad, Oxford: Oxford University press, p. 373. 312 problema. Leibniz terá mesmo, por um momento, posto mesmo em causa as mónadas. Em resumo, quer tudo isto dizer que, segundo Garber: “O trabalho de Leibniz nestes anos [os de maturidade] sobre os corpos não fazem uma imagem completamente coerente”308. Não é fácil compreender exactamente como as mónadas, e as suas qualidades, constituem os corpos; como os corpos são agregados ou compósitos de mónadas; ou como as acções das mónadas se ligam com os corpos. E, em particular, não é fácil perceber como a Metafísica de Leibniz poderá fundar uma Física que se quer, na sua essência, dinamista e relacional. Como será óbvio, não caberia aqui, nem a mim, sequer ensaiar um movimento qualquer de tentativa de solução do problema. Contudo, poder-se-á tentar fazer uso da monadologia como inspiração e, de certo modo, reinterpretar alguns dos seus aspectos fundamentais de modo a gizar um conceito de objecto físico com três aspectos que se podem encontrar objectos em Leibniz: físicos; a a inter-relação sua essência plena entre os dinâmica; a discernibilidade dos objectos físicos. 308 Conferir Idem, p. 382. 313 4.2. Os objectos físicos como nós de relações. Deleuze, no seu livro sobre Leibniz, fala-nos em dobra para descrever as variadas sucessões paralelas mas interligadas em Leibniz. O plano das mónadas e o plano dos corpos. O plano do contínuo do movimento e o plano do discreto da percepção. O plano da função e o plano da derivada. O plano da transição do virtual para o actual (ou seja, da actualização) da mónadas e o plano da transição do possível para o real (ou seja, da realização) dos corpos. Séries paralelas, mas harmónicas. Como duas faces de uma folha que se vai dobrando. Por outro lado, a dobra também surge em Deleuze como a figuração da mónada. Podemos ver, perfeitamente, a sequência de transições de estado de uma mónada como um desdobrar, como se fosse uma explicação. Podemos sentir como cada mónada contém, virtualmente, implicada em si, dobrada no seu interior, a sua sequência de actualizações. Podemos olhar para a mónada como uma espécie de origami que se reinventa a cada momento. Podemos perceber a actualização harmónica do conjunto das mónadas como uma complicação, como uma cumplicidade. A dobra é, sem dúvida, uma imagem frutuosa das mónadas. 314 Porém, no caso presente, sugiro que interpretemos as mónadas segundo a figura, não da dobra mas dos “nós”. Isto é, como entrelaçamentos, como zonas de interligações. Os nós são constituídos são organizações ou estruturas particulares dos fios. Assim, um nó existe em função do que lhe é exterior. Um nó pode surgir por um enrolamento, tal como pode ser desenrolado, desatado e desaparecer. Contudo, um nó é uma estrutura autónoma dos fios. Mas os nós de que aqui falamos não são constituídos por apenas um fio que se envolve consigo mesmo. Isso seria, digamos, um laço. O nó de que aqui se fala, é um nó de múltiplos fios, como estradas, constituído um nó por rodoviário, múltiplos com múltiplas caminhos que se encontram. Os nós podem ser vistos como uma confluência. Por isso, os nós podem ser igualmente figurados como remoinhos, furacões ou vórtices. Estes nós são nós de relações. São relações que se estabilizam num particular. Assim, os nós são entidades essencialmente relacionais. Fazendo uso de uma latitude particular da língua portuguesa, poderíamos dizer que um nó só o é relativamente a um nós. Todo o complexo de nós está literalmente inter-ligado, sem que contudo signifique que se trate distinto de de um todos todo os indiferenciado. demais pelo Pois, novelo cada nó particular é de 315 relações que instancia. Em cada nó existe um desenrolar de si que lhe é próprio, mas que é igualmente consequente do desenrolar (ou desfiar) do todo relacional de que faz parte. Cada um de nós vive num enredo que é o seu, numa primeira instância, e que é parte da bibliografia da vida, numa segunda. Deve-se então entender que os nós são os relata das relações que os constituem. Porém, os relata não antecedem as relações. Do mesmo modo que não existem nós sem fios, não existem relata sem relações. Porém, poderão existir relações puras, sem estarem instanciadas num relata? Sim, serão as figuras que habitam no Caos de que nos fala Deleuze. O que é o Caos? Deleuze defino-o como “um vazio que não é um nada, mas um virtual, que contem todas as partículas possíveis e adquirindo todas as formas possíveis que surgem para de imediato desaparecerem, sem consistência nem referência, sem consequência. É uma velocidade infinita de nascimento e desvanecimento”309. É o lugar de todas essas relações que circulam, como puros fluxos, etéreos, fátuos, inconsistentes. São como uma multiplicidade de matérias primas aristotélicas. Todas em potência de forma. Uma como a outra, incognoscível na sua existência enquanto ser do 309 Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 105. (1992) 316 Caos. Isto é, uma é incognoscível pois é pura relação sem relata, outra é incognoscível pois é matéria prima sem forma. O Caos é um virtual, pois está preenchido de entidades em pura potência de actualização. Assim, os nós, entendidos como confluências de relações, são constituídos pelo desfiar da transição virtual-actual. Portanto, neste caso, os relata, isto é, os nós de relações, são epicentros de actualizações em processo. Ora, diz-nos Deleuze, “como Leibniz mostrou, a força é um virtual em curso de se actualizar”310. Logo, os relata são novelos de relações, são centros de força, não estáveis, como uma carga eléctrica, mas meta-estáveis, em flutuações de intensidade. Deste modo, em cada uma das ligações entre nós tem a sua tensão oscilatória. Isto é uma vibração. Como as cordas de uma guitarra, que também são fios em tensão que ligam dois nós. A sua vibração tem uma intensidade, uma frequência que lhe é particular naquele estado. O seu estado é definido a partir da intensidade da relações que lhe estão enredadas. Deste modo, todas as relações são activas, mas instáveis. As relações procuram estabelecer-se num nó, num relatum. Porém, nenhum nó é estático, mas é um estacionário, um meta-equilibrio. Poder-se-á dizer que os nós, como os corpos em Leibniz e em Kant, são centros de 310 Deleuze, Gilles (1995), Dialogues (trad. Port. de José Cunha, “Diálogos”, Lisboa: relógio d’agua (2004), p. 180. Gabriel 317 força. Porém, flutuações são de forças intensidade, distensões. Os nós osciladores que se são variáveis em pois contínuas uma espécie inter-ligam a existem em compressões de outros e sistema de sistemas de osciladores. Talvez seja essa a imagem física mais próxima. Os nós substância o não que são substâncias existe por si, se o se que entender não pode por ser decomposto, o que subsiste à mudança, ou o que possui propriedades. Poder-se-á dizer que são organismos e neste sentido que são substâncias individuais. Não admirará que em Bio-matemática, o ADN seja justamente considerado uma molécula em nó, um Knotene. Essa multidão de nós construi uma trama, um tecido, que embora seja uma rede ou uma floresta de rizomas, pela sua densidade pode ser tomado como um contínuo com rugosidades. Aquilo a que se pode designar por meio ou plano. O meio é necessariamente um sistema complexo, pois é constituído por essa trama múltipla de relações. O caso mais radical de meio é o próprio Caos, mas não é o único. No Electromagnetismo esse meio é identificado com o campo electromagnético. No caso da Mecânica celeste esse meio é identificado com o espaço-tempo. No caso do domínio quântico esse meio será o meio sub-quântico. Em todos os casos repete-se a estrutura, como uma espécie de fractal. 318 Os objectos físicos são nós de relações, singularidades num contínuo. As massas são deformações do espaço-tempo. As cargas são centros de força do campo electromagnético. Os objectos quânticos são vórtices do meio sub-quântico. As massas são nós, constituídos por outros nós (as cargas eléctricas) e estas são constituídas por outros nós ainda. Um nó, esquecida a sua estrutura, pode ser visto como um ponto. Neste caso, um ponto oscilante num meio. Compreendese assim que se possa confundir o nó com um ponto material, que se possa confundir com a partícula pura dos corpos. E se possam confundir as suas oscilações, num meio, como uma onda harmónica. Porém, cada nó é, por sua natureza, uma estrutura ontologicamente autónoma. Portanto, dentro de cada nó existe um outro mundo de nós. Tal como em Leibniz, em cada peixe existe um lago cheio de peixes. A progressão é infinita, mas em sentido horizontal e não em sentido vertical. Isto é, não que a matéria seja divisível ao infinito e em que cada parte seja igual ao todo. Pelo contrário, cada nó é divisível em outros nós de relações. Porém, o novo plano ontológico estrutura-se de outra forma. São outras relações. São outros nós. Quer isto dizer que cada plano é emergente relativamente ao seu antecedente. Mas o que queremos dizer por emergente? Encontramos em Paul Humphreys a seguinte definição de emergência: 319 “Emergência é, em sentido lato, a visão que existem coisas do mundo – objectos, propriedades, leis, talvez outras coisas – que são manifestadas como resultado da existência de outras entidades, usualmente mais básicas, mas que, contudo, não podem ser completamente reduzidas a essas entidades”311 O ponto aqui é a expressão “ser completamente reduzidas”. A forma tradicional de o pensar é a partir da relação mereológica do todo e das suas partes. Assim, afirma-se que existe emergência quando existem entidades (todos) que não podem ser completamente reduzidas às suas partes constituintes. Isto é, não resultam da simples combinação das suas partes. Como, por exemplo, as peças de lego ou de um puzzle. O que pode ser expresso num aforismo clássico: “o todo não é igual à soma das suas partes”. O emergentismo precisamente opõe-se, neste como é último, claro, ao concebe-se atomismo. que Pois tudo é constituído por uma combinação de um conjunto de entidades imutáveis e últimas. E a Física revela-se claramente atomista quando concebe um corpo apenas como o compósito de 311 “Emergence is, broadly speaking, the view that there are features of the world – objects, properties, laws, perhaps other things – that are manifested as a result of the existence of other, usually more basic, entities but that cannot be completely reduced to those other entities” Paul Humphreys (2006), “Emergence”, in The Encyclopedia of Philosophy (2th Ed) (Donald Borchert (ed.), Nova Iorque: MacMillan, vol. 3, p. 190. (pp. 190-194). 320 corpúsculos e uma onda apenas como o sobreposto de ondas. Como já aqui se mostrou, em limite, este atomismo que se encontra no tutano da Física, leva-nos às partículas puras dos corpos e das ondas. Mas como pode um todo ser diferente da soma das partes que o compõem? Justamente, porque não existindo tal elemento atómico, como afirma Gil Santos, “a identidade de um objecto é a sua organização própria”312. Assim, essa organização própria que confere identidade a um objecto, ou nó, como aqui o designámos, possui propriedades distintas das partes que o compõem e uma autonomia causal que é sua. Um ser animal não é um mero agregado de órgãos. É autónomo em relação a estes. Diria Deleuze, “é um corpo sem órgãos”. Cada objecto é um nó de relações que lhe são únicas. Poderá o atomista argumentar que essa emergência é aparente, pois são o resultado das nossas limitadas capacidades de explicar, calcular, dar conta das múltiplas relações das partes. Diz-se que um sistema é complexo precisamente para dizer que existem tantas relações que não é possível explicar completamente o todo em função das suas partes, o que não significa que, em limite, o todo seja ontologicamente autónomo em relação às suas partes. Talvez 312 Santos, Gil C. (2010), “Emergência: Da Mereologia à Organização”, in Estudios de Lógica, Lenguaje y Epistemologia (David Duque, Emilio Parejo e Ignácio Antón ed.), Sevilha: Fénix, p.348. 321 uma célula seja, em limite, totalmente explicável a partir das suas moléculas. Neste caso, onde a emergência é fruto de uma incapacidade de conhecer todas as relações que formam a entidade emergente, tratar-se-á de uma emergência epistémica. Contudo, o caso será diferente se nesse todo que emerge existe uma alteração da natureza das partes. Ou seja, a transição de entre planos de relações ou o que designámos por meio é realizada por uma transformação das relações que caracterizam um relatum. Neste caso, dir-se-á que existe uma emergência ontológica. Como são exemplos, na Física, os quarks para os protões; os protões para as bolas de bilhar; celestes. das Em bolas cada de meio bilhar para instanciam-se alguns nós de objectos relações distintos. Mas em cada caso é um plenum de inter-ligações entre relata em agitação, mas meta-estáveis. Poderíamos seguir por um desses fios que fazem a ponte entre dois nós, num caminho aparentemente linear. Isto é, isolando uma relação particular entre dois relata. A distância, a velocidade, o peso, a extensão, etc. E essa relação, tomada como isolada de todas as outras, poderia ser considerada como linear. Isto é, onde a relação manterse-ia sob o regime de uma constante de proporcionalidade. Essa tem sido a estratégia da Física. Como afirma Deleuze, 322 a Ciência opera por funções apenas com a finalidade de isolar variáveis e de abrandar Caos313. o Porém, esse abrandamento, que é necessário à Física, se encerra em arquétipos como os sistemas isolados, o absolutamente sólido, o infinitamente extenso, o ponto material, a onda harmónica, na separabilidade completa entre sujeito e mundo, fecha-se em excesso ao mundo. Protege-se do Caos – afirma Deleuze - prendendo-se a opiniões fixas314. Porém, na riqueza da realidade, por um lado, a cada chegada a um nó existem mil caminhos que se abrem, como jardim que se bifurca de que nos fala Borges. Não existe um nó de um só fio, um relatum de uma só relação. Cada relatum reenvia, num primeiro plano, para o meio onde habita. Num segundo nível, para o mundo. Os nós são mais intensos, do que extensos. São centros de força que estabilizam a cada momento um conjunto de relações. Neste sentido, os nós são atractores, são as chamadas singularidades dos sistemas dinâmicos. É precisamente assim, concebendo os relata como centros de intensidade, como singularidades, que Delanda desenvolve Virtual a sua ontologia Philosophy”315. Os em graus “Intensive de Science liberdade de and uma singularidade de que fala Delanda, são precisamente os fios 313 Conferir Deleuze, Gilles (1991), Qu’est-ce que la Philosophie? (Trad. port. de Margarida Barahona e António Guerreiro, “O que é a Filosofia?”, Lisboa: editorial presença), p. 106. (1992) 314 Idem, p.176. 315 Conferir DeLanda, Manuel (2002), Intensive Science and Virtual Philosophy, Londres: Continuum. 323 que se enredam num nó. Ou seja, todos os processos são, em última análise, não-lineares. Isto é, entre dois elementos, as variáveis não variam proporcionalmente. Seja porque o sistema nunca pode ser considerado como isolado, ou seja, cada relatum reenvia para outros relata e, como tal, a relação nunca é a dois. Esta é forma típica das equações diferenciais não-lineares, onde é introduzido um parâmetro de “ambiente”. Contudo, neste caso, o não-linear pode ainda ser revertido num sistema linear de múltiplas variáveis, de infinitos elementos. Ou seja, a equação não-linear pode ser linearizável. Contudo, no caso onde a razão da desproporcionalidade reside não só na inter-ligação entre relata, mas no intensidade facto destes serem centros de variável, ou seja, no facto força de destes serem entidades em processo, então essa linearização já não seria possível316. Por fim, segundo Deleuze, uma mónada é uma célula. Poderíamos afirmar que um neurónio é um nó de terminações nervosas. Neste sentido, o cérebro é um fractal do mundo. 316 Araújo, João (2010), “Investigating the infinity slope in a nonlinear Approach” in A new vision on Physis, Lisboa: CFCUL, p.217. 324 5. Conclusão A questão da natureza dos objectos quânticos, como aqui se tentou mostrar, resulta do choque entre um certo conceito de objecto físico, que está na constituição intima da Física, e o domínio quântico. O choque tornou-se em enigma com a formulação do dualismo onda-corpúsculo por parte de De Broglie. E o enigma tornou-se em confronto entre essa ontologia implícita herdada de Newton e os indomáveis objectos quânticos. Bohr fez-se comandante dessa geração de descobridores do quântico e liderou o processo de resposta. Neste sentido, analisar o pensamento de Bohr é ter acesso ao sinuoso mas hábil movimento que permitiu generalizar integrar, as de comprometer teorias forma o físicas contida, conceito a clássicas estranheza clássico de de modo quântica, objecto físico. a sem A Mecânica Quântica constitui-se nas margens, construi-se nos limites ontológicos das teorias clássicas da Física. Ela é uma pura teoria das probabilidades. Na crença da impossibilidade de se conceber os objectos físicos senão como ou ondas, ou corpos, a Mecânica Quântica estabelece-se 325 apenas como teoria que prevê, estatisticamente, os resultados de medidas. Ou seja, a Mecânica Quântica colocase apenas do lado do sujeito. Aliás, radicaliza a oposição sujeito-objecto, deixando a quase nada o estatuto dos objectos físicos. Bohr chega mesmo a afirmar, numa frase que é conhecida: “não existe um mundo quântico. Existe apenas uma descrição física abstracta”317. A leitura desta frase pode levar pensar que Bohr não atribui realidade ao mundo quântico. Tal, como se mostrou, não é verdade. Bohr era um realista. Contudo, Bohr sobre o mundo quântico, faz as vezes de Colombo sobre o mundo das Américas. Descobridor de um novo mundo, embora nunca tenha chegado mais longe do que às primeiras ilhas, recusa obstinadamente que esse mundo é novo, embora também não parece ser velho. Como a Mecânica Quântica se coloca do lado do sujeito, ela ocupa-se conseguinte, existência apenas concede material do resultado apenas enquanto aos das medições. objectos corpúsculos e Por quânticos apenas no momento em que produzem manchas numa chapa fotográfica ou que causam sinais num detector. Como se fossem simples aparições desse sub-mundo que é forçado a dar uma resposta à questão da posição. E é porque todas as medições são, 317 “there is no quantum world. There is only abstract quantum physical description” Bohr, Niels citado de Al-Khalili, Jim (2003), Quantum: A guide for the perplexed, Londres: Weidenfeld & Nicolson, p.153. 326 directamente, de localização, que esse sub-mundo só se pode revelar sob a forma dos corpos. Ao colocar-se do lado do sujeito, o movimento dos objectos teoria quânticos quântica é absolutamente ortodoxa não omitido. atribui, Por aos isso a objectos, trajectória ou meio de propagação. As ondas são apenas ondas de probabilidade. Curvas de probabilidade, quiser. Deste modo, a Mecânica Quântica da natureza dos objectos quânticos. se se escapa à questão Contudo, como aqui também se pretendeu mostrar, a questão regressa sob a forma do Problema da Medição, do Problema da Violação das Relações de Bell, do Problema do Realismo, do conjunto de problemas que muitas vezes são categorizados simplesmente de implicações filosóficas da Mecânica Quântica. Mas, na realidade, a meu ver, são apenas implicações de uma teoria física sem ontologia. Portanto, o problema que a descoberta que o domínio quântico levantou (ou fez regressar) é o do conceito de objecto físico. Mas uma análise a este conceito revela que já no século XVII, no momento do nascimento da Física se encontra, de certo modo, o problema que a descoberta do domínio quântico veio agudizar. Isto é, que os objectos físicos são concebidos a partir fixo, do movimento enquanto apenas possível, isto é, como corpos. Ou seja, em grande 327 parte dos conceitos de objecto físico, não decorre do conceito que estes se movam. No entanto, a Física – a mecânica, em particular – é uma ciência do movimento. Assim, de certo modo, sempre houve na Física uma tensão entre movimento e o conceito de objecto físico. Que no domínio quântico se reproduz na tensão entre a onda e o corpo. Quer isto dizer que a procura de um conceito de objecto físico que chegue ao domínio quântico passa por uma concepção eminentemente dinamista dos objectos físicos. E essa será, por ventura, a conclusão principal desta tese. Encontramos essa concepção dinamista, já em Aristóteles, mas igualmente em Leibniz. Mas em Leibniz encontramos também uma particular concepção de Ciência, uma particular relação entre sujeito e objecto, uma particular ontologia bem distinta do que ontologia pobre que prevalece na Física e que foi extraída, por Newton, do senso comum. Aqui, na Metafísica da Física, como em outras áreas, sempre existiu a proposta de Leibniz, mas esta não é a prevalecente. Talvez pelo seu peso metafísico. Talvez pela dificuldade de se percorrer os labirintos do pensamento de Leibniz. Onde os projectos, aparentemente isolados, se enredam e comunicam. Talvez, no caso concreto da Física, pela sua dependência a uma teoria das almas. O que, por um lado, leva a que o conceito de objecto físico não se construa a 328 partir da nossa experiência comum do mundo, mas de uma especulação metafísica que explique essa experiência comum do mundo. Por outro, pela enigmática representação nas almas dos acontecimentos que os corpo instanciam. Seja como for, a meu ver, a descoberta do domínio quântico, a questão da natureza dos objectos quânticos, leva a uma concepção dinamista e relacional de objecto físico. Uma concepção em que o movimento decorra do próprio conceito de objecto físico. E, portanto, em que o movimento seja da ordem da relação dos objectos físicos com o que lhe é exterior. A partir de uma leitura de Deleuze enquanto leitor de Leibniz, tentou-se, especulativamente, lançar pistas para uma concepção intensidade do dos objectos que da como entidades extensibilidade. Como mais da entidades processuais e não como entidades fixas, imutáveis. Como entidades essencialmente relacionais e nunca isoladas ou atómicas. E, neste sentido, de uma concepção dos objectos físicos que incorpore os fenómenos de emergência e nãolinearidade ontológicas. No fundo, a descoberta do domínio quântico lançou o desafio de se repensar os fundamentos ontológicos da própria Física. Encontramos uma via para o fazer em Leibniz e nas diferentes leituras de Leibniz ou, de certo modo, nas 329 leituras afins com Leibniz. Encontramos na teoria De Broglie-Croca318 (e é isso, justamente, que a diferencia de todas as outras teorias quânticas) uma tentativa de constituir uma Física fundada numa concepção dinamista e relacional dos objectos físicos. É um desafio gigante, mas, a meu ver, inevitável. 318 Conferir Croca, J.R. (2003), Towards a nonlinear Quantum Physics, Londres: World Scientific. 330 Bibliografia Aerts, Diederik (1998), “The Entity and Modern Physics” in Interpreting Bodies (Ed. Elena Castellani), Princeton: Princeton University Press. 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